Mercados Locais e não comoditários para produtos da Agricultura
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UFRRJ
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E
SOCIEDADE
MERCADOS LOCAIS E NÃO COMODITÁRIOS PARA
PRODUTOS DA AGRICULTURA FAMILIAR:
ENSAIANDO UMA ANÁLISE NO RIO GRANDE DO SUL
ASTOR FERNANDO WÜLFING 2002
2
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO,
AGRICULTURA E SOCIEDADE
Mercados Locais e não comoditários para produtos da
Agricultura Familiar: Ensaiando uma Análise no
Rio Grande do Sul
Astor Fernando Wülfing
Sob a Orientação do Professor
Roberto J. Moreira
Monografia submetida como requisito
parcial para obtenção do diploma de
Pós-graduação Lato Sensu em
Desenvolvimento, Agricultura
e Sociedade
Seropédica, RJ
Novembro de 2002
3
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA
E SOCIEDADE
ASTOR FERNANDO WÜLFING
Monografia submetida ao Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade como requisito parcial para obtenção do diploma de Pós-graduação Lato
Sensu em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade
MONOGRAFIA APROVADA EM 27/Nov/2002
Roberto J. Moreira Título (Dr., Ph.D.) CPDA/UFRRJ
(Orientador)
Nelson Giordano Delgado (Ph.D.) CPDA/UFRRJ
Silvana de Paula (Ph.D.) CPDA/UFRRJ
Nora Beatriz Presno Amodeo (Ph.D.) REDCAPA
4
SUMÁRIO Pág.
1 INTRODUÇÃO.................................................................... 1
2 CENÁRIOS DA AGRICULTURA FAMILIAR ............................ 2
3 MERCADOS - DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS AO
CENÁRIO NO SUL DO BRASIL ............................................... 6
4 ESTRATÉGIAS PARA A COMERCIALIZAÇÃO DIRETA ..... 12
4.1 Mercado dos produtos “da colônia” ou artesanais ...................... 12
4.2 Mercados de produtos orgânicos ................................................. 15
4.3 Mercados Solidários .................................................................... 17
4.4 Mercados institucionais ............................................................... 19
4.5 Agroindústrialização de alimentos em pequena escala ............... 20
4.6 Certificação da Qualidade ........................................................... 22
4.7 Selos de Qualidade ...................................................................... 23
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................... 25
6 REFERÊNCIAS .....................................................................28
RESUMO
5
Os agricultores da região sul do Brasil, enfrentam com grande dificuldade o desafio de
manter vivo o modelo familiar de produção, trazido pelos imigrantes europeus e
consolidado na região ao longo do século XX. Isto decorre da gradativa inviabilização
social e econômica da agricultura familiar no modelo de exploração agrícola capitalista,
introduzido na América Latina pela chamada “Revolução Verde”. Com a consolidação
dos sistemas agroindustriais, a produção agrícola e pecuária passou a receber tratamento
comoditário, pautado no aumento da produtividade por fator de produção empregado e
na definição dos preços pelo mercado comprador, resultando na exclusão de parte
significativa dos agricultores menos competitivos. Como resultado deste processo de
exclusão dos mercados de produtos comoditários, dominados por grandes corporações
capitalistas, os agricultores familiares vêm buscando resgatar e multiplicar experiências
bem sucedidas de comercialização e estruturar canais alternativos para o escoamento da
sua produção. Desta forma, os mercados locais e não comoditários, que reduzem a
distância entre os agricultores e os consumidores finais, passam a ser vistos como uma
alternativa viável pelos agricultores familiares e pelas organizações que os apóiam.
Assim, a consolidação de canais de comercialização alternativos, como as feiras de
produtos orgânicos e de origem, a viabilização de pequenas agroindústrias, o aumento
das garantias de qualidade através da certificação e de selos de qualidade e a
consolidação de relações calcadas na confiança mútua entre produtores e consumidores
têm sido fundamentais para viabilizar a agricultura familiar na região sul do Brasil e o
acesso seguro dos consumidores a produtos diferenciados. O presente estudo pretende
navegar neste rico universo de relações interpessoais e interinstitucionais que é a
agricultura familiar na região sul do Brasil.
PALAVRAS CHAVE:
-Comercialização
-Produção familiar
-Alternativas para a agricultura familiar
6
1 INTRODUÇÃO
O estudo pretende analisar as possibilidades da comercialização de produtos da
agricultura familiar no Sul do Brasil, através de canais alternativos de escoamento
implementados a partir de experiências locais que busquem diferenciar os produtos a
partir da sua origem e do seu processo produtivo.
Partindo de um referencial teórico e da análise do cenário do mercado gaúcho
para os produtos da agricultura familiar, o estudo busca avaliar a importância de canais
alternativos de comercialização, o fortalecimento de mercados locais e das relações
diretas entre produtores e consumidores como instrumentos de resgate da auto-estima
do agricultor familiar e de contensão/reversão do êxodo nas unidades familiares de
produção.
O tema é bastante atual no estado e se reveste da maior importância neste
momento em que o cenário agrícola e econômico mundial, nacional e regional passa por
grandes transformações e o agricultor, notadamente do tipo familiar, tem enfrentado
sérias dificuldades no processo de comercialização de seus produtos, em razão dos
baixos volumes de produção individual diminuírem drasticamente o seu poder de
negociação, demonstrando ser ele o elo mais frágil da cadeia agroalimentar..
Na seção 1 procuramos caracterizar a agricultura familiar e analisar algumas
situações criadas com as oportunidades e dificuldades enfrentadas por seus atores no
processo de reprodução social e econômica. Na segunda seção trataremos de questões
envolvendo os mercados – sua concepção teórica, os mercados comoditários, a
realidade do Rio Grande do Sul e alguns problemas e dificuldades que os mercados
locais e de produtos diferenciados tem enfrentado nas últimas décadas. Na seção
seguinte abordaremos e desenvolveremos os principais instrumentos empregados pelo
agricultor familiar e suas organizações para a comercialização dos produtos
diferenciados, como algumas experiências de mercados não comoditários existentes no
estado, bem como a certificação e os selos de produtos com qualidade diferenciada.
Concluiremos o presente trabalho tecendo alguns comentários e fazendo algumas
considerações finais que podem auxiliar na busca de soluções e alternativas para o
processo de comercialização das unidades familiares de produção.
A escolha do tema deve-se ao fato da agricultura familiar ser de grande
importância para o processo de desenvolvimento da economia gaúcha, uma vez que a
mesma emprega uma parcela significativa da mão de obra produtiva no estado e
possibilita a agregação de valor aos produtos nela gerados e comercializados através de
mercados locais não comoditários, resultando na melhoria dos níveis de segurança
alimentar e de distribuição mais justa da riqueza gerada.
7
2 CENÁRIOS DA AGRICULTURA FAMILIAR
A agricultura familiar é aquela onde a propriedade, a gestão, a maior parte dos
trabalhos e a distribuição dos resultados é feita por pessoas que mantém entre si
vínculos de sangue ou de casamento (FAO/INCRA, 1996) e que incorporam ao
processo produtivo, os conhecimentos resultantes de processo históricos de exploração e
adaptação ao meio (Mussoi, 2000). Embora defendida por alguns autores durante
muitos anos, está equivocada a vinculação da agricultura familiar com o desempenho e
a produtividade da unidade familiar de produção, senão agricultores familiares seriam
apenas àqueles com baixa renda e volume de produção ou que produzissem apenas para
a sua sobrevivência. A forma como se processa a transferência hereditária e a sucessão
profissional é outro aspecto relevante para caracterizar uma unidade agrícola de
produção familiar (Santos, 1999).
A agricultura familiar no Sul do Brasil passou a estruturar-se na forma como
hoje se apresenta, a partir da chegada de imigrantes europeus na primeira metade do
século XIX, com a instalação de comunidades isoladas, autônomas em vista das
distâncias que as separavam dos centros consumidores e fornecedores de insumos.
Estudos de caso de cadeias produtivas do vinho, da banha, das farinhas de trigo e
mandioca, da cerveja e do fumo têm demonstrado que na medida em que as unidades
familiares de produção ultrapassaram o limite da auto-suficiência e produziram
excedentes comercializáveis, ao longo do século XX, estes passaram a ser controladas
por intermediários no processo de comercialização, os quais apropriaram-se do valor
agregado à produção e estimularam o processo de verticalização e concentração,
resultando no surgimento de complexos agroindustriais de médio e grande porte.
(Pesavento, 1983).
A necessidade de ter acesso à mecanização e aos insumos imprescindíveis à
implementação de tecnologias voltadas ao aumento da produção e produtividade
(revolução verde) e a sua crescente inserção no mercado de consumo de bens duráveis e
não duráveis levou os agricultores, a partir do final da década de 1950, a se
especializarem na produção daquelas matérias primas mais bem remuneradas pelos
mercados internos e internacionais, abrindo mão da policultura – característica da
agricultura familiar no Sul do país na primeira metade do século XX.
A produção agrícola e pecuária passou a receber tratamento comoditário,
pautado no aumento da produtividade por fator de produção empregado1 e na definição
dos preços pelo mercado comprador. Em pouco tempo, a agricultura familiar mostrou-
se inviável dentro deste novo sistema de produção, quer por ausência de preços que
cobrissem os custos de produção, preços estes controlados pelos complexos
______________________
1 - A partir da década de 1980, houve um forte incremento de investimentos externos em agroindústrias altamente
tecnificadas, com a instalação e/ou ampliação de suas atividades no sul do país. Algumas das organizações
envolvidas nesta mudança tecnológica: Parmalat, CCGL, Avipal, Ceval, Sadia, Bunge, Perdigão, ADM, Souza Cruz e
Universal Leaf Tabaccos.
8
agroindustriais, quer pela utilização de práticas tecnologicamente ultrapassadas,
resultantes da irracionalidade do pacote tecnológico, mercantil e ideológico que
subordinou a agricultura aos interesses de grandes conglomerados multinacionais,
produtores de insumos químicos, máquinas e sementes (Pinheiro Machado & Ribas,
2001).
