Miranda July e a arte como agente de transformação
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO (PUC-Rio)
COMUNICAÇÃO SOCIAL
Miranda July e a arte como agente de transformação:
Uma análise do filme O Futuro a partir dos conceitos de Cássia Chaffin em Uma teoria sobre a alma ou A perdição criadora ao filme
Trabalho feito por Clara Balbi, sob a
orientação da professora Cássia Chaffin, como
requisito de avaliação referente à disciplina de
Processos de Criação e Psicanálise.
RIO DE JANEIRO - RJ
Junho/2013
2
“A duplicação do real pelo cinema busca ultrapassar a mimesis platônica,
representada pelo “inútil” pintor da República: o cinema, com seus
significantes imaginários, cria um mundo próprio, influencia a nossa leitura
do real e altera a percepção que deste temos, tornando-se agente de sua
transformação.”
MENDES, João Maria. “Culturas narrativas dominantes – o caso do
cinema”. Lisboa: Universidade Autônoma de Lisboa, 2009.
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1) Apresentação do objeto
Em O Futuro, Sophie (Miranda July) e Jason (Hamish Linklater) – ela, professora
de balé infantil; ele, responsável pelo suporte técnico de uma empresa de informática
– resolvem adotar Patinha, o gato que encontraram abandonado na rua. Embora
adultos, essa é a primeira coisa viva da qual têm de cuidar; o primeiro passo em
direção à maturidade (o tal “futuro” do título) que, para eles, é traduzida como a
obrigação de ficar presos em casa pelos próximos cinco anos, quando estarão
próximos aos 40. “E 40 são basicamente 50, e depois dos 50, só sobram moedas
soltas”, raciocina Jason. “Moedas soltas?”, pergunta Sophie. “É”, ele responde, “não o
suficiente para conseguir o que você quer”.
O casal se vê então diante de uma angústia existencial que os força a buscar,
durante o mês que têm até que o felino chegue, a autorrealização. Demitem-se de seus
respectivos empregos. Sophie deve usar o tempo para desenvolver um projeto de
dança no YouTube, “30 dias, 30 coreografias”, mas já no segundo dia fica paralisada.
Em pânico, sai de casa e troca o namorado por um pai divorciado suburbano à beira
da ninfomania cujo estilo de vida não poderia ser mais banal. Jason, cuja meta é “estar
alerta” – “às coincidências, coisas em dobro, chamas”, exemplifica –, torna-se
voluntário de um movimento ambiental, mas passa a maior parte do tempo
conversando sobre amor e tempo com o velhinho de quem comprara um secador de
cabelos.
Enquanto isso, à semelhança dos donos, Patinha espera um futuro que fica em
suspenso. O que para o casal é a concretização de idealizações pessoais é, para ele, a
adoção. Dotado de voz (na realidade, uma versão eletronicamente modificada do
timbre de Miranda July), é dele um monólogo intermitente sobre solidão e dor que
representa, metaforicamente, o que se passa com Sophie e Jason no desenrolar do
filme. É nesta parte que, surrealmente, o tempo para e a vida de cada protagonista é
direcionada a possibilidades paralelas: para ela, sexualmente envolvida com o homem
divorciado, trata-se da construção do resto de sua vida com esse homem; para ele, que
vivencia o abandono em relação ao objeto de afeto, é uma espécie de reflexão
realizada com a ajuda de uma lua falante.
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Patinha morre porque os protagonistas esquecem de buscá-lo ao final do mês. A
“vida de verdade” do gato nem mesmo chega a começar. Mas se a execução de
Patinha é literal, a morte experimentada pelo casal é metafórica: neste futuro que
agora adentram, acabam-se as certezas, o platonismo – opondo-se a um início de
filme em que Jason diz, ainda que sarcástico, que achava que a essa altura já teria se
tornado um líder mundial – para adicionar, sutilmente, um ponto de interrogação ao
“futuro” do título.
2) Referencial teórico
O referencial teórico adotado por este trabalho é o psicanalítico, baseado nas
terminologias adotadas por Freud quando do estudo do aparelho mental e de suas
relações com a realidade exterior. A partir desses conceitos e de sua combinação com
a termodinâmica e a Teoria Matemática da Comunicação (SHANNON; WEAVER,
1949), buscaremos analisar o objeto de estudo aqui apresentado, o filme O Futuro, de
Miranda July, à luz da teoria da Perdição Criadora, de Cássia Chaffin.
Freud baseia toda a sua teoria sobre o funcionamento mental na ideia de pulsão.
Definida como uma força constante que impele o organismo à atividade, ela pode ser
vinculada a absolutamente qualquer objeto pois, ao contrário do instinto animal, não
tem suas formas de catexia biologicamente determinadas. A pulsão é, portanto,
absolutamente livre (e, por isso, caótica) em sua origem. Seu objetivo último é a
satisfação, descarregar o aumento de energia provocado por um determinado desejo –
satisfação esta que, paradoxalmente, significa morte, uma vez que pulsão é energia e
descarregá-la significa no organismo significa destruí-lo.
Para melhor entender a dinâmica dessa pulsão, Chaffin a compara ao conceito de
energia na física. A 1a Lei da Termodinâmica, cuja origem remonta às descobertas do
físico inglês James Prescott Joule (1818-1889), postula que a energia total de um
sistema se conserva, ainda que se manifeste de maneiras diferentes (física, mecânica
ou atomicamente, entre outros). No entanto, todas essas formas de energia tendem a
se transformar em calor, em desorganização (entropia, desse modo), ou seja, rumam
para a sua própria morte que, na física, é térmica – é esta a 2a Lei da Termodinâmica.
