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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016 MEMENTO MORI VERSÕES DO URBANO ATRAVÉS DAS PAISAGENS FÚNEBRES NO ESPAÇO-TEMPO CONTEMPORÂNEO ANDRADE, RUBENS DE (1); SILVA, ALDONES NINO SANTOS DA (2); CANTÚ, BRUNO (3) 1. Escola de Belas Artes EBA/UFRJ Dep. de História e Teoria da Arte. Av. Pedro Calmon, 550. Cidade Universitária, Rio de Janeiro - RJ, 21941-901 [email protected] 2. Escola de Belas Artes EBA/UFRJ Depart. de História e Teoria da Arte. Av. Pedro Calmon, 550. Cidade Universitária, Rio de Janeiro - RJ, 21941-901 [email protected] 3. Escola de Belas Artes EBA/UFRJ Departamento de História e Teoria da Arte Av. Pedro Calmon, 550 - Cidade Universitária, Rio de Janeiro - RJ, 21941-901 [email protected] Resumo As manifestações da morte e de estados fúnebres (luto, dor, tristeza, mal, sofrimento) são duas instâncias de representações distintas e indissociáveis no desenho da paisagem urbana. Ambas vigoram na cidade desde o seu surgimento; ambas estabelecem inequívocas relações entre vivos e mortos, sejam seres humanos ou inumanos, carne ou pedra. Todavia, ao considerar o modus vivendi urbano contemporâneo, percebe-se a existência de sentidos e significados, subordinados ao domínio da morte, e a esfera dos ritos fúnebres, que, por sua vez, sinalizam o modus de reinterpretação da escala hierárquica e da representatividade de cada uma dessas ordens no cotidiano da cidade. O recorte temático selecionado para este estudo instiga a formulação de uma matriz analítica em que é possível estabelecer, entre outras coisas, relações de interdependência e intermediações mútuas de atributos cotidianos da vida e da morte; ou seja, a existência e ausência, a angústia e alívio, a falta e substituição, o aqui e o além, associados, que projetam no ambiente construído a consciência dos estados fúnebres que a paisagem pode adquirir. Compreende-se que a reflexão aqui proposta transita através de conceitos referenciados à ideia de paisagem stricto sensu, mais detidamente, às singularidades teóricas de estudos voltados à paisagem cultural que, aliás, mediará a leitura de fragmentos dos espaços fúnebres da cidade como cemitérios, monumentos in memoriam, como também as manifestações ritualísticas que ganham materialidade no espaço urbano e expressam a ordem da finitude da vida. Palavras-chave: Paisagem fúnebre; Morte; Arte urbana; Paisagismo.

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MEMENTO MORI – VERSÕES DO URBANO ATRAVÉS DAS PAISAGENS FÚNEBRES NO ESPAÇO-TEMPO CONTEMPORÂNEO

ANDRADE, RUBENS DE (1); SILVA, ALDONES NINO SANTOS DA (2); CANTÚ, BRUNO (3)

1. Escola de Belas Artes – EBA/UFRJ – Dep. de História e Teoria da Arte. Av. Pedro Calmon, 550.

Cidade Universitária, Rio de Janeiro - RJ, 21941-901 [email protected]

2. Escola de Belas Artes – EBA/UFRJ – Depart. de História e Teoria da Arte. Av. Pedro Calmon,

550. Cidade Universitária, Rio de Janeiro - RJ, 21941-901 [email protected]

3. Escola de Belas Artes – EBA/UFRJ – Departamento de História e Teoria da Arte

Av. Pedro Calmon, 550 - Cidade Universitária, Rio de Janeiro - RJ, 21941-901 [email protected]

Resumo As manifestações da morte e de estados fúnebres (luto, dor, tristeza, mal, sofrimento) são duas instâncias de representações distintas e indissociáveis no desenho da paisagem urbana. Ambas vigoram na cidade desde o seu surgimento; ambas estabelecem inequívocas relações entre vivos e mortos, sejam seres humanos ou inumanos, carne ou pedra. Todavia, ao considerar o modus vivendi urbano contemporâneo, percebe-se a existência de sentidos e significados, subordinados ao domínio da morte, e a esfera dos ritos fúnebres, que, por sua vez, sinalizam o modus de reinterpretação da escala hierárquica e da representatividade de cada uma dessas ordens no cotidiano da cidade. O recorte temático selecionado para este estudo instiga a formulação de uma matriz analítica em que é possível estabelecer, entre outras coisas, relações de interdependência e intermediações mútuas de atributos cotidianos da vida e da morte; ou seja, a existência e ausência, a angústia e alívio, a falta e substituição, o aqui e o além, associados, que projetam no ambiente construído a consciência dos estados fúnebres que a paisagem pode adquirir. Compreende-se que a reflexão aqui proposta transita através de conceitos referenciados à ideia de paisagem stricto sensu, mais detidamente, às singularidades teóricas de estudos voltados à paisagem cultural que, aliás, mediará a leitura de fragmentos dos espaços fúnebres da cidade como cemitérios, monumentos in memoriam, como também as manifestações ritualísticas que ganham materialidade no espaço urbano e expressam a ordem da finitude da vida. Palavras-chave: Paisagem fúnebre; Morte; Arte urbana; Paisagismo.