O esgotamento das propostas da “revolução verde”, com a rápida exaustão dos
solos, a elevação dos custos dos combustíveis fósseis e o desmonte do modelo
intervencionista estatal, baseado em linhas de crédito subsidiado e financiamento da
produção através da Política de Garantia de Preços Mínimos, intensificados na década
de 1980, resultaram na ruptura do processo de desenvolvimento que a agricultura do Sul
do Brasil vinha experimentando nas duas décadas anteriores (Brose, 1999), resultando
na aceleração do processo de exclusão e de êxodo de parcela significativa da população
rural, notadamente de pequenos agricultores familiares.
A partir da década de 1990, a liberalização e desregulamentação da economia
nacional e a integração regional estabeleceram um ambiente de alta competitividade nas
cadeias alimentares de várias regiões brasileiras, caracterizado por uma maior
sofisticação nos padrões de demanda, concentração industrial, desarticulação do modelo
cooperativista e forte pressão para a tecnificação das atividades agrícolas, combinados
com a busca da economia de escala e maior controle sobre a qualidade das matérias
primas (Wilkinson & Mior, 1999).
Apesar de todas as pressões pela comoditização, a agricultura familiar ainda
mantém diferentes formas de inserção no sistema produtivo, envolvendo a produção de
subsistência, a economia mercantil simples e a integração agroindustrial. Estes fatores
se fazem presentes ao mesmo tempo e articulam-se entre si, dinamizando o setor na
medida em que a participação de cada um na renda do grupo familiar oscila
consideravelmente (Müller,1998).
As unidades familiares de produção precisam dotar-se de meios que permitam a
sua inserção em mercados dinâmicos, competitivos e exigentes em inovações e que
estejam buscando produtos diferenciados, para que elas se tornem a base de um modelo
de desenvolvimento rural sustentável (Abramovay, 1999)2. As pequenas unidades
familiares não têm condições de competir com grandes propriedades na produção de
produtos comoditários, como a soja e o trigo, uma vez que as mesmas exigem ganhos
de escala e tem uma tendência de quedas de preço.
Nos últimos anos, a União Européia tem gasto volumes consideráveis de
recursos de seu orçamento anual para promover a reconversão de regiões e de atividades
agrícolas ameaçadas e com nítida desvantagem no processo de integração, o que não
tem ocorrido no processo de integração dos países do MERCOSUL (Maluf, 2000),
onde a migração entre setores da atividade agrícola ou desta para outra atividade
_
_____________________
2 - Segundo estudos do Centro de Economia Agrícola da Fundação Getúlio Vargas, o faturamento bruto do setor
produtor de grãos teve uma queda de cerca de 50% no período de 1980 e 1997, tanto em razão da abertura comercial
como em decorrência do aumento das produtividades de algumas culturas.
9
econômica ou de prestação de serviços não resulta da aplicação de Políticas Públicas,
senão como resultado das frustrações dos agricultores ao final de cada safra, resultando
em custos sociais e econômicos imensuráveis.
A abertura do mercado brasileiro a produtos agrícolas de outros países tem
representado muito mais uma ameaça às condições de reprodução da agricultura
familiar pela concorrência dos produtos oriundos dos mesmos, do que uma alternativa
de novos mercados para seus produtos (Maluf, 2000), na medida que o acirramento da
concorrência em alguns setores no mercado interno não tem sido compensado com a
abertura de novas oportunidades de comercialização para os nossos produtos no
mercado externo.
Apesar do ceticismo existente, quanto à viabilidade da agricultura familiar frente
às mudanças decorrentes do processo de globalização, alguns autores defendem que
estão surgindo oportunidades para a reconversão dos segmentos sociais que souberem
aproveitar suas vantagens competitivas. Abramovay (1999) entende que, em todos
os campos da sociedade, a globalização é correlativa à maior segmentação e
diferenciação do mercado, o que viabilizará a abertura de oportunidades dos agricultores
familiares nos chamados mercados de qualidade.
Em algumas regiões, agricultores familiares carentes dos fatores de produção
terra e capital, enfrentam problemas de ordem estrutural para alocar e remunerar a mão
de obra disponível no grupo familiar, uma vez que os complexos agroindustriais que
utilizam intensamente o fator mão de obra procuram localizar-se em regiões onde
existam vantagens competitivas decorrentes de atributos naturais, infra-estrutura e
insumos para a produção tais como: vias de acesso para o escoamento da produção,
disponibilidade de energia, matérias primas e, principalmente, recursos humanos aptos a
adotarem as tecnologias exógenas introduzidas. Resquier-Desjardins (S/D), citado por
Abramovay (1999) defende que não são necessariamente os recursos naturais e
humanos disponíveis em uma região o que determina o grau de engajamento dos atores
econômicos, políticos e sociais no processo competitivo resultante da globalização. Para
o autor, o capital social construído na região é muito mais importante para determinar o
futuro da agricultura familiar na mesma, na medida em que valoriza os recursos
existentes e cria um ambiente local propício à interação entre os atores e,
principalmente, entre o rural e o urbano.
As organizações cooperativas desempenharam um papel fundamental na
viabilização da agricultura familiar, durante a segunda metade do século XX, através da
intermediação de políticas públicas para o setor, investimentos na tecnificação do setor
e garantias de escoamento da produção. Por apresentarem uma rigidez estrutural no
processo de compra das safras, não podendo preterir agricultores associados que não
tivessem o desempenho desejado, as cooperativas foram afetadas pelo processo de
aumento da competitividade decorrente da globalização e da internacionalização dos
mercados, tendo dificuldades de alavancar recursos através de parcerias e joint ventures.
Embora o processo associativo seja uma das alternativas para a viabilização da
agricultura familiar, a situação atual do sistema cooperativo não mais propicia um
ambiente seguro para a mesma (Müller, 1998).
Os complexos agroindustriais se estruturam a partir de pesadas inversões de
capitais na agricultura e desenvolvem a mesma como uma atividade econômica onde a
10
maximização dos resultados é uma verdadeira obsessão dos dirigentes e acionistas.
Buscando a máxima eficiência dos fatores de produção, tecnologias, instalações e canais
de escoamento, as organizações padronizam os processos e os produtos deles
resultantes, resultando no tratamento comoditário de insumos e produção. As
cooperativas, pelo seu gigantismo e como estratégia de sobrevivência em um mercado
cada vez mais competitivo, tendem a seguir pelo mesmo caminho.
A estabilização dos preços de produtos da chamada “cesta básica” em níveis
muito próximos, quando não aquém dos seus custos de produção para viabilizar os
planos econômicos editados pelos governos é outro grave problema enfrentado pelos
agricultores nos últimos anos. A disputa por mercados com alto grau de concorrência
também tem levado os agricultores familiares a fornecerem alimentos com preços cada
vez menores, não por aumentarem o seu nível de eficiência, mas por não conseguirem
atuar com renda terra acima de zero e remunerarem apenas parcialmente o fator mão de
obra (Moreira, 2001).
Dentre os agricultores, os do tipo familiar foram os que sofreram mais
intensamente os efeitos das políticas adotadas pelos Poderes Públicos, dada a sua
relativa incapacidade de se fazer ouvir pelos mesmos, a predominância da produção de
alimentos básicos (até então os mais protegidos contra a concorrência dos produtos
importados) e a dificuldade de viabilizar os empreendimentos a partir de ganhos de
escala3 (Campos et all, 1999).
___________________
3 - Além disso, os agricultores familiares em processo de exclusão passaram a sofrer restrição de crédito
intermediado pelas agroindústrias, não mais recebendo insumos e recebendo remuneração inferior àquela concedida à
outros agricultores preferenciais.
11
3. MERCADOS - DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS AO
CENÁRIO NO SUL DO BRASIL
Os mercados locais e não comoditários, também chamados por alguns autores de
mercados não capitalistas são os canais de comercialização de alimentos que reduzem a
distância entre os agricultores e os consumidores finais, viabilizando o contato, a
interação e a troca de informações entre ambos. Estes instrumentos de abastecimento
priorizam o escoamento de produtos diferenciados, produzidos sob técnicas específicas,
sob condições controladas e/ou por determinados grupos de agricultores e pequenas
agroindústrias familiares. Geralmente os produtos que abastecem estes mercados são
artesanais, têm produção relativamente limitada e são oriundos de regiões delimitadas e
próximas, não tendo a sua disposição, canais de distribuição tão eficazes quanto àqueles
utilizados pelos mercados comoditários.
Os mercados comoditários ou capitalistas são aqueles onde as relações tendem a
ser absolutamente impessoais e envolvem a comercialização de produtos cujo padrão de
qualidade é definido pelo mercado e onde o diferencial de qualidade e a diversificação
não são remunerados4. Os preços dos produtos não resultam de negociações entre
vendedores e compradores, mas são influenciados por uma série de fatores e
mecanismos inerentes aos mercados globalizados, como o nível de estoques mundiais
dos produtos, ocorrência de problemas climáticos, aumento da demanda e frustração de
safras dos mesmos e de seus substitutos em outros mercados produtores, dentre outros.
Os sistemas integrados de produção consolidaram os mercados comoditários em
nosso meio, na medida em que os padrões dos produtos passaram a ser definidos
previamente pelo melhoramento genético das espécies cultivadas/criadas, através das
técnicas de cultivo e reprodução e pelas dietas de alimentos e insumos administrados.
Os preços são definidos unilateralmente pelo comprador e a participação dos
agricultores se dá a partir da formalização de um contrato que busca garantir a venda
dos insumos pela integradora e a entrega da produção pelo agricultor à mesma. O
agricultor participante aporta mão de obra familiar como principal fator de produção,
não lhe sendo permitido buscar outros mercados para o produto alvo da integração.
O achatamento dos preços dos produtos em sistemas integrados de produção,
como de resto, em todos os mercados comoditários, decorre da pressão da oferta e da
concorrência com produtos subsidiados em outros países e resulta na necessidade de
altas produções e produtividades e no ganho de escala como forma de viabilizar a
atividade econômica do agricultor.
___________________
4 – No Brasil, a soja é um dos produtos comoditários mais característicos da agricultura capitalista e possui um
padrão oficial de classificação (estabelecido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), o qual
estabelece apenas dois níveis de qualidade: Padrão Básico e Fora do Padrão Básico (Portaria MA nº 262/83). Este
padrão nem sempre é observado pelo mercado, onde o produto é comercializado aplicando-se descontos pela
presença de matérias estranhas e impurezas e alto percentual de umidade. Outros produtos, característicos da
produção familiar – como o tabaco – possuem até 48 níveis de qualidade no seu padrão oficial (Portaria MARA nº
526/93), sendo amplamente empregado nas negociações, o que estimula a busca da melhoria da qualidade pelo
agricultor familiar, uma vez que esta passa a ser um diferencial na remuneração, estimulando a utilização intensiva do
fator mão de obra.
