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Mídia sobre aborto no Brasil: análise da comunicação online no discurso de ONGs feministas e da grande imprensa na perspectiva do Direito

Celso Galli CoimbraBacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (UFRGS); advogado; fundador do site Biodireito-medicina,

Porto Alegre (RS)[email protected]; [email protected]

Cláudia Viviane ViegasJornalista; mestre em Administração (UFRGS), doutoranda em Engenharia e Gestão do Conhecimento

(UFSC), Florianópolis/SC; professora do Centro Universitário Feevale, Novo Hamburgo (RS)[email protected]

Grupo de trabalho: Mídia DigitalCoordenador: Dr. Walter Lima

[email protected]

Resumo:

O debate sobre aborto, via de regra polêmico, tem polarizado ainda mais atenções em vários setores da mídia brasileira, nos últimos meses, face à proposição de projetos de lei visando à descriminalização desta prática. Considerado crime segundo o Código Penal brasileiro, mesmo em situações de exceção – risco de vida à futura mãe e estupro, casos em que é admitido mas não descriminalizado –, o aborto é objeto de discursos cujos argumentos não se auto-sustentam na perspectiva de uma análise técnica, envolvendo questões de Direito nacional e internacional. O presente artigo propõe a análise de discursos acerca do aborto, em periódicos de ONGs feministas brasileiras e em noticiários da grande imprensa nacional, em formato online. Tal análise baseia-se em referencial teórico da Análise do Discurso (AD) a partir de uma releitura da obra de Michel Pêcheux por Denise Maldidier. São tomadas categorias de AD, aplicadas aos textos dos periódicos online. O resultado desta primeira análise é confrontado com questões objetivas de Direito sobre o assunto, listadas a partir de uma revisão de trabalhos acadêmicos. Como resultado final, são apresentadas análises que consideram o nível de congruência entre discurso midiático e discurso jurídico sobre o tema, confronto do qual deriva o questionamento acerca da liberdade de discurso versus qualidade e veracidade de informação nesta área.

Palavras-chave: mídia online; aborto; Análise do Discurso; Direito.

Abstract:

Discussion related abortion, usually polemic, has polarized attention in several segments of Brazilian media, in last months, because of bill aiming to dismiss criminal feature of this practice. As a crime, according Brazilian Penal Code, even in exception situation – life risk to future mother and rape, cases in which is allowed but not discharged –, abortion is a discourse’s subject whose arguments can not support themselves from the point of view of

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a technical analysis, involving national and international Law. This article proposes discourse analysis concerning abortion, in Brazilian feminist NGO media, and in Brazilian mass media press, both online. Such analysis is well founded on Discourse Analysis (DA) from a reading of Michel Pêcheux theory by Denise Maldidier. Categories of DA are applied to online texts. Results from this firsts analysis are dealt with Law objective issues, chosen from an academic bibliographic review. As final result, analysis are presented which take in account agreement between discourses from media and from Law related to abortion. From this dealing, some questions arise about discourse freedom versus information quality and reliability in this field.

1 Introdução: debate recente sobre aborto no Brasil na perspectiva do Direito e

na abordagem da mídia

A discussão acerca da descriminalização do aborto voltou com força ao noticiário

brasileiro a partir do segundo trimestre de 2005, quando passou a ser divulgado o “(...)

anteprojeto elaborado pela comissão tripartite montada em abril pelo governo federal para

discutir a revisão da legislação punitiva do aborto” (COLUCCI, 2005 a). O assunto ganhou

destaque nos últimos meses do ano, com a tentativa de colocar o projeto em pauta na

Câmara dos Deputados. Existem várias proposições parlamentares com este mesmo

objetivo, mas a mais polêmica é o projeto de Lei nº 1.135/91, de autoria dos ex-deputados

Eduardo Jorge e Sandra Starling, cuja atual relatora é a deputada federal Jandira Feghali

(PC do B/RJ). Tal documento prevê a liberalização do aborto sem que a gestante apresente

qualquer justificativa.

Segundo Coimbra (2006 a), o aborto é considerado crime no Brasil, de acordo com

ao artigos 124 a 128 do Código Penal1, os quais excetuam a punibilidade, não a tipicidade,

de tal prática somente em casos de estupro e risco de vida à gestante. Além disto, “a

legislação brasileira garante todos os direitos do nascituro desde a concepção, o que é

expresso pelo Código Civil – no seu artigo 2º.” (COIMBRA, 2006 a). O direito à vida

1 O Código Penal (Decreto-lei 2.848, de 07/12/1940) pune o aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (art. 124), o aborto provocado por terceiro (art. 125), o aborto provocado com o consentimento da gestante (art. 126), e prevê formas qualificadas em caso de superveniência de lesões graves ou morte da gestante (art. 127). Por outro lado, apresenta causas de exclusão da punibilidade, no art. 128, expressando não ser punível o aborto praticado por médico: “(...) II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”, além, é claro, daquele autorizado para salvar a vida da gestante (inc. I).

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humana é protegido também pelo artigo 5º da Constituição Federal como direito

fundamental imutável até mesmo por emendas constitucionais ou leis ordinárias.

