Miranda July e a arte como agente de transformação

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO (PUC-Rio) COMUNICAÇÃO SOCIAL Miranda July e a arte como agente de transformação: Uma análise do filme O Futuro a partir dos conceitos de Cássia Chaffin em Uma teoria sobre a alma ou A perdição criadora ao filme Trabalho feito por Clara Balbi, sob a orientação da professora Cássia Chaffin, como requisito de avaliação referente à disciplina de Processos de Criação e Psicanálise. RIO DE JANEIRO - RJ Junho/2013

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Uma análise da trajetória artística da diretora, escritora e performancer Miranda July à luz dos conceitos de Cássia Chaffin na tese "Uma teoria sobre a alma ou A perdição criadora" [2011].Trabalho realizado por Clara Balbi para a disciplina "Processos de Criação e Psicanálise" ministrada por Cássia Chaffin e oferecida pelo Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio.Todos os direitos reservados.

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO (PUC-Rio)

COMUNICAÇÃO SOCIAL

Miranda July e a arte como agente de transformação:

Uma análise do filme O Futuro a partir dos conceitos de Cássia Chaffin em Uma teoria sobre a alma ou A perdição criadora ao filme

Trabalho feito por Clara Balbi, sob a

orientação da professora Cássia Chaffin, como

requisito de avaliação referente à disciplina de

Processos de Criação e Psicanálise.

RIO DE JANEIRO - RJ

Junho/2013

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“A duplicação do real pelo cinema busca ultrapassar a mimesis platônica,

representada pelo “inútil” pintor da República: o cinema, com seus

significantes imaginários, cria um mundo próprio, influencia a nossa leitura

do real e altera a percepção que deste temos, tornando-se agente de sua

transformação.”

MENDES, João Maria. “Culturas narrativas dominantes – o caso do

cinema”. Lisboa: Universidade Autônoma de Lisboa, 2009.

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1) Apresentação do objeto

Em O Futuro, Sophie (Miranda July) e Jason (Hamish Linklater) – ela, professora

de balé infantil; ele, responsável pelo suporte técnico de uma empresa de informática

– resolvem adotar Patinha, o gato que encontraram abandonado na rua. Embora

adultos, essa é a primeira coisa viva da qual têm de cuidar; o primeiro passo em

direção à maturidade (o tal “futuro” do título) que, para eles, é traduzida como a

obrigação de ficar presos em casa pelos próximos cinco anos, quando estarão

próximos aos 40. “E 40 são basicamente 50, e depois dos 50, só sobram moedas

soltas”, raciocina Jason. “Moedas soltas?”, pergunta Sophie. “É”, ele responde, “não o

suficiente para conseguir o que você quer”.

O casal se vê então diante de uma angústia existencial que os força a buscar,

durante o mês que têm até que o felino chegue, a autorrealização. Demitem-se de seus

respectivos empregos. Sophie deve usar o tempo para desenvolver um projeto de

dança no YouTube, “30 dias, 30 coreografias”, mas já no segundo dia fica paralisada.

Em pânico, sai de casa e troca o namorado por um pai divorciado suburbano à beira

da ninfomania cujo estilo de vida não poderia ser mais banal. Jason, cuja meta é “estar

alerta” – “às coincidências, coisas em dobro, chamas”, exemplifica –, torna-se

voluntário de um movimento ambiental, mas passa a maior parte do tempo

conversando sobre amor e tempo com o velhinho de quem comprara um secador de

cabelos.

Enquanto isso, à semelhança dos donos, Patinha espera um futuro que fica em

suspenso. O que para o casal é a concretização de idealizações pessoais é, para ele, a

adoção. Dotado de voz (na realidade, uma versão eletronicamente modificada do

timbre de Miranda July), é dele um monólogo intermitente sobre solidão e dor que

representa, metaforicamente, o que se passa com Sophie e Jason no desenrolar do

filme. É nesta parte que, surrealmente, o tempo para e a vida de cada protagonista é

direcionada a possibilidades paralelas: para ela, sexualmente envolvida com o homem

divorciado, trata-se da construção do resto de sua vida com esse homem; para ele, que

vivencia o abandono em relação ao objeto de afeto, é uma espécie de reflexão

realizada com a ajuda de uma lua falante.

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Patinha morre porque os protagonistas esquecem de buscá-lo ao final do mês. A

“vida de verdade” do gato nem mesmo chega a começar. Mas se a execução de

Patinha é literal, a morte experimentada pelo casal é metafórica: neste futuro que

agora adentram, acabam-se as certezas, o platonismo – opondo-se a um início de

filme em que Jason diz, ainda que sarcástico, que achava que a essa altura já teria se

tornado um líder mundial – para adicionar, sutilmente, um ponto de interrogação ao

“futuro” do título.

2) Referencial teórico

O referencial teórico adotado por este trabalho é o psicanalítico, baseado nas

terminologias adotadas por Freud quando do estudo do aparelho mental e de suas

relações com a realidade exterior. A partir desses conceitos e de sua combinação com

a termodinâmica e a Teoria Matemática da Comunicação (SHANNON; WEAVER,

1949), buscaremos analisar o objeto de estudo aqui apresentado, o filme O Futuro, de

Miranda July, à luz da teoria da Perdição Criadora, de Cássia Chaffin.

Freud baseia toda a sua teoria sobre o funcionamento mental na ideia de pulsão.