A participação do agricultor familiar em um determinado mercado não o impede
de atuar simultaneamente em outros, uma vez que a sua inserção em um mercado
12
resulta de uma série de fatores internos e externos ao grupo familiar, tais como: as
características ambientais da propriedade, aptidões e conhecimentos técnicos dos
membros, proximidade à pólos de industrialização e comercialização, sucessos e
insucessos anteriores (próprios e de conhecidos) e surgimento de oportunidades com a
expansão de cadeias produtivas, de sistemas integrados de produção e também de
centros urbanos.
Não existe incompatibilidade entre os diversos tipos de mercado, podendo um
mesmo grupo familiar participar de vários deles. Assim, uma mesma família de
agricultores que produz soja para determinada cooperativa, pode criar frangos para uma
integradora (Mercados Comoditários), participar de uma rede de trocas de produtos e
serviços organizada pelos extensionistas da EMATER/RS e/ou pelo padre da
comunidade (Solidário), comercializar produtos coloniais nas feiras municipais ou de
produtos orgânicos (Orgânico) e fornecer produtos para a alimentação escolar na sua
comunidade.
Para Busch & Tanaka (1995) os mercados não comoditários se ressentem da
falta de padrões e normas de qualidade acordadas e reconhecidas pelos atores
envolvidos nas transações, o que viabilizaria o aumento da abrangência geográfica dos
mesmos, reduzindo os custos das transações. Wilkinson e Mior (1999) afirmam que a
distância entre os produtos comoditários e àqueles artesanais produzidos nas pequenas
agroindústrias familiares são muitos tênues e não raro um mesmo empreendimento
oferece, simultaneamente, produtos para os dois tipos de mercado, com os padrões de
qualidade que cada um deles requer.
A forma como são estabelecidas as regras de determinado mercado, buscando
preservar parcela do mesmo a produtores mais sujeitos à exclusão por diferentes razões
é explicada pela chamada Teoria das Convenções, tratada por Dupuy et al. (1989),
citado por Wilkinson (1999). Esta linha de pensamento econômico defende que os
mercados só podem funcionar com base numa definição prévia da qualidade dos
produtos transacionados e a identificação desta qualidade requer a intermediação de
normas e métodos de avaliação. As regras porém, não antecedem as ações e também
não são elaboradas fora do âmbito das mesmas, representando uma resposta aos
problemas que vão sendo solucionados, através de amplo processo de negociação
construído a partir de pontos em comum entre os atores. O estabelecimento de medidas
e padrões, como referências comuns, tem por objetivo assegurar a equivalência dos
produtos trocados e representa o primeiro estágio da organização do mercado.
(Wilkinson, 1999) e para Dupuy et al. (1989), as organizações determinam o conteúdo e
a forma da produção e da circulação de mercadorias, através de regras, normas e
convenções.
Como resultado de pressões das organizações camponesas e de pequenos
agricultores, no final do século XX a França instituiu e regulamentou o tratamento
diferenciado a várias categorias de produtos, buscando assim garantir as características
dos mesmos e resguardar espaços do mercado comoditário para produtos da agricultura
familiar. (Clemens, 2001), viabilizando os chamados “Sinais de Qualidade” e dos
“Produtos de Qualidade Específica - PQS” (Sylvander, 1995). Menard, Valceshini e
Garnier (1995), referidos por Fonseca (2000), citam a cadeia avícola do Label Rouge na
França como um exemplo, uma vez que a criação do selo Label em 1965 teria resultado
do esforço de 2 atores envolvidos: os camponeses franceses que buscavam resgatar a
13
imagem e a qualidade do frango e os órgãos públicos que buscavam proteger este
segmento do processo de industrialização e concentração da avicultura francesa.
Na região sul do Brasil, e especialmente no Rio Grande do Sul, a agricultura
familiar e os canais de suprimento e escoamento da produção agrícola, estruturaram-se
ao longo dos dois últimos séculos, a partir das experiências trazidas pelos imigrantes
europeus. A deficiência e a irregularidade dos canais de abastecimento e de escoamento
da produção, o relativo isolamento das comunidades coloniais, as experiências de
mercados e feiras livres (burgos) trazidas da Europa e a preocupação com segurança
alimentar do grupo familiar levaram os colonizadores e seus descendentes a
desenvolverem sistemas de trocas e mercados locais e regionais para os produtos
excedentes nas propriedades (Pesavento, 1983). Desde a sua instalação, as unidades
familiares de produção, sempre buscaram eleger alguns produtos destinados à
comercialização e à conseqüente geração de renda e receita para a viabilização de
investimentos na propriedade. Como resultado deste processo de construção de soluções
locais, ainda hoje existem em funcionamento no Rio Grande do Sul, inúmeros canais
alternativos e mercados locais de comercialização, os quais priorizam a relação direta
do agricultor familiar com o consumidor final.
O surgimento de grupos agroindustriais de grande porte, intensificado nas
últimas décadas com a entrada de capitais internacionais na produção, beneficiamento e
comercialização de alimentos, têm representado um sério risco à reprodução da
agricultura familiar, na medida que estes passaram a controlar as fontes de matérias
primas para as criações (milho5 e soja) e dominam os canais de escoamento da produção
familiar, transformando a maioria dos alimentos em comodities, transacionadas em lotes
de grandes dimensões. Contrariando o reconhecimento do papel da agricultura familiar
na modernização agroindustrial pelos cientistas sociais e econômicos, estes grupos
agroindustriais líderes do setor têm pregado a concentração, especialização e
conseqüente exclusão da produção familiar diversificada, como estratégia de
reorganização das cadeias produtivas (Wilkinson & Mior, 1999).
Como resultado desse processo, a partir da década de 1990 alguns segmentos da
agricultura familiar (aves, suínos, leite e tabaco) intensificaram os movimentos
reivindicatórios através das suas associações e sindicatos (FETAG e AFUBRA no RS e
FETAESC em SC), como forma de fazer frente à hegemonia de complexos
agroindustriais e buscar melhor remuneração à produção. Em alguns momentos,
unidades de beneficiamento de leite e tabaco chegaram a ser ocupadas pelos
manifestantes.
A lógica da acumulação capitalista ocidental construída no pós-guerra não
conseguiu desorganizar completamente algumas estruturas periféricas de produção e
_______________________
5 – A partir da década de 1990, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento adotou a estratégia de venda
direta de milho (“Milho balcão”), como forma de abastecer os pequenos agricultores familiares e amenizar os efeitos
deste amplo predomínio das integradoras.
comercialização, como a agricultura familiar no sul do Brasil. Embora até recentemente,
os agricultores familiares tivessem a produção como a sua maior preocupação –
deixando a comercialização dos produtos a cargo de organizações privadas ou
cooperativas, os mesmos têm buscado a identificação dos seus clientes e dos nichos de
14
mercado onde pretende colocar seus produtos, passando a destinar sua produção, não
mais a uma clientela indiferente, mas sim a compradores específicos (Abramovay,
1999).
Embora o processo de urbanização da sociedade gaúcha, intensificado a partir da
década de 1970, tenha criado inúmeras oportunidades à agricultura familiar em
virtude da mudança do padrão de consumo alimentar rural para o urbano e do
calórico para o protéico (Müller. 1998), a concentração populacional em médios
e grandes centros resultou em maiores níveis de insegurança alimentar e de
oligopolização dos canais de distribuição de alimentos. Em regiões de acirrada
concorrência e forte presença de grandes redes de supermercados, a aproximação
dos agricultores familiares, de forma individual ou associativa, a pequenos e
médios empreendimentos comerciais parece ser um caminho natural para o
escoamento da sua produção, viabilizando assim o fortalecimento da diversidade
regional de cultivos e hábitos alimentares (Maluf, 2000).
A introdução da diferenciação, através de marcas, rótulos e selos é interpretada
como uma estratégia de conquista de mercados comoditários e capitalistas, mas
representa também a abertura da concorrência através de fatores extrapreço,
inaugurando uma fase crítica na organização do mercado. Os produtos diferenciados e
tradicionais da agricultura familiar estão enraizados em mecanismos domésticos de
coordenação e justificação e estão fixos no espaço (um lugar específico) e no tempo
(uma tradição específica), enfrentando limitações para a expansão da coordenação pela
marca. Apesar disso, a publicidade baseada na marca, tenta situar-se em valores como a
tradição, na noção de produtos “da fazenda”, usando-se de sentimentos de nostalgia ou
associando os produtos a valores ecológicos ou ambientalmente corretos (Wilkinson,
1999).
A expansão do consumo de marcas tem se constituído em um dos maiores
obstáculos para o fortalecimento de mercados de produtos diferenciados, pois o
consumidor está sendo constantemente induzido por campanhas publicitárias e
instrumentos de mídia, a consumir as marcas e produtos que mais investem em
propaganda como forma de buscar sua satisfação pessoal. Atraídos por promoções,
“descontos” e outros atrativos mercadológicos nem sempre eticamente corretos, os
consumidores passam a se abastecer nos mercados comoditários, inviabilizando canais
alternativos de abastecimento e comercialização que não conseguem concorrer com as
mesmas. Além disso, o comodismo de encontrar todos os produtos em um mesmo local
seguro, asseado e confortável também seduz os consumidores.
Como a demanda por produtos agrícolas, especialmente aqueles que não passam
por um processo industrial, têm elasticidade-renda menor do que a unidade ou tendendo
a inelasticidade (Delgado, 2001), aumentos na renda da população não resultam
necessariamente em aumentos correspondentes na demanda de produtos da agricultura
familiar, devendo os mesmos competir com produtos comoditários pela preferência do
consumidor.