O artigo 2º do Código Civil brasileiro deixa claro que o nascituro tem direito à vida

desde a concepção, sendo esta, conforme Barbosa (2001, apud COIMBRA, 2006 a),

entendida como o momento “(...) em que se inicia a fecundação, e o embrião ou pré-

embrião existe, com uma carga genética própria, desenvolvendo-se a partir daí, até a

cessação da vida bio-psíquica-jurídica, a morte”. Embora não caiba ao Direito a definição

do conceito de vida mas sim a sua proteção, o mesmo ampara-se em estudos da

Embriologia, os quais definem a concepção como marco do início da vida humana

individualizada. Pode-se mencionar entre esses estudos o da professora livre-docente Alice

Teixeira Ferreira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que esclarece a

indivisibilidade do ser humano desde sua fase de ovo (zigoto) até adulto:Em 1839, Schleiden e Schwan, ao formularem a Teoria Celular, foram responsáveis por grandes avanços da Embriologia. Conforme tal conceito, o corpo é composto por células, o que leva à compreensão de que o embrião se forma a partir de uma ÚNICA célula, o zigoto, que por muitas divisões celulares forma os tecidos e órgãos de todo ser vivo, em particular o humano (TEIXEIRA, 2005).

Ainda segundo a pesquisadora:

Em 2002, na revista Nature, Helen Pearson relata os experimentos de R.Gardener e Magdalena Zernicka-Goetz, onde demonstram que o nosso destino está determinado no primeiro dia, no momento da concepção. Mais recentemente, também na Nature (2005), Y. Sasai descreve os fatores/proteínas que controlam o desenvolvimento do embrião a partir da concepção, descobertos por Dupont e colaboradores (TEIXEIRA, 2005).

O Direito brasileiro, baseado na Embriologia e no princípio de dignidade da pessoa

humana, assegurado pela Constituição de 1988, considera que “o mais importante direito do

nascituro é o direito à vida, pois todos os demais direitos inexistirão sem garantia da

preservação da sua vida” (COIMBRA, 2006 a). Assim, a vida humana é protegida

constitucionalmente desde seu estágio intra-uterino, e o nascituro é sujeito individual de

direitos desde a concepção (art. 2º. Código Civil).

A veiculação de notícias sobre a discussão relativa à descriminalização do aborto no

Brasil, em geral, caracteriza-se, na grande mídia online, por um caráter informativo e

opinativo de pouca profundidade, que possibilita, quando muito, uma estrutura de ponto e

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contraponto entre indivíduos pró e contra o aborto – autoridades representativas dos

respectivos segmentos. Não se dedica espaço ao alargamento das noções do Direito,

especialmente do Direito Constitucional, as quais são fundamentais para a compreensão

contextualizada da polêmica. Deixa-se de apresentar informações relevantes sobre aspectos

técnico-jurídicos da tramitação das iniciativas voltadas à descriminalização do aborto. Um

exemplo é a não divulgação de que o substitutivo do projeto de lei 1.135/91, da deputada

Jandira Feghali, tem por objetivo suprimir os artigos 124 e 126 a 128 do Código Penal, com

o que seria legalizada a interrupção da gravidez em qualquer estágio, e não até a 12ª

semana, como consta na parte inicial do texto do mesmo substitutivo. A questão, neste

caso, é que a supressão dos artigos está mencionada quase no final do texto do projeto, o

que passou sem registro pela grande imprensa, inclusive online. Tal observação foi

denunciada por Harada (CATOLICISMO, 2006) e reiterada por Coimbra (2006 b).

Conforme Harada:“O Projeto Matar e o Projeto Tamar: o Aborto” eu o escrevi, para mostrar como é contraditório esse mundo em que vivemos. O Projeto Tamar (tartarugas marinhas), desde 1980, protege a vida das tartarugas marinhas. A cada temporada são protegidos cerca de 14.000 ninhos e 650.000 filhotes. Se alguém destruir um único ovo de tartaruga, comete crime contra a fauna, espécie de crime contra o meio ambiente (Lei nº 9.605/98). Na Câmara dos Deputados, tramita o substitutivo ao Projeto nº 1.135/91, que pretende legalizar o aborto do nascituro até instantes antes do nascimento. Isso é assim, em face da pretendida revogação dos artigos 124, 126, 127 e 128 do Código Penal, ou seja, estamos diante de um verdadeiro “Projeto Matar”. (CATOLICISMO, 2006).

No âmbito dos sites feministas, observa-se a utilização de expressões que denotam

não observância ou ignorância do enquadramento criminal do aborto no Brasil, como

“aborto legal”, e a recorrente tentativa de justificação da descriminalização do aborto sob a

alegação do “princípio da dignidade”, do “direito ao próprio corpo” e dos “direitos

reprodutivos”.

No que diz respeito ao termo “aborto legal”, juridicamente, ele está em desacordo

não apenas com a legislação penal, mas com o princípio da inviolabilidade da vida desde a

concepção, o qual está presente também no artigo 4º, inciso I do Pacto de San José da Costa

Rica2, do qual o Brasil é signatário desde 1992 e, desde então, passou a integrar o catálogo 2 O Pacto de San José da Costa Rica é um tratado do sistema interamericano de Direitos Humanos. Reconhece e assegura um catálogo de direitos civis, políticos e humanos que se acrescentam à legislação dos países

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dos direitos fundamentais da Constituição Federal brasileira por constar em tratado

internacional de direitos humanos firmado pelo governo brasileiro (COIMBRA, 2006 a).