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O recorte epistemológico e o elenco de questões

E é no entanto essa interrogação sobre a sorte dos mortos que quero exorcizar, de que quero fazer o luto para mim mesmo. Porquê? Porque minha relação com a morte ainda não ocorrida é obscurecida, obliterada, alterada pela emancipação e pela interiorização da questão da sorte dos mortos já mortos. É a morte de amanhã, no futuro anterior de certo modo, que eu imagino, e é essa imagem do morto que serei para os outros que quer ocupar todo o espaço, com sua carga de questões: o que são, onde estão, como são/estão os mortos? (RICOEUR, 2012, p. 9).

O estudo dos lugares dedicados aos ritos de consagração e celebração da memória dos

mortos na cidade contemporânea, a partir do campo de estudo da arquitetura paisagística,

tem, na sua origem, perspectivas que convergem para dois elementos fundamentais na

produção do meio ambiente urbano: a paisagem e a arte. Ambas trazem em si relações

estreitas com a ideia de cultura. Ambas traduzem e pluralizam o conceito de civilização.

Ambas oferecem ferramentas conceituais e postulados teóricos que ajudam a interpretar os

lugares que os mortos ocupam na cidade e como a morte se mostra visível através do

desenho da paisagem na forma de cemitérios, monumentos in memoriam ou rituais

religiosos.

A “carga de questões” que surge a partir das relações constituídas entre a cidade, os

mortos e o “espectro da morte”, sinaliza caminhos para interpretar como a finitude humana

se revela no ambiente, espraia-se pelos espaços do tecido urbano e certifica ao homem

contemporâneo que a morte verdadeiramente é o fim da vida; é, de acordo com Voltaire

uma experiência cujo conteúdo real não é apenas o fato de morrer, mas também a certeza

de dever morrer (VOLTAIRE apud LANDSBERG, 2009). Tal perspectiva ganha

representatividade e profusão através de elementos animados e inanimados presentes em

cemitérios, monumentos in memoriam, ou, até mesmo, em ações religiosas de teor

ritualístico, cujos atributos, sejam paisagísticos, artísticos ou culturais, ganham força

imagética e significado simbólico ao criarem paisagens em que a atmosfera fúnebre,

mórbida e soturna que lhe parece ser peculiar, nutre o imaginário metafísico e sobrenatural

da cidade, onde a certeza da morte, aparentemente, ainda assombra a sociedade.

De fato, cada um dos fenômenos que surgem no espaço urbano, sob o signo do

aniquilamento do homem, mitiga, no corpo social, aquilo que Paul Ricouer denomina de

angústia do esquecimento, ou seja, como a experiência do luto iniciado na lembrança da

morte (RICOUER, 2012) pode se tornar um importante agente na construção do trabalho da

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memória e o trabalho do luto (ibidem, grifo nosso) na sociedade. Segundo o autor, tanto a

memória quanto o luto são palavras de esperança arrancadas do não dito (ibidem), as

mesmas contribuem para a invenção de ideários que retroalimentam o imaginário social e

ativam múltiplos processos na cidade.

O entrelaçamento estabelecido pelos vetores artístico-paisagísticos reafirma as narrativas

histórica, artístico-cultural e socioespacial na relação morte versus cidade, o que reforça a

construção de um campo epistemológico ampliado para explorar processos e fenômenos

que ocorrem nos espaços ritualísticos do tecido urbano. Portanto, importa a esta discussão

interpretar como as sociedades contemporâneas decifram o impacto do desaparecimento da

vida, relativa ao seu semelhante, ou até mesmo, ao desaparecimento de partes do ambiente

urbano onde se tecem relações, negociam-se ideologias e firmam-se trajetórias de vida.

Também se faz necessário perceber como as ideologias e as trajetórias da vida se projetam

nas múltiplas formas de representar a morte no cotidiano da vida urbana através do aporte

epistemológico inscrito nas ideias de paisagem cultural.

Dimensões da morte na cidade em perspectiva

As manifestações da morte e de estados fúnebres (luto, dor, tristeza, mal, sofrimento) são

duas instâncias de representações distintas e indissociáveis no desenho da paisagem

urbana. Ambas vigoram na cidade desde o seu surgimento e estabelecem inequívocas

relações entre vivos e mortos, sejam seres humanos ou inumanos, a carne ou a pedra.

Todavia, ao considerar o modus vivendi urbano contemporâneo, percebe-se a existência de

sentidos e significados subordinados ao domínio da morte e à esfera dos ritos fúnebres, os

quais, por sua vez, sinalizam o modus de reinterpretação da escala hierárquica e da

representatividade de cada uma dessas ordens no cotidiano da cidade. O binômio

morte/estados fúnebres potencializa o surgimento de ambientes/ambiências que transmitem,

simultaneamente, o tônus da vida, manifestado no corpo social ou nos artefatos que animam

a cidade, assim como o vácuo representado pela morte, que se traduz pela dissolução do

corpo, aniquilamento das materialidades e, sobretudo, pela extinção das zonas de contato

físico, representadas por elementos ou entidades nas quais não mais se evidencia o pulsar

da vida e dos processos que transformam a matéria. Tal perspectiva, interposta ao

movimento da cidade, consubstancia-se em lugares onde o inanimado, o silêncio, o

desaparecimento, o sombrio, o esquecimento e o fantasmagórico se fazem presentes.