Definida como uma força constante que impele o organismo à atividade, ela pode ser

vinculada a absolutamente qualquer objeto pois, ao contrário do instinto animal, não

tem suas formas de catexia biologicamente determinadas. A pulsão é, portanto,

absolutamente livre (e, por isso, caótica) em sua origem. Seu objetivo último é a

satisfação, descarregar o aumento de energia provocado por um determinado desejo –

satisfação esta que, paradoxalmente, significa morte, uma vez que pulsão é energia e

descarregá-la significa no organismo significa destruí-lo.

Para melhor entender a dinâmica dessa pulsão, Chaffin a compara ao conceito de

energia na física. A 1a Lei da Termodinâmica, cuja origem remonta às descobertas do

físico inglês James Prescott Joule (1818-1889), postula que a energia total de um

sistema se conserva, ainda que se manifeste de maneiras diferentes (física, mecânica

ou atomicamente, entre outros). No entanto, todas essas formas de energia tendem a

se transformar em calor, em desorganização (entropia, desse modo), ou seja, rumam

para a sua própria morte que, na física, é térmica – é esta a 2a Lei da Termodinâmica.

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Assim como a energia, a pulsão em sua forma primária caminha para o caos e, assim,

para a própria destruição.

Freud nomeia esse modo de relação primeiro do aparelho psíquico com a realidade

de Princípio de Prazer. Nele, a pulsão aparece como sendo “de morte”, operando

somente no sentido imediato de buscar o prazer/evitar o desprazer e manifestando-se

através da fuga ou da destruição do estímulo responsável pelo aumento de tensão

energética. Esse princípio só se sustenta quando existe um agente externo capaz de

aliviar a tensão. Por exemplo, no caso do bebê. Sentindo fome, ele chora – manifesta,

assim, sua pulsão de modo desordenado, sem exercer nenhum tipo de trabalho para

dominar a realidade. No entanto, o Princípio de Prazer se sustenta sem que o

organismo se destrua, pois há um agente externo, a mãe, responsável por realizar uma

determinada tarefa que alivie a tensão sentida pelo bebê. Esse êxito não é verdadeiro

para a grande maioria dos casos: viver de acordo com a dinâmica primitiva do prazer

ameaça a própria existência do organismo. Isso porque o investimento na realidade é

tênue demais para produzir uma satisfação consistente e a ignorância em relação aos

objetos causadores de desprazer permanece. As fontes de desprazer acabam, assim,

recalcados pelo aparelho mental, o que nada mais é do que uma rejeição à realidade.

O Princípio de Prazer é, portanto, a expressão fiel da pulsão originária, caótica, que

caminha para a própria morte.

À pulsão de morte Freud opõe a pulsão de vida, também chamada de libido, cuja

expressão se dá através do processo secundário de funcionamento do aparelho mental,

o Princípio de Realidade. É necessária ressaltar que, na verdade, a pulsão é una: existe

apenas uma energia, que é naturalmente desordenada. Sua tendência natural à morte é

“revirada”, todavia, no momento em que estabelece vínculos com a realidade (coisas,

indivíduos, ideias), impedindo, desse modo, o alívio imediato da tensão. Esse

“reviramento” seria feito ao longo do processo de desenvolvimento do indivíduo, com

a educação da pulsão caótica original no sentido de uma manifestação ordenada. O

sofrimento experimentado nesse processo, oriundo do reconhecimento do desejo e da

falta (denominado castração) e do engajamento na gênese de alguma coisa para

aplacá-lo, gera uma satisfação mais intensa e duradoura, transformando, assim, a

morte em vida. A esse processo denominamos masoquismo feminino ou atividade-

passiva.

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Uma situação similar acontece na termodinâmica. Já dissemos aqui que qualquer

sistema está espontaneamente em processo de autodestruição. Vida, na concepção da

física, é sinônimo de trabalho, luta pela imposição de uma ordem, e no sistema

isolado todos os tipos de energia tendem a se transformar em calor, a manifestação

mais desordenada de energia e, portanto, morte. O contato entre sistemas, entretanto,

retardaria essa tendência à morte, uma vez que os obrigaria a realizar trabalho para,

continuamente, reorganizarem-se – os sistema morreriam, então, no que tange à

organização anterior, mas essa morte significaria apenas o nascimento de uma nova

ordem; de vida, dessarte. Curiosamente, é interessante observar que a desordem, na

termodinâmica, significa equilíbrio, uma vez que a ordem implica instabilidade; basta

pensarmos em uma gaveta de roupas, quase instantaneamente desorganizada ao ser

aberta. De forma análoga, o homem que age conforme o Princípio da Realidade e

vincula sua pulsão aos outros sistemas que compõem o mundo seria capaz de

reorganizar continuamente seu organismo, trazendo à tona a emergência de novos

“eus” a todo tempo. Novamente, é necessário ressaltar que essa alteração demanda

trabalho e sofrimento, uma vez que implica “matar” parte de si mesmo – o que se dá

nos momentos de reconhecimento da castração, a princípio intolerável pela ordem

vigente – para possibilitar o acolhimento dos novos sistemas e vínculos.

