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PONTIFÍCIA FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO JOAQUIM FONSECA DE SOUZA MÚSICA LITÚRGICA E INCULTURAÇÃO: Análise teológico-litúrgica da música litúrgica inculturada no Nordes- te Brasileiro através de constâncias modais, verificadas no repertório litúrgico do tríduo pascal do compositor Geraldo Leite Bastos Dissertação apresentada como exigência parcial para a obtenção do grau de Mes- tre em Teologia Dogmática com Especi- alização em Liturgia, à Comissão Julga- dora da Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção de São Pau- lo, sob a orientação do Prof. Dr. Pe. Va- leriano dos Santos Costa. SÃO PAULO – 2008

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PONTIFÍCIA FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO

JOAQUIM FONSECA DE SOUZA

MÚSICA LITÚRGICA E INCULTURAÇÃO:

Análise teológico-litúrgica da música litúrgica inculturada no Nordes-te Brasileiro através de constâncias modais, verificadas no repertório

litúrgico do tríduo pascal do compositor Geraldo Leite Bastos

Dissertação apresentada como exigência parcial para a obtenção do grau de Mes-tre em Teologia Dogmática com Especi-alização em Liturgia, à Comissão Julga-dora da Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção de São Pau-lo, sob a orientação do Prof. Dr. Pe. Va-leriano dos Santos Costa.

SÃO PAULO – 2008

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Comissão julgadora ________________________________________________________________

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Agradecimentos ________________________________________________________________

Meus sinceros agradecimentos ao Prof. Dr. Pe. Valeriano dos Santos Costa, orientador

deste trabalho que analisou o texto e contribuiu com suas valiosas observações e correções. Igualmente

agradeço a Frei Joel Postma, Frei Francisco van der Poel, Pe. Reginaldo Veloso, Ione Buyst, Pe. Vi-

cente de Paulo Moreira, Hélio Sena, Ermelinda Azevedo Paz e Maria Aparecida Bento. Meu carinho

todo especial aos irmãos e irmãs da Comunidade Eclesial da Ponte dos Carvalhos (PE) que, de braços

abertos, me acolheram e me ajudaram a conhecer o homem, o pastor, o liturgo e o compositor Geraldo

Leite Bastos.

Me estende Senhor tua mão de ferreiro

que segura trens e navios, puxa pelo nariz os aviões.

Que boa é a vida se não me abandonas. Um violino muito ao longe chora, silente e vagarosa chega a noite.

A hora, o açoite, que valem? Se vos tenho a meu lado, ó meu Pastor.

Adélia Prado

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Siglas ________________________________________________________ CELAM Conselho Episcopal Latino-Americano

CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

GLB Geraldo Leite Bastos

IGMR Instrução Geral do Missal Romano, 2002

MPB Música Popular Brasileira

ML Música Litúrgica

MS “Musicam Sacram” – Instrução sobre a música na Sagrada Liturgia, 1967.

PB III CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO.

A evangelização no presente e no futuro da América Latina; Puebla: Conclu-sões. São Paulo: Loyola, 1979.

SC “Sacrosanctum Concilium”, Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia, 1963.

SD IV CONFERÊNCIA DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO. Nova evangelização, promoção humana, cultura cristã, Jesus Cristo ontem, hoje e sempre; Santo Domingo: conclusões. São Paulo: Loyola, 1994.

DA V CONFERÊNCIA DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO E CARI-BENHO. Documento de Aparecida. Brasília: Edições CNBB, 2007.

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5

Sumário __________________________________________________________________________________ Introdução ..................................................................................................................................... 007 CAPÍTULO I Música Litúrgica .......................................................................................................................... 010 1.1. A música como expressão da vida humana, sua relação com o transcendente e enquanto

rito ........................................................................................................................................... 010

1.2. A música litúrgica: expressão do mistério pascal de Cristo ................................................... 014 1.3. Principais elementos que compõem a música litúrgica ........................................................... 016 1.3.1. A letra ............................................................................................................................... 017 1.3.2. A beleza da melodia .......................................................................................................... 019 1.3.3. A fluência rítmica .............................................................................................................. 021 1.3.4. A importância dos instrumentos musicais ......................................................................... 022 1.4. A música litúrgica e sua função ministerial ............................................................................ 028 1.4.1. A necessidade de um repertório litúrgico .......................................................................... 030 1.4.2. Buscando classificar o canto litúrgico ............................................................................... 032 1.4.3. A importância da integração entre os ministérios da música litúrgica e a assembléia ..... 034 1.5. Alguns critérios para a análise, escolha e formação do repertório litúrgico ........................... 040 Conclusão ....................................................................................................................................... 043 CAPÍTULO II Da “adaptação” à “inculturação” litúrgica ............................................................................... 045 2.1. A adaptação e a inculturação litúrgica ................................................................................... 046 2.1.1. A inculturação no contexto histórico-salvífico e seus desdobramentos ao longo da his- tória do cristianismo o ocidente ........................................................................................

048

2.1.2. A inculturação na América Latina e no Brasil: caminho para a participação ................... 052 2.1.3. A Instrução Romana sobre a inculturação e a Igreja na América Latina: dificuldades e desafios .............................................................................................................................

055

2.2. Relação entre música ritual e inculturação .............................................................................. 057 Conclusão ....................................................................................................................................... 058 CAPÍTULO III Modalidade gregoriana e “modalismo nordestino”.................................................................. 061 3.1. Modos gregorianos .................................................................................................................. 061 3.1.1. Conceituação (modo/modalidade; tom/tonalidade) .......................................................... 061 3.1.2. Modalidade gregoriana ...................................................................................................... 062 3.1.3. Os modos de Lá, Si e Dó e a gênese do tonalismo ............................................................ 065 3.2. Modalismo nordestino .......................................................................................................... 069 3.2.1. Estruturas modais detectadas no Nordeste ....................................................................... 069 3.2.2. Teorias sobre a origem do modalismo nordestino ............................................................ 072 Conclusão ....................................................................................................................................... 075 CAPÍTULO IV

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Análise teológico-litúrgica do repertório do tríduo pascal do compositor Geraldo Leite Bastos .............................................................................................................................................

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4.1. Geraldo Leite Bastos ............................................................................................................... 077 4.1.1. O homem ........................................................................................................................... 078 4.1.1.1. A infância em Moreno (PE) ..................................................................................... 078 4.1.1.2. No seminário ............................................................................................................ 079 4.1.1.3. Perfil psicológico do homem Geraldo Leite Bastos ................................................. 080 4.1.2. O pastor .............................................................................................................................. 085 4.1.2.1. O “pastor da Ponte”: pastor da “Nação do Divino” ................................................. 086 4.1.2.2. O “irmão de todos” ................................................................................................... 089 4.1.2.3. O pastor “para além da Ponte” ................................................................................. 093 4.1.3. O liturgo ............................................................................................................................. 097 4.1.3.1. A espiritualidade do liturgo GLB ............................................................................ 097 4.1.3.2. O liturgo GLB e sua habilidade em integrar fé e vida, na ação litúrgica ................. 099 4.1.3.3. A Igreja Matriz de N. Sra. do Bom Conselho: espaço litúrgico propício para a festa .........................................................................................................................

101

4.1.4. O compositor ...................................................................................................................... 104 4.1.4.1. As fontes de inspiração do compositor GLB ............................................................ 105 4.1.4.2. GLB e seu relacionamento com parceiros e intérpretes ............................................ 107 4.1.4.3. A espiritualidade do intérprete da ML ..................................................................... 109 4.2. Análise teológico-litúrgica e musical do repertório do tríduo pascal do compositor Geraldo

Leite Bastos ............................................................................................................................. 111

4.2.1. A festa da Páscoa: cume e fonte da pastoral litúrgica do GLB......................................... 112 4.2.1.1. A preparação (quaresma) ............................................................................................ 112

4.2.1.2. O tríduo pascal (Páscoa da Ceia, Páscoa da Cruz, Páscoa da Ressurreição do Se-nhor) na Ponte dos Carvalhos .....................................................................................

114

a. A Páscoa da Ceia do Senhor .............................................................................. 115 a.1. O repertório litúrgico da celebração da Páscoa da Ceia do Senhor ................... 116 a.1.1. Jesus ergueu-se da ceia ..................................................................................... 117 a.1.2. Prepara o coração ............................................................................................. 118 b. A Páscoa da Cruz do Senhor .............................................................................. 122 b.1. O repertório litúrgico das celebrações da Páscoa da Cruz do Senhor ................ 125 b.1.1. As sete últimas palavras ..................................................................................... 126 b.1.2. Canto para Verônica ......................................................................................... 128 c. A Páscoa da Ressurreição do Senhor ................................................................. 133 c.1. O repertório litúrgico da celebração da Páscoa da Ressurreição do Senhor ...... 135 c.1.1. Proclamação da Páscoa ..................................................................................... 135 c.1.2. Cântico de Moisés .............................................................................................. 140 c.1.3. A terra tremeu .................................................................................................... 143

Conclusão ....................................................................................................................................... 145 À guisa de conclusão geral .......................................................................................................... 147 BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................................... 150 A – Fontes não publicadas ........................................................................................................... 150

A1. Depoimentos escritos ....................................................................................................... 150 A2. Depoimentos gravados em fita cassete e de vídeo ........................................................... 151 A3. Outras ............................................................................................................................... 151

B – Obras consultadas ................................................................................................................. 152

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7

B1. Documentos do Magistério da Igreja ............................................................................... 152 B2. Geraldo Leite Bastos ........................................................................................................ 153

B2.1. Obras de Geraldo Leite Bastos .................................................................................... 153 B2.2. Obras sobre Geraldo Leite Bastos ............................................................................... 153

B3. Monografias ..................................................................................................................... 154 B3.1. Música .......................................................................................................................... 154 B3.2. Inculturação .................................................................................................................. 157 B3.3. Outras ............................................................................................................................. 158 ANEXO I [Repertório (partituras) de 16 cantos (modais) do repertório litúrgico do tríduo pascal do com-positor Geraldo Leite Bastos] .........................................................................................................

160

ANEXO II [Jogral “Encontro de Penitência” (texto completo)] ......................................................................

183

ANEXO III [Jogral “Descida da Cruz” (texto completo)] .................................................................................

190

ANEXO IV [VELOSO, Reginaldo. A páscoa do Servidor da Nação do Divino] .............................................

200

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8

Resumo ________________________________________________________________

Nesta dissertação, o autor – músico e liturgista - trabalha questões ligadas à música li-

túrgica, chamando a atenção do(a) leitor(a) para a problemática dos textos, melodias..., e sua

incidência na liturgia pós-Vaticano II. Todas estas questões são refletidas a partir do “moda-

lismo nordestino”, como elemento constitutivo da inculturação da música litúrgica do tríduo

pascal do compositor Geraldo Leite Bastos.

O capítulo I trata da música litúrgica em sua forma e em seu conteúdo (seus ele-

mentos constitutivos, sua função ministerial, enfim, sua relação com a liturgia). Os capítulos

II e IV se ocupam da “inculturação litúrgica”. Partindo da Sacrosanctum Concilium - que nos

respectivos números 37-40 fala sobre a adaptação da liturgia à índole e às tradições dos povos

e, baseando em farta documentação do magistério da Igreja e outras fontes relacionadas com o

tema em questão - o autor alerta seus leitores para a urgência da inculturação da mísica litúr-

gica da Igreja no Brasil. O modalismo gregoriano e o modalismo nordestino são enfocados no

capítulo III. O repertório do tríduo pascal do compositor e liturgo Geraldo Leite Bastos, apre-

senta elementos comuns (constâncias modais) com a etnomúsica religiosa e MPB, típicas da

Região Nordeste.

Embora se dando conta dos muitos problemas que afetam a música litúrgica da Igreja

no Brasil como por exemplo, quanto ao texto, presença de “chavões” moralizantes e doutri-

nais, rimas fracas e forçadas, carência de referência bíblica e de conteúdo mistagógico; e

quanto à melodia, o uso freqüente de modulações forçadas e resoluções cadenciais que, de tão

gastas, se transformam em verdadeiros “clichês”, uma vez que se apresentam desprovidas de

beleza e criatividade. O autor elege o repertório do tríduo pascal do compositor e liturgo per-

nambucano Geraldo Leite Bastos, como paradigma de uma autêntica música litúrgica incultu-

rada.

Enfim, esta obra poderá ser um subsídio valioso tanto para ministros

da música litúrgica (compositores, letristas, instrumentistas...) da Igreja Católica Romana,

como de outras igrejas cristãs. O(a) leitor(a) interessado poderá encontrar, dentre outras coi-

sas, elementos importantes quanto ao uso das escalas e harmonias modais para futuras com-

posições de música litúrgica.

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Resumen ________________________________________________________________ En esta disertación, el autor de este escrito -músico e liturgista- trabaja cuestiones

relacionadas a la música litúrgica, orientando al lector sobre algunos aspectos problemáticos

de textos y melodias e sus consecuencias em la liturgia despues del Concílio Vaticano II. To-

das essas preguntas estan relacionadas desde el punto de vista del “regionalismo nordestino”

como elemento constitutivo de la inculturación de la música litúrgica del tridio pascual del

compositor Geraldo Leite Bastos.

El capitulo I tiene como asunto la forma y el contenido (los elementos que la consti-

tuyen, la función ministerial, o sea la relación com la liturgia). Los capítulos II y IV tratan de

la “inculturación litúrgica”. A partir de los números 37 – 40 del documento Sacrosanctum

Concilium que hablan sobre la adaptación de la liturgia em sintonia com lãs tradiciones de los

pueblos. Esta reflexión tiene como base uma extensa documentación de los textos del magis-

terio de la Iglesia y otros asuntos relacionados com el tema propuesto. El autor de este texto,

llama la atención a sus lectores para uma urgente inculturación de la música litúrgica de la

Iglesia del Brasil. El estilo musical gregoriano y el estilo musical nordestino son contempla-

dos em el capitulo III. El contenido del tridio pascual del compositor Geraldo Leite Bastos,

contiene elementos comunes (modos constantes) com la etnomusica religiosa y música popu-

lar brasilera, que son propias de la región nordeste del Brasil.

El autor de este texto elije el contenido del tridio pascual del compositor e liturgo per-

nanbucano Geraldo Leite Bastos, como paradigma de uma auténtica música litúrgica incultu-

rada. Porque se da cuenta y tiene conciencia de los muchos problemas por los cuales termina

influenciada la música litúrgica de la Iglesia del Brasil como por ejemplo, em relación al texto

es muy común palavras repetitivas moralisantes y doctrinales, rimas enflaquesidas y mucho

batidas, ausência de uma referencia bíblica y del contenido mistagógico. Em relación a la me-

lodia, el uso frecuente de modulaciones empujadas y resoluciones em decadencia, que por

estar tan gastadas, se transforman em verdadeiros “clicles”, devido a que se presentan sin nin-

guna belleza y criatividad.

Al final, esta obra poderá ser um subsidio valioso para los ministros

de la música litúrgica (compositores, letristas, instrumentistas...) de la Iglesia Católica Roma-

na, como tambien de outras iglesias cristianas. El (la) leitor(a) interessado poderá encontrar,

dentro de outras cosas, elementos importantes el uso de las escalas e sus modos armónicos

para futuras composições de música litúrgica.

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Abstract ___________________________________________________________________________

On this essay, the author – musician and liturgist – works on questions linked to the

liturgical music, calling the reader’s attention to the texts, melodies problematic…, and its

incidence in the liturgy pos-Vatican II. All these questions are reflected from de “northeastern

model”, as a constitutive element of liturgical music inculturation from the Eastery trio the

composer Geraldo Leite Bastos.

The chapter I is about the liturgical music in its form and content (its constitutive

elements, ministerial function, therefore, its relation to the liturgy). The chapters II and IV are

about the “liturgical inculturation”. From the Sacrosanctum Concilium – that in the respective

numbers 37-40 talks about the liturgy adaptation to the people’s nature and traditions and,

based on a vast Church’s teaching documentation and other sources related to the them in

question – the author warms his readers to Brazil’s Church liturgical music inculturation

urgency. The Gregorian and Northeastern models are focused on chapter III. Composer and

liturgist Geraldo Leite Bastos’s Eastery trio repertoire, presents common elements (model

constancies) with the religious ethnic music and Brazilian Popular Music, typical from the

Northeast Region.

Although being up to many problems that affect Brazil’s Church liturgical music

as an example, as for the text, presence of moralizing and indoctrinating “clichés”, weark and

forced rhymes, lack of biblical reference and mysthical content; and as for the melody, the

frequent use of forced modulations and rhythm resolutions that, so worn out, become real

“clichés”, since they present themselves without beauty and creativity. The author chooses the

composer and liturgist from Pernambuco Geraldo Leite Bastos’s Eastery trio repertoire, as a

paradigm of an authentic incultured liturgical music.

At last, this piece of work can be a valuable subside as for liturgical music

ministers (composers, writers, instrumentists…) from the Roman Catholic Church, as from

other Christian churches. The interested reader can find, among other things, important

elements about the use of scales and modal harmonies for future composition of liturgical

music.

11

11

Introdução ___________________________________________________________________________

O presente trabalho pretende ser um contributo para uma reflexão sobre a incultu-

ração da música litúrgica (ML) no Brasil.

A motivação de fundo que nos impulsionou a levar adiante a proposta desta dis-

sertação foi, por um lado, certa insatisfação nossa, face à atual produção de ML divulgada em

todo o país; e por outro, o aprazimento obtido a partir do instante em que tomamos conheci-

mento da expressiva obra musical do compositor GLB.

A produção musical, veiculada especialmente nos folhetos litúrgicos, CDs e fitas

cassete, na sua maioria, prima pela má qualidade tanto do texto como da melodia.

Quanto ao texto, sentimos falta de uma poética mais elaborada que, de fato, cante

o ‘mistério’ sem precisar lançar mão de “chavões” moralizantes e doutrinais, ou mesmo de

rimas fracas e forçadas que só enfraquecem o canto litúrgico. Muitos textos carecem de refe-

rência bíblica, de conteúdo mistagógico, pecando pela inadequação ao momento ritual, ao

tempo do ano litúrgico, às festas etc.

Quanto à melodia, somos tentados a afirmar que, salvo algumas exceções, muitos

cantos não nos ajudam a mergulhar na dinâmica do Espírito que nos leva ao mais profundo de

nós mesmos e nos impulsiona a louvar o Pai “em Espírito e verdade”. São melodias pouco

inspiradas, com modulações forçadas e resoluções cadenciais que, de tão gastas, se transfor-

mam em verdadeiros clichês, uma vez que se apresentam desprovidas de beleza e criatividade.

Diante de tudo isso, resolvemos abordar esta problemática, focalizando o liturgo e

compositor GLB. Este nos legou uma importante obra musical que, ao nosso julgar, é um sig-

nificativo exemplo de inculturação da ML no Nordeste brasileiro. A obra deste liturgo e com-

positor pernambucano é sem sombra de dúvida, um referencial para todos aqueles que se de-

dicam ao ministério da ML da Igreja no Brasil.

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GLB foi um dos promotores pioneiros e mais criativos de uma liturgia enraizada

na cultura popular em nosso país, em termos de arquitetura, pintura, vitral, alfaias, coreografi-

a, teatro e música. Juntamente com os padres Reginaldo Veloso e Jocy Rodrigues, adaptou os

salmos e cânticos bíblicos a uma linguagem poética popular, além de compor várias melodias

inspiradas na etnomúsica religiosa dos pobres do sertão nordestino.

Dessa fonte inesgotável – a cultura popular nordestina – GLB foi, aos poucos,

elaborando uma ML inculturada com feições nordestinas. Para este trabalho dissertativo, con-

centraremos nossa atenção sobre o aspecto melódico, procurando demonstrar que o uso acen-

tuado de constâncias modais presentes na obra deste compositor é um exemplo significativo

de inculturação da ML em terras nordestinas. Grande parcela da ML composta por GLB apre-

senta elementos comuns (constâncias modais) com a etnomúsica religiosa e a MPB, típicas da

Região Nordeste. Limitando ainda mais o nosso campo de investigação, tomaremos o repertó-

rio do tríduo pascal do compositor em questão, procurando detectar a incidência do modalis-

mo nordestino no conjunto das peças musicais que compõem este repertório.

A relevância deste trabalho pode ser detectada sob dois aspectos:

1) A importância da ML como tal. A ML, quando bem elaborada (simbiose entre texto, melo-

dia...) e devidamente integrada no momento ritual, ajudará a assembléia celebrante a uma ex-

periência mais aprofundada do mistério celebrado.

2) A urgência da inculturação da ML. A inculturação da ML remonta ao próprio Concílio

Vaticano II. A Constituição “Sacrosanctum Concilium” nos respectivos números 37-40, fala

sobre a adaptação da liturgia à índole e às tradições dos povos. A partir de então, a Igreja (es-

pecialmente na América Latina) tem buscado adequar sua liturgia à índole e culturas dos po-

vos deste Continente. Todo esse esforço tem, como principal objetivo, a participação ativa,

plena e frutuosa1 dos fiéis na ação litúrgica. A inculturação litúrgica será objeto de estudo nos

capítulos II e IV desta dissertação.

O modalismo gregoriano e o modalismo nordestino serão tratados no capítulo III.

A compreensão das estruturas modais é imprescindível para se estabelecer um primeiro passo

rumo a uma ML inculturada no Nordeste brasileiro e no universo do compositor GLB.

1 Cf. SC 11, 14, 19, 21, 30...

13

13

O capítulo I se ocupará da ML em sua forma e em seu conteúdo (seus elementos

constitutivos, sua função ministerial..., enfim, sua relação com a liturgia cristã). Como parte

integrante da mesma, a ML desempenha um importante papel na ação litúrgica e, por isso

mesmo, ela (a ML) não pode ser concebida apenas sob o ponto de vista estético-formal e sub-

jetivo, mas sobretudo a partir das leis que regem a própria liturgia.

Enfim, o presente trabalho poderá ser um subsídio valioso tanto para os ministros

da ML (compositores, letristas, instrumentistas...) da Igreja Católica Romana, como de outras

igrejas cristãs. O leitor interessado poderá encontrar, dentre outras coisas, elementos impor-

tantes quanto ao uso das escalas e harmonias modais para futuras composições de ML.

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14

Capítulo I ________________________________________________________________

Música Litúrgica

Este capítulo tem como objetivo específico a ML. Antes, porém, de tratarmos da

ML propriamente dita, buscaremos alguns fundamentos na antropologia cultural, uma vez que

esta ciência nos auxilia na compreensão da música como expressão da vida humana, da rela-

ção existente entre música e transcendência e da música enquanto rito. Maior atenção será

dispensada à ML – núcleo deste capítulo - com seus elementos constitutivos (texto, melodia,

ritmo...); com sua função ministerial (parte integrante da liturgia) e com sua funcionalidade

cuja expressão se dá através dos ministérios dos compositores, cantores, instrumentistas..., os

quais, por sua vez, agem conforme as leis da própria liturgia.

1.1. A música na vida humana, sua relação com o transcendente e enquanto rito

A música é uma linguagem que expressa a vida humana em várias dimensões: psi-

cológica, social, cultural...; e acompanha o quotidiano das pessoas em circunstâncias diversas

como: lazer/diversão (festas, boates, clubes ); terapia (música usada com finalidade terapêu-

tica: musico-terapia); música ambiente (fundo musical em shopping-center, restaurantes, par-

ques); música para ser escutada (concertos, shows) etc.. O compositor popular Arnaldo AN-

TUNES2, em sua composição intitulada “música para ouvir”, caracteriza bem o que quere-

mos dizer sobre as diversas utilidades da música:

2 Arnaldo Antunes é um compositor popular e membro da banda pop Os Titãs. O texto que transcreveremos a seguir foi extraído de seu CD-solo: Arnaldo Antunes; um som, pela gravadora BMG/Ariola, 1998.

Música para ouvir no trabalho Música para jogar baralho Música para arrastar corrente Música para subir serpente Música para girar bambolê Música para querer morrer

Música para escutar no canto Música para baixar o santo Música para ouvir música para ouvir música para ouvir Música para compor o ambiente Música para escovar o dente

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Música para fazer chover Música para ninar nenê Música para tocar na novela Música de passarela Música para vestir veludo Música pra surdo-mudo Música para ouvir música para ouvir música para ouvir Música para estar distante Música para estourar o falante Música para tocar no estádio Música para escutar no rádio Música para ouvir no dentista Música para dançar na pista

Música para cantar no chuveiro Música para ganhar dinheiro Música para ouvir música para ouvir música para ouvir Música pra fazer sexo Música para fazer sucesso Música pra funeral Música para pular carnaval Música para esquecer de si Música pra boi dormir Música para tocar na parada Música pra dar risada Música para ouvir música para ouvir música para ouvir

A música, porém, ultrapassa as fronteiras de uma mera utilidade: ela tem o poder

de influenciar os sentimentos humanos mais profundos e até de transformá-los, dependendo

do momento e da intensidade com que repercute no ser humano3. Facilmente podemos passar

da alegria à tristeza, só pelo influxo da música que, às vezes, de forma inconsciente e imper-

ceptível, invade o nosso ser mais profundo. O contrário também é verdade! Rubem ALVES,

com a propriedade de poeta e místico afirma: “Música é feitiçaria. (...) A música, sem uma

única palavra, sem que a razão possa defender-se, entra dentro do corpo e vai ao fundo da

alma. Ouvindo música, fico indefeso. (...) A beleza não deixa lugar para o pensamento”4. E

mais adiante: “Na música a nossa beleza aparece como entidade sonora. Ao ouvir música nos

transformamos em música. (...) A música é assim: não quer ser só ouvida. Quer possuir os

corpos, transformar-se em vida, tornar-se carne”5.

O musicoterapeuta John M. ORTIZ acredita que com o simples exercício da repe-

tição de mantras, por exemplo, podemos atingir a harmonia interior e liberar energias acumu-

ladas. Isto nos possibilita atingir campos vibratórios positivos em nossa volta, “permitindo-

3 TAME, D. O poder oculto da música. São Paulo: Cultrix, 1984. Nesta obra, o autor reflete sobre a influência da música sobre o homem e a sociedade e chama-nos a atenção para este campo que ainda é pouco compreendi-do e explorado. 4 ALVES, R. Tristeza-beleza. In: Concerto para corpo e alma. São Paulus: Papirus, 1998, p. 22. 5 Ibidem, p. 24.

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nos eliminar temores, bloquear vibrações negativas, reduzir a ansiedade, sair da depressão,

acelerar a cura...”6.

R. JOURDAIN, em sua obra “Música, cérebro e êxtase”, mostra-nos como a mú-

sica nos captura e porque tanto nos ligamos a ela. Voltando sua investigação sobre o que ocor-

re em nossos cérebros quando a música nos domina e nos sacode até o mais íntimo do ser,

conclui: “Quando a música se dissolve no êxtase, ela nos transporta para um lugar abstrato,

distante do mundo físico, que normalmente ocupa nossas mentes”7. Este lugar abstrato ao

qual o autor se refere nada mais é do que a capacidade do cérebro humano de processar as

vibrações do som e suas propriedades. Só o cérebro humano é capaz de detectar a relação en-

tre as notas musicais, não ocorrendo o mesmo com os animais, porque “não são as notas de

uma valsa, mas as relações entre essas notas, que fazem o corpo querer dançar. Essas relações

(...) é que são música”8.

A música também provoca uma ação/reação comunitária: “A música – primeira

forma de linguagem – é movimento corporal, posto que o homem dança ou percute sobre si

mesmo, a fim de produzir vibrações. A melodia que leva ao êxtase, é vivida e expressa por

todos os membros da comunidade, quando celebram um acontecimento”9.

Os povos antigos tiveram sempre um apreço todo especial para com a música, a

dança e a poesia. “A música foi para eles um importante meio de sacralizar o teatro, o ócio, o

cortejo, o luto, a vida familiar, a política, o culto e as demais ocupações”10.

Para Thaís C. BEAINI, a música tem sua origem no mundo dos deuses. O papel

fundamental da música é equilibrar, harmonizar e curar doenças. A música é uma espécie de

artifício reparador do Criador para ordenar e equilibrar o cosmos. Além do mais, as divinda-

des são, por excelência, músicos.

Entre todos os mortais, o músico de luminoso cantar é o que mais se asseme-lha aos deuses. (...) Um bom feiticeiro deve ser um bom cantor. (...) Dentre

6 ORTIZ, J. M. O tao da música. São Paulo: Mandarim, 1997, p. 467. 7 JOURDAIN, R. Música Cérebro e êxtase. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997, p. 24. 8 Ibidem, p. 23. Diz-nos o autor: “Toquem uma valsa para um peixinho dourado e observem o que acontece. Nada. O ouvido dele pode sentir todas as freqüências essenciais (...). Ele não é esperto o suficiente para detectar a relação entre as notas e, assim, encontra apenas sons casuais. Onde encontramos inícios de melodia, o peixinho dourado encontra falta de relação, barulho” (Ibidem). 9 BEAINI, T. C. O surgimento da música divina no reino humano. In: Máscaras do tempo. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 45. 10 MONRABAL, M. V. T.. Música, dança y poesía en la Bíblia. México: Edicep, 1996, p. 9.

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os homens entregues ao devir, o mago-cantor foi selecionado como o mais apto no exercício da transcendência, por vivificar o sacrifício contido no ato de doar-se ao celeste, ritualmente expresso em seu ofício. (...) Contudo, o músico-mágico retira sua energia de uma intensa sintonia com a sonoridade inerente ao cosmos, limite configurador que lhe possibilita ser o que é e co-mo é 11.

No âmbito religioso, a música desempenha um papel importante, desde simples

canções com alguma mensagem religiosa até aquela música que é utilizada como rito. “Como

o homem ouve os deuses, estes ouvem reflexivamente, o clamor luminoso do mago: o poder

do rito reside, justamente, no intercâmbio participativo do divino nele invocado”. E ainda: “O

papel central da música nos ritos consiste em revitalizar a substância sonora primordial que

está na origem de cada homem” 12.

A música que acompanha ou faz parte de um determinado rito (música ritual) tem

uma dupla finalidade dentro da ação ritual: evocar a realidade simbólica e revelar a natureza

do próprio rito. Os “pontos” da Umbanda, são um exemplo bem característico de música ritu-

al: para cada “orixá” invocado, existe um “ponto” (música ritual) próprio. Existe o “ponto de

Oxalá”, o de “Exú da meia-noite”, o “ponto dos anjinhos”, o da “Virgem da Conceição”, o

“ponto de Ogum” etc.. O caráter sagrado desses “pontos” é tão impregnado de significação

simbólica que é inadmissível alguém que freqüenta um terreiro executar um “ponto” fora da

ação ritual13. O mesmo se pode dizer dos tambores do candomblé: uma vez consagrados –

mediante um rito próprio de consagração – estes tambores nunca mais podem sair de dentro

do terreiro e, muito menos ainda, ser usados para outras finalidades, a não ser o culto aos ori-

xás14.

Dissemos acima que, em muitas religiões, as pessoas revestidas do poder de ofe-

recer sacrifícios aos deuses são tidas como ‘sagradas’, uma espécie de ‘semi-deuses’.

O mago-cantor ou xamã são pessoas que, como os deuses, nomeiam, cha-mando à existência ou restaurando à morte, aqueles cuja substância sonora controlam. Seu canto, detendo-se na repetição de um mesmo som, como que

11 BEAINI, T. C. O surgimento da música... Op. cit. p. 46-47. 12 Ibidem, p. 50 e 52. 13 Veja também: NKETIA, J. H. Interação musical em eventos rituais. Concilium, Petrópolis, v. 222, 1989/2, p. 115-128. Aqui o autor aborda a questão da execução musical interativa no culto entre os povos africanos. Para muitas destas culturas, entoar uma música ritual fora de um rito, é algo inconcebível; quando for necessário fazê-lo – como por exemplo, uma gravação – é necessário pedir licença (com orações e libações) e dar explicações aos deuses; caso contrário, os infratores estão sujeitos a uma série de castigos (doenças, morte...) da parte dos deuses (Cf. Ibidem, p. 119-120). 14 Sobre o poder e o sentido dos instrumentos musicais falaremos mais adiante quando tratarmos especificamente do assunto instrumentos musicais.

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paralisando o tempo, os conduz ao alcance do âmbito originário onde os deuses, por sua força mágica, fazem sucumbir os males 15.

Na tradição litúrgica do povo de Israel16, os músicos são descendentes da tribo de

Levi. Os levitas músicos eram encarregados do canto e de tocar os instrumentos. Para serem

admitidos a este ofício litúrgico, os candidatos passavam por uma dupla prova acerca de suas

aptidões musicais e sobre a pureza de origem, embora, na prática, fossem considerados como

classe inferior. Os grupos eram tradicionalmente constituídos por famílias (cf. 1Cr 15,16).

Tinham um 1º chefe de música que organizava o serviço de sua secção no culto, e um mestre

de coro que dirigia a salmodia e dava a entrada aos instrumentos. No livro dos Salmos se en-

contram algumas indicações acerca destas famílias, como por exemplo, as de “Asaf”: Cf.

Salmos 50(49); 74(73)-83(82); e de “Coré”: Cf. Salmos 42(41)-49(48); 84(83)-85(84);

87(86)-88(87).

A participação do povo era, também, significativa nas festas e liturgias do templo,

sobretudo nos sacrifícios da manhã e da tarde. “Devia ser muito digna e bonita a função dos

levitas músicos no templo. Eis aqui um texto para ser contemplado: ‘Asaf, Emã e Iditum, com

seus filhos e irmãos, estavam revestidos de linho puro e tocavam címbalos, lira e cítara, per-

maneciam ao oriente do altar, e cento e vinte sacerdotes os acompanhavam tocando trombe-

tas’ (2Cr 5,12s)”17.

A função dos levitas depois da destruição do 2º templo de Jerusalém se reduz a

dois privilégios na Sinagoga: serem convocados para uma leitura e servirem nas abluções dos

sacerdotes antes de recitar a bênção da congregação. A função do cantor continua sendo muito

apreciada, “porém pode ser qualquer pessoa, sempre que tenha uma bonita voz”18.

1.2. Música litúrgica: expressão do mistério pascal de Cristo

Antonio ALCALDE, em seu estudo “La salud del canto litúrgico”, nos assegura

que “uma das principais funções da música é estabelecer a comunicação com o sobrenatural.

O canto é um caminho para o encontro entre Deus e o homem, pois tem poder de transforma-

15 BEAINI, T. C. O surgimento da música... Op. cit. p. 62. 16 Para o que segue, cf. MONRABAL, M. V. T. Música, danza y poesía en la Bíblia. Op. cit. p. 25-28. 17 Ibidem, p. 28. 18 Ibidem, p. 28.

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ção, tem força e capacidade de mediação”19. Na liturgia é indispensável o canto e a música,

uma vez que ali nossos sentidos estão mais aguçados para viver a experiência do mistério.

Desde cedo, os primeiros cristãos descobriram que o canto é um elemento neces-

sário e indispensável para a liturgia. Mesmo testemunhos de não-cristãos atestam que o canto

é uma característica daqueles que “em determinados dias (...) antes da alvorada” costumam

reunir-se para cantar hinos a Cristo como a Deus20. “Abundantes testemunhos dos séculos IV

e V nos fazem ver que o canto era uma atividade sumamente agradável para os fiéis que a ele

se aplicavam com entusiasmo”21. O Apóstolo Paulo, além de transcrever em algumas de suas

epístolas fragmentos de hinos cristológicos22 - provavelmente conhecidos pelos seus destina-

tários - ainda exorta aos irmãos das comunidades por ele fundadas a permanecerem em cons-

tante atitude pascal, ou seja, falando uns aos outros “com salmos e hinos e cânticos espiritu-

ais, cantando e louvando ao Senhor (...) sempre e por tudo dando graças a Deus, o Pai, em

nome de nosso Senhor Jesus Cristo”23. No livro do Apocalipse também encontramos fragmen-

tos de hinos que, na opinião de muitos exegetas, são vestígios de um possível repertório litúr-

gico das comunidades cristãs (joânicas) do final do 1º século24. Ainda convém ressaltar os três

cânticos evangélicos25 que a Igreja sempre teve presente na liturgia das horas (Ofícios da ma-

nhã, tarde e noite).

A ML, por sua natureza, expressa o mistério cristão. Para o liturgista Julián L.

MARTÍN, o canto e a música são uma expressão da fé dos fiéis que se reúnem para celebrar o

mistério pascal de Cristo. Por um lado, cumprem a nobre função de ser uma “resposta do ho-

mem crente ao Pai que nos fala por meio de sua Palavra encarnada e gloriosa, Jesus Cristo

ressuscitado, doador do Espírito que o faz presente entre os seus”26. Por outro, a ML é um

verdadeiro símbolo litúrgico que

visibiliza, expressa e realiza a presença da salvação e a união da comunidade que celebra com Cristo, o Senhor, e por meio dele, com o Pai e no Espírito Santo. (...) A música em todas as formas é uma manifestação da ação do Es-pírito que, enviado a nossos corações para que invoquemos ao Pai (cf. Rm

19 ALCALDE, A. La salud del canto litúrgico. Phase, Barcelona, v. 220, [jul./ago.] 1997, p. 290. 20 Cf. Plínio, Epist. X, 96,7. 21 BASURKO, X.; GOENAGA, J. A. O culto cristão na época do Império. In: BOROBIO, D. (org.), A celebra-ção na Igreja I. São Paulo: Loyola, 1990, v. 1, p. 80. 22 Cf. Ef 1,3-10; Fl 2, 6-11; Cl 1, 12-20; 1Tm 3, 16. 23 Ef 5, 19-20; Cf. Cl 3,16. 24 Ap 4,11; 5,9.10.12; 11,17-18; 12,10b-12a; 15,3-4; 19,1-2.5-7. 25 Lc 1,46-55 (Maria); Lc 1, 68-79 (Zacarias); Lc 2, 29-32 (Simeão). 26 MARTÍN, Julián L. Canto y música en la liturgia; punto de vista teológico. In: VV.AA. La música em la Igle-sia de ayer a hoy. Salamanca: Publicaciónes Universidad Pontifícia, s.d. p. 209.

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8,15), inspira os salmos, as aclamações e os hinos (cf, Ef 5, 18-19) e nos su-gere como devemos orar (cf. Rm 8, 23.26-27) 27.

Acreditamos, também, que o canto e a música podem expressar e facilitar a oração

se estiverem intimamente unidos à ação litúrgica, favorecendo a unidade da assembléia e dan-

do maior solenidade aos ritos sagrados28.

Canto e música são também “meios pedagógicos eficazes para a formação cristã e

litúrgica e para a participação plena e ativa de todo o povo de Deus. A profundidade do texto

e o atrativo da melodia fazem com que a mensagem fique entranhada no mais profundo de

nós”29. Nesta mesma direção, P. ARGÁRATE compara o canto como um sonar que ressoa no

mais profundo da alma humana, que “atrai e põe para fora os sentimentos mais fundos. (...) E

mediante essa exploração da profundidade da alma, (o canto) vai realizando a unidade do ho-

mem consigo mesmo (...) criando a unidade dos que se amam”30.

Enfim, é sempre oportuno ressaltar que o mistério pascal de Cristo – sua morte,

ressurreição e ascensão – é a moldura que definirá os reais contornos da ML pós-Vaticano II

e, consequentemente, será o referencial teológico-litúrgico para todas as incursões que fare-

mos ao longo deste trabalho acerca da ML.

1.3. Principais elementos que compõem a Música Litúrgica

A ML é composta de vários elementos, ou melhor, “é uma síntese irredutível à

soma (...) de vocábulos e imagens, prosódia e ritmo, contexto harmônico e arranjo musical,

interpretação vocal e instrumental, sonorização”31. Para um estudo mais aprofundado, elege-

mos: texto, melodia, ritmo e instrumentos musicais. Ei-los:

1.3.1. A letra

27 Ibidem, p. 208-209. 28 Cf. SC 112. 29 ALCALDE, A. La salud del canto litúrgico. Op. cit. p. 289. 30 ARGÁRATE, P. A Igreja celebra Jesus Cristo. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 103. 31 STEFANI, G. O canto. In: GELINEAU, J. Em vossas assembléias I. São Paulo: Edições Paulinas, 1973, v. 1, p. 217-18.

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Para os Santos Padres32, o canto é concebido como um método pedagógico utili-

zado por Deus, onde a beleza da melodia, do ritmo, e a força da palavra se juntam para “ensi-

nar e curar o homem doente e decaído”. Falando do salmo cantado, São BASÍLIO compara-o

a um remédio amargo que, para ser ingerido, a medicina antiga untava as bordas do copo com

mel. Assim, o paciente não sentia o gosto desagradável do remédio: o mel é a melodia; o re-

médio, as palavras divinas do salmo33. Para João CRISÓSTOMO, “Os salmos encerram toda

a ciência”34. A catequese patrística ensina que os salmos contêm a síntese de toda a história da

salvação que se concentra no mistério pascal de Cristo:

Nestes cantos se encontra elaborado com um doce prazer tudo o que orde-nam a lei, os profetas e até os evangelhos. (...) Se cantam os mistérios de Cristo (...) se cantam os milagres de Cristo, se mostra sua paixão venerável, sua ressurreição gloriosa, assim como sua ascensão à direita do Pai. (...) Se revela também o Espírito criador e a renovação da terra 35.