Por outro lado, diversos fatores têm contribuído para o aumento do interesse dos
consumidores pela qualidade dos alimentos, principalmente o crescimento das
populações urbanas consumidoras de produtos industrializados, o aumento do nível de
exigências pela qualidade dos produtos e serviços e o aumento do volume e qualidade
das informações disponíveis. Para Spers (1993), citado por Pessanha (1999), quanto
15
maior a renda do consumidor, o seu grau de informação, a sua idade e o seu interesse
pela questão dos alimentos, maior serão as suas exigências por produtos de melhor
qualidade. A crescente conscientização de parte da população quanto ao aumento dos
riscos da insegurança alimentar tem estimulado o surgimento e a consolidação de novos
canais de abastecimento, os quais procuram oferecer produtos diferenciados, com
procedência definida, maior valor nutricional agregado e que estejam isentos de
resíduos químicos (qualidades intrínsecas).
A heterogeneidade social e econômica existente no Brasil resulta da
desigualdade de renda, devendo ser considerado na análise do consumo e dos mercados
de alimentos (Maluf, 1999b). Essa heterogeneidade leva à coexistência de mercados de
produtos básicos com outros que valorizam produtos de qualidade superior e alto valor
agregado, determinando a viabilidade e as dimensões destes últimos. Desta forma, a alta
concentração de renda no Brasil representa um dos maiores empecilhos para a expansão
de mercados para os produtos diferenciados e para a comercialização de quantidades
superiores àquelas absorvidas atualmente por segmentos que se comportam como
nichos de mercado (Maluf 2000). Neste sentido, a melhor distribuição de renda no Sul
do país e a existência de setores da economia com relativa estabilidade, têm garantido a
comercialização de um volume considerável de produtos diferenciados da agricultura
familiar. Resultado disso é o aumento considerável do volume de produtos orgânicos e
“coloniais” comercializados através de feiras semanais nas principais cidades do
estado6.
A baixa disponibilidade de recursos na renda familiar para alocar em despesas
com alimentação tem levado os consumidores a buscarem produtos onde o preço é o
principal critério de decisão no momento da aquisição. Os custos de produção
relativamente mais elevados dos produtos com qualidade diferenciada acabam
inviabilizando o seu consumo pelos setores mais carentes da sociedade, tornando a
produção diferenciada da agricultura familiar voltada quase que totalmente para os
segmentos de mais alta renda.
As exigências sanitárias estabelecidas pela legislação vigente favorecem os
empreendimentos mais capitalizados na medida em que apenas as agroindústrias
conseguem arcar com os custos decorrentes do seu atendimento. A capacidade do
empreendimento de atender a estas exigências define a abrangência das suas ações de
mercado e os tipos de canais de comercialização mais adequados.
_____________________ 6 - Semanalmente são realizadas na maioria das cidades do estado, feiras de produtos da agricultura familiar -
reconhecidos como orgânicos, agroecológicos ou simplesmente “coloniais”. Porto Alegre, Pelotas, Caxias do Sul,
Santa Cruz do Sul, Santa Maria, Erechim, Montenegro, Passo Fundo são apenas algumas das localidades onde as
mesmas ocorrem. (Correio do povo, 23/06/2002).
Os atores dos mercados locais enfrentam o desafio de não depender
exclusivamente de ações paternalistas do Estado e das organizações não governamentais
que lhe apóiam, conquistando adeptos e estruturando fluxos de produtos diferenciados
como forma de sobreviver à concorrência dos mercados convencionais. Assim, por mais
importante que sejam as políticas públicas de abastecimento, os canais alternativos de
16
escoamento da produção agrícola familiar não podem ser instituídos ou mantidos por
vontade exclusiva do poder público.
17
4 ESTRATÉGIAS PARA A COMERCIALIZAÇÃO DIRETA
Um número considerável de unidades familiares de produção vem adotando
estratégias de articulação como os mercados e buscando agregar valor a seus produtos,
fazendo-o a partir do uso intensivo de mão de obra e com baixa intensidade e capital.
Tais articulações decorrem da relativa vantagem competitiva da agricultura de base
familiar em alguns produtos diferenciados e as perspectivas de modernização e
aproximação da mesma com os mercados depende basicamente de (Maluf, 2000):
novos padrões de consumo que valorizam produtos diferenciados,
adoção de estratégias de beneficiamento destes produtos e
relações mais duradouras de fornecimento dos produtos.
A consolidação de mercados locais e não comoditários têm sido fundamental
para garantir a viabilidade da agricultura familiar na região sul do Brasil. Os canais de
comercialização como feiras de produtos orgânicos e de produtos de origem, a
viabilização de pequenas agroindústrias, o aumento das garantias de qualidade através
da certificação e a consolidação de relações calcadas na confiança mútua entre
produtores e consumidores são fundamentais para viabilizar o acesso seguro dos
consumidores a produtos diferenciados, desconcentrando o abastecimento de alimentos
e permitindo aos agricultores apropriarem-se de parte do valor adicionado ao preço final
dos produtos por agentes econômicos intermediários. A ênfase colocada nos programas
de estímulo aos mercados locais busca a criação de oportunidades de trabalho, a geração
de renda para os agricultores familiares e a valorização de produtos diferenciados,
característicos da cultura regional (Maluf, 1999b).
Por outro lado, o rápido crescimento do volume de produção e do número de
participante em experiências de comércio local não comoditário tem exigido o
desenvolvimento e a adoção de estratégias e mecanismos de acreditação que substituam
a confiança mútua inerente às relações face a face entre agricultor e consumidor. O
consumidor compra a imagem “imaterial” do produto adquirida nesta relação de
confiança ou agregada através de um processo de certificação formal ou informal ou
através do desenvolvimento de selos para produtos com qualidade diferenciada, como o
“Label Rouge” na França ou o “Sabor Gaúcho” no Rio Grande do Sul.
A partir das dificuldades que as mudanças no cenário econômico têm imposto
aos agricultores familiares no Rio Grande do Sul nas últimas décadas, os mesmos têm
procurado consolidar uma série de instrumentos e canais para a comercialização direta
de produtos diferenciados e com maior valor agregado aos consumidores urbanos,
dentre os quais se destacam:
4.1 Mercado dos produtos “da colônia” ou artesanais
O mercado de produtos caracterizados como coloniais, artesanais ou “do campo”
representa um dos mais antigos canais de escoamento da produção da agricultura
familiar (Clemens, 2000), com presença generalizada em grande parte dos municípios
gaúchos. Neste mercado enquadram-se diversos canais de abastecimento como as feiras
livres, os mercados municipais, o mercado “do produtor”, a feira do peixe, a
18
comercialização através de canais privilegiados e que envolvem vínculos de parentesco
ou eventos festivos.
Os programas públicos que incentivam as feiras e os mercados locais de
produtos da agricultura familiar buscam proporcionar aos agricultores familiares, o
escoamento de produtos com qualidade diferenciada através de canais seguros e
independentes; abastecer com preços justos, os consumidores urbanos, principalmente
àqueles de baixa renda; reduzir a dependência do estado de produtos oriundos do centro
do país com custos mais elevados em razão da agregação dos custos dos fretes;
modernizar a metodologia de cultivo, colheita, transporte e comercialização de produtos
perecíveis migrando gradativamente para práticas agroecológicas, dentre outros.
Os produtos artesanais são identificados pelo mercado com um certo modo
particular de produção, o que lhes garante a diferenciação, pelo modo como se dá a
produção, sua origem, etc. O sucesso deste mercado porém, depende da capacidade de
informar os consumidores das qualidades intrínsecas e extrínsecas destes produtos e a
valorização destas pelos mesmos (Müller, 1998). A colocação de produtos artesanais de
consumo local/regional é mais viável em pequenos centros urbanos, onde os grandes
grupos agroindustriais ainda não dominam o mercado.
A julgar pelo que vem ocorrendo na Europa nas últimas décadas, a produção
agrícola em nosso meio deverá voltar-se cada vez mais para mercados específicos,
diferenciados e segmentados, passando o meio rural a ser visto pela sociedade, cada vez
menos, como um espaço estritamente produtivo, onde aspectos ligados à conservação
ambiental e cultural passam a ter relevância (Clemens, 2000; Abramovay, 1999).
Os poderes públicos estadual e municipais vêm de longa data buscando
incentivar canais locais de comercialização direta de produtos da agricultura familiar.
Em 1985, a EMATER/RS implementou um programa estadual de produção e
abastecimento de hortigranjeiros, em parceria com as Prefeituras Municipais, o qual
tinha por meta, a instalação de 200 feiras e mercadões de agricultores em 177
municípios gaúchos, 40 pontos de venda na região metropolitana e 15 feiras do litoral,
capacitando cerca de 2.500 agricultores familiares envolvidos. Grande parte dos
objetivos traçados pelo programa foram atingidos e em 1999 já estavam em
funcionamento 386 feiras de produtos coloniais, em inúmeros municípios do estado,
envolvendo cerca de 3.700 agricultores feirantes. Naquele ano, as feiras do litoral foram
realizadas anualmente em 37 balneários da orla gaúcha, envolvendo cerca de 300
agricultores feirantes e abastecendo com produção local parte considerável da
população que se desloca para o litoral no período de férias – janeiro e fevereiro
(ASCAR/EMATER-RS, 1985).
A manutenção de vínculos com familiares que migraram para os centros
urbanos, criou canais alternativos de escoamento de produtos coloniais, na medida que
os consumidores urbanos buscam manter vivos, laços com o passado e com a infância
vivida no meio rural. Não raro, estas relações envolvem sentimentos de solidariedade
com àqueles que buscam sobreviver em condições mais “duras e penosas” que àquelas
enfrentadas nos centros urbanos. Segundo Fonseca (2000), o fenômeno também está
evidenciado na Europa, onde uma certa nostalgia dos “produtos de outra época” e o
regresso ao “natural” têm garantido a consolidação de um mercado equivalente à cerca
de 10% do mercado agro alimentar francês.
19
Eventos festivos e culturais, associados à organização do turismo rural,
permitem o escoamento de inúmeros produtos alimentícios diferenciados produzidos
pelos agricultores, reforçando a correlação dos produtos artesanais/coloniais com
momentos festivos e saudáveis, criando vínculos entre os agricultores e os
consumidores viabilizando o reabastecimento posterior.
A comercialização porta a porta de produtos coloniais é outro importante canal
de escoamento da produção e, embora ainda pouco estudada e realizada de forma
absolutamente informal, é responsável pela quase totalidade da venda direta do leite in
natura aos consumidores finais7. Pelas suas características, o mercado de porta a porta
viabiliza o escoamento da produção de pequenos agricultores, cujas propriedades se
localizam nas proximidades dos centros urbanos.