Quanto ao “direito ao próprio corpo” da mulher, linearmente associado por essa

mídia ao “princípio da dignidade” como justificativa de defesa do aborto, a hermenêutica

jurídica o relativiza porque, neste caso, está em questão a garantia de um outro direito que

se superpõe: o da vida do nascituro, que é protegida constitucionalmente. Assim:O enfoque da proteção exclusiva da vida da mãe, e excludente da vida do nascituro, não se admite em nosso Direito. Pois se assim não fosse, estaríamos também diante de uma violação ao princípio constitucional de igualdade entre seres humanos, que têm o mesmo direito à vida (COIMBRA, 2006 a).

Já no que diz respeito a “direitos reprodutivos”, a mídia feminista online costuma

associá-los aos resultados de agendas de encontros como a Conferência Internacional sobre

População e Desenvolvimento, ocorrida no Cairo (1994), e à IV Conferência Mundial sobre

a Mulher, realizada em Pequim (1995)3. Contudo, os documentos resultantes desses eventos

não associam direito reprodutivo a aborto, a não ser em casos em que esta prática é

permitida por lei interna de um país. Segundo Coimbra (2006 a), a Conferência do Cairo

“(...) insiste na necessidade do reconhecimento do direito ao planejamento familiar sempre

‘em respeito à lei’, expressão mencionada em vários de seus trechos, disponível no site da

ONU, e na necessidade de valorização da família como base da sociedade”. E a

Conferência de Pequim “(...) reafirma que ‘o direito de todas as mulheres a controlar todos

os aspectos de saúde, especialmente sua própria fecundidade, são básicos para a

potencialização de seu papel”. Ou seja: “Nada há que se refira ao abortamento. A

insistência em invocar essas agendas como sugestivas do abortamento é improcedente”

(COIMBRA, 2006 a). Soares (2003, p. 400), referindo-se aos resultados da Conferência do

Cairo, destaca que “os países signatários desta conferência se comprometeram a garantir

assistência ao abortamento nos casos previstos em lei (...)”.

signatários, os quais assumem o compromisso de cumpri-los dentro de suas jurisdições territoriais. Foi firmado em 1969 e entrou em vigor em 1978, mas o Brasil passou a ser signatário desse documento somente em 1992. No artigo 4º, I do Pacto de San José da Costa Rica, é assegurado o direito à vida desde a concepção.3A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em outubro de 1994, e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher: Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz, realizada em Pequim, em setembro de 1995, tratam, respectivamente, do planejamento familiar, dentro dos trâmites permitidos pela legislação de cada país, e do controle da saúde da mulher, especialmente da fecundidade.

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Diante destas considerações, o presente artigo trata de analisar o discurso recente

sobre aborto no Brasil por parte da grande mídia e da mídia feminista, ambas em formato

online. Tal análise será baseada em referenciais da Análise do Discurso de Michel Pêcheux,

sendo as categorias de análise discursiva relacionadas a algumas das premissas jurídicas já

apresentadas nesta introdução.

2 Análise do Discurso sob a ótica de Pêcheux: categorias da AD e aproximação

da abordagem jurídica sobre aborto no Brasil

A obra de Michel Pêcheux (1938-1983) é marcada pela riqueza interdisciplinar que

abarcou ao longo de sua construção. Passa pela Lingüística de Saussure, pela consideração

da possibilidade do discurso como algo automático, incorporando avanços da Cibernética

dos anos 40 e 50, e pela associação entre ideologia e psicanálise, na tentativa de trazer o

discurso do âmbito da língua, como estatuto científico, para a história do sujeito, como

subordinado aos eventos históricos e fatos sociais.

No presente artigo, não se pretende esgotar a trajetória pela qual Pêcheux construiu

o que atualmente são consideradas categorias discursivas cunhadas e/ou influenciadas pelo

seu trabalho, mas apresentar um panorama que possibilite identificar e caracterizar algumas

dessas categorias, consideradas relevantes para a análise do discurso presente em textos

online da grande mídia e da mídia feminista, especificamente com respeito à recente

discussão sobre a descriminalização do aborto no Brasil.

Segundo Maldidier (2003), que propõe a releitura da obra de Pêcheux, a primeira

fase de seu trabalho (1969-1975) caracteriza-se como a busca por um instrumento

automático, informatizado, que dê conta da análise de discursos segundo uma lógica

totalmente descolada da subjetividade. Pêcheux trabalha, então, concentrado nos conceitos

de “língua” e “fala” de Saussure, e trata de diferenciar discurso de texto. Assim, (...) o discurso deve ser tomado como um conceito que não se confunde nem com o discurso empírico sustentado por um sujeito nem com o texto, um conceito que estoura qualquer concepção comunicacional da linguagem (MALDIDIER, 2003, p.21).

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Posteriormente, na concepção do discurso como algo exterior ao sujeito, Pêcheux

desenvolve a noção de “condições de produção”, que reforça a idéia anterior, de que um

discurso não pode ser analisado como um texto, pois ele não é unicamente uma letra morta,

mas fruto de situações concretas, dentro de um período histórico, em um jogo de interesses

que o fizeram aflorar.