Portanto, os textos da Sagrada Escritura (os salmos e os cânticos bíblicos do Anti-

go e Novo Testamentos) ocuparam, em grau de importância, o 1º lugar na ML da Igreja. Ou-

tros textos (hinos, antífonas, aclamações, responsórios, mantras, refrões, louvações...) devem,

necessariamente, inspirar-se na Sagrada Escritura. O músico e liturgista J. GELINEAU cha-

ma-nos a atenção para o seguinte:

Da palavra bíblica é de onde vieram as melhores peças dos repertórios lati-nos e orientais (...). Mas da palavra bíblica recitada, memorizada, saboreada, meditada, repetida, proclamada, anunciada, cantada, saíram as salmodias, as respostas, as antífonas breves ou longas; sobre este tronco sólido brotarão depois os tropários e os hinos 36.

R. VELOSO, vê nos salmos um importante referencial para todos os que lidam

com a ML:

(O livro dos salmos) é o canto maior, que vai das profundezas do abismo (Sl 130/129) às culminâncias celestes (Sl 19/18), envolvendo no seu embalo os seres humanos, a vida individual de cada um (Sl 131/130) e a história dos povos (Sl 136/135), a natureza e todas as suas maravilhas (Sl 104/103), o u-niverso inteiro e tudo quanto ele contém (Sl 148) 37.

A reforma efetuada pelo Concílio Vaticano II e o seu insistente apelo à Igreja uni-

versal para uma autêntica “volta às fontes”, estabeleceu como principal critério que os textos

32 Para o que segue sobre os Santos Padres, cf. BASURCO, F. J. El canto cristiano en la tradición primitiva. Madrido: Ediciones Marova S.L., 1966, p. 27-34. 33 Homilia in ps. 1,1. Cit. por BASURCO, F. J. p. 27. 34 Homilia 9,2. Cit. por BASURCO, F. J. p. 28 35 RAMESIANA, N. de. De utilitate hymnorum, 6. Cit. por BASURCO, F. J. p. 27. 36 GELINEAU, J. La musica de la assamblea cristiana, veinte años después del Vaticano II. Cuadernos Phase, Barcelona, v. 28, s.d. p. 68. 37 VELOSO, R. Música litúrgica; porque? Para que? Como? {s.d.], p. 8. Mimeografado.

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da ML fossem “tirados principalmente da Sagrada Escritura e das fontes litúrgicas”38. O uso

do vernáculo e a liberdade para se criar novas composições e repertórios litúrgicos foram ou-

tra grande conquista da reforma conciliar. O Concílio abriu as portas para novas incursões no

âmbito da criação musical; a partir de então, a ML deverá corresponder também às exigências

e até a padrões estéticos e culturais do nosso tempo39, além da questão da ministerialidade,

que é o ponto central característico do canto litúrgico pós-conciliar40.

Depois de quatro décadas da promulgação da Constituição “Sacrosanctum Conci-

lium”, um dos problemas mais comuns que enfrentamos é o da inflação de cantos que são

produzidos anualmente e usados na liturgia, porém, com sérios problemas tanto quanto ao

texto como à melodia41.

Joan BABURÉS, em recente estudo intitulado El canto litúrgico; perspectivas ac-

tuales, lamenta a existência de uma “desconexão com a grande Tradição da Igreja” em muitos

dos cantos atuais: “textos pouco profundos, com uma visão teológica muito pobre e superfici-

al, e inclusive com pouca qualidade literária”. E acrescenta: “Sendo o canto litúrgico expres-

são de fé, é da máxima importância o texto. Além de ser um texto literariamente correto, deve

ser expressão da fé da Igreja”42.

Seguindo a mesma linha de pensamento, A. GARCIA, analisa alguns textos de can-

tos utilizados na Igreja de seu país (Espanha) e apresenta como um dos “sintomas preocupan-

tes”, o “pouco respeito aos textos litúrgicos” da Igreja “substituídos por letras de uma grande

pobreza teológica”, e destaca três “constantes” no repertório espanhol:

a) O individualismo: o eu como sujeito de todo o canto, “desvirtuando o sentido comunitário

da assembléia celebrante”;

38 Cf. SC 121. 39 Sobre a ‘encarnação da ML nas culturas’, trataremos especificamente deste assunto no cap. II desta disserta-ção. 40 GELINEAU, J. Canto e música. In: O amanhã da liturgia. São Paulo: Edições Paulinas, 1977, p. 107. 41 Vários autores levantaram este problema: Cf. GARCIA, A. Celebrar la fe en el canto litúrgico, Phase, Barce-lona, v. 221, [set./out.] 1997, p. 365-383; ALCALDE, A. La salud del canto litúrgico. Op. cit. p. 289-300; BA-BURÉS, J. El canto litúrgico; perspectivas actuales. Phase, Barcelona, v. 220, [jul./ago.] 1997, p. 277-287; TE-NA, P. El canto y la música litúrgica, Phase, Barcelona, v. 182, [mar./abr.] 1991, p. 95-110; BASTOS, G. L. Loas e lamentos. Revista de Liturgia, São Paulo, v. 76, [jul./ago.] 1986, p. 15-17. 42 BABURÉS, J. El canto litúrgico... Op. cit. p. 281-282.

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b) O sentimentalismo: “Aparecem ‘letras débeis’ que falam de sedução”: uma espécie de

amor íntimo entre Deus e o eu. Para o autor, esse sentimentalismo exacerbado pode redu-

zir o canto litúrgico “simplesmente à luz de nossa própria sensação ou sentimento, fomen-

tando um relativismo perigoso apoiado simplesmente no sentimento”;

c) Um vazio espiritual e uma teologia parcializada: acentuação exagerada de valores e con-

ceitos amplos, abstratos como humanismo, ecologismo, igualdade, liberdade... além da

falta de referência explícita a Cristo ou à Igreja. Mesmo falando no contexto da Igreja es-

panhola, o autor em questão não poupa suas críticas a alguns cantos latino-americanos

“com letras anacrônicas e descontextualizadas”43.

1.3.2. A beleza da melodia

O maestro e pedagogo R. Murray SCHAFER define melodia como “uma seqüên-

cia organizada de sons”. E acrescenta:

Uma melodia é como levar o som a um passeio. Para termos uma melodia, é preciso movimentar o som em diferentes altitudes (freqüências). Isto é cha-mado de mudança de altura. Uma melodia pode ser qualquer combinação de sons. Há melodias mais e menos bonitas, dependendo do propósito para a qual foram pensadas. Algumas são livres, outras rigidamente organizadas, mas não é isso que as faz mais ou menos belas”44.

A melodia é um somatório de alguns elementos como: duração, harmonia, frasea-

do, ritmo (aqui entendido como modelo de durações variáveis): “As notas que caem em tem-

pos fortes e em outras importantes articulações rítmicas tornam-se, em geral, as mais impor-

tantes de uma melodia”45. E ainda: A melodia se baseia em relações harmônicas entre os tons

de uma escala46.

A melodia é a alma do canto. Numa leitura pneumatológica da ML, a liturgista

Ione BUYST atribui à melodia o sopro do Espírito Santo de Deus, que provoca em nós o som,

a vibração, levando-nos imediatamente, a experimentar um pouco das realidades divinas. E

acrescenta: (O Espírito) “suscita em nós a alegria, o louvor e a ação de graças, a compunção e

a entrega; suscita em nós a experiência do inefável do mistério de Deus”47.

43 Cf. GARCIA, A. Celebrar la fe en el canto litúrgico. Op. cit. p. 370-373. 44 SCHAFER, M. Ouvido pensante. Op. cit. p. 81. 45 JOURDAIN, R. Música, cérebro e êxtase. Op. cit. p. 116-117. 46 Cf. Ibidem, p. 119. Nos capítulos III e IV desta dissertação, voltaremos a falar da melodia sob o ponto de vista técnico-musical. 47 Cf. BUYST, I. Música ritual. Revista de Liturgia. São Paulo, v. 93, [maio/jun.] 1989, p. 88.

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Para os Santos Padres48, a melodia deve ser nobre e, ao mesmo tempo, despojada

de tudo o que é mundano’, pois sua finalidade primordial é sublinhar e, de algum modo, reve-

lar o sentido das palavras divinas. Santo AGOSTINHO, discípulo de Santo Ambrósio, vê no

canto da assembléia algo insubstituível:

Com exceção dos momentos em que se fazem as leituras, em que se prega, em que o bispo reza em alta voz, em que o diácono inicia a ladainha da prece comum (...) existe algum instante em que os fiéis reunidos na Igreja não de-vam cantar? Na verdade, não vejo o que eles poderiam fazer de melhor, de mais útil, de mais santo 49.

E ainda revela em suas Confissões:

Quanto chorei ouvindo vossos hinos, vossos cânticos, os acentos suaves que ecoavam em vossa Igreja! Que emoção me causavam! Fluíam em meu ouvi-do, destilando a verdade em meu coração. Um grande elã de piedade me e-levava, e as lágrimas corriam-me pela face, mas me faziam bem 50.

Gregório de NAZIANZO compara o canto da grande assembléia reunida para ce-

lebrar a festa da Epifania com o som de trovão51. AMBRÓSIO, por sua vez, buscará a ima-

gem do ruído das ondas do mar para expressar a ressonância potente e ordenada do canto de

toda a assembléia cristã: “Jovens e anciãos, homens e mulheres, escravos e imperadores, uni-

dos numa mesma voz, entoam com idêntico prazer e entusiasmo o canto dos salmos”52.

F. J. BASURCO, sintetizando o pensamento dos Santos Padres, assim se expres-

sa: “A melodia é um meio providencial, querido por Deus, para fazer penetrar de uma forma

fácil e agradável no coração humano seus ensinamentos divinos. A melodia possui ainda a

faculdade de permanecer gravada com facilidade na memória”53. Para que a melodia cumpra

sua função na ML, os Padres recomendam com certa insistência, que ela (a melodia) seja li-

bertada de toda mundanização e teatralidade, simples, acessível à assembléia; que seja uma

genuína expressão da religião e do culto; deve levar os fiéis a uma melhor interiorização do

mistério que se celebra, realçar o texto, provocar a compunção, a alegria, o louvor no amor54.

48 Para o que segue sobre os S. Padres, cf. BASURCO, F. J. El canto cristiano... Op. cit. p. 27-46. 49 Ep 55, 18-34 e 19,35. Cit. por BASURCO, F.J. p. 28. 50 Confissões 9,6.14. Cit. por BASURCO, F.J. p.30. 51 Cf. Discurso fúnebre em honra de Basílio de Cesaréia, 52. Cit. por BASURCO, F.J. p. 35. 52 Expl. in ps. 1,9. Cit. por BASURCO, F.J. p. 40. 53 BASURCO, F. J. El canto cristiano.... Op. cit. p. 228. 54 Cf. Ibidem, p. 229.

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1.3.3. A fluência rítmica

O ritmo é um elemento fundamental na música. “É uma seqüência organizada de

apoios” – diz M. SCHAFER55. “Ritmo é direção. O ritmo diz: ‘eu estou aqui e quero ir para

lá. (...) Originariamente, ‘ritmo’ e ‘rio’ estavam etimologicamente relacionados, sugerindo

mais o movimento de um trecho do que sua divisão em articulações”56. R. JOURDAIN, ao

falar do ritmo, classifica-o em duas categorias: o metro e o fraseado. A marca registrada do

primeiro é o que normalmente nos vêm à mente quando falamos de ritmo, ou seja, o padrão de

batidas acentuadas e regulares. Sua função é medir e determinar a pulsação interna do discur-

so musical, marcando os acentos fortes, meio-fortes e fracos. A segunda categoria de ritmo –

o fraseado - é completamente diferente e não tem as acentuações repetitivas, uniformemente

compassadas, do ritmo medido. “Na música, ele (o fraseado) é construído por uma sucessão

de formas sônicas irregulares, que se combinam de muitas maneiras, como a parte de uma

pintura ...”57.

Estas duas concepções de ritmo também são designadas por muitos como vocal

(fraseado) e instrumental (metro). E mais:

O fraseado é vocal porque surge naturalmente da canção e, assim, da fala. O metro é instrumental por derivar da maneira como tocamos os instrumentos musicais, geralmente permitindo maior velocidade que a voz e uma exatidão temporal superior. (...) A música dificilmente existiria sem os dois tipos de ritmo. O metro dá origem ao tempo. (...) O fraseado confere à música uma espécie de narrativa. (...) O metro organiza o tempo musical na pequena es-cala, enquanto o fraseado o organiza na grande escala. (...) Os dois tipos de ritmo não estão inteiramente em paz um com o outro 58.

Uma constante no mundo da música é o fenômeno rítmico da polirritmia ou poli-

metria. Isto acontece quando se toca mais de um metro de cada vez. No ocidente, por exem-

plo, encontramos muita polirritmia no jazz; mas é na música tradicional do Oriente Médio,

Ásia e, acima de tudo, na África é que encontramos a polimetria de forma extensiva59. Muitos

musicólogos e etnomusicólogos acreditam que o ritmo tenha vindo antes da melodia, talvez

pelo fato de o ritmo sempre ser descrito “como o traço mais essencial da música” e a possibi-

lidade de existir sem melodia. 60

55 SCHAFER, R. M. O ouvido pensante. op.cit. p. 87. 56 Ibidem, p. 87. 57 JOURDAIN, R. Música, cérebro e êxtase. Op. cit. p. 167. 58 Ibidem, p. 167-168. 59 Cf. Ibidem, p. 173-174. 60 Cf. Ibidem, p. 385-386.

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A música brasileira, graças à forte influência da cultura africana, é marcada de ele-

mentos rítmicos bem diversificados com o predomínio de ritmos vigorosos e bem marcados -

como por exemplo, a síncopa - que deram origem ao samba, ao frevo, ao baião, às marchi-

nhas...; outros menos vigorosos deram origem à marcha-rancho, ao samba-canção, à toada...;

outros se apresentam com características difíceis de se definir pela sua estrutura livre, tipo

recitativos livres, muito comuns na cantoria popular. 61

Na ML da Igreja no Brasil, encontramos vários cantos com ritmos de samba, bai-

ão, marchinhas, marcha-rancho, samba-canção, xote etc.62

1.3.4. A importância dos instrumentos musicais

J. MARASCHIN, em belíssimo ensaio intitulado “Os sons da liturgia”, afirma que os instrumentos musicais são extensões do corpo humano:

O corpo é, na verdade, um instrumento em expansão. É todo ritmo. Do cen-tro de sua caixa acústica ressoa a batida persistente do coração como um tambor que proclama a vida. Percussão? Das narinas e da boca, inspirações e respirações. Sopros? Da garganta, as cordas. Das mãos e dos pés, os atritos. Dos lábios e da boca, as explosões e os estalos. Das mãos, os aplausos. (...) O corpo dança. Nessa dança, os pés ressoam sobre cavernas ressonantes e descobrem a percussão 63.

No âmbito religioso, os instrumentos musicais são, para muitas culturas, uma es-

pécie de continuum físico-metafísico que vai do terreno ao divino64. Além do mais, cada parte

de um instrumento pode ser considerada uma parte física do espírito nele encarnado; a músi-

ca, a voz desse espírito65.

Os instrumentos musicais rituais têm um poder admirável: são considerados e ve-

nerados como manifestações dos espíritos, de deuses ou santos. E ainda:

um instrumento ou mesmo todo um conjunto pode ter seu próprio espírito particular. Instrumentos musicais (ou, mais propriamente, seus espíritos) são

61 Cf. SOUZA, J. Geraldo de. Folcmúsica e liturgia. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 47-50. 62 Cf. CNBB. Hinário litúrgico. São Paulo: Paulus. Obra em 4 fascículos. 63 MARASCHIN, J. A beleza da santidade. São Paulo: Aste, 1996, p. 103. 64 Para o que segue, Cf. DE VALE, S. C. Poder e sentido nos instrumentos musicais. Concilium, v. 222, 1989/2, p. 96-114. Neste artigo, a autora analisa questões referentes ao poder e ao significado dos instrumentos musicais rituais e aos códigos que regem sua forma, sua consagração, sua custódia e seu uso. Seu referencial teórico são as culturas africanas e indonésias. 65 Cf. Ibidem, p. 114.

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muitas vezes reverenciados e honrados com ritos e procedimentos rituais que podem ocorrer em várias fases do ciclo vital dos instrumentos, desde antes de sua fabricação até após sua vida útil 66.

O poder com que são revestidos os instrumentos musicais é bastante variado: a)

pode ser um preventivo ou curativo tanto para a alma como para o corpo, proporcionando

saúde, fertilidade e outros benefícios; b) aumenta a força física das pessoas, especialmente em

atividades cansativas e perigosas como a agricultura, construção de casas, guerra e caça; c)

facilita a comunicação entre o mundo dos vivos e dos ancestrais e deuses 67; d) ajuda e influ-

encia em casos de possessão pelos espíritos e de exorcismo (África, Sul e Sudoeste da Ásia)68.

Na liturgia judaica era comum o uso de três categorias de instrumentos musicais:

corda, sopro e percussão. Os de corda, tidos como os mais apreciados e apropriados para o

acompanhamento do canto dos salmos; são: a cítara, o saltério, a harpa, o alaúde e a lira (com

7, 10 e até 12 cordas)69. Os instrumentos de sopro mencionados no Antigo Testamento são a

flauta, a corneta e a trombeta. “A flauta foi sempre um instrumento popular, enquanto a cor-

neta e as trombetas foram adquirindo um uso seletivo, até chegar a ser os instrumentos mais

sagrados”70. Encontramos também na Bíblia importantes referências quanto ao uso de instru-

mentos de percussão. Os mais mencionados são: o tamborim, o tambor, o pandeiro, o sistro, o

triângulo, a campainha, a sineta71.

Assim como em outras culturas, no mundo judaico o instrumento musical em si

mesmo não tinha um valor tão importante, mas sob o ponto de vista simbólico sim, pois os 66 Cf. Ibidem, p. 97. Sobre os tambores dos povos Akan de Gana: “Antes de cortar a árvore para fabricar um tambor, são-lhe oferecidas libações, pedindo ao espírito da árvore que entre no tambor que dela será fabricado. (...) Para cada parte do tambor é invocado o espírito. (...) até o do elefante que deu a orelha para tornar-se o couro do tambor” (p. 98). “As vezes acredita-se que os instrumentos têm poder ou uma função espiritual mesmo após sua vida útil como instrumentos musicais. (...) São-lhe oferecidas preces e sacrifícios por parte do chefe antes de invocar os ancestrais que foram outrora tocadores desses tambores, a fim de que abençoem a comunidade e lhe tragam boa sorte, riquezas e muitos filhos” (Ibidem, p. 104). 67 Cf. Ibidem, p. 100-101. 68 Cf. Ibidem, p. 102. 69 Cf. MONRABAL, M. V. T. Música, danza y poesía en la Bíblia. Op. cit. p. 78-80. 70 Ibidem, p. 31. Cf. GELINEAU, J. Canto e música no culto cristão. Petrópolis: Vozes, 1968, p. 190. As corne-tas (tipo de trompa e de origem guerreira) e as trombetas eram tidos como instrumentos de grande importância: Seu som é um sinal sagrado e temível e sua função principal era acompanhar o sacrifício e os ritos mais solenes (Cf. Ibidem). 71 Cf. MONRABAL, M. V. Música, danza y poesía en la Bíblia. Op. cit. p. 58-59. “Entre as rubricas que enca-beçam alguns dos 150 salmos, tão só onze vezes se indicam os instrumentos que devem acompanhar a salmodia. Excetuando as flautas do salmo 5 e o oboé do salmo 46; as nove restantes indicam instrumentos de corda. Cor-respondem aos salmos 4; 6; 9 duo de harpa e oboé; 12; 54; 55; 61; 67; 76. Em outros salmos sabemos o instru-mento que acompanha porque é mencionado no transcurso da oração: Salmos 33; 92; 98; 57; 81; 147; 149...Por

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instrumentos (especialmente os de sopro) evocavam a voz do próprio Deus. Era o sopro de

Deus que ressoava nestes instrumentos, provocando uma sonoridade tal, que levava o ouvinte

à alegria ou ao êxtase na oração. “O sopro de Deus ressoa imponente nas trombetas (...), nos

orifícios da flauta (...): ‘A voz de Javé rei de toda a terra’”72.

Vale também ressaltar que a dança, em geral, está associada aos instrumentos de percussão.

As dançarinas são quase sempre mulheres, tanto nas festas familiares como nas nacionais. Nas procissões litúrgicas se menciona expressamente as don-zelas (...), as heroinas, as profetisas e as viúvas. Alguma vez contemplamos a dança de um rei, ou podemos adivinhar os dançarinos, mostrando assim a vi-rilidade de uma dança de guerra, ou uma dança de espadas 73.

Embora a tradição bíblica tenha valorizado de forma extraordinária o uso de ins-

trumentos na liturgia, o mesmo não aconteceu com a tradição cristã dos primeiros séculos. A

história dos instrumentos musicais na Igreja primitiva foi bastante conturbada74. “A época

patrística se tem mostrado energicamente contrária ao uso dos instrumentos musicais, não

somente em seu culto, como também em qualquer outra manifestação comunitária dos cris-

tãos, como os ágapes ou as festas privadas”75.

Podemos apontar dois motivos que justificam tamanho rigor da parte dos Padres:

a) o fato de os instrumentos musicais serem largamente usados nos cultos pagãos idolátricos e

imorais dos teatros e outras diversões pagãs76; b) uma corrente ‘espiritualista’ surgida no juda-

ísmo contemporâneo aos Padres: Esta ‘corrente’ rejeitava o uso de instrumentos musicais em

seu culto. “É conhecida a doutrina de Fílon de Alexandria sobre o culto espiritual, chegando a

rechaçar não somente o som dos instrumentos musicais, como também os mesmos hinos emi-

tidos externamente”77.

fim, em alguns se pode conhecer por seu contexto litúrgico. Assim o salmo 24 postula as trombetas necessaria-mente, ademais de outros instrumentos” (Ibidem, p. 92-93). 72 Ibidem, p. 31. 73 Ibidem, p. 57-58. 74 Sobre a história dos instrumentos musicais na liturgia cristã veja: MARASCHIN, J. Entre o tambor e o clamor. In: A beleza da Santidade. Op. cit. p. 103-107; BASURCO, F. J. Dos instrumentos musicais ao puro canto como sacrifício espiritual. In: El canto cristiano en la tradición primitiva. Op. cit. p. 143-66; ALVES, J. Uso de ins-trumentos na liturgia. In: Música brasileira na liturgia. Op. cit. p. 105-115; GELINEAU, J. Canto e música no culto cristão. Op. cit. p. 189-203; WEBER, J. Os instrumentos no culto cristão (apêndice III). In: Estudo sobre os cantos da missa.2. ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1978, p. 177-207. 75 BASURCO, F.J. El canto en la tradición primitiva. Op. cit. p. 143. 76 Cf. Ibidem, p. 143-145. 77 Ibidem, p. 146.

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Os instrumentos eram vistos pelos Padres como símbolo da vida pagã, estigmati-

zada pela idolatria e pela imoralidade. Inclusive a ‘renúncia ao diabo e a todas as suas obras’

que os catecúmenos deviam fazer na fonte batismal, incluía também a renúncia aos ‘espetácu-

los e cantos’ dos pagãos78.

Mesmo desaprovando o uso de instrumentos musicais na liturgia, os Padres nos

legaram uma expressiva e edificante literatura sobre os instrumentos musicais. Perguntamos:

como isso foi possível?

Esta questão só poderá ser compreendida e até respondida se tomarmos como

principal referencial hermenêutico o da interpretação espiritual alegórica - gênero literário

predominante na literatura patrística. “Os comentários dos Padres sobre os salmos estão satu-

rados destas interpretações alegóricas”79. No interior dessas alegorias se escondem aspectos

espirituais e doutrinais. O alvo direto desta literatura são o mundo pagão e suas ameaças à

integridade da fé. A guisa de exemplo: dentre as inúmeras imagens alegóricas sobre os ins-

trumentos musicais em geral, usadas pelos Padres, destacamos as da cítara e da lira. A ima-

gem da cítara - relacionada com a atuação do Espírito na assembléia que canta – se processa

da seguinte forma: assim como as diferentes cordas da cítara que, graças à habilidade do toca-

dor, produz uma melodia harmoniosa, também a Igreja (as cordas vivas) dirigida pelo Espírito

Santo une sua voz na mais perfeita harmonia. Em outras palavras, a função do Espírito é uni-

ficar a comunidade que canta80.

Já a figura de Cristo aparece como o músico que realiza a união artística dos sons

das diversas cordas da lira e faz subir até o Pai um maravilhoso concerto. Muitas vezes tam-

bém o Cristo vem representado (ele mesmo) como um instrumento de Deus, e a cítara, com a

paixão de Cristo: “As cordas estendidas sobre madeira neste instrumento musical virão a ser

como uma imagem do corpo de Cristo estendido sobre o madeiro da cruz”81.

Os Padres são unânimes em afirmar que a voz humana é o instrumento mais per-

feito para o louvor a Deus, e se esforçam em convencer os fiéis – na sua maioria neo-

convertidos do mundo pagão – que o canto puro é superior ao som de qualquer instrumento

78 Cf. Ibidem, p. 123. 79 Ibidem, p. 151. 80 Cf. Ibidem, p. 108-111. 81 Ibidem, p. 153. São inúmeras as imagens alegóricas usadas pelos Padres quando, em geral, descrevem um instrumento musical.

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musical feito pelas mãos humanas. “O povo de Deus reunido no templo para o canto de hinos

e salmos é agora a cítara espiritual que substitui e supera os instrumentos usados pelo povo

judeu”82. Eusébio DE CESARÉIA chega a dizer que “superior a qualquer saltério material é a

multidão que, estendida por toda a terra, celebra ao Deus que está sobre todas as coisas, com

um mesmo canto e uma mesma harmonia”83. Para Eusébio, o cantar é superior ao salmodiar.

Este último ainda carece de ações corporais (do uso de instrumentos como o saltério), en-

quanto o cantar, é mais nobre e mais espiritual - desprovido de suporte instrumental - mais

consonante com a contemplação e a teologia 84.

Enfim, não só a voz, mas o ser humano como um todo é, para os Padres, o mais

perfeito instrumento musical. “Vós – diz AGOSTINHO aos fiéis – sois a trombeta, o saltério,

a cítara, o tímpano, o coro, as cordas e o órgão”85. Em outras palavras:

Quando as ações corporais do homem seguem à vontade iluminada pela mente, quando os sentidos e as faculdades do homem se movem em confor-midade com os preceitos divinos, então o homem se converte num instru-mento musical espiritual que louva a Deus. Desta forma, toda a vida do cris-tão será uma contínua melodia espiritual, muito superior (...) àqueles instru-mentos musicais dos quais falam os salmos 86.

Em resumo, podemos responder à questão levantada acima: Para os Padres, os

instrumentos eram só espirituais.

Embora nosso principal objetivo não seja o de tratar da questão dos instrumentos

na liturgia sob o ponto de vista meramente histórico, vale lembrar que “mesmo depois da in-

trodução formal de certos instrumentos musicais no culto, persistia certa ambigüidade a res-

peito do que era lícito e do que não era lícito se fazer em matéria de música”87. Este dilema se

arrastou por muitos séculos.

Ainda no início do século XX, Pio X em seu “Motu Proprio” (1903), admite o

órgão na Igreja; tolera alguns instrumentos de sopro; proíbe o piano, o tambor, o bombo, pra-

tos, campainhas e semelhantes88. Pio XII, em sua encíclica “Musicae Sacrae Disciplina”

82 Ibidem, p. 159, resumindo o pensamento de Eusébio de CESARÉIA e J. CRISÓSTOMO. 83 Comm. in ps. 70, 24. Cit. por BASURCO, F.J. p. 159. 84 Cf. F. J. BASURCO. El canto cristiano... Op. cit. p. 160-161. 85 Enar. in ps. 150,8. Cit. por BASURCO. F. J. p. 160. 86 BASURCO, F.J. El canto cristiano... Op. cit. p. 155. 87 MARASCHIN, J. Entre o tambor e o clamor. In: A beleza da santidade. Op. cit. p. 104. 88 Cf. PIO X. Tra le sollecitudini. n. 14 e ss.

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(1956), elogia o uso do órgão e admite o uso de violinos e outros instrumentos de arco, mas

continua reticente quanto ao uso de instrumentos tidos como ‘rumorosos’ e ‘barulhentos’ que

são “destoantes do rito sagrado e da gravidade do lugar”89.

Todas as pendências sobre o uso dos instrumentos na liturgia só chegaram a ter-

mo com a reforma do Concílio Vaticano II. A Constituição “Sacrosanctum Concilium”

(1963), além de classificar o “órgão de tubos” como o instrumento mais apropriado para a

liturgia, admite que outros instrumentos possam ser igualmente usados, desde que haja o

“consentimento da autoridade competente” e, dependendo da região, que os mesmos sejam

‘adaptados’ às circunstâncias e aos costumes do lugar90.

A Instrução “Musicam Sacram” (1967), além de reconhecer a utilidade e a impor-

tância dos instrumentos musicais na liturgia, apresenta-nos também suas principais funções:

sustentar o canto, facilitar a participação, e criar a unidade da assembléia91. E adverte-nos: “O

som deles (instrumentos) no entanto, jamais deverá cobrir as vozes, de sorte que dificulte a

compreensão dos textos. Calem-se quando o sacerdote ou o ministro pronunciam em voz alta

algum texto, por força de sua função própria”92.

Quanto aos solos instrumentais, a mesma Instrução - tomando como referencial a

liturgia eucarística - prevê quatro momentos adequados para este tipo de música: no início,

durante a procissão de entrada do presidente e demais ministros; enquanto se faz a procissão e

a preparação das oferendas; à comunhão e no final da missa 93.

1.4. A música litúrgica e sua função ministerial

Vimos, até aqui, a conceituação básica de ML e os principais elementos que a

compõem. Continuando nossa reflexão, acrescentaremos, a seguir, um outro aspecto e, certa-

mente o mais importante da ML: a função ministerial. O Concílio Vaticano II devolveu à ML

89 Cf. Ibidem, n. 28 e 29. 90 Cf. SC 120. 91 Cf. MS 62-64. 92 MS 64. 93 Cf. MS 65. E ainda: a) durante o advento, quaresma, tríduo pascal e nos Ofícios e missas de defuntos, não é permitida a execução de solos instrumentais (cf. MS 66); b) que os instrumentistas tenham uma boa formação técnica e litúrgica (cf. MS 67).

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a sua real função de parte integrante da liturgia (cf. SC 112), eliminando o aspecto depreciati-

vo de serva94.

Para a “Sacrosanctum Concilium”, a função ministerial que a ML desempenha na

liturgia tem como finalidade a glória de Deus e a santificação dos fiéis e seu objetivo funda-

mental é conduzir a assembléia a uma melhor participação nos mistérios salvíficos de Cristo.

A ML é também um instrumento eficaz para a participação plena, consciente, ativa e frutuosa

do povo sacerdotal na ação litúrgica95.

Conforme vimos na introdução deste capítulo, do mesmo modo que existe música

apropriada para dançar, descansar, cantar em coro, recrear-se individualmente e outras ativi-

dades, há na liturgia música apropriada ou mais ou menos apropriada para: a) realçar os diver-

sos ritos da palavra – proclamar, meditar, salmodiar, louvar, aclamar, dialogar, responder,

etc.; b) pôr em relevo os diversos momentos rituais – abertura, procissões, súplicas litânicas,

etc.; c) estar a serviço da comunidade e não de si mesma, ou seja, que a arte musical possibili-

te uma comunicação mais profunda com o mistério da salvação que se realiza na liturgia. En-

fim, cada momento ritual pressupõe formas musicais diferentes, elaboradas e escolhidas de tal

maneira que façam com que o rito seja tão significativo e eficaz o quanto possível96.

Em outras palavras, para cada momento ritual é necessário uma ML própria. Por

exemplo: Um salmo responsorial tem uma fisionomia diferente de um canto de abertura, pois

o primeiro - mais introspectivo, tranqüilo e lírico – tem como principal função a meditação e a

interiorização da Palavra proclamada97; o segundo - geralmente num clima mais efusivo e

festivo - busca congregar a assembléia, introduzindo-a no mistério do tempo do ano litúrgico

ou da festa. 94 Cf. ALBUQUERQUE, A. Cavalcante de. Música brasileira na Liturgia. Op. cit. p. 14-15. “O Termo ‘munus ministeriale’, adotado pelo Concílio, vem dar um sentido mais acabado e mais tecnicamente litúrgico a tão im-portante questão. Elimina o aspecto depreciativo, salienta o caráter funcional da música na liturgia e ultrapassa o domínio da atividade que convém a uma serva” (Ibidem, p. 15); sobre este assunto veja também: KOCK, G. Entre o altar e o coro..., Concilium, v. 222, op. cit. p. 15-16. Pio X e Pio XI chamavam a ML de ‘humilis ancilla’ e ‘nobilissima ancilla’ (cf. Ibidem). 95 Cf. SC 30; 11; 14; 121. 96 Cf. UNIVERSA LAUS. La musica en las liturgias cristianas. Op. cit. n. 7.3.; Veja também: WEBER, J. Fun-ção ministerial da música litúrgica (Apêndice I). In: Estudo sobre os cantos da missa. Op. cit. p. 117-128. 97 Cf. SCHNITZLER, T. Missa mensagem de vida. São Paulo: Edições Paulinas, 1987, p. 154. Falando sobre o salmo responsorial: “... É o salmo que nos devolve a tranqüilidade do coração. Sua cadência, sua respiração tranqüila, sua palavra vigorosa e pausada, suas melodias nos trazem a calma e a placidez. É desta tranqüilidade que brota o gosto pela reflexão” (Ibidem, p. 154); Veja também: ALDAZÁBAL, J. A celebração da Eucaristia. In: A celebração na Igreja. São Paulo: Loyola, 1993, v. 2, p. 328-329. “Trata-se de dar à celebração um tom de serenidade contemplativa: o salmo prolonga poeticamente a mensagem da primeira leitura...” (Ibidem, p. 329). O

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J. GELINEAU nos recorda que, além das particularidades específicas de cada

momento ritual da ML (abertura, salmo responsorial...),

a funcionalidade ritual não pode ser encarada unicamente a partir do rito bru-to (o significante). Ela implica também e sobretudo seus destinatários, a sen-sibilidade deles, a cultura, as disposições, as reações conscientes e inconsci-entes que eles têm. Não basta que o salmo seja de forma responsorial para que ele tenha efetivamente resposta da assembléia à Palavra. (...) Quando se é realmente parte integrante, torna-se impossível isolar, num canto, o resul-tado sonoro da ação global em que está inserido. A estética de um canto li-túrgico não é apenas a de um texto com sua música, mas a de toda a celebra-ção em que o canto intervém 98.

O mesmo autor aponta três “serviços” que, ao nosso julgar, são indispensáveis pa-

ra que haja uma perfeita integração entre ML e liturgia. Logo, a ML deve:

a) fornecer à liturgia um instrumento de celebração, por exemplo: “... antes de ser uma obra

literária ou musical, o hino é radicalmente um instrumento coletivo de oração”99;

b) viabilizar a festa: “... o que se espera é perceber facilmente a relação entre música e fes-

ta...”100;

c) fazer entender o inaudito: “... Do mesmo modo que os ícones devem fazer contemplar o

invisível, a música deve fazer ouvir o inaudito”101. Para esta característica, o autor apre-

senta duas maneiras de atingi-la: que provoque admiração, arrebatamento incondicional e

gratuito...; e ainda: que não seja necessariamente “inaudita em sua linguagem nem difícil

demais de ser interpretada, porém de tal forma transparente naquilo que ela celebra que se

tornará uma fonte inesgotável de oração, de sentido e de sentimentos. (...) Uma música,

que não é cheia de si mesma, mas portadora de silêncio e adoração...”102.

Enfim, a ML é algo mais que o simples musicar um texto; ela deve corresponder à

forma exigida pelo “sentido e natureza de cada rito” (cf. MS 6)103.

salmo responsorial é uma peça lírica com uma estrutura muito simples: o tom salmódico (do salmista) e a respos-ta (da assembléia). 98 GELINEAU, J. Música e canto. In: O amanhã da liturgia. Op. cit. p. 116-117. O autor tece interessantes ob-servações sobre a estética do canto e da música na liturgia e deixa bem claro que este conceito não pode ser compreendido pelo simples critério da beleza (arte pela arte) desvinculado da ação litúrgica como o fazem mui-tos músicos e melomaníacos. O padrão estético do canto e da música enquanto rito tem um sentido bem mais amplo (cf. Ibidem, p. 118-123). 99 Ibidem, p. 118. 100 Ibidem, p. 119. 101 Ibidem, p. 120. 102 Ibidem, p. 121. 103 Cf. WEBER, J. Função ministerial música litúrgica. In: Estudo sobre os cantos da missa. Op. cit. p. 125.

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1.4.1. A necessidade de um repertório litúrgico

A ML cumprirá de forma mais eficaz sua função ministerial à medida que cada

comunidade puder organizar o seu repertório litúrgico. Talvez seja oportuno constatar que nas

manifestações folclóricas e populares, o povo possui um verdadeiro repertório de músicas

apropriadas e típicas para cada comemoração104. Não se encontra ali nenhuma mistura de can-

tos. Por exemplo: não se ouve uma quadrilha junina no carnaval... O mesmo podemos dizer

sobre a música ritual dos terreiros de Umbanda. Esses cantos rituais populares carregam uma

força simbólica que, por si mesmos, revelam a natureza dos ritos. Outro dado interessante: é

raro a inclusão de novos cantos nesses repertórios da tradição popular!

Infelizmente, é bastante comum em muitas de nossas celebrações litúrgicas depa-

rarmos com situações extremas e até embaraçosas quanto ao uso indevido do canto e da músi-

ca: ainda existe muita confusão nesse campo. Os cantos são, às vezes, escolhidos de forma

aleatória e até incompatíveis com a celebração em questão105! Portanto, o critério fundamental

para uma música ser litúrgica, é a sua união e aderência à liturgia e à natureza de cada rito106.

A intenção fundamental para se criar um repertório litúrgico é resgatar o verdadei-

ro sentido da ML que, na liturgia, tem a nobre função de expressar, tornar presente o mistério

pascal de Cristo. A idéia de repertório deve estar ligada a de rito107. O rito é também por natu-

reza repetição, memória, costume social. Por isso, um sólido repertório litúrgico não pode

prescindir da inclusão daqueles cantos existentes e já conhecidos pela assembléia litúrgica.

Os cantos que permaneceram vivos na memória dos fiéis, além de facilitar a parti-

cipação da assembléia, também resgatam a dimensão de memorial, o que é essencial para a

liturgia. O repertório nos possibilita ainda a prática da repetitividade. Aliás, a ação ritual nos

permite, na repetição, encontrar sempre a novidade, graças à ação renovadora do Espírito San-

104 Cf. CNBB. A Música litúrgica no Brasil. São Paulo: Paulus, 1999, n. 289. (Estudos da CNBB, 79). 105 Um fato curioso: No dia 25/01/1999 (festa da conversão do Apóstolo Paulo e aniversário da cidade de São Paulo), durante uma missa campal no parque do Anhembi, presidida pelo Arcebispo Metropolitano e concele-brada por outros bispos e presbíteros, o canto de abertura da missa foi o canto infantil Mãezinha do céu, eu não sei rezar.... O animador do canto daquela celebração - transmitida para todo o país pela Rede Vida de Televisão - foi o padre Marcelo Rossi. 106 Cf. WEBER, J. Função ministerial... Op. cit. p. 123. Sobre os outros critérios, falaremos mais adiante quando tratarmos especificamente do assunto. 107 Para o que segue, cf. UNIVERSA LAUS. Op. cit. n. 8:1,2,3,5,6.

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to. Vale citar aqui as palavras de G. DANNEELS sobre a importância da repetição na ação

litúrgica:

As repetições são indispensáveis para que a liturgia nos prepare como uma gota d’água que cai numa pedra e que, ao longo dos séculos de história da salvação penetre na experiência como a fonte que escava os ‘canyons’. Te-mos necessidade de encontrar todos os anos as mesmas festas para que cada vez seja compreendida uma outra face. Todos os anos eu ouço uma ‘Paixão de Bach’ e todos os anos, o grito: ‘Elôi, Elôi, lama sabacthani!’ me soa de maneira diversa. Não porque a sua interpretação seja diferente, mas porque eu mudei 108.

J. M. ORTIZ nos assegura que a música tem um poder extraordinário de evocar

memórias de um passado longínquo. O mesmo autor se recorda de uma canção dos Beatles

que não ouvira há mais de 30 anos; a partir do momento em que a ouviu novamente, depois de

tantos anos, as lembranças emocionais liberadas por essa música foram tão fortes que fizeram

com que ele, enquanto a escutava, tivesse diante de si todo o contexto de seus 14 anos109. E

conclui: “A música tem efeitos orientadores muito poderosos. Sempre que uma música fica

associada a um momento, evento ou experiência pessoal específicos, o ouvinte pode associar

imagens, emoções ou sentidos muito pessoais a essa peça musical em particular”110.

Quando anteriormente falávamos sobre o texto111, acenamos para um dos proble-

mas mais comuns que a ML pós-conciliar enfrenta no Brasil: o da inflação112 de cantos que,

anualmente, são produzidos e divulgados através de folhetos litúrgicos, CD’s e fitas casse-

te113.

