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A Justiça Frente àRevolução Científico-

Tecnológica no Campoda Reprodução Humana

MESA-REDONDA

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ASPECTOS CONSTITUCIONAIS NA CLONAGEM HUMANA*Sérgio Ferraz

RESUMO

Descreve os marcos norteadores da evolução no campo da ciência genética, os quais culminaram com o nascimento da ovelha Dolly.Comenta a respeito dos diversos tipos de clonagem, tecendo considerações acerca dos prováveis riscos psicológicos e conseqüências jurídicas advindas da criação deum clone, bem como suas implicações no âmbito do Direito das Sucessões e no do Direito de Família.Salienta, ainda, que a temática inerente à clonagem encontra-se permeada pelo grande interesse de natureza econômica existente por parte das indústrias química efarmacêutica.Por fim, discorda do fundamento básico viabilizador da clonagem terapêutica, oportunidade em que critica, sob o ponto de vista ético e jurídico, o entendimentomanifestado por outros países no tocante à formação do embrião humano, cuja interpretação fere diametralmente os direitos basilares consagrados pela Constituiçãobrasileira.

PALAVRAS-CHAVECódigo de bioética; clonagem terapêutica; embrião humano; Direito das Sucessões; Direito de Família; princípio da dignidade da pessoa humana.

___________________________________________________________________________________________________* Conferência proferida no Seminário Internacional Clonagem Humana: Questões Jurídicas. Texto sem revisão do autor.

Atemática de um determinado as-pecto da bioética ou das mani-pulações biológicas – exata-

mente a temática da clonagem – rece-be uma abordagem multidisciplinarparticularmente centrada nas perspec-tivas científica, ética e jurídica.

O que é clonagem? Sempre quetratar de clonagem, estarei pretenden-do significar a criação pela ciência devida genomicamente homogênea, queé o cerne, o conteúdo da idéia declonagem. Podemos até estabeleceralguns grandes marcos em que ela foiadquirindo a importância e o relevo quetem hoje.

Na década de 1970, acontece-ram duas grandes revoluções científi-cas. Em primeiro lugar, desenvolveu-se o embrião fora do aparelho repro-dutor feminino com todas as conse-qüências que daí advêm para a ciên-cia, o Direito, a ética, a moral etc., masfoi algo profundamente revolucionário.Pela primeira vez, com a utilização dosinsumos masculino e feminino, produ-ziu-se vida, mas esta foi obtida, real-mente partejada, fora do aparelhoreprodutor feminino. Em segundo lugar,aconteceu outra novidade: a da possi-bilidade – por enquanto ainda deimprevisível fim – de prolongamentoextraordinário dessa vida mediantetécnicas de congelamento.

Em 1997, “caiu um verdadeirometeorito na cabeça de todos nós”quando os cientistas criaram a ovelhaDolly. Isso até então era mera especu-lação científica ou literária, porque, naverdade, a literatura já se tinha preocu-pado muito com as possibilidades dacriação artificial de vida, e de repentese obtinha uma concretização: surgiuuma ovelha clonada.

Não bastasse tudo isso, em1998, seja nos Estados Unidos ou naEuropa, a partir de células-tronco, oscientistas criaram organismo vivo parafins regenerativos.

Nessas duas linhas, 1997 e 1998,estão as duas grandes divisões em quea clonagem é entendida: reprodutivade um lado e terapêutica de outro. Co-meçou-se a fazer a fertilização in vitro,fora do organismo, há pouco mais detrinta anos, e a clonagem e o experi-mento científico com células-troncopara produzir tecidos regenerativos, hámenos de dez anos. Portanto, são fatosde ontem a nos inquietar, aos quais te-mos procurado dar várias respostas.