Finalmente, para adentrarmos a tese da Perdição Criadora, é fundamental uma

apresentação resumida das instâncias mentais responsáveis pelo funcionamento do

aparelho psíquico humano. São elas o Id, o Ego e o Superego. O Id é a pulsão em sua

forma original caótica, cuja dinâmica é a do Princípio de Prazer – o Id quer

satisfações imediatas. É inconsciente e só temos acesso a ele através da elaboração

onírica ou pelos sintomas neuróticos. O Ego é uma parte do Id capaz de agir conforme

a realidade graças à proximidade com o mundo externo. Ele dá assim, direção à

pulsão do Id, vinculando-a a objetos. No entanto, o Ego está a mercê dessa pulsão. Na

Conferência XXXI: a dissecção da personalidade psíquica, escrita em 1932, Freud

exemplifica a relação entre Id e Ego a partir da comparação com o par cavalo e

cavaleiro: idealmente, o cavalo provê a energia de locomoção e o cavaleiro guia o

movimento do animal. Entretanto, muitas vezes o cavaleiro só consegue guiar o

cavalo na direção que este deseja. O Ego ainda está sob a constante observação do

Superego, instância também inconsciente responsável por fornecer e manter um

modelo de vida ideal. Trata-se, por isso, de uma instância fundamental, pois dá

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sentido a uma vida que é na origem absolutamente livre, e, por isso, destrutiva. Por

vezes, contudo, o Superego, instância que assume o papel de fornecer amor/ameaçar

de castigo (chamados por Freud de “sinais de perda de amor”) exercido pelos pais em

um primeiro momento, paralisa o indivíduo. Isso porque, ao fixar o Ego na

manutenção de uma suposta identidade, ele acaba recalcando o Id e, com isso,

negando a realidade. A tradução do Princípio da Realidade, modo mais saudável de

funcionamento do aparelho psíquico, para a dinâmica das instâncias mentais

representaria, assim, o seguinte: um Ego capaz de direcionar o Id sem se deixar ser

tomado por sua violência e tendência à destrutividade, e apto a expandir sua

percepção sem se deixar paralisar pelo Superego, que não quer reconhecer a castração,

imprevista pelo seu modelo de vida ideal. Um Eu plástico que mate a si mesmo a cada

vez que suas representações ideais forem paralisadoras para incluir em constante devir

as exigências do ID, do Superego e da realidade externa e criar uma nova ordem, uma

nova vida.

A Perdição Criadora defendida por Chaffin trata da radicalização desse Princípio

da Realidade com o intuito de produzir novos códigos, rupturas com o padrão

existente. Não trata, dessa forma, da simples superação do processo primário de

obtenção de prazer. Tornar-se um perdido criador significa mais do que abarcar o Id e

não se deixar paralisar pelo Superego, a representação da sociedade que habita nossas

mentes. É perder-se no Id e, enfrentando o desprazer oriundo da insistência no vínculo

libidinal, impor a própria fantasia na realidade, na sociedade – sociedade esta que,

modelo a partir do qual o Superego foi moldado, é naturalmente avessa às

transformações.

Para explicar o conceito, a autora se utiliza da Teoria da Informação ou Teoria

Matemática da Comunicação, publicada por Claude Shannon e Warren Weaver em

1949. Esta afirma que o sistema que não se submete a um código está no estado de

entropia, no qual qualquer sinal emitido tem a mesma probabilidade de construir uma

mensagem. Um código ao qual esse texto fosse submetido, todavia, estabeleceria

previsibilidades, limitando a sua liberdade; logo, tornaria o texto facilmente

entendível. Para Shannon e Weaver, contudo, a previsibilidade instaurada pelo código,

se demasiada, torna o texto entediante. É necessário um relativo nível de entropia, de

“ruído”, para tornar uma mensagem sedutora aos olhos do receptor. Na arte, essa

necessidade é ainda mais pronunciada, uma vez que ela se baseia na contínua

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transformação do código. Por isso, mensagens artística tendem a apresentar um

elevado grau de entropia, de ininteligibilidade – tão elevado que às vezes parecem

puro ruído, sem significado. Daí a afirmação de que a entropia é fundamental para a

inovação desses códigos. É só a partir do caos que é possível a emergência do

verdadeiramente original; é só a partir da Perdição que podemos criar algo

efetivamente novo.

Não obstante, ainda utilizam-se neste trabalho falas da própria Miranda July, a

perdida criadora em questão, retiradas de entrevistas para veículos jornalísticos e de

escritos autobiográficos, em especial o livro O escolhido foi você, espécie de diário de

bordo sobre o processo de feitura de O Futuro, filme que me proponho a analisar aqui,

e as crônicas publicadas no portal da revista norte-americana The New Yorker na

internet. Ressalto também a importância do misto de entrevista e ensaio “Some Kind

of Grace”, de Julia Bryan-Wilson, professora adjunta da Universidade da Califórnia.

Utilizo ainda críticas do filme publicadas nos portais de alguns dos jornais e revistas

de língua inglesa mais reconhecidos: The New York Times, The New Yorker e The

Guardian.

Quanto a essas fontes bibliográficas, em sua maioria estrangeiras, utilizo no

trabalho traduções livres das citações do inglês para o português; a única exceção é o

livro O escolhido foi você, que consulto aqui em edição de 2013 da Companhia das

Letras e tradução de Celina Portocarrero.

3) Justificativa da escolha do objeto

O Futuro, objeto de estudo sobre o qual esta análise se debruça, é o segundo filme

da artista norte-americana Miranda July. Escolho aqui um termo vago para designar

sua profissão propositalmente: intérprete da protagonista e responsável pela direção

do filme, July, que começou sua carreira com performances, já se aventurou pela

literatura – ganhou em 2007 o prêmio Frank O’Connor para contos com a coletânea É

claro que você sabe do que estou falando – , pelas artes plásticas e pelo cinema.