Na obra A cidade na história, suas origens, transformações e perspectivas, Lewis Mumford

afirma que, desde a gênese da cidade, a ideia da morte é algo presente; ele propõe que a

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cidade dos vivos é ela mesma decorrência da cidade dos mortos. Afinal, os mortos foram os

primeiros a ter uma morada, um espaço, onde o grupo que enterrava seus mortos,

provavelmente, retornava a intervalos regulares (MUMFORD, 2002). As primeiras

manifestações comprovadas do homo sapiens com relação à morte precedem, dessa forma,

o próprio surgimento das cidades. Por esse motivo, parece haver um caráter fundamental e

contraditório no processo de formação da cidade, qual seja: a cidade, desde o seu

surgimento, é o palco da vida, mas, inicialmente, ganhou suas primeiras representações a

partir da ideia de morte.

Michel Lauwers, outro nome relevante quando o tema da morte inscreve-se na construção

da ideia de cidade, aponta em uma direção semelhante à postulada por Lewis Mumford. O

autor destaca em sua obra, O nascimento do cemitério: lugares sagrados e terra dos mortos

no Ocidente medieval, que a coabitação dos mortos e dos vivos constitui um dos traços

maiores das formas de organização social que se impuseram na Europa ocidental ao longo

da Idade Média (LAUWERS, 2015).

A cidade contemporânea continua a conviver com a morte e esse é um fato concreto e

irrefutável do nosso cotidiano. Contudo, a sociedade parece restringir a morte – ou qualquer

representação que esteja atrelada a ela – a locais sagrados ou dedicados a ritos

cerimoniais. Todavia, a morte se mostra presente no cotidiano urbano de um modo sutil ou

espetacular, seja através dos diálogos silenciosos de enlutados que velam seus mortos nas

capelas cemiteriais ou, ainda, pelos meios de comunicação que, através do cyberespaço,

amplificam nas redes sociais e sites de notícias informações de catástrofes, acidentes

fatais, atentados terroristas, e, por outro lado, mitigam na população o processo da morte

dos seus ícones religiosos, celebridades do mundo das artes e espetáculos ou, mesmo, a

biografia de assassinos.

A morte em movimento e o cotidiano da vida urbana

Todos os elementos anteriormente destacados oferecem diversos parâmetros para ler e

interpretar a cidade através da perda de vidas humanas, inumanas e de formas inanimadas

que se materializam na paisagem. A morte e suas representações in situ e in visu, inscritas

no cemitério, monumentos funerários e demais espaços onde o signo da finitude humana se

estabelece, possuem a capacidade de produzir questionamentos valiosos sobre os símbolos

em que estão inscritos.

Neste sentido, por meio das questões ligadas à ideia de lugares dedicados aos ritos de

consagração e celebração da memória dos mortos na cidade contemporânea e de como os

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mesmos desenham paisagens específicas, abre-se um campo amplo para análises, e as

formas plásticas e visuais que a morte adquire na cidade são diversificadas, desde a arte

tumular tradicional (encontrada nos cemitérios da cidade, onde é possível defrontar-se com

esculturas típicas que exaltam a religiosidade da fé cristã) a obras de artistas de renome em

cemitérios tradicionais dos grandes centros urbanos, tais como o Cemitério da Consolação,

em São Paulo, ou o Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro.

No caso do cemitério São João Batista, fundado em 16 de outubro de 1851, é possível notar

a existência de acervo de arte funerária (arquitetura e esculturas) que não se destaca

apenas pelo valor artístico de suas obras, mas também porque o espaço cemiterial, num

todo, revela muito sobre os diferentes níveis de representações estabelecidas entre a morte,

a sociedade e aqueles que foram ali sepultados. O cemitério carioca, em muitos aspectos,

aproxima-se da ideia de um museu a céu aberto devido à quantidade, à qualidade de obras

que ele abriga como também pela questão autoral que se destaca devido à presença de

obras assinadas por artistas renomados de diferentes nacionalidades. Rodolpho Bernadelli,

Octávio Corrêa Lima, Heitor Usai, Celita Vaccani, Humberto Cozzo estão entre os escultores

brasileiros; os franceses são representados por Jean Magrou e Colin George, e os italianos

surgem através de nomes como J. Guazzini, B. P. Giusti, Luca Arrighini e A. Canessa1, ou

seja, o território dos mortos firmou-se, através da arte funerária, como um lugar que serve

de depósito das lembranças e nos libera do peso das responsabilidades infligidas à memória

(JEUDY, 2005, p.15).

Nas alamedas e aleias que desenham o tecido urbano do cemitério São João Batista, o

observador depara-se com sepulturas, jazigos e esculturas inspirados nos estilos

neoclássico, neogótico, art nouveau, eclético, art déco e moderno. O trabalho, criado por

artistas, ao longo de mais de um século, tem como denominador comum imagens clássicas

da ornamentação funerária que faz uso de elementos clássicos da simbologia cristã, na

maioria das vezes, na arquitetura de túmulos, como também nos ornatos que definem

sepulturas e esculturas de personagens “anônimos” e de nomes de vulto que se encontram

sepultados no São João Batista.