Os produtos comercializados este canal são os excedentes alimentares das
unidades familiares de produção ou resultam de cultivos/criações especialmente
destinados ao mercado. Alguns dos principais produtos comercializados por este canal
de escoamento são o leite in natura, queijos e outros derivados, ovos e frangos “da
colônia”, embutidos, frutas, verduras, geléias, doces, schimier, melado, amendoim,
feijão, pipoca, lenha para fogões e lareiras, dentre outros.
À semelhança do que ocorre nos mercados solidários, os agricultores formam
redes de clientes relativamente fixos, entregando diariamente ou periodicamente os
produtos (caso do leite e verduras) ou organizam roteiros de distribuição, realizados em
dias e horários combinados, o que torna este mercado semelhante ao Solidário. Os
agricultores que praticam esta venda direta recebem as mais variadas denominações
regionais, como: verdureiro, quitandeiro, leiteiro, carroceiro, lenheiro, doceiro, etc.
As exigências legais de inspeção sanitária, estabelecidas no final do século
passado com o intuito de resguardar a saúde pública e atender aos interesses das grandes
agroindústrias, têm representado um dos principais entraves à ampliação da abrangência
dos mercados de produtos da agricultura familiar, notadamente àqueles de origem
animal. Os produtos inspecionados a nível municipal pelo SIM – Serviço de Inspeção
Municipal, só podem ser comercializados dentro do município, levando os agricultores
e suas organizações a estabelecerem pontos de comercialização às margens das rodovias
estaduais e federais que cortam o mesmo. Alguns dos municípios gaúchos onde é
comum a comercialização direta às margens das rodovias são: Caçapava do Sul, Vila
Nova do Sul, Hulha Negra, Montenegro, Triunfo, Bom Princípio, dentre outros.
________________________
7 – Algumas estimativas indicam que, no Brasil, 40% do leite, 50% da carne bovina e de 10 a 20% das
carnes brancas (peixes e aves) são comercializadas na informalidade (Wilkinson & Mior, 1999).
4.2 Mercados de produtos orgânicos
A crescente conscientização de agricultores e de consumidores, buscando a
produção em bases mais sustentáveis e o consumo de alimentos mais saudáveis parece
20
ser um forte indicador da viabilidade e consolidação dos mercados de produtos
orgânicos.
Embora existam controvérsias sobre a qualidade superior dos alimentos
orgânicos ou daqueles produzidos em condições naturais, em relação aos obtidos com a
aplicação de produtos químicos (Darolt, S/Data; USDA, 1984), as freqüentes denúncias
da contaminação de alimentos por resíduos químicos e, mais recentemente a ocorrência
do “Mal da vaca louca” (1996) e a crise das dioxinas em ovos, aves e suínos (1999) na
Europa, estimularam os consumidores a buscarem alimentos em fontes mais seguras e
confiáveis. O comportamento atual dos consumidores tem demonstrado uma certa
desconfiança nos processos industriais, uma forte incerteza sobre a qualidade dos
produtos oferecidos pelos canais convencionais dos mercados capitalistas.
A Europa teve papel fundamental na construção de mercados para produtos
orgânicos, a partir da normatização da produção e comercialização dos produtos no
âmbito da União - UE 2092 de julho de 1991. No Brasil, a regulamentação da produção,
tipificação, processamento, envase, distribuição, identificação e certificação da
qualidade dos produtos orgânicos é bastante recente e está embasada na Instrução
Normativa MAPA nº 007 de maio de 1999 (Fonseca, 2000).
No Brasil, a produção orgânica iniciou através de iniciativas isoladas em vários
pontos do país, no final da década de 1970, os quais tinham em comum a negação à
agricultura produtivista. Foi nesse período que foi fundada a Cooperativa Coolméia no
Rio Grande do Sul, envolvendo agricultores familiares e consumidores no processo de
construção do mercado de produtos orgânicos no estado e desencadeando uma série de
experiências e iniciativas de produção e comercialização de produtos sob base
agroecológica. No ano de 2000, existiam cerca de 100 núcleos de produção
agroecológica no estado do Rio Grande do Sul, totalizando 2.500 hectares de lavouras
trabalhadas sob bases ecológicas e produzindo dentre outros produtos: frutas, hortaliças,
sucos e vinho ecológico, erva mate, cana de açúcar, plantas medicinais, soja, trigo,
arroz, feijão e milho, dentre outros (Felippi, 2000).
Embora a quase totalidade dos alimentos orgânicos comercializados no estado
sejam produzidos por agricultores familiares, também aqui existe uma tendência à
comoditização de parte do mercado, viabilizada pela normatização do padrão de
qualidade e pela adoção do processo de certificação dos produtos, mas principalmente
em virtude do ingresso de investidores capitalistas (agricultores e empresas) e de redes
de distribuição e varejo nos processos de produção e comercialização, respectivamente.
Estes investidores são atraídos pelas oportunidades decorrentes do rápido crescimento
da demanda por produtos com forte apelo ambiental, mas principalmente a partir da
apropriação dos conhecimentos e do “modo de fazer” construídos pelos agricultores
familiares, por suas organizações, pelas ONGs e instituições de pesquisa públicas e
privadas (Moreira, 2001).
As políticas públicas de apoio à agricultura orgânica não podem continuar
apontando quase que exclusivamente para os mercados internacionais, pois os riscos
inerentes a este mercado são semelhantes aos dos mercados comoditários. Embora
sejam atraentes, os sobrepreços pagos aos produtos orgânicos dependem basicamente da
relação oferta/demanda, tendendo a cair na medida que houver incrementos na
produção. Os atores públicos e privados devem estar cientes de que o desenvolvimento
21
de mercados locais deve ser prioritário e demanda esforços durante vários anos,
orientado para a conscientização de agricultores e consumidores (Ahumada, 2002).
Outra questão a considerar é que quando os alimentos orgânicos de destinam ao
mercado externo é imprescindível a sua certificação por processos convencionais,
visando assegurar a conformidade dos padrões de qualidade estabelecidos pelos clientes
(Rundgren, 1998).
A ampliação dos mercados e democratização dos alimentos orgânicos tem
encontrado dificuldades em vista dos altos preços de venda dos mesmos. Segundo
Ottman (1994), citado por Santos (1999), os chamados “consumidores verdes” estão
dispostos a pagar até 20% a mais por alimentos produzidos com um mínimo de
agrotóxicos e beneficiados sem aditivos químicos. Não raro porém, os sobrepreços
correspondem ao dobro do preço dos produtos convencionais similares, o que os tornam
proibitivos aos estratos sociais mais empobrecidos. Estudos realizados no eixo Rio de
Janeiro – São Paulo e citados por Fonseca (2000) apontam um sobrepreço de 5 a 168 %
nos produtos orgânicos, em relação aos seus concorrentes diretos (hidropônicos,
naturais, alternativos, higienizados, selecionados e embalados com código de barras).
Na União Européia, em períodos de escassez acentuada, o sobrepreço dos produtos
orgânicos chega a ser de 100 %, em relação aos produtos comoditários (Ramos, 1998).
Muitas vezes os produtos orgânicos são comercializados pelos agricultores
diretamente aos consumidores, sem que sejam anunciados e/ou valorizados como tal,
uma vez que as suas características de qualidades não são agregadas, pois são inerentes
ao processo produtivo. A falta de conhecimento e conscientização de muitos
agricultores e consumidores sobre as qualidades dos alimentos produzidos sem o
emprego de insumos sintetizados quimicamente e obtidos em condições ambientalmente
sustentáveis, resulta na sua comercialização em feiras municipais e mercados locais ou
regionais como se fossem alimentos convencionais ou, quando muito, como “produtos
coloniais”.
Embora o número de agricultores familiares envolvidos com a produção
orgânica tenham crescido consideravelmente nos últimos anos, eles respondem por um
percentual muito pequeno do mercado consumidor nos principais centros urbanos do
estado. O mercado de orgânicos tem crescido rapidamente, mas a capacidade das redes
de produção, processamento, distribuição e comercialização para conectar os
agricultores aos consumidores finais, ainda é muito limitada, o que resulta no
atendimento das demandas alimentares de apenas alguns nichos de mercado bem
definidos (Maluf, 1999a).
4.3 Mercados Solidários
Os mercados solidários são redes de comercialização própria que surgem de
iniciativas de base comunitária, construídas por organizações vinculadas aos setores
excluídos tanto de agricultores familiares, quanto de consumidores assalariados
urbanos. Os participantes de mercados solidários não são movidos pela lógica da
maximização do lucro, embora não raro ele esteja presente (Lisboa, 2002). A sua
22
existência e amplitude resultam não apenas da organização de setores da sociedade –
comunidades por local de moradia e agrupamentos por categorias sociais, mas
principalmente a partir de situações de carestia, desemprego e altas taxas de inflação, o
que torna este mercado bastante instável (Maluf, 1999b).
Os mercados solidários se fortalecem como uma das ferramentas mais
importante de uma ampla revolução silenciosa - comumente chamada de Economia
Popular Solidária - que vem ocorrendo em inúmeros países. Assim, por contrapor a
solidariedade ao lucro, não é possível pensar o Mercado Solidário como uma mera
modalidade, variante das tradicionais estruturas de produção e comercialização baseadas
no produtivismo, na exploração do homem e na maximização do lucro. (Lisboa, 2002).
O desconhecimento das realidades vividas por agricultores familiares e pelos
assalariados urbanos é uma das grandes dificuldades para viabilizar os mercados
solidários, na medida que isto dificulta a sua articulação e o fortalecimento de laços de
solidariedade. As dificuldades para garantir volume de produção, regularidade e
qualidade constantes são outros grandes desafios a serem vencidos pelos agricultores
familiares para a conquista e manutenção deste canal de comercialização (Alentejano,
1999).
Analisando iniciativas de produção coletiva desenvolvidas com agricultores
familiares, Pinheiro Machado & Ribas (2001) advertem sobre as dificuldades de
sucesso das propostas solidárias, uma vez que as mesmas se assentam sobre a cultura
individualista dos agricultores familiares, os quais raramente possuem uma
racionalidade coletiva. Segundo os autores, muitas iniciativas de cunho cooperativo,
associativo ou condominial de agricultores têm fracassado em razão da ganância e da
disputa pela repartição dos lucros.
