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MODELOS DE AUTONOMIA INDIVIDUAL E ESTADO DE DIREITO EM HEGEL Agemir Bavaresco 1 Sérgio B. Christino 2 Resumo: A autonomia individual emergente manifesta-se apática e insensível em relação às questões coletivas e à realidade social. Fixa-se num consumo ilimitado de bens e serviços, segundo o estilo de vida e a forma de uma individualidade centrada em si mesma. Esse conceito de liberdade, como autodependência ou auto-satisfação, com todo seu potencial destrutivo, conduz-nos ao impacto de uma crise ecológica sem precedentes. Ora, em que medida a mundialização, constituindo-se numa sociedade de indivíduos, apresenta semelhanças e diferenças, por exemplo, com o Estado de Direito, conforme esta figura é tematizada na Fenomenologia do Espírito? Se a autonomia do indivíduo hegeliano passa pelo reconhecimento da pessoa abstrata, pelo sujeito capaz de agir e pelo cidadão organicamente inserido na sociedade civil e no Estado, quais os alcances e limites do reconhecimento numa futura autonomia individual mundializada? Diante dessa inquietação, apresentamos, primeiramente, os modelos antropológicos de autonomia individual subjetiva e os modelos antropológicos de autonomia intersubjetiva. Depois, estudamos a figura do estado de Direito na Fenomenologia de Hegel e, no final, apontamos alguns desafios ao futuro da autonomia em face ao estado de Direito atual. Palavras-Chave: Autonomia, Estado de Direito, Filosofia, Fenomenologia do Espírito. Abstract: The emergent individual autonomy reveals to be apathetic and indifferent facing collective inquiries and social reality. It becomes fixed in a limitless expenditure of goods and services, according to the lifestyle and the form of an individuality centered in oneself. This idea of freedom like self-dependence or self-satisfaction, with all its destructive potential, drives us to the impact of an ecological crisis without precedence. But in what measure the mundialization, being a society of individuals, presents similarities and differences, for example with the State of Law, according as this image is described in Phenomenology of the Spirit? If the hegelian individual autonomy undergoes the abstract person's recognition, the subject able to act, and the citizen organically inserted in the civil society and in the State, what are the reaches and limits of the recognition in a future world-wide individual autonomy? Due to this uneasiness, we present, at first, the anthropological patterns of subjective individual autonomy and the anthropological patterns of inter-subjective autonomy. Afterwards, we study the image of the State of Law in Hegel‘s Phenomenology, and, at the end, we point out some challenges to the future of the autonomy in view of the present state of the Law. Keywords: Autonomy, State of Law, Philosophy, Phenomenology of the Spirit. 1 Doutor pela Universidade de Paris 1, Professor do PPG em Filosofia PUCRS e Pesquisador na linha jusfilosófica. 2 Advogado, UFPEL, Assistente de Administração e Pesquisador na linha jusfilosófica.

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MODELOS DE AUTONOMIA INDIVIDUAL

E ESTADO DE DIREITO EM HEGEL

Agemir Bavaresco 1

Sérgio B. Christino 2

Resumo: A autonomia individual emergente manifesta-se apática e insensível em relação às

questões coletivas e à realidade social. Fixa-se num consumo ilimitado de bens e serviços, segundo

o estilo de vida e a forma de uma individualidade centrada em si mesma. Esse conceito de

liberdade, como autodependência ou auto-satisfação, com todo seu potencial destrutivo, conduz-nos

ao impacto de uma crise ecológica sem precedentes.

Ora, em que medida a mundialização, constituindo-se numa sociedade de indivíduos,

apresenta semelhanças e diferenças, por exemplo, com o Estado de Direito, conforme esta figura é

tematizada na Fenomenologia do Espírito? Se a autonomia do indivíduo hegeliano passa pelo

reconhecimento da pessoa abstrata, pelo sujeito capaz de agir e pelo cidadão organicamente

inserido na sociedade civil e no Estado, quais os alcances e limites do reconhecimento numa futura

autonomia individual mundializada?

Diante dessa inquietação, apresentamos, primeiramente, os modelos antropológicos de

autonomia individual subjetiva e os modelos antropológicos de autonomia intersubjetiva. Depois,

estudamos a figura do estado de Direito na Fenomenologia de Hegel e, no final, apontamos alguns

desafios ao futuro da autonomia em face ao estado de Direito atual.

Palavras-Chave: Autonomia, Estado de Direito, Filosofia, Fenomenologia do Espírito.

Abstract: The emergent individual autonomy reveals to be apathetic and indifferent facing

collective inquiries and social reality. It becomes fixed in a limitless expenditure of goods and

services, according to the lifestyle and the form of an individuality centered in oneself. This idea of

freedom like self-dependence or self-satisfaction, with all its destructive potential, drives us to the

impact of an ecological crisis without precedence.

But in what measure the mundialization, being a society of individuals, presents similarities and

differences, for example with the State of Law, according as this image is described in

Phenomenology of the Spirit? If the hegelian individual autonomy undergoes the abstract person's

recognition, the subject able to act, and the citizen organically inserted in the civil society and in the

State, what are the reaches and limits of the recognition in a future world-wide individual

autonomy?

Due to this uneasiness, we present, at first, the anthropological patterns of subjective individual

autonomy and the anthropological patterns of inter-subjective autonomy. Afterwards, we study the

image of the State of Law in Hegel‘s Phenomenology, and, at the end, we point out some challenges

to the future of the autonomy in view of the present state of the Law.

Keywords: Autonomy, State of Law, Philosophy, Phenomenology of the Spirit.

1 Doutor pela Universidade de Paris 1, Professor do PPG em Filosofia PUCRS e Pesquisador na linha

jusfilosófica. 2 Advogado, UFPEL, Assistente de Administração e Pesquisador na linha jusfilosófica.

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INTRODUÇÃO

Os 200 anos da publicação da Fenomenologia do Espírito (1807-2007), de Hegel

desafiam-nos a atualizar seus temas e problemas, permitindo compreender novas figuras do

espírito humano, como a da autonomia individual face à sociedade mundializada. A

autonomia individual emergente manifesta-se apática e indiferente, frente às questões

coletivas e à realidade social. Fixa-se num consumo ilimitado de bens e serviços, segundo o

estilo de vida e a forma de uma individualidade centrada em si mesma. Esta noção de

liberdade como autodependência ou auto-satisfação, com todo seu potencial destrutivo, nos

conduz ao impacto de uma crise ecológica sem precedentes. Charles Taylor que evidencia,

em Hegel e a sociedade moderna, que o pensamento hegeliano foi presciente quanto às

nefastas conseqüências para as quais nos arrasta a noção de autonomia racional cartesiano-

kantiana. Assim, a necessidade de retorno a Hegel se faz presente, toda vez que se busque

uma visão de autonomia subjetiva que supere as deficiências da perspectiva analítica do

entendimento. Conforme Taylor: ―... os escritos de Hegel nos oferecem uma das tentativas

mais profundas e de maior alcance de elaborar uma visão da subjetividade corporificada,

do pensamento e da liberdade emergindo do fluxo da vida, encontrando expressão nas

formas da existência social e descobrindo-se na relação com a natureza e com a história

(Taylor, 2005, p. 208)‖.

Ora, em que medida a mundialização, constituindo-se numa sociedade de

indivíduos, apresenta semelhanças e diferenças, por exemplo, com o Estado de Direito,

conforme esta figura é tematizada na Fenomenologia do Espírito? O conceito de autonomia

individual para Hegel dá-se mediante a luta pelo reconhecimento que se opera em vários

níveis e figuras da história, conforme a experiência da consciência. Se a autonomia do

indivíduo hegeliano passa pelo reconhecimento da pessoa abstrata, pelo sujeito capaz de

agir e pelo cidadão, organicamente, inserido na sociedade civil e no Estado, quais os

alcances e limites do reconhecimento numa futura autonomia individual mundializada?

Diante desta inquietação, optamos por cotejar a perspectiva do indivíduo na sua

relação com o império romano, empreendida por Hegel na Fenomenologia, com o

indivíduo no império atual na mundialização, para situar os possíveis desdobramentos do

futuro da autonomia.