As representações fúnebres estão atreladas à cosmovisão de determinados contextos

históricos, políticos, religiosos e sociais, e cada uma delas, guardada sua esfera de

influência, parece ainda inspirar a criação de artistas contemporâneos, como é possível

observar na série Passagens de Bruno Cantú. Desenhista e pintor de Minas Gerais, Cantú

valoriza a interpretação da paisagem fúnebre através de uma leitura literal de objetos que se

manifestam no contexto cemiterial. O caráter de suas composições evoca todo tempo a

1 Ver http://www.artefunerariabrasil.com.br. Acesso em 20.Ago.2016.

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esfera transcendental; a dureza da pedra, representada em esculturas e conjuntos

arquitetônicos, materializa hierarquias terrenas que contrastam com o senso etéreo,

evidenciado nas figuras de anjos, santos e mártires que “encarnam” a ordem celestial e a

ideia da eternidade em um cenário em que a certeza do fim, do enterramento, do luto e da

dor torna-se uma presença constante.

O traço forte e marcante, a composição de pictogramas, a presença de símbolos cristãos e

o usos de tipografias criam visualidades em que cultura e arte organicamente se fundem e

acrescentam inúmeras camadas num palimpsesto que revela diferentes maneiras de

construir e interpretar ideias acerca da nossa humanidade, dos propósitos da vida e daquilo

que estaria por vir após a morte. (Figuras 1, 2, 3 e 4)

Figura 1: Passagens II Bruno Cantú 17,5 com x 16 cm Técnica mista sobre papel, 2016

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Figura 1: Passagens I Bruno Cantú 39,5 com x 16 cm | Técnica mista sobre pape,

2016.

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Figura 3: Passagens III Bruno Cantú

22,5 com x 15 cm Técnica mista sobre papel

2016

Figura 4: Passagens IV Bruno Cantú 39,5 com x 16 cm Técnica mista sobre papel 2016

Superação da dor e do luto e celebração da vida através de intervenções paisagísticas

No Brasil, temos inúmeras referências de paisagens nas quais a ideia de morte e luto

encontra-se bastante imbricada nos monumentos in memoriam e outras construções, que

surgem nas mais diversificadas formas e que não seguem, necessariamente, os clássicos

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arranjos que, em geral, são utilizados para demarcar, no ambiente construído, os momentos

de luto, de perda, de dor e de sofrimento a serem rememorados pela sociedade na

paisagem.

O Parque da Juventude, em São Paulo, é um exemplo de composições de paisagens que

não se adaptam aos padrões de monumentos in memoriam, mas que, na sua essência,

demonstram que esta questão é algo latente na ideação de seus espaços. Construído sobre

as ruínas da Casa de Detenção do Carandiru, o Parque da Juventude é um local que, ainda

hoje, possui profundas marcas da dor humana e da morte, memórias de sofrimento difíceis

de serem apagadas, ainda que o viço do jardim e a dinâmica de usos inerentes ao parque

público (projetado pelo escritório dos arquitetos urbanistas Rosa Kliass e José Luiz Brenna)

sejam os elementos essenciais do projeto paisagístico que redesenhou aquela paisagem. O

parque foi construído a partir da desativação da Casa de Detenção do Carandiru, presídio

onde, em 2 de outubro de 1992, 111 detentos perderam a vida após a tentativa da Polícia

Militar de pôr fim a uma rebelião. Após a tragédia, a estrutura penitenciária entrou em

declínio e, em 2002, foi desativada e em parte demolida para dar lugar ao parque público

(Figura 5).

O parque projetado trouxe vitalidade ao local através dos usos típicos que qualificam

grandes áreas livres dos centros urbanos; além dos aparelhos de esportes e de recantos

aprazíveis, foram projetados equipamentos de usos culturais e educativos que alteraram

significativamente as características locais daquela paisagem. Independentemente do

aspecto lúdico e educativo que hoje a área possui, a memória da dor e do sofrimento está

mantida no parque através de vestígios de alguns pavilhões, que surgem naquele ambiente

como “espectros” de uma arquitetura da opressão que não mais existe, mas, por outro lado,

revigora a memória daqueles que, de alguma forma, foram atingidos por um evento de

profunda dor, que, em especial, atingiu pessoas que perderam familiares de forma violenta

e desumana.

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Figura 5: Panorama dos pavilhões do Complexo do Carandiru em São Paulo, que dez anos após rebelião e o massacre de 111 detentos, foi desativado, tendo alguns de seus pavilhões implodidos e outros adquirido novos usos. Fonte: http://noticias.bol.uol.com.br/fotos/imagens-do-dia/2015/10/02/carandiru-de-presidio-modelo-a-palco-de-massacre.htm?fotoNav=1#fotoNav=99

Inaugurada em 2003, a nova paisagem, que desenhou o Parque da Juventude, impôs uma

silhueta renovada e original aos 240.000m2 de área. A arquitetura da paisagem que abrigou,

por décadas, o exercício do “vigiar” e do “punir” e, igualmente, demonstrou a aplicação da

letra da lei, também conviveu com a sua omissão, ao renunciar aos critérios fundamentais

dos direitos humanos no episódio do massacre do Carandiru. A potência desumana do

evento que marcou o epílogo da existência da Casa de Detenção desmoralizou o poder

público e expôs a toda a sociedade a falência do Estado nas esferas política, jurídica e

militar, uma vez que não conseguiu atuar em uma crise de grandes proporções a contento.