Segundo a Profa. Suely GandolfiDallari: criou-se toda uma especulação,uma preocupação de natureza filosófi-ca, ética sobre o assunto, deixando oshomens em geral um tanto quanto inse-guros. Partiu-se também para aregulação jurídica desses fenômenos,que, entretanto, não se revela aindamoldada suficientemente para nos dartranqüilidade. Um exemplo típico: aFrança, em 1984, produziu o seu pri-meiro Código de Bioética e, no final dadécada de 1990, caminhou furiosamen-te no sentido de admitir a clonagemterapêutica. O parlamento europeu, em1998, baixou uma resolução pela qualvetava a clonagem terapêutica. O go-verno Leonel Jospin, que tinha todo umcompromisso para admitir a clonagemterapêutica, já não podia fazê-lo e anun-ciou, para o início de 2002, um novotexto legal em que ela virá a ser proibi-da. Por que ele jogou para 2002 e nãopara 2001? Porque, nesse meio tem-po, a França, consultando toda a co-munidade européia, com influxo dadoutrina e pesquisa norte-americanas,

tentará descobrir se é possível contor-nar os vetos que hoje se fazem tam-bém à chamada “clonagem terapêuti-ca”.

Percebem-se nitidamente doisgrandes universos, os quais se encon-tram em uma profunda tensão dialética:de um lado, exige-se o universo do di-reito à livre iniciativa e aos progressosda ciência e, do outro, o direito da pes-soa humana a resistir, a opor-se às ma-nipulações do ser humano. São essesos dois tópicos extremados que estãoem jogo no grande problema daclonagem, com um outro dado, inseri-do de maneira poderosa não só naclonagem reprodutiva como tambémna terapêutica: o interesse econômico.Como já afirmado pela OrganizaçãoMundial da Propriedade Industrial, asindústrias farmacêutica e química pre-vêem que, nos primeiros trinta anosdeste novo século, 25% do seu fatu-ramento sairá exatamente das grandespesquisas e inventos que daí surgirãoem clonagem, seja terapêutica ou ci-entífica. Então, há um imenso interessetambém econômico em permear todaa temática da clonagem, e é essa agrande dificuldade que temos pelafrente, para a qual devemos procurardar resposta.

Para o homem do Direito, as res-postas devem por comodidade serbuscadas na lei, mas, às vezes, não sóa lei não dá a resposta adequada comotambém não é o momento oportuno deproduzi-la. Porém, os tribunais são cha-mados a decidir e devem ter um mate-rial básico para o qual irão lançar to-das as suas reflexões na busca de umadecisão. Aos juízes, como seres solitá-rios, absolutamente desamparados porvezes, dependendo da temática que

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têm de enfrentar, não é dado sequer obenefício de dizer que estão com medoou não sabem decidir; eles têm de de-cidir. Então, o que fazer nesse dramapor vezes ominoso e sempre solitário?Terão de buscar a meditação funda-mental na Constituição, nos princípiosconstitucionais.

Na clonagem reprodutiva, acon-tece basicamente o recolhimento decélulas embrionárias. Mediante o tra-balho da ciência em cima desse nú-cleo celular masculino – infértil, inca-paz, portanto, de procriar –, chega-seà produção devida, ou seja, atende-seàquele propósito de procriação, muitopróprio da psique humana e que estádentro de suas aspirações.

Na chamada “clonagem repro-dutiva”, temos um outro fenômeno tal-vez extremamente inquietante e, decerta maneira, revolucionário, a criaçãode vida sem a participação feminina.Trata-se de um mundo novo, que cria-rá, realmente, indicações causadorasde profundo espanto e perplexidade,que existem para a nossa discussão.

Nos Estados Unidos, não háqualquer vedação a qualquer tipo declonagem, seja reprodutiva ou terapêu-tica, sendo que a reprodutiva é consi-derada apenas como um dos meios deprocriação assistida, ao lado da fertili-zação in vitro e das técnicas deinseminação artificial. Então, há umapostura da Ciência e do Direito ameri-cano francamente favoráveis não ape-nas à pesquisa terapêutica – o Gover-no Bush já se manifestou, por mais deuma vez, comprometido com a libera-ção da pesquisa embrionária maisampla possível –, como no campo daterapia, passando a ser tão-somenteuma das formas de se chegar à repro-dução e à realização que as pessoastêm, dentro da cabeça, como algoindeclinável: o de perpetuação da suaespécie.