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Assim como a energia, a pulsão em sua forma primária caminha para o caos e, assim,
para a própria destruição.
Freud nomeia esse modo de relação primeiro do aparelho psíquico com a realidade
de Princípio de Prazer. Nele, a pulsão aparece como sendo “de morte”, operando
somente no sentido imediato de buscar o prazer/evitar o desprazer e manifestando-se
através da fuga ou da destruição do estímulo responsável pelo aumento de tensão
energética. Esse princípio só se sustenta quando existe um agente externo capaz de
aliviar a tensão. Por exemplo, no caso do bebê. Sentindo fome, ele chora – manifesta,
assim, sua pulsão de modo desordenado, sem exercer nenhum tipo de trabalho para
dominar a realidade. No entanto, o Princípio de Prazer se sustenta sem que o
organismo se destrua, pois há um agente externo, a mãe, responsável por realizar uma
determinada tarefa que alivie a tensão sentida pelo bebê. Esse êxito não é verdadeiro
para a grande maioria dos casos: viver de acordo com a dinâmica primitiva do prazer
ameaça a própria existência do organismo. Isso porque o investimento na realidade é
tênue demais para produzir uma satisfação consistente e a ignorância em relação aos
objetos causadores de desprazer permanece. As fontes de desprazer acabam, assim,
recalcados pelo aparelho mental, o que nada mais é do que uma rejeição à realidade.
O Princípio de Prazer é, portanto, a expressão fiel da pulsão originária, caótica, que
caminha para a própria morte.
À pulsão de morte Freud opõe a pulsão de vida, também chamada de libido, cuja
expressão se dá através do processo secundário de funcionamento do aparelho mental,
o Princípio de Realidade. É necessária ressaltar que, na verdade, a pulsão é una: existe
apenas uma energia, que é naturalmente desordenada. Sua tendência natural à morte é
“revirada”, todavia, no momento em que estabelece vínculos com a realidade (coisas,
indivíduos, ideias), impedindo, desse modo, o alívio imediato da tensão. Esse
“reviramento” seria feito ao longo do processo de desenvolvimento do indivíduo, com
a educação da pulsão caótica original no sentido de uma manifestação ordenada. O
sofrimento experimentado nesse processo, oriundo do reconhecimento do desejo e da
falta (denominado castração) e do engajamento na gênese de alguma coisa para
aplacá-lo, gera uma satisfação mais intensa e duradoura, transformando, assim, a
morte em vida. A esse processo denominamos masoquismo feminino ou atividade-
passiva.
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Uma situação similar acontece na termodinâmica. Já dissemos aqui que qualquer
sistema está espontaneamente em processo de autodestruição. Vida, na concepção da
física, é sinônimo de trabalho, luta pela imposição de uma ordem, e no sistema
isolado todos os tipos de energia tendem a se transformar em calor, a manifestação
mais desordenada de energia e, portanto, morte. O contato entre sistemas, entretanto,
retardaria essa tendência à morte, uma vez que os obrigaria a realizar trabalho para,
continuamente, reorganizarem-se – os sistema morreriam, então, no que tange à
organização anterior, mas essa morte significaria apenas o nascimento de uma nova
ordem; de vida, dessarte. Curiosamente, é interessante observar que a desordem, na
termodinâmica, significa equilíbrio, uma vez que a ordem implica instabilidade; basta
pensarmos em uma gaveta de roupas, quase instantaneamente desorganizada ao ser
aberta. De forma análoga, o homem que age conforme o Princípio da Realidade e
vincula sua pulsão aos outros sistemas que compõem o mundo seria capaz de
reorganizar continuamente seu organismo, trazendo à tona a emergência de novos
“eus” a todo tempo. Novamente, é necessário ressaltar que essa alteração demanda
trabalho e sofrimento, uma vez que implica “matar” parte de si mesmo – o que se dá
nos momentos de reconhecimento da castração, a princípio intolerável pela ordem
vigente – para possibilitar o acolhimento dos novos sistemas e vínculos.