À medida que evoluem seus estudos, sob interação da teoria lingüística de Culioli,

no início dos anos 70, Pêcheux elabora a idéia de “formações discursivas” que estariam

submetidas a determinações não-lingüísticas. Conforme Maldidier (2003), surgem as

noções de “interdiscurso” como algo não-dito mas implícito na enunciação, e a “teoria dos

dois esquecimentos”, retomada depois, na obra “Semântica e Discurso”.

O “primeiro esquecimento” corresponde ao o assujeitamento ideológico,

inconsciente, pelo qual o sujeito pensa ser ele mesmo a fonte de sentido, não percebendo

que a formação de sentido é exterior, influenciada por questões de natureza histórico-

ideológica. E o “segundo esquecimento” refere-se ao assujeitamento pelo pré-consciente,

aquele em que o sujeito constitui seus enunciados entre o dito e o não-dito (interdiscurso).

A semântica passa a ser concebida como o ponto de relação entre filosofia e ciência das

formações sociais. “Sentido e sujeito são produzidos na história, em outras palavras, eles

são determinados” (MALDIDIER, 2003, p. 51).

Sob a influência de Louis Althusser, que aproximou ideologia e psicanálise,

Pêcheux referencia a noção de “pré-construído” que, segundo Maldidier, fornece a

ancoragem lingüística da tomada do interdiscurso. A acepção do pré-construído remonta,

no contexto discursivo, a algo “que já estava lá”, antes mesmo da enunciação. Seria, numa

analogia com a dicotomia língua/fala de Saussure, aquilo que estava presente antes de o

sujeito enunciar, ou seja, a língua em si, as condições de possibilidade de uso da linguagem,

em contraposição à fala enquanto efetividade desse uso, enquanto recorte da língua, numa

situação real. Teoricamente, a noção do pré-construído diz respeito ao fato de que “(...)

certas construções autorizadas pela sintaxe das línguas ‘pressupõem’ a existência de um

referente, independentemente da asserção de um sujeito” (MALDIDIER, 2003, p. 35).

Além dessas relações entre “interdiscurso” e “pré-construído”, Pêcheux trabalha

com as noções de “heterogeneidade” e “intradiscurso”. A “heterogeneidade” é alusiva à

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intrincação de formações discursivas nas formações ideológicas, onde aparecem as

contradições do discurso. Trata-se da noção de que os discursos se produzem

diferentemente a partir do mesmo, ou de que se podem designar coisas diferentes com as

mesmas palavras ou expressões – tudo depende da noção ideológica, da maneira como o

discurso organiza, em seu interior, a ideologia dominante. Já o “intradiscurso” é definido

como o funcionamento do discurso em relação a ele mesmo, ou seja, uma espécie de elo

entre o que se disse e o que se está para dizer, e que só pode ser articulado em relação ao

interdiscurso.

A partir destas formulações de Pêcheux, propõe-se a esquematização de algumas

categorias da AD e sua correlação com as abordagens técnico-jurídicas sobre aborto no

Brasil, abordadas na Introdução do presente artigo, de forma a compor um quadro

referencial para a análise dos discursos online da grande mídia e da mídia feminista

relativos ao assunto. Este quadro será apresentado no próximo item, relativo ao método de

análise.

3 Método e objeto de análise

A análise proposta parte da construção de um quadro de referência (Quadro 1), que

propõe a representação da aproximação entre referenciais teóricos da AD de Michel

Pêcheux, em categorias, e aspectos considerados relevantes, no Direito, para a análise do

discurso recente, na mídia online, sobre descriminalização do aborto. Tais aspectos são

designados tanto por meio de termos técnico-jurídico, presentes em legislação, quanto de

expressões que aparecem nos discursos midiáticos que tratam das relações entre mulher e

seu próprio corpo, no âmbito da questão reprodutiva.

Com base no quadro referencial elaborado, são analisados textos veiculados em

formato online nas revistas Veja e IstoÉ e no jornal Folha de S. Paulo, bem como nos sites

das organizações feministas Católicas pelo Direito de Decidir (CDD) e Centro Feminista de

Estudos e Assessoria (CFEMEA), com sedes em São Paulo e Brasília, respectivamente. O

recorte temporal para a seleção dos textos baseia-se no período de 1º de julho a 31 de

dezembro de 2005, quando foi intensificada a cobertura do debate em torno do projeto de

lei visando à descriminalização do aborto no Brasil.

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Para a coleta dos dados, efetuou-se a busca pelo termo “aborto” no período

considerado, sendo retornadas 20 matérias da revista Veja, 56 da IstoÉ – a qual não

possibilitou, em seu mecanismo de busca, a estratificação por data – e 51 do jornal Folha de

S. Paulo. No site da organização CDD foi considerado um noticiário contendo duas

matérias sobre o tema, selecionando-se uma, e no site da CFMEA foram verificadas as

edições 146, 147 e 148 (julho, setembro e dezembro, respectivamente) da Revista Fêmea,

publicada pela instituição, selecionando-se, igualmente, um texto.