Na verdade, nessa busca, há umoutro tema, uma outra tensão, que tam-bém merece exame. Na chamada “re-produção” em que há a participaçãodos dois gêneros, masculino e femini-no, pela simbiose do material genéticoque deles advém, existe, pelo menosem tese, uma certa imprevisibilidadeou aleatoriedade genômica: o filho éfruto exatamente de pai e mãe. Naclonagem reprodutiva, o filho é fruto dematerial genético, única e exclusiva-mente, masculino; portanto, ele é alvode uma predeterminação, que, do ou-tro lado, contra a imprevisibilidade oua aleatoriedade, tem trazido tal inquie-tação aos juristas e filósofos, e, hoje emdia, já se começa a construir, sobretu-do na Europa, a idéia de um direito à

imprevisibilidade genética, como sen-do um dos dados componentes dapersonalidade humana, ou seja, essapredeterminação esvaziaria alguns di-reitos fundamentais do ser humano.Veremos alguns desses riscos que apredeterminação, a clonagem repro-dutiva, traz, sendo, na verdade, cam-pos de profunda indagação.

Em primeiro lugar, há umatemática de riscos médicos – entra oprincípio da precaução e o princípioda prudência. Na verdade, a clonagemreprodutiva ainda é uma técnica muitocomplexa, embrionária e em desenvol-vimento, cujos horizontes finais aindanão são divisados com muita nitidez,pelo menos no campo da clonagemhumana.

No campo da clonagem animale vegetal, a clonagem reprodutiva ésimples, porque se quer produzir umanimal bastante produtivo ou um ve-getal que seja capaz de dar muito re-torno. Não há outros tipos de preocu-pação, que, entretanto, são absoluta-mente inafastáveis no campo daclonagem reprodutiva humana.

Os riscos médicos da clonagemreprodutiva humana ainda merecem umdimensionamento que não existe, ouseja, problemas e riscos psicológicos,tanto do lado paterno quanto do ladodo filho. Do lado paterno, dado que meparece ser importante, temos, em pri-meiro lugar, o narcisismo como um ele-mento componente: “Eu quero um filhoque seja parecido comigo ou que tenhadeterminadas características. Conside-ro-me o umbigo do mundo e quero umfilho que seja o meu perfil, a minha repe-tição” – trata-se de uma forma acentua-da de narcisismo; em segundo lugar,existe o simples incentivo, ainda quesubreptício ou, quem sabe, subliminar,que são as grandes fantasias, como ada imortalidade: “Se sou capaz de ge-rar tantos seres quanto eu queira, a par-tir do meu material, sou praticamenteimortal, porque sempre estarei sendorepetido no curso do tempo”. Tal fanta-sia é absolutamente danosa, porque,apesar de tudo, o homem não é imortal,por mais revoltado que possa ser quan-to a essa realidade.

Do lado do filho, também existeo problema da determinação. A não serque se esconda – o que não é juridica-mente válido – a natureza de filiação porfruto de clonagem, na verdade, o filhosabe que ele não foi, de maneira algu-ma, o fruto de uma criação humana, masde uma vontade dirigida. Ele não temalternativa, sendo aquilo determinadopelo próprio material genético utilizadono processo de clonagem, o que cria,por último, riscos jurídicos enormes,como este exemplo, que basta paratudo: o fruto de uma clonagem de serhumano é filho ou irmão do pai? O pai épai ou, na verdade, é irmão? Ele é umaréplica e, assim sendo, sem qualquerinterferência de material reprodutivo fe-minino, é um desdobramento daquelapersonalidade da qual foi retirado omaterial genômico inicial.