Finalmente, para adentrarmos a tese da Perdição Criadora, é fundamental uma
apresentação resumida das instâncias mentais responsáveis pelo funcionamento do
aparelho psíquico humano. São elas o Id, o Ego e o Superego. O Id é a pulsão em sua
forma original caótica, cuja dinâmica é a do Princípio de Prazer – o Id quer
satisfações imediatas. É inconsciente e só temos acesso a ele através da elaboração
onírica ou pelos sintomas neuróticos. O Ego é uma parte do Id capaz de agir conforme
a realidade graças à proximidade com o mundo externo. Ele dá assim, direção à
pulsão do Id, vinculando-a a objetos. No entanto, o Ego está a mercê dessa pulsão. Na
Conferência XXXI: a dissecção da personalidade psíquica, escrita em 1932, Freud
exemplifica a relação entre Id e Ego a partir da comparação com o par cavalo e
cavaleiro: idealmente, o cavalo provê a energia de locomoção e o cavaleiro guia o
movimento do animal. Entretanto, muitas vezes o cavaleiro só consegue guiar o
cavalo na direção que este deseja. O Ego ainda está sob a constante observação do
Superego, instância também inconsciente responsável por fornecer e manter um
modelo de vida ideal. Trata-se, por isso, de uma instância fundamental, pois dá
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sentido a uma vida que é na origem absolutamente livre, e, por isso, destrutiva. Por
vezes, contudo, o Superego, instância que assume o papel de fornecer amor/ameaçar
de castigo (chamados por Freud de “sinais de perda de amor”) exercido pelos pais em
um primeiro momento, paralisa o indivíduo. Isso porque, ao fixar o Ego na
manutenção de uma suposta identidade, ele acaba recalcando o Id e, com isso,
negando a realidade. A tradução do Princípio da Realidade, modo mais saudável de
funcionamento do aparelho psíquico, para a dinâmica das instâncias mentais
representaria, assim, o seguinte: um Ego capaz de direcionar o Id sem se deixar ser
tomado por sua violência e tendência à destrutividade, e apto a expandir sua
percepção sem se deixar paralisar pelo Superego, que não quer reconhecer a castração,
imprevista pelo seu modelo de vida ideal. Um Eu plástico que mate a si mesmo a cada
vez que suas representações ideais forem paralisadoras para incluir em constante devir
as exigências do ID, do Superego e da realidade externa e criar uma nova ordem, uma
nova vida.
A Perdição Criadora defendida por Chaffin trata da radicalização desse Princípio
da Realidade com o intuito de produzir novos códigos, rupturas com o padrão
existente. Não trata, dessa forma, da simples superação do processo primário de
obtenção de prazer. Tornar-se um perdido criador significa mais do que abarcar o Id e
não se deixar paralisar pelo Superego, a representação da sociedade que habita nossas
mentes. É perder-se no Id e, enfrentando o desprazer oriundo da insistência no vínculo
libidinal, impor a própria fantasia na realidade, na sociedade – sociedade esta que,
modelo a partir do qual o Superego foi moldado, é naturalmente avessa às
transformações.
Para explicar o conceito, a autora se utiliza da Teoria da Informação ou Teoria
Matemática da Comunicação, publicada por Claude Shannon e Warren Weaver em
1949. Esta afirma que o sistema que não se submete a um código está no estado de
entropia, no qual qualquer sinal emitido tem a mesma probabilidade de construir uma
mensagem. Um código ao qual esse texto fosse submetido, todavia, estabeleceria
previsibilidades, limitando a sua liberdade; logo, tornaria o texto facilmente
entendível. Para Shannon e Weaver, contudo, a previsibilidade instaurada pelo código,
se demasiada, torna o texto entediante. É necessário um relativo nível de entropia, de
“ruído”, para tornar uma mensagem sedutora aos olhos do receptor. Na arte, essa
necessidade é ainda mais pronunciada, uma vez que ela se baseia na contínua
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transformação do código. Por isso, mensagens artística tendem a apresentar um
elevado grau de entropia, de ininteligibilidade – tão elevado que às vezes parecem
puro ruído, sem significado. Daí a afirmação de que a entropia é fundamental para a
inovação desses códigos. É só a partir do caos que é possível a emergência do
verdadeiramente original; é só a partir da Perdição que podemos criar algo
efetivamente novo.
Não obstante, ainda utilizam-se neste trabalho falas da própria Miranda July, a
perdida criadora em questão, retiradas de entrevistas para veículos jornalísticos e de
escritos autobiográficos, em especial o livro O escolhido foi você, espécie de diário de
bordo sobre o processo de feitura de O Futuro, filme que me proponho a analisar aqui,
e as crônicas publicadas no portal da revista norte-americana The New Yorker na
internet. Ressalto também a importância do misto de entrevista e ensaio “Some Kind
of Grace”, de Julia Bryan-Wilson, professora adjunta da Universidade da Califórnia.
Utilizo ainda críticas do filme publicadas nos portais de alguns dos jornais e revistas
de língua inglesa mais reconhecidos: The New York Times, The New Yorker e The
Guardian.
Quanto a essas fontes bibliográficas, em sua maioria estrangeiras, utilizo no
trabalho traduções livres das citações do inglês para o português; a única exceção é o
livro O escolhido foi você, que consulto aqui em edição de 2013 da Companhia das
Letras e tradução de Celina Portocarrero.
3) Justificativa da escolha do objeto
O Futuro, objeto de estudo sobre o qual esta análise se debruça, é o segundo filme
da artista norte-americana Miranda July. Escolho aqui um termo vago para designar
sua profissão propositalmente: intérprete da protagonista e responsável pela direção
do filme, July, que começou sua carreira com performances, já se aventurou pela
literatura – ganhou em 2007 o prêmio Frank O’Connor para contos com a coletânea É
claro que você sabe do que estou falando – , pelas artes plásticas e pelo cinema.
Embora multimídia, July é monotemática: no cerne da construção da maioria de
seus personagens, há a questão do isolamento, do não-pertencimento a uma ordem – e
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da consequente busca, ainda que muito desajeitada, por esse lugar. “Todos os seus
personagens desejam se conectar – mas raramente conseguem”, escreveu a jornalista
Katrina Onstad em um perfil da artista para a The New York Times Magazine. Talvez
precisamente porque os indivíduos da ficção de July pareçam agir como crianças,
desconhecendo o funcionamento da realidade a tal ponto que são incapazes de agir
nela e, portanto, de interagir com quem a partilha. Por isso, propõem explicações
absurdas para fenômenos tão ordinários quanto adotar um gato – que, para o casal que
protagoniza O Futuro, torna-se uma questão existencial – , do mesmo modo que,
quando somos mais novos, achamos que a televisão funciona graças a um exército de
pessoas pequenas que se alternam em papéis diversos. Os personagens de July
simplesmente não estabeleceram vínculos com o sistema simbólico fortes o suficiente
para que sejam capazes de se organizar. Estão à deriva do mundo; perdidos, desse
modo.