É importante destacar que muitos dos textos encontrados numa primeira triagem não

são significativos para a análise proposta, por não se referirem sequer indiretamente ao

contexto da mesma4. Assim, numa segunda triagem, tais textos foram desconsiderados e

selecionaram-se os considerados mais representativos das categorias de análise propostas,

observando-se que esta representatividade foi maior em relação a textos veiculados

especialmente em novembro e dezembro, quando o projeto de lei esteve na iminência de ser

discutido ordinariamente na Câmara dos Deputados.Quadro 1 – Categorias de AD segundo Pêcheux e termos referenciais do campo do Direito sobre aborto (técnico-jurídicos e midiáticos) Categorias AD Significado das categorias ADD Referenciais do Direito

(técnico-jurídicos e midiáticos) sobre aborto

Condições de produção

Contexto histórico do discurso “Aborto legal”

“Princípio da dignidade da mulher”

“Princípio do direito ao próprio corpo”

“Direitos reprodutivos”

“Esquecimento do sujeito”

O sujeito “esquece” que o sentido é produzido externamente a ele

“Esquecimento pré-consciente”

O sujeito constitui enunciados entre o dito e o não-dito

Heterogeneidade Espaço de contradições; designação do diferente com o mesmo termo

Intradiscurso Elo entre o dito e o que está para ser dito

Interdiscurso Não dito, mas implícito na enunciaçãoFonte: Coimbra e Viegas (2006)

4 Entre os textos desconsiderados na análise estão os que contêm alusão a espetáculos artísticos como os do grupo musical “Aborto Elétrico”, os que aludem ao termo “aborto” como figura de linguagem – por exemplo, uma determinada atitude política como sendo um “aborto”– e outros abordando a nomeação de magistrados contrários à lei do aborto nos Estados Unidos.

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4 Análise de discursos online sobre aborto no Brasil: grande mídia e da mídia

feminista

Nas subseções 4.1 a 4.5, são reproduzidos trechos de sete textos em formato online:

dois publicados na revista Veja, um na IstoÉ, dois no jornal Folha de S. Paulo, um no site

da organização CDD e um no site da CFEMEA. Tais trechos, considerados focos de análise

pelo conteúdo de sua formação discursiva, são analisados a partir das categorias e dos

referenciais resumidos no Quadro 1.

4.1 Trechos de textos da revista Veja

Às vésperas da tentativa de apresentação, na Câmara dos Deputados, do projeto de

lei que descriminaliza o aborto no Brasil – no final de novembro de 2005 –, a revista Veja

não se preocupou em divulgar especificamente esta notícia, que ficou diluída em algumas

frases de seu noticiário político. No entanto, publicou duas reportagens sucessivas sobre a

questão do aborto em outros países – China e Estados Unidos. Foi, aparentemente, uma

estratégia de abordar o tema sob a ótica do contexto em que o aborto é considerado legal. A

primeira reportagem deste tipo foi veiculada na edição 1.930, de 9 de novembro, sob o

título “Demografia – O país dos solteirões” e subtítulo “Terror em Linyi – Funcionários

públicos obrigam mulheres a fazer abortos e esterilizações”. A matéria trata de fatos

ocorridos em uma cidade do leste da China, onde o governo forçou 7 mil mulheres a fazer

aborto ou a se submeter a cirurgias de esterilização. Ao final, é justificado o aborto legal

como forma de controle da natalidade:

Na China, o aborto é legal e, em algumas regiões, até incentivado, como forma de conter o avanço demográfico. Em 1949, ano da criação da República Popular da China, o país contava com 540 milhões de habitantes. Vinte anos mais tarde, chegava a 800 milhões de pessoas. Entre o fim da década de 70 e o início dos anos 80, a população do país chegou a 1 bilhão. Como forma de conter esse aumento, o governo implementou um rígido programa de controle de natalidade. Sob pena de multas pesadas e outras sanções, os chineses foram proibidos de ter mais de um filho. Exceção feita aos pais de meninas, moradores de áreas rurais, e àqueles casais que geraram crianças com deficiências físicas. Ainda

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assim, a China conta hoje com 1,3 bilhão de habitantes (BARELLA, 2005).

Em edição sucessiva – número 1.931, de 16/11/2005 – Veja publicou entrevista com

o economista norte-americano Steven Levitt, sob o título “O brilho do lado oculto das

coisas”, em que reproduz uma análise dele, segundo a qual o aborto levou à queda da

criminalidade nos Estados Unidos:O lance mais ousado de Levitt foi sua análise da queda da criminalidade nos Estados Unidos nos anos 90. Ele descobriu um fator determinante dessa queda e que até então passara despercebido: a legalização do aborto, nos anos 70. No início da década de 80, chegou a ser realizado 1,6 milhão de abortos por ano. Com isso, preveniu-se o nascimento de uma legião de crianças pobres e indesejadas, geralmente filhas de mães solteiras – crianças que, pela fragilidade de sua situação familiar e social, teriam maior probabilidade de enveredar pelo crime na vida adulta. Em outras palavras, o crime diminuiu porque muitos criminosos não nasceram. Essa tese foi atacada por todos os lados. Os conservadores acusaram Levitt de ser um propagandista do aborto. A esquerda acusou-o de propor medidas racistas e eugenistas. Na verdade, Levitt não estava propondo coisa alguma: estava apenas analisando as evidências, de forma objetiva e sem preconceitos. (TEIXEIRA e MARTHE, 2005)

Verifica-se que as condições de produção de ambos os discursos não podem ser

desconectadas do momento histórico do debate da descriminalização do aborto no Brasil.