Saber se alguém é filho ou irmãotem conseqüências, inclusive, no Direi-to das Sucessões e no Direito de Famí-lia, e há uma temática jurídica muitoséria, a qual está a fazer com que, emcaráter majoritário, na Europa, atual-mente, diga-se que a clonagem repro-dutiva, na verdade, configura um gra-ve atentado aos direitos fundamentaisdo homem, tal como lançados desde aCarta de 1945 e daí por diante. Este é oestágio atual do problema da temáticareprodutiva nessas diversas fórmulas.

Como se enfrenta isso juridica-mente? Há diversos tipos de diplomas.Fiz referência ao Direito americano, emque há ausência absoluta de vedação.Na legislação brasileira de biosse-gurança e biodiversidade, existe a proi-

(...) chegaram a umaconclusão a respeito daqual tenho as maioresdúvidas (...) a de que oembrião humano, até odécimo quarto dia, nãoformou a cintura neuralou o sistema nervoso;conseqüentemente –isso é algo que até hojenão conseguicompreender – não setem ainda o homem, oque se tem é um “pré-homem” que não éválido ética oujuridicamente, para quemanifeste preocupaçãosobre o seu futuro ouseu destino.

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bição à clonagem humana, seja parafins reprodutivos, seja para fins terapêu-ticos.

No campo de Direito Internacio-nal, há dois tipos de diplomas: as reco-mendações internacionais, as quais,como o próprio nome diz, são despi-das, em princípio, de caráter vincula-tivo, e as resoluções ou convenções,que possuem um poder vinculativopara as partes que integram o segmen-to aos quais elas se dirigem.

No particular, a Unesco, em1997, baixou uma Declaração daBioética, em que, no art. 11, consta aprescrição de que é proibida toda equalquer clonagem humana. Mas ain-da estamos no campo das recomen-dações e não no das resoluções. Nes-se mesmo ano, no mês de abril, o pre-sidente da Organização Mundial daSaúde emitiu uma declaração em ra-zão da qual esta organização, sobretu-do pelo aspecto do princípio da pru-dência, contra-indicava radicalmentetodos os experimentos de clonagemhumana. Então, em 1998, o parlamen-to europeu baixou, primeiramente emjaneiro e, depois, em junho, dois proto-colos nos quais a clonagem humana,para qualquer fim, é absolutamentevedada e proibida. Concluímos que, noDireito comparado, no momento, aspreocupações sobrelevam, de muito,os eventuais benefícios que a clona-gem reprodutiva possa acarretar.

Na clonagem regenerativa, cien-tificamente o processo é diferente. Nelautiliza-se material genético masculino eóvulo feminino, fora do organismo damulher, e cria-se o embrião, o qual, porsua vez, produz, na verdade, um materi-al utilizado amplamente em pesquisas,sobretudo tendo em vista a cura ou arecuperação das chamadas “doençasdegenerativas”. A clonagem terapêuti-ca surge como um poderoso veículo deregeneração do organismo humano, aqual possui a impressão digital, o seloda identidade de material, nãoensejando, por conseguinte, qualquertipo de preocupação quanto à rejeiçãoou coisas do tipo, que são extremamen-te preocupantes no campo de toda equalquer técnica de transplante ou utili-zação de organismos humanos.

Os interesses que se põem sãoos de natureza ética, de natureza eco-nômica, poderosíssimos, de naturezajurídica e alguns de natureza humana,que são muito ponderáveis.

De um lado, exigem solidarieda-de para com os enfermos. Os sereshumanos querem que as doenças aca-bem, além de maiores possibilidadesde serem encartados na sociedadecomo elementos ativos e produtivos.

Do outro lado, o que existe é aclonagem terapêutica: utilizo o materialmasculino – não há problema maior nacoleta desse material – e o materialreprodutivo feminino – o óvulo feminino–, que é material extremamente raro eque não pode ser estocado, nem com-prado em supermercado. Surge um pri-meiro problema muito importante: nabusca dos óvulos femininos, por certo,as nações desenvolvidas tenderão afazê-lo nos países e mulheres pobres,porque eles são sempre os campos deexperimentação para as nações afluen-tes ou as que já emergiram de há muito.Portanto, o patrimônio genético dospaíses subdesenvolvidos está em riscocom os experimentos cada vez maisavançados de clonagem terapêutica.