Encontro no surrealismo que deriva dessa lógica alternativa de pensamento uma
das grandes originalidades de July. O jornalista norte-americano Anthony Oliver Scott,
em uma crítica de O Futuro publicada no The New Yorker, define esse surrealismo
como a “habilidade de transformar os fatos prosaicos do mundo em mágica”. Para
Julia Bryan-Wilson (2004, p. 1)., professora da Universidade da Califórnia, o trabalho
de July habitaria um mundo em que o familiar ou o conhecido torna-se subitamente
estrangeiro. Embora essa lógica do absurdo seja responsável pela inabilidade dos
personagens da autora em relação ao mundo, a mim, espectadora, ela chega como
uma oportunidade especialmente libertadora de fugir à racionalidade tradicional – e,
com isso, perceber novas maneiras de enxergar o mundo. Admito que muito
possivelmente essa identificação tem algo de nostalgia infantil. Mas talvez se trate de
um lembrete de que é preciso acolher essa lógica que foge à sociedade vez ou outra
em nome do desenvolvimento do Ego – e, ao contrário dos personagens de July que
não conseguem agir no mundo, impor essa nova lógica à sociedade.
No entanto, acho que foi a identificação com a sensação de estar perdido que fez
com que eu me encantasse tanto pelo trabalho de Miranda July. É nessa mesma
questão que vejo uma contemporaneidade latente em seu discurso. O mundo de hoje
apresenta uma multiplicidade de discursos gigantesca, discursos que se sobrepõem e
negam uns aos outros sem que sejam em momento algum descreditados – movimento
este que é qualificado pelo poeta e crítico mexicano Octávio Paz (SANTOS, 2011)
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como o grande paradoxo da modernidade. A partir da ruptura com o Antigo Regime,
a razão tornou-se autossuficiente; a comprovação científica passou a cunhar verdades
dogmáticas, inquestionáveis. No entanto, essa mesma razão começou a,
simultaneamente, exercer crítica sobre si mesma, levando-a a negar o raciocínio
anterior a cada nova experiência – que, por sua vez, será novamente inquestionável. A
verdade está, desse modo, sempre em mutação.
De uma certa forma, portanto, também estamos à deriva. Na era da dialética, só há
o multiperspectivismo. Mas, de novo, é necessário ressaltar que trata-se de uma
perdição que, tal qual defende Chaffin, cabe a nós transformar em criação.
4) Análise do objeto
O casal que protagoniza O Futuro está definitivamente perdido. Sophie e Jason
resolvem adotar um gato que encontraram abandonado na rua. Embora sejam adultos,
não vivem propriamente uma vida adulta. São casados, mas a única evidência disso é
o fato de que partilham a cama. Ela é professora de balé infantil e ele, responsável
remoto pelo suporte técnico de uma empresa de informática, mas seus empregos
parecem aleatórios tal é o nível de não-identificação dos personagens com suas
respectivas ocupações. Quietos e excêntricos com seus cortes de cabelo idêntico, as
conversas que travam mais parecem diálogos infantis. São absurdos, como
brincadeiras – entre elas, uma particularmente delicada sobre parar o tempo se mostra
fundamental à trama – , e subliminarmente denotam uma resistência passivo-agressiva
às demandas de responsabilidade e engajamento da vida adulta. Talvez por uma
infraestrutura parental precária, Sophie e Jason são adultos desorganizados. Podem
tudo – mas, sem ordem que dê direcionamento a essa pulsão, não podem nada.
Resolvem adotar um gato que encontraram machucado na rua. Chamam-no de
Patinha. No entanto, Patinha é a primeira coisa viva da qual têm de cuidar, e para
cuidar de algo, eles sabem, é necessário entrar no mundo adulto. O peso da
responsabilidade os aterroriza; adentram uma crise existencial. Decidem, então, que
durante os trinta dias restantes até que Patinha chegue, realizarão seus sonhos. Mas
sonhos tão perdidos quanto os próprios protagonistas: Sophie pretende realizar um
projeto de dança no YouTube; Jason tem como meta “estar alerta às coincidências,
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coisas em dobro, chamas”. Quanto ao objetivo de Jason, trata-se de uma superstição
que evidencia a isenção de um encargo pessoal de responsabilidade do Ego (ordenar e
direcionar a pulsão) para atribuí-lo a um Outro ilusório. Analogamente, é a mesma
questão que Freud (2011, p. 16) vê na religião e à qual se opõe de modo radical. Esta
posição é explicitada no início de O mal-estar na civilização.
“Posso imaginar que o sentimento oceânico tenha se vinculado à religião
posteriormente. Este ser-um com o universo, que é o seu conteúdo ideativo,
apresenta-se-nos como uma tentativa inicial de consolação religiosa, como
um outro caminho para negar o perigo que o Eu percebe a ameaça-lo do
mundo exterior.”