No primeiro texto, o interdiscurso presente, ou seja, o não dito, mas implícito, é que o

aborto passou a ser praticamente uma forma de controle da natalidade, uma vez que ambos

estão associados em tal discurso pela expressão “como forma de conter [o avanço

demográfico/esse aumento]”. Assim, o que seria, tecnicamente, um direito reprodutivo –

controle da natalidade – corre o risco de ser confundido com um ato que expressa uma

heterogeneidade de si mesmo, por ser não controle, mas ação conseqüente da falha do

controle da natalidade – no caso, o aborto. Isto, no contexto brasileiro, significa confundir

direito (reprodutivo) com crime.

No segundo texto, fica visível o efeito do “esquecimento” inconsciente e pré-

consciente, pois ao assumir que o economista “(...) estava apenas analisando as evidências

(...)”, o autor da matéria “esquece” que o leitor pode interpretar a relação entre aumento do

aborto e redução de criminalidade como algo reducionista – uma evidência apenas

matemática, que não leva em conta outros fatores, mais complexos – e “esquece” que toca

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o limiar entre o dito e assumido – a relação entre aborto e redução da criminalidade – e o

que tenta “desdizer” ou assumir que não disse, isto é, “que (...) Levitt não estava propondo

coisa alguma (...)”.

4.2 Trechos de texto da revista IstoÉ

No período considerado, analisou-se a reportagem “Contagem regressiva” como a

mais significativa para a análise proposta. Ela trata da tentativa de colocação do projeto de

descriminalização do aborto em tramitação na Câmara dos Deputados, em 30/11/2005.

Existem quatro trechos relevantes nesse discurso:

(...) Ela [a deputada Jandira Feghali, autora do projeto de lei] quer saber como pensam seus pares para então colocar em votação já na quarta-feira 30, o projeto que descriminaliza e autoriza o aborto até a 12ª semana de gravidez (HOLLANDA, 2005).

Neste trecho, omite-se o fato de que o texto do projeto com o substitutivo de Jandira

Feghali, na realidade, propõe a descriminalização do aborto em qualquer etapa da gravidez

porque, ao seu final, suprime os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto

(COIMBRA, 2006 b). Contudo, não é possível afirmar a incidência em qualquer uma das

categorias da AD, a não ser que o autor do texto tenha a consciência da omissão, com o que

se poderia supor a existência de um “esquecimento inconsciente”.

Em dois trechos seguintes, o autor incorre na questão da heterogeneidade

discursiva:(...) decidiu conversar com cada um dos parlamentares da comissão, depois de perceber que a questão está enveredando para um confronto entre ciência e fé (HOLLANDA, 2005).

(...) está na hora de entender que o debate precisa deixar de ser passional e encarar o aborto não como uma questão criminal, mas de saúde pública. “Vinte e cinco por cento das mortes maternas ocorrem em conseqüência de abortos ilegais” (HOLLANDA, 2005).

Existe claramente uma contradição comum em ambos os trechos, pois,

juridicamente, no Brasil, o debate decisivo sobre aborto é não uma questão entre ciência e

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fé ou um debate passional, mas uma discussão técnica entre o constitucional (direito

fundamental à vida e desde quando ela é pela legislação protegida como um direito desta

categoria) e o inconstitucional (ato contra a vida humana considerado crime – no caso,

aborto). No primeiro trecho, constata-se novamente o “esquecimento” de que a produção do

sentido, para o leitor, não ocorre necessariamente ao nível da oposição simplificadora

proposta pelo autor do discurso – “ciência e fé” – e, no segundo, observa-se a flagrante

heterogeneidade de descaracterizar o caráter criminal do aborto, e transgressor do catálogo

de direitos humanos no Brasil, ao propor-se que ele não é uma questão criminal, “(...) mas

de saúde pública” (HOLLANDA, 2005). Ao aludir ao aborto como “questão de saúde

pública”, justificando que 25% das mortes maternas ocorrem em razão dos chamados

abortos ilegais no Brasil, incorre-se em um interdiscurso cuja lógica seria: a autorização do

aborto, como prática legal, o que implicaria na redução dessas mortes. O que não se

informa é que em países onde o aborto foi legalizado há 20 anos, como na Espanha, tal

prática já é a primeira causa de morte de mulheres, segundo informe do Instituto de Política

Familiar (IPF), em um balanço que inclui o período de 1985 a 2005, publicado em

5/07/2005. Conforme o IPF, o aborto se tornou a principal causa de mortalidade na Espanha

– onde é praticado um a cada 6,6 minutos. Ele mata mais que outras fontes de “disfunções

externas”, como acidentes de tráfego, mortes por homicídio, suicídios, Aids ou drogas

(BIODIREITO-MEDICINA, 2006).

Outro trecho que merece análise na matéria da IstoÉ é o referente ao juiz Roberto

Lorea, que qualifica uma heterogeneidade:

Outro participante do debate, o jurista Roberto Lorea, confirmou a ausência de condenações pela Justiça e mostrou que a atual legislação brasileira fere a legislação Pan-Americana e precisa ser mudada (HOLLANDA, 2005).