Apresentamos, primeiramente, os modelos antropológicos de autonomia individual

subjetiva e os modelos antropológicos de autonomia intersubjetiva. Depois, estudamos a

figura do estado de Direito na Fenomenologia de Hegel, mostrando a atomização do corpo

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social no império romano, fragmentando a relação do indivíduo com o todo. Na Filosofia

do Direito, Hegel descobrirá o direito da liberdade subjetiva, permitindo um outro modo

de pensar o Direito: o sujeito mediante o recurso à noção de eticidade. Apontando,

portanto, para um percurso em que o futuro da autonomia inicia no nível das relações

interpessoais e se realiza na esfera das instituições, conforme a eticidade hegeliana,

estruturando-se no reconhecimento do cidadão em nível sócio-jurídico-político. Porém, isto

não será tratado, especificamente, neste estudo, embora, indiretamente, a teoria hegeliana

estará sempre presente. Nossa preocupação, no final, será apontar alguns desafios ao futuro

da autonomia face ao estado de Direito atual.

1 – MODELOS DE AUTONOMIA INDIVIDUAL

O conceito de autonomia foi introduzido por Kant para designar a independência da

vontade, em relação a qualquer desejo ou objeto de desejo e a sua capacidade de

determinar-se em conformidade com uma lei própria, que é a da razão. A autonomia é,

portanto, a capacidade de autodeterminação. Kant contrapõe a autonomia à heteronomia,

em que a vontade é determinada pelos objetos da faculdade de desejar. Os ideais morais de

felicidade ou perfeição supõem a heteronomia da vontade, porque supõem que ela seja

determinada pelo desejo de alcançá-los e não, por uma lei sua. A independência da vontade

em relação a qualquer objeto desejado é a liberdade no sentido negativo, ao passo que a sua

legislação própria (como ―razão prática‖) é a liberdade no sentido positivo. Portanto, a lei

moral exprime a autonomia da razão pura prática, isto é, a liberdade (cf. Blackburn,

1997,31; Abbagnano, 2000, 97-98).

Esse ficou sendo o conceito clássico de autonomia, porém, antes mesmo de ele ter

sido elaborado por Kant e, a partir dele, encontramos, na história, modelos diferentes de

autonomia individual subjetivos ou intersubjetivos. Apresentamos, brevemente, estes

modelos com a finalidade de mostrar que a construção deste conceito antropológico está

vinculado às teorias jusfilosófico-políticas.

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1.1 - Modelos antropológicos de autonomia individual subjetiva

a) Indivíduo egoísta racional de T. Hobbes

À objetividade extremada da antiguidade clássica, especificamente à grega, a

filosofia moderna, desde Ockham e de Hobbes, oporá um subjetivismo modelado na sua

forma mais radical. Conforme acentua Michel Villey em seu livro Leçons d’histoire de la

philophie du droit, os seguidores destes filósofos ―se negam a ler na ―natureza‖ as relações,

as obrigações sociais; eles concebem somente os ―direitos‖ individuais, os poderes, as

liberdades naturalmente ilimitadas desde que a lei positiva resultante do consentimento dos

cidadãos (e portanto, indiretamente resultante destas mesmas liberdades) não lhes imponha

limites (Villey, 1962, 157 – tradução dos autores)‖.

Guilherme de Ockham, aponta Villey, com sua crítica reduz a nada o antigo direito

natural imutável, recusando-se a reconhecer outra lei natural de valor universal, e portanto

imutável, que a lei moral. Para Ockham, a natureza nos apresenta tão somente os

indivíduos separados e livres e, a partir daí, defende com ardor, neste universo parcelado,

as liberdades que o indivíduo tem por natureza, como dados jurídicos primeiros que, à lei e

à convenção somente caberia modelar e adequar de maneira a preservá-los na condição de

direitos subjetivos (Villey, 1962, 246).

Estava assim colocado um primeiro esboço, para que Hobbes desenhasse o seu

Estado de Natureza, com base em um estado pré-social, onde os homens ao sabor dos

instintos, viveriam em uma guerra de todos contra todos. Mas que, para avançar na marcha

histórica, precisariam que aí prevalecesse algum direito, qual seja: o direito que o indivíduo

recebeu da natureza, com o objetivo de assegurar, por todos os meios, sua conservação

pessoal, sua segurança, o livre usufruir da posse dos bens que por sua própria vontade deles

se apossasse.

Portanto, para Hobbes, desde esta guerra de todos contra todos por si pré-figurada, a

teoria política daí decorrente é a do ―indivíduo ameaçado, que vai constituir um pacto

associativo com outros indivíduos para a garantia de seus interesses individuais, (...) sua

autoconservação do indivíduo se torna o eixo a partir do qual se pensa sua sociabilidade e

sua autonomia (Oliveira, 2007, 8)‖. Logo toda estruturação da ordem política é pensada, a

partir destes direitos naturais individualizados, que pugnara inicialmente Ockham, e que

depois veio a ser consolidado por Hobbes, na condição de profeta por excelência do

espírito jurídico moderno (Villey, 1962, 56). Toda razão de ser da ordem política ―é estar a

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serviço dos direitos deste indivíduo pensado por Hobbes como egoísta racional (Oliveira,

2007, 9)‖.

b) Indivíduo na subjetividade transcendental solipsista de Kant

Para os comentadores da filosofia de Kant, é nela, que essas premissas subjetivistas

são postas plenamente à luz, sendo do mesmo modo, aí, que o indivíduo racional vai,

efetivamente, ganhar uma justificativa plena para sua concepção solipsista, atomizada, na

qual a pessoa singular, é, ao mesmo tempo, autoconsciência e determinação orientadora

para sua própria ação. Numa perspectiva monádica que define as obrigações e, ao mesmo

tempo, quer orientar o agir perante as mesmas, colocando, este sentido de mão única como

condição de validade norteadora da ação. Com Kant a essência da fundação do estado civil

permanece ainda, e mais centrado no indivíduo. Cabe, no entanto, evocar a ressalva que faz

Walter Jaeschke: ―Embora Kant antecipe o conceito de direito – concebido

intersubjetivamente -, sua doutrina sobre a propriedade suscita de início a impressão de que

se necessitaria, para fundamentação da propriedade, somente da vontade daquele, que, por

primeiro, se apodera de um objeto, e que faz valer a sua pretensão de posse mediante sinais

externos (Jaeschke, 2004, 58)‖.

Em Kant, a autonomia é a capacidade de o indivíduo se autodeterminar, de construir

a si mesmo a partir dos princípios da própria razão. O ser humano faz derivar sua

autonomia de sua própria condição racional (Oliveira, 2007, 9).

Autonomia é, assim, para Kant, antes de tudo, independência frente ao mundo

sensível: trata-se da superação da submissão aos mecanismos da natureza exterior e

interior, numa palavra, independência em relação à conexão necessária de todos os

fenômenos entre si pela mediação da relação de causa e efeito e do estabelecimento

da razão como a única fonte de legitimação das normas da ação humana. Sendo

assim, ela é, positivamente, autodeterminação, conquista do próprio ser por parte do

ser humano: o ser humano é livre, quando permanece ele mesmo em tudo que faz,

quando sua lei é a lei de sua própria liberdade, ou seja, quando ele é lei para si

mesmo, ―auto-nomia‖ (id. 10).

1.2 - Modelos antropológicos de autonomia individual intersubjetiva

Um outro modelo, ou figura que se considera, concebe o indivíduo como resultante

de um substrato eminentemente relacional, na qual o indivíduo alcança sua autonomia

desde o entrechoque das forças sociais em convergência ou em disputa. Esta autonomia se

dá pela luta por reconhecimento, em que um indivíduo constrói sua subjetividade

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assumindo papéis em torno de seus interesses, confrontados com os interesses dos demais.