Embora multimídia, July é monotemática: no cerne da construção da maioria de

seus personagens, há a questão do isolamento, do não-pertencimento a uma ordem – e

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da consequente busca, ainda que muito desajeitada, por esse lugar. “Todos os seus

personagens desejam se conectar – mas raramente conseguem”, escreveu a jornalista

Katrina Onstad em um perfil da artista para a The New York Times Magazine. Talvez

precisamente porque os indivíduos da ficção de July pareçam agir como crianças,

desconhecendo o funcionamento da realidade a tal ponto que são incapazes de agir

nela e, portanto, de interagir com quem a partilha. Por isso, propõem explicações

absurdas para fenômenos tão ordinários quanto adotar um gato – que, para o casal que

protagoniza O Futuro, torna-se uma questão existencial – , do mesmo modo que,

quando somos mais novos, achamos que a televisão funciona graças a um exército de

pessoas pequenas que se alternam em papéis diversos. Os personagens de July

simplesmente não estabeleceram vínculos com o sistema simbólico fortes o suficiente

para que sejam capazes de se organizar. Estão à deriva do mundo; perdidos, desse

modo.

Encontro no surrealismo que deriva dessa lógica alternativa de pensamento uma

das grandes originalidades de July. O jornalista norte-americano Anthony Oliver Scott,

em uma crítica de O Futuro publicada no The New Yorker, define esse surrealismo

como a “habilidade de transformar os fatos prosaicos do mundo em mágica”. Para

Julia Bryan-Wilson (2004, p. 1)., professora da Universidade da Califórnia, o trabalho

de July habitaria um mundo em que o familiar ou o conhecido torna-se subitamente

estrangeiro. Embora essa lógica do absurdo seja responsável pela inabilidade dos

personagens da autora em relação ao mundo, a mim, espectadora, ela chega como

uma oportunidade especialmente libertadora de fugir à racionalidade tradicional – e,

com isso, perceber novas maneiras de enxergar o mundo. Admito que muito

possivelmente essa identificação tem algo de nostalgia infantil. Mas talvez se trate de

um lembrete de que é preciso acolher essa lógica que foge à sociedade vez ou outra

em nome do desenvolvimento do Ego – e, ao contrário dos personagens de July que

não conseguem agir no mundo, impor essa nova lógica à sociedade.

No entanto, acho que foi a identificação com a sensação de estar perdido que fez

com que eu me encantasse tanto pelo trabalho de Miranda July. É nessa mesma

questão que vejo uma contemporaneidade latente em seu discurso. O mundo de hoje

apresenta uma multiplicidade de discursos gigantesca, discursos que se sobrepõem e

negam uns aos outros sem que sejam em momento algum descreditados – movimento

este que é qualificado pelo poeta e crítico mexicano Octávio Paz (SANTOS, 2011)

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como o grande paradoxo da modernidade. A partir da ruptura com o Antigo Regime,

a razão tornou-se autossuficiente; a comprovação científica passou a cunhar verdades

dogmáticas, inquestionáveis. No entanto, essa mesma razão começou a,

simultaneamente, exercer crítica sobre si mesma, levando-a a negar o raciocínio

anterior a cada nova experiência – que, por sua vez, será novamente inquestionável. A

verdade está, desse modo, sempre em mutação.

De uma certa forma, portanto, também estamos à deriva. Na era da dialética, só há

o multiperspectivismo. Mas, de novo, é necessário ressaltar que trata-se de uma

perdição que, tal qual defende Chaffin, cabe a nós transformar em criação.

4) Análise do objeto

O casal que protagoniza O Futuro está definitivamente perdido. Sophie e Jason

resolvem adotar um gato que encontraram abandonado na rua. Embora sejam adultos,

não vivem propriamente uma vida adulta. São casados, mas a única evidência disso é

o fato de que partilham a cama. Ela é professora de balé infantil e ele, responsável

remoto pelo suporte técnico de uma empresa de informática, mas seus empregos

parecem aleatórios tal é o nível de não-identificação dos personagens com suas

respectivas ocupações. Quietos e excêntricos com seus cortes de cabelo idêntico, as

conversas que travam mais parecem diálogos infantis. São absurdos, como

brincadeiras – entre elas, uma particularmente delicada sobre parar o tempo se mostra

fundamental à trama – , e subliminarmente denotam uma resistência passivo-agressiva

às demandas de responsabilidade e engajamento da vida adulta. Talvez por uma

infraestrutura parental precária, Sophie e Jason são adultos desorganizados. Podem

tudo – mas, sem ordem que dê direcionamento a essa pulsão, não podem nada.

Resolvem adotar um gato que encontraram machucado na rua. Chamam-no de

Patinha. No entanto, Patinha é a primeira coisa viva da qual têm de cuidar, e para

cuidar de algo, eles sabem, é necessário entrar no mundo adulto. O peso da

responsabilidade os aterroriza; adentram uma crise existencial. Decidem, então, que

durante os trinta dias restantes até que Patinha chegue, realizarão seus sonhos. Mas

sonhos tão perdidos quanto os próprios protagonistas: Sophie pretende realizar um

projeto de dança no YouTube; Jason tem como meta “estar alerta às coincidências,

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coisas em dobro, chamas”. Quanto ao objetivo de Jason, trata-se de uma superstição

que evidencia a isenção de um encargo pessoal de responsabilidade do Ego (ordenar e

direcionar a pulsão) para atribuí-lo a um Outro ilusório. Analogamente, é a mesma

questão que Freud (2011, p. 16) vê na religião e à qual se opõe de modo radical. Esta

posição é explicitada no início de O mal-estar na civilização.