Diferentemente do que afirma o juiz, na matéria, a legislação panamericana – não

claramente referida por ele como o Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é

signatário desde 1992 – não admite o aborto e protege a vida humana desde a concepção

(art., 4º, I). Quanto a essa legislação panamericana, ficou é estabelecido por Relatório da

Comissão Interamericana de Direitos Humanos, aprovado em 1981 por maioria de votos,

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constituindo-se em sua Resolução 23/81, no Caso 2141 contra os EUA, que este país não se

subordinava a esta legislação panamericana porque não era seu subscritor, e que cada país

deve obedecer à sua própria legislação interna em se tratando de aborto. Isto implica que

não há como a legislação brasileira “ferir” a legislação panamericana, que apenas vale para

um País se firmada e reconhecida por ele em tratado internacional (COIMBRA, 2006 a). O

discurso do juiz, reproduzido pela revista, contém ainda um interdiscurso que pressupõe a

não-condenação do aborto pela Justiça brasileira como argumento para descriminalizá-lo.

Contudo, não é informado, no texto, por exemplo, que o Judiciário de Jaguaruna (a 189

quilômetros de Florianópolis) condenou, em novembro do ano passado, duas mulheres pelo

crime de aborto praticado em 1996 (FOLHA ONLINE, 2005 a) e que uma mulher estava

com júri marcado em 16 de março, por tentativa de aborto, em Cachoeira do Sul (RS)

(JORNAL DO POVO ONLINE, 2006).

4.3 Trechos de textos do jornal Folha de S. Paulo

O jornal Folha de S. Paulo apresenta uma cobertura diversificada do debate sobre a

descriminalização do aborto no Brasil, mas, como a mídia em geral, segue reproduzindo um

tratamento equivocado de aspectos técnicos, especialmente interdiscursos em que a prática

do aborto é tomada como direito humano ou direito reprodutivo, o que denota um pré-

construído facilmente contestável e passível de ser destruído enquanto discurso que se

pretende verdadeiro no âmbito da informação jornalística. Isto fica visível no seguinte

trecho da matéria “Deputada adia votação de proposta de descriminalização do aborto”:

A assessora parlamentar em Saúde e Direitos Sexuais Reprodutivos do Centro Feminista de Estudos, Lisandra Arantes, afirma que o aborto é uma questão de saúde pública no Brasil, a primeira causa de mortalidade materna em Salvador e a quarta no país. "Por direito à saúde, pelo direito humano e pelos direitos reprodutivos, a mulher tem o direito de decidir [sobre o aborto]", disse à "Agência Brasil" (FOLHA ONLINE, 2005 b).

Sob o ponto de vista do ordenamento jurídico brasileiro, não é possível considerar-

se integrante dos direitos à saúde/humanos/reprodutivos o suposto “direito” ao aborto. Não

existe, e nem pode existir, lei no Brasil que reconheça no aborto um direito, uma vez que a

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Constituição Federal determina como inviolável o direito à vida humana e o Brasil assinou

o Pacto de direitos humanos de San José da Costa Rica em 1992, que protege a vida

humana desde a concepção, tornando essa norma cláusula pétrea (imutável) porque a

própria Constituição proíbe a abolição de direitos e garantias individuais, mesmo que por

emenda constitucional. O catálogo constitucional dos direitos humanos no Brasil não

acolhe o aborto como um dos direitos humanos (COIMBRA, 2006 a).

A matéria “Membro da OEA pede aval da igreja ao aborto”, também da Folha

online, em que a advogada Leila Linhares Barsted trata a questão do aborto no mesmo

plano dos direitos individuais, incorre nos mesmos impasses analisados no caso anterior:

“(...) a defesa do Estado laico e a defesa dos direitos individuais, como a questão do aborto, devem ser uma defesa intransigente de quem está defendendo democracia, cidadania, direitos humanos. Inclusive da Igreja Católica”, disse à Folha [a advogada Leila] (DANTAS, 2005).

Este discurso embute a pretensão – via intra e interdiscurso – de que direitos

individuais existam somente para a gestante e não para o nascituro, como lhe garante o art.

2º do Código Civil, e que aborto seria um “direito individual” da gestante. Direito

individual (de forma genérica) ou está previsto em lei ou não está proibido por lei para os

cidadãos. O direito fundamental à vida existe por igual para o nascituro no que respeita à

proteção de sua vida humana individualizada perante a lei desde a concepção, que está

protegida também no catálogo constitucional de direitos humanos no Brasil e é direito

individual imutável por leis ordinárias e emendas constitucionais, segundo determina o art.