Esta perspectiva tem seu influxo a partir do esforço desenvolvido por Hegel, desde seus

primeiros escritos, conforme sublinha Axel Honneth. Nesse contexto, o indivíduo é um

indivíduo, porque reivindica sê-lo perante os demais: ―...um sujeito procura, mediante uma

ação provocadora, levar o outro indivíduo ou os muitos associados a respeitar o que não foi

ainda reconhecido nas próprias expectativas pelas formas de relacionamento social

(Honneth, 2003, 101)‖.

a) Indivíduo autônomo em comunhão de Fichte

Fichte criticou severamente esta categoria fundamental de Kant - a autonomia,

posto que procurou mostrar o fracasso de uma autonomia, pensada como processo de

autoconstituição de uma subjetividade auto-suficiente e fechada em si mesma. Para Fichte,

―quando o eu tenta voltar-se sobre si mesmo e se pensa como o que não é coisa, ele só tem

uma determinação negativa de si mesmo, perde qualquer segurança e entra num processo

de dissolução. Este risco é característico de toda subjetividade que se pensa a si mesma

,como auto-relação pura (Oliveira, 2007, 10)‖. Para este filósofo somente pela mediação

com outro eu, mediante a comunhão com ele, o eu se pode constituir como subjetividade

livre, autônoma. Assim, a comunhão é condição de possibilidade da autonomia. A

autonomia é, pois, um evento ético, ―ou seja, um evento de efetivação do bem, enquanto

unidade de justiça, enquanto respeito à dignidade e a liberdade dos outros, e amor, processo

de comunhão entre seres livres (id. 10-11)‖. Assim, o indivíduo somente se coloca como

responsável por um ato livre, quando, da mesma maneira, um outro eu seja também

responsabilizado, e tal acontece na ordem jurídica, que é o pano de fundo onde isto se

verifica (Jaeschke, 2004, 59).

b) Indivíduo autônomo universal de Hegel

Hegel trata de aprofundar a abordagem crítica formulada por Fichte quanto à

concepção de autonomia solipsista kantiana. Aqui, o processo de universalização da

autonomia se efetiva através da constituição da vida comunitária. A ruptura com o

solipsismo se dá de forma radical: ―as próprias instituições sociais são mediações

necessárias na conquista da autonomia do ser humano (Oliveira, 2007, 12)‖. Assim, torna-

se impossível pensar a autonomia fora da mediação das instituições, que estruturam a vida

social. Em Hegel o instituto da subjetividade é reconhecido como a marca dos tempos

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modernos, e sua concepção de autonomia alcança a historicidade do indivíduo, ou seja, a

autonomia do indivíduo é fruto de uma interação histórica (id. 11-12).

Na Filosofia do Direito, o indivíduo para Hegel é compreendido, como sendo

imediatamente, uma pessoa abstrata; depois, como um sujeito capaz de agir; e enfim, como

um cidadão, organicamente, inserido na sociedade civil e no Estado.

Na Fenomenologia do Espírito, o indivíduo é descrito por Hegel, segundo o

conceito do reconhecimento; é na luta por reconhecimento que se opera a mediação em

várias figuras da consciência no percurso fenomenológico do Espírito. Descreveremos, a

seguir, a figura do estado de direito na Fenomenologia, com a finalidade de mostrar a

situação do indivíduo na sociedade grega e no mundo romano. Veremos que a contradição

da consciência do indivíduo no mundo antigo, reservadas as diferenças históricas, apresenta

pontos de semelhança com a situação do indivíduo numa sociedade mundializada.

2 – EXPERIÊNCIAS DO DIREITO NA FENOMENOLOGIA

Na Fenomenologia do Espírito, a formulação mediante a qual, segundo Hegel, a

consciência individual vai acessar a instância política (e histórica), começa no capítulo

VI, que se intitula O Espírito, sucedendo à Consciência, à Autoconsciência, e à Razão.

Neste ponto da obra, têm-se, aparentemente, um corte que vai dividir o subjetivo e o

objetivo. E é bem verdadeiro que até então, o movimento da consciência permanecera

subjetivo. Entretanto, com o Espírito se descortina o viés coletivo, político, objetivo da

consciência. Encena-se agora a objetividade da lei mediante a assunção das formas

sedimentadas em instituições como a família e o Estado, onde esta consciência até então

individual e transcendental precisa, necessariamente, posicionar-se, tomar partido,

aparecer na história, evidenciar-se. Mas para evidenciar-se a consciência precisa ter-se

tornado complexa, atravessado o percurso lento da história. É a consciência com o

outro ou contra o outro, mas que não pode deixar de aparecer através da ação. O

indivíduo aqui, logo, é o portador de uma consciência que parte da realidade social com

a qual já está reconciliada. Ou seja, é a descrição da experiência da consciência ao longo

da história, sendo articulada a partir de duas dimensões:

a) A dimensão das figuras que mostra o processo de formação do sujeito para o saber;

as figuras referem-se ao tempo histórico. Elas não são ordenadas segundo os eventos

empíricos da história, mas conforme a necessidade lógica.

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b) A dimensão dos momentos descreve o ―movimento dialético ou a lógica imanente da

Fenomenologia e faz com que a aparição das figuras não se reduza a uma rapsódia sem

nexo, mas se submeta ao rigor de um desenvolvimento necessário‖ (Lima Vaz, p.12).

Então, pode-se mesmo afirmar que não há descontinuidade entre a parte precedente

e esta do tema do Espírito, mas uma seqüência inapelável, onde o desenvolvimento da

consciência, no sentido de tornar-se livre, não pode recuar e, portanto, deixar de fazer

história. E aqui, na Fenomenologia, este fazer-se história da consciência não se confunde

com a história linear dos povos, porém em apresentar as figuras da história em seus

momentos lógicos mais significativos, nos quais a dialética da consciência, mostrando-se,

primeiramente, nas figuras subjetivas da consciência, é justificada pelo seu aparecimento

no mundo; dentre os momentos mais expressivos desta fenomenologia aparecem, portanto,

a problematização posta à luz por Sófocles com sua Antígona, o individualismo romano, a

crítica iluminista às religiões e o Terror revolucionário.

2.1 – Experiência do Direito na cultura grega 3

O espírito verdadeiro, a eticidade é o capítulo VI com que Hegel inicia a seção C,

do espírito. O termo eticidade (Sittlichkeit) designa o mundo em sua unidade, sem a

separação entre substância e consciência. O espírito dá-se, aqui, a conhecer como ethos

(Sitte) e como leis, costumes e hábitos (Sitten). Trata-se de um mundo verdadeiro, todavia,

apenas de uma ―verdade imediata‖, que deverá ser provada pelas mediações históricas

efetivas, tornando-se uma ―verdade mediatizada‖.

Na bela vida ética do mundo grego, o indivíduo está harmonizado com as leis e os

costumes da polis, sendo o espírito no momento imediato, que precisa ser mediatizado pelo

advento das contradições internas (masculino-feminino, família-comunidade etc.). Segue-

se o rompimento do estado imediato, a oposição do indivíduo e a cidade - mundo romano.

―O mundo ético vivo é o espírito em sua verdade; assim que o espírito chega ao saber

abstrato de sua essência, a eticidade decai na universalidade formal do direito. O espírito,

doravante cindido em si mesmo, inscreve em seu elemento objetivo, como em uma

efetividade rígida, um dos seus mundos – o reino da cultura – e, em contraste com ele, no

elemento do pensamento, o mundo da fé – o reino da essência‖ (FE, 442). Por fim, os dois

3 As referências desta parte são as notas de rodapé da tradução da Fenomenologia do Espírito feita por

Gwendoline Jarczyk e Pierre-Jean Labarrière; as notas da tradução feita por Jean Hyppolite; e a obra de

Paulo Meneses: Para ler a Fenomenologia do Espírito. As citações da Fenomenologia do Espírito são da

tradução feita por Paulo Meneses que será abreviada assim FE, seguida do número do parágrafo.

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reinos – o da cultura e da fé – tratam da formação dos povos europeus até a revolução

francesa. Este é o caminho percorrido pela consciência até o iluminismo. Será exposto,

agora, apenas o capítulo da eticidade, ou seja, a experiência do Direito na cultura grega e

romana.