“Posso imaginar que o sentimento oceânico tenha se vinculado à religião

posteriormente. Este ser-um com o universo, que é o seu conteúdo ideativo,

apresenta-se-nos como uma tentativa inicial de consolação religiosa, como

um outro caminho para negar o perigo que o Eu percebe a ameaça-lo do

mundo exterior.”

Nessa perseguição inicial de uma autorrealização pessoal idealizada e desvinculada

do mundo real, Sophie e Jason se deparam pela primeira vez com o desprazer advindo

do vínculo efetivo com objetos. Mas, na desordem absoluta que representam como

casal, não são capazes de suportar o desprazer em nome de um gozo maior.

Precisariam, antes, de estabelecimentos menos audaciosos com a realidade. Então,

fogem.

Sophie, em especial, evita o objeto de desprazer de uma maneira particularmente

destrutiva – é pura pulsão de morte. Ao contrário de Jason, ela tem um pouco mais de

clareza em relação ao que quer, mas por isso tem projeções superegóicas paralisantes,

projeções que na verdade são alheias à vida real. Diante da frustração de não

conseguir realizar o projeto, desespera-se. Na tentativa de manter seu vínculo com o

objeto, chega a cancelar a internet da casa, convencida de que é isto que a impede de

ser bem-sucedida. Não é: ela simplesmente não consegue enfrentar o desprazer de

lidar com a realidade, um tipo de relação que ela nunca viveu plenamente.

Miranda July, como a personagem que interpreta, também encontra um Superego

que a paralisa no início de sua vida. Conta, em O escolhido foi você, sobre a primeira

vez que elaborou um projeto artístico: aos 9 anos, ocorreu-lhe a ideia de construir uma

versão da cidade em que morava com caixas de cereal – uma ideia que, durante cerca

de uma hora, foi apaixonadamente alimentada. Porém, a ideia não se tornou realidade.

Isso porque uma voz interior, cuja função é a de representar na mente a sociedade,

interviu. É o Superego de July, o qual ela apelida, irônica, de “Autoridades Locais”.

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Escrevendo O Futuro, July já não é mais como há 25 anos atrás – ou como sua

protagonista, Sophie. Reconhecendo de forma consciente a repressão do Superego

como uma trava a mudança, July (2013, p. 179) se permite abraçar a energia que a

incita a “sentir coisas novas” e institui nela o processo de transformação necessário à

vida e à criação, ignorando, desse modo, as ditas Autoridades Locais.

“Mas também tive a certeza de que o pensamento em si era a única coisa

que me paralisava, como uma maldição de bruxa – ou, melhor, como os

caçadores de bruxas, essas mesquinhas e temíveis Autoridades Locais.

Desde aquela época até aquele exato momento, eu tinha feito o possível

para evitá-las, mas depois de quase três décadas de superstições concluí que

as Autoridades Locais estão sempre lá, por dentro e por fora, e ficam mais

irritadas quando eu começo a mudar. Cada vez que sinto alguma coisa nova,

as Autoridades Locais intervêm e gentilmente me encorajam a me queimar

viva.”

Trata-se de uma vivência muito semelhante àquilo que Chaffin descreve como as

travas possíveis à “perdição criadora”. Esta, ainda, implica necessariamente em uma

submissão ao Princípio de Realidade. É fundamental abarcar não só as exigências da

realidade interna, mas também do mundo externo e de seu funcionamento. A diretora

não pode esperar, como Sophie, que a imposição de seu projeto no mundo se dê sem

desprazer, sem sofrimento. Na realidade, ela reconhece nessa relação entre fantasia e

realidade que se estabelece no momento da feitura de um filme o sentimento de estar

em guerra. Afinal, a realidade não existe para nos dar satisfação. Mas o gozo obtido

através da luta contra ela é qualitativamente superior que o da fuga ou da destruição.

E, assim, é não com paralização, mas com uma atitude desafiadora que July (2013, p.

200) se coloca frente às Autoridades Locais de sua mente e da realidade.

“Eu sabia que não seria bem-sucedida naquilo, na hora de reencenar eu faria

uma coisa um pouco mais desajeitada e menos interessante do que a vida

real. Mas não eram as Autoridades Locais que me diziam isso; vinha mais

de cima, ou bem lá de baixo, e vinha com um sorriso – um sorrisinho meio

rebelde e provocador, um desafio. Sorri de volta.”

Sophie, todavia, não sabe como se comportar diante da frustração que encontra ao

não conseguir desenvolver sua dança, o que advém de sua incapacidade de sair de um

estado infantil e fantasioso. De modo impulsivo, ela liga para um número de telefone

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que encontra no verso de um quadro do seu apartamento. Em uma fuga desesperada

de si mesma, encontra no dono do telefone um viúvo, Marshall. Acaba se

relacionando sexualmente com ele, e em pouco tempo muda-se para a sua casa. Em

uma fala de O escolhido foi você, a autora explica o comportamento da protagonista:

“No mundo suburbano de Marshall, Sophie não precisa ser ela mesma; enquanto

estiver lá, não precisará mais tentar (e falhar).”

July parece entender perfeitamente as angústias de Sophie. Também no mesmo

livro, ela expõe, claramente: “ ...Sophie representava todas as minhas dúvidas e o

pesadelo de quem eu seria se sucumbisse a elas...”. A personagem, não

coincidentemente interpretada pela diretora, é seu alterego – um eu inconsciente que

representa uma versão dela mesma.