O fundamento básico da clo-nagem terapêutica é baseado no fa-moso Report Wornok, do Reino Unido,de 1977. O Secretário de Saúde da Grã-Bretanha, de sobrenome Wornok, fezum grande painel; durante meses osingleses se reuniram, com as presen-ças das ciências européia e norte-ame-ricana, e chegaram a uma conclusão arespeito da qual tenho as maiores dú-vidas – se tivesse apenas as menores,no particular, já não aceitaria as con-clusões do Comitê Worwell –, a de queo embrião humano, até o décimo quar-to dia, não formou a cintura neural ou osistema nervoso; conseqüentemente –isso é algo que até hoje não conseguicompreender – não se tem ainda o ho-mem, o que se tem é um “pré-homem”que não é válido ética ou juridicamen-te, para que manifeste preocupaçãosobre o seu futuro ou seu destino. Sepegar o embrião com menos de qua-torze dias, poderei acabar com a vidadele, tirar dele o tecido ou o órgão quequiser, sem que isso tenha importân-cia pois, nesse estágio, o embrião éconsiderado um “pré-homem”.

Não consegui até hoje – há umproblema de vício de lógica formal cer-tamente – aceitar que, surgindo a cria-ção de um embrião da junção de ma-terial genético masculino com materialgenético feminino, ele não seja nemmasculino nem feminino, mas que sejaum “pré-homem” e, conseqüentemen-te, não tenha direito a um estatuto dedireitos e a um estatuto de reconheci-mento, que, portanto, seja só um mate-rial científico em que se possa passar obisturi no meio e tirar o tecido ou o seg-mento que se quiser e fazer os experi-mentos que se quiser, ainda que embenefício da sociedade ou de um do-ente. Não consegui ainda aceitar essetipo de raciocínio e já nem falo na pro-jeção mais aterrorizante, que seria for-mar esse embrião, deixá-lo crescer um

pouco, guardá-lo no meu armário demesmo material genético para quepossa tirar dele um dedo, um pescoço,um fígado ou um pulmão mais adiante,quando precisar de um transplante. Naverdade, a partir do momento em queadmitir que o embrião humano podeser material disponível, não faltarãoaqueles que dirão: “Crio, portanto, oembrião e, antes do décimo quarto dia,tiro-lhe toda e qualquer possibilidadede enervamento; ele nunca desenvol-verá um cérebro, nunca terá sensaçõese, portanto, será considerado apenasmaterial, que guardarei na minha gela-deira para utilizá-lo quando precisar dealgum transplante ou alguma regene-ração”. É essa visão de pesadelo quenão posso de maneira alguma aceitar.

Esse informe Wornok é uma gran-de balela da ciência. Recentemente,veiculou-se a notícia de que, na Fran-ça, havia sido desenvolvido um novomaterial genético para clonagensregenerativas. Durante um ano, os ci-entistas franceses, assistidos por cien-tistas americanos, haviam pesquisadocélulas-tronco de ratos e chegado àconclusão de que eles tinham condi-ções científicas – somente com os ra-tos por enquanto – de formar um em-brião que, entretanto, não teria condi-ção alguma de desenvolver-se parachegar a ser um rato conformado, umfilhote de rato. Diziam eles: “Está aí asolução dos problemas éticos que ohomem coloca. Vamos, a partir de ago-ra, começar uma pesquisa a respeitoda terapia regenerativa, ou seja, criarembriões humanos que sejam incapa-zes de se desenvolverem a ponto dechegarem à formação de um ser hu-mano”. Trata-se de apenas de mudar ofoco do pesadelo, que continua a ser omesmo. O que não podemos é, demaneira alguma, condescender comessas fantasias da ciência porque, ir-responsavelmente adubadas, levam atodos os horrores que a humanidade jáconheceu.