2.1.1 - Harmonia do mundo ético: equilíbrio entre as leis na cidade grega

A cidade (lei do dia) articula a oposição entre o universal e o singular, mas,

privilegia o universal em detrimento da singularidade (lei da noite). Esta tensão anuncia a

ruína do mundo ético, implicando na oposição entre subjetividade e comunidade, em que os

protagonistas da experiência são o povo, o cidadão, a família, a morte. Anuncia um destino

onde aquelas duas forças se despedaçam, revelando uma divisão irremediável da totalidade

originária.

a) As leis na família: A família é a imediatidade inconsciente (ética natural) face à

mediação consciente (ética cidadã). O problema é como a família pode tornar-se um

singular universal, ou seja, marcar, eticamente, cada um de seus membros. Cabe à família

conferir ao morto sua universalidade ética, através do elemento terra (universal) e do

sangue da família. Os funerais são uma tarefa ética, em que a família universaliza as forças

particularizantes da natureza. ―Esse último dever constitui assim a lei divina perfeita, ou a

ação ética positiva para com o Singular‖ (FE, 453). Hegel faz da morte não um fenômeno

natural, mas um ato ético, porque por ela é garantido o direito do singular através dos ritos

da sepultura, elevando a morte à sua natureza.

b) As leis na cidade: Depois do acontecimento da morte, coloca-se o problema do

poder como segunda esfera, onde se dá a articulação entre a lei humana e divina (FE, 454).

c) A relação dos sexos ou a relação ética familiar: A terceira esfera em que se

decide a harmonia ética é a relação dos sexos. ―A lei divina que reina na família possui, de

seu lado, também diferenças em si [mesma], cujo relacionamento constitui o movimento

vivo de sua efetividade‖ (FE, 456). As duas primeiras relações sexuadas – relação marital e

parental – são dominadas pelos sentimentos de emoção e piedade. A terceira relação, entre

irmão e irmã, comanda a qualidade ética que permitirá a articulação verdadeira das duas

leis no interior do mundo ético.

Isto descreve a imagem de um mundo ético articulado harmoniosamente nas suas

próprias diferenças. ―Dessa maneira, o reino ético é, em sua subsistência, um mundo

imaculado, que não é manchado por nenhuma cisão. Seu movimento é, igualmente, um

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tranqüilo vir-a-ser – de uma potência sua para a outra – de modo que cada uma receba e

produza a outra‖ (FE, 463).

Sabemos como Hegel, antes de escrever a Fenomenologia, tentou representar a vida

orgânica de um povo como um todo harmonioso – o mundo ético, como infinitude e

totalidade - , inspirando-se na Política de Platão. ―O todo é um equilíbrio estável de todas

as partes, e cada parte é um espírito [semelhante ao] do indígena, que não procura sua

satisfação fora de si – mas a possui dentro de si, pelo motivo de que ele mesmo está nesse

equilíbrio com o todo‖ (FE, 462). Porém, na Fenomenologia, esta intuição do todo

equilibrado, torna-se um momento passado, pois há um desmoronamento da polis grega e

não é possível uma volta a ela no mundo moderno.

No mundo ético harmônico, a família se realiza na comunidade e vice-versa, no

entanto, a ação ética que é o singular efetivo desestabiliza esta ordem. Família e

comunidade passam a opor-se, porque os dois direitos diferentes se afrontam,

manifestando-se na tragédia antiga. O resultado deste conflito trágico será o

desaparecimento deste mundo. A lei divina e a humana são vencidas pelo destino e o

individualismo e o imperialismo substituem a família e a cidade.

2.1.2 - Da harmonia à tragédia: contradição do individuo e a comunidade

O modelo ideal, acima descrito, é posto em desarmonia pela introdução da

singularidade operante. A crise que se prepara tem os seguintes passos: cada consciência é

habitada de uma certeza imediata, concernindo seu agir ético; como tal, ela se dá

necessariamente uma das duas leis; mas, ela depende apenas de uma ou outra destas leis em

função de um azar natural. O desmoronamento deste mundo ético decorre desta oposição

entre necessidade ética e contingência da natureza.

A oposição entre poder público e consciência privada, a ordem emanando do poder

e o indivíduo que defende o imperativo de seu dever ético, encontra uma ilustração no

debate entre Creonte e Antígona (FE, 466).

Cada consciência, agora, entregue a sua própria lei, a conhece como totalidade ética

e deve realizá-la. ―O direito absoluto da consciência ética consiste, pois, nisto: que o ato – a

figura de sua efetividade – não seja outra coisa, senão o que ela sabe‖ (FE, 467). O ato,

assim como ele se apresenta no interior do mundo ético, implica uma discordância entre um

engajamento interior total e a parcialidade da tarefa, que a organização deste mundo

obriga a consciência. Esta falta, ou crime rompe a bela totalidade ética. A ruptura não é

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provocada por uma incapacidade psicológica ou moral, mas pela estrutura da própria

sociedade. ―A culpa recebe também a significação de delito, pois a consciência-de-si, como

simples consciência ética, consagrou-se a uma lei, mas renegou a outra e a violou mediante

seu ato‖ (FE, 468). Agindo de forma efetiva a consciência torna-se culpável, pois ―inocente

é só o não-agir – como o ser de uma pedra; nem mesmo o ser de uma criança [é inocente]‖

(FE, 468). Esta falta é, ao mesmo tempo, crime, porque ela viola uma outra lei.

Antígona conhece e viola a lei humana, assim, ela coloca em risco a harmonia do

mundo ético. ―Devido a essa efetividade, e em virtude do seu agir, a consciência ética deve

reconhecer seu oposto como efetividade sua; deve reconhecer sua culpa: ―Porque sofremos,

reconhecemos ter errado‖‖(FE, 470). A consciência experimentou que seu ato não realiza a

tarefa ética que lhe cabe, então, ela se volta à interioridade, ou seja, faz um retorno à

disposição ética. ―Esse reconhecer exprime a cisão suprassumida do fim ético e da

efetividade; exprime o retorno à disposição ética, que sabe nada ter a não ser o direito‖ (FE,

471).

A experiência mostra na efetividade como se fragmenta o mundo ético. A

conjunção ao azar de três elementos que expressam pontos sensíveis deste mundo – morte,

poder e relação dos sexos – provocará a crise e o desmoronamento, começando pelos dois

primeiros. Recusando a Polinice, que ofendeu a comunidade, as mesmas honras que a

Etéocles, o defensor da cidade que representa a lei do dia entre em conflito com a lei da

noite que é o princípio interior de sua própria efetividade. ―Mas se assim o universal apara

de leve o puro vértice de sua pirâmide, e obtém a vitória sobre o princípio rebelde da

singularidade – a família – com isso somente entrou em conflito com a lei divina‖(FE,

474).

A feminilidade é a que vai questionar a compacidade do mundo ético, expressando-

se pela voz de Antígona, que contesta o fundamento ético da ordem de Creonte, levando a

crise ao ponto crítico. ―Essa feminilidade – a eterna ironia da comunidade – muda por suas

intrigas, o fim universal do Governo em um fim-privado, transforma sua atividade

universal em uma obra deste indivíduo determinado, e perverte a propriedade universal do

Estado em patrimônio e adorno da família‖ (FE, 475).

A contradição, experimentada pelo poder público, está em que para conduzir o

combate que vem do exterior, ele depende de fato do princípio familiar interior, contra o

qual ele teve que se dobrar. ―O lado negativo da comunidade que reprime para dentro à

singularização dos indivíduos, mas que para fora é espontaneamente ativo, possui suas

armas na individualidade‖ (FE, 475).

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Minado pelos conflitos interiores e dividido naquilo que deveria formar sua unidade

espiritual, o mundo ético se afunda e deixa lugar ao princípio que não pode assegurar a

integração ao universal: a pura individualidade vazia, que introduzirá seu direito absoluto

ao reconhecimento. ―Como anteriormente só os Penates desabaram no espírito do povo,

agora são os espíritos vivos dos povos que, através de sua individualidade, desmoronam em

uma comunidade universal, cuja universalidade simples é sem-espírito e morta, e cuja

vitalidade é o indivíduo singular, enquanto Singular. A figura ética do espírito desvaneceu,

e surge uma outra em seu lugar‖ (FE, 475).