Para Razeto (1995) citado por Alentejano (1999), a economia popular solidária
avança mais intensamente na França e na América Latina e seu crescimento está
diretamente vinculado às profundas transformações do mercado e das estruturas
econômicas e sociais em curso, as quais favorecem o desenvolvimento da economia
informal. Nos últimos anos, inúmeras experiências de comercialização através de
amplas redes de trocas, dentro da economia popular solidária têm sido registradas em
diversos países. Na Argentina, as redes solidárias (“Trueques”) contam com apoio
governamental e envolviam já em 2001, cerca de 400.000 pessoas, tendo abolido o uso
do dinheiro, funcionando a partir de um sistema de créditos (Bônus), o qual viabiliza a
troca dos serviços e/ou produtos (Toriño, 2001). No Japão, a comercialização em
cooperativas de consumidores envolve entre 11 e 16 milhões de consumidores, o que
corresponde a quase 10 % do mercado daquele país (Ramos, 1998).
As compras coletivas ou comunitárias são ferramentas de comercialização
solidária que podem vir a tornar-se uma alternativa para agricultores familiares. Neste
sistema, um grupo de agricultores familiares reunidos em uma associação, produz para
um grupo de consumidores, organizados em torno de um local de moradia, empresa ou
entidade de classe, garantindo a aquisição dos alimentos, através de contrato formal ou
informal. Bastante comum em estados da costa leste dos Estados Unidos e no Canadá,
o sistema conhecido por CSA - Community Supported Agriculture prevê o
adiantamento de recursos financeiros pelos consumidores aos agricultores,
possibilitando-lhes reduzir os custos de produção e os preços finais dos produtos.
Ramos (1998), descreve estruturas de comercialização solidária que funcionam desde
23
1965, no Japão e que somam 500.000 associados, dividida em grupos de 6 a 30 famílias,
onde cada uma delas recebe cestas mensais de alimentos menos perecíveis e entregas bi-
semanais de produtos como leite e verduras.
A atuação das Igrejas Católica - através da CNBB/Cáritas8 e Evangélica
Luterana - IECLB9, das organizações não governamentais (apoiadas por recursos
financeiros de agências internacionais de cooperação), de universidades e mesmo de
agentes públicos estaduais e locais têm estimulado e alavancado uma série de
experiências bastante significativas, tanto no meio urbano quanto rural10
, que se
mostram tanto mais importantes quanto mais intenso é o processo de exclusão
econômica, desemprego e de concentração de renda, acentuado nos últimos anos.
As experiências mais concretas em termos de comercialização solidária de
produtos no meio rural, parecem vir das cooperativas e associações de agricultores
familiares assentados11
. Embora existam impasses e contradições estruturais,
decorrentes de carências materiais, de despreparo técnico e de visões nem sempre
convergentes sobre o processo de organização dos assentamentos, os resultados são
estimulantes, pois o associativismo, à medida que se adapta à realidade de cada família
e cada comunidade, mostra-se o caminho mais seguro, senão o único caminho, para os
agricultores familiares (Gaiger et all, 1999). O MST também tem buscado abrir canais
de comercialização solidária para países europeus, criando assim perspectivas de novos
mercados12
.
_________________
8 A Caritas, criada em 1956, mantém desde o início dos anos 80 o Projetos Alternativos Comunitários – PACs (um
Fundo de Mini Projetos que, até 1999, financiou 954 empreendimentos apenas no RS, beneficiando mais de 40 mil
pessoas).
9 O SPD/IECLB (Serviço de Projetos de Desenvolvimento da Igreja Evangélica de Confissão Luterana), criado em
1966, oferece apoio técnico-financeiro para projetos populares-comunitários de geração de renda.
10 - Partindo de iniciativa do Projeto Esperança, desde 1994 ocorre anualmente, em Santa Maria/RS, a Feira
Estadual de Cooperativismo Alternativo. Já em Porto Alegre, ocorreram duas Feiras da Economia Popular Solidária
do Rio Grande do Sul, em 1998 e 2000 (Lisboa, Armando, Sem Data) e em outubro de 1999 ocorreu a Primeira Feira
Metropolitana de Economia Popular Solidária da Região Metropolitana de Porto Alegre.
11 – A Cooperativa Central de Assentamentos do Rio Grande do Sul agrupava em 1998, 26 cooperativas e 10
associações, totalizando cerca de 3.500 agricultores participantes (Gaiger et All, 1999).
12 – O MST vem procurando articular-se com organizações internacionais que dão apoio à causa da Reforma
Agrária, viabilizando assim a exportação para países como Alemanha e Itália, de produtos de assentamentos de
agricultores, através da modalidade “Comércio Justo” ou “Fair Trade” (Alentejano, 1999).
4.4 Mercados institucionais
O mercado institucional de alimentos resulta da organização de atores e
agentes sociais e econômicos, com o objetivo de viabilizar as compras realizadas pelas
diversas esferas do Poder Público federal, estadual e municipal para atender as
necessidades dos programas oficiais voltados à alimentação em escolas, presídios,
quartéis, hospitais, restaurantes populares e aos programas de alimentação infantil,
distribuição de cestas básicas e outros.
O mercado institucional é um dos mais importantes instrumentos que o poder
público possui a sua disposição para incentivar a construção de mercados locais e
promover mudanças no sistema produtivo dos agricultores familiares. Apesar disso ele
24
é pouco explorado no Brasil (Maluf, 1999a). A garantia de mercado para os seus
produtos e a disponibilidade de crédito estimula os agricultores a se estruturar para
conquistar novos mercados. Dependendo do porte do município, as compras públicas
podem representar um volume significativo de produtos e a possibilidade concreta de
viabilização de unidades familiares de produção, através da abertura do mercado
institucional para associações de agricultores, organizadas e formalmente constituídas.
A municipalização de várias políticas públicas, a partir da Constituição de
1988, atribui papel fundamental ao poder público local na gestão e execução de
inúmeros programas voltados ao atendimento da população. Cabe ao município definir
quais os critérios utilizar na aquisição dos insumos e alimentos necessários à realização
destes programas, o que permite a tomada de decisão em favor da valorização da
produção local.
Embora a descentralização da compra de alimentos para a merenda escolar
tenha permitido a flexibilização do processo de aquisição dos mesmos, viabilizando a
participação dos agricultores familiares e suas organizações neste mercado e a
introdução de alimentos de importância regional (Maluf, 1999), muitas vezes os
agricultores familiares e suas organizações têm enfrentado dificuldades para acessar este
mercado, uma vez que as compras públicas têm sido geridas de forma a favorecer a
participação de médios e grandes fornecedores, capazes de atender as exigências
constantes nas licitações.
O risco de descontinuidade do mercado quando da troca da administração do
município têm levado os agricultores a evitar contrair dívidas e postergar investimentos
na infra-estrutura produtiva, reportando à questão de como construir instrumentos
capazes de garantir o espaço da agricultura familiar nesse tipo de mercado mesmo em
situações de descontinuidades políticas na gestão do poder local (Paula, 2000).
A manutenção de um padrão mínimo de qualidade organoléptica e
bromatológica representa um grande desafio aos grupos de agricultores que buscam
atender estes mercados, na medida que as organizações que realizam as aquisições de
alimentos tendam a aumentar as exigências quanto aos controles da qualidade dos
mesmos. A apresentação e a embalagem dos produtos e a manutenção dos mesmos
sabores locais que o público alvo está acostumado a comer (iogurte caseiro, pão,
biscoitos, etc.) podem ser um fator restritivo à demanda dos produtos oriundos da
agricultura familiar (Fabrício & Tôrres, 2000).
4.5 Agroindústrialização de alimentos em pequena escala
A grande concentração de renda no Brasil e a produção voltada à exportação têm
levado os grandes grupos agroindustriais a concentrarem esforços na conquista de
mercados de médios e grandes centros urbanos, abrindo oportunidades às agroindústrias
familiares de pequeno porte em mercados de cidades menores. No entanto, a conquista
destes mercados por agroindústrias locais/regionais de pequeno e médio porte pressupõe
a organização dos agricultores sob formas associativas formais ou informais,
devidamente profissionalizadas13
e que não sejam movidas apenas pelo romantismo e
idealismo característicos daqueles que estão ingressando no mercado (Müller, 1998).
25
Desta forma, a instalação de pequenas agroindústrias familiares voltadas para
os mercados locais e regionais tem representado uma excelente estratégia para viabilizar
a agricultura familiar em algumas regiões, através da ocupação da mão de obra ociosa e
da agregação de valor às matérias primas disponíveis nas unidades familiares de
produção, principalmente quando o valor agregado é apropriado pelos agricultores
(Calzavara, 1999). Nesta perspectiva vários países da União Européia principalmente
Itália, Alemanha, França, e mais recentemente Portugal, têm obtido bastante sucesso na
agroindustrialização e diferenciação de produtos característicos de determinadas
regiões. Vários tipos de salames, embutidos em geral, queijos e derivados do leite,
carregados de um sabor local, estão sendo produzidos e atingindo públicos
consumidores específicos os quais estão dispostos a pagar um preço maior pelos
referidos produtos (Arbage, 1999).
Ainda segundo Calzavara (1999), as formas associativas de agroindústria
podem representar uma estratégia eficaz de desenvolvimento para a agricultura familiar,
quando enfatizarem a cooperação e a corresponsabilidade dos participantes; a
administração profissional; políticas tecnológicas adequadas à realidade e às questões
dos nichos de mercado com destaque para produtos diferenciados, que valorizem a
cultura e as tradições locais e que se utilizem de redes alternativas de comercialização.
O PRONAF Agroindústria e alguns programas de Apoio à Agricultura Familiar
do Governo do Estado (Agroindústria, RS Rural/PANPA, etc.) têm alavancado recursos
para realizar estudos de mercado e para viabilizar empreendimentos de pequeno e médio
porte no meio rural, o que tem sido essencial para o sucesso das políticas públicas no
setor, dada a descapitalização dos agricultores. O PRONAF Agroindústria prevê a
organização de grupos de agricultores familiares com uma unidade central de apoio
de mercado (Maluf, 1999a), viabilizando a transformação das matérias primas e a
comercialização da produção pelos próprios agricultores.