Quanto aos ciclos do ano litúrgico, por exemplo, poderíamos fixar um repertório

bem definido, com personalidade própria, não dando margem a equívocos quanto à sua autên-

tica função ministerial. Apesar da inflação de cantos e do poder às vezes persuasivo e insis-

108 DANNEELS, G. A obra de um outro. 30 Dias, São Paulo, v. 1, 1996, p. 52. 109 Cf. ORTIZ, J. M. O tao da música. Op. cit. p. 160-161. 110 Ibidem, p. 162. 111 Cf. item 1.3.1. desta dissertação. 112 Cf. CNBB. A música litúrgica no Brasil. Op. cit. n. 30. “A demasiada mudança de repertório, por conta de uma superficial mania de novidade ou concessão à onda de consumismo, faz com que o povo não aprenda bem nenhum canto, ficando impedido de participar dele com gosto e prazer, quando se sabe, ademais, que a repetição, em matéria de canto, é um forte fator de densidade emocional e simbólica” (Ibidem). 113 No Brasil, se destacam dois grandes folhetos litúrgicos. Nestes folhetos são veiculadas, incontáveis ‘novida-des’ de cantos e missas temáticas. Por exemplo, a cada ano, durante a quaresma, de norte a sul do país, se canta uma nova “Missa da Campanha da Fraternidade”! Muitos músicos e liturgistas têm se questionado sobre a im-portância e a viabilidade de um repertório litúrgico quaresmal fixo que, ainda é precário em muitas de nossas comunidades. E, quanto à Campanha da Fraternidade, o ideal é que se faça apenas um hino alusivo ao tema da mesma. Cf. BASTOS, G. L. Loas e lamentos. Op. cit. p. 15; BUYST, I. Música ritual. Revista de Liturgia, São Paulo, v. 98, [mar./abr.] 1990, p. 61.

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tente da mídia fonográfica - boas iniciativas têm emergido no Brasil, sobretudo depois do

lançamento do “Hinário Litúrgico”114. Muitas comunidades estão se conscientizando da im-

portância da criação de um repertório mais consistente e duradouro, tomando este hinário co-

mo referencial. Vale dizer que o “Hinário Litúrgico” não tem como finalidade impedir, mas

sim, “orientar a criatividade musical da Igreja no Brasil e possibilitar a criação de um repertó-

rio litúrgico nas comunidades...”115.

1.4.2. Buscando classificar o canto litúrgico pós-Vaticano II

Não obstante a Instrução “Musicam Sacram” tivesse como finalidade elaborar as

diretrizes gerais do Concílio em relação à ML, a mesma Instrução – fruto de um doloroso pro-

cesso e de arrojadas discussões que ocasionaram inúmeras revisões e emendas a ponto de seu

texto final divergir bastante do anteprojeto original – não surtiu os efeitos esperados. Questões

básicas como, por exemplo, a tensão existente entre liturgia e arte que se arrasta desde os pri-

mórdios do cristianismo, ainda desta vez não foram solucionadas116. A mesma Instrução con-

servou a distinção entre Missa solene, Missa cantada e Missa lida (cf. MS 28) e, ao falar dos

“graus de participação” do canto dos fiéis na Missa cantada (cf. MS 29-31), demonstra-o de

forma bastante complexa117.

A seguir, apresentaremos uma classificação para os cantos da liturgia eucarística,

tendo como base a Instrução Geral sobre o Missal Romano. Estes cantos podem ser classifi-

cados em dois blocos: os que constituem um rito e os que acompanham um rito118.

114 CNBB. Hinário Litúrgico: obra em 4 fascículos, com repertórios para todos os ciclos do ano litúrgico, Santos, Sacramentos e Sacramentais. 115 Idem, Hinário Litúrgico - Fascículo 2. Op. cit. 2ª capa. 116 Cf. KOCK, G. Entre o altar e o coro... Op. cit. p. 14-22. 117 Cf. SAGRADA CONGREGAÇÃO DOS RITOS. Instrução Musicam sacram de 5 de março de 1967 (sobre a música na sagrada liturgia). AAS, v. 59, 1967, n. 28-29. A seguir citada apenas pelas iniciais MS. “Ninguém ficou satisfeito com esta Instrução, considerada quase unanimemente como medíocre e confusa...”, (KOCK, G. Entre o altar... Op. cit. p. 17). Um exemplo típico desta complexidade que acabamos de apontar acima, é o fato da Instrução classificar o salmo responsorial como pertencente ao “terceiro grau” da participação dos fiéis, en-quanto o mesmo deveria aparecer no primeiro. Além do mais, as distinções entre missa solene, cantada e lida são um tanto difíceis de se entender, sobretudo num contexto pós-Vaticano II. Quanto ao uso de instrumentos musicais na liturgia, a mesma Instrução demonstra uma certa contradição usando uma terminologia superada: o velho adagio dualista sacro-profano, fazendo restrição àqueles instrumentos que “só convêm à música profana” (cf. MS 63). Veja também: GRAÑA, B. V. Teologia y pastoral de canto litúrgico. In: VV.AA. La música en la Iglesia de ayer a hoy. op. cit. p. 228-231. O autor descreve com pormenores a trajetória das 12 redações da Ins-trução Musicam Sacram. 118 Cf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Instrução Geral sobre o Missal Romano, publicada na 3ª edição típica do Missal Romano, 2002 (edição para o Brasil aprovada pela Congregação em carta de 30 de julho de 2004, n. 37. Tal Instrução será citada ao longo desta dissertação em sua nova numeração, como aparece reformulada na 3ª edição típica do Missal. A seguir citada pelas iniciais

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a) Os cantos que constituem um rito:

• Nos Ritos Iniciais: Senhor, tende piedade de nós; glória;

• Na Liturgia da Palavra: salmo responsorial; Versículo aleluiático (aclamação ao evange-

lho); Creio; respostas da oração universal dos fiéis;

• Na Liturgia Eucarística: prece eucarística (prefácio com diálogo inicial até o “Amém” da

doxologia final); Pai nosso.

b) Os que acompanham o rito:

• Nos Ritos Iniciais: canto de abertura, aspersão.

• Na Liturgia Eucarística: canto que acompanha a procissão e preparação das oferendas;

canto da fração do pão (Cordeiro de Deus), canto da comunhão.

Lembramos ainda que os cantos que constituem um rito são mais importantes do

que aqueles que acompanham um rito119.

1.4.3. Importância da integração entre os ministérios da ML e a assembléia

Já dissemos, anteriormente, que o Concílio Vaticano II resgatou o canto da as-

sembléia colocando-o em primeiro plano. Este resgate nada mais é do que uma conseqüência

da incessante preocupação dos padres conciliares pela participação plena, consciente, ativa e

frutuosa da assembléia na ação litúrgica - um dos pilares fundamentais da reforma concili-

ar120. Os ministérios da ML (do salmista, animador do canto da assembléia, coral ou grupo de

cantores, instrumentistas, compositores...) devem ser exercidos de tal maneira que favoreçam

a participação dos fiéis em todos os seus níveis121. A seguir, falaremos sobre os ministérios do

salmista e do animador, do coral ou grupo de cantores e instrumentistas.

a) Os ministérios do(a) salmista e do(a) animador(a) do canto da assembléia

IGMR; CNBB. Estudo sobre os cantos da Missa. Op. cit., passim; BUYST, I. Equipe de Liturgia/I. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 30. 119 Cf. BUYST, I. Equipe de liturgia/I. Op. cit. p. 30. 120 Cf. SC 11,12,14,18, 19, 21. 121 Cf. SC 30,113, 114, 121.

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Salmista é o nome dado à pessoa (homem ou mulher) que exerce o ministério li-

túrgico de cantar o salmo após a proclamação da primeira leitura da Missa ou da celebração

dominical da Palavra. Diante de toda a assembléia, na estante da Palavra, o salmista entoa as

estrofes do salmo, as quais em geral, vêm intercaladas pelo refrão da assembléia122. Daí, o

nome de salmo responsorial. É o canto mais importante da liturgia da Palavra. Por isso, o sal-

mista - além do pré-requisito de uma boa voz para desempenhar bem esta função - deve exe-

cutar este salmo com o máximo de expressividade e clareza, numa atitude orante123, como

convém a todos aqueles que exercem o ministério de proclamar a Palavra de Deus. O salmo é

a Palavra cantada que deve ser igualmente escutada e meditada pela assembléia124.

O ministério do(a) animador(a) do canto da assembléia é também importantíssi-

mo. Sua função principal é dirigir e animar o canto da assembléia durante a ação litúrgica.

Antes do início de cada celebração, o animador deverá ensaiar as partes que cabem à assem-

bléia, tais como: refrãos, aclamações, cantos do ‘ordinário da missa’ etc.. Este ensaio, além de

sua praticidade (melhor execução do canto), ainda pode ser útil para animar e motivar aquela

porção do povo de Deus reunida para celebrar o mistério pascal do Senhor. Este contato pre-

liminar do animador com a assembléia é um elemento importante para o aquecimento da

mesma para o louvor.

O que dissemos sobre a atitude litúrgico-espiritual do salmista vale também para o

animador. Este deve ter uma boa formação técnico-litúrgica (voz límpida, posturas do corpo e

gestos harmoniosos capazes de expressar o conteúdo teológico e o sentido espiritual do rito

em questão125...) para, em momentos oportunos, ajudar o presidente da celebração a criar um

ambiente pascal, ou seja, agradável, familiar, aconchegante, harmonioso e, sobretudo, orante.

b) Ministério do coral ou grupo de cantores

122 Cf. IGMR 61. Além da forma responsorial, a mesma Instrução prevê a forma direta, ou seja, sem refrão. Mas esta última é menos comum que a primeira. 123 Esta atitude orante a entendemos conforme BUYST, I. Prazer ou dever? In: Liturgia, de coração. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 29-31. Aqui a autora comenta entre outras coisas, a atitude afetiva e calorosa do canto de uma liturgia do Sábado judaico: “O estilo das músicas e o tom de voz de quem canta e reza evocam um ambiente familiar, doméstico; evocam proximidade, intimidade. Parece que as pessoas que estão ali sentem prazer em cantar e rezar. Não parecem fazê-lo ‘por obrigação’” (Ibidem, p. 29). 124 Cf. GELINEAU, J. Canto e música no culto cristão. Op. cit. p. 99. “Na verdade, o canto dos versículos de salmos pelo salmista é sempre considerado, na época patrística, como uma recitação do texto sagrado, dando-se-lhe normalmente o nome de ‘leitura’” (Ibidem); Cf. STEFANI, G. O canto. In: Em vossas assembléias. Op. cit p. 221-222. Aqui o autor faz uma alusão sobre a importância do exercício da escuta ; Veja também o item 1.4 desta dissertação, quando falamos sobre o salmo responsorial. 125 Cf. BUYST, I. Corpos. In: Liturgia, de coração. Op. cit. p. 54-56.

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Conforme J. WEBER126, os documentos litúrgico-musicais pós-conciliares usam

diversos nomes para indicar a mesma função daquele grupo especializado de fiéis que desem-

penha um papel especial na celebração litúrgica, através do canto:

. Coro (cf. SC 121; MS 19; 34);

. Coral (cf. MS 21; 24);

. “Grupo de cantores” (cf. MS 9; 16; 22; 23; 26);

. “Schola cantorum” (cf. SC 29; 114; MS, 19; 20);

. “Capela musical” (cf. MS 19; 20);

As palavras coro e coral aqui no Brasil, são usadas indiferentemente, sendo que a forma usu-

al, hoje, é, equipe de canto.

Embora nosso objetivo não seja o de enveredar por longas incursões a respeito das

diferentes terminologias ou mesmo indagações históricas em torno do movimento coral na

Igreja, concentraremos nossa atenção sobre alguns aspectos teológico-litúrgico-pastorais pós-

Vaticano II a respeito do coral, em geral127:

• O que é: O coral é um grupo de cantores escolhidos em uma comunidade e dirigidos por

um mestre. O grau de especialização técnica de um grupo dessa natureza varia de acordo

com a medida de conhecimento técnico- musical dos cantores e regente;

• Sua função é prestar um serviço ou ministério litúrgico em benefício da comunidade. Vale

ainda lembrar que o critério fundamental para definir o coro litúrgico não é o repertório,

mas a sua função litúrgica que é “garantir a devida execução das partes que lhe são pró-

prias, conforme os vários gêneros de canto e auxiliar a ativa participação dos fiéis no can-

to”128;

• Seu lugar: A própria colocação do coro deverá mostrar a sua real natureza e função: este

grupo (especializado ou não) nada mais é, do que uma porção da assembléia dos fiéis que,

em nome e em função da mesma, desempenha um papel litúrgico particular. Seu melhor

lugar é próximo à assembléia (à frente, à direita ou esquerda, em lugar visível e cômodo),

126 Cf. O coral litúrgico e sua função hoje (apêndice II). In: Estudo sobre os cantos da missa.Op. cit. p. 129-161. Este ensaio, embora publicado há mais de 30 anos, continua sendo um importante referencial sobre este assunto que ainda continua sendo pouco discutido e estudado de forma sistemática no Brasil. 127 Cf. Ibidem, passim. 128 MS 19.

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de modo que os cantores possam desempenhar bem sua função e mais facilmente ter aces-

so à mesa eucarística129.

Enfim, o coral pode prestar um grande serviço à liturgia em ação conjunta com a

assembléia, seja acompanhando polifonicamente o canto dos fiéis ou dialogando com os

mesmos. As formas litânicas do “Senhor, tende piedade de nós”, do “Cordeiro de Deus”; os

cantos de repetição (muito comuns no interior do Brasil); ou ainda a forma antifonal (coro e

assembléia executando um mesmo canto, de forma alternada) - são ótimos exemplos de diá-

logo entre coro e assembléia. Além das possibilidades de participação que acabamos de con-

templar, o coral também poderá entoar uma peça, ou motete durante a procissão e preparação

das oferendas, durante ou após a comunhão.

Cabe-nos aqui, mais uma vez, lembrar que alguns cantos, em princípio, nunca de-

veriam ser executados somente pelo coral, como por exemplo o “Glória” e o “Santo”130.

Pelo fato destes hinos pertencerem “à comunidade toda, que eventuais arranjos a vozes para

coro, nunca impeçam a participação do povo, mas antes, a favoreçam e reforcem”131. O “Gló-

ria” é um hino de louvor com um forte acento cristológico e é por excelência o hino da Igreja

reunida no Espírito Santo132; o “Santo” é uma aclamação do novo povo de Deus que se junta

ao coro dos Serafins, conforme descreve o profeta Isaías em sua visão no templo de Jerusalém

(cf. Is 6,3), e ao coro da grande multidão que aclamava Jesus quando entrava em Jerusalém

(cf. Mt 21,9). É necessário dizer que uma adequada formação litúrgico-espiritual133 para mú-

sicos e cantores corrigirá muitos equívocos e evitará futuros mal-entendidos quanto ao real

sentido da função ministerial da ML na liturgia.

Uma das dificuldades que ainda persiste na integração do coral (polifônico e espe-

cializado) na liturgia da Igreja no Brasil é a escassez de repertório em vernáculo e adequado

à ação litúrgica. Poucos compositores enveredaram por este caminho nos últimos 30 anos,

129 Cf. MS 23; Instrução Inter Oecumenici. Op. cit. n. 97. 130 Cf. WEBER, J. O coral litúrgico e sua função hoje. Op. cit. p. 132-133. A partir do séc. VII, com o surgimen-to de cantores especializados, virtuoses do apogeu do canto gregoriano e das scholae cantorum, o canto vai fi-cando cada vez mais complicado e melismático; “musicalmente mais rico, mas liturgicamente mais impróprio; por razões artísticas estas escolas de canto vão usurpando as partes que sempre pertenceram ao povo (...). Assim, pouco a pouco, chegou-se a fechar completamente a boca do povo na celebração da liturgia (...). A polifonia clássica se concentrou justamente no Ordinário da Missa que pertencia ao povo: Kyrie, Glória, Credo, Sanctus, Benedictus, Agnus Dei” (Ibidem, p. 133). 131 Cf. CNBB. Pastoral da música litúrgica. Op. cit. n. 304-305. 132 Cf. IGMR 31a. 133 Cf. SC 29; MS 24; 25.

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entre eles, José ALVES, Osvaldo LACERDA e o franciscano Joel POSTMA. Este último foi

o que mais escreveu arranjos para coro e assembléia ou simplesmente para coro a três ou qua-

tro vozes de excelente qualidade134.

c) Ministério dos instrumentistas

Os instrumentos musicais, quando bem integrados na ação litúrgica - seja acom-

panhando o canto ou mesmo tocando sozinhos – cumprem uma função ministerial. Os instru-

mentos só têm razão de ser, a partir do momento em que são capazes de integrar-se na litur-

gia, prestando serviço à Palavra, ao rito e à assembléia135.

Quanto aos instrumentistas, a Instrução “Musicam Sacram” os adverte que “...

não somente sejam virtuoses do instrumento que tocam, mas tenham entranhado conhecimen-

to do espírito da liturgia e dele estejam penetrados”136. O instrumentista, quando alicerçado

numa sólida formação litúrgico-espiritual, trará à assembléia incontáveis benefícios como:

• A agradabilidade aos ouvidos, através da maneira de tocar os instrumentos (especialmen-

te os elétricos e eletrônicos amplificados e os de percussão) o que será decerto bem dife-

rente: o volume bem dosado, equilibrado...; o timbre, sóbrio (evitando timbres eletrônicos

artificiais como vibratos e reverberações exageradas, um tanto exóticos...). Assim, como

os demais instrumentos acústicos tradicionais, todo e qualquer tipo de instrumento moder-

no poderá servir à liturgia guiando, apoiando e sustentando o canto e nunca sufocando-o;

• A compatibilização de acompanhamento entre o andamento da música e o cursus da as-

sembléia;

134 Entre as suas principais obras deste gênero podemos destacar a) “Missa João XXIII” (ordinário da missa para coro e assembléia) editada pela ed. Vozes - 1967; b) Os salmos e Cânticos – 2 LPs (versão portuguesa do com-positor francês J. Gelineau) editado por Informac-catequista, B. Horizonte – 1962 e 1963. Esta versão portuguesa dos salmos de Gelineau gravada pelo coro do Santuário Santo Antônio de Divinópolis e regência de Frei Joel, obteve um considerável sucesso em todo o país e, até hoje, em muitos lugares ainda se canta alguns daqueles salmos e cânticos como por exemplo o Magnificat; E ainda: O acompanhamento instrumental do salmo 23/22 é de violão, algo pouco comum até então! c) Missa do matrimônio, ed. Vozes, 1971; d) Missa da ressurreição, e Missa do Coração de Jesus, ed. Vozes, 1972; e) Cantos de natal, Cantos quaresmais, Louvação do Divino (Can-tos para a solenidade de Pentecostes), ed. Seminário Santo Antônio, Santos Dumont, MG. Algumas destas obras se encontram no Hinário Litúrgico da CNBB. 135 Cf. WEBER, J. Os instrumentos no culto cristão. In: Estudo sobre os cantos da missa. Op. cit. p. 185-186. Outras considerações sobre os instrumentos musicais, veja item 1.3.4. desta dissertação. 136 MS 67.

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• A ausência de certos estrelismos (o uso da função para projeção de vaidades pessoais,

exibicionistas como: virtuosismos mirabolantes, tanto instrumentais como vocais...) in-

compatíveis com a índole da liturgia.

Concluindo este item sobre os ministérios da MR, convém relembrarmos alguns

pontos básicos (pré-requisitos) para um bom desempenho desses serviços:

• As pessoas chamadas a exercer este ministério tenham, além da qualificação técnica, uma

formação litúrgico-musical básica137. A formação litúrgica possibilitará aos ministros da

ML uma melhor compreensão da função ministerial da música na liturgia, realizando de

modo mais pleno o “exercício do culto público integral pelo corpo místico de Cristo, ca-

beça e membros” (cf. SC 7). Esta formação também facilitará a integração e a comunica-

ção entre presidência, ministros e assembléia: uma relação que, na prática, é “uma apren-

dizagem à medida que as pessoas participam da própria ação litúrgica (...), à medida que

entram de cheio na proposta ritual”138;

• A função ministerial da ML como parte integrante de um todo e em cujos ritos ela deve

inserir-se, será plena quando todos os ministros estiverem imbuídos da importância e al-

cance deste serviço, ou seja, favorecendo a participação plena, ativa, consciente e frutuosa

de todo o povo sacerdotal na celebração do mistério pascal de Cristo;

• A autenticidade da ação destes ministros, como de qualquer ação litúrgica dependerá da

unidade entre três coisas: o gesto corporal, o sentido teológico e atitude espiritual:

O importante é que os três estejam interligados (...). Cabe a cada um de nós e à comunidade celebrante como um todo tornar nossos estes gestos; vivenciá-los profundamente, espiritualmente, colocando aí dentro toda a nossa alma, deixando que o Espírito, que habita em nós, informe por dentro nossos pas-sos, nossas mãos, nosso olhar, nossas palavras... e as transforme em prece, em comunhão 139;

137 No Brasil, no ano de 1992, por iniciativa da CNBB, foi criado o CELMU (Curso ecumênico de formação litúrgico musical) que tem como finalidade preparar agentes de pastoral da música. Tal experiência tem surtido bons resultados. 138 BUYST, I. Liturgia, de coração. Op. cit. p. 75. 139 Ibidem, p. 55-56.

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• O canto da assembléia reunida deve ser colocado em primeiro plano. Por isso, a ML deve

ser acessível em todos os níveis (texto, ritmo e melodia) ao conjunto dos participantes, is-

to é: deve-se levar em conta a prática comum da assembléia reunida. Com isso também

não se pode prescindir de práticas especializadas, ou seja, a presença de intérpretes capa-

zes de produzi-las (solistas, corais, solos instrumentais). Esta prática especializada tam-

bém tem o seu lugar na assembléia litúrgica e, quando bem integrada no espírito da litur-

gia, pode ser de grande proveito e edificação dos fiéis140;

• Enfim, a relação entre presidente, ministros da ML, e a assembléia litúrgica – mesmo

desempenhando serviços diferenciados – forma um todo orgânico participativo e, por isso

mesmo, deve expressar a comunhão da Igreja141. Conforme nos diz o Apóstolo Paulo:

Quando vos reunirdes, irmãos, um de vós tem um canto a propor? Que o proponha. Que

todos o escutem. Que cada um possa responder-lhe seu amém, contanto que tudo aconteça

dentro da ordem e da dignidade, de maneira que se construa a Igreja de Deus142.

1.5. Alguns critérios para a análise, escolha e formação do repertório litúrgico

Levando em consideração tudo o que dissemos até aqui sobre a ML – os elemen-

tos que a compõem e sua função ministerial – resta-nos ainda tratar dos critérios básicos e

essenciais que, além de nortear o trabalho dos compositores e letristas, também ajudarão os

(outros) ministros da ML na análise, na escolha e na formação do repertório litúrgico. A au-

têntica ML, assim como a definiu o Concílio Vaticano II, deve estar em íntima ligação com a

liturgia, pois dela depende e a ela serve (cf. SC 112). Os critérios que apresentaremos a seguir

podem ser considerados como um tipo de desdobramento deste princípio conciliar. Ei-los:

a) Para os compositores e letristas:

• A “Sacrosanctum Concilium” pede aos compositores e letristas que componham melodias

que apresentem as características da verdadeira ML e que os textos “sejam tirados princi-

palmente da Sagrada Escritura e das fontes litúrgicas”143. A mesma constituição conciliar

140 Cf. UNIVERSA LAUS. La musica en las liturgias cristianas. Op. cit. n. 4.3. 141 Cf. SC 113; MS 5a. 142 Cf. 1Cor 14, 26-40. 143 Cf. SC 121.

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solicita aos compositores que, além da prática musical, recebam igualmente uma genuína

formação litúrgica144. Em outras palavras, aqueles que se dedicam ao nobre exercício da

composição musical, devem compreender bem o que é a liturgia e suas leis fundamentais,

os seus ritos e a função ministerial da ML145.

• Um bom letrista deve ser igualmente um bom poeta. Poetas, de verdade, são escassos; e

poetas que conhecem a liturgia, mais raros ainda! “Um dos grandes obstáculos à maior

criatividade musical é a falta de bons textos para cantos que levem em conta a função mi-

nisterial, as festas e os tempos litúrgicos” 146. Vale ainda um lembrete: nem sempre os

bons músicos são igualmente bons na arte de fazer versos. Geraldo Leite BASTOS, numa

entrevista à Revista de Liturgia, lamenta a má qualidade de textos produzidos por falsos

poetas que empobrecem a ML:

... Outra coisa importante é a poesia. Há muita coisa por aí até rimada, mas sem poesia. É comum a gente ver rima que vai se repetindo em ão (irmão, coração, perdão, libertação...), em or (Senhor, salvador...) sem criatividade, sem nenhum bom gosto, parece até que a gente nunca leu uma poesia 147.

• Que os compositores e letristas levem em conta o jeito da cultura local: O poeta e compo-

sitor Reginaldo VELOSO nos lembra, neste particular, que devemos ser

fiéis à história, à vida e à cultura de nossa gente, sob pena de cantarmos um louvor sem a força motivadora que sobe do chão em que estamos plantados, do nosso jeito de ser e de viver, da nossa vivência cotidiana e da nossa iden-tidade histórica. Acusar-nos-ão de alienação e desencarnação. (Daí, a neces-sidade de) (...) abrir espaço para que através de um processo de inculturação, as sementes do verbo possam também germinar, florescer e desabrochar em louvor autêntico plenamente reconhecido e aceito em nossa práxis litúrgica (sic)148.

Já em 1966, o musicólogo e folclorista José Geraldo de SOUZA, em sua obra

Folcmúsica e Liturgia, constatando o descaso dos compositores sacros acerca do “manancial

soberbo de inspiração que é a música folclórica”, sugere-nos que “é através da linguagem

musical popular e folclórica, que um país de extensa aculturação como o Brasil, mais facil-

mente atingirá a essência da criatura humana no diálogo com o seu Deus”. E continua sua fala 144 Cf. SC 115. 145 Cf. WEBER, J. Função ministerial da música na liturgia. Op. cit. p. 123. 146 CNBB. Pastoral da música litúrgica. Op. cit. nº 1.2.2. Cf. Idem. A música litúrgica no Brasil. Op. cit. n. 32. 147 BASTOS, G. L. Loas e lamentos. Op. cit. p. 15. 148 VELOSO, R. Música ritual. Revista de Liturgia. São Paulo, v. 99, [maio/jun.] 1990, p. 92. R. Veloso, junta-mente com Geraldo Leite Bastos e Jocy Rodrigues, é um dos compositores nordestinos que mais se têm preocu-

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no mesmo tom exortativo: “É preciso, pois, transportar, artisticamente, os elementos caracte-

rísticos da arte popular para a linguagem musical sagrada, conformando, ainda, essa lingua-

gem com a realidade brasileira”149.

O mesmo autor fornece ainda aos compositores 3 critérios bem específicos:

a) pesquisar a realidade para transmitir a palavra musical, em traduções rít-micas e cantáveis, acentuando o caráter ministerial da música na liturgia, em uma arte funcional; b) que os recitativos livres sejam adaptados perfeitamente ao texto; primei-ramente, à índole da língua. A música deve esconder-se atrás do texto, e não esconder o texto; c) que as melodias processionais sejam ricas, como elementos de soleniza-ção ritual; (...) tudo expresso em formas musicais populares, estilizadas, po-rém, com arte sóbria, simples, mas variada. Nem convencionalismos exces-sivamente característicos, nem acentos de profana leviandade 150.

b) Para aqueles que cuidam da escolha dos cantos que, aos poucos, irão compor o repertó-

rio151:

• “Examinem com cuidado textos e partituras, para uso litúrgico, avaliando-os, aprovando-

os ou recusando-os, de acordo com o valor ou desvalor dos mesmos”152;

• Que se evite o uso na liturgia de melodias importadas e de textos adaptadas de trilhas

sonoras de filmes, novelas, sucessos da música pop..., pois “além de ferir os direitos auto-

rais do autor, tal adaptação, por si mesma, revela a inconveniência do original que será

mentalmente invocado, evidenciando empobrecimento da celebração litúrgica e desvirtu-

ando o seu sentido”153.

Concluindo este item, eis um resumo154 dos principais critérios apresentados aci-

ma, acrescidos de outros:

a) O texto da S. Escritura ou inspirado nela e das fontes litúrgicas (cf. SC 121) 155;

pado pela inculturação da ML na Região Nordeste. Suas composições são fortemente marcadas pelo uso de mo-tivos melódicos e rítmicos da música nordestina. 149 SOUZA, J. Geraldo de. Folcmúsica e Liturgia. Petrópolis: Vozes, 1966, p. 63. 150 Ibidem, p. 64-65 151 Cf. CNBB. Pastoral da música litúrgica no Brasil. Op. cit. n. 3.2. Cabe às Comissões e Equipes Diocesanas ou regionais de música litúrgica este trabalho (cf. Ibidem). Sugerimos que se acrescente a esta lista as equipes de canto das comunidades paroquiais. 152 Ibidem, n. 3.2a. 153 Ibidem, 3.9; Conforme o que dissemos anteriormente (item 1.1) a verdadeira ML tem a finalidade de evocar a realidade simbólica e revelar a natureza do rito. 154 Cf. BUYST, I. Musica ritual. Revista de Liturgia, v. 94, op. cit. p. 124. 155 Cf. item 1.3.1 desta dissertação quando falamos sobre a letra.

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b) Que o letrista seja de fato um poeta (evitando explicitações desnecessárias, moralismos e

chavões...) e conheça profundamente a função ministerial da ML na liturgia156;

c) Que se evite na liturgia o uso de melodias importadas e textos adaptados (trilhas sonoras

de filme, novelas...);

d) O tipo de celebração na qual a ML será executada (Celebração do Batismo? Exéquias?

Bodas? ...);

e) As características da assembléia (Celebração com crianças? Jovens? Adultos? Sofredores

da rua? Profissionais liberais? Metalúrgicos?)

f) O tempo do ano litúrgico (cf. SC 107);

g) A beleza estética na linguagem musical e verbal. Conforme J. GELINEAU, uma ML ade-

quada deve preencher dois requisitos básicos: a estética musical e a conveniência ritu-

al157. E ainda: O conceito de estética da ML não pode ser compreendido pelo simples cri-

tério de beleza (arte pela arte) desvinculado da liturgia. O padrão estético do canto e da

música enquanto rito, tem um sentido bem mais amplo, isto é, deve ser avaliado dentro do

contexto global da ação litúrgica158.

h) O jeito da cultura do povo local: como por exemplo, “as riquezas de nossa música: as

constantes melódicas, harmônicas, formais e rítmicas da música folclórica e popular brasi-

leira...”159.

Conclusão

Ao longo deste capítulo I pudemos constatar que a música é uma arte que sempre

acompanhou o ser humano e, desde muito cedo, esteve relacionada com o transcendente. Os

povos primitivos descobriram que a linguagem musical é um meio eficaz de comunicação

entre o ser humano e os deuses. A partir desta descoberta, esses povos utilizaram a música

como parte integrante de seus ritos.

156 Cf. CNBB. A música litúrgica no Brasil. Op. cit. n. 229. Antonio ALCALDE, em seu ensaio: La salud del canto litúrgico, p. 298, sugere-nos que os cantos na celebração litúrgica sejam “confissões de fé”, superando o nível dos cantos “informantes da fé” (Ibidem). 157 Cf. GELINEAU, J. La música de la assamblea cristiana... Op. cit. p. 62. 158 Idem. Música e canto. In: O amanhã da liturgia. Op. cit. p. 116-123. 159 CNBB. Pastoral da música litúrgica no Brasil. Op. cit. n. 1.1.8.

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Vimos também que a música, além de expressar as múltiplas dimensões da vida

humana, também nos remete ao inefável, ao indizível do mistério de Deus. Isto pudemos ave-

riguar na tradição litúrgico-musical bíblica do Antigo e Novo Testamentos.

A música é um elemento indispensável na ação litúrgica e, quando bem elaborada

(simbiose entre texto, melodia, ritmo...) e devidamente integrada no momento ritual, nos ar-

remessa, pela ação do Espírito Santo, ao inefável de Deus. “Se a música for como de fato

requer a liturgia, será um sinal que nos leva do visível ao invisível, um carisma que contribui

para a edificação de toda a comunidade e a manifestação do mistério da Igreja, Corpo Místico

de Cristo”160. Assim, a assembléia terrestre se une à assembléia celeste para proclamar que

“digno é o Cordeiro imolado de receber o poder, a riqueza, a sabedoria, a força, a honra, a

glória e o louvor” (Ap 5,12b). A assembléia reunida e assistida pelo Espírito Santo nada mais

é do que um prolongamento daquela do Apocalipse que aclama, sem cessar, seu canto de lou-

vor pascal “Àquele que está sentado no trono e ao Cordeiro...”, pois só a eles pertencem o

louvor, a honra, a glória e o domínio pelos séculos dos séculos (cf. Ap 5,13b).

160 Conclusões do IV Encontro nacional de música sacra. In: VV.AA. Música brasileira na liturgia. Op. cit. p. 144.

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Capítulo II ___________________________________________________________________________

Da “Adaptação” à “Inculturação” Litúrgica

Depois de termos falado no capítulo I sobre a ML e sua importância na ação litúr-

gica, voltaremos nossa atenção, agora, para a inculturação litúrgica. A inculturação tem sido

objeto de muitos estudos nos últimos anos161. O impulso inicial nos foi dado pelo próprio

Concílio Vaticano II. Embora a palavra inculturação não apareça nos documentos do Concí-

lio, podemos afirmar, de antemão, que a “Sacrosanctum Concilium” ao falar sobre a adapta-

ção da liturgia à índole e às tradições dos povos (Cf. SC 37-40), nos sugere o mesmo sentido

que damos hoje ao termo “inculturação”, especialmente o nº 40 quando fala das “adaptações

mais profundas”. A inculturação deve ser um meio para que se chegue à “participação plena,

consciente, ativa e frutuosa dos fiéis” tão desejada pelo Concílio Vaticano II162. Como parte

integrante da liturgia, a ML também se deve inculturar, ou seja, expressar o mistério pascal de

Cristo através da linguagem musical típica do nosso povo brasileiro. Disso trataremos mais

adiante.

Este capítulo II percorrerá os seguintes passos: em primeiro lugar, uma conceitua-

ção dos termos adaptação e inculturação; em seguida, falaremos sobre a e necessidade e os

desafios para uma autêntica inculturação na América Latina e no Brasil; e, finalmente, abor-

daremos a relação entre Música Ritual e inculturação.

161 Principais autores : CHUPUNGCO, A. J. Liturgias do futuro; processos e métodos de inculturação. São Pau-lo: Edições Paulinas, 1994; Idem. Adaptación de la liturgia a la cultura y tradiciones de los pueblos. Cuadernos phase, Barcelona, v. 35, p. 5-11; Idem. Adaptação. In: SARTORE, D.; TRIACCA, A. M. (Orgs.). Dicionário de Liturgia. São Paulo: Paulus, 1992, p. 1-12; GONZALEZ, R. Adaptación, inculturación, creatividad... Cuadernos Phase. Op. cit. p. 55-78; ALDAZÁBAL. J. Lecciones de la historia sobre la inculturación. Phase, Barcelona, v. 206, [mar./abr.] 1995, p. 93-109; MELO, J. Raimundo de. Liturgia e inculturação: testemunhos da história aos atuais documentos do magistério universal. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 79, [set./dez.] 1997, p. 299-325; BEOZZO, J. O. Para uma liturgia com rosto latino-americano. REB, Petrópolis, v. 49/195, [set.] 1989, p. 586-605; AZEVEDO, M. Comunidades eclesiais de base e inculturação da fé. São Paulo: Loyola, 1986; SOUZA, M. Barros de. Celebrar o Deus da vida; tradição litúrgica e inculturação. São Paulo: Loyola, 1992; SUESS, P. Apontamentos para a evangelização inculturada. In: VV.AA. Novo milênio; perspectivas, debates, sugestões. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 11-52. Idem. Evangelizar a partir de projetos históricos dos outros. São Paulo: Paulus, 1995. Outras obras, veja a bibliografia geral no final desta dissertação. 162 Cf. SC 11, 12, 14, 18, 19, 21.

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2.1. A adaptação e a inculturação litúrgica

O termo inculturação foi usado pela primeira vez em reuniões oficiais em 1977,

pelo Cardeal Jaime Sin, de Manila, durante o sínodo dos bispos, enquanto falava dos catecis-

mos e, em documentos oficiais da Igreja, na exortação Catechesi Tradendae nº 53 163.

A Constituição Conciliar Sacrosanctum Concílium nº 37-40, ao falar sobre a a-

daptação da liturgia à índole e às tradições dos povos, parte do princípio que “a Igreja não

deseja impor na liturgia uma forma rígida e única para aquelas coisas que não dizem respeito

à fé ou ao bem de toda a comunidade...” (Cf. SC 37); que a liturgia seja adaptada segundo as

necessidades dos lugares (Cf. SC 38); que esta adaptação seja regida por alguns limites (Cf.

SC 39); além de algumas condições necessárias para adaptações mais profundas (Cf. SC 40).

Anscar J. CHUPUNGCO, um dos principais autores que têm se dedicado ao estudo

da inculturação litúrgica, afirma que a SC 37-40

é a carta magna da flexibilidade e do pluralismo litúrgico na Igreja ocidental (...); ela resume a reforma litúrgica do Vaticano II (...); alarga os horizontes da Igreja como comunidade universal e defende com firmeza o direito das li-turgias locais de existirem (...); expressa o reconhecimento da Igreja de sua própria estrutura pluralista: romana na tradição e internacional em expressão; unidade doutrinal na diversidade cultural 164.

Dentre as muitas tentativas feitas no sentido de conceituar o termo inculturação,

optamos por aquela que nos foi dada pela Congregação para o Culto Divino na Instrução “A

liturgia romana e a inculturação”, seguida de alguns complementos de outros autores. Ei-la:

O Magistério da Igreja usou o termo inculturação para designar, com maior precisão, a encarnação do Evangelho nas culturas autóctones e, ao mesmo tempo, a introdução dessas culturas na vida da Igreja. A inculturação signi-fica uma íntima transformação dos valores culturais autênticos, graças à sua integração no cristianismo e ao enraizamento do cristianismo nas di-versas culturas humanas. (...) A Palavra adaptação, tirada da linguagem missionária, poderia levar a pensar em modificações sobretudo pontuais e exteriores. O termo incultu-ração pode exprimir melhor um dúplice movimento: a Igreja encarna o E-vangelho nas diversas culturas e, ao mesmo tempo, introduz os povos com suas culturas na própria comunidade. Por um lado, a penetração do Evan-gelho em determinado meio sócio-cultural fecunda, como que por dentro,

163 Cf. GONZALEZ, R. Adaptación, inculturación... Op. cit. p. 61; Cf. SOUZA, M. Barros de. “Com atabaques e com danças, louvemos ao Senhor”. Revista de Liturgia, São Paulo: v. 119, p. 6; AZEVEDO, M. Cristianismo, uma experiência multicultural... In: 5º Congresso Missionário... (COMLA 5), p. 72. 164 CHPUNGCO, A. J. Liturgias do Futuro. Op. cit. p. 16.

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as qualidades do espírito e os dotes de cada povo, fortifica-os, aperfeiçoa-os e restaura-os em Cristo. Por outro, a Igreja assimila esses valores, se compatíveis com o Evangelho, para aprofundar melhor a mensagem de Cristo e exprimi-la mais perfeitamente na celebração litúrgica e na vida da variada comunidade dos fiéis 165.

José Raimundo de MELO, em seu ensaio “Liturgia e inculturação...” prefere usar

o termo adaptação para especificar “certas modificações brandas, pontuais e mais exteriores

realizadas na liturgia para torná-la mais próxima a uma particular realidade ou situação pró-

pria dos fiéis”; enquanto a inculturação é um processo bem mais complexo: “elementos litúr-

gicos cristãos inserem-se de tal modo nas bases estruturais de uma determinada cultura, a pon-

to de estes elementos passarem normalmente a ser expressos no culto através dos pensamen-

tos, linguagem e modelos rituais próprios desta cultura”166.

Para A. J. CHUPUNGCO o termo adaptação, usado pelo Concílio

Vaticano II, deve ser entendido em seu sentido mais amplo, ou seja: para se realizar a adapta-

ção são necessárias a aculturação (estágio interativo inicial entre liturgia romana e cultura

local), a inculturação e a transculturação. Esta última, nada mais é do que uma fase intermedi-

ária entre a aculturação e a inculturação. “A aculturação, que é o estágio inicial da adaptação,

abre caminho para a inculturação. No processo é permitido às dinâmicas da transculturação

operar de tal modo que tanto a liturgia quanto a cultura sejam capazes de se desenvolver de

acordo com a identidade específica de cada uma”167.

Este mesmo liturgista ainda admite um outro processo, o da criatividade litúrgica,

previsto para lugares onde a inculturação sozinha não bastaria para incrementar plenamente a

participação ativa e frutuosa dos fiéis. Neste processo, “os novos textos litúrgicos são com-

postos independentemente da estrutura tradicional do eucológico romano (...); os novos mode-

los de formulários são elaborados de acordo com o padrão lingüístico e os traços retóricos do

povo...”168. Para esta dissertação, nos limitaremos ao conceito de inculturação.

165 CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINOE DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. A liturgia romana e a inculturação de 25 de janeiro de 1994 (4ª Instrução para uma correta aplicação da Constituição Conciliar sobre a Liturgia). AAS, v. 3, 1995, n. 4. A seguir, citada apenas por A Liturgia Romana e a Iculturação. 166 MELO, J. Raimundo de. Liturgia e inculturação... Op. cit. p. 302. Esta compreensão é, ao nosso ver, compatí-vel com a Instrução: A liturgia romana e a inculturação, n. 4 e, ainda, com CHUPUNGCO, A. J. Liturgias do futuro. Op. cit. p. 38. Embora este último entenda adaptação como algo amplo que engloba a aculturação, a transculturação e a inculturação. 167 CHPUNGCO, A. J. Liturgias do futuro. Op. cit. p. 45. 168 Ibidem, p. 44.