Nessa perseguição inicial de uma autorrealização pessoal idealizada e desvinculada
do mundo real, Sophie e Jason se deparam pela primeira vez com o desprazer advindo
do vínculo efetivo com objetos. Mas, na desordem absoluta que representam como
casal, não são capazes de suportar o desprazer em nome de um gozo maior.
Precisariam, antes, de estabelecimentos menos audaciosos com a realidade. Então,
fogem.
Sophie, em especial, evita o objeto de desprazer de uma maneira particularmente
destrutiva – é pura pulsão de morte. Ao contrário de Jason, ela tem um pouco mais de
clareza em relação ao que quer, mas por isso tem projeções superegóicas paralisantes,
projeções que na verdade são alheias à vida real. Diante da frustração de não
conseguir realizar o projeto, desespera-se. Na tentativa de manter seu vínculo com o
objeto, chega a cancelar a internet da casa, convencida de que é isto que a impede de
ser bem-sucedida. Não é: ela simplesmente não consegue enfrentar o desprazer de
lidar com a realidade, um tipo de relação que ela nunca viveu plenamente.
Miranda July, como a personagem que interpreta, também encontra um Superego
que a paralisa no início de sua vida. Conta, em O escolhido foi você, sobre a primeira
vez que elaborou um projeto artístico: aos 9 anos, ocorreu-lhe a ideia de construir uma
versão da cidade em que morava com caixas de cereal – uma ideia que, durante cerca
de uma hora, foi apaixonadamente alimentada. Porém, a ideia não se tornou realidade.
Isso porque uma voz interior, cuja função é a de representar na mente a sociedade,
interviu. É o Superego de July, o qual ela apelida, irônica, de “Autoridades Locais”.
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Escrevendo O Futuro, July já não é mais como há 25 anos atrás – ou como sua
protagonista, Sophie. Reconhecendo de forma consciente a repressão do Superego
como uma trava a mudança, July (2013, p. 179) se permite abraçar a energia que a
incita a “sentir coisas novas” e institui nela o processo de transformação necessário à
vida e à criação, ignorando, desse modo, as ditas Autoridades Locais.
“Mas também tive a certeza de que o pensamento em si era a única coisa
que me paralisava, como uma maldição de bruxa – ou, melhor, como os
caçadores de bruxas, essas mesquinhas e temíveis Autoridades Locais.
Desde aquela época até aquele exato momento, eu tinha feito o possível
para evitá-las, mas depois de quase três décadas de superstições concluí que
as Autoridades Locais estão sempre lá, por dentro e por fora, e ficam mais
irritadas quando eu começo a mudar. Cada vez que sinto alguma coisa nova,
as Autoridades Locais intervêm e gentilmente me encorajam a me queimar
viva.”
Trata-se de uma vivência muito semelhante àquilo que Chaffin descreve como as
travas possíveis à “perdição criadora”. Esta, ainda, implica necessariamente em uma
submissão ao Princípio de Realidade. É fundamental abarcar não só as exigências da
realidade interna, mas também do mundo externo e de seu funcionamento. A diretora
não pode esperar, como Sophie, que a imposição de seu projeto no mundo se dê sem
desprazer, sem sofrimento. Na realidade, ela reconhece nessa relação entre fantasia e
realidade que se estabelece no momento da feitura de um filme o sentimento de estar
em guerra. Afinal, a realidade não existe para nos dar satisfação. Mas o gozo obtido
através da luta contra ela é qualitativamente superior que o da fuga ou da destruição.
E, assim, é não com paralização, mas com uma atitude desafiadora que July (2013, p.
200) se coloca frente às Autoridades Locais de sua mente e da realidade.
“Eu sabia que não seria bem-sucedida naquilo, na hora de reencenar eu faria
uma coisa um pouco mais desajeitada e menos interessante do que a vida
real. Mas não eram as Autoridades Locais que me diziam isso; vinha mais
de cima, ou bem lá de baixo, e vinha com um sorriso – um sorrisinho meio
rebelde e provocador, um desafio. Sorri de volta.”
Sophie, todavia, não sabe como se comportar diante da frustração que encontra ao
não conseguir desenvolver sua dança, o que advém de sua incapacidade de sair de um
estado infantil e fantasioso. De modo impulsivo, ela liga para um número de telefone
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que encontra no verso de um quadro do seu apartamento. Em uma fuga desesperada
de si mesma, encontra no dono do telefone um viúvo, Marshall. Acaba se
relacionando sexualmente com ele, e em pouco tempo muda-se para a sua casa. Em
uma fala de O escolhido foi você, a autora explica o comportamento da protagonista:
“No mundo suburbano de Marshall, Sophie não precisa ser ela mesma; enquanto
estiver lá, não precisará mais tentar (e falhar).”
July parece entender perfeitamente as angústias de Sophie. Também no mesmo
livro, ela expõe, claramente: “ ...Sophie representava todas as minhas dúvidas e o
pesadelo de quem eu seria se sucumbisse a elas...”. A personagem, não
coincidentemente interpretada pela diretora, é seu alterego – um eu inconsciente que
representa uma versão dela mesma.
No caso, uma versão que consegue escapar do próprio matrimônio. Na época da
escrita do roteiro, a artista tinha acabado de se casar com Mike Mills, também diretor
cinematográfico. Depois de casada, a pura ideia da união passou a aterrorizá-la:
“Agora que eu tinha prometido ficar com aquele homem até morrer, eu também
pensava muito na morte. Parecia que eu não tinha me casado só com ele, mas me
casado também com a minha morte”, confessa, ainda em O escolhido foi você. Narrar
a história de uma mulher que abandonava a própria vida era, portanto, uma espécie de
purgação pessoal.