Segundo Maluf (1999a), as agroindústrias familiares empregam preponderantemente a
mão de obra feminina e de jovens, ficando os homens adultos encarregados da produção
da matéria prima. O baixo nível de instrução desta mão de obra e a falta de consciência
______________
13 – Inúmeras associações e cooperativas foram criadas dentro de assentamentos da reforma agrária e têm ocupado
espaço no mercado local e regional, com a industrialização artesanal de alimentos. Alguns municípios gaúchos onde é
forte esta atuação: Capela de Santana, Charqueadas, Viamão, Eldorado do Sul, Sarandi, Santana do Livramento,
Hulha Negra, dentre outros.
coletiva têm dificultado a melhoria do nível tecnológico e da padronização e qualidade
dos produtos. Aliam-se a esses problemas, a descapitalização dos participantes, a falta
de capacitação dos técnicos em questões de tecnologia e comercialização dos produtos,
inexistência de estudos de mercado para apontar oportunidades, a falta de priorização da
agricultura familiar por parte das autoridades públicas, a infra-estrutura deficiente
(estradas, energia, telefonia, etc.), dentre outros. Merecem destaque ainda as
dificuldades que as pequenas agroindústrias enfrentam para adequarem-se às exigências
da legislação sanitária, uma vez que a mesma foi feita para atender os interesses das
grandes agroindústrias. Não raro estas exigências funcionam como barreira à
regularização e entrada em funcionamento de pequenos empreendimentos.
Os preços dos produtos de agroindústrias de pequeno porte normalmente são
competitivos, embora nem sempre sejam os mais baratos. Assim, uma tendência natural
26
dos atores envolvidos é explorar os nichos de mercado local e regional dispostos a pagar
o valor agregado aos produtos diferenciados. Isto, de certa forma, deixa exposta a
contradição existente entre a agregação de valor à produção e a oferta de produtos com
preços mais baixos para atingir a população mais carente14
.
O desenvolvimento de um pólo de pequenas agroindústrias familiares em uma
determinada região resulta na dinamização de uma série de outras atividades e
empreendimentos de pequeno porte, aproveitando-se de franjas do mercado, gerando
empregos a outros atores e otimizando a distribuição de renda entre eles15
. O turismo
rural é uma atividade econômica geradora e distribuidora de renda a nível local, que é
fortemente influenciada pela existência de produção artesanal de produtos com sabor
local e qualidade diferenciada.
Muitos municípios gaúchos, como Hulha Negra na fronteira com o Uruguai,
priorizam a agroindústria familiar no Planejamento Municipal, incentivando
empreendimentos de agroindústrialização de pequeno e médio porte através das
discussões no Conselho de Desenvolvimento Rural do município. Hulha Negra, lançou
a marca “Prove Hulha”, nos moldes do Programa PROVE do Distrito Federal (Fabrício
& Tôrres, 2000). Os programas municipais prevêem ainda, investimentos em
capacitação de agricultores e a formação de fundos municipais de crédito, administrados
pelos Conselhos de Desenvolvimento Rural locais.
______________ 14 – Como forma de oferecer uma maior diversidade de produtos aos consumidores, em feiras de produtos orgânicos no Rio Grande
do Sul, os agricultores comercializam suco de uva orgânico com preço subsidiado, uma vez que os seus custos de produção são
superiores aos custos dos sucos industrializados. A redução do preço abaixo do custo de produção é compensada pelo lucro auferido
na venda de outros produtos (Maluf, 1999a).
15 - Como já registrado no Programa de Verticalização da Pequena Propriedade - PROVE/DF, no Distrito Federal (Maluf, 1999a), também no Sul do Brasil existem várias experiências bem sucedidas de geração de renda a partir do surgimento de pequenos
empreendimentos de agroindustrialização de alimentos. As regiões viti-vinícola da serra, as coloniais do alto e médio Uruguai, dos
vales do rio Taquari/Antas e do Caí são apenas alguns exemplos.
4.6 Certificação da Qualidade
As exigências de qualidade e de um grau mínimo de padronização e preparo
estão presentes em qualquer empreendimento, independente de seu porte. O
estabelecimento de pressupostos, regras e normas de qualidade, definidos em cadernos
de encargos ou acordados entre os participantes e contratados nos processo de
certificação ou adesão aos selos de qualidade, tem por objetivo estabelecer as
características que diferenciam estes produtos e buscam garantir o padrão de qualidade
previamente definido.
As normas constantes dos processos de certificação buscam padronizar certos
produtos e processos (da Agricultura orgânica, por exemplo), mas elas por si só não
produzem alterações sócio-ambientais nos locais onde são implementadas. Nem
tampouco promovem um desenvolvimento justo dos sistemas agrários ou corrigem os
desníveis de poder que existem ao longo da cadeia produtiva. Rundgren (2002) adverte
27
porém, que alguns processos de produção de alimentos, como na Agricultura Orgânica,
nunca poderão ser padronizados, pois a própria natureza não se rege por padrões.
A certificação de produtos tem como objetivos principais (Maluf, 2000):
- Contribuir para a inserção mercantil do Agricultor Familiar buscando
alternativas para os canais convencionais de comercialização,
- Estimular o empreendedorismo e a gestão voltada ao mercado, buscando
alternativas para a geração de renda (pluriatividade),
- Gerar excedentes comercializáveis na unidade de produção,
- Buscar a agregação de valor aos produtos como forma de ampliar o nível de
renda do núcleo familiar,
- Melhorar a qualidade de vida das famílias envolvidas, fixando os agricultores
familiares no campo.
A grande maioria dos processos de certificação convencional tem por princípio a
desconfiança, impondo ao agricultor o cumprimento de regras e exigências para que ele
prove sua idoneidade e a adequação do processo de produção ao estabelecido no
processo de certificação.
A certificação convencional destina-se a atender principalmente às exigências do
mercado externo, mais exigente e melhor remunerador para os produtos certificados,
sendo exigida a adoção de um rígido sistema de inspeção e rastreabilidade, estabelecido
por um organismo reconhecido internacionalmente e aplicado por entidades
certificadoras a nível local, devidamente avalizadas por autoridades competentes
(FAO/OMS, 2001). O sistema de certificação pressupõe o estabelecimento de regras
claras a serem cumpridas pelas partes, contidas em um caderno de encargos, o qual deve
ainda prever as sanções, as medidas corretivas e os procedimentos que deverão ser
aplicados quando verificado o descumprimento das regras estabelecidas.
Os mercados não comoditários se ressentem da falta de definição de padrões de
qualidade que sirvam de linguagem universal entre os atores, reduzindo os custos das
transações, restringindo o acesso de certos produtos comoditários ao mercado e
reservando parte dele aos produtos diferenciados (Busch & Tanaka, 1995). Desta forma,
quando o número de atores envolvidos no processo e a abrangência dos mercados forem
tais que não mais seja possível ao consumidor diferenciar os produtos convencionais,
dos produtos da agricultura familiar, é recomendável a adoção de um processo de
certificação da qualidade para o reconhecimento das qualidades intrínsecas e extrínsecas
destes produtos.
Os custos da certificação convencional são bastante elevados inviabilizando o
acesso a pequenos e médios agricultores (Ahumada, 2002), uma vez que correspondem
a aproximadamente 1% do valor comercial da produção certificada. Estimativas
indicam que o processo de certificação no mundo movimenta mais de 100 milhões de
dólares por ano (Fonseca, 2000). Em razão dos altos custos da certificação
convencional, alguns grupos de organizações de agricultores familiares e de
consumidores vem desenvolvendo nos últimos anos, sistemas alternativos de garantia da
qualidade dos produtos, baseado na confiança mútua – a Certificação Solidária ou
participativa.
28
A certificação participativa tem sido desenvolvida prioritariamente para
produtos destinados aos mercados locais e/ou regionais, buscando atingir níveis de
eficiência e qualidade que a torne reconhecida pelos consumidores e acessível a todos
os agricultores familiares interessados, permitindo relações econômicas mais justas e
dando maior credibilidade aos produtos diferenciados produzidos na agricultura
familiar. A partir destes princípios, já adotados por várias certificadoras em outros
países16
, a Rede Ecovida de Agroecologia estruturou, em 2000, um sistema de
certificação participativa envolvendo associações de agricultores familiares e
consumidores nos 3 estados do Sul do Brasil (Arl, 2000).
4.7 Selos de Qualidade
Uma forma de conquistar mercados mais exigentes em qualidade e garantir as
características diferenciadas dos produtos é através do estabelecimento de selos de
qualidade (Scialabra, 2000). Na União Européia, algumas categorias de produtos da
agricultura familiar possuem tratamento diferenciado dos demais, em função da sua
qualidade, da sua origem ou em vista das condições e/ou técnicas nas quais foram
obtidos.
A partir de 1992, a União Européia passou a adotar alguns selos oficiais de
qualidade diferenciada, buscando identificar e proteger os produtos agrícolas e
alimentares oriundos das tradições e dos “terroirs” europeus, sendo os principais deles:
Denominação de Origem Protegida/AOP (Terroir), Indicação Geográfica
Protegida/IGP, Atestação de Especialidade Tradicional Garantida/AS e Agricultura
Biológica/AB.
____________________
16 - A URUCERT no Uruguai e a KRAV na Suécia implantaram sistemas de certificação coletiva ou grupal de
produtos orgânicos, como forma de viabilizar o acesso de pequenos agricultores familiares daquele país ao mercado
interno de produtos certificados, uma vez que os mesmos não conseguem manter preços competitivos quando
incorporam os custos inerentes à certificação convencional. O sistema de certificação implantado exige um maior
grau de organização dos atores participantes e tem viabilizado a comercialização de produtos hortícolas, frutas, mel,
laticínios, plantas medicinais e aromáticas. (Perazzoli, 2002).
Já na França, os principais selos de qualidade instituídos são: Produtos com
Denominação de Origem (1919), transformada posteriormente em Denominação de
Origem Controlada - “Terroir” (1935); Produtos com Labels Rouge (1960) e Label
Regional (1976) - “qualidade superior” ; Produtos com Certificação de Conformidade
(1988); Produtos da Agricultura Biológica (1980); Produtos com denominação de
“Montanhês” (1985); Produtos do Campo - “Fermier” (1999). (Clemens, 2001).