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2.1.1. A inculturação no contexto histórico-salvífico e seus desdobramentos ao longo da

história do cristianismo no ocidente

Ao darmo-nos conta da dificuldade de precisar uma definição satisfatória do ter-

mo inculturação, talvez o melhor caminho será abordá-lo dentro de um contexto histórico-

teológico mais amplo. Antes de tudo, vale recordar que a cultura deve ser entendida numa

perspectiva teológica e sobretudo cristológica. Na origem da cultura está o plano criador de

Deus Pai que atinge seu ponto alto na Encarnação do Verbo169.

Na história da salvação o processo de inculturação se deu de formas bem varia-

das170. Nesse sentido, o povo de Israel, ao longo de sua história, recebeu dos povos vizinhos

várias influências que, aos poucos, foram se incorporando e até modificando a maneira deste

povo celebrar sua fé em Javé. A Igreja, o novo povo de Deus, desde os seus primórdios - ao

encarnar-se de forma progressiva e qualitativa, assumindo, assimilando, discernindo e trans-

formando os valores culturais... – foi se configurando como comunidade cristã universal.

Esta comunidade cristã universal (a Igreja) tem como cabeça Jesus Cristo, o Filho

de Deus que se encarnou na história, assumiu a condição humana (social, cultural...) de um

povo, de um país e de uma época. Ao assumir plenamente esta condição, Jesus foi em tudo

obediente ao Pai até a morte e, ressuscitando dos mortos, resgatou a humanidade inteira - indi-

ferentemente de cultura, raça e condição - do jugo do pecado e da morte. “Jesus Cristo é, com

efeito, a medida de toda a cultura e de toda obra humana”171

“A fé em Cristo permite a todas as nações beneficiarem-se da promessa e partici-

parem da herança do novo povo da aliança (cf. Ef 3,6), sem renunciarem à própria cultura.

(...) Desde os primeiros tempos, a Igreja não exigiu nada além do necessário dos convertidos

não incircuncisos, de acordo com a decisão da assembléia apostólica de Jerusalém (cf. At 15,

28)”172.

169 Cf. LIBÂNIO, J. B. Prefácio. In: CELAM. Santo Domingo; conclusões. São Paulo: Loyola, 1994, p. 54. 170 Cf. A Liturgia romana e a inculturação. Op. cit. n. 9-20; E para a história em geral: Cf. MELO, J. Raimundo de. Liturgia e inculturação. Op. cit. p. 299-325; ALDAZÁBAL, J. Lecciones de la historia sobre la inculturación. Op. cit. p. 93-109. 171 SD 13. 172 A liturgia romana e a inculturação. Op. cit, n. 14.

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Os cristãos (especialmente nos quatro primeiros séculos) – seguindo o exemplo de

Cristo, que se encarnou de forma prodigiosa em um povo e em uma cultura – confrontaram-se

com questões pastorais por demais desafiadoras. Pouco a pouco, foram-se adaptando ao mun-

do de então, primeiramente à cultura judaica com suas orações, salmos, Escrituras, festas,

símbolos sacramentais, compreensão do cosmos e do tempo... . Frente a tudo isso, souberam

dar um sentido cristão a esta rica herança judaica. O mesmo aconteceu quando estes nossos

pais e mães da fé tiveram que enfrentar, posteriormente, a cultura helênica e outras cultu-

ras173.

Ao longo dos séculos, porém, infelizmente o cristianismo foi se firmando como

uma experiência monocultural. “Este quadro cultural sempre mais se consolida na segunda

metade do primeiro milênio de nossa era (...); o cristianismo latino amadurece sua forma de

ser ocidental. Esta tem ao mesmo tempo uma dimensão religiosa e cultural, ambas tecidas e

integradas numa só realidade”174. Daí, resulta de um lado, a cultura cristã e do outro, a cultura

autóctone. Esta última, nem sempre pôde participar do processo interativo e simbiótico com a

primeira, resultando assim, uma espécie de justaposição de culturas. “Toda a evangelização

posterior ao século XIII e até mesmo próximo de nossos dias difundiu o (...) cristianismo mo-

nocultural (...), fisionomia cultural concreta do cristianismo ocidental”175.

Na América Latina, por exemplo, o contato da cultura cristã com as culturas indí-

genas e negras não foi algo tão edificante! Estas culturas foram literalmente ignoradas e até

impingidas a uma submissão frente à cultura cristã (colonizadora), que resultou num tipo de

“esvaziamento opressivo” de muitas nações indígenas com seus costumes e tradições.

Em relação às tradições indígenas ou afro-americanas, o cristianismo desen-volveu, difundiu e, em alguns casos, realmente impôs um modelo marcada-mente monocultural, isto é, a matriz católica romana de inspiração ibérica, pré ou pós-tridentina. (...) Nas duas fases, a da colonização, do século XVI ao XIX e da romanização, no século XIX e em parte do século XX, o cristia-nismo latino-americano não só é uma experiência cultural, mas se tornou também uma experiência monocultural 176.

173 Cf. ALDAZÁBAL, J. Lecciones de la história sobre la inculturación. Op. cit. p. 95-96; Veja também a Instru-ção: A liturgia romana e a inculturação. Op. cit. n. 15-17. 174 AZEVEDO, M. Cristianismo, uma experiência multicultural...Op. cit. p. 64. Neste ensaio o autor, enfatica-mente, insiste que a nova evangelização seja uma experiência multicultural, como, de certa forma se deu nos primórdios da Igreja. 175 AZEVEDO, M. Cristianismo, uma experiência multicultural. Op. cit. p. 64. 176 Ibidem, p. 65-66. Sobre este tema da dominação da cultura cristã na colonização do Brasil, veja também: GAMBINI, R. O espelho índio; os jesuítas e a destruição da alma indígena. Rio de Janeiro: Espaço e tempo, 1988; TINHORÃO, J. R. Música popular de indios, negros e mestiços. Petrópolis: Vozes, 1972. Nesta obra, o autor descreve o choque cultural causado pela imposição da música européia pelos jesuítas nos primeiros séculos

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José Oscar BEOZZO, falando sobre a língua como um veículo importante para a

inculturação, lamenta que na ‘primeira evangelização’, os missionários se interessaram em

aprender a língua dos nativos não para propiciar um melhor conhecimento e valorização des-

sas culturas autóctones, mas ao contrário, utilizaram-na para destruir e erradicar o universo

das crenças e da sabedoria indígena. O primeiro bispo do Bahia, D. Pero Fernandes Sardinha

(1552-1556) que, como muitos da época, consideravam inútil o trabalho de evangelização

junto aos indígenas, dizia que os missionários, em vez de barbarizar-se aprendendo o idioma

indígena, deviam, isto sim, civilizá-los ensinando-lhes a língua portuguesa. Atitude idêntica,

porém mais radical, foi a do Marquês de Pombal (1750-1775) que “condena com veemência o

uso da língua geral (indígena) na região amazônica, como de resto vai proibir o uso do tupi

em São Paulo e demais regiões do Brasil”177

Marcelo AZEVEDO178 – ao falar de uma (nova) evangelização que tenha como

principal desafio viver a mesma fé em diferentes culturas sem nenhuma perda de ambos os

lados (cristianismo e cultura autóctone), mas numa integração e/ou complementação dos dois

lados - recomenda:

a) Deve-se ter presente a totalidade do ser humano, em sua realidade espiritual e material e

não apenas sua alma. Isto também no âmbito comunitário, social... enfim, em todas as re-

lações inter-pessoais;

b) Que sempre se leve em conta que “todo ser humano está ligado de algum modo a uma

cultura (...); a verdadeira evangelização deve articular, de modo amplo e profundo, a rela-

ção entre fé e cultura”;

c) Que igualmente seja considerada a dimensão religiosa das culturas, sobretudo as tradicio-

nais. Esta dimensão “explica e justifica a índole da respectiva cultura. É difícil, pois, esta-

belecer uma adequada relação entre fé e cultura, se não se levar em conta o componente

religioso tanto da cultura que se quer evangelizar como daquela que se está evangelizan-

do”;

E o mesmo autor conclui estes três pontos afirmando que

da colonização brasileira e conclui afirmando que não houve sequer a possibilidade de uma síntese entre as duas culturas. Ao contrário, a cultura dominante (européia) se sobrepôs à dos colonizados. A música e mesmo os instrumentos dos nativos eram tidos como “exóticos”, daí a importação de instrumentos musicais europeus co-mo: órgãos, cravos, flautas, fagotes, clarinetas. Temos notícias que entre os indígenas, graças à sua sensibilidade musical, se destacaram excelentes cravistas, organistas, flautistas..., intérpretes de música européia! 177 BEOZZO, J. O. Para uma liturgia com rosto latino-americano. Op. cit. p. 601-602. 178 Para o que segue: Cf. AZEVEDO, M. Cristianismo, uma experiência multicultural... Op. cit. p. 68-70.

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já não há mais lugar para um cristianismo no qual a unidade da fé se construa sobre a uniformidade cultural (...); não há mais como conce-ber e justificar um cristianismo monocultural. Pelo contrário, o resul-tado universal de uma adequada evangelização inculturada será um cristianismo multicultural. Ele construirá a unidade profunda da fé na diversidade de concepções e expressões culturais 179.

Embarcando nesta mesma linha de raciocínio, o mesmo podemos afirmar quanto à

liturgia, apoiados nos seguintes princípios:

• “A liturgia da Igreja não deve ser estrangeira para nenhum país, para nenhum povo, para

nenhuma pessoa (...); deve ser capaz de se exprimir em todas as culturas humanas, con-

servando sempre a sua identidade, na fidelidade à tradição recebida do Senhor”180;

• Estamos saindo de 400 anos de fixismo e de imobilismo litúrgico, elementos que domina-

ram a história da liturgia do Concílio de Trento aos nossos dias181;

• A inculturação se estabelece como um passo de grande importância, como um elo na ca-

deia que conclui magnificamente a inteira reforma litúrgica do Vaticano II. Os primeiros

passos já foram dados: o da passagem da língua latina para a vernácula; a reforma geral

dos livros litúrgicos; a tradução dos novos livros reformados segundo o espírito do Concí-

lio, restando-nos a inculturação da liturgia para que se complete o ciclo da reforma con-

ciliar. Esta última tarefa será bem mais exigente que as anteriores182.

José ALDAZÁBAL183 nos fornece alguns critérios básicos para a inculturação li-

túrgica que, de certa maneira, vêm enriquecer a listagem dos princípios acima:

1) O respeito pela identidade do mistério celebrado: mistério pascal de Cristo;

2) A participação mais ativa e frutuosa da comunidade: finalidade pastoral;

3) A questão da unidade substancial do rito romano (para nós, no âmbito da liturgia romana)

184;

4) O papel da comunidade na inculturação: trata-se de todo o povo de Deus que vive imerso

na cultura, com sua fé; 179 Ibidem, p. 69-70. 180 A liturgia romana e a inculturação. Op. cit. n. 18. 181 Cf. MELO, J. Raimundo de. Liturgia e inculturação... Op. cit. p. 300. 182 Cf. Ibidem, p. 300-301 e ainda: CHUPUNGCO, A. J. Liturgias do futuro. Op. cit. p. 7-59. 183 Para o que segue: ALDAZÁBAL, J. Lecciones de la historia sobre la inculturación. Op. cit. p. 103-107. 184 Ibidem, p. 105. “Eu me atreveria a dizer que o limite, a concretização dessa unidade substancial, é a identida-de da liturgia mesma (grifo nosso), da festa, do sacramento, dos valores teológicos, que basicamente estão for-mulados na liturgia romana, evidentemente, porém sem estender a categoria de unidade substancial a qualquer

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5) A inculturação da liturgia deve ser realizada dentro do conjunto de toda a ação evangeli-

zadora da Igreja: “não se pode isolar o processo litúrgico do conjunto da vida comunitária:

não só a linguagem litúrgica, mas também a arquitetura, o canto, a arte, a religiosidade

popular, a evangelização e catequese, a renovação espiritual”185.

Concluindo este item, podemos perceber - embora de forma sucinta - que, apesar

das dificuldades e desafios, a inculturação é algo essencial e de vital importância para que o

Evangelho de Jesus Cristo se encarne nas diversas culturas, sendo, de fato, Boa–nova da Sal-

vação. E o lugar privilegiado para que essa Boa-nova ressoe e produza nos fiéis o seu devido

efeito é na liturgia.

A seguir, falaremos sobre o processo de inculturação litúrgica na América Latina

e no Brasil.

2.1.2. A inculturação da liturgia na América Latina e no Brasil: caminho para a parti-

cipação

O magistério da Igreja na América Latina tem reiteradas vezes pronunciado sobre

a necessidade da inculturação do Evangelho de Jesus Cristo neste continente marcado pela

opressão e a miséria. Por outro lado, grande parcela do povo latino-americano busca, no seu

dia-a-dia, celebrar e viver a Páscoa de Cristo, apesar da crescente situação de morte.

A Conferência do Episcopado Latino-Americano (CELAM) reunida em Puebla

(1979), pede-nos que na liturgia possamos “celebrar a fé com expressões culturais, obedecen-

do a uma sadia criatividade. Promover adaptações adequadas, particularmente aos grupos ét-

nicos e ao povo simples (grupos populares)”186.

O mesmo documento referindo-se à piedade popular nos encoraja a “favorecer a

mútua fecundação entre liturgia e piedade popular que possa orientar com lucidez e prudência

os anseios de oração e vitalidade carismática que hoje se comprovam em nossos países. Por

formulação concreta, textual, ritual ou estrutural, ainda que algumas expressões podem considerar-se fundamen-tais como características do rito romano” (Ibidem, p. 105). 185 Ibidem, p. 106-107. 186 PB n. 940.

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outro lado, a religião do povo, com sua grande riqueza simbólica e expressiva, pode propor-

cionar à liturgia um dinamismo criador...”187.

Os bispos latino-americanos e caribenhos reunidos em Santo Domingo, 13 anos

depois de Puebla, vêm reforçar a importância da inculturação do Evangelho na América Lati-

na e no Caribe: “Devemos encorajar uma evangelização que penetre nas raízes mais profun-

das da cultura comum dos nossos povos”188. Deste ultimo documento, destacaremos apenas 3

pontos:

a) Sobre a religiosidade popular: “A religiosidade popular é uma expressão privilegiada da

inculturação da fé. Não se trata só de expressões religiosas, mas de valores, critérios, con-

dutas e atitudes que nascem do dogma católico e constituem a sabedoria de nosso povo,

formando-lhe a matriz cultural. Esta celebração da fé, tão importante na vida da Igreja da

América Latina e do Caribe, está presente em nossa preocupação pastoral”189.

b) Sobre os povos indígenas: (A Igreja deve) “promover uma inculturação da liturgia, aco-

lhendo com apreço seus símbolos, ritos e expressões religiosas compatíveis com o claro

sentido da fé, mantendo o valor dos símbolos universais e em harmonia com a disciplina

geral da Igreja”190.

c) Sobre os afro-americanos: “(...) Da mesma forma, comprometemo-nos a dedicar especial

atenção à causa das comunidades afro-americanas no campo pastoral, favorecendo a ma-

nifestação das expressões religiosas próprias de suas culturas”191.

Enfim, tanto Puebla como Santo Domingo acenaram para a necessidade da adap-

tação/encarnação do evangelho e de toda a ação evangelizadora, na cultura do povo latino-

americano. Porém, quem melhor sistematizou a temática da inculturação, foi Santo Domingo.

Santo Domingo também se dá conta que a inculturação não acontece somente com

as culturas ameríndias e afro-americanas, mas também é extensiva à cultura dos jovens. Para

187 PB n. 465. 188 SD n. 32. 189 SD n. 36. 190 SD n. 248. 191 SD n. 249.

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estes, o episcopado latino-americano pede para que haja uma ação pastoral “que assuma as

novas formas celebrativas da fé, próprias da cultura dos jovens...”192. E quanto à cultura ur-

bana, a mesma Conferência Episcopal exige o incremento de “uma pastoral urbanamente in-

culturada com relação à catequese, à liturgia e à organização da Igreja”193.

Esta última exigência é decorrente da atual cultura urbana moderna que convive

com uma série de ambigüidades e relativismos frente a valores humanos fundamentais194. Na

prática, não podemos falar de uma cultura cristã apenas, mas de muitas culturas cristãs. “A

pluralidade cultural vai pedir tematizações teológicas diferentes, liturgias próprias (grifo nos-

so), organizações eclesiásticas diversas, superando todo colonialismo cultural e religioso”195.

Os bispos latino-americanos e caribenhos, reunidos na cidade de Aparecida (SP),

em maio de 2007, mesmo não falando explicitamente sobre a inculturação, reconhecem a im-

portância da piedade popular como “lugar de encontro com Jesus Cristo”196 e como “um pre-

cioso tesouro da Igreja Católica na América Latina”197.

No referido Documento, aparece claramente a sensibilidade do episcopado da

América Latina e do Caribe, ao afirmar que a piedade popular “reflete uma sede de Deus que

somente os pobres e simples podem conhecer. (...) É um catolicismo popular, profundamente

inculturado, que contém a dimensão mais valiosa da cultura latino-americana”198; “É impres-

cindível ponto de partida para conseguir que a fé do povo amadureça e se faça mais fecunda.

Por isso o discípulo missionário precisa ser sensível a ela, saber perceber suas dimensões inte-

riores e seus valores inegáveis”199; “Contém e expressa um intenso sentido de transcendência,

uma capacidade espontânea de se apoiar em Deus e uma verdadeira experiência de amor teo-

logal”200; “É uma maneira de viver a fé, um modo de se sentir parte da Igreja (...). É parte de

192 Cf. SD n. 117. 193 Cf. SD n. 256. 194 Sobre esta mentalidade relativista, veja: CNBB. Missão e ministérios dos cristãos leigos e leigas. São Paulo: Paulinas, 1999, n. 23-25. “A concepção relativista da verdade e extremamente individualista da liberdade leva à aceitação de práticas – como aborto, eutanásia, uso de drogas, busca desenfreada por bens materiais e a negação da solidariedade – que desprezam o valor da vida humana” (Ibidem, n. 25). 195 LIBÂNIO, J.B. Prefácio. Op. cit. p. 54. 196 Cf. CELAM. Documento de Aparecida (DA); Texto conclusivo da V Conferência do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. São Paulo: CNBB/Paulus/Paulinas, 2007, n. 258-265. 197 DA n. 258. 198 DA n. 258. 199 DA n. 262 200 DA n. 263

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uma originalidade histórica cultural dos pobres deste Continente, e fruto de uma síntese entre

as culturas e a fé cristã”201.

As “Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil” vêem a incul-

turação como um elemento fundante e indispensável para toda a ação evangelizadora. Quanto

à liturgia, o mesmo documento insiste na valorização dos gestos, das posturas, das caminha-

das e da dança; numa maior aproximação entre as celebrações litúrgicas e o universo simbóli-

co das comunidades; numa simbologia mais adequada ao meio urbano, etc.202.

Embora reconhecendo os desafios de uma possível inculturação da liturgia, os

bispos brasileiros encorajam-nos a dar passos qualitativos neste campo: “(...) Entre nós, os

vários grupos étnicos, como os índios, os negros, os orientais, apresentam muitos elementos

que já merecem ser inculturados em nossas celebrações, sobretudo nos sacramentos” 203.

2.1.3. A Instrução romana sobre a inculturação e a Igreja na América Latina: dificul-

dades e desafios

Embora o objetivo principal desta dissertação não seja o de analisar a Instrução

“A Liturgia Romana e a Inculturação”, confrontando-a com os pronunciamentos do episco-

pado latino-americano (CELAM) e brasileiro (CNBB), percebemos algumas dificuldades e

desafios. Conforme José L. YÁÑEZ204, a Instrução Romana, ao se pronunciar sobre a incultu-

ração, fecha muitas portas e dificulta a abertura de outras. Praticamente, não há margens para

a inculturação nas regiões de antiga tradição cristã ocidental, e nos países onde existe um alto

índice de indiferença religiosa, a Instrução só recomenda que se intensifique a formação (ca-

tequese). Quanto à religiosidade popular, YÁÑEZ vê um caminho fechado, relembrando que,

historicamente, a liturgia romana incorporou muitos elementos devocionais da religiosidade

popular: “O documento romano fecha, de forma drástica, essa possibilidade e, com isso, esta-

ria fechando o caminho mais acessível a uma possível inculturação”205.

201 DA n. 264 202 Cf. CNBB. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil. Op. cit. n. 278. 203 Cf. CNBB. Animação da vida litúrgica no Brasil. São Paulo: Edições Paulinas, 1978, n. 183. 204 YÁÑEZ, J. L. La inculturación en la liturgia. Phase, Barcelona, v. 206, [mar./abr.] 1995, p. 135-141. 205 Ibidem, p. 140-141.

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José Raimundo de MELO também constata alguns impasses gerados por esta IV

Instrução: “(...) Estamos diante de um texto que fala bastante, pois se alonga por 70 números

(...); acrescenta pouco à questão da inculturação, sobretudo a 3ª parte, em que dá os princípios

para a inculturação do rito romano, diz muito sobre o que não se pode fazer e pouco sobre o

que é permitido fazer”206. E, ao constatar que nesta Instrução muitas possibilidades de incultu-

ração permanecem fechadas, com certa ironia completa:

(...) Para dar um único exemplo, caso a Igreja antiga seguisse à risca apenas o que vem indicado no artigo 47 da instrução em causa, o qual está inserido numa sub-secção intitulada: “a necessária prudência”, seguramente não teria podido realizar nenhuma inculturação e, nem mesmo, nenhum tipo de apro-ximação válida com o culto e a cultura dos povos com os quais se relacionou 207.

Confrontando as observações críticas de YÁÑEZ e MELO sobre a Instrução ro-

mana com o que vimos logo acima (ítem 2.2), os documentos de Puebla, Santo Domingo e da

CNBB não só valorizam, como também incentivam a prática da inculturação a partir das cul-

turas afro-ameríndias, além dos desafios atuais da cultura urbana como, também, de elemen-

tos da religiosidade popular na liturgia. Esta preocupação dos bispos latino-americanos com a

inculturação da liturgia nos países da América Latina é legítima e pertinente, pois tem como

fundamento o próprio Concílio Vaticano II que, repetidas vezes, insiste na participação ativa e

frutuosa da assembléia para uma maior vivência do Mistério Pascal de Jesus Cristo (Cf. SC

14). “Inculturar a liturgia significa, em definitivo, ser fiel à mais pura tradição eclesial e res-

ponder, positivamente, às urgentes necessidades pastorais de nossos tempos, que nos exigem

apresentar o culto cristão em conformidade com a linguagem de cada cultura”208

Se por um lado, a Instrução “A liturgia romana e a inculturação” deixa poucas

possibilidades para a inculturação, por outro, a Congregação para o Culto Divino e a Discipli-

na dos Sacramentos, no mesmo documento, se declara disposta a acompanhar o processo de

inculturação, onde for útil e necessário209. A abertura para o diálogo é fundamental tanto para

a Cúria Romana como para a Igreja na América Latina.

206 MELO, J. Raimundo de. Liturgia e inculturação... Op. cit. p. 320. 207 Ibidem, p. 322. 208 Ibidem, p. 324. 209 Cf. A liturgia romana e a inculturação. Op. cit. n. 64.

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2.2. Relação entre Música Litúrgica e inculturação

Cabe-nos aqui, aprofundar um pouco mais a relação entre ML e inculturação.

Nossa proposta é ressaltar a importância da ML que brota do chão, isto é: das expressões mu-

sicais religiosas e culturais mais genuínas da cultura popular.

Uma ML inculturada?

A pergunta aqui formulada não se deve restringir apenas à possibilidade, mas

também à necessidade. Diremos que, além de ser possível, é também necessária a criação de

uma ML inculturada. As razões mais profundas para tal processo de inculturação da ML estão

fundadas na própria natureza da liturgia. A liturgia é o lugar privilegiado para se estabelecer o

diálogo entre Deus e seu povo. Quando a linguagem ritual é traduzida em gestos, símbolos,

música... próprios de cada cultura, o mistério pascal de Jesus Cristo pode ser celebrado e vi-

venciado com maior intensidade pelo povo de Deus de todos os confins da terra.

De acordo com o que dissemos na primeira parte deste capítulo II (a adaptação e a

inculturação litúrgica), o Concílio Vaticano II abriu-nos um horizonte bastante amplo em re-

lação à adaptação da liturgia à índole e às tradições dos povos210. Quanto à ML, a Constitui-

ção “Sacrosanctum Concilium” (1963), pede que se leve também em conta, a adaptação da

ML à tradição musical dos povos211. Comentando este item da Constituição conciliar (SC

119), a Instrução “Musicam sacram” (1967) recomenda que aqueles que se dedicam à tarefa

da adaptação da ML, “devam possuir suficiente conhecimento não só da liturgia e da tradição

musical da Igreja como também da língua, do canto popular e de outras expressões do gênio

do povo para o qual trabalham”212.

Também a Instrução “A liturgia romana e a inculturação” (1994), reconhece que

a música e o canto “são a expressão da alma de um povo e ocupam na liturgia lugar de rele-

vo”, ao mesmo tempo que admite o uso das formas musicais, das melodias e dos instrumentos

de música típicos de cada cultura, contanto que sejam adequados ao uso litúrgico, ou possam

a ele se adaptar213. A motivação que está por detrás destas afirmações do Magistério - e que

210 Cf. SC 37-40. 211 Cf. SC 119. 212 MS 61. 213 Cf. A liturgia romana e a inculturação. Op. cit. n. 40.

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voltamos a repetir aqui, mais uma vez, - é a participação ativa e frutuosa dos fíéis na ação

litúrgica214.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em documento aprovado

em 1976, ao fazer uma análise positiva do esforço de inculturação da ML na cultura brasileira

assim se expressa:

Outra conquista do trabalho musical renovador foi o encontro com os valores sócio culturais e religiosos de nossa música autóctone (...); diversos compo-sitores partiram para uma criação mais genuína, aproveitando as riquezas de nossa música: as constantes melódicas, harmônicas, formais e rítmicas da música folclórica e popular brasileira (...); hoje o Brasil apresenta uma sin-gular posição entre as nações, pelo desencadeamento de tal processo criativo 215.

Podemos afirmar, de antemão, que uma ML inculturada é aquela que, como parte

integrante da liturgia216, expressa o mistério através da linguagem musical típica de um povo.

Em outras palavras: Uma vez encarnada nas formas da linguagem musical de um determinado

povo, a ML propiciará um melhor diálogo entre Deus e este mesmo povo ou seja, a experiên-

cia do mistério pascal de Cristo expresso nos multiformes estilos musicais de cada cultura.

Aqui a ML se reveste de um caráter próprio e ganha um novo vigor na ação ritual, também

pelo fato de que os fiéis vêem retratado nessa música, o jeito da sua própria cultura.

Conclusão

A inculturação litúrgica não é uma tarefa fácil, mas é necessária para a vida da I-

greja. Conforme acenamos na introdução deste capítulo, a inculturação é uma condição sine

qua non para que os diversos povos encontrem na liturgia uma frutuosa participação.

A inculturação litúrgica é, ao mesmo tempo, um caminho de discernimento cultu-

ral e espiritual e um processo de conhecimento pedagógico da cultura como veículo real ou

potencial da fé 217. A inculturação também não pode ser tarefa isolada: trata-se de um proces-

so que requer uma “interdisciplinariedade” ou seja, a colaboração de antropólogos, sociólo-

gos, especialistas em lingüística, músicos, artistas e de especialistas em ciência litúrgica 218.

214 Cf. SC 14, 30, 118. 215 CNBB. Pastoral da música litúrgica. São Paulo: Paulinas, 1976, n. 1.1.8. 216 Cf. SC 112. 217 Cf. AZEVEDO, M. Cristianismo, uma experiência multicultural. Op. cit. p. 73. 218 Cf. CHUPUNGCO, A. J. Adaptação. Op. cit. p. 11.

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Uma imagem metafórica que ilustra e caracteriza esta dinâmica interdisciplinar no

processo da inculturação é a do trabalho da abelha219: o trabalho da abelha é coletivo. Numa

colmeia há uma diversidade de funções. Há abelhas que buscam novas fontes, outras colhem

o néctar, outras ainda mantêm limpa a colmeia. Cada qual tem sua função; umas colaboram

com as outras. E a colmeia vive dessa mútua colaboração. A rainha, porém, aparentemente

nada faz, mas dá unidade ao todo, sem intrometer-se nas funções das outras. Assim o processo

da inculturação.

A inculturação não é obra da autoridade, mas da criatividade eclesial. Cada um contribuindo com seu trabalho e comunicando aos demais onde há mate-rial que possa ser recolhido. Aos bispos, ao papa, compete ser ponto de refe-rência que cria a unidade, garante coesão, confirma os avanços, mas não se imiscui no labor diário da seleção, discernimento, criação. O pressuposto te-ológico desse trabalho da abelha é reconhecer que Deus já está presente nas diversas culturas, como o nectar se oferece na flor, antes de a abelha chegar. O Evangelho vem para dinamizar valores já existentes 220.

Os santos Padres, nos primeiros séculos da Igreja, souberam enfrentar o problema

do paganismo adaptando e incorporando à liturgia cristã valores culturais como “juramento de

serviço, a renúncia, a unção corporal como sinal sacramental, o leite e o mel dos neófi-

tos...”221. As soluções dadas por estes nossos pais na fé, diante de certos impasses pastorais,

primam pela flexibilidade e continuam sendo para os atuais pastores da Igreja, exemplos a

serem imitados222.

A Igreja latino-americana ainda deve um alto tributo às culturas indígenas e ne-

gras que, como vimos no desenrolar deste capítulo, foram literalmente ignoradas e excluídas

durante o período da colonização (séculos XVI-XIX) e da romanização (séc. XIX até inícios

do séc. XX). Este tributo poderá, aos poucos, ser quitado a partir do momento em que as co-

219 Cf. EDITORIAL. O trabalho da abelha; sobre o desafio da inculturação. In: Perspectiva Teológica. v. 79, [set./dez.] 1997, p. 293-298. 220 Ibidem, p. 296-297. 221 ALDAZÁBAL, J. Lecciones de la historia sobre la inculturación. Op. cit. p. 97. 222 Cf. Idem. Una carta de San Agustín sobre la liturgia. Phase, Barcelona, v. 158, [mar./abr.] 1987, p. 85-112. Trata-se da análise de uma carta que Agostinho escreveu a Jenaro. Este, provavelmente um leigo, fez-lhe uma consulta sobre temas litúrgicos. Nesta carta (carta n. 54), o bispo de Hipona, frente às questões levantadas pelo remetente, responde-lhe de forma magistral cada quesito e, ao mesmo tempo, aconselha-o a “não absolutizar mais que o necessário”, deixando a liberdade para as demais coisas. J. ALDAZÁBAL destaca a atualidade desta carta: (Santo Agostinho) “nos ensina atitudes muito importantes para o momento atual da liturgia” (Ibidem, p. 85); Outro exemplo de flexibilidade encontramo-lo na Tradição apostólica de Hipólito de Roma. Ao propor um formulário da prece eucarística ao bispo, Hipólito aconselha-o “que não é necessário que pronuncie as mesmas palavras... como se fizesse esforço de dizê-las de cor”. Cit. por CABIÊ, R. In: A. G. MARTIMORT (org.). A Igreja em oração.Petrópolis: Vozes, 1989, v. 2, p. 44.

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munidades cristãs começarem a ensaiar passos novos rumo a uma liturgia com rosto latino-

americano, “plural e contraditório, indígena, negro e mestiço. (...) Por isso mesmo, em todas

essas coisas deve prevalecer o respeito pelas diferenças que não podem ser absolutizadas nem

impostas em nome da fé em Cristo”223.

Enfim, além dos princípios, métodos, níveis, critérios... que regem a inculturação

litúrgica, previstos nos documentos oficiais da Igreja, também se deve ter clareza do que se

pretende inculturar.

No próximo capítulo, nos debruçaremos sobre o modalismo em geral e o moda-

lismo nordestino. A compreensão técnica das escalas modais é fundamental para melhor de-

tectarmos a presença destas estruturas na ML de Geraldo Leite Bastos. No repertório litúrgico

do tríduo pascal deste compositor pernambucano (que iremos analisar no capítulo IV desta

dissertação), encontramos uma farta presença de estruturas melódicas (modais) típicas da mú-

sica nordestina.

223 BEOZZO, J. O. Para uma liturgia com rosto latino-americano. Op. cit. p. 604.

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Capítulo III

________________________________________________________________ Modalidade gregoriana e “modalismo nordestino”

O modalismo se inscreve no rol de mais um assunto a ser tratado, ao lado da mú-

sica litúrgica e da inculturação, já contemplados nos dois capítulos precedentes. Embora cien-

te da amplitude e complexidade do assunto modos na música universal, limitar-nos-emos em

fornecer ao leitor alguns conceitos elementares e básicos, porém, satisfatórios em face aos

objetivos desta dissertação.

Na primeira seção, trataremos dos modos gregorianos, restringindo nossa aborda-

gem à conceituação dos termos modalidade e tonalidade, e à modalidade gregoriana como tal.

O modalismo nordestino será o objeto da segunda seção, ocasião em que faremos um levan-

tamento das estruturas modais mais comuns, além de uma sucinta abordagem sobre a questão

da origem dos modos na música nordestina.

3.1. Modos gregorianos

3.1.1. Conceituação (modo/modalidade; tom/tonalidade)224

Modalidade é a relação mútua existente entre os sons (tons) organizados por altu-

ra, numa escala. Tal relação se materializa em torno de um centro principal de atração, a tôni-

ca - também chamada de fundamental. Os níveis de tensão e relaxamento dos graus entre si e

destes com a tônica, dependerão da maneira como vêm organizados os tons e os semitons na

estrutura da escala. Em outras palavras: o modo é a maneira de ser de uma escala.

224 Estes apontamentos sobre modalidade e tonalidade serão baseadas em: SENA, H. de Oliveira. Modos. Rio de Janeiro: Escola de Música da UFRJ, [s.d.]. Mimeografado; POSTMA, J. Os modos gregorianos. Divinópolis, 1963. Mimeografado; PAZ, E. A. As estruturas modais na música folclórica brasileira. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993; KOELLREUTER, H. J. Contraponto modal do século XVI (Palestrina). Brasília: Musimed, 1996; MA-RIE-ROSE, Irmã. Canto Gregoriano. Rio de Janeiro: [s.n.], 1963, v. 1; CARDINE, E. Primeiro ano de canto gregoriano e semiologia gregoriana. São Paulo: Attar Editora/Palas Athena, 1989.

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Tonalidade é o que fixa em grau de altura ou gravidade o modo ou escala modal.

“Trocar o tom, é apenas transpor a melodia; trocar o modo, é desnaturá-lo”225. Em outras pa-

lavras: o tom dá um tipo de colorido ao modo. Ambos pertencem à ordem melódica, uma vez

que o modo marca os intervalos e o tom marca a agudeza ou a gravidade dos sons.

3.1.2. Modalidade gregoriana226

O canto gregoriano se estrutura em 8 modos: sendo 4 autênticos (protus, dêuterus,

tritus, tetrardus) e 4 plagais. Estes últimos, no entanto, não são distintos dos primeiros. A dife-

rença básica entre uma linha melódica autêntica e uma outra plagal, consiste no fato da plagal

encontrar-se numa tessitura mais grave do que a autêntica.

Cada modo tem duas notas (tons) principais: A tônica e a dominante. A tônica é a

nota mais importante do modo, pois é nela que a melodia repousa, provisória ou definitiva-

mente. É a nota cadencial que determina em qual modo a melodia se encontra227. Nos modos

autênticos e plagais, a tônica é a mesma. A dominante228 aparece no V grau dos modos autên-

ticos, e uma terça a baixo da dominante dos autênticos, nos plagais. Por exemplo: um ré au-

têntico tem como dominante o lá; um ré plagal, tem como dominante o fá. A dominante re-

presenta ação e movimento, é o tom central ao redor do qual a melodia se move.

Vejamos no quadro a seguir, os oito modos gregorianos, com suas

respectivas tônica (T) e dominante (D). Vale ainda observar que no 3º e 8º modos, a dominan-

te que, em via de regra deveria recair sobre a nota Si, foi deslocada para o Dó. O forte poder

atrativo da nota Si fez com que a corda recitativa (dominante) se deslocasse, naturalmente,

para o grau seguinte, o Dó. Por esta razão, os teóricos do canto gregoriano adotaram esta ex-

225 SOUZA, J. Geraldo de. Esta frase foi dita durante uma conferência sobre os modos, durante um encontro de músicos e liturgistas, no Rio de Janeiro, em 1989. 226 O nosso referencial para tratarmos dos modos será o canto gregoriano. Daí, as expressões comumente usadas nos manuais: modos gregorianos ou modos eclesiásticos, para distinguir dos modos gregos, que têm estruturas escalares distintas. 227 Esta regra só funciona para o canto gregoriano. No modalismo nordestino –, objeto da 2ª parte deste capítulo – muitas melodias terminam no III e até no V grau da escala, em outras, nem aparece a tônica. 228 José Geraldo de SOUZA chama-nos a atenção para não confundirmos a dominante com o V grau moderno. A dominante nos modos gregorianos, é o “tenor” ou corda de recitação para a salmodia (cf. anotações pessoais feitas durante uma conferência proferida pelo autor num encontro de músicos e liturgistas, no Rio de Janeiro, em 1989).

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ceção à regra universal, com o intuito de assegurar a afinação durante o executar deste canto

monódico229:

A seguir, apresentaremos dois quadros com a harmonização das escalas modais e

suas respectivas fórmulas cadenciais230:

229 No decorrer dos séculos VIII a X, sob influência das teorias harmônicas emergentes, o Si foi aos poucos sen-do deslocado para o Dó. Em muitas melodias gregorianas do 3º e 8º modos, o Si, e do 4º modo, o Sol, são consi-deradas como dominante. Por exemplo, no Credo I, o Sol e o Lá se alternam como dominante. 230 As harmonizações e fórmulas cadenciais foram elaborados por Joel POSTMA e apresentadas no CELMU (curso ecumênico de formação litúrgica e musical), Agudos (SP), 1992. Mimeografado.

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Estes modelos de harmonização das escalas modais e das fórmulas cadenciais

apresentados acima, constituirão a base para a harmonização (acordes com cifragem alfabéti-

ca) das peças que compõem o repertório (modal) do tríduo pascal do compositor GLB, que

serão apresentadas e analisadas no capítulo IV desta dissertação.

3.1.3. Modos de Lá, Si e Dó e a gênese do tonalismo

Na baixa Idade Média (século XVI), em face a teorias emergentes de que cada

tom da escala diatônica poderia ser a tônica de uma nova escala, em teoria, constata-se a exis-

tência de 7 modos autênticos e 7 plagais. Portanto, 14 modos.

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No referente à numeração gregoriana, os modos de Lá, Si e Dó não aparecem co-

mo modos independentes, mas sim inclusos, respectivamente, nos modos de Ré, Mi e Fá. Tal

procedimento se justifica pelo fato destes (Ré, Mi e Fá) serem muito parecidos com aqueles

(Lá, Si e Dó) 231. Portanto, no canto gregoriano, permaneceram os 8 modos ou seja: (7 X 2) –

(3X2) = 8 modos .

Vale lembrar que o canto gregoriano desconhece melodias no modo de Si autênti-

co, certamente pelo fato deste modo comportar uma 5ª diminuta e uma 4ª aumentada 232.

O crescente desenvolvimento da polifonia clássica [que teve o seu apogeu em

Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594)] e o avanço da harmonia tonal [cujo expoente

mais elevado é J. S. Bach (1685-1750)], contribuíram para o uso cada vez mais acentuado dos

modos jônio (Dó) e eóleo (Lá). Estes modos foram considerados os mais adequados à harmo-

nia, passando a ser conhecidos do século XVII em diante, respectivamente, como escala mai-

or e escala menor, em que a quase totalidade da música se baseia desde então. Inclusive J. S.

Bach, usando apenas estes dois modos, escreveu sua obra prima, O cravo bem temperado233.

231 Foi a partir do século XVI que os modos gregorianos ou eclesiásticos receberam nomes equivalentes aos nomes dos modos gregos: Dórico, frígio, lídio, mixolídio, eóleo, lócrio, jônio e seus plagais com o prefixo hipo. Na realidade, as estruturas escalares são totalmente distintas. Por exemplo: o modo dórico grego tem como tôni-ca a nota mi, enquanto o dórico gregoriano tem sua tônica em ré, dentre outras diferenças. 232 Normalmente, uma partitura de canto gregoriano traz a indicação do modo em que a peça se encontra. Por exemplo, o n. 1 corresponde ao primeiro modo ou seja, o modo de Ré autêntico, o n. 2, o modo de Ré plagal, e assim por diante. 233 O Cravo bem temperado é uma coleção de 24 prelúdios e fugas correspondentes aos 12 tons (maior e seu homônimo menor).

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Seu objetivo foi demonstrar que, com o novo sistema de afinação por temperamento igual234,

era possível tocar igualmente bem uma determinada melodia em qualquer tom. Vale lembrar

que apenas houve mudanças de tonalidade e não de modalidade. Bach usou, unicamente, duas

escalas (dó maior e dó menor) porém, transpostas em alturas diferentes, enquanto a estrutura

das mesmas permaneceu inalterada.