Purificação esta que não deixa de ser uma forma de acolher o Id e de instituir as
próprias construções fantasiosas na realidade. Para Chaffin, seria exatamente esse
processo de ultrapassar tanto as limitações da descarga pulsional imediata que
caracteriza o Princípio de Prazer (pois July não traiu ou abandonou o marido, como
ditava seu inconsciente) quanto os limites da própria realidade – uma vez que a autora
se utiliza da ficção, que é por definição a criação de uma alternativa ao mundo
concreto – a definição da Perdição Criadora. Ao transformar seus mais dionisíacos
impulsos em construção artística, matéria fílmica, July produziu um gozo superior
daquele oriundo de ambos os Princípio de Prazer e o Princípio da Realidade, o mais-
de-gozar. Além disso, transformou a própria vida, uma vez que, de acordo com Freud
(1969, p. 38) o único modo de destituir a pulsão de sua força destrutiva é através de
sua enunciação, de sua emergência à consciência.
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“Só podem [os impulsos] ser reconhecidos como pertencentes ao passado,
só podem perder sua importância e ser destituídos de sua catexia de energia,
quando tornados conscientes pelo trabalho de análise, e é nisto que, em
grande parte, se baseia o efeito terapêutico do tratamento analítico.”
Resta-nos o questionamento, apenas, se a ficção de July é efetivamente capaz de
inaugurar novos códigos, transformando não só uma realidade própria como também
a realidade coletiva, o sistema simbólico vigente, tal qual o verdadeiro perdido
criador faz. Isso, contudo, só o tempo dirá.
O alterego de July está, dessa forma, em fuga. “Não por paixão”, defende Miranda
July; apenas para se colocar inteira nas mãos de alguém, como uma criança. Assim,
tal qual uma criança, Sophie busca na figura de Marshall, um viúvo
consideravelmente mais velho que ela, um pai capaz de organizá-la, de apresentar
caminhos de direção a sua pulsão. A desordem desta chega a ser explicitada em um
momento posterior do filme, no qual a moça conversa com Jason. “Eu sou selvagem”,
admite – e com isso ela expressa que há uma pulsão descontrolada, destrutiva vivendo
nesse momento dentro dela. Por outro lado, não é à toa que esse pai é também seu
amante, encarregado de lhe dar um amor gratuito que lhe isente da responsabilidade
de uma identidade planejada, papel este que é em um primeiro momento ocupado pela
mãe. Marshall é, portanto, uma espécie de pai-mãe que, se em um primeiro momento
se apresenta como pai capaz de inserir Sophie em uma ordem, logo se torna uma mãe
imobilizadora, que não permite o desenvolvimento do Ego do filho para que a relação
de dependência mútua se mantenha.
Jason, que investe sua pulsão no primeiro objeto que encontra – propondo atenção
às pequenas minúcias da realidade, torna-se vendedor de árvores de uma organização
ambiental sem fins lucrativos – rapidamente se cansa de bater de porta em porta
perguntando se as pessoas não têm um minuto para mudar o mundo. É importante
ressaltar que ele está tentando fundamentar vínculos; entretanto, sem uma organização
mental prévia, as tentativas se esgotam.
Ainda baseando-se em superstições, Jason acaba por encontra seu mentor, um
senhor chamado Joe que ele conhece graças ao PennySaver, espécie de classificados
populares que anuncia objetos usados. Assim como Marshall, trata-se de uma figura
masculina mais velha. Jason compra um secador de cabelos de Joe e, em troca, recebe
15
lições sobre o amor romântico de uma forma inusitada: o velhinho é autor de centenas
de poemas obscenos, presenteados à esposa ao longo dos 62 anos em que estiveram
juntos. Jason se projeta então no velhinho e descobre uma causa à qual vincular sua
libido: uma vida partilhada com Sophie.
Joe, na verdade, não é ator, e faz papel de si mesmo no filme. Miranda July o
conheceu quando passava por uma crise na escrita do roteiro de O Futuro. Como uma
forma de procrastinar e adiar o momento de confrontar o roteiro, July lia o
PennySaver, hábito que ela transferiu a Jason. Quando ela se deparou enfim com um
bloqueio criativo generalizado, o jornal acabou se tornando um projeto paralelo:
anunciando-se como compradora dos excêntricos itens à venda nos classificados
(girinos, bonecos dos Ursinhos Carinhosos, álbuns de fotografias de estranhos), ela
começou a ligar para os vendedores e pedir para entrevistá-los.
Foram, no total, dez entrevistas, que aos poucos permitem a July repensar o filme
que escrevia. O último dos entrevistados foi Joe Putterlik, ex-pintor de paredes de 81
anos. O produto que anunciara era um conjunto de 50 cartões de Natal artesanais,
cada um a um dólar. É neles que se inscrevem os tais poemas apresentados a Jason –
são, na verdade, limeriques, forma lírica monostrófica de cinco linhas cujo padrão
rímico é AABBA.
Genuinamente encantada por Joe, July (2013, p. 199) tem uma espécie de epifania
intimamente relacionada com a angústia que vinha experimentando em relação ao
casamento recente.