No caso, uma versão que consegue escapar do próprio matrimônio. Na época da

escrita do roteiro, a artista tinha acabado de se casar com Mike Mills, também diretor

cinematográfico. Depois de casada, a pura ideia da união passou a aterrorizá-la:

“Agora que eu tinha prometido ficar com aquele homem até morrer, eu também

pensava muito na morte. Parecia que eu não tinha me casado só com ele, mas me

casado também com a minha morte”, confessa, ainda em O escolhido foi você. Narrar

a história de uma mulher que abandonava a própria vida era, portanto, uma espécie de

purgação pessoal.

Purificação esta que não deixa de ser uma forma de acolher o Id e de instituir as

próprias construções fantasiosas na realidade. Para Chaffin, seria exatamente esse

processo de ultrapassar tanto as limitações da descarga pulsional imediata que

caracteriza o Princípio de Prazer (pois July não traiu ou abandonou o marido, como

ditava seu inconsciente) quanto os limites da própria realidade – uma vez que a autora

se utiliza da ficção, que é por definição a criação de uma alternativa ao mundo

concreto – a definição da Perdição Criadora. Ao transformar seus mais dionisíacos

impulsos em construção artística, matéria fílmica, July produziu um gozo superior

daquele oriundo de ambos os Princípio de Prazer e o Princípio da Realidade, o mais-

de-gozar. Além disso, transformou a própria vida, uma vez que, de acordo com Freud

(1969, p. 38) o único modo de destituir a pulsão de sua força destrutiva é através de

sua enunciação, de sua emergência à consciência.

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“Só podem [os impulsos] ser reconhecidos como pertencentes ao passado,

só podem perder sua importância e ser destituídos de sua catexia de energia,

quando tornados conscientes pelo trabalho de análise, e é nisto que, em

grande parte, se baseia o efeito terapêutico do tratamento analítico.”

Resta-nos o questionamento, apenas, se a ficção de July é efetivamente capaz de

inaugurar novos códigos, transformando não só uma realidade própria como também

a realidade coletiva, o sistema simbólico vigente, tal qual o verdadeiro perdido

criador faz. Isso, contudo, só o tempo dirá.

O alterego de July está, dessa forma, em fuga. “Não por paixão”, defende Miranda

July; apenas para se colocar inteira nas mãos de alguém, como uma criança. Assim,

tal qual uma criança, Sophie busca na figura de Marshall, um viúvo

consideravelmente mais velho que ela, um pai capaz de organizá-la, de apresentar

caminhos de direção a sua pulsão. A desordem desta chega a ser explicitada em um

momento posterior do filme, no qual a moça conversa com Jason. “Eu sou selvagem”,

admite – e com isso ela expressa que há uma pulsão descontrolada, destrutiva vivendo

nesse momento dentro dela. Por outro lado, não é à toa que esse pai é também seu

amante, encarregado de lhe dar um amor gratuito que lhe isente da responsabilidade

de uma identidade planejada, papel este que é em um primeiro momento ocupado pela

mãe. Marshall é, portanto, uma espécie de pai-mãe que, se em um primeiro momento

se apresenta como pai capaz de inserir Sophie em uma ordem, logo se torna uma mãe

imobilizadora, que não permite o desenvolvimento do Ego do filho para que a relação

de dependência mútua se mantenha.

Jason, que investe sua pulsão no primeiro objeto que encontra – propondo atenção

às pequenas minúcias da realidade, torna-se vendedor de árvores de uma organização

ambiental sem fins lucrativos – rapidamente se cansa de bater de porta em porta

perguntando se as pessoas não têm um minuto para mudar o mundo. É importante

ressaltar que ele está tentando fundamentar vínculos; entretanto, sem uma organização

mental prévia, as tentativas se esgotam.

Ainda baseando-se em superstições, Jason acaba por encontra seu mentor, um

senhor chamado Joe que ele conhece graças ao PennySaver, espécie de classificados

populares que anuncia objetos usados. Assim como Marshall, trata-se de uma figura

masculina mais velha. Jason compra um secador de cabelos de Joe e, em troca, recebe

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lições sobre o amor romântico de uma forma inusitada: o velhinho é autor de centenas

de poemas obscenos, presenteados à esposa ao longo dos 62 anos em que estiveram

juntos. Jason se projeta então no velhinho e descobre uma causa à qual vincular sua

libido: uma vida partilhada com Sophie.

Joe, na verdade, não é ator, e faz papel de si mesmo no filme. Miranda July o

conheceu quando passava por uma crise na escrita do roteiro de O Futuro. Como uma

forma de procrastinar e adiar o momento de confrontar o roteiro, July lia o

PennySaver, hábito que ela transferiu a Jason. Quando ela se deparou enfim com um

bloqueio criativo generalizado, o jornal acabou se tornando um projeto paralelo:

anunciando-se como compradora dos excêntricos itens à venda nos classificados

(girinos, bonecos dos Ursinhos Carinhosos, álbuns de fotografias de estranhos), ela

começou a ligar para os vendedores e pedir para entrevistá-los.

Foram, no total, dez entrevistas, que aos poucos permitem a July repensar o filme

que escrevia. O último dos entrevistados foi Joe Putterlik, ex-pintor de paredes de 81

anos. O produto que anunciara era um conjunto de 50 cartões de Natal artesanais,

cada um a um dólar. É neles que se inscrevem os tais poemas apresentados a Jason –

são, na verdade, limeriques, forma lírica monostrófica de cinco linhas cujo padrão

rímico é AABBA.