A omissão do Estado culminou em uma ação até então impensável: a morte, em massa, de

dezenas de seres humanos; ou seja, a manifestação de prática vil e hedionda que resultou

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no desmanche, na desagregação, na desaparição de vidas alheias. Vidas que, ao longo de

suas respectivas trajetórias, tiveram sequestrada de seus cotidianos a possibilidade do gozo

de sua cidadania, dos direitos e deveres, representada pela educação e pelo trabalho que,

em perspectiva, seriam a força capaz de desenhar percursos alternativos para suas

existências. O resultado desse processo foi de fato o oposto; aqueles homens, sejam

detentos ou policiais, confrontaram-se com a insensatez da escolha entre o matar ou morrer,

interposto com a crueldade e uma visão torpe de um Estado que contribuiu sobremaneira

para o aniquilamento prematuro de vidas. O saldo de processo para sociedade? O peso do

doloroso luto impingido aos familiares, que perderam seus parentes, e à sociedade, que foi

capturada pelo grotesco gesto de insanidade que marcou aquele lugar.

O potencial transformador da arte paisagística, através dos jardins, de esculturas, da arte

urbana narrada por meio do grafite e ações de grupos e movimentos sociais, tonifica uma

dinâmica espacial de usos no parque em que o fruidor tem a possibilidade de vivenciar

experiências anaminéticas, ou seja, exercitar a memória ao confrontar-se com a história do

lugar. Esse movimento permite não somente o redimensionamento do lugar, mas também

uma leitura da paisagem inscrita em uma nova ordem de valores, tendo como referência o

ambiente pretérito e aquele que se configurou após a implantação do parque na

contemporaneidade. (Figura 6)

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Figura 6: Os antigos pavilhões do Complexo do Carandiru após a implantação do parque deram uma nova configuração a paisagem. As paredes derrubadas, deixaram apenas vãos que parecem formar uma espécie de folies contemporâneas que atravessam jardins e criam espaços lúdicos e iluminados em uma área onde antes abrigava a opressão, a dor, e a ausência de liberdade. Fonte: Fotografias gentilmente cedidas por Vera Tângari, 2014.

Hoje, a paisagem que perpassa as “celas” vazias do Carandiru não se consubstancia como vácuos na memória dos que ali vivenciam o espaço; talvez o insepulto cadáver arquitetônico, atravessado pela poesia e a beleza de um jardim, seja uma espécie de prenúncio do armistício entre o concreto, que antes aprisionava, e que agora deixa tudo o que tem vida fruir, e se espraia através dele O exercício de usufruir de liberdade nesse cenário bucólico está posto em um espaço livre que solicita e ativa no observador as mais diferentes experiências sensoriais entre arte paisagística e genius loci do lugar. A arte que se faz presente através da visualidade paisagística do jardim imanta o ambiente com uma aura edênica e cria possibilidades para vivências de um lugar onde o silêncio, a paz e o contato direto com a natureza ofereçam uma forma aprazível de vivência, através de uma lente inversamente proporcional àquela pela qual aquele lugar esteve impregnado.

No Rio de Janeiro, temos outro parque público – o Aterro do Flamengo – que abriga um memorial funerário icônico na paisagem brasileira, o Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial (MNMSGM), conhecido como Monumento aos Pracinhas2.

2 O Monumento é visitado por inúmeras autoridades nacionais e internacionais, tendo contado com visitantes ilustres como o papa João Paulo II e Elizabeth II, Rainha da Inglaterra.

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Inaugurado em 5 de agosto de 1960, tem a assinatura de Marcos Konder Netto e Hélio Ribas Marinho, ambos arquitetos modernistas de relevo no cenário brasileiro que ao vencerem o concurso público para a construção do monumento, deixaram a sua marca na paisagem carioca.

A solução arquitetônica proposta, apesar de ser composta por clássicos elementos que caracterizam os monumentos in memoriam tradicionais (museu e mausoléu), tem sua estrutura temática inscrita em conceitos e em ideologias que marcaram o movimento da arquitetura moderna conforme afirma Ricardo de Souza Rocha, ao destacar que o Monumento à Terceira Internacional (1919-1920), de Vladimir Tatlin, o Monumento aos Caídos de Março (1921-1922) de Walter Gropius e o Monumento a Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo (1926), de Mies van der Rohe (RICARDO, 2007), indicavam que projetos de teor semelhante ao Monumentos dos Pracinhas tinham a questão da monumentalidade e da abstração como centro do debate arquitetônico internacional (ibdem), além de uma sensível inclinação para demandas de ordem sociopolítica que se aproximavam a uma perspectiva alinhada às ideologias socialistas.

O Memorial dos Pracinhas, idealizado pelo marechal João Baptista Mascarenhas de Moraes, comandante da Força Expedicionária Brasileira (FEB), tinha como premissa3 trazer de volta à pátria os heróis anônimos que tombaram nos campos de batalha da Itália. Logo, a criação do monumento habita uma ordem transcendental, quando busca resgatar a memória e os feitos dos mortos na Segunda Guerra Mundial. O marechal parece deixar clara essa prerrogativa quando justifica o seu desejo a partir da relação que engendra a ideia do resgate da memória a partir da recuperação dos restos mortais e da monumentalização. Quando afirma que “Eu os levei para o sacrifício; cabia-me trazê-los de volta para receber as honras e as glórias de todos os brasileiros”, fica visível que os restos mortais dos pracinhas surgem atrelados à glória nacional e a honrarias de guerra, quase sempre interpretadas a partir de uma perspectiva político-militar. Nas referências ao local e no imaginário social é interessante notar que o termo morte – que integra o seu nome oficial – é preterido em comparação ao Monumento aos Pracinhas, afinal, a ênfase à morte que era expressa no título da obra acaba por ser retirada.