As duas causas, diz Hegel, do desmoronamento do mundo ético foram a ausência de

mediação e a não relação com a natureza. O Estado de direito herda este impasse. ―Esse

colapso da substância ética e sua passagem para uma outra figura são determinados pelo

fato de ser a consciência ética, de modo essencial, orientada imediatamente para a lei. Pois

a imediatez tem a significação contraditória de ser a quietude inconsciente da natureza , e a

irrequieta quietude, consciente-de-si, do espírito. Por causa dessa naturalidade, o povo ético

em geral, é uma individualidade determinada pela natureza – e, por isso, limitada – e assim

encontra sua suprassunção em uma outra‖ (FE, 476).

2.2 – Experiência do Direito na cultura romana

O estado de direito é uma figura da civilização que privilegia o direito no seu

sentido formalista. Esse momento corresponde ao império romano e a sua decadência em

que o individuo e o império se mantém num atomismo de pluralidade de pessoas. O triunfo

do império romano possibilita o aperfeiçoamento da doutrina jurídica, do direito abstrato e

o conceito de pessoa jurídica que é distinta da individualidade concreta. Hegel na Filosofia

da História afirma: ―Em Roma, nós encontramos agora esta livre generalidade, esta

liberdade abstrata que coloca de um lado o Estado abstrato, a política e a força acima da

individualidade concreta, subordinando-a, inteiramente, e que de outra parte cria diante

desta generalidade a personalidade – a liberdade do Eu em si que é necessário bem

distinguir da individualidade [concreta]‖ 4. ―Assim, a personalidade saiu, nesta altura, da

vida da substância ética: é a independência, efetivamente em vigor, da consciência‖ (FE,

479).

4 G. W. F. Hegel. Filosofia da História. p. 61. Apud tradução da Fenonemologia de Jean Hyppolite

(1941), tomo II, nota 75, p. 45.

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Na Filosofia do Direito, Hegel, trata na primeira seção, do Direito abstrato que é o

Direito romano. Ora, no início desta parte o autor faz uma análise semelhante àquela,

sublinhando o caráter da noção vazia da pessoa. ―A unidade universal, a que retorna à

unidade imediata viva da individualidade e da substância, é a comunidade carente-de-

espírito, que deixou de ser a substância dos indivíduos. O universal, estilhaçado nos átomos

dos indivíduos absolutamente múltiplos – esse espírito morto - é uma igualdade na qual

todos valem como cada um, como pessoas‖ (FE, 477).

Há uma aproximação, de um lado, entre estoicismo e estado de direito, e de outro,

entre Dominação/Escravidão e mundo ético. Trata-se de um paralelo estrutural: os dois

primeiros capítulos (certeza sensível e percepção) da obra são reassumidas, em nível de

conteúdo, nesta primeira subseção do espírito. A articulação das duas leis (humana e

divina) inscreve-se no ciclo da vida. O conflito entre a essência da noite e aquela do dia,

retoma a relação senhor/escravo, atingindo um combate de vida e morte. Enfim, o

estoicismo aqui evocado será seguido da menção ao ceticismo e a consciência infeliz.

―Como agora a independência abstrata do estoicismo apresentava [o processo de] sua

efetivação, assim também essa última [forma de independência, a pessoa] vai recapitular o

movimento da independência estóica‖ (FE, 480). A relação abstrata à exterioridade da

propriedade sublinha no Estado de direito a dimensão limitada desta figura. ―Como o

ceticismo, assim o formalismo do direito, sem conteúdo próprio, por seu conceito encontra

uma subsistência multiforme – a posse – e como o ceticismo, lhe imprime a mesma

universalidade abstrata, pela qual a posse recebe o nome de propriedade‖ (id. 480).

No Estado de direito, o universal, estando separado da singularidade, se expressa

sob uma dupla forma irracional: explosão desse mundo na multiplicidade dos átomos

sociais, e sua reunião artificial na pessoa do ―senhor do mundo‖ (o imperador romano).

―Sabendo-se assim como o compêndio de todas essas potências efetivas, esse senhor do

mundo é a consciência-de-si descomunal, que se sabe como deus efetivo. Mas como é

apenas o Si formal – que não é capaz de domar essas potências – seu movimento e gozo de

si mesmo é também uma orgia colossal‖ (FE, 481).

2.3 – Individual e universal e atomização dos indivíduos: futuro da autonomia

A seção Espírito apresenta a igualdade ética da consciência singular e da

consciência universal, realizando-se na vida de um povo. Ocorre, em nossa época, diz

Hegel, que o universal está presente nas proposições e nos conceitos elaborados como o

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resultado do percurso filosófico ao longo dos séculos, e a obra a realizar consiste em dar

nova vida e autoconsciência a este universal petrificado. O indivíduo desesperado deste

saber abstrato, irá manifestá-lo, pouco a pouco, como seu, deixando-o desenvolver sem

forçar as etapas. Quando o indivíduo tiver percorrido esse caminho, ele se tornará um

mundo, e a realidade não será mais uma essência longínqua, mas uma efetividade espiritual

imediata (cf. Labarrière, 1985, 112-119).

O método da Fenomenologia acontece pela passagem de uma experiência a outra,

desenvolvendo-se o conteúdo de modo progressivo, de tal modo, que a totalidade

manifestada no fim está presente nas primeiras etapas da consciência, porém, ainda como

uma ação escondida ou subterrânea. Agora, ela vem à luz, permitindo uma releitura do

itinerário percorrido, em nível de seu desenvolvimento real. Torna-se evidente que as

figuras consideradas até então, não tinham os ―momentos‖ da afirmação do espírito. Enfim,

―o espírito é a vida ética de um povo, enquanto é a verdade imediata: o

indivíduo que é um mundo. O espírito deve avançar até à consciência do

que ele é imediatamente, deve suprassumir a bela vida ética, e atingir,

através de uma série de figuras, o saber de si mesmo. São figuras, porém,

que diferem das anteriores por serem os espíritos reais, efetividades

propriamente ditas; e [serem] em vez de figuras apenas da consciência,

figuras de um mundo‖ (FE, 441).

―O verdadeiro sujeito da Fenomenologia do Espírito, é o acontecer do indivíduo

razoável, isto é, universal, pela reassunção do movimento que permitiu o desenvolvimento

do espírito na sua universalidade, através das figuras da história – isso que Hegel, sob esta

dupla forma individual e universal, chama o processo da ‗cultura‘‖ (Labarrière, 1979, 131).

Esse momento universal é o espírito em si, ou o espírito verdadeiro. Sua característica é

tentar uma conjunção direta e imediata entre o singular e o universal, através da vida de um

povo. Cada consciência atinge sua própria universalidade pelo jogo de uma operação

individual que a integra às leis, aos costumes comuns, enfim, a substância ética. Esta

identidade toma a forma de uma experiência histórica que reúne, na unidade do espírito o

pensamento e a efetividade: é o mundo grego e o mundo romano (id. p. 131).

a) A primeira dialética do espírito verdadeiro, ou seja, a eticidade, é a lei humana e

divina, o homem e a mulher. A oposição é entre o singular e o universal, esses momentos

não expressam um dualismo, mas as duas essências universais da eticidade, a saber, a lei

divina e a lei humana. Estas têm sua encarnação concreta em autoconsciências distintas, na

unidade imediata da substância e da autoconsciência, realizando uma igualdade efetiva do

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universal e do singular. O mundo ético ou a eticidade desenvolve-se num equilíbrio

verdadeiro de seus momentos e leis, plenas de conteúdo verdadeiro.

b) A segunda dialética e figura do espírito, a ação ética, o saber humano e o divino,

a culpa e o destino, contém os princípios éticos determinados no elemento do ser, numa

individualização plena. Porém, esta simples autoconsciência, no final desta dialética, se

afirmará na abstração de seus direitos singulares, sendo a força desta ação ética que dividirá

o mundo do espírito verdadeiro. Com a figura do estado de direito, penetra-se no

movimento de divisão, a dialética do espírito, tornando-se alienado de si.

c) A efetividade ética imediata estruturou-se de uma parte, segundo a oposição dos

princípios, e de outra, segundo a dos indivíduos, nos quais os princípios se encarnam. Ora,

a lei de cada singular expressa a universalidade do espírito verdadeiro. Porém, esta

universalidade irá desaparecer pelo confronto entre as leis, porque o espírito individual que

pensava poder expressar-se imediatamente no seu mundo, recebeu dele apenas a imagem

parcial de sua própria positividade, sendo remetido de novo a si mesmo, para aprofundar

sua lei. Aqui, tem-se a evocação da figura do estoicismo em que a consciência do estado de

direito, terá uma definição, ao mesmo tempo, positiva e negativa a respeito da consciência

estóica individual (Labarrière, 1985, 120-128).