Apresentaremos, a seguir, a harmonização dos modos de lá, si e dó e suas respec-

tivas fórmulas cadenciais. Chamamos a atenção do leitor para o modo de si que é harmoniza-

do a partir do acorde de IV grau. Este procedimento se faz necessário, pelo fato do acorde de I

grau deste modo ser diminuto. A rigor, a ambientação harmônica gira em torno do modo de

mi. Vejamos:

234 A escala de temperamento igual surgiu na época de J. S. Bach e este foi o seu maior difusor. No temperamen-to igual, a “coma” de Pitágoras está distribuída igualmente entre os 12 intervalos da escala, em 7 oitavas. Isso se deu graças a engenhosos cálculos matemáticos. Este sistema permite a modulação entre quaisquer tons e a exe-cução de obras em todos os tons.

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Vale ainda observar que, embora a escala (tonal) de dó maior seja homófona à

escala (modal) do modo de dó, as resoluções cadenciais são diferentes. No modo de dó, o VII

grau (si) não tem caráter resolutivo (sensível) como na escala tonal de dó maior235.

Concluímos este item com as palavras de Hélio SENA:

O modo é mais universal e primitivo, pois sempre existiu no folclore musical de todos os povos. A tonalidade é um conceito mais recente, ligado à prática profissional da música ocidental, e surgiu com a ne-

235 Cf. PAZ, E. A. 500 canções brasileiras. Rio do Janeiro: Luís Bogo Editor, 1989, p. 33–36 (tom de dó maior); p. 150-152 (modo jônio ou modo de dó).

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cessidade de se estabelecer e uniformizar a altura dos sons para os ins-trumentos, a fim de facilitar a prática musical em conjunto 236.

3.2. Modalismo nordestino

A região Nordeste se distingue das demais regiões do Brasil sob vários aspectos,

inclusive o da sua música. Grande percentagem da música nordestina – tanto a folcmúsica

religiosa, como a MPB – apresenta algo bem distinto das demais regiões brasileiras: a presen-

ça de constâncias modais. Esta característica típica da música nordestina, tem levado muitos

músicos, musicólogos e etnomusicólogos, a se interessar por este assunto.

Mais uma vez, vale lembrar o caráter sumário deste capítulo: Não iremos envere-

dar em exaustivas investigações sobre as origens ou mesmo outras características peculiares

do modalismo nordestino... – isso em grande parte, já foi pesquisado237. Apresentaremos a

seguir, as estruturas escalares mais freqüentes no repertório da folcmúsica religiosa e MPB

(nordestinas). Acreditamos que isto seja o suficiente para demonstrar – especialmente no capí-

tulo IV desta dissertação - que o compositor e liturgo Geraldo Leite Bastos elaborou uma mú-

sica ritual inculturada no Nordeste brasileiro. Limitar-nos-emos em apresentar as estruturas

modais mais comuns na região Nordeste, além de algumas informações sumárias sobre a con-

trovertida teoria da origem dos modos na música brasileira nordestina.

3.2.1. Estruturas modais detectadas no Nordeste238

Ermelinda A. PAZ, baseando-se em farta bibliografia sobre o modalismo na músi-

ca brasileira chegou à conclusão de que os modos mais usados na música nordestina são:

236 SENA, H. de Oliveira. Modos. Op. cit. p. 2. 237 Principais nomes: SOUZA, J. Geraldo de. Contribuição rítmico-modal do canto gregoriano para a música popular brasileira. S. Paulo: Secretaria de Educação e Cultura, 1959; Idem. Características da música folclórica brasileira. Rio de Janeiro: MEC, 1969; SIQUEIRA, B. Pentamodalismo nordestino. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil, 1956; Idem. Influência ameríndia na música folclórica do nor-deste. Rio de Janeiro: [s.n.], 1951; SIQUEIRA, J. O sistema modal na música folclórica do Brasil. João Pessoa: [s.n.], 1981; SOLER, L. As raízes árabes na tradição poético-musical do sertão nordestino. Recife: [s.n.], 1978; SENA, H. de Oliveira. Modos. op. cit.; Idem. Oscilação e dualidade modal. Op. cit.; PAZ, E. A. As estruturas modais...Op. cit.; RODRIGUES, Jocy. Escalas modais da folcmúsica do Maranhão no caroço de tutóia. São Luís: Edições UFMA, 1983. 238 Para este sub-item (3.2.1): PAZ, E. A. Estruturas modais na música folclórica brasileira. Op. cit. p. 116-117.

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- O modo de sol239 (mixolídio): Modo maior, semitons entre III-IV e VI-VII graus (VII grau

abaixado);

- A escala hexacordal: Modo maior, semitons entre III-IV graus (ausência do VII grau);

- O modo de fá (lídio): Modo maior, semitons entre IV-V e VII-VIII (IV grau elevado);

- O modo de lá (eóleo): Modo menor, semitons entre II-III e V-VI graus (também chamado

de escala menor natural);

- O modo de Ré (dórico): Modo menor, semitons entre II-III e VI-VII graus (VII grau abai-

xado e VI grau elevado);

- O Modo de mi (frígio): Modo menor, semitons entre I-II e V-VI graus;

- Escala Pentatônica maior: Escala de 5 tons inteiros;

- Escala Pentatônica menor: Escala de 5 tons inteiros, com a 3ª menor;

- Escala mista maior: Modo maior, semitons entre IV-V e VI-VII (IV grau elevado e o VII

abaixado: mistura dos modos de sol e fá);

- Escala mista menor: Modo menor, semitons entre I-II e VI-VII graus (mistura dos modos

de mi e ré).

A seguir, os exemplos destas estruturas modais, acompanhados dos nomes de seus

defensores240:

239 Embora a estrutura escalar seja a mesma dos modos gregorianos, adotaremos a terminologia modo de sol, modo de lá etc., indicando com esta nomenclatura, o nome da tônica ou nota fundamental do modo. Inclusive, foi esta a terminologia adotada no Hinário Litúrgico da CNBB. Também julgamos desnecessário especificar se tais modos são autênticos ou plagais, uma vez que a estrutura escalar é idêntica, conforme vimos no item 3.1.2. 240 Este quadro, com as estruturas modais, foi extraído de: PAZ, E. A. Estruturas modais... Op. cit. p. 116-117.

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No repertório do tríduo pascal do compositor GLB, que no capítulo IV iremos

apresentar e analisar, a incidência do uso dos modos se verifica da seguinte maneira:

- Modo de Lá: 6 peças;

- Modo de Sol: 4 peças;

- Modo de Ré: 3 peças;

- Modos de Sol e Lá alternados: 2 peças;

- Modo de Mi: 1 peça.

3.2.2. Teorias sobre a origem do modalismo nordestino

Muitos pesquisadores se ocuparam sobre questões ligadas à origem do modalismo

nordestino. As opiniões são diversas, porém, complementares. Mais uma vez, servindo-nos do

engenhoso trabalho elaborado pela professora Ermelinda A. PAZ241, apresentaremos, a seguir,

um quadro sintético e panorâmico – elaborado pela mesma autora - com os principais autores

e suas respectivas teses sobre a procedência dos modos na música nordestina:

A influência ibérico-moura é, atualmente, a mais aceita entre os etno-

musicólogos, por várias razões:

1) O próprio tipo físico da maioria dos nordestinos que, conforme A. SUASSUNA, não é o

do europeu, nem do indígena, nem do africano, mas um tipo mouro que persistiu no Nor-

deste brasileiro242.

241 Cf. Ibidem, p. 118-119 242 Cf. SUASSUNA, A. citado por PAZ, E. A. Estruturas modais... Op. cit. p. 22.

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2) Os costumes alimentícios como: a tradicional buchada de carneiro, que é uma alimentação

usada na Síria243; as coalhadas e os requeijões sertanejos, os cuzcuz – o alcatruz dos ára-

bes244, etc.

3) O estilo do canto popular nordestino como o aboio: “- o que são os nossos aboiares senão

uma assimilação das zambras e dos hudas cantados pelos tropeiros árabes? – pergunta

Guilherme MELO245; o canto narrativo, mais recitado que cantado. Entre os árabes este ti-

po de canto é chamado de lingui-lingui: a lenga-lenga da gíria dos cantadores246.

A influência ibérico-moura na cultura nordestina se estabeleceu certamente no

início do século XVIII, quando um grupo de colonizadores portugueses - que já havia assimi-

lado elementos da cultura árabe - se estabeleceu na região Nordeste, especialmente nos esta-

dos da Bahia e de Pernambuco247.

Embora seja determinante a influência ibérico-moura na música nordestina, não

podemos ignorar a forte influência africana que, por coincidência ou não, também é marcante

nos estados da Bahia e de Pernambuco. Sugerimos uma fusão entre as duas teorias, passando

a chamar-se, a partir de agora, de influência ibérico-moura e africana.

Dando-nos conta da dificuldade para se chegar a um consenso quanto à questão da

origem das constâncias modais presentes na música nordestina, embatemos numa outra ques-

tão com grau de complexidade similar: - Por que a música regional nordestina é tão prodigio-

sa no uso das escalas modais, enquanto nas demais regiões brasileiras esta incidência é quase

nula?

Apoiados nas conclusões de E. A. PAZ248, respondemos: uma das (muitas) causas

foi o fato de o interior do sertão nordestino ter sido poupado de colonizações modernas, como

as italianas e alemãs. Estas culturas difundiram o uso de instrumentos harmônicos249 como a

243 Cf. BARROSO, G.cit. por PAZ, E. A. Estruturas modais... Op. cit. p. 21. 244 Cf. SOLER, L. cit. por PAZ, E.A. Estruturas modais... Op. cit. p.21-22. 245 MELO, G. cit. por PAZ, E. A. Estruturas modais... Op. cit. p. 21. 246 Cf. SOLER, L. cit. por PAZ, E. A. Estruturas modais... Op. cit. p. 22. 247 Cf. PAZ, E. A. Estruturas modais... Op. cit. p. 22. 248 Para o que segue: PAZ, E. A. Estruturas modais... Op. cit. p. 17-23. 249 Utilizamos o termo harmônicos para qualificar aqueles instrumentos que basicamente são tocados à base de acordes (acompanhamento harmônico), enquanto acompanham uma determinada melodia. Inclusive o acordeão já traz estes acordes prontos nos baixos (botões tocados pela mão esquerda do instrumentista).

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gaita e o acordeão. Por exemplo, o predomínio do modo maior (modo de dó) na música sul-

brasileira, levou alguns teóricos à constatação de que muitos tocadores - enquanto acompa-

nhavam as danças populares com gaitas e acordeões - transpunham-nas para o modo maior,

reduzindo a harmonia das mesmas, a três acordes básicos: de tônica (I grau), de subdominan-

te (IV grau) e de dominante (V grau) 250.

Outro fator que contribuiu para as alterações das estruturas modais pode ser cons-

tatado na falta de conhecimento técnico-musical de muitos que se propõem a transcrever me-

lodias, acrescentando por conta própria, alterações na altura das notas. Uma ocorrência bas-

tante comum se dá, por exemplo, no modo menor de lá que vem transcrito com o VII grau

elevado, alterando substancialmente a estrutura da escala e a resolução cadencial.

O fato de os nordestinos terem preservado as características originais de sua músi-

ca se deve, em grande parte, ao freqüente uso de instrumentos melódicos251 como a viola, a

rabeca, a flauta (pífano...). Estes e outros instrumentos do gênero não interferem de forma

determinante na harmonia e na conseqüente alteração das estruturas modais. O mesmo se jus-

tifica quanto ao uso de instrumentos de percussão (zabumba, triângulo, chocalho, agogô...)

típicos nordestinos.

Enfim, há um consenso quanto à possibilidade de a região Nor- deste ter sido

colonizada por portugueses descendentes diretos da cultura ibérico-moura252. Uma vez estabe-

lecidos aqui no Brasil, a cultura ibérico-moura foi enriquecida com a cultura africana. Desta

fusão cultural surgiu um estilo de música característico e distinto das demais regiões brasilei-

ras. A pouca incidência da presença de colonos provindos da Europa na região Nordeste cola-

borou, certamente, para que a música nordestina mantivesse seu caráter regional e modal.

250 Cf. PAZ, E. A. Estruturas modais... Op. cit p. 18, citando Paulo Luiz Viana GUEDES que fala sobre a música do Rio Grande do Sul: “Não conheço melodia escrita em outro modo. E mais que isto: música de outros Estados, cantadas em menor, aqui mudam de modo. Enfim, a música do Rio Grande do Sul, tal como a conhecemos hoje, é um prolongamento da gaita” (Ibidem). 251 Ao contrário dos instrumentos “harmônicos” os melódicos são comumente usados no dobramento, ou mesmo no ponteamento das melodias. Essa forma de acompanhamento instrumental é facilmente perceptível nas canto-rias populares no Nordeste. 252 PAZ, E. A. Estruturas modais... Op. cit. p. 17-18. esta autora, citando Rodney GALLOP, nos informa que a região oriental portuguesa, pelo fato de, por muito tempo, ter sido menos densamente povoada - e também pelo fato de os povos dessa região terem tido menos contato com instrumentos melódicos e mais instrumentos de percussão, como por exemplo, o adufe –, esta região conservou estruturas arcaicas de sua música. Provavelmen-te, a cultura nordestina tem a sua gênese a partir de imigrantes desta região portuguesa. Os instrumentos de per-cussão, como vimos acima, não interferem na melodia e, muito menos ainda, na harmonia.

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Conclusão

Conforme alertamos (na introdução), o capítulo III - sem a pretensão de esgotar o

assunto modalismo - serviu-se de alguns elementos básicos sobre o modalismo (gregoriano e

nordestino) como sendo um instrumental teórico a mais para a elucidação do objeto formal

desta dissertação.

Nosso objetivo foi demonstrar que as estruturas modais permitem aos composito-

res (nordestinos ou não), uma maior variedade de riquezas melódicas e cadenciais, não se

limitando ao já desgastado sistema tonal que se estrutura, basicamente, sobre duas escalas:

uma maior e outra menor (dó maior e dó menor), predominante em quase todo o repertório de

música ritual usada na liturgia, em todo o território nacional.

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Pe. Geraldo Leite Bastos Por Fernando (vitralista)

Escada – PE, 1990.

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Capítulo IV ________________________________________________________________ Análise teológico-litúrgica do repertório do tríduo pascal do compositor Geraldo Leite Bastos

Este capítulo corresponde, basicamente, ao núcleo central de nossa dissertação. Os

três capítulos precedentes tiveram como principal função, aprofundar os conceitos fundamen-

tais: Música ltúrgica (capítulo I), Inculturação (capítulo II) e Modalismo (capítulo III). Em

outras palavras, tudo o que fizemos até aqui, foi construir um instrumental que nos ajudará a

delinear os contornos do objeto formal desta dissertação: a “análise teológico-litúrgica e mu-

sical do repertório do tríduo pascal inculturado no Nordeste brasileiro através de constân-

cias modais, do compositor Geraldo Leite Bastos”.

Este último capítulo, dividido em duas seções, percorrerá os seguintes passos: em

primeiro lugar, situaremos o homem, o pastor, o liturgo e o compositor Geraldo Leite Bastos;

em seguida, faremos uma análise teológico-litúrgica e musical do repertório do tríduo pascal

do compositor em questão.

4.1. Geraldo Leite Bastos

Geraldo Leite Bastos, era o quinto dos sete filhos do casal Aloísio Tenório do Re-

go Bastos e Izabel Leite Bastos. Nasceu em Moreno (PE) a 12/12/1934. Foi ordenado presbí-

tero da Arquidiocese de Olinda e Recife a 08/12/1961, foi pároco fundador da Paróquia de

Nossa Senhora do Bom Conselho, em Ponte dos Carvalhos (1962-1980), primeiro adminis-

trador paroquial da atual paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Morro no Recife (1975-

77), quarto pároco da paróquia de Nossa Senhora da Apresentação de Escada (1980-87). Fale-

ceu em 19/04/1987, Domingo da Ressurreição.

Baseados em depoimentos de familiares, amigos e contemporâneos, passaremos a

descrever algumas características do homem, do pastor, do liturgo e do compositor Geraldo

Leite Bastos, numa tentativa de situá-lo no contexto histórico e sócio-cultural em que viveu.

Certamente, as considerações que apresentaremos a seguir - colhidas informalmente entre

várias pessoas que conviveram com GLB: pessoas de níveis sócio-culturais diversos - nos

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ajudarão a compreender o universo de GLB, ou seja, o contexto em que surgiu sua obra musi-

cal.

4.1.1. O homem

Sobre o homem GLB, falaremos a partir de três aspectos: sua infância em Moreno

(PE), sua presença enquanto seminarista em Olinda (PE) e Salvador (BA), além de um sucinto

perfil psicológico do mesmo.

4.1.1.1. A infância em Moreno (PE)

O menino Geraldo, conforme depoimento de sua irmã Gicélia LEITE253, tinha um

temperamento dócil e calmo. E, desde cedo “era muito chegado às coisas da Igreja”. Gostava

de restaurar imagens de santos para sua avó e, no grande quintal de sua casa, na pequena ci-

dade de Moreno (PE), sua diversão predileta era enfeitar andores com flores e fazer procissões

juntamente com outros meninos da vizinhança. Pelo fato de gostar tanto dessas coisas de Igre-

ja, Geraldo recebeu o curioso apelido de lombriga de padre.

O adolescente Geraldo era estudioso e muito hábil em matemática. Seu pai, per-

cebendo tal habilidade do filho, quis que o mesmo fosse um engenheiro. Mas este desejo do

Sr. Aloísio Tenório não foi concretizado: estando o pai na secretaria do colégio para efetuar a

matrícula do futuro engenheiro num curso científico, qual não foi sua surpresa quando ouviu

da boca do filho que não queria ser engenheiro e, sim, um padre. O susto foi grande tanto para

o Sr. Aloísio como para os demais familiares; pois até então, Geraldo nunca dissera que dese-

java se tornar padre. A princípio, seu pai não aceitou, temendo que aquilo fosse uma decisão

precipitada. Mas o menino insistiu, foi para o seminário, ordenou-se presbítero e exerceu bri-

lhantemente este ministério até o fim de sua vida. Em suma, até a entrada no seminário, GLB

teve uma infância e adolescência comuns a qualquer outro menino saudável de sua cidade.

253 LEITE, Gicélia. Depoimento gravado por nós, em fita cassete, em sua residência em Brasília (DF), em 20/06/1999. Arquivo pessoal nosso. N. B.: Gicélia é irmã caçula de GLB.

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4.1.1.2. No seminário

Geraldo ingressou no seminário de Olinda com a idade aproximada de15 anos e

concluiu seus estudos filosófico-teológicos no Seminário Maior de Salvador (BA). Já como

seminarista, Geraldo escrevia e encenava peças de teatro. Gicélia LEITE se recorda de uma

peça sobre Nossa Senhora de Fátima que fora encenada com muito sucesso na cidade de Mo-

reno. Com o dinheiro arrecadado nas bilheterias com essas peças de teatro, Geraldo conseguiu

construir uma capela no arraial de Buscaú (zona rural), município de Moreno. Nesta capela

encontra-se um estandarte de São Sebastião pintado pelo próprio Geraldo e, no altar da mes-

ma igreja, se lê a bela frase do evangelho: “Convém que Ele cresça”254. São também incontá-

veis as imagens históricas de santos que este artista auto-didata255 restaurou.

GLB quis continuar desenvolvendo seus dons artísticos como a pintura e a escul-

tura, mas encontrou muitos obstáculos e incompreensão da parte de seus superiores no semi-

nário. Conforme o artista plástico Genival LIMA, certa vez, o Pe. Geraldo confidenciou-lhe

que, num determinado dia, o reitor do seminário o chamou e o aconselhou a parar de pintar e

esculpir, argumentando que “este trabalho não convinha a um padre”. Geraldo, embora res-

sentido, obedeceu. Não podendo pintar ou esculpir, GLB enveredou para o campo da música,

como uma espécie de “válvula de escape”256. Uma vez ordenado padre, GLB pôde trabalhar e

desenvolver, sem impedimentos, seus dons artísticos.

O arcebispo de João Pessoa (PB), D. Marcelo Pinto CARVALHEIRA - que na

década de 60 fora diretor espiritual de GLB, no seminário arquidiocesano de Olinda e durante

os anos 70, bispo auxiliar da arquidiocese de Olinda e Recife – realçou o caráter espontâneo e,

até certo ponto, desleixado do então seminarista Geraldo Leite Bastos:

Geraldo não se enquadrava dentro dos padrões do seminário. (...) Seu jeito informal, à primeira vista, dava a impressão de uma pessoa sem educação. Mesmo diante de qualquer autoridade, Geraldo não se incomodava de sentar colocando o pé sobre a cadeira (risos). Mas quem convivia com ele, sabia que por detrás desta aparente rudeza, se escondia um homem de uma pro-funda vida espiritual. Geraldo era capaz de passar horas a fio em oração si-lenciosa 257.

254 Cf. Jo 3,30. 255 Sobre o Geraldo artista falaremos mais adiante, no item “o compositor”. 256 Cf. LIMA, Genival. Depoimento gravado em fita cassete, por nós, em sua residência, em Ponte dos Carva-lhos, em 09/07/1999. Arquivo pessoal nosso. 257 CARVALHEIRA, Marcelo P. Depoimento gravado em fita cassete, por nós, na sede da CNBB, em Brasília (DF), em 23/08/1999. Arquivo pessoal nosso.

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D. Marcelo revelou-nos também que, por pouco, GLB teria sido desaconselhado

de ser ordenado presbítero, e se orgulha em dizer que graças a ele – diretor espiritual de Ge-

raldo – a situação fora contornada. Inclusive o fato de GLB ter ido estudar teologia em Salva-

dor (BA) foi um indício deste impasse em que se encontravam os então diretores do seminário

de Olinda. E conclui:

A atividade pastoral do Pe. Geraldo em Ponte dos Carvalhos foi uma surpre-sa, sobretudo para aqueles que achavam que ele seria um tipo de padre bu-fão, que gosta de dar boas gargalhadas, algo artificial. Geraldo foi um místi-co e um pastor profundamente sensível às necessidades e à vida do povo, sustentado por uma espiritualidade muito sólida”258.

4.1.1.2. Perfil psicológico do homem Geraldo Leite Bastos259

O homem Geraldo Leite Bastos tinha uma personalidade marcada por traços bem ca-

racterísticos e, talvez aí, estejam as principais razões que justificam a sua profunda sensibili-

dade humana e fé exemplares. A médica e psiquiatra baiana, Zélia Rocha SERRA260 – que

conheceu GLB, no ano de 1960, enquanto seminarista, em Salvador - aponta cinco caracterís-

ticas fundamentais de sua personalidade:

1. Sua extraordinária capacidade de amar: esta primeira característica, sempre o levou a se

preocupar com o bem-estar das pessoas de forma gratuita, incondicional, sem quaisquer

preconceitos de raça, cor, posição social, credo, etc.:

Creio que daí advinha sua força, (...) sua secreta alegria. Creio que isso se-dimentava sua fé. Talvez a secreta alegria fosse a sua fé. (...) Geraldo costu-mava dizer que a escolha para o sacerdócio era o que dava sentido à sua vi-da. Esta escolha possibilitava-lhe a doar-se, com mais liberdade, ao outro. Via sempre Deus presente no coração de cada pessoa humana. (...) Embora tivesse uma atitude extremamente solidária, atenta e cuidadosa para com os seus colegas e companheiros de seminário, a sua ação não se restringia ao âmbito interno do seminário, mas extrapolava seus muros 261.

2. Extrema exigência para com as pessoas que ele amava. SERRA testemunha, que GLB

sempre cobrava de seus amigos e colegas de seminário uma atitude de vida coerente, bus-

258 CARVALHEIRA, Marcelo P. (do mesmo depoimento acima). 259 Este subtítulo quer ser apenas um indicativo de alguns elementos que constituem a personalidade de GLB. Não é o nosso objetivo enveredar pelo caminho da psicologia ou mesmo da psicanálise. Queremos apenas lançar mão de alguns dados fornecidos pela médica e psiquiatra Zélia Rocha SERRA, os quais, certamente nos ajudarão a compreender o homem, o pastor, o liturgo e o compositor GLB. 260 Para o que segue, sobre as características da personalidade de GLB: Cf. SERRA, Zélia R. Depoimento grava-do em fita de vídeo, fornecido gentilmente a nós, pela família de Gicélia Leite, Brasília, [s.d.]. Arquivo pessoal nosso. 261 SERRA, Zélia R. (do mesmo depoimento acima).

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cando sobretudo na solidariedade e na partilha, testemunhar o Evangelho. Mais tarde, seu

relacionamento com os paroquianos de Ponte dos Carvalhos, Morro da Conceição e Esca-

da, não foi diferente. Muitos testemunhos de ex-paroquianos seus confirmam este aspecto

da personalidade de GLB.

3. Porém, esta exigência era sempre carregada de ternura, outra marca de sua personalidade.

GLB tinha uma capacidade incomum para acolher, escutar e consolar as pessoas; “dava-

nos a impressão de estar de corpo aberto para o mundo e sempre com um olhar carregado

de ternura”262. Talvez algo parecido à ternura do bom pastor, que conduz suas ovelhas até

as “águas tranqüilas e repousantes”263, ou mesmo à do pai do filho pródigo264 que, quando

vê o filho transviado retornando ao convívio do lar, corre, abraça-o, cobre-o de beijos e

prepara-lhe uma festa. GLB buscava sempre aliviar, mesmo que parcialmente, os sofri-

mentos e tribulações de todos os que iam até ele à procura de uma palavra amiga, de um

afago. A assistente social Maria Auxiliadora ALVES que, juntamente com outros jovens

(Genival Lima, Genilson M. Santana, José Maria Tavares...), morou na casa paroquial de

Ponte dos Carvalhos, convivendo bem de perto com GLB, afirma: “Se por um lado, Pe.

Geraldo era severo, por outro, ele era extremamente carinhoso para conosco. Ele se preo-

cupava com o nosso bem-estar. Ele não gostava de ver os seus filhotes aperreados, sofren-

do, não. Ele sempre estava junto, dando-nos sempre uma força...”265.

4. Outra característica também apontada por SERRA e confirmada por outras pessoas, a res-

peito de GLB, é a humildade. “Ele nunca se colocava acima de ninguém”. Toda a sua pas-

toral estava centrada nesta virtude que ele soube muito bem integrar em sua personalidade

e transmiti-la aos outros. Inclusive, uma composição musical que ele muito apreciava trata

exatamente desse tema:

Ninguém é melhor do que ninguém Todo mundo está caminhando Ninguém é mestre de ninguém Todo mundo está aprendendo Ninguém é o senhor de ninguém Todo mundo está pra dar, pra servir E amar na liberdade. O jeito melhor de caminhar É de mãos dadas

262 SERRA, Zélia R. (do mesmo depoimento acima). 263 Cf. Sl 23(22). 264 Cf. Lc 15, 11-32. 265 ALVES, Maria Auxiliadora. Depoimento gravado em fita cassete, por nós, na residência de Genival Lima, em Ponte dos Carvalhos, em 12/07/1999. Arquivo pessoal nosso.

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O jeito melhor de aprender É saber ouvir O jeito melhor de servir É amar na liberdade 266.

De fato, GLB não se colocava acima de ninguém; sua relação com todas as pesso-

as era de igual para igual. D. Marcelo Pinto CARVALHEIRA se recorda da célebre visita do

Cardeal Suenens, da Bélgica, à Ponte dos Carvalhos e da informalidade com que foi recebido.

E conclui: “Geraldo não fazia cerimônia com ninguém, até mesmo com as maiores autorida-

des”267.

5. Enfim, GLB “era uma pessoa que primava pelo fazer coletivo”268. Geraldo se encantava

pela convivência comunitária. Ele não suportava fazer ou até mesmo decidir as coisas so-

zinho269. Viveu sempre cercado de pessoas. A casa paroquial de Ponte dos Carvalhos era

uma espécie de convento improvisado: existia ali uma vida comunitária informal e, ao

mesmo tempo, tão disciplinada, que era de causar inveja a muitas comunidades religiosas

que, muitas vezes convivem sob um mesmo teto, de forma fria e artificial. Genilson M. de

SANTANA informa-nos que

no final de cada dia, ele (GLB) deitado em sua rede, e nós que morávamos na mesma casa (eu, Genival, Dôra, Tonho, Geraldo...), sentávamos no chão e conversávamos sobre as atividades do dia que passara e planejávamos as do dia seguinte. Era a hora do ‘acerto de contas’. Era algo muito informal, po-rém, formativo para nós, jovens idealistas, daquele tempo. Com as demais equipes de trabalho da paróquia (como por exemplo, as de liturgia), nós nos reuníamos no domingo à noite, após a missa. Tudo era muito bem discutido, avaliado e planejado 270.

GLB nunca fez questão de considerar qualquer trabalho realizado – mesmo os de

cunho artístico (pintura, escultura, vitral...) – como obra exclusiva sua, mas fazia questão de

266 BASTOS, G.L. Loas e lamentos. Ponte dos Carvalhos: Paróquia N. Sra. do Bom Conselho, 1973, p. 126-127. Este texto também veio impresso no cartão-lembrança da morte de GLB. Esta composição musical é de autoria de Irene Gomes. 267 Cf. CARVALHEIRA, Marcelo P. (do mesmo depoimento acima). Acompanhado do Arcebispo D. Helder Câmara e do bispo auxiliar D. Marcelo Carvalheira, o Cardeal Suenens, primaz da Bélgica, visitou a paróquia de Ponte dos Carvalhos e presidiu uma animada eucaristia preparada pela comunidade anfitriã, em 02/09/1967. 268 SERRA, Zélia R. Depoimento gravado em fita de vídeo, [s.d.]. Arquivo pessoal nosso. 269 De fato, já em 1963, um ano depois de sua chegada à Ponte dos Carvalhos, GLB assim desabafa: “Sinto-me muito só diante da monstruosidade dos problemas. Precisaria de uma equipe de trabalho, composta de gente preparada para isto”. Cf. LIVRO de Tombo da paróquia de N. Sra. do Bom Conselho da Ponte dos Carvalhos, p. 17v . A partir daqui será apresentado como LIVRO de Tombo. 270 SANTANA, Genilson Marcelino de. Depoimento gravado em fita cassete, por nós na residência de Genival Lima, em Ponte dos Carvalhos, em 12/07/1999. Arquivo pessoal nosso.

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incluir todos as pessoas, por mais ínfima que fosse sua colaboração. “Ele nunca quis ‘brilhar’

sozinho” - lembra-nos Zélia R. SERRA271.

Agregado a este espírito eminentemente fraterno de GLB estava o da partilha.

SANTANA arrisca em afirmar que

talvez o ponto central da teologia pastoral do Pe. Geraldo está na sua sua ca-pacidade de levar todos a refletir, a partilhar. (...) Um gesto simbólico e que muito nos impressionava era o da partilha das coletas dominicais. Existia uma equipe que cuidava disso: assim que terminava a missa, o dinheiro arre-cadado na coleta era imediatamente distribuído para as famílias mais pobres da comunidade 272.

Ainda sobre este assunto (a partilha), M.A. ALVES arremata:

(...) Quando vivíamos na casa paroquial de Ponte dos Carvalhos, se tivesse um só pão em casa, este era partilhado igualmente, entre nós. Isto aprende-mos do Pe. Geraldo, que era o primeiro a dar o exemplo. Houve um período em que nós passamos apertados com pouco dinheiro; o próprio Pe. Geraldo ia para a cozinha e juntava tudo o que podia e fazia verdadeiros milagres com as sobras de comida. Inclusive lembro-me da famosa farofa de banana que sempre fazíamos para aumentar o almoço (risos). (...) Aprendi com o Pe. Geraldo que, até o pouco ou o quase nada, é possível partilhar. Esta lição de vida eu a passo, diariamente, para os meus filhos...273.

Se por um lado, GLB se confrontou com situações críticas em sua própria casa –

como esta vivida e testemunhada por ALVES - por outro, ele também aprendeu de sua gente,

que mesmo nas casas mais pobres, o pouco que se tinha era passível de partilha com aqueles

que nada possuíam.

A sugestiva canção “Antônio Jó” - uma das músicas preferidas de GLB – expres-

sa a experiência de solidariedade por ele vivenciada entre os empobrecidos de Ponte dos Car-

valhos. Ei-la:

Assisti um quadro Na casa de Antônio Jó: Antônio tinha oito filhos, Levou um pão para casa, //:Todos queriam o bico mas o pão era um só!:// Um prato de pirão d’água, Todos sentados ao redor, No centro do prato, um ovo

271 SERRA, Zélia R. Depoimento gravado em fita de vídeo. Arquivo pessoal nosso. 272 SANTANA, Genilson Marcelino de. Arquivo pessoal nosso. 273 ALVES, Maria A. Arquivo pessoal nosso.

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//:Todos queriam o ovo mas o ovo era um só!:// Ao chegar a noite, A confusão foi maior, - Quem dorme na beira da cama, cai - //:Todos queriam o canto mas o canto era um só!:// Me lembrei daquela frase: “O pão de cada dia...” Recordei aquela cena: “A ceia do Senhor...”. Então eu refleti: //:Deus é um só, dá a todos seu amor!:// 274.

Um episódio histórico - e que certamente foi decisivo para GLB, abraçar de corpo

e alma a causa do empobrecido e a espiritualidade da ajuda mútua (partilha) - aconteceu entre

ele e sua amiga Renata do Nascimento CORREIA. Ela mesma nos relatou este fato:

Certo dia – no ano de 1963, um ano depois de sua chegada à Ponte dos Car-valhos – Pe. Geraldo fez-me a seguinte confissão: “Minha comadre, vou-me embora daqui, porque esta paróquia é muito pobre”; eu lhe respondi: “Não vai não, meu compadre, porque um pobre sempre ajuda o outro. Levanta a cabeça, vamos em frente”! Aí ele se convenceu de vez, que Ponte dos Carva-lhos era o seu melhor lugar e, de fato, o foi. Antes de morrer, pediu para ser sepultado aos pés de sua madrinha e nossa padroeira, a Virgem do Bom Conselho 275.

A intensa vida fraterna que acontecia na casa paroquial de Ponte dos Carvalhos

era talvez o esboço de um sonho maior de GLB: ele sonhava em fundar um tipo de mosteiro

ecumênico junto à capela de Santo Antônio. Esta ermida fica situada numa propriedade parti-

cular, cercada por um grande canavial, próximo à Ponte dos Carvalhos. Infelizmente, este

sonho não se concretizou. O permanente conflito entre GLB e os usineiros276, donos daquelas

terras, dificultaram e inviabilizaram o processo. SANTANA nos relatou que chegou a parti-

cipar de algumas reuniões para debater a viabilidade do projeto com as “instâncias superiores”

da arquidiocese de Olinda e Recife. Da parte da arquidiocese, houve pouco empenho e inte-

274 Informantes: LIMA, Genival; SANTANA, Genilson; M; ALVES, Maria Auxiliadora. Depoimentos gravados em fita cassete. Arquivo pessoal nosso. N.B.: Não sabemos ao certo, de quem é a autoria desta canção. 275 CORREIA, Renata do Nascimento. Depoimento gravado em fita cassete, por nós, na residência de Genival Lima, em Ponte dos Carvalhos, a 09/07/1999. Arquivo pessoal nosso. Na Igreja matriz de Ponte dos Carvalhos estão os restos mortais de GLB. 276 GLB enfrentou sérios conflitos com os donos das usinas de álcool da região. A maior delas era a de Bom Jesus, na mesma região onde ficava situada a capela de Santo Antônio. Assim que GLB tomava conhecimento de alguma atrocidade cometida contra os operários daquela usina, ele corria e denunciava publicamente, inclusive durante as celebrações litúrgicas. Por isso ele era um tipo de persona non grata para estes poderosos da região canavieira de Pernambuco que, constantemente, o ameaçavam de morte.

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resse. “Isto foi pena – lamenta SANTANA - pois sentíamos que o Pe. Geraldo tinha uma vo-

cação especial de pai espiritual- se é que existe tal expressão. Ele sempre se colocava numa

atitude de pai, de conselheiro, de amigo”277.

Célia DE BIASE, enquanto falava sobre o espírito fraterno de GLB, assim se ex-

pressa: “Se existia alguma coisa que o irritava muito, era saber de alguma inimizade e desuni-

ão. Pe. Geraldo era irmão de todos: dos ricos, dos pobres, dos velhos, dos moços, das crian-

ças..., cumprimentava a todos da mesma maneira, sempre com a mesma alegria e com toda a

transparência”278. Na mesma linha, Reginaldo VELOSO endossa: “Geraldo teve muito cuida-

do de viver uma experiência comunitária onde a fraternidade fosse alguma coisa de muito

concreto, a partir de gestos simples diante dos desafios do quotidiano - num clima de irman-

dade entre as pessoas - que tinham o seu ponto alto na celebração litúrgica”279.

4.1.2. O pastor

Aproveitando as mesmas palavras de Margarida PEREIRA, “falar de Pe. Geraldo

é como o infinito, não se consegue um limite. Para todos que o amamos e conhecemos foi um

pastor, irmão, conselheiro e amigo...”280. A atividade pastoral e litúrgica de GLB não se res-

tringiu apenas ao âmbito da Igreja particular (católica) de Olinda e Recife, mas se estendeu a

outros segmentos religiosos (comunidades evangélicas e de terreiros de umbanda e candom-

blé). GLB também se fez presente na longínqua Europa, deixando por lá grandes amigos e

admiradores281.

4.1.2.1. O “pastor da Ponte”: pastor da “Nação do Divino”

277 Cf. SANTANA, Genilson Marcelino de. Arquivo pessoal nosso. 278 DE BIASE Célia. Depoimento gravado por nós, em fita cassete, em sua residência no Recife (PE), em18/02/1999. Arquivo pessoal nosso. 279 VELOSO, Reginaldo. Depoimento gravado em fita cassete, no Recife, em 18/02/1999. Arquivo pessoal nos-so. 280 PEREIRA, Margarida. Depoimento escrito, Ponte dos Carvalhos, [s.d.]. Arquivo pessoal nosso. 281 GLB é até hoje lembrado nas comunidades paroquiais da região de Nápole (Itália), em Freiburg (Alemanha) e Taizé (comunidade ecumêncica no interior da França). São preciosos os depoimentos por escrito, de Pe. Giovan-ni COPPOLA (pároco de Vico Equense, região de Nápole – Itália); Nino SAVARESI (atual prefeito de Vico Equense - Itália), Ansgar FLEISCHER (da Universidade de Freiburg - Alemanha) e Dietmar BADER (Professor de teologia e diretor da Academia Católica de Freiburg); Irmão MICHEL da comunidade ecumênica de Taizé (Alagoinhas, BA); Além de outros depoimentos de parentes, amigos e paroquianos brasileiros que, ao longo do texto, serão devidamente apresentados. Arquivo pessoal nosso.

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Geraldo costumava assinar suas cartas/comunicações pastorais, da seguinte forma:

“Pe. Geraldo Leite, pastor da Ponte”. Afinal de contas, o arraial da Ponte dos Carvalhos,

situado a uns trinta quilômetros do centro de Recife, foi o lugar por excelência, onde GLB

animava uma belíssima liturgia e um amplo trabalho comunitário. Esta comunidade eclesial

foi ‘batizada’ pelo seu pastor com o belo nome de “Nação do Divino”. O Pe. Reginaldo VE-

LOSO, em recente entrevista concedida a nós282, descreve a sensibilidade pastoral de GLB

naquele contexto social e desafiador de Ponte dos Carvalhos, no início dos anos 60. R. VE-

LOSO acredita que Geraldo foi instigado, desde os primeiros anos do exercício do seu minis-

tério presbiteral, por uma realidade totalmente verde e crua de uma população que começava

a se aglomerar de maneira desordenada, algo parecido com uma favela, sem talvez ser o que

são as favelas de hoje em dia. Eram bairros que iam surgindo de gente provinda de todo canto

do interior e que também trazia consigo toda uma riqueza de tradição folclórica e religiosa.

Esse pessoal foi-se acumulando - e sem que alguém ajudasse a construir, vamos dizer, uma

nova síntese nesses aglomerados desordenados - na Ponte dos Carvalhos daqueles anos 60.

Geraldo chega assim, para uma população de completa pobreza, onde nada existia organizado em termos de vida comunitária nem de vida eclesial. Chega para começar do ‘comecinho’. Então ele tende a aproximar-se das pessoas, ele é forçado a conversar com elas e vai se encantando com aquela gente, vai descobrindo os seus valores e vai, ao mesmo tempo, integrando toda essa riqueza numa vida comunitária, eclesial. Essa coisa parte de um embrião que vai, aos poucos, nascendo, que é a comunidade de Ponte dos Carvalhos e que teve como base de sustentação a celebração, a liturgia 283.

Em outra ocasião, ainda falando sobre a atividade pastoral de GLB em Ponte dos

Carvalhos, R. VELOSO completa:

(Geraldo) começou uma experiência de Igreja, de uma Igreja que nasce do povo, de uma Igreja de dimensões humanas, uma Igreja de comunidades po-pulares, onde todos são bem-vindos, desde que se afinem com a realidade e os interesses dos oprimidos. Uma Igreja que se expressa culturalmente com o jeito e os valores dos pobres 284.

O Irmão MICHEL (fraternidade de Taizé - Alagoinhas) testemunha que logo no

início da fundação da primeira fraternidade dos irmãos de Taizé em Olinda, no final dos anos

60, muitas vezes foi à Ponte dos Carvalhos buscar inspiração para organizar uma oração co-

munitária inculturada para a sua recém-fundada fraternidade. Ele assim descreve: “Havia (em

282 VELOSO, Reginaldo. Depoimento gravado por nós, em fita cassete, no Convento Santo Antônio, no Recife, em 18/02/1999. Arquivo pessoal nosso. 283 Ibidem. 284 Idem. Depoimento gravado em fita de vídeo, produzida por G. Coppola, R. Coppola e L. Esposito, Vico E-quense, Itália, [s.d.]. Arquivo pessoal nosso.