60, parágrafo 4º, inciso IV da Constituição, quando estabelece, quanto a ela própria

(Constituição), que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir

(...) os direitos e garantias individuais”. Se legislação de hierarquia superior como a

Emenda Constitucional não pode abolir direitos e garantias individuais, muito menos uma

simples lei ordinária poderá fazê-lo, pois está abaixo desta hierarquia.. Observe-se que a

Constituição não permite até mesmo a simples tramitação, como vem ocorrendo, no Poder

Legislativo de um projeto de lei que, em seu conteúdo, incorra no que é proibido em seu

texto. No art. 5º., parágrafo 2º, da Constituição de 1988 está a integração (no caso do direito

à vida do nascituro, consolidada desde 1992) aos direitos humanos e garantias individuais

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os direitos humanos e garantias individuais dos tratados internacionais firmados pelo Brasil

que protegem a vida do nascituro desde a concepção por não serem contrários à legislação

interna brasileira: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros

decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em

que a República Federativa do Brasil seja parte”. Por outro o lado, o Supremo Tribunal

Federal consolidou jurisprudência onde entende que os tratados internacionais de direitos

humanos não podem entrar em conflito com a Constituição diante do princípio da soberania

(COIMBRA, 2006 a).

4.4 Trecho de texto do site da CDD

O uso reiterado da expressão “aborto legal” ou “serviços de aborto garantido por

lei” é comum no site da organização não-governamental Católicas pelo Direito de Decidir.

Um exemplo é o trecho da matéria “CDD organiza dossiê sobre Aborto Legal”, veiculada

em outubro do ano passado pela ONG:

Uma pesquisa que comprova como os serviços de aborto garantidos por lei ainda são vistos sob o prisma da ilegalidade. Esse foi o trabalho coordenado pela psicóloga Rosângela Aparecida Talib, doutoranda em Ciências da Religião, membro da organização não-governamental Católicas pelo Direito de Decidir (CDD) – entidade de caráter ecumênico que trabalha para a mudança nos padrões culturais e religiosos a partir do respeito à diversidade, a liberdade e a justiça (CDD, 2005).

Ao utilizar o termo “serviços de aborto garantidos por lei”, cunha-se claramente um

interdiscurso que deixa margem à heterogeneidade, uma vez que mesmo nos casos de

exceção legal, em que o aborto é não punível, ele não deixa de ser crime, o que significa

que a formação discursiva “aborto legal” ou expressão similar é algo forçado em relação ao

teor do que designa o sistema jurídico.

4.5 Trecho de texto do site do CFMEA

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Assim como na grande mídia, os sites feministas insistem na correspondência entre

saúde e direito “à interrupção voluntária da gravidez”, sempre sob a alegação de que a

proibição desta leva à clandestinidade e à precariedade das condições de realização do

aborto. É o caso do seguinte trecho da matéria “Aborto em pauta”, do Jornal Fêmea,

produzido pela ONG CFEMEA:

Vale lembrar que 61 % da população mundial vivem em países em que o aborto é permitido, contrastando com apenas 26% que vivem em países aonde a interrupção voluntária da gravidez é completamente proibida. Esses dados nos levam à certeza da necessidade de revisão da legislação brasileira, que está entre as mais atrasadas e nocivas à saúde e vida das mulheres (JORNAL FÊMEA, 2005).

Da mesma forma como a matéria da revista IstoÉ, analisada no item 4.2, o trecho

acima propõe-se um discurso contraditório, mas cuja própria contradição não fica clara para

o leitor, pois não são oferecidos dados de análise mais amplos, como os de pesquisas

científicas realizadas na Finlândia e publicadas em dezembro do ano passado na revista

acadêmica BMC Medicine online, que indicam a ocorrência de traumas emocionais

decorrentes da prática do aborto (BBC, 2005), ou os do Instituto de Política Familiar (IPF)

da Espanha, correlacionando a incidência de elevadas taxas de morte por aborto, nestes

países legalizado, com baixas taxas de morte, por outras causas, ou ainda o estudo de

Francis e Brind (2006), que comprova aumento de risco de câncer de mama associado ao

aborto.

5 Considerações finais

O presente artigo analisou, através da seleção aleatória de trechos de textos na mídia

online geral e especializada, veiculados no segundo semestre de 2005, algumas relações de

coerência e consistência entre tais trechos discursivos e pressupostos básicos do Direito

nacional e internacional diante do projeto de lei que visa à descriminalização do aborto no

Brasil, sob o ponto de vista de categorias da Análise do Discurso de Pêcheux. Constata-se

que predominam formações discursivas nas quais o inter e o intradiscurso levam, em geral,

ao desvirtuamento do sentido técnico-jurídico de princípios, normas e conceitos

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consolidados no sistema jurídico brasileiro, o que gera uma heterogeneidade na produção

de sentido, que ocorre a partir do emprego ideologicamente direcionado de expressões

como “aborto legal” ou similares, “princípio da dignidade da mulher”, “princípio do direito

ao próprio corpo” e “direitos reprodutivos” em associação com o abortamento.

Alguns textos analisados induzem a correlações simplificadoras como aumento do

aborto versus redução de criminalidade, ou aborto como controle de natalidade, ou direito a

aborto como garantia de melhoria da saúde da mulher. Isto geralmente é facilitado à medida

que são omitidas informações sobre as conseqüências, em termos de saúde pública, da

legalização do aborto em países desenvolvidos, como Finlândia e Espanha. Apesar da

limitação da amostra selecionada e de sua não representatividade estatística – a qual não foi

colocada como pressuposto do trabalho –, a análise possibilita um questionamento

preliminar para a correção de equívocos em que geralmente incorre o discurso midiático

online sobre o tema do aborto dentro da legislação brasileira e abre caminho para futuros

trabalhos nesta direção.

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