O mundo grego desapareceu, porque não deu ao indivíduo o seu devido lugar. A

figura que o sucede é o mundo romano. Este afirma, ao contrário, o indivíduo sem

intermediário ou mediação. O império romano torna-se propriedade de um particular, o

imperador. Os particulares buscam o interesse privado antes do público. O produto da

cultura romana é o Direito privado. O mundo romano é uma unidade consciente na pessoa

do imperador e cada particular é consciente de seus interesses privados, consciente dele

como particular. É a vitória da particularidade, sendo o particular a pessoa jurídica, que lhe

falta a universalidade. Não há individualidade em Roma, mas a pessoa jurídica, isto é, o eu

abstrato do homem isolado. O império romano reconhece o valor absoluto da pessoa, da

particularidade, mas não, a universalidade na particularidade, ou seja, ele não reconhece

cidadãos, verdadeiras individualidades (Kojève, 1994, 105-106).

Na descrição das experiências do Direito na Fenomenologia, constata-se que está

implícito o problema da autonomia individual subjetiva e intersubjetiva. A contradição

entre o indivíduo e a comunidade, na sociedade grega, culmina na tragédia e o direito não

consegue resolver o impasse entre a lei da cidade e lei da família. A experiência do Direito

romano, opta pelo lado do indivíduo, originando uma sociedade de pessoas atomizadas.

Nota-se, pela descrição hegeliana, que esta experiência do Direito, é semelhante ao da

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autonomia individual subjetiva, embora, este conceito só será instaurado na modernidade.

Os modelos da autonomia individual descrevem a constituição destes tipos antropológicos

que foram elaborados na modernidade, opondo subjetividade e intersubjetividade. Hegel na

Fenomenologia, ao apresentar na figura do Direito a oposição entre individual e universal

na polis grega, e a atomização da pessoa no mundo romano, expõe na experiência da

contradição da consciência figuras da história, que necessitam do momento lógico da

superação do impasse jusfilosófico greco-romano. Esta superação ocorre no saber absoluto,

como sendo a reconciliação da totalização do espírito e da totalização religiosa. Na

Fenomenologia, o autor tem, diante de si, a constituição do modelo de autonomia

individual subjetivo da modernidade, contudo, ele constata que este modelo conduz a

impasses, daí a Filosofia do Direito apresentar na determinação da idéia de liberdade, a

autonomia individual subjetiva ser suprassumida na autonomia individual intersubjetiva.

Hegel sabe que a modernidade instituiu o conceito de subjetividade autônoma, porém, ele

quer construir um modelo que dê conta, ao mesmo tempo, deste novo conceito e o princípio

da filosofia política clássica: o todo precede o indivíduo. A primazia do universal inclui o

singular, de modo a garantir sua autonomia, sem, no entanto, destruir a organicidade

harmoniosa do todo e as partes na relação cidadão-Estado.

Nossa hipótese é de que, o fenômeno da mundialização em curso, apresenta

experiências do Direito, semelhantes às da figura do Direito na Fenomenologia, acima

apresentadas, ou seja, de um lado, a contradição entre o indivíduo e a comunidade que

conduz à tragédia, sob o ponto de vista cultural e de minorias étnicas, de gênero etc, e de

outro, a atomização dos indivíduos sob o ponto de vista jurídico-econômico. Então, face à

questão: o futuro da autonomia, uma sociedade de indivíduos? expomos alguns desafios à

autonomia no estado de Direito atual, tais como se apresentam no Direito, no trabalho e na

cultura.

3 – DESAFIOS À AUTONOMIA NO ESTADO DE DIREITO

O modelo de autonomia individual subjetivo influencia a construção da autonomia

nas mais diversas esferas da sociedade, determinando a identidade moderna (Taylor, 1997).

Por exemplo, na esfera privada, ―a rebelião contra a família patriarcal envolve uma

afirmação da autonomia pessoal e de vínculos voluntariamente constituídos, em

contraposição às demandas de uma autoridade impositiva‖ (id. p. 375).

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Na esfera pública, continua Taylor, ―falar de direitos humanos universais, naturais,

é vincular o respeito pela vida e integridade humanas à noção de autonomia. É conceber as

pessoas como colaboradores ativos no estabelecimento e garantia do respeito que lhes é

devido. E, para nós, respeitar a personalidade envolve como elemento crucial respeitar a

autonomia moral da pessoa‖ (Taylor, 26). Temos assim, tanto na esfera privada como na

pública o desenvolvimento do conceito de autonomia, segundo o modelo subjetivo. Este

modelo de autonomia individual subjetivo perpassa o estado de Direito atual num contexto

de mundialização, atravessando sobretudo o Direito, o mundo do trabalho e a cultura.

Vejamos, agora, em nível jusfilosófico as implicações da passagem de um modelo de

Direito da autonomia individual subjetivo para um modelo de autonomia individual

intersubjetivo.

3.1 – Autonomia e Direito

No que se refere, ao Direito, o desafio que o problema da autonomia desencadeia, é

a constituição do modelo moderno de Direito, correspondendo ao sujeito da sociedade

industrial nascente. No entanto, face aos novos sujeitos da sociedade atual, vê-se a

necessidade de realizar uma passagem de modelos jurídicos, atendendo a uma nova

hermenêutica jusfilosófica. Esta análise restringe-se ao contexto jurídico brasileiro, porém,

pode-se aplicá-lo a outros cenários do Direito comparado.

O Procurador de Justiça e Professor Lenio Streck analisa o modelo de Direito da

autonomia individual e aponta a necessidade de constituir um modelo intersubjetivo. Ele

constata a crise do Direito, do Estado e da dogmática jurídica, porque estes não conseguem

atender as especificidades das demandas originadas de uma sociedade complexa e

conflituosa. O paradigma liberal-individualista-normativista está esgotado. O crescimento

dos direitos transindividuais e a crescente complexidade social exigem novas posturas dos

operadores jurídicos. O contexto da crise do modelo de Direito de cunho liberal-

individualista é acompanhado por uma outra crise, a do paradigma epistemológico da

filosofia da consciência (Streck, 2003, 18).

O autor frisa que a noção de contrato social não pode ser entendida no âmbito de

uma filosofia do sujeito, mas, sim, no âmbito de uma filosofia da intersubjetividade

(relação sujeito-sujeito), própria do paradigma hermenêutico, no interior do qual o sujeito

desde sempre está mergulhado na lingüisticidade do mundo, uma vez que não há

linguagem privada. O privado somente decorre das inter-relações com o público. Acreditar

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em linguagem privada é retornar ao paradigma da filosofia da consciência, em que a

subjetividade autônoma é instauradora do mundo (Streck, 2003, nota 58, p. 45).

O judiciário brasileiro está preparado para lidar com conflitos interindividuais,

próprios de um modelo liberal-individualista, e não, dos problemas decorrentes da

transindividualidade ou da intersubjetividade, própria do novo modelo advindo do Estado

Democrático de Direito previsto na Constituição promulgada em 1988 (Streck, 2003, 52).