O memorial, concebido como museu e mausoléu, possui 10.000m2 dos quais 6.850m2 referem-se especificamente à área construída. As formas arquitetônicas e o desenho da paisagem inscrevem-se em uma escala monumental em que a grandiosa esplanada ladeada de jardins conduz o observador a duas notáveis plataformas que, por sua vez, produzem um lugar cuja atmosfera inspira um sentido de solenidade e sobriedade à paisagem. O projeto arquitetônico destaca-se pelo uso de formas geométricas puras, conforme as soluções usadas à época de sua construção por arquitetos modernos, e pela imponência que lhe é inerente, justificada pelas dimensões que as plataformas possuem, como também pela altura que o monumento atinge (31 metros). Tais características tornam o monumento, além de um elemento simbólico na paisagem, um referencial físico no tecido urbano da região Central do Rio de Janeiro, que pode ser notado e contemplado a partir de diferentes pontos geográficos da cidade. (Figuras 7, 8, 9 E 10).

3 Site oficial do monumento:

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Figuras 7, 8, 9 e 10: Panorama do Memorial do Pracinhas. A arquitetura da paisagem do memorial se destaca pelo conjunto escultórico e composição paisagística do parque do Flamengo, onde espelhos d´água em cascata, a monumental paltaforma e os jardins periféricos projetados por Burle Marx reafirmam a imponência do monumento. Fonte: Fotografias de Aldones Nino, 2016.

O memorial também forma um desenho de paisagem distinto na conjuntura urbano-

paisagística do Parque do Flamengo. Afinal, o traçado do parque de Affonso Eduardo Reidy,

o Museu de Arte Moderna – MAM e os jardins projetados por Roberto Burle Marx, que

interligam ambas as construções, criaram um complexo arquitetônico-paisagístico de

significativo impacto na enseada da baía de Guanabara. Esse conjunto não só representa

uma fase efusiva na história da arquitetura, do urbanismo e do paisagismo da cidade do Rio

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de Janeiro, mas ele também reflete um tempo-espaço que coroou mudanças relevantes no

habitus do cidadão carioca ao lhe oferecer um novo modus vivendi a partir da implantação

de um parque e de equipamentos urbanos que valorizaram a vida cultural da cidade (MAM),

como também evocaram a história recente da nação, ao celebrar aqueles que perderam

suas vidas no conflito mundial. Essas memórias fúnebres, suscitadas pelo Monumento dos

Pracinhas, também emergem na paisagem de forma didática, ao solicitar do observador um

tempo para reflexão. Mesmo que as alegorias da morte tradicionalmente utilizadas nesses

espaços não se façam presentes, ainda assim, a solução arquitetônica dada ao monumento,

traduzida pela estabilidade estrutural e austeridade das formas, captura a atenção do

observador e o lança para o campo sensível onde a morte, a dor e o luto se fazem

presentes nos sentidos da memória.

Vale ainda destacar que o entourage de artistas que compõe o projeto do memorial foi

formado por nomes do universo das artes visuais como Júlio Catelli Filho – autor da

escultura de metal com características futuristas –, Alfredo Ceschiatti – responsável pela

escultura em granito em homenagem às Forças Armadas – e Anísio Araújo de Medeiros –

projetista do painel de azulejos que homenageia civis e militares mortos no mar, em 1959.

Ou seja, a relação entre a memória dos mortos e a paisagem desenhada passou

efetivamente pelo território da arte.

Práticas do luto, mausoléus e áreas cemiteriais: cultura e paisagem

no desenho do ambiente urbano

Desde 1889, com a proclamação da República, o corpo de capelães militares é extinto,

assim como a prática religiosa no interior dos quartéis. Ainda que embebida de ideais

positivistas, a entrada do Brasil, na Segunda Guerra Mundial, recria o corpo de capelães

militares, ao integrar estes à Força Expedicionária Brasileira. Desta forma, embarcam para a

Itália 25 padres católicos e 2 pastores protestantes. O fato em si estimulou nosso interesse

em interpretar qual era a dimensão e as reais necessidades de práticas e rituais religiosos

em uma situação onde o confronto direto com a morte era algo notadamente esperado. A

sociedade brasileira mostrou-se alheia a determinados ideais positivistas, logo, rituais e

credos tradicionais não se extinguiram do cotidiano da sociedade brasileira, sobretudo

devido à forte religiosidade que surge como uma característica que lhe é distinta. Portanto,

diante da presença da morte, a formação ideológica do militar se viu acuada diante das

pressões geradas pelas crenças do corpo social que iria arriscar suas vidas pela pátria.