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Ponte dos Carvalhos) uma assembléia dominical bem participada, informal mas ordenada e

piedosa. Naquele tempo, Pe. Geraldo ainda não usava a grande barba de mais tarde, porém, já

tinha algo profético e patriarcal no seu modo de animar a comunidade e todo o bairro”285.

Todos os testemunhos atestam que o pastor da Ponte morava numa casinha pobre,

perto da igreja. Logo na entrada desta humilde casa, uma estrofe de um canto da etnomúsica

religiosa, pirografado em fibra de bananeira, chamava a atenção dos visitantes:

Deus vos salve casa santa, Onde Deus fez a morada; Onde mora o Cálix Bento E a Hóstia consagrada.

Essa casa era, de fato, abençoada286, pois acolheu um número incontável de pes-

soas, desde o arcebispo D. Helder Câmara - que sempre aparecia por lá levando algum visi-

tante ilustre -– até religiosos e leigos de várias partes do Brasil e também do exterior. Era

muito freqüente a presença de estudantes universitários que iam àquela comunidade paroqui-

al para estágios e pesquisas287. O arcebispo de Olinda e Recife não se cansava de dizer que a

paróquia de Ponte dos Carvalhos era o melhor cartão de visita de sua diocese288. Enfim, cada

pessoa, cada paroquiano que ali chegava, era igualmente acolhido com a mesma disponibili-

dade, alegria e cordialidade por GLB.

Geraldo vivia pobre como e com os pobres. E ainda: “Ele foi sempre a favor dos

pobres”289. Irmão MICHEL, ainda falando sobre a casa paroquial de Ponte dos Carvalhos e de

285 IRMÃO MICHEL. Geraldo, irmão de todos. Alagoinhas, março de 1999, p. 1, mimeografado. Arquivo pes-soal nosso. 286 Infelizmente fomos informados que a casa onde residiu GLB foi demolida, em 1998! A motivação dada pelo atual pároco para se fazer tal demolição, foi o risco iminente de um possível desabamento da mesma. Para mui-tos paroquianos, esta argumentação era improcedente. E além do mais, não houve qualquer consulta à comuni-dade quanto a esse assunto! 287 Cf. LIVRO de Tombo, p. 29 e 29v. Em julho de 1965, um grupo ecumênico de estudantes americanos e brasi-leiros da Cornell University (EUA), sob a orientação de Bill Rogers (pastor presbiteriano), passou um mês em Ponte dos Carvalhos. GLB assim avalia: “Podemos dizer que esta foi uma das maiores graças que recebemos neste ano” (Ibidem, p. 29v). Um ano depois, outro grupo da mesma universidade voltou à Ponte dos Carvalhos (cf. ibidem, p. 35). 288 Cf. Ibidem, p. 40v. Aqui encontramos um exemplo típico dessas visitas: No dia 02/09/1967, D. Helder levou à Ponte dos Carvalhos o Cardeal Suenens, da Bélgica. Este, no final da missa, dirigiu à assembléia as seguintes palavras: “Estou emocionado em poder participar desta missa. Encontro aqui a Igreja universal. Abençôo, de coração, todos vocês” (Ibidem). 289 CELINA (paroquiana da Vila Nação), depoimento escrito, Ponte dos Carvalhos, [s.d.]. Arquivo pessoal nos-so. A Vila Nação consiste num conjunto de 50 casas, construídas no ano de 1971, após uma devastadora en-chente ainda lembrada pela população como “a cheia de 1970”. Esta Vila foi construída pelos desabrigados, em forma de mutirão, e contou com o apoio explícito do Arcebispo D. Helder Câmara que, várias vezes apareceu por lá, e do Pároco, Pe. Geraldo Leite, que organizou e coordenou os trabalhos da nova vila. Na mesma ocasião, foi construída a Vila Esperança, outro conjunto de 45 casas, do outro lado do bairro. Recebeu este nome porque

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seu anfitrião, assim se expressa: “Na sua casinha não tinha livros, nem jornal ou revista. Por

certo, a parte burocrática do trabalho paroquial deve ter sofrido disto” (sic)290 e Gicélia LEI-

TE, acrescenta ainda, que “Geraldo se imiscuia com aquele povo de Ponte dos Carvalhos e

sua alimentação básica não era diferente daquela gente pobre que comia caranguejos e outras

iguarias extraídas do mangue da região”291. Era, pois, um estilo de vida eminentemente pobre

e austero.

Margarida PEREIRA nos informa que, quando estava em casa, Geraldo gostava

de deitar em sua inseparável rede; pouco a pouco, um e outro ia chegando e, de repente, via-se

cercado de seus paroquianos “sem nunca reclamar seu descanso. (...) Ele era incrível, tinha o

poder de nos fazer ser alegres e felizes”. Edificava a todos com suas estórias entremeadas de

ruidosas gargalhadas292. E Amara SILVA testemunha: “(...) Quando via o nosso povo triste,

(Pe. Geraldo) nos fazia sorrir com o seu sorriso radiante. Ele foi, quando vivo e depois de seu

falecimento, o orgulho do nosso povo pobre e oprimido de Ponte dos Carvalhos”293. Outra

paroquiana, Evangelina Maria LINS, caracterizou seu ex-pastor da seguinte forma: (Pe. Ge-

raldo) “era como uma árvore fecunda que acolhe a todos em sua sombra”294. Enfim, vários

depoimentos atestam que GLB sempre valorizou os mais humildes e constantemente lembra-

va aos seus paroquianos que “ninguém é melhor do que ninguém... e que Deus os amava mui-

to”.

A humilde casa paroquial de Ponte dos Carvalhos foi também palco de cenas ex-

traordinárias como esta, testemunhada por Gicélia: Certo dia, numa de suas costumeiras visi-

tas à Ponte dos Carvalhos, o arcebispo D. Helder Câmara, assim que entrou na sala da casa

paroquial, uma senhora chamada carinhosamente por Geraldo de “Zefa Gama” (ex-prostituta,

muito amiga sua), ao ver o arcebispo, segurou-lhe as mãos e prostrou-se aos seus pés; D. Hel-

o terreno desta nova vila fora comprado pela OE (Operação Esperança). A OE é um grupo ecumênico da Arqui-diocese de Olinda e Recife, criado por D. Helder Câmara na década de 60, e tinha como finalidade a promoção humana e social. Este organismo colaborou de forma expressiva na paróquia de Ponte dos Carvalhos como: construção do centro Social, escolas, A Vila Esperança, e a Vila Nação. 290 IRMÃO MICHEL. Geraldo, irmão de todos. Op. cit. p. 2. Verificamos in loco, na secretaria paroquial de Ponte dos Carvalhos, que GLB deixou os livros burocráticos e os arquivos da paróquia organizados e atualiza-dos, inclusive o livro de tombo. GLB era muito cuidadoso para com esta parte burocrática, ao contrário do que disse Irmão Michel. 291 LEITE, Gicélia. Depoimento gravado em fita cassete, em Brasília, em 20/06/1999. Arquivo pessoal nosso. 292 PEREIRA, Margarida. Depoimento escrito. Ponte dos Carvalhos, [s.d.]. Arquivo pessoal nosso. 293 SILVA, Amara (paroquiana da Vila Nação). Depoimento escrito. Ponte dos Carvalhos, [s.d.]. Arquivo pesso-al nosso. 294 LINS, Evangelina Maria. Depoimento escrito. Ponte dos Carvalhos, [s.d.]. Arquivo pessoal nosso.

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der, com a mesma intensidade, ajoelhou-se também e ambos permaneceram por algum tempo

ajoelhados - um de frente para o outro - para espanto geral de todos os presentes. “Esta cena

que tive o privilégio de presenciar – recorda Gicélia – foi algo indiscritível e que jamais vou

esquecer! Percebi claramente a profunda humildade de ambos”295.

4.1.2.2. O “irmão de todos”

Ainda lançando mão do belo depoimento do Irmão MICHEL – grande amigo e

admirador de GLB - lemos: “Nas poucas e breves cartas que dele recebi, ele gostava de assi-

nar com alegre malícia: Geraldo, irmão de todos (porque eu era apenas irmão de Taizé)! Ir-

mão de todos, Geraldo o era de verdade”296. Gicélia LEITE também nos recorda, que Geraldo

sempre se relacionou muito bem com todos os segmentos religiosos, “desde os evangélicos

mais fanáticos até os pais de santo”297.

As anotações deixadas no Livro de tombo da paróquia de N. Sra. do Bom Conse-

lho, demonstram a profunda sensibilidade de GLB pela prática do ecumenismo. Já em 1964,

quando um grupo de leigos visitou todas as casas do bairro de Ponte dos Carvalhos, GLB fez

questão de visitar, pessoalmente, as casas dos pastores protestantes. Nesta primeira visita,

convidou a todos para um trabalho comum nestes termos: “Somos todos filhos de Deus, so-

mos irmãos e devemos nos ajudar. O que não fizemos desunidos, poderemos realizar, se nos

unirmos”298.

Outro episódio que mereceu destaque neste livro de memórias foi o da procissão

dos peixes, ocorrida no dia 16 de agosto de 1965. Esta triste procissão reuniu uns dois mil

homens, pescadores de Ponte dos Carvalhos e cidades vizinhas, com a finalidade de protestar

e de conscientizar o povo e autoridades competentes, para a “aflitiva situação em que se a-

chavam os rios da região”. A poluição causada por dejetos industriais, jogados indiscrimina-

damente nos rios, estava ameaçando muitas famílias que viviam exclusivamente da pesca. O

cortejo percorreu cerca de seis quilômetros a pé, quando, à frente da Coperbo (principal in-

dústria poluidora), fizeram um ato público. Na ocasião, discursaram alguns dos pescadores ali

295 LEITE, Gicélia. Depoimento gravado em fita cassete, em Brasília, em 20/06/1999. Arquivo pessoal nosso. 296 IRMÃO MICHEL. Geraldo irmão de todos. Op. cit. p. 2. 297 LEITE, Gicélia. Depoimento gravado em fita cassete, em Brasília, em 20/06/1999. Arquivo pessoal nosso. 298 LIVRO de Tombo, p. 18v e 19.

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presentes, além do pároco e do arcebispo D. Helder Câmara. No final da crônica, lemos: “ (...)

Foi esse o primeiro movimento na comunidade que agrupou católicos e evangélicos”299.

E mais: No dia em que se iniciou o mutirão para reconstruir as casas destruídas

pela enchente em 1970, GLB testemunha: “(...) Com oração espontânea e ecumênica, inicia-

mos a construção das primeiras casas de taipa. Foi emocionante o clamor que se fez ao Pai, na

oração. Eram católicos, evangélicos, umbandistas, os que rezavam ao Pai comum”300. Algo

similar também se deu no dia da inauguração das cinqüenta primeiras casas. O cronista, com

certa exultação, exclama: “O ecumenismo, que na teoria não se realiza, tornou-se prático no

trabalho. Pessoas crescem e se libertam. Demos graças a Deus!”301.

Enfim, esta política de boa vizinhança foi testemunhada por todos quando, no iní-

cio de 1987 - ano em que foi diagnosticado o câncer que tomava conta de boa parte dos pul-

mões do Pe. Geraldo - toda a comunidade se uniu numa grande campanha buscando angariar

fundos para financiar seu tratamento. Só na Igreja Episcopal Anglicana de Recife302, foi arre-

cadada uma expressiva quantia em dinheiro, numa única coleta. O mesmo aconteceu com

outras igrejas evangélicas, como também com as comunidades dos terreiros de Xangô303. Es-

tes fatos demonstram o quanto GLB representava para todos aqueles que tiveram o privilégio

de, com ele, ter convivido.

GLB era, de fato, muito estimado e respeitado. Todos o tinham como um irmão e

companheiro. Sua casa ficava sempre aberta e todos ali eram por ele acolhidos com o mesmo

carinho e atenção, inclusive aquelas visitas desagradáveis, como esta presenciada por Gicélia

LEITE:

No ano de 1964, foram à Ponte dos Carvalhos dois homens: um civil e outro vestido de militar, à caça de comunistas. Traziam um papel enrolado, como se fosse um pergaminho, e entregaram-no a Geraldo. Geraldo leu aquilo e, muito serenamente, falou mais ou menos isso: ‘olhem, senhores, aqui em Ponte dos Carvalhos não tem comunistas. Ponte dos Carvalhos tem, sim, muita gente com fome’ 304.

299 Ibidem, p. 30. 300 Ibidem, p. 49v. 301 Ibidem, p. 50v. 302 GLB era muito amigo do Pastor desta Igreja, o Sr. Paulo Ruis Garcia. Periodicamente, eles se reuniam e cele-bravam juntos, liturgias ecumênicas. 303 Cf. LEITE, Gicélia. Depoimento gravado em fita cassete, em Brasília, em 20/06/1999. Depoimento gravado em fita cassete, em Brasília, em 20/06/1999. Arquivo pessoal nosso. 304 Ibidem.

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“Geraldo não era de nenhum sistema ou partido” – alerta-nos Irmão MICHEL.

Seu partido consistia na prática diária do amor e da compaixão por todo e qualquer ser huma-

no que necessitava de um consolo em suas aflições. Outro fato:

Certa vez, na época militar, um tenente metido a valentão apareceu na zona de prostituição de Ponte dos Carvalhos e ordenou às mulheres de sumir daí, num prazo bem curto. A quem essas pobres mulheres iam pedir ajuda? Não tiveram dúvida. Foram procurar Pe. Geraldo, que as recebeu muito bem e foi interceder junto às autoridades para que um grupo de mulheres marginaliza-das não perdesse as suas pobres casas...305.

E ainda: Na ocasião da avassaladora cheia de 1970306, essas mulheres do prostíbu-

lo ficaram sem teto. Gicélia LEITE nos relata que Geraldo as acolheu abrigando-as na pró-

pria Igreja até que suas casinhas fossem novamente reconstruídas. O mais interessante nisso

tudo é que esta e outras atitudes similares de GLB não causavam qualquer constrangimento da

parte do povo! Além do mais, aquelas mulheres, em nenhum momento desrespeitaram a Igre-

ja. Ao contrário, assim como os demais flagelados da enchente, participaram ativamente do

mutirão que possibilitou construir duas novas vilas que, mais tarde, foram batizadas de Vila

Nação e Vila Esperança. Uma vez construídas as casas, Geraldo ainda atendeu a mais um

pedido daquelas mulheres: reivindicavam ao padre que o mesmo as deixasse morar nas últi-

mas casas do final da rua, pois não queriam incomodar as famílias. O pedido foi solicitamente

atendido.

O pastor da Ponte, todos os anos, durante o mês de maio, levava em procissão, a

imagem de N. Sra. para passar uma noite no prostíbulo. No dia seguinte, ele voltava àquele

lugar, celebrava uma missa com aquela gente marginalizada que, com muita devoção e respei-

to, participava ativamente da ação litúrgica307. Estes e outros tantos fatos que aconteceram

com GLB e seus paroquianos nos levam a concluir que este pastor possuía uma profunda sen-

sibilidade pastoral.

Mesmo sendo avesso a qualquer circunscrição político-partidária, GLB foi alvo de

espionagem, no auge da ditadura militar, na década de 70. Fomos informados que a casa pa-

roquial e a Igreja matriz de Ponte dos Carvalhos ficava constantemente vigiada por policiais

305 IRMÃO MICHEL. Geraldo, irmão de todos. Op. cit. p. 2. 306 Conforme já acenamos na nota de rodapé, n. 37, a cheia de 1970 destruiu muitas casas em Ponte dos Carva-lhos e, no ano seguinte, foram construídas duas novas vilas, que receberam os nomes de Vila Nação e Vila Espe-rança. 307 Cf. LEITE, Gicélia. Depoimento gravado em fita cassete, em Brasília, em 20/06/1999. Depoimento gravado em fita cassete, em Brasília, em 20/06/1999. Arquivo pessoal nosso.

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militares. Com freqüência, a conhecida ‘veraneio azul’ (viatura da polícia), fazia plantão de

espionagem ao redor da Igreja.

O instrumentista e compositor José GENERINO nos informou que GLB teve um

engajamento nas lutas do povo, de forma admirável. Qualquer problema que acontecesse em

algum recanto onde o povo se visse ameaçado, ali Geraldo se fazia presente e só arredava o

pé, quando a situação fosse resolvida.

Em plena ditadura militar, em que ninguém podia tocar em questões sociais - pois era tido como comunista - Pe. Geraldo, em suas músicas, abordava estas questões, sem nenhuma restrição. Muitas vezes, cantávamos estas músicas nas próprias capelas dos usineiros. Era algo profético. (...) Ele não se calava diante das injustiças. Depois da morte inexplicada de um rapaz, lá na usina de Bom Jesus, Geraldo denunciou o acontecido e eles (usineiros) viram que com o Pe. Geraldo não se podia brincar. E a qualidade de vida dos operários daquela empresa melhorou consideravelmente, a partir desse fato 308.

E SANTANA arremata: “Aprendemos com ele (GLB) a refletir sobre a dimensão

política da fé. (...) Pe. Geraldo falava de todas essas coisas com muita convicção e fé, era algo

profético e ninguém ousava pensar o contrário. Suas homilias eram muito contundentes e de-

nunciavam abertamente os desmandos dos políticos brasileiros. Ele era autêntico e coerente

nas suas palavras e ações ”309.

Mesmo transferindo-se para a paróquia de N. Sra. da Apresentação em Escada

(PE), GLB manteve aguçado o seu senso de justiça, em defesa dos pobres e oprimidos. Por

exemplo: o fato de a delegacia de polícia situar-se ao lado da casa paroquial permitia que fos-

sem ouvidos os gritos dos detentos – durante seções de espancamentos pela polícia – assim,

GLB não pensava duas vezes: corria até lá e intimava os policiais a cessar as torturas e estes o

atendiam310.

308 GENERINO, José. Depoimento gravado em fita cassete, por nós, na residência de Genival Lima, em Ponte dos Carvalhos, em 12/07/1999. Depoimento gravado em fita cassete, em Brasília, em 20/06/1999. Arquivo pes-soal nosso. 309 SANTANA, Genilson Marcelino de. Depoimento gravado em fita cassete, em Ponte dos Carvalhos, em 12/07/1999. Arquivo pessoal nosso. Sobre a dimensão política da fé expressa na ação litúrgica, veja: BALBI-NOT, Egídio. Liturgia e política. Chapecó: Grifos, 1998. Este livro é o resultado de uma dissertação de mestra-do, defendida na Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção de São Paulo, em 1998. 310 Atualmente, a delegacia de polícia da cidade de Escada, se transferiu para outra localidade, longe da Igreja Matriz. Giselda LEITE, irmã mais velha de GLB, informou-nos ainda que esta praxe do Pe. Geraldo socorrer os presos era tão freqüente, que estes, assim que começavam a ser espancados pela polícia, gritavam pelo nome do

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4.1.2.3. O pastor “para além da Ponte”

GLB foi também um pastor para além das fronteiras da arquidiocese de Olinda e

Recife, ou mesmo de outros estados do Nordeste brasileiro. Sua permanência por nove meses,

na fraternidade ecumênica de Taizé (França)311, em 1972, foi certamente um ponto marcante

na vida deste pastor nordestino. Irmão MICHEL nos informa que, enquanto permaneceu em

Taizé, Geraldo celebrava freqüentemente para os jovens que se reuniam naquele mosteiro

ecumênico. O mais curioso era que dentre estas massas de jovens, era raro quem entendia

português e, no entanto,

vinham numerosos, atraídos pelo calor humano e a beleza da celebração. Com a sua sensibilidade de nordestino, Geraldo achava muitos deles frios e um tanto cheios de si. Aí, ele ensinou a todo mundo, em português, o refrão de uma canção recente da MPB: Para que tanto orgulho Se somos iguais, Para que separação, Se somos irmãos? 312.

Ao voltar de Taizé, fascinado com tudo o que viu e experienciou, GLB começou a

rezar com seus paroquianos, um ofício diário (manhã e noite), em Ponte dos Carvalhos, seme-

lhante ao de Taizé. Este ofício popular313 era freqüentado por um grupo expressivo de pessoas

entre jovens e adultos, a maioria analfabetos. Durou muitos anos, “mesmo depois que outro

padre assumiu a paróquia e tornou o ofício pesado com longas falações. Na década perturbada

dos 70 – testemunha Ir. MICHEL - este ofício num bairro pobre da periferia da grande Recife,

tinha mais regularidade e beleza litúrgica do que a oração de muitas comunidades religio-

sas”314

Enquanto permaneceu em Taizé, GLB encontrou-se com o então estudante de teo-

logia, o alemão Ansgar FLEISCHER. A partir daí, um novo universo de relações se estabele-

ceu entre GLB e a juventude universitária de Freiburg. A maioria dos jovens universitários da

universidade de Freiburg, durante a década de 70, passava por uma crise de identidade religi-

osa, sendo que a Igreja alemã não conseguia dar uma resposta convincente aos anseios daque-

Pe. Geraldo. Cf. informação obtida através de conversas informais, na residência de Gicélia LEITE, em Brasilia, em 22/08/1999. Arquivo pessoal nosso. 311 Cf. LIVRO de Tombo, p. 52v. 312 IRMÃO MICHEL. Geraldo, irmão de todos. Op. cit. p. 1-2. 313 O Ofício Divino iniciado por GLB, em Ponte dos Carvalhos, nos anos 1970, foi o embrião do atual Ofício Divino das Comunidades. 314 IRMÃO MICHEL. Geraldo, irmão de todos. op. cit. p. 1. Constatamos in loco, que até hoje, em Ponte dos Carvalhos, um pequeno grupo (8 a 10 pessoas) reza o ofício da manhã e da noite, diariamente.

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la juventude emergente. FLEISCHER reconhece que GLB apareceu no momento oportuno

ajudando a ele e a muitos outros jovens no sentido de solucionar muitos impasses.

Naquela época, eu e muitos jovens da minha geração estávamos insatisfeitos com a Igreja alemã. Geraldo abriu-nos a mente para um outro tipo de Igreja. Pessoalmente, esta descoberta marcou-me para o resto da vida. (...) Geraldo conseguiu unir os contrastes: tanto os progressistas como os tradicionalistas conseguiram chegar a um denominador comum. Ele (Geraldo) tinha uma ha-bilidade ímpar em reatar relações humanas abaladas e até desfeitas 315.

O início de uma outra experiência marcante para GLB e seus paroquianos - po-

rém, desta vez, com as comunidades do Sul da Itália – se deu a partir de um encontro do pas-

tor da Ponte com o Pe. Giovanni COPPOLA316, na fraternidade brasileira dos irmãos de Tai-

zé317, Olinda (PE), em 1971. Este pároco da cidade de Vico Equense (Sul da Itália), viera ao

Brasil, para conhecer de perto a experiência pastoral e litúrgica da Igreja latino-americana,

especialmente no Nordeste brasileiro. COPPOLA, atendendo ao convite do Pe. Geraldo, foi à

Ponte dos Carvalhos e, deslumbrado com o dinamismo fraterno daquela comunidade de fé,

resolveu passar um mês ali. E assim ele confessa:

... envolvi-me com a experiência das comunidades de base, fui tocado pelo empenho e corresponsabilidade dos leigos, da espontaneidade com que se li-gava a Palavra à vida, do sentido da festa com que se celebrava o Domingo. Foi uma experiência que me marcou para o resto da minha vida. Devo muito aos irmãos de Ponte dos Carvalhos! 318.

Deste primeiro contato, surgiu a idéia de uma troca de experiências, de pesqui-

sas, de confronto entre realidades diversas de Igreja... . No ano seguinte, em 1972, quando

regressava da experiência em Taizé, GLB foi a Vico Equense, permanecendo ali alguns dias,

o suficiente para se criar uma grande afinidade entre o povo brasileiro do Nordeste e aquele

povo do Sul da Itália. Geraldo estava convicto de que poderia ajudar aquela porção do Povo

de Deus Sul-italiana, a experienciar uma vivência comunitária, menos clerical e mais partici-

pativa, como já era de praxe em Ponte dos Carvalhos.

315 FLEISCHER, Ansgar. Depoimento gravado em fita cassete por nós, no Aeroporto de Congonhas – São Paulo, em 29/08/1999. Através deste teólogo, outros jovens alemães mantiveram estreitas relações com o Brasil, dentre eles uma teóloga de nome Hadwig MÜLLER que residiu em nosso País de 1983 a 1993. Esta teóloga publicou o livro: Leidenschaft, Stärke der Armen, Stärke Gottes. Theologische Überlegugen zu Erfahrungern in Brasilien. Mainz, Matthias-Grünewald-Verlag, 1998. Outro teólogo que residiu no Brasil por 5 anos (1990 a 1995), foi Dietmar BADER. Este foi professor de teologia dogmática no seminário de São Luís (MA). 316 Cf. COPPOLA, Giovanni. Esperienza con Geraldo. Vico Equence, [s.d.]. Mimeografado. Trata-se de longo depoimento, deste pároco da cidade de Vico Equense (região napolitana) – Itália. COPPOLA narra, com porme-nores, a profunda relação entre GLB e a comunidade paroquial italiana. Arquivo pessoal nosso. 317 No ano de 1966, chegaram ao Brasil os irmãos de Taizé. Primeiro se estabeleceram no Estado de Pernambuco e depois no Espírito Santo. Desde 1978 residem em Alagoinhas (BA), a 109 km de Salvador. 318 COPPOLA, Giovanni. Esperienza con Geraldo. Op. cit. p. 1.

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No ano1974, GLB, juntamente com um grupo de 12 pessoas da comunidade de

Ponte dos Carvalhos, fez uma longa tournée pela Europa: Evreux (França), Freiburg (Alema-

nha), Vico Equense e Sorrento (Itália). Giovani COPPOLA, ao narrar este fato histórico que

se deu há 25 anos, constata que seus paroquianos ainda se recordam, com grata alegria, da

sinceridade e do testemunho de fé deixados pelos artistas de Ponte dos Carvalhos319. Consta-

tação semelhante, encontramos no depoimento de Dietmar BADER (Freiburg):

... Aí vinham esses brasileiros. Eles celebravam para nós com uma esponta-neidade e desenvoltura, com uma devoção, sua missa. Eles eram para nós to-do sensíveis uns com os outros, um só coração e uma só alma e comunica-vam suas mensagens convencidos de sua luta corajosa em prol do elementar direito de vida diante do regime militar do país 320.

Esta primeira tournée321 da comunidade de Ponte dos Carvalhos à Europa, marca-

va definitivamente o intercâmbio pastoral tão sonhado por Geraldo. No verão (europeu)

de1975, GLB voltou à Itália e, num período aproximado de três meses, desenvolveu um traba-

lho pastoral na paróquia de Moiano (outra paróquia de Vico Equense). COPPOLA relata que

três ou quatro tardes por semana, acompanhava-o em reuniões com aquela gente, na sua maio-

ria, camponeses. Aos poucos, a popularidade de Geraldo foi crescendo, a ponto de ser caloro-

samente saudado pelo povo, enquanto andava pelas ruas de Vico. “Em todas as regiões o nú-

mero de pessoas (na Igreja) aumentava e Geraldo se tornava sempre mais um irmão entre os

irmãos; um irmão que a gente amava muito”322.

Durante esse tempo em que passou em Vico Equense, GLB facilmente se integrou

na cultura napolitana. Assimilou muitas expressões do dialeto napolitano. Ele gostava de can-

tarolar as canções típicas daquela região da Itália323 e a todos contagiava com sua alegria.

Certa vez, ele chegou a dizer que os napolitanos eram um tipo de nordestinos da Itália.

319 Ibidem, p. 1. 320 BADER, Dietmar. Wenn man sich die hände reicht. In:. RÖSER, J (Org.). Gott kommt aus der dritten Welt; Erfahrungen und Zeugnisse. Freiburg: Herder, [s.d.], p. 47-49. 321 Houve ainda uma segunda tournée, em 1988, de outro grupo (12 pessoas), das comunidades de Ponte dos Carvalhos, do Morro da Conceição e de Escada, um ano após a morte de GLB. Apresentou-se nas cidades de Evreux (França), Freiburg (Alemanha) e Vico Equense (Itália). Em ambas as tournées, o grupo, devidamente equipado com vestes e instrumentos típicos nordestinos, apresentava amostras do folclore nordestino, entremea-das de música e danças típicas. Estas viagens foram patrocinadas por grupos particulares destes países visitados. O principal idealizador e organizador destas tournées foi o teólogo alemão Ansgar FLEISCHER. 322 COPPOLA, Giovanni. Esperienza com Geraldo. Op. cit. p. 3-4. Uma curiosidade: Durante o verão (europeu) de 1975, GLB fez questão de trabalhar, em regime de meio expediente, como auxiliar de copeiro (lavando pra-tos) num restaurante de Vico Equense, “para ajudar nas despesas de sua longa estadia nesta cidade”(Ibidem). 323 Cf. Ibidem. GLB traduziu e adaptou para a comunidade de Ponte dos Carvalhos uma destas canções que conta a história do nascimento do Menino Jesus.

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Geraldo só retornou à Itália – e pela última vez – 11 anos depois. Neste intervalo

de tempo, assumiu a paróquia de N. Sra. da Conceição do Morro da Conceição, no Recife

(1975-1977) – uma atividade paralela à de Ponte dos Carvalhos - e, no ano de 1980, saiu de

Ponte dos Carvalhos e transferiu-se para a cidade de Escada (PE), assumindo assim, sua últi-

ma paróquia, a de N. Sra. da Apresentação324. Mesmo assim, manteve contato com a Europa,

através de cartas ou recebendo amigos visitantes do além-mar.

A última visita à Europa (1986) - um ano antes de sua morte – foi breve. Geraldo

queria apenas rever os muitos amigos que, há muito tempo, não encontrava. Foi recebido com

muita festa pelos amigos napolitanos. COPPOLA nos informa que todos os seus paroquianos

queriam levar o saudoso amigo brasileiro até suas casas para uma refeição íntima. Mas o tem-

po foi curto. Na véspera de sua partida, foi-lhe preparada uma inesquecível festa a patierno na

casa paroquial: “Todos foram para casa contentes, porém tristes, porque chegava o momento

de se despedir de Geraldo. Um pequeno grupo ficou até as duas horas da madrugada cantan-

do, dançando, tocando, sorrindo e brincando. Foi uma noite inesquecível de lua cheia e de

alegria plena para todos”325.

GLB aproveitou desta sua última viagem ao exterior para visitar a Terra Santa, a-

lém de uma rápida e frustrada visita à fraternidade de Taizé326. Passou pela Alemanha, onde

carinhosamente fora recebido pelos amigos daquele país, antes de retornar ao Brasil. Nino

SAVARESI, em emocionado depoimento, conclui: “Geraldo foi para nós a janela, através da

qual deixou-nos fascinados pelo Brasil, o homem que nos ensinou a entender e amar aquele

povo estupendo e sem sorte...”327.

4.1.3. O liturgo

Geraldo celebrava como vivia e vivia conforme celebrava – atestam os depoimen-

tos sobre a sua maneira de presidir qualquer ação litúrgica. Até o momento da sua morte se

deu num contexto celebrativo. Reginaldo VELOSO, em comovente depoimento intitulado: A

324 GLB foi pároco em Escada de 1980 a 1987, quando veio a falecer. 325 COPPOLA, Giovani. Esperienza con Geraldo. op. cit. p. 11. 326 Cf. IRMÃO MICHEL. Geraldo, irmão de todos. op.cit. p. 4. Esta última visita de GLB à Taizé foi um tanto traumatizante. Ao chegar lá, à noitinha e sem avisar previamente, viu que a casa estava lotada de hóspedes, GLB foi friamente recebido pelos irmãos. Isso fez com que ele abandonasse Taizé no dia seguinte, com certo ressen-timento, uma vez que ele planejara ficar mais tempo naquela fraternidade. 327 SAVARESI, Nino. Il perché di un nome. Vico Equense, [s.d.], p. 2. Mimeografado. Arquivo pessoal nosso.

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páscoa do servidor da Nação do Divino, relata-nos que enquanto familiares e amigos canta-

vam o salmo 31/30 (“Eu me entrego, Senhor, em tuas mãos...), poucos minutos antes de sua

morte, GLB surpreende a todos os presentes com um brado forte e misterioso: “– Abra a por-

ta! Abra a porta! Abra a porta!” para, logo em seguida, arrear a cabeça e dar o último suspi-

ro328.

Enquanto viveu entre nós, o liturgo GLB soube traduzir em gestos simbólico-

litúrgicos sua alegria, seu amor incondicional para com todos, sua profunda fé... . Privilégio

para poucos, talvez só para os grandes místicos! Os depoimentos que apresentaremos a seguir,

são na realidade, apenas alguns flashes daquilo que constitui a espiritualidade do liturgo

GLB, colocando em relevo sua habilidade em integrar fé e vida na ação litúrgica.

4.1.3.1. A espiritualidade do liturgo GLB

Antes de tudo, cabe-nos uma justificativa sobre o significado que queremos dar ao

termo espiritualidade. Embora dando-nos conta da amplitude semântica desta palavra, aqui

neste item ela é utilizada para sublinhar a “união de três coisas: o gesto corporal, o sentido

teológico que objetivamente este gesto tem dentro da liturgia cristã, e a atitude espiritual que

este gesto requer e cria ao mesmo tempo. Em cada um dos gestos e em cada uma das ações

litúrgicas é preciso buscar esta unidade”329. O liturgo GLB integrou dentro de si estes três

elementos e, enquanto presidia, levava a comunidade celebrante a apropriar-se também desta

espiritualidade. Vejamos alguns testemunhos:

Conforme Nino SAVARESI, quando GLB presidia a eucaristia, em terras napoli-

tanas,

parecia transfigurar-se em um diálogo íntimo com Deus, só periodicamente interrompido pelos hinos que ele mesmo compunha, ora melodiosos, ora muito ritmados, sempre agradáveis para escutar e fáceis de aprender. Se ex-primia em português, mas parecia esperanto, por que tinha a capacidade de fazer-se entender por todos 330.

Nesta mesma direção, Gicélia LEITE, assim se expressa:

328 Cf. VELOSO, Reginaldo. A páscoa do servidor da Nação do Divino. Depoimento por escrito. A beleza poéti-ca e a sobriedade com que os últimos momentos da vida de GLB foram descritos levaram-nos a incluir este de-poimento – na íntegra – nesta dissertação, como ANEXO IV. 329 BUYST, I. Liturgia, de coração. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 55. 330 SAVARESI, Nino. Il perché di un nome. Op. cit. p.1.

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Geraldo sempre me impressionava quando celebrava a missa. Era algo meta-físico. Ele era um artista: parecia que ficava meio diáfano. Seus gestos, suas mãos..., expressavam algo inexplicável. Ele se transfigurava totalmente. Ele nos convencia com seus gestos (...). Havia uma integração total dele com Deus e isso ficava muito evidente e verdadeiro quando ele se punha para ce-lebrar a liturgia. Era uma arte divina. Um artista místico. (...) Geraldo cele-brava de forma poética; até mesmo um ato (litúrgico) muito simples era transformado em algo de rara beleza 331.

No último domingo em que se encontrou em Seiano (1986) – relata-nos Giovanni

COPPOLA – Geraldo presidiu a eucaristia e comentou o evangelho do Bom Samaritano, a

partir da experiência de vida de uma pessoa de sua comunidade. Foi também capaz de fazer a

comunidade inteira cantar em português o refrão “façamos também nós, aquilo que fez o Sa-

maritano”332.

Célia DE BIASE confessa, com certa emoção, que a liturgia presidida por GLB a

levou à conversão:

... antes eu ia à Igreja acompanhando minha mãe, assistia à missa, mas aqui-lo não me tocava, (...) não me dizia nada, (...) eu achava aquilo tudo uma perda de tempo. Eu mudei de vida, como diz o próprio canto quaresmal mu-dai de vida, irmãos, mudai..., eu passei a ver as pessoas como meus irmãos. Eu passei a me preocupar com as pessoas mais necessitadas. (...) Esta con-versão não se deu de uma hora para outra: tudo foi muito lento. Nem posso dizer que estou totalmente convertida..., mas a cada ano, um sermão, às ve-zes uma palavra, um gesto... que Pe. Geraldo fazia, me chamava a atenção. E assim outras pessoas que estavam afastadas, voltaram para a Igreja...333

4.1.3.2. O liturgo GLB e sua habilidade em integrar fé e vida, na ação litúrgica

Embora a integração entre fé e vida esteja implícita naquilo que acabamos de de-

finir como espiritualidade, achamos por bem destacar esta habilidade de GLB, que é uma

constante nos depoimentos.

O liturgo GLB criou – se é que podemos dizer assim – uma verdadeira escola da

qual muitos leigos e leigas da comunidade de Ponte dos Carvalhos aprenderam o ofício da

presidência e exerceram este ministério de maneira muito capaz. Tanto o ofício divino como

outras celebrações da Palavra eram presididos com expressiva beleza, ou seja: fé e vida devi-

331 LEITE, Gicélia. Depoimento gravado em fita cassete, em Brasília, em 20/06/1999. Arquivo pessoal nosso. 332 Cf. COPPOLA, Giovanni. Esperienza con Geraldo. Op. cit. p. 8. 333 DE BIASE, Célia. Depoimento gravado em fita cassete, no Recife, em 18/02/1999. Arquivo pessoal nosso.

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damente integrados. Giovanni COPPOLA inseriu em seu depoimento – já citado por nós, al-

gumas vezes - o testemunho de duas paroquianas suas (Marisa e Luciana), que vieram à Ponte

dos Carvalhos no ano de 1976, e, naquela ocasião, tiveram a oportunidade de conviver e par-

ticipar ativamente da vida litúrgica dos co-irmãos brasileiros durante um mês. Eis o tetemu-

nho:

Foi, para nós, uma novidade constatar como as pessoas, os leigos se encon-travam mesmo sem a presença do Pe. Geraldo, para rezar; foi uma novidade sentir com quanta simplicidade de coração, mas também com quanta compe-tência explicavam e partilhavam a Palavra e com quanta intensidade reza-vam uns pelos outros. Foi para nós um testemunho de fé muito grande 334.

O franciscano Adolfo TEMME relata-nos em comovente depoimento, uma expe-

riência indiscritível com GLB, vivida por ele e seus paroquianos do povoado de Pau Santo,

município de Lago da Pedra (MA). Sete dias depois do assassinato do lavrador Manoel Mon-

teiro, pela polícia militar – durante uma tentativa violenta de despejo dos moradores daquele

povoado - chega o Pe. Geraldo a Lago da Pedra. Tomando conhecimento desse episódio, GLB

imediatamente se prontificou em ajudar o pároco anfitrião a preparar a missa de sétimo dia em

memória do mártir Manoel Monteiro. Adolfo TEMME prossegue sua narrativa:

Vendo a camisa (ensangüentada) do morto, (Geraldo) ajudou a fazer um re-licário que contém uma cruz dourada, envolvida pela camisa e ornada por um ramo de espinho. (...) Enfrentamos a viagem a pé.(...) Chegando a Pau Santo, tivemos uma Boa Nova. O Vigário Geral anunciou: O sangue do justo salvou o povo. A terra está livre, desapropriada pelo Governo Federal. O re-licário foi colocado no lugar da morte. (...) Pe. Geraldo foi o celebrante prin-cipal. Desconhecido do povo, logo se tornou amigo. (...) O celebrante foi um pai que soube consolar, e era de consolo que este povo precisava, depois de sete meses de perseguição. Pe. Geraldo havia composto um prefácio dos mortos e, naquela celebração, fez uma pequena alteração da letra: O povo unido em Pau Santo Enxuga seu pranto E entoa o louvor... 335.

Frei Adolfo informou-nos, também, que esta missa presidida por GLB, além de

ter sido transmitida pela televisão do lugar, obteve uma repercussão internacional. Voltando

àquela comunidade para celebrar o trigésimo dia da morte do velho Manoel, o mesmo frade

pôde presenciar a felicidade estampada no rosto daquela gente pobre e sofredora - que, repeti-

334 COPPOLA, Giovanni. Esperienza con Geraldo. Op. cit. p. 5. 335 TEMME, Adolfo. Padre Geraldo no Maranhão. Lago da Pedra, 28/09/1990. Mimeografado. Arquivo pessoal nosso.

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das vezes, recordava a presença amiga e consoladora de GLB - confirmando assim, que “a

vida é mais forte do que morte!”336.

Enfim, nada do que era feito durante uma ação litúrgica presidida por GLB era

dissociado do real. Tudo provinha de uma experiência concreta da vida, do quotidiano da co-

munidade:

(...) Não provocava nenhum choque às pessoas o uso, em algumas celebra-ções festivas, de produtos da terra como a macaxeira, manga, cajá..., o pró-prio tambor no culto não causava mais estranheza, graças à habilidade que o Pe. Geraldo tinha em integrar todas estas ‘novidades’ na liturgia” 337.

Talvez o mais completo de todos os depoimentos sobre a atividade litúrgica de

GLB que vieram até nós, tenha sido este, dado pelo Pe. Reginaldo VELOSO - seu fiel amigo

e parceiro em muitas composições de ML:

Geraldo foi o pioneiro da liturgia popular, caracterizada pela espontaneidade da comunicação, pela linguagem gestual, a dança, o corpo, pela coreografia policromada ou visual rico e abundante, pela música de raízes folclóricas e, sobretudo, pela relação entre fé e vida. Vida, entendida no seu sentido pleno e integral: vida pessoal, vida familiar, vida comunitária, vida social, vida e-conômica, política, vida material e espiritual 338.