Genuinamente encantada por Joe, July (2013, p. 199) tem uma espécie de epifania

intimamente relacionada com a angústia que vinha experimentando em relação ao

casamento recente.

“Pensei nos seus sessenta e dois anos de cartões ternos e obscenos, e alguma

coisa se desenrolou dentro de mim. Talvez eu tivesse calculado mal o que

restava da minha vida. Talvez não fosse só troco miúdo. Ou quem sabe a

coisa toda fosse troco miúdo do começo ao fim [...] Eram só todos aqueles

dias, mantidos juntos apenas pela memória frágil de uma pessoa – ou, se

tivermos sorte, de duas. E por causa disso, dessa falta de significado ou de

valor inerente, era admirável. Como a mais intrincada e radical obra de arte,

o tipo de arte que eu estava sempre tentando fazer. Aquilo se atrevia a não

significar nada e com isso exigia tudo da gente.”

Assim, a arte se posta aqui como um caminho possível não só para o

autodescobrimento, advindo da terapia exercida quando do reconhecimento de seus

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impulsos e projeção deles nos personagens, mas também um meio de transformação e

evolução no campo pessoal. Em um processo contínuo de realimentação, July cria

uma arte que a modifica, e sua própria metamorfose é razão de novos

questionamentos e, por isso, de novas criações. Ao abraçar esse processo, a artista

recusa também a ideia de fixidez do Ego, fundamental para a existência de ambos

vida e processo criativo saudáveis. Em entrevista à Julia Bryan-Wilson, July (2004, p.

16) sustenta essa ideia:

“De certa maneira, meu trabalho sempre se relacionou com outras pessoas.

É amorfo e está em constante mutação do mesmo modo que as nossas ideias

sobre nós mesmos estão sempre mudando [...] Cheguei até aqui em grande

parte graças a performances, filmes e histórias, porque são eles que me

ajudam a mudar. Minha arte é como o meu carro. É como eu vou de um

lugar ao outro.”

É possível concluir, dessa forma, que o processo de dominação da realidade para

July se efetiva através da arte, e por esse motivo vida e criação artística estariam

intrinsecamente ligadas.

Através de escritos autobiográficos, supõe-se que essa dominação tenha sido um

processo tardio para a autora. Na crônica “Hands off” (algo como “Tire suas mãos de

mim”, em tradução livre), publicada na revista eletrônica Rookie, July conta que, até

dado momento, ela pressupunha que nada que dissesse ou fizesse teria um impacto na

realidade. Isso graças ao fato de que esta parecia, até o começo da vida adulta da

autora, absolutamente inóspita; um lugar que simplesmente não estava disposto a

aceitá-la. “Você nunca vai fazer parte deste mundo” é a primeira fala da narradora de

“It was romance” [“Romance no ar”]. Em “Free everything” [“Tudo grátis”], crônica

publicada na The New Yorker, July descreve sua primeira reação a um mundo que não

a queria: a cleptomania.

“Todas aquelas instituições [...] pareciam estar dizendo Você não precisa de

nós, nós nunca vamos entendê-la, e é importante que você não queira que

tentemos [...] Levei a mensagem ao pé da letra. Trabalhava de forma

obsessiva, me debruçando sobre questões criativas irreconhecíveis para o

público, forçando minha passagem pelos sistemas e hierarquias como se

nada que um dia tivesse existido fosse relevante para mim [...] Até mesmo

uma caixa de giz que fosse parar no meu bolso me assegurava de que eu

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ainda conservava a minha liberdade – a liberdade de roubar, de me

autodestruir, de arruinar tudo.”

Trata-se da descrição fiel de um funcionamento psíquico que age de acordo com o

Princípio de Prazer, no qual a pulsão destrói a realidade e o próprio organismo por

não ser capaz de tolerar o desprazer produzido pelo contato com a realidade. No caso

de July, um desprazer que vem do sentimento de inadequação, provavelmente produto

de vínculos pouco resistentes com o sistema simbólico vigente – uma característica

que ela transfere à maioria de seus personagens, como dito anteriormente. Na mesma

crônica, todavia, ela descreve a passagem do Princípio de Prazer para o Princípio de

Realidade. Uma transformação que se dá através da arte.

“Eu percebi que não precisava ser criminosa para ser artista. A arte podia

ser, em si, o crime – podia ser amedrontadora e perigosa o suficiente a

ponto de sustentar minha revolução.”

É assim que, assumindo a ligação inseparável entre sua vida e a arte que produz,

July transfere a epifania que teve ao conhecer Joe ao personagem Jason. Assim como

ela, que parecia ter esquecido porque se casara, Jason descobre que aquilo que ele

quer, o objeto no qual deve vincular toda a sua pulsão, é sua esposa, Sophie. No

entanto, não só fundamental para a evolução dramática de Jason na narrativa, essa

conversa basilar também é responsável por uma mudança estética: é a partir dela que

o filme se assume como fantástico.

Dessa maneira, ao voltar para casa depois da conversa com Joe, Jason se depara

com Sophie prestes a deixá-lo. Antes que ela lhe diga as palavras finais, ele

literalmente para o tempo. Comicamente, o mundo se paralisa de modo tal que Jason

precisa sustentar o corpo de Sophie para que sua esposa não caia. É nessa posição

estranha – e engraçada, uma vez que reflete o quão imperfeitos somos; nem um

suposto super-homem com o poder de parar o tempo pode impedir algumas

fatalidades – que a lua, cheia e amarela, aparece na janela do apartamento e inicia um

diálogo com Jason.