No Brasil a legislação sobre o emprego de selos de qualidade diferenciada é
bastante deficiente e apenas em maio 1999 (Instrução Normativa 007 do MAPA) foi
regulamentada a utilização de um selo de qualidade para a produção orgânica. Os selos
utilizados nas embalagens de produtos industrializados (como ABIAP, ABIMA, ABIC,
“empresa amiga da criança”, e outros) e aqueles vinculados a organizações ou
movimentos sociais (cooperativismo, reforma agrária, etc.) não são submetidos a
controle oficial, nem obedecem à regulamentação específica, sendo empregados mais
como reforço mercadológico de marcas do que como uma garantia de qualidade
diferenciada. Como estratégia para a conquista de nichos de mercado dispostos a pagar
29
um sobre-preço para produtos com origem garantida, podem ser criados selos que
remetam à exploração de sentimentos de simpatia ou solidariedade para com processos
ou grupos sociais (Movimento de Reforma Agrária, por exemplo) ou de sentimentos de
nostalgia e de “volta às origens” (“colonial”, “da fazenda”, “serrano”, “missioneiro”,
“da fronteira”, etc.).
A criação em Junho de 1999, do selo “Sabor Gaúcho” pela Secretaria da
Agricultura e do Abastecimento, é um exemplo de instrumento voltado à valorização da
agroindustrialização artesanal por agricultores familiares excluídos dos mercados
capitalistas e comoditários. Utilizando-se deste selo, cerca de 1.000 agricultores
familiares gaúchos comercializam produtos de origem vegetal e animal em feiras de
produtos coloniais, mercados de pequeno e médio porte e espaços de venda criados
junto a feiras e eventos, como a EXPOINTER (Exposição Internacional de Animais de
Esteio/RS), onde segundo dados da Secretaria, participaram 52 agricultores familiares
em 2001 e 127 em 2002 (Müzzel, 2002).
30
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho tem por objetivos mostrar a importância dos mercados locais
e não comoditários como ferramentas estratégicas de reprodução social e de
viabilização econômica da agricultura familiar no Rio Grande do Sul, principalmente a
partir da consolidação do processo de cartelização das organizações agroindustriais e
dos mercados varejistas comoditários e da conseqüente exclusão de significativo
contingente de agricultores familiares do processo produtivo e comercial.
O fortalecimento dos canais de comercialização direta dos produtos da
agricultura familiar tem por objetivo estimular associações entre os agricultores e os
consumidores dos mesmos, garantindo uma fonte de renda mais segura aos
agricultores; incentivando-os a permanecerem no meio rural e a manterem e
melhorarem a qualidade da produção, estimulando-os a adotarem práticas agrícolas
ecologicamente mais corretas e socialmente mais justas; viabilizando investimentos na
certificação da qualidade diferenciada dos produtos; criando vínculos e um senso de
responsabilidade entre as partes; possibilitando um contato mais direto do consumidor
com o local onde são produzidos os alimentos (através de visitas) e incentivando outros
agricultores familiares a migrarem dos sistemas tradicionais para sistemas orgânicos, na
medida que a viabilidade destes últimos passa a ser confirmada.
As mudanças no padrão de consumo alimentar dos estratos sociais mais
elevados, substituindo os alimentos calóricos pelos protéicos, principalmente durante a
“revolução verde” e destes para dietas baseadas em frutas e verduras frescas, têm
representado excelentes oportunidades para a reinserção da agricultura familiar no
mercado, em vista a exigência mais intensa de mão de obra na produção dos mesmos.
Na medida que os problemas técnicos envolvendo a produção regular de
produtos diferenciados são solucionados, surgem outras questões que merecem a
atenção dos agricultores familiares, relacionadas à falta de organização associativa,
desconhecimento dos fatores que afetam a comercialização, melhoria da apresentação e
embalagem dos produtos, consolidação de um selo de qualidade e/ou processo de
certificação que garanta o reconhecimento da qualidade superior do mesmo, conquista
do cliente e divulgação dos pontos de venda e da qualidade superior de seus produtos,
dentre outros (Fonseca, 2000).
Até recentemente, os agricultores familiares preocupavam-se quase que
exclusivamente em produzir o maior volume possível de produtos, deixando o processo
de comercialização à cargo das organizações cooperativas e das agências
governamentais para os quais direcionavam sua produção. Com a comoditização dos
mercados de produtos agrícolas, cada vez mais os agricultores familiares e suas
organizações devem decidir previamente qual será seu cliente, qual nicho ou segmento
de mercado deseja atingir e quais as necessidades dos clientes deseja atender, como
estratégia de diferenciação e garantia de comercialização.
Os mercados locais e de produtos não comoditários são ainda bastante frágeis,
carecendo os produtos diferenciados (por sua origem e forma de cultivo ou preparo) de
selos de identificação que os diferenciem (tal qual o selo do Movimento pela Reforma
Agrária), um sistema de certificação da qualidade reconhecido e que não exclua os
31
agricultores familiares em razão de seus custos elevados. Urge a regularização da
produção familiar, através da reformulação da legislação sanitária, o estabelecimento de
padrões gerenciais adequados, além de investimentos em divulgação visando a inclusão
de um número maior de participantes (consumidores e agricultores familiares).
Mesmo sendo possível um incremento considerável no consumo de produtos
diferenciados, isto apenas amenizará o processo de exclusão mercantil dos agricultores
familiares, tal é a magnitude deste processo, nas últimas décadas, nos estados do Sul do
Brasil (Müler, 1998). Além disso, ainda é insipiente em nosso meio, a diferenciação dos
produtos em função da sua origem geográfica e das características e “modos de fazer”,
restringindo-se a diferenciação, a critérios de qualidade bastante genéricos. A falta de
uma política voltada à valorização e divulgação de características culturais distintas e
àquelas resultantes dos diferentes microclimas existentes no estado tem dificultado a
consolidação de produtos diferenciados existentes em nosso meio e inviabilizado a
conquista de mercados comoditários.
Neste início de século estamos assistindo a uma reconfiguração das relações
entre o local, o regional e o global. Um novo papel se impôs ao poder local, a partir da
redefinição do estado-nação e do avanço de mecanismos de exclusão cada vez maior de
uma parcela significativa da população local. Assim, o apoio que o governo estadual,
inúmeras prefeituras municipais e ONGs tem dado à agricultura de base familiar na
produção, beneficiamento e comercialização da produção é uma forma de promover
uma maior equidade social, através da geração de trabalho e renda, ampliar a
disponibilidade de alimentos de qualidade diferenciada com custos mais acessíveis e
livres de resíduos químicos, valorizar a diversidade dos hábitos culturais e de consumo
(Maluf, 1999) e elevar a auto estima do agricultor, estimulando-o a permanecer no meio
rural.
As regiões carentes de infra-estrutura, com dificuldade de acesso e com menores
vantagens competitivas normalmente estão mais propensas a desenvolver propostas
voltadas a mercados locais e não comoditários, uma vez que são menos atrativas aos
agentes dos mercados convencionais. Aos agricultores familiares excluídos localizados
em regiões marginais, cabe a organização de pequenos e médios empreendimentos
familiares e a constituição de associações e condomínios de produtores, buscando
reduzir custos de beneficiamento e comercialização através de ações coletivas e da
abertura de mercados visando a economia de escala. Neste sentido, a certificação dos
produtos de agricultores familiares destas regiões e a instituição de selos de qualidade
para os mesmos podem se constituir em excelentes instrumentos para a abertura e
consolidação de mercados mais exigentes.
Um dos principais desafios para a consolidação de unidades familiares de
produção como fornecedoras de produtos diferenciados para mercados exigentes é a sua
migração da informalidade para um nível de organização adequado às normas do
mercado, em termos de qualidade dos produtos, padrões de higiene e sanidade, insumos,
acondicionamento e transportes adequados, regularidade e volume de produção que
atendam às demandas do mercado conquistado.
Os mercados locais e não comoditários carecem de divulgação massiva, uma vez
que as organizações e entidades que atuam na sua organização privilegiam a divulgação
boca a boca, limitando a abrangência da comercialização e o acesso dos consumidores.
32
Outros canais de divulgação podem significar um aumento significativo na demanda por
produtos diferenciados, viabilizando aumentos na produção e a conseqüente redução
dos preços finais, a abertura de novos pontos de venda, o acesso de um maior número
de consumidores a produtos de qualidade superior e de agricultores familiares à sua
produção.
Um dos grandes obstáculos que estes mercados deverão enfrentar nos próximos
anos será o seu próprio crescimento de forma desordenada e desorganizada. O risco da
perda da identidade e os desvios dos princípios que os sustentam é outra questão a ser
considerada pelos seus atores. Isso resulta do ingresso de novos participantes, trazidos
pela oportunidade de obterem vantagens competitivas nas transações realizadas e
transformando os canais de comercialização que priorizam o contato direto dos
agricultores com os consumidores, em meros segmentos diferenciados dos canais
convencionais de comercialização, tal qual vem ocorrendo com os produtos orgânicos
comercializados em grandes redes varejistas.
Portanto, a viabilidade da agricultura familiar passa pela busca de novos
mercados e pela compreensão das mudanças de cenários que tem se intensificado nos
últimos anos e do papel que o meio rural desempenha na sociedade. Assim, por mais
importante que seja a redução dos custos de produção, o aumento da produtividade e a
obtenção de alimentos básicos a preços baixos, torna-se cada vez mais significativa a
demanda por produtos diferenciados de qualidade superior, que vão desde
“especialidades”, alimentos que não utilizem insumos químicos na sua produção, até
alguns insumos destinados à produção de medicamentos. Mesmo os produtos tratados
como comodities pelo mercado tendem a sofrer um processo de diferenciação baseado
na qualidade desejada por determinados nichos de mercado e não mais exclusivamente
em função da quantidade e preço.
Assim, apesar dos esforços da sociedade gaúcha para viabilizar a
comercialização de produtos da agricultura familiar através de canais não
oligopolizados e não comoditários e garantir condições mínimas de reprodução social e
econômica aos agricultores familiares, muito ainda há por ser feito, tal é o desafio que
as mudanças à nível global, regional e local tem imposto. Por uma questão de
sobrevivência, os agricultores familiares estão dispostos a enfrentá-lo.
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