“Pensei nos seus sessenta e dois anos de cartões ternos e obscenos, e alguma
coisa se desenrolou dentro de mim. Talvez eu tivesse calculado mal o que
restava da minha vida. Talvez não fosse só troco miúdo. Ou quem sabe a
coisa toda fosse troco miúdo do começo ao fim [...] Eram só todos aqueles
dias, mantidos juntos apenas pela memória frágil de uma pessoa – ou, se
tivermos sorte, de duas. E por causa disso, dessa falta de significado ou de
valor inerente, era admirável. Como a mais intrincada e radical obra de arte,
o tipo de arte que eu estava sempre tentando fazer. Aquilo se atrevia a não
significar nada e com isso exigia tudo da gente.”
Assim, a arte se posta aqui como um caminho possível não só para o
autodescobrimento, advindo da terapia exercida quando do reconhecimento de seus
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impulsos e projeção deles nos personagens, mas também um meio de transformação e
evolução no campo pessoal. Em um processo contínuo de realimentação, July cria
uma arte que a modifica, e sua própria metamorfose é razão de novos
questionamentos e, por isso, de novas criações. Ao abraçar esse processo, a artista
recusa também a ideia de fixidez do Ego, fundamental para a existência de ambos
vida e processo criativo saudáveis. Em entrevista à Julia Bryan-Wilson, July (2004, p.
16) sustenta essa ideia:
“De certa maneira, meu trabalho sempre se relacionou com outras pessoas.
É amorfo e está em constante mutação do mesmo modo que as nossas ideias
sobre nós mesmos estão sempre mudando [...] Cheguei até aqui em grande
parte graças a performances, filmes e histórias, porque são eles que me
ajudam a mudar. Minha arte é como o meu carro. É como eu vou de um
lugar ao outro.”
É possível concluir, dessa forma, que o processo de dominação da realidade para
July se efetiva através da arte, e por esse motivo vida e criação artística estariam
intrinsecamente ligadas.
Através de escritos autobiográficos, supõe-se que essa dominação tenha sido um
processo tardio para a autora. Na crônica “Hands off” (algo como “Tire suas mãos de
mim”, em tradução livre), publicada na revista eletrônica Rookie, July conta que, até
dado momento, ela pressupunha que nada que dissesse ou fizesse teria um impacto na
realidade. Isso graças ao fato de que esta parecia, até o começo da vida adulta da
autora, absolutamente inóspita; um lugar que simplesmente não estava disposto a
aceitá-la. “Você nunca vai fazer parte deste mundo” é a primeira fala da narradora de
“It was romance” [“Romance no ar”]. Em “Free everything” [“Tudo grátis”], crônica
publicada na The New Yorker, July descreve sua primeira reação a um mundo que não
a queria: a cleptomania.
“Todas aquelas instituições [...] pareciam estar dizendo Você não precisa de
nós, nós nunca vamos entendê-la, e é importante que você não queira que
tentemos [...] Levei a mensagem ao pé da letra. Trabalhava de forma
obsessiva, me debruçando sobre questões criativas irreconhecíveis para o
público, forçando minha passagem pelos sistemas e hierarquias como se
nada que um dia tivesse existido fosse relevante para mim [...] Até mesmo
uma caixa de giz que fosse parar no meu bolso me assegurava de que eu
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ainda conservava a minha liberdade – a liberdade de roubar, de me
autodestruir, de arruinar tudo.”
Trata-se da descrição fiel de um funcionamento psíquico que age de acordo com o
Princípio de Prazer, no qual a pulsão destrói a realidade e o próprio organismo por
não ser capaz de tolerar o desprazer produzido pelo contato com a realidade. No caso
de July, um desprazer que vem do sentimento de inadequação, provavelmente produto
de vínculos pouco resistentes com o sistema simbólico vigente – uma característica
que ela transfere à maioria de seus personagens, como dito anteriormente. Na mesma
crônica, todavia, ela descreve a passagem do Princípio de Prazer para o Princípio de
Realidade. Uma transformação que se dá através da arte.
“Eu percebi que não precisava ser criminosa para ser artista. A arte podia
ser, em si, o crime – podia ser amedrontadora e perigosa o suficiente a
ponto de sustentar minha revolução.”
É assim que, assumindo a ligação inseparável entre sua vida e a arte que produz,
July transfere a epifania que teve ao conhecer Joe ao personagem Jason. Assim como
ela, que parecia ter esquecido porque se casara, Jason descobre que aquilo que ele
quer, o objeto no qual deve vincular toda a sua pulsão, é sua esposa, Sophie. No
entanto, não só fundamental para a evolução dramática de Jason na narrativa, essa
conversa basilar também é responsável por uma mudança estética: é a partir dela que
o filme se assume como fantástico.
Dessa maneira, ao voltar para casa depois da conversa com Joe, Jason se depara
com Sophie prestes a deixá-lo. Antes que ela lhe diga as palavras finais, ele
literalmente para o tempo. Comicamente, o mundo se paralisa de modo tal que Jason
precisa sustentar o corpo de Sophie para que sua esposa não caia. É nessa posição
estranha – e engraçada, uma vez que reflete o quão imperfeitos somos; nem um
suposto super-homem com o poder de parar o tempo pode impedir algumas
fatalidades – que a lua, cheia e amarela, aparece na janela do apartamento e inicia um
diálogo com Jason.