Dublada por Joe, a voz pergunta: “Quais são seus planos a longo prazo?”. Jason

responde com uma referência contingente (“Posso mudar de mão quando esta cansar”,

ele diz), demonstrando sua resistência em encarar o panorama global de sua vida, a

realidade – o “futuro”. A conversa, no entanto, permite um gradativo

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desenvolvimento egóico de Jason, culminando no momento em que ele afirma, pela

primeira vez, a castração, que é o primeiro passo para a inserção no Princípio da

Realidade, afinal. “Às 3h15”, diz, referindo-se ao minuto seguinte ao que o tempo

parou, àquele no qual o mundo seguiria, “nós não vamos para a cama juntos outra vez.

E ela não vai enroscar suas pernas nas minhas, e não vamos dormir. E não vamos ter

filhos, e depois não vamos envelhecer juntos. E depois não vamos olhar juntos para a

vida que tivemos, porque nem vamos reconhecer um ao outro”. “Mas você não tem

certeza”, objeta a lua. “Pode ser que dê certo no final.” “Ou não”, Jason fala. “Ou

não”, repete a lua. “Mas eu não poderia suportar isso”, Jason retorque. “Mas você

poderia”, conclui a lua. Sim – ele pode. Bastaria encarar a concretude do real.

Aos poucos, Jason é persuadido pela lua – que nada mais é que uma representação

externalizada de seu Ego, aquilo que dará direção à pulsão, impondo-a na realidade– a

agir no mundo. Quando ele enfim anuncia à lua que está pronto para que os relógios

voltem a se mover, ela retruca: “Eu? Eu esperava que você fizesse alguma coisa”.

Jason, obrigado a lidar com o esforço penoso e o decorrente desprazer deste, enfim

faz com que o tempo volte a passar. É a primeira vez que se insere no mundo como

adulto, um mundo novo que em nada se assemelha com o anterior. A efetiva entrada

na realidade pode ser observada na sequência final do filme, na qual Sophie retorna ao

apartamento. Ao avistá-la, adverte: “Tudo deve parecer tão familiar para você. Como

se você voltasse ao lugar que tanto amou. Deve ser bom. Mas foi embora. Essa é uma

terra completamente nova agora”. Jason inscreveu-se no mundo. Mas os resultados

dessa inscrição ficam em suspensão ao espectador.

Enquanto acontece o diálogo de Jason e a lua, a história de Sophie segue em

paralelo na narrativa, em uma dilatação temporal que apresenta tudo aquilo que ela

viveria ao lado de Marshall caso decidisse ficar com ele. À semelhança de Jason, ela

também vai se inserir na realidade a partir da figura de um pai. Mas, como foi dito

anteriormente, um pai que é também amante, desempenhando um papel de pai-mãe

que aos poucos transforma-se de modo completo em mãe. Sophie se torna, então,

totalmente dependente do amor de Marshall. E, por isso, mais uma vez não consegue

estabelecer um vínculo com a realidade a ponto de modificá-la. Permanece imóvel.

Essa imobilidade se pronuncia de forma mais transparente graças ao recurso

surrealista: em uma dada sequência, décadas se transpõe enquanto Sophie permanece

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no mesmo lugar, como secretária da academia de balé em que trabalhava como

professora. Ela vê suas amigas ficarem grávidas e terem filhos, filhos que serão

matriculados no balé e que mais tarde terão filhos que matricularão no balé. Enquanto

isso, ela mesma não apenas não teve filhos como sequer saiu do lugar da recepção.

É depois da percepção obtida por essa alucinação, baseada em um possível produto

de sua imobilidade, que Sophie finalmente consegue completar sua dança. Esta,

originalmente parte de uma performance, é realizada com a ajuda de uma camisa que

tinha seguido a protagonista até a casa de Marshall. Em entrevista à Katrina Onstad

para a The New York Times Magazine, July (2011, p. 29) explica a motivação para

que a ocasião na qual a protagonista enfrenta a realidade se desse graças a um totem

do passado:

“Essa ideia de que é possível desistir da própria vida, eu a carrego há

tempos. Não queria que ela seja uma ameaça constante. Então pensei: OK, o

que aconteceria? Você vai embora. E o que acontece? Então, percebi: você

é provavelmente assombrado por si mesmo. Sua alma te segue.”

Sophie age pela primeira vez, com isso, de acordo com o Princípio da Realidade,

ação que desencadeia a retomada de uma vida independente de um pai-mãe e a

consequente inserção na realidade. Ela volta ao apartamento em que vivia com Jason,

onde tem de lidar com a possibilidade de estar não em um fim de contos de fadas, em

que viverão felizes para sempre, e sim vivendo uma vida de adultos, de frustrações, de

desprazer e tristeza.

Enquanto Jason e Sophie procuram, cada um à sua maneira, seus caminhos de

dominação da realidade, o gato que deveriam adotar, condição para que embarcassem

na aventura, os espera. Dono de um monólogo transcendental, ele é nada mais que um

símbolo daquilo que os protagonistas procuram: um sonho – que, para ele, é o sonho

de pertencer a alguém. Patinha, ao final do filme, morre. Morre porque representa

uma ideia platônica de inserção na realidade. E Jason e Sophie precisam matar as

idealizações que têm em relação à vida para, enfim, enfrentarem a realidade – para,

quem sabe, criarem um “futuro” a partir dela.

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