O pressuposto do imaginário jurídico liberal individualista, está embasado na filosofia da

autonomia da consciência, carente da reviravolta lingüístico-pragmática, que implica a

relação intersubjetiva (id, p. 59).

Streck constata que a economia de mercado se legitima pela categoria do sujeito

autônomo de direito moderno, elaborado por um paradigma hemenêutico de cunho

metafísico-abstrato (id, p. 63). Ora, afirma Streck, no Brasil, já passamos do Estado Liberal

– formalmente – para um Estado Social (não realizado) e, a partir de 1988, passamos a ter

uma Constituição que institui o Estado Democrático de Direito. A atividade judicial

continua, porém, como simples ‗administração da lei por uma instituição tida como

‗neutra‘, ‗imparcial‘, e ‗objetiva‘, ficando o intérprete/aplicador convertido num mero

técnico do Direito positivo (id, p. 64). Enfim, a crise do paradigma liberal-individualista de

produção de direito, é decorrente da não-superação, pela dogmática jurídica, do paradigma

da prevalência da lógica do modelo de autonomia subjetivo moderno.

Face ao modelo de autonomia individual subjetivo, o autor, entende que a

compreensão do novo modelo de Direito e de Estado, estabelecido pelo Estado

Democrático de Direito implica a construção de possibilidades para a sua interpretação (id,

p. 277). Em nível da prática jurídica (doutrina e jurisprudência dominantes) não há ainda

uma resposta (id, p. 279), porém, o que se quer é a construção das condições de

possibilidade de uma nova maneira de compreender o Direito (id, p. 281).

Ele propõe, assim, a resistência constitucional, entendida como processo de

identificação do conflito entre princípios constitucionais e o neoliberalismo que entra em

contradição com aqueles: solidariedade frente ao individualismo, igualdade substancial

frente ao mercado (id, p. 289).

―Esse novo modelo constitucional supera o esquema da igualdade formal rumo à

igualdade material, o que significa assumir uma posição de defesa e suporte da

Constituição como fundamento do ordenamento jurídico e expressão de uma

ordem de convivência assentada em conteúdos matériais de vida e em um projeto

de superação da realidade alcançável com a integração das novas necessidades e

a resolução dos conflitos alinhados com os princípios e critérios de compensação

constitucionais‖ (id, p. 289).

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O modelo de Direito de autonomia individual intersubjetivo têm, portanto, como

referência a constitucionalização, ―colocando-se, necessariamente a Constituição como

instância máxima para a aferição do sentido das normas‖ (Streck, 2002, 88; Streck, 2006,

149).

3.2 – Autonomia e mundo do trabalho

No que diz respeito à autonomia no mundo do trabalho, o desafio é posto ao tempo

do trabalhador e à sociedade do conhecimento tecnológico. É importante destacar, afirma

Bifo, ―a independência do tempo social em relação à temporalidade do capitalismo. A

autonomia é a auto-regulação do corpo social, na sua independência e nas suas interações

com a norma disciplinar‖ (Bifo, 2003, 2). O trabalhador conquista a sua autonomia

temporal, na medida em que ele se auto-regula no trabalho.

Porém, essa capacidade de autonomia temporal não o desvincula do processo do

capitalismo, mas o atrela de outra forma ainda mais sofisticada, através da reestruturação

tecnológica: ―O movimento de autonomia ultrapassou o movimento capitalista, mas o

processo de desregulamentação estava inscrito nas linhas de desenvolvimento do

capitalismo pós-industrial e era uma implicação natural da reestruturação tecnológica da

globalização da produção‖ (id, p. 3).

Para o autor, a reestruturação tecnológica que vincula a autonomia temporal do

trabalhador pode ser ilustrada em dois artefatos tecnológicos: a internet e o celular.

―Na economia pela internet, a flexibilização transformou-se numa forma de

fractalização do trabalho. A fractalização significa a fragmentação das atividades

temporais. O trabalhador não existe mais enquanto pessoa. Ele é apenas o

produtor substituível de microfragmentos de signos recombinados, entrada no

fluxo contínuo da rede. O capital não paga mais a disponibilidade do trabalhador

para o explorar enquanto num certo período, ele não paga mais o salário que

cobre todo o leque das necessidades econômicas de uma pessoa que trabalha. O

trabalhador (uma simples máquina possuindo um cérebro que pode ser utilizado

enquanto um fragmento do tempo) é pago por seu trabalho pontual, ocasional,

limitado no tempo‖ (id, 7).

Assim, o tempo de trabalho é dividido em células estanques. E estas células do

tempo podem ser compradas na internet, a tal ponto que uma empresa pode adquirir tanto

quanto ela o deseja. ―O telefone celular é o utensílio que caracteriza melhor a relação entre

o trabalhador fractal e o capital recombinado. O trabalho cognitivo é um oceano de

fragmentos do tempo microscópico, e a divisão em células é a capacidade de recombinar os

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fragmentos do tempo no quadro de um único semiproduto. O telefone celular pode ser

considerado como a cadeia de montagem do trabalho cognitivo‖ (id, 7). Vemos, assim, que

a autonomia temporal no mundo do trabalho é relativa à reestruturação tecnológica

capitalista. Aqui, repete-se a ―figura do Estado de Direito‖ da Fenomenologia de Hegel, em

nível do trabalho, pois os trabalhadores se tornam indivíduos atomizados na rede da

internet ou no celular.

3.3 – Autonomia e cultura

A situação atual da autonomia do indivíduo, sob o ponto de vista da cultura em face

ao fenômeno chamado globalização (ou mundialização), é menos delimitadora de um tipo

de sociedade definido e mais um elemento desordenador dos vetores tradicionais até então

configurados: transnacionaliza mercados; dificulta o controle dos fluxos de capitais;

inviabiliza a tributação das trocas; põe em risco determinadas garantias até então

asseguradas pelo Estado nacional etc. Enfim, neste contexto, afirma-se uma peculiar

autonomia do sujeito.

A situação do indivíduo hoje é a constituição de uma ―subjetividade idêntica a si

mesma, fonte única do sentido do mundo‖ (Oliveira, 2007, 4). Tal estado de coisas resulta

de um conjunto de variáveis que se interpenetram e que tem seu ponto de inflexão naquilo

que Alain Touraine designa ―a decadência e o desaparecimento do universo que

chamávamos de social‖. (Touraine, 2006, 10) De fato, desde que se pode considerar

inexpugnável o triunfo da economia sobre a política, as categorias sociais, até então

vigentes, se embaralharam. A superação da sociedade industrial pela revolução tecnológica

da informação deixou para trás as relações sociais de produção, de tal maneira que os

conflitos de grande envergadura hoje, tais como as guerras, não têm mais função política

ou social e só podem ser elucidados pela ótica do interesse puramente econômico

(Touraine, 2006, 10). Em face de tal quadro, o indivíduo vê-se interditado para o exercício

de uma subjetividade engajada, perdendo os referenciais para uma razão de ser. Passa,

então, a assumir os riscos de um retorno solitário a si mesmo, que, se por um lado pode ser

valorado positivamente, do ponto de vista da autonomia, pode também ser determinante

para a adoção de posturas próprias de um cepticismo niilista.

Diferentemente do indivíduo gestado na modernidade, o indivíduo de hoje pode ser

descrito como uma reação ao intenso bombardeio da propaganda impingido pelos meios de

comunicação de massa. Portanto, descrente de valores universais, particularista, pragmático

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na busca de seus interesses, voltado a orientações íntimas e individuais para a vida. ―O que

importa acima de tudo é sua liberdade individual entendida como fazer o que pretende,

como viver a intensidade do momento, sobretudo, as sensações fortes, e dentro deste

contexto desenvolver sua criatividade: daí a mudança e a inquietude permanente (Oliveira,

2007, 6)‖.