Dublada por Joe, a voz pergunta: “Quais são seus planos a longo prazo?”. Jason
responde com uma referência contingente (“Posso mudar de mão quando esta cansar”,
ele diz), demonstrando sua resistência em encarar o panorama global de sua vida, a
realidade – o “futuro”. A conversa, no entanto, permite um gradativo
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desenvolvimento egóico de Jason, culminando no momento em que ele afirma, pela
primeira vez, a castração, que é o primeiro passo para a inserção no Princípio da
Realidade, afinal. “Às 3h15”, diz, referindo-se ao minuto seguinte ao que o tempo
parou, àquele no qual o mundo seguiria, “nós não vamos para a cama juntos outra vez.
E ela não vai enroscar suas pernas nas minhas, e não vamos dormir. E não vamos ter
filhos, e depois não vamos envelhecer juntos. E depois não vamos olhar juntos para a
vida que tivemos, porque nem vamos reconhecer um ao outro”. “Mas você não tem
certeza”, objeta a lua. “Pode ser que dê certo no final.” “Ou não”, Jason fala. “Ou
não”, repete a lua. “Mas eu não poderia suportar isso”, Jason retorque. “Mas você
poderia”, conclui a lua. Sim – ele pode. Bastaria encarar a concretude do real.
Aos poucos, Jason é persuadido pela lua – que nada mais é que uma representação
externalizada de seu Ego, aquilo que dará direção à pulsão, impondo-a na realidade– a
agir no mundo. Quando ele enfim anuncia à lua que está pronto para que os relógios
voltem a se mover, ela retruca: “Eu? Eu esperava que você fizesse alguma coisa”.
Jason, obrigado a lidar com o esforço penoso e o decorrente desprazer deste, enfim
faz com que o tempo volte a passar. É a primeira vez que se insere no mundo como
adulto, um mundo novo que em nada se assemelha com o anterior. A efetiva entrada
na realidade pode ser observada na sequência final do filme, na qual Sophie retorna ao
apartamento. Ao avistá-la, adverte: “Tudo deve parecer tão familiar para você. Como
se você voltasse ao lugar que tanto amou. Deve ser bom. Mas foi embora. Essa é uma
terra completamente nova agora”. Jason inscreveu-se no mundo. Mas os resultados
dessa inscrição ficam em suspensão ao espectador.
Enquanto acontece o diálogo de Jason e a lua, a história de Sophie segue em
paralelo na narrativa, em uma dilatação temporal que apresenta tudo aquilo que ela
viveria ao lado de Marshall caso decidisse ficar com ele. À semelhança de Jason, ela
também vai se inserir na realidade a partir da figura de um pai. Mas, como foi dito
anteriormente, um pai que é também amante, desempenhando um papel de pai-mãe
que aos poucos transforma-se de modo completo em mãe. Sophie se torna, então,
totalmente dependente do amor de Marshall. E, por isso, mais uma vez não consegue
estabelecer um vínculo com a realidade a ponto de modificá-la. Permanece imóvel.
Essa imobilidade se pronuncia de forma mais transparente graças ao recurso
surrealista: em uma dada sequência, décadas se transpõe enquanto Sophie permanece
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no mesmo lugar, como secretária da academia de balé em que trabalhava como
professora. Ela vê suas amigas ficarem grávidas e terem filhos, filhos que serão
matriculados no balé e que mais tarde terão filhos que matricularão no balé. Enquanto
isso, ela mesma não apenas não teve filhos como sequer saiu do lugar da recepção.
É depois da percepção obtida por essa alucinação, baseada em um possível produto
de sua imobilidade, que Sophie finalmente consegue completar sua dança. Esta,
originalmente parte de uma performance, é realizada com a ajuda de uma camisa que
tinha seguido a protagonista até a casa de Marshall. Em entrevista à Katrina Onstad
para a The New York Times Magazine, July (2011, p. 29) explica a motivação para
que a ocasião na qual a protagonista enfrenta a realidade se desse graças a um totem
do passado:
“Essa ideia de que é possível desistir da própria vida, eu a carrego há
tempos. Não queria que ela seja uma ameaça constante. Então pensei: OK, o
que aconteceria? Você vai embora. E o que acontece? Então, percebi: você
é provavelmente assombrado por si mesmo. Sua alma te segue.”
Sophie age pela primeira vez, com isso, de acordo com o Princípio da Realidade,
ação que desencadeia a retomada de uma vida independente de um pai-mãe e a
consequente inserção na realidade. Ela volta ao apartamento em que vivia com Jason,
onde tem de lidar com a possibilidade de estar não em um fim de contos de fadas, em
que viverão felizes para sempre, e sim vivendo uma vida de adultos, de frustrações, de
desprazer e tristeza.
Enquanto Jason e Sophie procuram, cada um à sua maneira, seus caminhos de
dominação da realidade, o gato que deveriam adotar, condição para que embarcassem
na aventura, os espera. Dono de um monólogo transcendental, ele é nada mais que um
símbolo daquilo que os protagonistas procuram: um sonho – que, para ele, é o sonho
de pertencer a alguém. Patinha, ao final do filme, morre. Morre porque representa
uma ideia platônica de inserção na realidade. E Jason e Sophie precisam matar as
idealizações que têm em relação à vida para, enfim, enfrentarem a realidade – para,
quem sabe, criarem um “futuro” a partir dela.
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5) Bibliografia
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