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Diante de tais princípios que pautaram a relação entre os expedicionários versus a

possibilidade da morte no campo de batalha, surgiram ações que buscavam resguardar a

integridade do corpo dos soldados mortos em batalha, o que, na prática, indicava um claro

exercício de cuidado com a dor e o luto de familiares, amigos e da própria pátria, pelos seus

heróis. Exemplo que referencia este fato pode ser analisado a partir do cemitério militar

brasileiro construído na cidade de Pistoia, na Itália, cujas características são notadamente

cristãs, como: a) a ideia do solo consagrado, b) o enterramento com ritos religiosos, c) a

presença de túmulos com cruzes brancas; c) o uso de uma enorme cruz no pátio central. É

comum a existência de cemitérios militares em regiões de conflitos bélicos. Na Itália, ainda

hoje existe o Cemitério Americano em Florença, e até mesmo um Cemitério dos Alemães

em Pomezia (PIOVEZAN, 2011).

Em julho de 1960, uma Comissão de Repatriamento dos Mortos do Cemitério de Pistoia

(CRMCP) parte para a Itália com o dever de garantir a exumação dos 462 corpos existentes

no Cemitério Brasileiro. Em dezembro do mesmo ano chegam, em uma aeronave da Força

Aérea Brasileira, as urnas contendo os restos mortais, e, após uma semana, acontece uma

solenidade, na qual se realizou um cortejo fúnebre pela avenida Rio Branco. A comissão de

Repatriamento dos Mortos partiu para a Itália em 20 de junho de 1960, e a cerimônia

aconteceu em 22 de dezembro4. Após o cortejo, as urnas foram depositadas nos

respectivos jazigos do mausoléu, em mármore preto nacional com tampas de mármore de

Carrara, onde encontram-se, gravados, nome, graduação ou posto, unidade, data de

nascimento e morte.

É sabido que os ideais positivistas, que foram disseminados nas Forças Armadas a partir do

final do século XIX, priorizavam a laicização de suas práticas. Assim, os mausoléus

coletivos militares têm como marca feições assumidamente cívicas e patrióticas.

Uma das urnas de mortos não identificados passou a simbolizar o “Soldado Desconhecido”

e foi entregue pelo marechal Mascarenhas ao presidente Juscelino Kubitschek, que a

depositou na base do Pórtico Monumental. O soldado desconhecido visa dar espaço aos

corpos tombados que não tiveram honrarias e glórias. Desta forma, essa urna surgiu com

uma incrível potência simbólica, já que evidencia o anonimato de soldados, pracinhas e

combatentes em geral, os quais morrem em meio aos conflitos, e seus restos mortais não

retornam para suas famílias, e estas devem lidar com o luto e a dor da perda sem o

enterramento tradicional.

4 É importante ressaltar a importância desse cerimonial, que ocorreu no mês anterior à sucessão presidencial. Assim se realizou uma das últimas grandes cerimônias do governo Juscelino Kubitschek, finalizando seu mandato e cunhando de vez a imagem de “pai” do Brasil moderno, que persiste até os dias de hoje.

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Entre os 462 corpos, um adquiriu a mais potente carga simbólica, pois o espectro do

soldado desconhecido estabelece o eixo de ligação com um modelo universal. Destituído de

particularidades, esse corpo pode ser associado à figura de um brasileiro heroico e

combatente, o qual se privou de sua existência em nome da sua nação e da liberdade.

Logo, a presença que sentimos ao encarar esse corpo, depositado na base do Pórtico

Monumental, nos possibilita uma ligação com um herói anônimo, pois os outros corpos

podem pertencer a uma memória familiar, pessoal. O soldado anônimo, destituído de face e

nome, transmite a ideia central do monumento, já que representa a memória esquecida e

que agora jaz resgatada e imortalizada na construção de concreto.

O monumento firma a importância da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial,

surgindo como marcador da inserção do Brasil no conflito, que foi um dos maiores

acontecimentos do último século, pois foi responsável por uma reordenação na configuração

geopolítica mundial, e ponto de partida de inúmeras inflexões acerca do posicionamento e

direcionamento do homem do século XX, exercendo grande influência nas ciências

humanas. Essas inflexões partem da mortalidade e destruição da guerra, que condenou à

morte milhões de seres humanos, além de dizimar inúmeras cidades. A Segunda Guerra

evidenciou o poder da destruição em massa, partindo do desaparecimento de vidas

humanas e de cidades. E tanto o Monumento aos Pracinhas, no Rio de Janeiro, quanto o

Monumento Votivo Militar Brasileiro, em Pistoia, unem elementos da arquitetura e da arte

pública, que criaram paisagens, as quais não podem ser compreendidas sem elencar

elementos da cultura daqueles que ali vivem, criam e morrem.

O Exército brasileiro exerceu grande influência na formação da história nacional, possuindo

um importante valor simbólico para a identidade da nação, pois era a instituição primeira que

pensou em termos de coesão e unidade territorial. O espaço geográfico é transpassado por

inúmeras dinâmicas, e uma potente dinâmica criadora de espaços e ambiências é a morte,

que, pelo viés da guerra, é potencializada por questões de monumentalidade, diplomacia e

memória nacional. Tais monumentos evidenciam como a representação da morte, atrelada

às artes visuais, ao paisagismo e à arquitetura, evidencia as trocas sociais, sem as quais

não poderíamos ler a paisagem que se impõe aos nossos olhos. A morte, como signo,

revela traços do patrimônio artístico e histórico nacional, e a finitude e o óbito estão presente

nessas construções, como elementos constitutivos da identidade e da memória nacional.