Manfredo de Oliveira, ao afirmar o aspecto ontológico da autonomia enquanto

categoria, assume a perspectiva intersubjetiva e histórica da autonomia, apontando para

uma autonomia solidária, para a qual o pressuposto é a necessidade da comunhão das

diferentes subjetividades autônomas. ―Portanto, a autonomia solidária inicia no nível das

relações interpessoais, mas só se sustenta na vida humana enquanto radicada no mundo de

instituições que marcam a vida coletiva e estruturam sua vida social, portanto, no nível do

econômico, do político e do cultural (id, 16)‖.

Já para Alain Touraine, a compreensão do sujeito, e portanto da autonomia, hoje

passa por acompanhar um movimento que o indivíduo faz, no sentido de libertar-se da

extremada sedução a que são bombardeados os que vivem nas cidades. Sedução esta que se

materializa tanto pela propaganda orientada para um consumo desenfreado, quanto pelo

chamamento à violência e às ―razões‖ da guerra (Touraine, 2006, 120). Diz este pensador:

―... o sujeito é a convicção que anima um movimento social e a referência às instituições

que protegem as liberdades (Touraine, 2006, 121)‖.

Em Touraine, o indivíduo não se limita à ―experiência imediata dele mesmo‖, mas,

sobretudo, ―é acompanhado de idéias por seu duplo, que se situa na ordem do direito, ao

passo que ele, por sua vez, evolui na ordem da experiência, da percepção, do desejo

(Touraine, 2006, 121)‖.

Diz Touraine: ―Hoje nossa moral é cada vez menos social. Ela desconfia cada vez

mais das leis da sociedade, dos discursos de poder, dos preconceitos com os quais cada

grupo protege sua superioridade ou sua diferença (Touraine, 2006, 124)‖. A descrença nas

instituições dominantes, aí, levam o sujeito a uma busca do direito de ser autor e sujeito de

sua própria existência e de se rebelar contra aquilo que torna nossa vida incoerente,

desprovida de sentido. E este é o pano de fundo, no qual ―se impõe a figura cultural da

sociedade (id, 125)‖, reclamando para sua compreensão um novo paradigma, da mesma

maneira que, no passado, a figura do social reclamara um paradigma próprio, para que se

pudesse superar o anacronismo do paradigma político. Para Touraine, o paradigma cultural

deve carregar consigo as exigências tanto do viés político, quanto do social, mas deve

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responder às inquietações e o respeito aos direitos culturais (id, 175), que têm sua

concretude sempre em ―uma população determinada, quase sempre minoritária (id, 171)‖.

Trata-se aqui, na verdade, não mais do direito de ser como os outros, mas de ser

outro. Os direitos culturais não visam apenas à proteção de uma herança ou da

diversidade das práticas sociais; obrigam a reconhecer, contra o universalismo

abstrato das Luzes e da democracia política, que cada um, individual ou

coletivamente, pode construir condições de vida e transformar a vida social em

função de sua maneira de harmonizar os princípios gerais da modernização com as

―identidades‖ particulares (id., 171).

Concluindo, tomar-se como referencial de estudo a dicotomia autonomia individual

face à sociedade mundializada, implica em trazer à ordem do dia o ―precipitado teórico‖

que se consolidou ao longo da tradição filosófica no tocante ao duplo oposto mais geral,

que se desenha a partir dos pólos indivíduo versus comunidade, ou singular versus

universal.

Para os fins de nosso estudo, considerada a antiguidade clássica, enquanto aquela

quadra histórica, que toma por marco inicial a concepção grega de vida em sociedade e, por

derradeiro, a república romana, vê-se que a mencionada dicotomia é quase nula, posto que

a subjetividade é muito raramente expressada, diga-se, por vezes na figura de Sócrates e na

Antígona de Sófocles, enquanto signos primevos de um direito subjetivo individual.

Demais, a vida em sociedade era embebida por uma noção de direito público, cuja origem

remonta ao surgimento da pólis. Em As origens do pensamento grego, Jean-Pierre Vernant,

após evidenciar que é de um amálgama político-religioso que deflui o jurídico, mostra que

a evolução deste último aspecto da vida social já se torna público desde a crise do poder

micênico, quando, ―todo o domínio do pré-jurídico enfim, que governa as relações entre

famílias, constitui em si uma espécie de agón, um combate codificado e sujeito a regras, em

que se defrontam grupos...uma disputa oratória, um combate de argumentos cujo teatro é a

ágora, praça pública, lugar de reunião antes de ser um mercado (Vernant, 2003, 49-50)‖.

Dando-se, pois, com o surgimento da polis a esfera pública implanta-se como um setor de

interesse comum, que se opõe à noção de um interesse privado. Doravante, o ―controle

constante da comunidade se exerce sobre as criações do espírito, assim como sobre as

magistraturas do Estado. A Lei da polis, por oposição ao poder absoluto do monarca, exige

que umas e outras sejam igualmente submetidas à prestação de contas (Vernant, 2003, 55-

56)‖.

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Em verdade a latência de qualquer dos pólos desta relação – seja do pólo subjetivo,

seja do pólo objetivo - vai reclamar sempre a efetividade da mediação ao longo do

desenvolvimento lógico e histórico do conceito de liberdade; no mundo pagão, da

antiguidade clássica, este conflito se colocava na inevitabilidade da contraposição entre as

esferas do oikos, da família e da polis, conforme observa Kojève: ―Certamente — em

princípio — uma síntese do particular familiar e do universal estatal poderia realizar o

homem. Mas tal síntese é absolutamente impossível no mundo pagão. Por que a família e o

Estado se excluem mutuamente, sem que o homem possa transitar de um à outra(Kojève,

1994, 187)‖. De modo, que falar-se em um par de opostos, no exame da questão em tela,

mais paralisa o estudo do que permite seu curso, e configura, na maior parte das vezes um

mero recurso retórico de apresentação do problema.

Não obstante esta constatação, vê-se que, em algumas etapas do desenvolvimento

filosófico, os autores tendem a fixar-se em um dos extremos de uma relação, sem levar em

conta a imprescindibilidade da mediação. Hegel evidencia e critica estas formas

equivocadas de abordar, metodologicamente, qualquer questão do ponto de vista filosófico,

e especificamente a questão do Direito, desde seu notável ensaio escrito em 1802, (Hegel,

1990), que nós traduzimos assim: Sobre as maneiras científicas de tratar o Direito

Natural; seu lugar na filosofia prática e sua relação com as ciências positivas do direito 5.

A crítica hegeliana, realizada nesta obra, ao formalismo, e também ao empirismo - que são

as ditas maneiras tradicionais de ver o Direito Natural, até então - começa por mostrar

como estas abordagens se fixam em apenas um lado do movimento dialético que o espírito

perfaz, constantemente, em sua objetivação. Trata-se, portanto, qualquer procedimento daí

derivado, de uma abstração inferior (Hegel, 1990, p. 29), que visa preencher uma

necessidade própria do múltiplo, a que o empirismo já anunciara, a necessidade de que o

finito, em sua diversidade, venha a ser superado por algo que paire acima de si, enquanto

verdade absoluta, infinita. Entretanto, a abstração inferior que o formalismo apresenta, não

logra tal intento, pois se limita a repetir a prática do empirismo, ou seja, enquanto este se

fixava na multiplicidade posta (um dos pólos da relação), aquele se fixará no seu oposto, na

abstração pura (o imperativo categórico). Hegel insere o Direito como um momento ético

num todo orgânico dialético-especulativo, enquanto que o formalismo atribui a esta mesma

eticidade relativa a conotação de eticidade absoluta. Mais tarde, na Filosofia do Direito,

Hegel incorpora este debate do jusnaturalismo, bem como os dois modelos de autonomia

5 Obra traduzida pelos autores que já se encontra no prelo.

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individual, acima expostos, mostrando a instituição da liberdade, garantida na autonomia

da pessoa e do sujeito na instituição (Kervégan, 1998, 39).

Assim, entendemos que os desafios à autonomia no estado de Direito, permite

compreender que o fenômeno jurídico-laboral-cultural, num contexto de globalização,

encontra nos modelos antropológicos de autonomia subjetiva e intersubjetiva e nas

experiências do Direito, descritos na Fenomenologia de Hegel, parâmetros interpretativos

para o futuro da autonomia.

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