4.1.3.3. A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Conselho339: espaço litúrgico

propício para a festa

1) O espaço litúrgico

Para um pastor e liturgo tão extraordinário, o espaço litúrgico também deveria ser

igualmente especial e propiciador da alegria, da comunhão fraterna, da ativa e frutuosa parti-

cipação da assembléia. E de fato o foi. Aliás, GLB tinha o dom de arquiteto e construtor. Au-

xiliado pelo arquiteto peruano Hugo Salinas, e com a ajuda de artesãos e do povo da localida-

336 Ibidem. 337 SANTANA, Genilson Marcelino de. Depoimento gravado em fita cassete, em 12/07/1999. Arquivo pessoal nosso. Vale ressaltar aqui, que esta familiaridade com as inovações de GLB era evidente para a comunidade participante de Ponte dos Carvalhos. Para muitos de fora esta liturgia inculturada causava certa estranheza. 338 VELOSO, Reginaldo. Depoimento gravado em fita de vídeo, produzida por G. Coppola, R. Coppola e L. Esposito, Vico Equense - Itália, [s.d.]. Arquivo pessoal nosso. 339 Para estes dados sobre a Igreja Matriz de Ponte dos Carvalhos: SALAZAR, Aberto. Matriz de Nossa Senhora do Bom Conselho. A mensagem católica. Recife: Arquidiocese de Olinda e Recife, v. 51, [nov./dez.] 1996; LI-VRO de Tombo.

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de, GLB concebeu e construiu um belíssimo templo situado em uma pequena elevação à mar-

gem da BR 101340: a Igreja Matriz de N. Sra. do Bom Conselho. Esta foi concebida na forma

simbólica de uma grande tenda.

Na entrada da nave há quatro portões de ferro (frontispício) com detalhes em vi-

trais desenhados pelo artista pernambucano José Corbiniano Lins em forma de mural, execu-

tados por operários do lugar. Este mural conta um pouco da história do povo de Ponte dos

Carvalhos, mostrando as lavadeiras do rio, vendedores de frutas, pescadores, cortadores de

cana-de-açúcar e a presença de N. Sra. do Bom Conselho com anjos, pássaros, flores e o sol

ao lado do povo341.

Na nave interna, originariamente, havia uma interessante disposição dos bancos,

formando um grande cálice, sendo o altar a hóstia342. Esta disposição possibilitava, dentre

outras vantagens, uma melhor comunicação da assembléia entre si e desta com o presbitério.

Na parede do fundo, atrás do altar, encontra-se uma pintura do Pe. Francisco Soelman (salesi-

ano), que mostra, em realismo artístico, no centro do painel, a imagem de Jesus ao lado do

povo, olhando para o céu. Em um lado são vistos casebres tipicamente rurais e, do outro, o

progresso da cidade grande com arranha-céus, antenas, indústrias e um avião, devido à pro-

ximidade do aeroporto Guararapes. As fisionomias das pessoas ao lado de Jesus foram retra-

tadas de paroquianos que prestaram relevantes serviços à comunidade.

Nesta grande tenda, as liturgias eram verdadeiras festas. Mesmo antes de ser inau-

gurada (21/11/1971), cada etapa da construção foi vivida com festa. No livro de tombo desta

paróquia, encontramos várias alusões a essas festas. A primeira delas, se deu no dia do lança-

mento da pedra fundamental, a 15/08/1964. Depois de uma grande procissão, a eucaristia foi

celebrada sobre um altar improvisado com materiais para a construção343. Outra festa impor-

tante foi a da cumieira, ou seja, quando toda a parte de concreto armado estava pronto. “Foi

340 Esta BR 101 corta pelo meio, o arraial de Ponte dos Carvalhos. 341 Lamentamos que um dos párocos que passou por esta paróquia em meados da década de 1990, construiu um anexo (secretaria paroquial) numa das laterais desta tenda, adulterando de forma considerável, o projeto arquite-tônico original. Aliás, a paróquia de N. Sra. do Bom Conselho, sobretudo a partir do ano de 1994, tem passado por situações críticas e instáveis: Muda-se muito de párocos. E quanto ao povo, muitos traumas e pouca evange-lização! 342 Atualmente, esta disposição encontra-se alterada. Uma parte das pessoas fica sentada e enfileirada (estilo ônibus) e outra parte, nas laterais do altar. 343 Cf. LIVRO de Tombo, p. 22 e 22v.

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uma alegria intensa do povo” – observa GLB344. A inauguração do frontispício foi motivo

para outra grande festa345. O dinheiro arrecadado com a venda do LP “Nação do Divino”

(gravado por músicos da comunidade, em 1970, com músicas de GLB e outros compositores

nordestinos) possibilitou a construção da torre da nova Igreja. A inauguração deste templo de

rara beleza, se deu em 21/11/1971. Ao registrar este fato, GLB exulta: “Foi este o dia mais

solene e mais festivo, jamais vivido entre nós. A Igreja é realmente a mais bela da região!”346.

2) A liturgia como festa

Para o pastor e liturgo GLB, a celebração litúrgica era sempre uma festa. Esta

dimensão da liturgia, em boa parte ele a aprendeu com o povo. Sua sede insaciável de trans-

formar a ação litúrgica numa autêntica festa, levou-o a lugares onde o povo de fato se esmera

em preparar e realizar suas festas. GLB participou de muitos folguedos populares e freqüen-

tou terreiros de Xangô.

O antropólogo Eduardo FONSECA, em sua obra “Candomblé: a dança da vida”,

comprova que nos terreiros de Xangô, mais do que a busca para aliviar angústias e aflições, as

pessoas são atraídas pela alegria, descontração, beleza estética, pelo comer e beber juntos...

típicos do ambiente de terreiro. Um bom terreiro é aquele que proporciona aos seus freqüen-

tadores um espaço de convivência, acolhimento, alegria, prazer e festa. Enfim, “onde tem

terreiro de Xangô, tem festas”347.

O Papa JOÃO PAULO II, na carta apostólica “Dies Domini”, lembra-nos que

“(...) é preciso garantir à celebração aquele caráter festivo que convém ao dia comemorativo

da Ressurreição do Senhor”348. E isso era uma realidade em Ponte dos Carvalhos: “As missas

dominicais são verdadeiras festas e cada dia pela manhã e pela noite rezamos juntos o ofício

divino com devoção, dentro do espírito popular e com os ritmos do povo”349.

344 Ibidem, p. 26v. 345 Cf. Ibidem, p. 44v. 346 Ibidem, p. 52. 347 Cf. FONSECA, E. Candomblé: a dança da vida. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1999, p. 91-93. Nesta obra, dentre outras coisas, o autor analisa a dimensão das festas nos cultos afro-brasileiros. 348 JOÃO PAULO II. Carta apostólica “Dies Domini” do Sumo Pontífice João Paulo II ao episcopado, ao clero e aos fiéis da Igreja católica sobre a santificação do Domingo. AAS, v. 10, 1998, 1998, n. 50. 349 LIVRO de Tombo, p. 53.

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Ansgar FLEISCHER, em recente depoimento, revelou-nos que a liturgia presidida

por GLB causava-lhe a impressão de estar participando de uma festa, nestes termos:

Eu, enquanto criança e adolescente, vivi na Alemanha uma religiosidade que se dava mais na linha do dever ou seja, um tipo de obrigação a ser cumprida. Quando participei pela primeira vez da liturgia dominical em Ponte dos Car-valhos, percebi que o povo vinha até a Igreja para celebrar uma festa. Por exemplo, durante a missa, na hora do abraço da paz, todos se abraçavam com tanto calor humano que se percebia claramente uma profunda comu-nhão. Ali não apenas se compartilhava o pão eucarístico, mas também a a-mizade e a solidariedade. Aqueles cantos maravilhosos e bem ritmados con-tribuíam para esta grande festa (sic)350.

O acordeonista Pedro Severino da SILVA completa: “(...) A missa celebrada pelo

Pe. Geraldo era uma alegria total. No final da celebração, todos nós íamos para casa satisfei-

tos, como se a gente estivesse saindo de uma festa muito animada”351.

A festa da padroeira N. Sra. do Bom Conselho, celebrada em meados do mês de

novembro era talvez, a segunda mais animada, perdendo só para a festa da páscoa. No ano de

1970 - ano da enchente que desabrigou quase 100 famílias em Ponte dos Carvalhos - GLB

não deixou por menos, preparou uma das maiores festas da padroeira. A motivação para tão

animada festa ficou registrada no livro de tombo da paróquia: “Realizamos nesta ocasião, a

festa de N. Sra. do Bom Conselho com o máximo brilhantismo possível. A comunidade resol-

veu fazer a festa, apesar da situação. ‘O povo precisa se divertir um pouco, senão ninguém

agüentará’” 352. O caráter festivo da liturgia em ocasiões festivas em Ponte dos Carvalhos, se

prolongava com folguedos e outras brincadeiras populares sem ter hora de acabar353.

4.1.4. O Compositor

GLB era mais que um simples compositor. Perguntado, certa vez, se ele era um

poeta, Geraldo respondeu que não e completou: “na verdade, sou um ‘fazedor’ de cantori-

a”354. Esta resposta revela, ao nosso ver, apenas uma parcela das múltiplas facetas de um artis-

350 FLEISCHER, Ansgar. Depoimento gravado por nós, em fita cassete, no Aeroporto de Congonhas – São Pau-lo, em 29/08/1999. Arquivo pessoal nosso. 351 SILVA, Pedro Severino da. Depoimento gravado em fita cassete, por nós, na residência de Genival Lima, em 12/07/1999. 352 LIVRO de Tombo, p. 50. 353 Cf. LIVRO de Tombo, p. 41. “Tivemos nossa feira tradicional com folguedos populares: chegança, ciranda, bumba meu boi, pastoril etc. Se a renda não foi o que se esperava, a alegria foi contagiante e a ordem completa” (Ibidem). 354 Cf. LEITE, Gicélia. Depoimento colhido de uma gravação em fita de vídeo, fornecido gentilmente a nós, pela família, Brasília, [s.d.]. Arquivo pessoal nosso.

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ta que navegou de forma extraordinária no grande oceano que é a arte. GLB teve um desem-

penho brilhante neste oceano que comporta todos os matizes do belo, do insondável...

Geraldo lidava com todo tipo de arte – testemunha o poeta e músico, Pe. Reginaldo Veloso – e sempre a serviço da evangelização dos pobres (...). Começando pela inculturação da experiência eclesial, como poeta, drama-turgo, pintor, escultor, músico, arquiteto, vitraleiro..., ele deixou uma heran-ça através das próprias comunidades por ele suscitadas, em Ponte dos Carva-lhos, no Morro da Conceição, em Escada e por esse Nordeste afora 355.

Em outro depoimento, R. VELOSO amplia ainda mais esta sua percepção, afir-

mando que GLB tinha “uma capacidade incomum de perceber as filigranas da arte popular, do

gosto do povo, do jeito de ser do povo”. Na sua opinião, Geraldo sabia devolver ao povo o

que era do povo, de uma maneira primorosa, apurada, bonita, expressiva..., artisticamente

perfeita. A criação artística de GLB não se resumia em uma simples cópia ou repetição do

jeito artesanal do povo se expressar; mas ele a enriquecia com seus dotes artísticos, com o que

ele havia acumulado em seus contatos, com toda a sua formação e sua cultura. E conclui:

(Geraldo) sabia trabalhar o que era do povo, enriquecendo esta matéria-prima, com aquilo que era a sua alma de artista e a sua sensibilidade e o seu cabedal cultural. Não era um popular popularesco ou repetitivo, copiador..., era um popular de raiz trabalhando com toda a riqueza criadora que ele foi 356.

Embora GLB tenha sido prodigioso em muitos campos da arte, voltaremos nossa

atenção para o aspecto da composição musical – objeto principal de nossas incursões nesta

dissertação. Dissemos anteriormente, que GLB era um artista nato, ou melhor, um autodida-

ta.357 Esta sensibilidade artística e natural de GLB, foi aperfeiçoada de forma espetacular,

graças à sua capacidade de percepção, de escuta, de total entrega à gratuidade da vida - ex-

pressa principalmente nas manifestações populares. A partir desse aprendizado informal,

GLB foi criando um repertório litúrgico inculturado na Igreja de Ponte dos Carvalhos.

Focalizaremos o compositor GLB sob três aspectos: a) sua fonte de inspiração

para a composição; b) seu relacionamento com os principais parceiros (poetas e músicos) e

355 VELOSO, Reginaldo. Depoimento gravado em fita de vídeo, produzida por G. Coppola, R. Coppola e L. Esposito, Vico Equense – Itália, [s.d.]. Arquivo pessoal nosso. 356 Idem. Depoimento gravado em fita cassete, no Recife, em 18/02/1999. Arquivo pessoal nosso. 357 Cf. item 4.1.1.

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intérpretes (instrumentistas e cantores); c) suas exigências quanto à espiritualidade do intér-

prete da ML na liturgia.

4.1.4.1. As fontes de inspiração do compositor GLB

Além das fontes matrizes para a composição da ML – Sagrada Escritura e fontes

litúrgicas358 - GLB buscou nas manifestações populares, especialmente na etnomúsica religio-

sa nordestina, a vertente mais genuína para criar uma ML inculturada. José GENERINO –

parceiro de GLB desde o ano de 1967 – recorda-se de uma pesquisa de música folclórica feita

no final da década de 60, pelo antropólogo José Maria Tavares e GLB. Cerca de 2000 melodi-

as foram recolhidas desde o Maranhão até à Bahia. Tanto GLB, como o próprio Generino se

serviu deste manancial359 em suas composições musicais.

J. GENERINO reconhece que o que se fazia em termos de ML, na paróquia de

Ponte dos Carvalhos, nos anos 60 e 70, era algo genuíno e pioneiro:

(...) o que se cantava nas igrejas por aí, naquela época, era aquele negócio antigo, arrastado, música importada (...). Mas aqui, não, nós cantávamos bai-ão, samba, marchinhas, etc. Eu comecei a compor a partir dos temas musi-cais recolhidos das pesquisas (de J. M. Tavares e GLB), e ia criando algo novo para o repertório da Igreja. (...) A gente pegava esses temas e fazia missas. Todo ano eu trazia uma missa nova para ensaiar aqui em Ponte dos Carvalhos. Eu fiz um bocado de músicas assim 360.

Nesta mesma direção, prossegue o monge beneditino Marcelo de Barros SOUZA:

Quem conheceu Geraldo Leite sabe que ele foi um dos pioneiros da incultu-ração da Igreja e não só da liturgia. Em uma época em que poucos ligavam para isso, ele aproximou a sua comunidade e a liturgia das culturas negras e caboclas. A sua paróquia, modelo de uma Igreja viva e solidária, era a ‘me-nina dos olhos’ do arcebispo Dom Helder 361.

GLB “não sabia ler música e nunca aprendeu teoria musical” –lembram-nos em

tempo, Irmão MICHEL e o compositor R. VELOSO. A voz de GLB não era das mais brilhan-

tes. Ouvindo gravações em fitas cassetes deixadas por ele, às vezes é difícil precisar determi-

358 Cf. SC 121. 359 Sobre este acervo, não se sabe o certo do seu paradeiro. “Talvez ainda se encontre alguma coisa desse materi-al na Universidade Federal de Pernambuco” – arrisca José GENERINO. Até o presente momento, não conse-guimos solucionar esta questão, uma vez que o pesquisador José Maria TAVARES, atualmente reside na capital francesa (Paris). 360 GENERINO, José. Depoimento gravado em fita cassete, em Ponte dos Carvalhos, em 12/07/1999. Arquivo pessoal nosso. Sobre as principais obras deste compositor podemos citar: A “Missa dos pedintes” (Senhor – Glória – Santo – Cordeiro) e o canto “Quem disse que Deus está aqui”, ambos gravados no LP Nação do Divino (1970); “A Deus pedimos perdoar”, Hinário litúrgico II, p. 80; “Ó Jesus, não te esqueças de mim!”, Hinário litúrgico III, p. 290. 361 SOUZA, Marcelo Barros de. A central única dos excluídos. Revista de Liturgia, São Paulo, v.134, [mar./abr.] 1996, p. 5.

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nadas alturas de notas. É igualmente freqüente em suas interpretações vocais, o uso de porta-

mentos que nos levam a suspeitar da existência de intervalos melódicos de quarto de tom362.

Suas melodias, além da acentuada presença de constâncias modais, típicas da mú-

sica nordestina (objeto formal desta dissertação e que serão analisadas ainda neste capítulo),

fazem com que encontremos uma expressiva influência da cultura afro-brasileira, especial-

mente a música dos terreiros. GLB certa vez afirmou: “O que eu faço, aprendi nos terreiros de

Umbanda e de Xangô, nos folguedos populares. Perdi noites e noites nas brincadeiras do po-

vo”363. Aliás, o Pe. Geraldo costumava dizer que enquanto muitos negros se dizem ter a alma

branca, ele se considerava um branco de alma negra”364. Na apresentação da 2ª edição do livro

de cantos “Loas e lamentos – 2”, da paróquia de N. Sra. da Apresentação de Escada (PE),

GLB descreve, sucintamente, as principais características de sua música:

Nossa música é toda uma mistura de melancolia e esperança, de ritmos e saudades, de alegria e dores, de África e de Brasil. São descrições de fatos da vida, cantados nas feiras populares, são narrações com a alma viva e crente, às vezes ingênua, mas quase sempre sagaz e vibrante 365.

4.1.4.2. GLB e seu relacionamento com parceiros e intérpretes

José GENERINO e o Pe. Reginaldo VELOSO foram os principais parceiros de

GLB no exercício da composição de ML. O relacionamento entre eles era de muita cordiali-

dade e total abertura e franqueza tanto para dar, como para acolher sugestões mútuas. J. GE-

NERINO avalia positivamente sua relação com GLB, confessando que este muito o estimulou

no labor da composição:

Pe. Geraldo valorizava tudo o que a gente fazia. Ele nunca desaprovava, por completo, um trabalho da gente, por mais simples que fosse. Ele sugeria e, às vezes, ele mesmo fazia as correções, tanto no texto como na melodia ou as duas coisas ao mesmo tempo. (...) O mesmo procedimento se dava de forma inversa: Eu muitas vezes mexi em composições dele e ele sempre acolhia, de bom grado, qualquer sugestão que viesse a melhorar a qualidade da compo-sição 366.

362 Na música ocidental, basicamente, a menor unidade é o meio tom (semitom). Frações intervalares menores, encontramos em grande escala, em melodias originárias de culturas indianas, japonesas, africanas, do Oriente Médio etc. 363 BASTOS, G. Leite. Loas e lamentos. Op. cit. p. 15. 364 Esta afirmação, nós a ouvimos da boca de várias pessoas que conviveram com GLB. 365 Idem. Loas e lamentos. Op. cit. p. 1. 366 GENERINO, José. Depoimento gravado em fita cassete, em Ponte dos Carvalhos, em 12/07/1999. Arquivo pessoal nosso.

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O Pe. Reginaldo VELOSO - poeta e músico, parceiro, admirador e fiel amigo de

GLB – reconhece que Jocy Rodrigues367 e GLB foram as duas figuras que mais o influencia-

ram e ainda o inspiram, na prática da composição musical: “(...) eles me deram os toques mais

importantes para esse trabalho que eu venho desenvolvendo até hoje. (...) Geraldo era para

mim um tipo de ‘guru’, de mestre ”368. Reginaldo ainda recorda que passou muitas horas e até

dias inteiros, trabalhando textos e/ou melodias com GLB. Dentre as muitas composições fei-

tas em parceria com Geraldo, Reginaldo acredita que a obra de maior expressividade foram as

louvações (prefácios populares):

Tudo começou quando voltei de uma viagem à Juazeiro, no ano de 1977. Eu me inspirei em um daqueles benditos do padre Cícero, para fazer um prefá-cio pascal. Mostrei a ele (GLB) o que tinha feito. Ele gostou muito da idéia e começamos, juntos, a fazer textos e melodias de louvações para outros ciclos do ano litúrgico, festas e santos. Inclusive hoje tem algumas louvações que eu nem sei direito quem é o verdadeiro autor, se foi ele ou eu 369.

Ainda falando sobre os memoráveis momentos em que passou com GLB, VELO-

SO também relembra que GLB era uma pessoa extremamente sincera, transparente e franca.

Quando não gostava de alguma coisa, ele não esperava dois minutos sequer para dizer o seu

ponto de vista, mesmo se contrário ao do seu melhor amigo. Eis um fato acontecido entre os

dois, narrado pelo próprio Reginaldo:

Eu me lembro uma vez, em que estava preparando alguns versos para a aber-tura do ofício divino das comunidades. Geraldo estava doente e internado num hospital daqui do Recife, próximo à sua morte. Fui lá visitá-lo e apro-veitei a oportunidade para mostrar-lhe o que eu tinha feito. Quando eu acabei de ler aqueles versículos, ele, num tom de desaprovação, imediatamente ex-clamou: ‘está uma bela porcaria’. (risos) Geraldo era a sinceridade personifi-cada. A gente sabia exatamente o que ele pensava 370.

367 Jocy RODRIGUES desenvolveu um trabalho pioneiro de inculturação da ML, em São Luís (MA). Principais obras publicadas: O Evangelho em ritmo brasileiro – Paróbolas. Rio de Janeiro: Universa laus – secção brasilei-ra, 1967; O Evangelho em ritmo brasileiro – Cenas do Evangelho, Rio de Janeiro: Universa laus – secção brasi-leira, 1967; O Evangelho em ritmo brasileiro – Mensagens, São Paulo: Edições Paulinas, 1971. Muitos cantos dessas três coleções foram publicados no Hinário litúrgico da CNBB. É notável também a versão popular (metri-ficada e rimada) dos salmos, publicada integralmente no livro: Assim rezava Jesus. São Paulo: Paulinas, 1993. Muitos desses salmos encontram-se também no OFÍCIO divino das comunidades. São Paulo: Paulus, 1999. 368 VELOSO, Reginaldo. Depoimento gravado em fita cassete, por nós, no Recife, em 14/07/1999. Arquivo pessoal nosso. 369 Para maiores detalhes sobre a história dessas “louvações”, veja: VELOSO, Reginaldo. Prefácios populares, Revista de Liturgia. São Paulo, v 74, [mar./abr.] 1986, p. 9-24. Neste artigo, o autor além de comentar como surgiram esses prefácios populares, faz uma apologia sobre a necessidade urgente de uma inculturação mais arrojada, sobretudo da Oração Eucarísticas como um todo. As “louvações” foram publicadas nos 4 fascículos do Hinário litúrgico da CNBB. Uma curiosidade: No túmulo de GLB está gravado um versículo da Louvação para os defuntos: “A vida não é tirada, mas transformada em outra melhor...” 370 VELOSO, Reginaldo. Depoimento gravado em fita cassete, no Recife, em 14/07/1999. Arquivo pessoal nos-so.

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Esta resposta dada a R. Veloso nos remete a um outro aspecto que era muito caro

ao compositor GLB: a boa qualidade do texto. Um ano antes de sua morte (1986), numa en-

trevista concedida à Revista de Liturgia, GLB chama-nos a atenção para a importância do

texto na composição da ML. Para ele, além de brotar da Sagrada Escritura e da vida do povo,

o texto deve ser poético - no sentido mais estrito do termo – e isento de chavões e sermões

moralistas, doutrinários... que só empobrecem a ML371.

O relacionamento entre GLB e os intérpretes (instrumentistas e cantores) não foi

diferente do que acabamos de relatar sobre seus parceiros na arte da composição. Tivemos a

oportunidade de conversar com alguns membros do antigo conjunto vocal e instrumental que

abrilhantava a liturgia em Ponte dos Carvalhos, nas décadas de 60 e 70372. Todos foram unâ-

nimes em afirmar que GLB era bastante exigente nos ensaios e, constantemente pedia que

cada um deles desse o melhor de si na hora da execução da ML. Por outro lado, tudo isso se

dava num clima de muita cordialidade:

Ele gostava muito da nossa turma – relembra Ramos J. da SILVA – e aonde ele era convidado para celebrar (TV Globo, outras cidades...), Pe. Geraldo fazia questão de nos levar juntos com ele. (...) Uma vez fomos cantar em Ju-azeiro e, quando terminou a missa, ele disse: ‘agora vocês dêem uma espetá-culo para o povo da cidade’. Tocamos forró e dançamos pra valer com o po-vo. Na hora de nossa partida, muitas lágrimas do pessoal daquele lugar...373.

Tanto nos ensaios como na hora da liturgia, havia uma sadia criatividade. Graças à

capacidade de GLB de ser um improvisador nato, o grupo de músicos também adquiriu esta

habilidade. “(...) A gente nunca tocava da mesma maneira a mesma música, sempre estáva-

mos criando algo novo em cada execução. Todo o povo era logo contagiado pela força daque-

la música. O Pe. Geraldo era mestre em levar o povo a se envolver no canto e na dança”374.

Ainda falando sobre a contínua criatividade de GLB, J. GENERINO complementa:

(...) era algo tão contagiante que fica até difícil de descrever como aconteci-am estas improvisações e o mais interessante é que, no final, tudo dava certo e agradava a todos. (...) Não foram poucas as vezes em que estávamos can-tando uma deter-minada música e ele (GLB) saía improvisando com varian-

371 Cf. BASTOS G. Leite. Loas e lamentos. Revista de Liturgia. Op. cit. p. 15. Esta preocupação com a boa qua-lidade do texto da ML, vem ao encontro de tudo o que dissemos no capítulo I desta dissertação, quando tratamos da letra (cf. item 1.3.1), e os critérios básicos para análise, escolha e formação do repertório litúrgico (cf. item 1.5). 372 As pessoas entrevistadas foram: SILVA, Ramos José da; SANTANA, Genilson Marcelino de; LIMA, Geni-val; ALVES, Maria Auxiliadora; SILVA, Pedro Severino da; GENERINO, José Generino; CORREIA, Maria Inês do Nascimento; NANDO CORDEL. Gravação em fita cassete. Arquivo pessoal nosso. 373 SILVA, Ramos José da. Depoimento gravado em sua residência, em Ponte dos Carvalhos, em 11/07/1999. Arquivo pesssoal nosso. 374 Ibidem.

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tes de textos e fragmentos melódicos, em cima daquilo que nós estávamos cantando 375.

O próprio GLB, um ano antes de sua morte, falou sobre esta sua arte de improvi-

sar: “Às vezes, vou improvisando na hora e o povo vai aprendendo no momento. Não é uma

criatividade programada, é bem natural, espontânea. Eu aprendi isso com o povo”376.

4.1.4.3. A espiritualidade do intérprete da ML

GLB exigia de seus músicos a busca contínua da integração entre o gesto corpo-

ral, o sentido teológico e a atitude espiritual enquanto cumprissem seu ministério na liturgia.

Ele costumava lembrar aos instrumentistas e cantores que ninguém estava ali para fazer show,

mas sim para prestar um serviço a Deus e a seu povo, durante a ação litúrgica. Ramos J. da

SILVA e seus colegas, perceberam, na prática, tal exigência de GLB:

Enquanto celebrava a missa, aquele jeito dele, transmitia sempre uma inspi-ração nova para nós que estávamos ali cantando e tocando. Éramos tomados por uma emoção indescritível que envolvia a todos durante a liturgia. Nós não tocávamos por tocar. Tocávamos e cantávamos para Deus e, em nenhum momento, sentíamos como um artista fazendo um ‘show’ no palco, numa simples exibição. Estas vaidades não cabiam na nossa filosofia de vida como grupo”377.

Outro depoimento importante foi-nos dado por Maria Inês do NASCIMENTO.

Muito a impressionou a maneira como GLB se comunicava com a assembléia, enquanto pre-

sidia e cantava. “Seus gestos expressivos nos contagiavam – disse-nos Inês – e éramos sedu-

zidos por aquela música e não tínhamos outra coisa a fazer a não ser entrar naquele grande

coro de vozes ressoando por toda a Igreja”378.

Estas palavras de M. Inês nos levam a pensar naquilo que disse Santo AGOSTI-

NHO, a respeito do canto da assembléia dirigido pelo bispo Ambrósio de Milão e que o leva-

375 GENERINO, José. Depoimento gravado em fita cassete, em Ponte dos Carvalhos, em 12/07/1999. Arquivo pessoal nosso. Quando, no ambiente musical, se usa o termo improvisação, todos se dão conta de que se trata de uma arte bastante complexa. Um bom improvisador é aquele que sabe manipular todos os elementos básicos da teoria musical como: o ritmo, o contraponto, a harmonia etc., para se criar uma nova forma musical, a improvi-sação. A improvisação normalmente é feita sobre um tema musical dado, previamente. Já a palavra improvisa-ção, fora do mundo musical, às vezes é usada para definir algo avacalhado, mal preparado, desorganizado..., o que não é o nosso caso aqui! 376 BASTOS, G. Leite. Loas e lamentos. op. cit. p. 16. 377 SILVA, Ramos José da. Depoimento gravado em fita cassete, em 11/07/1999. Arquivo pessoal nosso. 378 NASCIMENTO, Maria Inês do. Depoimento gravado em fita cassete, por nós, na residência de Genival Lima, em 12/07/1999. Arquivo pessoal nosso.

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va às lágrimas: “(Vossos hinos e cânticos) fluíam em meu ouvido, destilando a verdade em

meu coração. Um grande elã de piedade me elevava, e as lágrimas corriam-me pela face, mas

me faziam bem”379. Esta animadora do canto da paróquia de N. Sra. do Bom Conselho, disse-

nos também que GLB não só cantava com a boca, mas todo o seu corpo. Em outras palavras,

o que GLB transmitia era algo maior que a própria música por ele composta e interpretada:

“uma atitude interior, vinda de dentro, com muita autenticidade”380.

Maria Auxiliadora ALVES – outra cantora do conjunto vocal da Igreja de Ponte

dos Carvalhos – ainda falando sobre a interação entre GLB e a assembléia, revela-nos: “As

pessoas cantavam com emoção, mas esta emoção começava com ele (GLB). Ele nos conven-

cia a entrar no mesmo barco. E, tomados por aquela força, embarcávamos de cheio, na dinâ-

mica do canto. Era algo quase que mágico”381.

Durante os ensaios com os atores que interpretavam os jograis Encontro de Peni-

tência e Descida da Cruz – apresentados na manhã da sexta feira santa em Ponte dos Carva-

lhos -, GLB os advertia sobre a seriedade e importância destes espetáculos que não eram ape-

nas para serem vistos, mas sobretudo, vividos. G. M. de SANTANA ainda se lembra que

GLB era bastante rigoroso no momento da escolha de um novo ator. Além do talento necessá-

rio, ele exigia do candidato a fé e um profundo engajamento na vida da Igreja.

Pe. Geraldo exigia de nós fé e autenticidade em cada palavra ou gesto. Era esse o objetivo do nosso trabalho: que todas as pessoas não apenas fossem meros espectadores, mas sim, co-participantes daquela ação, ou seja, tendo presente que Jesus Cristo continua nascendo, morrendo e ressuscitando, aqui e agora. Nós, os atores, éramos os responsáveis para que isso acontecesse e, de fato, acontecia: era uma grande celebração, todos (assembléia e atores) participavam ativamente de cada cena, de cada momento 382.

Em sua carta pastoral sobre o VII Encontro de Penitência (1969), GLB explica a

seus paroquianos o verdadeiro sentido destes recursos teatrais por ele usados na liturgia: “(...)

Não se trata de fazer algo para inglês ver, nem quando fazemos a apresentação dos passos ou

379 Confissões 9, 14. 380 NASCIMENTO, Maria Inês do. Depoimento gravado em fita cassete, em Ponte dos Carvalhos, em 12/07/1999. Arquivo pessoal nosso. 381 ALVES, Maria Auxiliadora. Depoimento gravado em fita cassete, em 12/07/1999. Arquivo pessoal nosso. 382 SANTANA, Genilson Marcelino de. Depoimento gravado em fita cassete, em 12/07/1999. Arquivo pessoal nosso.

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da morte do Senhor. Nossa procissão é exclusivamente penitencial. Sendo este termo usado

com o mesmo sentido bíblico de conversão”383.

Esta primeira seção teve como principal objetivo situar o homem, o pastor, o li-

turgo e o compositor GLB. Resta-nos agora, mergulhar no âmago do nosso estudo ou seja, a

análise teológico-litúrgica e musical do repertório do tríduo pascal do autor em questão. Pas-

semos à segunda seção que tratará especificamente deste assunto.

4.2. Análise teológico-litúrgica e musical do repertório do tríduo pascal do compositor Geraldo Leite Bastos Uma vez que a primeira seção do capítulo IV teve como principal objetivo con-

textualizar a figura de Geraldo Leite Bastos, esta segunda seção se ocupará do repertório li-

túrgico do tríduo pascal deste compositor.

Inicialmente, trataremos da festa da páscoa, desde a preparação (quaresma) até sua

celebração. Após a descrição panorâmica de como cada dia do tríduo pascal era celebrado e

vivido em Ponte dos Carvalhos, seguirá a apresentação e análise do repertório litúrgico cor-

respondente.

4.2.1. A festa da páscoa: cume e fonte da pastoral litúrgica de GLB

O ciclo da Páscoa que culmina na festa da Páscoa da Ressurreição do Senhor, era

o eixo principal sobre o qual girava toda a pastoral litúrgica de GLB em Ponte dos Carvalhos.

4.2.1.1. Preparação (a quaresma)

A preparação para a celebração da Páscoa da Ressurreição do Senhor, na paróquia de

N. Sra. do Bom Conselho em Ponte dos Carvalhos, era feita com muito zelo e criatividade. A

partir da quarta-feira de cinzas, toda a comunidade, juntamente com o seu pastor, mergulhava

num rigoroso deserto com fortes apelos à conversão, através da penitência, jejuns e abstinên-

383 BASTOS, G. Leite. VII Encontro de Penitência. Ponte dos Carvalhos, [s.d.]. Mimeografado. Quando GLB diz “Apresentação dos passos” ele se refere ao jogral Encontro de Penitência e “Morte do Senhor”, ao jogral Descida da Cruz. Falaremos sobre estes jograis, mais adiante.

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cias. O fato das cinzas provirem de restos do carnaval (fantasias, serpentinas, confetes...)384

que eram queimados à vista de todos, durante a liturgia, causava um grande impacto na as-

sembléia. A partir desse gesto simbólico, ninguém duvidava da seriedade e da austeridade que

estaria por vir ao longo de toda a quaresma. GLB era o primeiro a dar o exemplo, e muitos o

seguiam – testemunha Célia DE BIASE:

Realmente ele não dizia como naquela história: ‘faça o que eu digo, pois não faço o que eu falo’. (...) Ele era autêntico. (...) A gente aprendeu com ele esta autenticidade. Foi uma passagem muito bonita e, para mim, hoje, honesta-mente, é meio difícil participar de uma comunidade – ao menos aqui no Re-cife, na Boa Viagem – a gente não encontra nada daquilo que tivemos quan-do o Pe. Geraldo ainda estava entre nós...385.

A partir da quinta-feira após as cinzas, o ofício da manhã era celebrado mais cedo,

ou seja, às 5:00. Em virtude desta mudança de horário, este ofício quaresmal foi também

chamado de ofício da madrugada. Terminada a quaresma, o ofício da manhã voltava ao seu

horário de costume, às 7:00 horas386.

Conforme depoimentos colhidos entre algumas pessoas de Ponte dos Carvalhos,

este ofício da madrugada marcou profundamente suas vidas. Os pontos mais comentados e

lembrados foram:

- O horário do ofício: o fato das pessoas interromperem o seu sono, para irem até à Igreja;

- O canto: sobretudo o do convite à oração cantado na abertura do ofício, e o canto dos

salmos;

- O silêncio, especialmente na chegada: a igreja com suas luzes apagadas;

- A Palavra proclamada e a homilia;

- Os jejuns, que de fato, mexiam com as pessoas:

. jejum da língua: evitar falar o que não se deve... fofocas, maledicências... (1ª semana);

. jejum dos passos: evitar a freqüência a lugares inconvenientes a um bom cristão (2ª semana);

. jejum da vista: por exemplo, evitar ver novelas de TV... (3ª semana);

384 Esta novidade no ritual das cinzas foi introduzida na paróquia de N. Sra. do Bom Conselho, em Ponte dos Carvalhos, no ano de 1969 (Cf. LIVRO de Tombo, p. 43v). 385 DE BIASE, Célia. Depoimento gravado em fita cassete, no Recife, em 18/02/1999. Arquivo pessoal nosso. 386 O ofício da madrugada, durava em torno de 45 minutos; enquanto o ofício celebrado fora da quaresma, às 7:00, durava 30 minutos. A estrutura básica de ambos os ofícios era: Convite à oração em forma de pregão; dois salmos adaptados à linguagem poético-rítmico-melódica do Nordeste; leituras bíblicas do dia; homilia; a Oração universal dos fiéis, concluída pelo Pai-nosso. Conforme depoimento do artista plástico Genival LIMA, às vezes rezava-se esta Oração do Senhor de mãos dadas, andando pelo interior da Igreja. Com este gesto, o liturgo GLB realçava o caráter universal da oração litúrgica: toda assembléia reunida em nome do Senhor, faz parte de uma outra bem maior que é a Igreja peregrina, presente no mundo inteiro.

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. jejum do gosto: em comunhão com os que passam fome, evitar aqueles alimentos que mais

apreciamos como doces, sorvetes... (4ª semana);

. jejum do coração: buscar sempre o desapego às coisas que nos atrapalham a seguir a Cris-

to... (5ª semana)387.

A ML que compunha o rico repertório do ciclo da Páscoa – e, na sua maioria de

autoria de GLB - sublinha o caráter penitencial e o acentuado apelo à conversão (quaresma) e

realça a vida nova em Cristo e a alegria pascal (Páscoa). Voltaremos a esse assunto, mais adi-

ante, quando estivermos analisando o repertório do tríduo pascal do compositor GLB.

Quanto aos instrumentos musicais, na quarta-feira de cinzas, antes da imposição

das cinzas, estes eram ritualmente depositados aos pés do altar388. O único instrumento que

permanecia tocando ao longo de toda a quaresma era o tambor. Este instrumento, muito reve-

renciado por GLB389, marcava a sobriedade quaresmal. Para Célia DE BIASE, o toque qua-

resmal do tambor também ajudava a caracterizar este tempo litúrgico:

(...) não era um toque alegre. Era um toque triste, quer dizer, de conversão mesmo, de penitência. (...) Aquele toque me intimava a fazer penitência, a-quele toque meio pesado, entendeu? Cada batida era como se dissesse: você está aqui, e tem que se converter... Então a gente ficava compenetrada, sa-bendo que algo ia acontecer de um momento para outro no interior da gente 390.

Os demais instrumentos (sanfona, violão, triângulo, bongô, chocalho...), só volta-

vam a tocar no 4º domingo da quaresma (domingo “laetare”)391, no domingo de ramos (du-

rante a procissão), na quinta-feira santa (até o momento do “lavapés”) e no sábado santo (vigí-

lia pascal).

Um gesto marcante do liturgo GLB, repetido a cada ano - e que seus ex-

paroquianos ainda recordam com certo destaque – se dava no 4º domingo da quaresma (do-

mingo “laetare”). Neste domingo, toda a comunidade era convidada a trazer rosas para a I-

387 N.B.: Estes jejuns eram proclamados na segunda-feira de cada semana da quaresma. 388 Cf. LIVRO de Tombo, p. 43v. 389 Certa vez GLB disse: “Quando canto os salmos com o povo é o tambor que marca o ofício, concentra e unifi-ca. (...) O tambor foi o instrumento principal que levou a mim e o povo à verdadeira oração. (...) Por exemplo, a gente canta o salmo e entre um versículo e outro, há um espaço que só se tocam os tambores. Em geral, os ofí-cios têm início com o toque dos tambores...” (BASTOS, G. Leite. Loas e lamentos. Op.cit. p. 16). 390 DE BIASE, Célia. Depoimento gravado em fita cassete, no Recife, em 18/02/1999. Arquivo pessoal nosso. 391 A expressão Domingo laetare, tem sua origem na antífona de entrada da missa: Laetare, Jerusalem: et com-ventum facite, omnes qui diligitis eam... (Alegra-te, Jerusalém! Reuni-vos, todos os que a amais...). Quanto à cor litúrgica, neste domingo, o roxo quaresmal cede lugar à cor rosa.

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greja. Estas rosas eram abençoadas durante a liturgia e, num momento expressivo de congra-

çamento na fé e na alegria, todos se cumprimentavam mutuamente trocando entre si, as rosas

trazidas de suas casas. GLB encontrou neste gesto simbólico uma maneira acessível para

transmitir àquela gente simples e acolhedora da comunidade de Ponte dos Carvalhos a longa

tradição litúrgica da Igreja que caracterizou este 4º domingo como um dia especial de pausa

ou descanso, perante ao rigor dos exercícios quaresmais. O pastor da Ponte costumava fazer a

comparação entre a rosa e o tempo quaresmal: a rosa é bela, porém, tem seus espinhos!392

4.2.1.2. O tríduo pascal (Páscoa da ceia, Páscoa da cruz, Páscoa da Ressurreição do Se-

nhor) na Ponte dos Carvalhos

O tríduo pascal em Ponte dos Carvalhos era celebrado de forma intensa. Toda a

comunidade, de algum modo, se envolvia nos preparativos e participava ativamente das cele-

brações litúrgicas. Aliás, GLB tinha o dom especial de envolver o máximo de pessoas nas

atividades paroquiais, fossem elas litúrgicas ou não. A seguir, passaremos a descrever as prin-

cipais atividades litúrgicas desses três dias de profunda vivência do mistério pascal de Cristo,

baseando-nos sobretudo nas anotações feitas pelo próprio GLB no livro de tombo da paróquia

de N. Sra. do Bom Conselho e em depoimentos de contemporâneos, colhidos por nós. Depois

da descrição panorâmica das atividades litúrgicas de cada dia do tríduo pascal, procederemos

à apresentação e análise do repertório litúrgico correspondente.

a. A Páscoa da Ceia do Senhor

A liturgia da ceia do Senhor era celebrada com muita expressividade. Além dos ri-

tos prescritos para esse dia, GLB introduziu outras particularidades como:

- Os instrumentos musicais voltavam a tocar festivamente nesta celebração, desde o canto

de abertura até o momento do lavapés. Terminado este rito e o canto que o acompanha,

cada instrumentista depositava seu instrumento aos pés do altar; apenas o atabaque conti-

nuava marcando a cadência rítmica do canto da assembléia.