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Considerações finais

A espetacularização da morte através da guerra, de rebeliões, ou ainda, dos ritos fúnebres

do luto não apenas movimentam o imaginário social, como também resultam em

manifestações espaciais que perpetuam os efeitos de lembranças trágicas que se abatem

sobre a sociedade. A arquitetura da paisagem, através de intervenções paisagísticas e de

ações artísticas, surge, portanto, como elemento singular para a alteração do desenho do

ambiente construído, cujo interesse visa diretamente à manutenção, à potencialização ou ao

apagamento de eventos funestos que marcam a história da humanidade. A intervenção na

paisagem, com este intuito, serve para perpetuar, ou apaziguar lembranças que geraram

sofrimentos e deixaram feridas no imaginário social. Nesse sentido, os exemplos aqui

elencados, a partir de distintos espaços geográficos no mundo, foram guiados por interesses

de rememoração que continuam a dialogar com os interesses do Estado e da sociedade.

O caso do Parque da Juventude contribuiu para dar um novo uso e significado a um espaço

atrelado a vivências trágicas e imbuído delas. A proposta de arte e paisagem, ali

estabelecida, de diferentes formas e conteúdos, apesar de revelar as falhas de um Estado

busca ajudar a cicatrizar as feridas abertas no imaginário social, mesmo que as mesmas,

apesar do tempo decorrido, não fossem totalmente esquecidas.

Concluímos que as relações estabelecidas entre os diversos atores sociais e os

acontecimentos atrelados à lembrança da morte, do luto e do sofrimento são vetores

potencializadores da formação de determinados espaços na cidade contemporânea. Os

eventos que ocorrem na trama urbana possuem a potência de transformar espaços através

da arquitetura da paisagem e da arte paisagística, paisagismo que reescreve a essência

simbólica inscrita na cidade e propõe novas narrativas urbanas. A morte, enquanto um

potente signo da finitude humana, dimensiona e tenciona aspectos históricos e sociais. Os

domínios da dor, da morte e do luto podem, assim, servir de fio condutor para a

compreensão de representações tanto materiais quanto imateriais que surgem no meio

urbano. As sociedades contemporâneas decodificam o impacto do desaparecimento da vida

e do próprio aniquilamento do ambiente urbano através de representações da memória dos

mortos na cidade.

O Monumento aos Pracinhas e o Monumento Votivo Militar Brasileiro dialogam com a

aniquilação da guerra, que, ao apagar vidas, impõe o esquecimento do desaparecimento

aos combatentes. A arquitetura surge, então, como um meio de restauração da memória

dos mortos, e, no caso das guerras, pode servir como o resgate ou afirmação da memória

nacional, que é fruto de intensos embates. Dentro de uma perspectiva mais contemporânea,

o Monumento aos Pracinhas deve se destacar, já que pertence ao sítio que foi considerado

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como Paisagem Cultural – Patrimônio da Humanidade pela Unesco5, fruto de um processo

construído pelo IPHAN, que levou em conta uma série de elementos de notável valor

paisagístico e cultural presentes no desenho da paisagem.

Os conflitos políticos são um sítio onde a dinâmica da morte e do desaparecimento se impõe

com notável força; então, a afirmação da memória, por meio de manifestações artísticas,

surge como uma reconhecida estratégia de preservação diante da finitude da existência.

Para compreender a elaboração desses espaços, assim como a sua formatação final, é

necessário que se compreendam os significados inscritos ali, que não estão dados na sua

figuração, podendo ser acessados apenas na compreensão simbólica dos eventos ocorridos

em determinado sítio, assim como no impacto social dos eventos que ali ocorreram.

Referências

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BESSE, Jean-Marc. O gosto do mundo: exercícios de paisagem. Rio de Janeiro: Eduerj, 2014.

JEUDY, Henri Pierre. Espelhos da cidade. Rio de janeiro: Casa da Palavra, 2005.

LAVELLE, Louis. O mal e o sofrimento. São Paulo: É realizações, 2011.

LANDSBERG, Paul Ludwig, Ensaio sobre a experiência da morte e outros ensaios. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.

PIOVEZAN, A. A “magia” do soldado desconhecido: rituais fúnebres militares. In: Comunicação XXVIII Simpósio Nacional de História. Florianópolis: UFSC, 2015.

______. Cemitérios e mausoléus militares no Brasil: o embate entre o laico e o confessional. In:Anais do XXVII Simpósio Nacional de História- ANPUH. São Paulo: ANPUH, 2011.

TUAN, Yi-fu. Paisagens do medo. São Paulo: Unesp, 1979.

ROCHA, R. S. A arquitetura moderna diante da esfinge ou a nova monumentalidade: uma análise do Monumento Nacional aos Mortos na Segunda Guerra Mundial. In: Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.15, n.2, p. 151-167, 2007.

RODRIGUES, José Carlos. Tabu da morte. Rio de Janeiro: FioCruz, 2011.

RICOEUR, Paul. Vivo até a morte. São Paulo: Melhoramentos

5 O Aterro do Flamengo compõe, com a entrada da baía de Guanabara e suas bordas d'água desenhadas – Passeio Público, Parque do Flamengo, Fortes Históricos de Niterói e Rio de Janeiro, Pão de Açúcar e Praia de Copacabana – um dos sítios contemplados como patrimônio pela Unesco.