Digamos ao nosso cientista:"Pesquise, sim, mas dentro da ciênciae não mexa na gente. Fruto de materialgenético masculino e feminino é serhumano e, como tal, merece toda pro-teção como ser humano".

A nossa Constituição dá mar-gens muito nítidas no particular. O pre-âmbulo da Constituição, por exemplo,é, na verdade, uma carta de princípios.É uma carta de valores. Diz para queexistimos. Aparecem, dentro de váriosvalores consagrados, o da liberdade,o da dignidade e o da segurança, quesão absolutamente inarredáveis.

Quando pego um embrião hu-mano e digo: “Acabou, você agora é

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material genético para mim”, não lheestou dando liberdade, nem seguran-ça, não estou respeitando a dignidadede algo que é humano na sua própriaorigem. O preâmbulo já traduz, portan-to, uma poderosa amarra contrária aesse tipo de criação. Não bastasse, oart. 5º da nossa Constituição, no seucaput, garante o direito à vida, e nãoapenas o direito ao nascimento. Por-tanto, a vida é sempre uma preocupa-ção, e todo material vivo merece a tu-tela jurídica. Não há, portanto, comosuplantar essa garantia para chegar-mos a essa modalidade de clonagemterapêutica. O art. 226 vai mais longe,quando cuida da infância, da prole edispõe que o ser humano tem direitoao seu desenvolvimento harmônico. Seretalho um embrião, não promovo de-senvolvimento algum. Ainda na Cons-tituição, o art. 1º, inc. III, ressalva comoum dos princípios basilares da Repú-blica Federativa Brasileira a dignidadeda pessoa humana. Como salvaguar-dá-la quando se transforma o tecidohumano em mero material para pes-quisa médica ou para futuras manipu-lações? O art. 227 repete que a digni-dade da vida humana é um valorindeclinável do Direito brasileiro.

Tem-se realmente uma questãoinquietante, sobre a qual o Poder Judi-ciário será chamado muitas vezes adecidir para dirimir controvérsias. A le-gislação atual proíbe a clonagem hu-mana para todo e qualquer fim, no en-tanto, há a pressão das poderosíssimasindústrias farmacêutica, de medica-mentos e de patentes que estão pro-fundamente interessadas em reverteresse panorama. Há que se reagir damaneira mais sensata que o jurista pos-sui, dizendo: “Alto lá”!

Não se muda a lei se a Consti-tuição veda tal modificação, se os prin-cípios constitucionais a impedem. Paraque sejam transformados os princípiosconstitucionais, é necessário que sefaça uma revolução, crie um novo país,promulgue uma nova Carta, promovaa criação da República de GeorgeOrwell, porque, nesta, tudo isso serápossível; na nossa, não o é, e assimdesejo que continue para sempre.

Sérgio Ferraz é Professor e Advogado noEstado do Rio de Janeiro /RJ.

ABSTRACT

The author describes the guiding marksof the evolution within the science of Genetics,which culminated with the ewe Dolly’s birth.

He comments about the several kindsof cloning, making considerations about theprobable psychological hazards and juridicalconsequences coming from the creation of aclone, as well as its implications in the scope ofSuccession Law and Family Law.

He still stresses that the theme inherentto the cloning is permeated by great interest ofeconomic nature existing in the chemical andpharmaceutical industries.

Finally, he disagrees from the basicsupport which becomes possible thetherapeutic cloning. In this opportunity, hecriticizes, under the ethic and juridical viewpoint,the understanding shown by other countriesrelated to the formation of the human embryo,whose interpretation injures entirely all essentialrights consecrated by the Brazilian Constitution.

KEYWORDS – – – – – Bioethic code;therapeutic cloning; human embryo;Succession Law; Family Law; principle of thehuman person's dignity.