- A admissão dos novos irmãos à Comunidade de Belém. Esta comunidade era constituída

de um grupo de paroquianos mais engajados nas atividades pastorais da paróquia; tinha

uma diretoria (presidente, secretário, tesoureiro...) e se reunia mensalmente com o pároco,

392 Cf. BATISTA FILHO, F. G. Um retiro popular de 40 dias. São Paulo: Edições Paulinas, 1987, p. 13.

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a fim de tratar de assuntos diversos e de interesse da comunidade paroquial. Após a homi-

lia, os novos irmãos, de joelhos, diante da assembléia, faziam o seguinte juramento:

1. Nós não estamos aqui para ser melhor do que ninguém; 2. Nós não estamos aqui para combater ninguém; 3. Nós não estamos aqui para fazer mal a ninguém; 4. Nós estamos aqui para nos amar como irmãos; 5. Nós estamos aqui para servir 393.

“Estes mandamentos eram a nossa bandeira, a nossa norma de vida. (...) Éramos

uma pequena irmandade, sem nenhum status perante os outros. E todos os que quisessem

abraçar esta norma de vida eram bem-vindos. Era um grupo constituído de jovens, adul-

tos, homens e mulheres...”394. No rito do lavapés, os antigos lavavam os pés dos neófitos

que acabavam de ser admitidos.

- Após a Eucaristia da Ceia do Senhor, iniciava-se o grande jejum que se prolongava até à

tarde de sexta-feira, após a ação litúrgica das 15 horas395.

Perguntados sobre a repercussão em suas vidas, destes e de outros momentos ritu-

ais do tríduo pascal, as pessoas entrevistadas foram unânimes em afirmar que tudo era viven-

ciado com muita intensidade: “(...) Era algo que estava acontecendo, de verdade, para mim,

naquele momento”396; “(...) aquilo nos transportava ao tempo de Cristo mesmo, era algo tão

bonito e perfeito que a gente sentia de fato, a presença de Cristo ali”397 ; e ainda: “(...) era co-

mo se Cristo estivesse ali, vivo no meio de nós”398.

Quanto ao jeito de presidir do liturgo GLB, os depoimentos não divergem daque-

les já citados anteriormente, quando falávamos de sua “espiritualidade”399. “Pe. Geraldo pre-

393 Até hoje, encontra-se na Igreja Matriz de Ponte dos Carvalhos, de forma bem visível, um quadro com estes mandamentos da Comunidade de Belém. GLB costumava chamar a grande comunidade paroquial, de Nação do Divino. A Comunidade de Belém fazia parte desta Nação. 394 LIMA, Genival. Depoimento gravado por nós, em fita cassete, na sua residência em Ponte dos Carvalhos, em 09/07/1999. Arquivo pessoal nosso. 395 Este jejum era cumprido à risca por GLB e seus paroquianos. Muitas pessoas ainda se lembram que na casa paroquial, GLB não permitia nem sequer acender o fogo do fogão neste intervalo de tempo. 396 ESPÍRITO SANTO, Maria do Carmo do. Depoimento gravado por nós, em fita cassete, na residência de Genival Lima, em Ponte dos Carvalhos, em 09/07/1999. Arquivo pessoal nosso. 397 LIMA, Eronice Ramos Pereira de. Depoimento gravado por nós, em fita cassete, em sua residência, em Ponte dos Carvalhos, em 09/07/1999. Arquivo pessoal nosso. 398 NUNES, Antônia Maria. Depoimento gravado por nós, em fita cassete, na residência de Genival Lima, em Ponte dos Carvalhos, em 09/07/1999. Arquivo pessoal nosso. 399 Cf. Item 4.1.3. desta dissertação (o liturgo).

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sidia de tal forma, que nos parecia ser o próprio Cristo. Ele fazia tudo aquilo com muita

fé...”400.

a.1. O repertório litúrgico da celebração da páscoa da ceia do Senhor

Os exemplos musicais apresentados no corpo deste trabalho, tiveram como infor-

mante o artista plástico Genival LIMA401.

Quando estivemos pela primeira vez em Ponte dos Carvalhos, em janeiro de

1999402, fizemos a gravação da melodia (vocal) de cada canto. A transcrição musical e as in-

dicações da harmonia (acordes com cifragem alfabética) foram feitos por nós. Estas indica-

ções de acordes seguem os padrões universais da harmonia modal, conforme demonstramos

no capítulo III desta dissertação, num quadro intitulado “a harmonização das escalas modais

e suas fórmulas cadenciais”. Este procedimento em harmonizar as melodias conforme os pa-

drões universais foi uma solução encontrada por nós, uma vez que dispúnhamos apenas da

gravação vocal de tais melodias. E ainda: As partituras que transcrevemos são a principal fon-

te documentária para a nossa análise teológico-litúrgica e musical.

Dos cantos executados a cada ano durante a Eucaristia da Ceia do Senhor, em

Ponte dos Carvalhos, destacaremos dois403:

- “Jesus ergueu-se da ceia” (lavapés): Modo de Ré;

- “Prepara o coração” (canto de comunhão): Modo de Sol.

a.1.1. Jesus ergueu-se da ceia404

O texto deste canto que acompanha o rito do lavapés é uma versão adaptada das

seis antífonas, sugeridas pelo Missal Romano para serem cantadas durante este rito. Estas

400 NUNES, Nair Paulina. Depoimento gravado em fita cassete, por nós, na residência de Genival Lima, em Ponte dos Carvalhos, em 09/07/1999. Arquivo pessoal nosso. 401 A única exceção, é o canto das “Sete últimas palavras” (da sexta-feira santa) que foi extraído do Hinário litúrgico – 2º fascículo, p. 177, e o “Canto para Verônica” (sexta feira santa) que teve como informante Maria da Conceição BOURBON, de Ponte dos Carvalhos. Genival LIMA é natural de Ponte dos Carvalhos (PE). Na dé-cada de 70, juntamente com outros jovens candidatos ao sacerdócio, conviveu de perto com GLB, residindo na casa paroquial de Ponte dos Carvalhos. 402 Estivemos no Recife e em Ponte dos Carvalhos por duas vezes, ao longo deste ano de 1999: a primeira via-gem se deu nos dias 18 a 28/02/1999; a segunda, nos dias 8 a 15/07/1999. 403 Os demais cantos que compõem o repertório da missa da Ceia de Senhor extrapolam o âmbito de nossa análi-se, pelo fato de os mesmos não serem modais. 404 O texto deste e de todos os demais cantos do tríduo pascal que iremos analisar ao longo deste trabalho, está impresso no livro Loas e lamentos; Semana santa, p. 6-18.

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antífonas são, na verdade, uma recapitulação das principais frases do evangelho do dia (Jo

13,1-15), com exceção da última que é do Apóstolo Paulo:

Jesus ergueu-se da ceia, jarro e bacia tomou; Lavou os pés dos discípulos, este exemplo deixou (cf. Jo 13,4.5.15).

Aos pés de Pedro inclinou-se. - Ó, Mestre, não, por quem és? - Não terás parte comigo, se não lavar os teus pés. - És o Senhor, és o mestre, os meus pés não lavarás! - O que agora faço não sabes, mas depois compreenderás (cf. Jo 13,6-8). Se, vosso Mestre e Senhor, os vossos pés quis lavar, Deveis uns para com os outros, o meu exemplo imitar (cf. Jo 13,14). Eis que irão conhecer que sois discípulos meus: Se vos amais uns aos outros, como eu próprio vos amei (cf. Jo 13, 35). Dou-vos novo mandamento, o mandamento é lei: Que vos ameis uns aos outros, como eu próprio vos amei (cf. Jo 13,34). Fé, esperança e caridade reinem neste viajar. A maior é a caridade porque nunca há de passar ( cf. 1Cor 13,13).

Estas seis antífonas reunidas num único hino, descrevem o rito e o sentido teoló-

gico-litúrgico do lavapés realizado por Jesus na última ceia. Esta ação litúrgica - porta de a-

bertura das solenidades do tríduo pascal - comemora a última Ceia de Jesus, a instituição da

Eucaristia, e tem no rito do lavapés o símbolo que expressa um importante aspecto da vida e

da missão de Jesus: seu amor a serviço da humanidade. A. BERGAMINI chama-nos a aten-

ção para “a estreita e inseparável ligação que o evangelho faz entre estes elementos: o serviço,

a caridade fraterna, a paixão do Senhor, a celebração eucarística”405.

O canto “Jesus ergueu-se da ceia” é um referencial de como deve ser uma boa

música ritual, sob dois aspectos: o texto eminentemente bíblico e a simplicidade da melodia

que facilita a participação da assembléia.

405 BERGAMINI, A. Cristo, festa da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1994, p. 320.

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A ausência de um refrão é justificável, pois isto levaria a uma quebra do cursus

narrativo do texto. Aliás, GLB compôs muitas versões de salmos sem refrão e justifica esta

sua posição:

O refrão pode criar monotonia e quebrar o ritmo próprio do salmo. Mesmo quando se trata de salmos com refrão eu o canto só no início e no fim como antífona. O que eu procuro é ser criativo no modo de salmodiar. Os instru-mentos, sobretudo o tambor, cumpre uma função neste sentido: (...) entre uma estrofe e outra há uma pausa onde só os instrumentos atuam e é isso que ajuda a sentir e interiorizar o salmo, a fazer uma verdadeira experiência de oração 406.

A execução do canto do lavapés, em Ponte dos Carvalhos, se dava da seguinte

maneira: a primeira parte de cada estrofe era cantada à capela por um solista, enquanto a as-

sembléia e os instrumentos entravam na segunda parte. Entre uma estrofe e outra, fazia-se um

breve interlúdio instrumental407.

A tessitura da melodia é sóbria, ou seja: atinge apenas seis graus (ré a si) da escala

modal de Ré, distribuídos em duas frases regulares de quatro compassos cada:

A terminação da melodia no terceiro grau da escala (fá) produz um efeito cadenci-

al suspensivo. Talvez o compositor quisesse com este procedimento, sugerir-nos que a prática

da caridade fraterna – mensagem central deste canto - fosse um exercício contínuo e desafia-

dor para todos os que se propõem a seguir o Mestre Jesus Cristo. Acreditamos ter sido esta a

intuição do compositor GLB em não terminar a melodia na finalis (Ré), preferindo deixá-la

em aberto.

Outro dado curioso, ainda relacionado com a cadência final desta peça [compas-

sos 7 (com anacruse) e 8]: 406 BASTOS, G. Leite. Entrevista. Revista de Liturgia. São Paulo, v. 86 [mar./abr.] 1988, p. 58. 407 Cf. LIMA Genival. Depoimento gravado em fita cassete, por nós, em sua residência, em Ponte dos Carvalhos, em 20/02/1999. Arquivo pessoal nosso.

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Comparando estes dois últimos compassos com a cadência final do canto “Canoeiro” (folclore

maranhense)408, a única diferença entre ambos está na rítmica. O esqueleto melódico é idênti-

co. Certifique:

Esta pequena amostra comparativa nos revela o esforço do compositor GLB em

criar um ML inculturada, buscando inspiração na música folclórica brasileira.

a.1.2. Prepara o coração

Cumprindo a função ministerial de acompanhar o momento da comunhão dos fiéis

na celebração eucarística da Ceia do Senhor, o canto “Prepara o coração”- assim como o seu

próprio título nos sugere - é um convite para que todos os corações não se distanciem do nú-

cleo desta noite da ceia pascal: o mistério de Cristo, o Cordeiro imolado que se entregou por

nós, como comida e bebida:

1. Prepara o coração, escuta bem atento Por amor dos seus, Deus se fez alimento. Solo: Prepare o coração! 2. Este grande amor, o mundo não entende A letra não traduz, a língua não exprime. Solo: Tão grande amor! 3. “Isto é meu corpo”, disse o Senhor, “Tomai e comei” unidos no amor. Solo: “Isto é meu corpo”!

408 RODRIGUES, Jocy. Escalas modais da folcmúsica do Maranhão. Op. cit. p. 49.

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4. “Isto é meu sangue” que eu dei assim “Tomai e bebei em memória de mim”! Solo: “Isto é meu sangue”! 5. Ao tomar o pão e ao beber o vinho, Juntos seguiremos o mesmo caminho... Solo: Do pão e do vinho! 6. Caminho da unidade em um só Senhor Caminho da verdade, caminho do amor. Solo: Caminho da unidade! 7. Nada mais suave, não há maior doçura Pão vivo do céu, Ser dado às criaturas! Solo: Nada mais suave! 8. Glória seja ao Pai, ao Filho e ao Amor também, Deus que vive e reina e que um dia vem. Solo: Glória a todos Três!

Trata-se portanto, de um alerta para que o centro vital do corpo humano – o coração – esteja

atento para celebrar tão grande mistério.

Estar com o coração preparado, pressupõe um determinado estágio, onde todas as

dimensões da vida humana estejam perfeitamente integradas entre si. Em outras palavras,

trata-se do convívio harmonioso entre as dimensões afetiva e intelectiva, a afetividade e a

razão, o fervor e a intuição409. “Somente no coração é que somos e nos tornamos nós mesmos.

O coração é o lugar do autêntico encontro consigo mesmo, com os outros, mas especialmente

com o Deus vivo. (...) O coração é o lugar da decisão, o momento pessoal do sim ou do

não”410. Somente com o coração preparado é que podemos celebrar uma liturgia espiritual,

onde aparecem unidas “a subjetividade da participação e experiência litúrgicas com a objeti-

vidade do mistério celebrado”411.

Este canto “Prepara o coração” apresenta três elementos comuns com o canto do

lavapés que analisamos acima:

1) Sua relação direta com a antífona prevista no missal romano. Esta antífona da comunhão

traz o texto paulino da Instituição da Eucaristia: “Este é o meu Corpo que será entregue

por vós, este é o cálice da Nova Aliança no meu Sangue, diz o Senhor. Todas as vezes que

409 Cf. BUYST, I. Liturgia, de coração. Op.cit. p. 12. 410 CORBON, J. Cit. por Ione BUYST. Liturgia, de coração. Op. cit. nota n. 3, p. 12. 411 Ibidem. O grifo é nosso.

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o receberdes, fazei-o em minha memória”412. Isto podemos comprovar nas estrofes 3 e 4

do nosso hino em questão:

“Isto é meu corpo”, disse o Senhor. “Tomai e comei” unidos no amor (...) “Isto é meu sangue” que eu dei assim. “Tomai e bebei em memória de mim”!

2) A ausência do refrão.

3) A melodia termina no terceiro grau (mi) 413 da escala modal de Sol (tônica dó):

Vale ainda observar a ausência da tônica (dó) em toda a melodia.

Quanto à execução desta peça, a assembléia começa entoando cada estrofe e o

solista a conclui, fazendo uma repetição sumária em forma de eco, ao texto do primeiro verso

de cada estrofe:

“Prepara o coração” (estrofe 1), “Tão grande amor” (estrofe 2), “Isto é meu corpo” (estrofe 3), “Isto é meu sangue” (estrofe 4), “Do pão e do vinho” (estrofe 5), “Caminho da unidade” (estrofe 6), “Nada mais suave” (estrofe 7), “Glória a todos Três” (estrofe 8).

Estas conclusões do solista devem ser executadas com grande expressividade, pois

o compositor GLB provocou um break no ritmo de baião, para dar lugar ao ritardando do

solista. Este contraste rítmico parece-nos ter uma função pedagógica: a de alertar os corações

dos fiéis para uma maior sintonia com a ação do Espírito Santo que canta em nós.

412 Cf. 1Cor 11, 24-25. 413 A terminação de melodias no terceiro e também no quinto grau da escala é uma constante na música brasilei-ra. O musicólogo e folclorista José Geraldo de SOUZA, em seu ensaio Características da música folclórica brasileira, p. 4-5, apoiando-se em outros estudiosos como por exemplo, Mário de ANDRADE, alerta-nos para este aspecto da nossa etnomúsica.

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b. A Páscoa da Cruz do Senhor

A Sexta-feira Santa, na paróquia de N. Sra. do Bom Conselho, era um dia marca-

do pelo jejum e pela penitência. A partir das 8 horas da manhã, dava-se início ao Encontro de

Penitência que se encerrava por volta do meio dia. Estes encontros foram uma edição adap-

tada por GLB, para as tradicionais procissões do encontro de Jesus e Maria, comuns em mui-

tas regiões brasileiras. Em Ponte dos Carvalhos, o momento do encontro das duas imagens – a

do Cristo que saía do arraial de Pontezinha (a 5 km de Ponte dos Carvalhos) e a de Maria, da

Igreja matriz – acontecia numa praça chamada Pátio das Guarebas. Todos acompanhavam

estas procissões de pés descalços. Além das duas imagens (Cristo e Maria), legendas, carta-

zes, símbolos da Paixão eram trazidos em procissão414. O arcebispo D. Helder Câmara foi

freqüentador assíduo desses encontros de penitência, realizados em Ponte dos Carvalhos fa-

zendo questão de percorrer todo o trajeto da procissão - assim como todos os penitentes - de

pés descalços.

A novidade principal estava no momento em que as duas procissões se encontra-

vam. Além do tradicional sermão do encontro, era apresentado um jogral elaborado por GLB

e o antropólogo José Maria Tavares, intitulado: Encontro de Penitência. O texto desse jogral -

interpretado por um grupo de cantores e declamadores, devidamente trajados de vestes estili-

zadas – é o resultado de um esforço de “atualização do mistério da paixão de Cristo com todas

as suas conseqüências para o homem de hoje”415. Possui uma introdução e quatro partes cha-

madas de passos. O primeiro passo: Jesus é ajudado por Simão Cirineu, representado por um

camponês; o segundo passo: A queda do Senhor, representado por um bêbado; o terceiro pas-

so: O lamento das mulheres, representado por uma viúva nova; o quarto e último passo: Ve-

rônica limpa o rosto de Jesus, representado por uma prostituta. Conforme anotações de GLB

no livro de tombo da paróquia, “(...)todos estes (camponês, bêbado, viúva e prostitua) trazem

suas cruzes e precisam de ajuda e compreensão”416.

Este formato de encontros de penitência durou de 1963 a 1977. O sucesso destes

encontros foi tão espantoso que, a cada ano, o número de pessoas vindas das cidades vizinhas

414 Cf. LIVRO de Tombo, p. 19v, 28, 39, 44. 415 BASTOS, G. Leite. VII Encontro de Penitência, Ponte dos Carvalhos, [s.d.]. Mimeografado. O texto comple-to do jogral Encontro de Penitência encontra-se no ANEXO II. 416 LIVRO de Tombo, p. 39.

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aumentava de forma considerável. Nas anotações deixadas no livro de tombo da paróquia – já

em 1968 - GLB demonstra uma certa preocupação com este crescente número de pessoas que

se juntavam a cada ano, atraídos pela beleza do teatro, “sem participar do espírito sagrado que

caracteriza o encontro” 417. Estas dificuldades foram se agravando a cada ano, a ponto de no

ano de 1977, o Pe. Geraldo e sua comunidade abandonarem esta modalidade de encontros. A

partir do ano seguinte, em lugar da procissão e dos jograis encenados, fez-se o primeiro dia de

jejum418.

Terminado o encontro, todos se dirigiam silenciosamente até à praça da Igreja

Matriz para a encenação da crucifixão, da morte e da sepultura do Senhor. O texto intitulado

Descida da Cruz era, também, de autoria de GLB e José Maria Tavares. Comentando o seu

conteúdo, GLB nos antecipa: (O texto) “fala dos problemas da região e das responsabilidades

de todos os cristãos do tempo de hoje”419.

Após a encenação da Descida da Cruz, grande parte das pessoas permanecia den-

tro e mesmo ao redor da Igreja em completo silêncio até às 15 horas. Este dia de jejum e peni-

tência encerrava-se com a solene ação litúrgica da Paixão e Morte do Senhor, na Matriz.

Concluída esta celebração, todos se retiravam, em silêncio, para suas casas; cessava-se, então,

o grande jejum.

A mensagem do evangelho adaptada à realidade do povo sofrido e encenada nos

dois jograis encontro de penitência e descida da cruz, teve uma expressiva repercussão tam-

bém na imprensa da época. Além dos jornais regionais Diário da noite, Diário de Pernambuco

e Jornal do comércio, a revista O Cruzeiro, por exemplo, publicou um controvertido artigo

assinado pelo jornalista David NASSER sob o título “O Cristo fuzilado”420. O tom difamató-

rio deste artigo, condenava com veemência o cunho político (comunista) das cerimônias da

semana santa realizadas em Ponte dos Carvalhos. A gravidade das denúncias inverídicas de

417 Cf. Ibidem, p. 42v. 418 Para este primeiro “Dia de jejum”, foi colocado na igreja, na parte da nave, um grande cartaz com os dizeres “A Paixão de Cristo é a fome do povo”. Deste jejum participaram cerca de 300 pessoas. Cf. LIVRO de Tombo, p. 59 e 59v. “(...) conforme testemunho dos presentes, a melhor forma encontrada pela nossa comunidade de celebrar a Paixão do Senhor e o tradicional encontro de penitência” (Ibidem, p. 59v). Este novo modo de celebrar a Paixão (jejum) se estendeu até o ano de 1980, ano em que GLB foi transferido de Ponte dos Carvalhos para a nova paróquia de N. Sra. da Apresentação, em Escada (PE). 419 O texto completo do jogral Descida da cruz encontra-se no ANEXO III. 420 Cf. NASSER, D. O Cristo fuzilado. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, v. 43, [out.] 1970, p. 19-23. “O autor descre-ve a Paixão assistida por D. Helder numa Igreja de Recife. Jesus (representado por um padre) de blusão verme-lho e calça far west. A Virgem Maria de minissaia canta um baião. Dois tocadores de violão. Os estudantes a gritar contra a guerra do Vietnã. E o povo a esbofetear Jesus e a gritar: Fuzilai-o! Fuzilai-o!” (Ibidem, p. 20).

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tal artigo levou a comunidade de Ponte dos Carvalhos a enviar uma carta de protesto ao dire-

tor da revista O Cruzeiro acompanhada de mais de mil assinaturas421.

Se por um lado, a imprensa regional publicava artigos de protesto contra GLB e

sua criatividade litúrgica, por outro, a mesma imprensa também registrou crônicas de cunho

positivo sobre as novidades litúrgicas realizadas na paróquia de N. Sra. do Bom Conselho, em

Ponte dos Carvalhos. O jornalista Maurício COUTINHO, em artigo intitulado Ponte dos Car-

valhos tem via sacra diferente: Camponês, viúva e prostituta, Cristos de hoje, assim se ex-

pressa:

Aquele que morreu há mais de 1900 anos, para a redenção da humanidade, continua a morrer todos os dias na pessoa dos famintos, dos injustiçados, de todos que são colocados à margem dos bens da vida, dos humilhados, dos ofendidos. Padre Geraldo Leite Bastos, (...) angustiado pelos dramas sociais de nossos tempos, vê nos sofredores de todas as horas a figura de Cristo re-divivo 422.

O mesmo jornalista, citando as palavras proferidas por D. Helder Câmara durante

o sermão do encontro, completa: “aquela era a via sacra autêntica dos dias de hoje, dias de

ira, de injustiça, de ódio, de miséria”423.

b. 1. O repertório litúrgico das celebrações da Páscoa da Cruz do Senhor

Conforme acabamos de descrever logo acima, a Sexta-feira Santa em Ponte dos

Carvalhos era marcada por dois momentos celebrativos: na parte da manhã, o encontro de 421 Cf. LIVRO de Tombo, p. 47-49. Nestas páginas encontram-se o conteúdo integral da carta ao diretor da revis-ta O Cruzeiro. A mesma carta foi enviada para os principais órgãos de imprensa do país, como: as revistas Veja e Manchete, os jornais O Pasquim, Jornal do Brasil, Correio da manhã, Folha de São Paulo, Estado de São Paulo etc. Outro crítico e deturpador dos fatos foi o vereador Wandenkolk WANDERLEI. Este parlamentar, sempre que podia, publicava na imprensa local seus protestos contra a “substituição da música sacra, nos templos católi-cos, por ritmos semi-bárbaros, como xangô, candomblé e outros similares” (Cf. Diário de Pernambuco, Recife, 5/10/1967, Primeiro Caderno, p. 6). Este crítico, ferrenho às investidas de inculturação da MR protagonizadas pelo Pe. Geraldo Leite, chegou a apresentar à Câmara Municipal do Recife, um requerimento que pedia a substi-tuição dos cânticos impróprios no interior das igrejas. O vereador reportava-se às missas realizadas em Ponte dos Carvalhos, “quando o reco-reco, o violão, o triângulo e a cuíca, numa batucada”, segundo ele “incompatível com o respeito à religião”, eram utilizados como “instrumentos de música litúrgica”. A Câmara Municipal rejei-tou tal projeto por 8 votos contra 6. (Cf. Diário de Pernambuco, Recife, 10/09/1967, Segundo Caderno). 422 Diário de Pernambuco, Recife, 14/04/1968, Primeiro Caderno, p. 12. 423 COUTINHO, M. Ponte dos Carvalhos tem via sacra diferente... Diário de Pernambuco, p. 12. Outros artigos publicados: Cristo do Nordeste morre em procissão. Jornal do Comércio, Recife, 14/04/ 1968; SILVA, L. Drama do calvário na BR 101. Diário de Pernambuco, Recife, 25/03/1967, Primeiro Caderno, p. 6. Neste artigo, além de descrever o ato litúrgico, o autor descreve também a atitude dos artistas e da multidão: “Perante choros e soluços da platéia e dos artistas, o espetáculo se desenrola, abalando toda a multidão. (...) O pânico invade a multidão, que mesmo não estando no espetáculo começa com os seus olhos a marejar de lágrimas” (Ibidem).

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penitência e a descida da cruz; às 15 horas, a solene ação litúrgica da Paixão e Morte do Se-

nhor. Para estes momentos, GLB compôs um rico repertório litúrgico. Deste repertório, elen-

caremos os cantos que foram compostos utilizando as escalas modais. Ei-los:

- “Eis o lenho” (encontro de penitência – introdução): Modo de Sol;

- “Canto de Cirineu” (encontro de penitência – 1º passo): Modo de Lá;

- “Canto da queda” (encontro de penitência – 2º passo): Modo de Lá;

- “Pranto das mulheres” (encontro de penitência – 3º passo): Modo de Lá;

- “Canto para Verônica” (encontro de penitência – 4º passo): Modo de Lá;

- “Afinal, chegamos!” (encontro de penitência – canto final): Modos de Sol e Lá, alterna-

dos;

- “Ó vós que passais” (descida da cruz – 1º canto): Modo de Lá ;

- “Na glória da tua casa” (descida da cruz – 2º canto): Modo de Lá;

- “Bendita e louvada seja” (descida da cruz – 3º canto): Modo de Lá;

- “Fiel madeiro da cruz” (adoração da cruz): Modo de Sol;

- “As sete últimas palavras” (adoração da cruz): Modo de Mi.

Para a nossa análise teológico-litúrgica e musical, elegemos dois cantos: “As se-

te últimas palavras” e “Canto para Verônica”.

Antes da análise como tal, cabe-nos uma justificativa de ordem prática quanto à

escolha destes dois cantos: analisar todos estes cantos elencados acima tornaria esta disserta-

ção um tanto volumosa e suscetível a uma exaustão para o leitor. Passemos à análise dos

mesmos:

b.1.1. As sete últimas palavras424

Temos aqui um texto eminentemente bíblico:

Antífona Solo: Ó Vós todos que passais pelo caminho, Todos: Considerai e vede, se há uma dor, maior que a minha dor! (Lm 1, 12). 1. Solo: Meu pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem! (Lc 23,34).

424 CNBB. Hinário litúrgico - 2º fascículo. op. cit. p. 177.

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Todos: Considerai e vede ... 2. Solo: Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso! (Lc 23, 43). Todos: Considerai e vede ... 3. Solo: Senhora, eis teu filho! Eis aí tua mãe! (Jo 19, 26-27). Todos: Considerai e vede ...

4. Solo: Tenho sede, tenho sede! (Jo 19, 28). Todos: Considerai e vede ... 5. Solo: Meu Pai, meu Pai! Porque me abandonaste? ( Sl 21/22,2; Mt 27,46b; Mc 15, 34b). Todos: Considerai e vede ... 6. Solo: Meu Pai, em tuas mãos encomendo o meu espírito! (Lc 24, 46). Todos: Considerai e vede ... 7. Solo: Tudo está consumado! Tudo está consumado! (Jo 19, 30). Todos: Considerai e vede ... Antífona Solo: Ó vós todos que passais pelo caminho, Todos: Considerai e vede, se há uma dor, maior que a minha dor! (Lm 1,12).

“As sete últimas palavras” de Jesus são uma coletânea de frases ditas por Jesus

durante sua crucifixão, pinçadas dos quatro evangelhos. Em algumas cidades do Brasil, na

Sexta-feira Santa, existe a tradição do sermão das sete palavras425 que nada mais é do que um

comentário bíblico-espiritual de cada uma destas frases do evangelho.

Construída sobre uma melodia de rara beleza, “As sete últimas palavras” nos co-

movem pelo aspecto suplicante, magistralmente desenhado pelo compositor. A escolha pelo

modo de Mi426, parece-nos ter sido proposital: O caráter dolente deste modo, certamente foi a

maneira mais apropriada que o compositor GLB encontrou para expressar a profunda dor de

Jesus no alto da cruz.

425 O Sermão das sete palavras é também chamado de sermão da agonia. Realizado na sexta-feira santa antes das três horas da tarde, hora em que Jesus morreu na cruz. Na cidade mineira de São João del Rei, este sermão dura, em média, duas horas e meia: coro e orquestra executam cada palavra e toda a assembléia fica de joelhos para ouvi-la; após a execução musical de cada palavra, seguem os comentários do pregador diretamente do púlpito, com paramentos de cor roxa. Na tradição popular do canto das sete palavras em Goías (GO), o mesmo é apresen-tado por um grupo de moças que representam penitentes e anjos. Em 1872, na cidade do Porto (Portugal), Rober-to F. R. Bellarmino publicou um livro intitulado As sete palavras de Cristo na cruz, com 296 páginas. Todas estas informações foram gentilmente fornecidas por Frei Francisco VAN DER POEL. As mesmas foram extraí-das do verbete: “Sermão das sete palavras” do Abecedário da religiosidade popular (obra a ser publicada). E ainda: O compositor barroco alemão Heinrich SCHÜTZ (1585-1672) compôs a obra “Die siebben Worte Jesu Christi am Kreutz” (As sete palavras de Jesus Cristo na cruz), em 1645. O mesmo se deu com o compositor austríaco Franz Joseph HAYDN (1732-1809) que, em 1797, compôs o oratório “Die Worte Erlösers am Kreut-ze” (As palavras do Salvador na cruz). 426 Em todo o repertório do tríduo pascal do compositor GLB, a peça “as sete últimas palavras”, é a única que aparece escrita no modo de Mi.

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A primeira frase “ó vós todos que passais pelo caminho” composta de

três notas (mi-fa-ré), é basicamente um recitativo:

O compositor nos sugere a aridez do caminho e a indiferença dos caminhantes.

Já a segunda frase “considerai e vede se há uma dor maior que a

minha dor!”, faz com que a melodia comece a adquirir um caráter dramático:

A linha melódica (ascendente) atinge o âmbito de oitava (compassos 4 e 5). A conjunção se,

coincidindo com a nota mais aguda (ré 4), deixa-nos bem clara a intenção do compositor em

sublinhar a condição de sofrimento e abandono daquele que suplica aos caminhantes indife-

rentes, uma atitude de compaixão para com a sua dor. Por outro lado, para expressar a intensi-

dade da dor, a melodia desce em graus conjuntos, reproduzindo toda a escala (ré)-dó-si-la-

sol-fá-mi-ré (compassos 6 a 9).

Os compassos de 16 (com anacruse) a 23 correspondem às palavras de Jesus:

(...) meu Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem! (...) hoje mesmo estarás comigo no paraíso! (...) Senhora, eis teu filho! Eis tua mãe! (...) Meu Pai, meu Pai! Porque me abandonaste? (...)Tudo está consumado! Tudo está consumado! (...)Meu Pai, em tuas mãos encomendo o meu espírito!...

Nestes compassos a melodia atinge o grau máximo de dramaticidade: As palavras

de Jesus vêm reproduzidas no salto ascendente de oitava (ré a ré), seguido de movimento

melódico descendente pelos motivos ré-dó-si-lá [compassos 16 (com anacruse) a 17.1], dó-si-

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lá-sol [compassos 18 (com anacruse a 19.1] e (sol)-fá-mi-ré (compassos 20 (com anacruse) a

23.1]427. Estes motivos descendentes nos sugerem um tipo de eco que, aos poucos, vai-se es-

vaindo; e isto aparece bem claro na variante melódica que corresponde ao texto: “tenho sede,

tenho sede!”:

Ouvindo estas últimas palavras de Jesus, entoadas pelo solista e respondendo a

cada uma delas com o refrão: “considerai e vede se há uma dor maior que a minha dor”, a

assembléia se solidariza com a dor de Jesus que se prolonga em todos os sofredores da face da

terra.

B.1.2. Canto para Verônica

O episódio do encontro de Jesus com Verônica em que esta lhe enxuga o rosto –

conforme VI estação da via sacra428 - não consta nos evangelhos. Em muitos lugares do Bra-

sil, durante a encenação da morte de Jesus e a procissão do Senhor Morto, dentre as santas

mulheres429, destaca-se Verônica com seu lamentoso canto430. O caráter dramático desta cena

é resultante da combinação de duas coisas: enquanto é entoado o canto, simultaneamente de-

senrola-se um pano, no qual aparece estampada a face de Jesus.

427 Neste último inciso melódico, podemos pressupor a nota Sol implícita, fazendo analogia aos dois precedentes. Por isso a colocamos entre parênteses. 428 A via sacra ou via crucis, é um exercício de piedade que retrata o caminho percorrido por Jesus em Jerusalém durante sua paixão, do pretório de Pilatos até o Calvário. Atualmente, os peregrinos da Terra Santa continuam percorrendo-o. A via sacra (exercício de percorrer 14 quadros assinalados) “nasceu no ocidente pelo fim da Ida-de Média (os cristãos orientais não a conhecem) como réplica do que os peregrinos faziam em Jerusalém”. Cf. PEDRO, Aquilino de. Dicionário de termos religiosos e afins. Aparecida: Editora Santuário, p. 329-330. 429 As santas mulheres – também chamadas de beús ou heús - normalmente aparecem trajadas de vestido preto e com a cabeça coberta de véu preto. Este grupo que também compõe o quadro de figurantes nas encenações da morte de Jesus, faz o coro final do canto da Verônica e acompanha a procissão do Senhor Morto. 430 O tradicional canto da Verônica é tirado do livro das Lamentações 1, 12. Normalmente é cantado em latim: O vos omnes que transitis per viam, attendite et videte se est dolor similis sicut dolor meus (ó vós todos que passais pelo caminho, atendei e vede se existe dor igual à minha dor). O nome popular do canto é Ovozone. O Canto de Verônica é cantado por uma senhora de cabelos compridos cobertos de véu, representando Verônica, a mulher que enxugou o rosto de Jesus no caminho do Calvário. No final do canto de Verônica, um grupo de beús ou heús- mulheres vestidas de preto – entoam a resposta: Heú, heú, Salvator noster. Segundo uma tradição, Verôni-ca seria a mulher curada por Jesus de um fluxo de sangue (cf. Mc 5, 25). N.B.: Todas estas informações foram extraídas do verbete: “Canto de Verônica” do Abecedário da religiosidade popular. Op. cit.

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Para o IV passo do jogral “Encontro de Penitência”, GLB fez uma adapta-

ção/atualização deste episódio de Verônica, à dura realidade de milhões de brasileiros que,

como o Cristo, carregam suas pesadas cruzes. A figura de Verônica representa o drama de

muitas prostitutas que vendem o seu corpo como meio de sustento. O texto do jogral em ques-

tão431, mostra-nos de forma bem clara, a face desfigurada de Cristo na prostituta. Eis uma

pequena amostra:

Nas lágrimas que derramas Nas tuas fundas olheiras Vejo o Cristo amargurado No Jardim das Oliveiras 432.

O texto “Canto para Verônica” pode ser dividido em duas partes: a primeira é uma

descrição da cena do encontro como tal, de Jesus com Verônica:

Certa mulher Verônica, vendo o rosto de Jesus Coberto de lama e pó, vendo o rosto de Jesus Coberto de lama e pó. Roído o rosto dele por uma máscara De espuma, de sangue e de suor. O mais branco de seus véus tirou E, com o joelho em terra, O pano sobre a face divina colocou. Ele deixou no pano a sua imagem; A imagem de sua doçura. Nada, nada esqueceu do seu doloroso esplendor. Nada, nada esqueceu em sua terna censura.

A segunda parte, trata-se de uma atualização do fato narrado na primeira:

E ainda hoje essa face se retrata No rosto da viúva, do órfão ou do ladrão; Na cara do cachaceiro ou da mulher safada; No canceroso, no mendigo ou no leproso. É face desfigurada; mas alto lá não te enganes! É face de Jesus Cristo: não profanes! É face de Jesus Cristo: não profanes!

Este último canto do jogral “Encontro de Penitência” (4º passo), é uma espécie de

apanhado geral de tudo o que se refletiu nos três passos anteriores: Cirineu, representado por

um camponês (1º passo); a queda do Senhor, representada por um bêbado (2º passo) e o la-

mento das mulheres, representado por uma viúva. Em outras palavras: o camponês explorado

pelos grandes latifundiários, as famílias desagregadas pelo drama do alcoolismo, as viúvas

431 O texto completo do jogral Encontro de Penitência se encontra no ANEXO II. 432 Cf. Encontro de Penitência, no ANEXO II.

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que prematuramente perdem seus maridos e muitas delas se vêem obrigadas a caírem na pros-

tituição para sustentar seus filhos..., são espelhos vivos que refletem a face de Cristo, claman-

do por justiça e dignidade.

A melodia no modo de Lá tem uma pulsação rítmica bastante irregular. A preocu-

pação básica do compositor foi realçar o caráter profético do texto. Trata-se de um canto com

predomínio de recitativo livre, a ser entoado por uma solista:

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Chamamos a atenção do leitor para o desenho melódico dos compassos 35 a 39:

A melodia desta frase musical coincide com os compassos iniciais da canção “Uirapuru”433

do compositor amazonense Valdemar HENRIQUE:

433 A canção “Uirapuru” faz parte de uma coleção da série “Lendas amazônicas”. O “Uirapuru”, canção para canto e piano, foi editada por Editorial Mangione, S.A., [s.d.].

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Esta concordância melódica leva-nos à dedução que tanto o compositor amazo-

nense, como GLB beberam numa mesma fonte: a etnomúsica.

c. A Páscoa da Ressurreição do Senhor

No sábado santo, o clima de recolhimento do dia anterior se estendia por todo o

dia. O silêncio era rompido a partir das 22 horas quando - ao redor de uma fogueira ardendo

em chamas, à porta da Igreja - dava-se início à solene vigília pascal. O clima de festa ia, aos

poucos, contagiando a assembléia, atingindo o seu ponto culminante na proclamação da Pás-

coa do Senhor. Uma vez colocado o círio pascal no pedestal devidamente ornamentado, no

centro do templo, entoava-se o “Exulte” – versão de R. Veloso e melodia de GLB - e todos

dançavam uma ciranda em louvor a Cristo ressuscitado, ao redor do círio pascal.

Testemunhos de contemporâneos nos deixam bem claro que o clima de toda a

vigília pascal era de festa e alegria sem precedentes. “(...) Nesta noite pascal se vivia de fato a

ressurreição de Jesus acontecendo no meio de nós”434. Aliás, os exercícios quaresmais tinham

uma finalidade pedagógica bem clara: preparar os corações para celebrar a Páscoa da Ressur-

reição do Senhor. “A gente ficava ansiosa para celebrar a ressurreição” – disse-nos Célia DE

BIASE435. Após a Eucaristia, era servido um lauto jantar, preparado pela própria comunida-

de: cada família trazia um prato especial que era partilhado com todos. O ambiente festivo

com música, dança, troca de presentes e felicitações pascais, se estendia madrugada adentro

até o raiar do dia436.

434 LIMA, Genival. Depoimento gravado em fita cassete, em Ponte dos Carvalhos, em 09/07/1999. Arquivo pessoal nosso. 435 DE BIASE Célia. Depoimento gravado em fita cassete, por nós, em sua residência, no Recife, em 18/02/1999. Arquivo pessoal nosso. 436 Cf. LIVRO de Tombo, p. 12, 19v, 28.

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Se por um lado, a noite pascal nas décadas de 60 e 70 foi marcada por um clima

de festa, alegria e descontração, a partir do ano de 1980 – ano em que GLB saiu de Ponte dos

Carvalhos - aos poucos, o brilho desta noite foi-se ofuscando. Por exemplo, o jantar de con-

fraternização que já era tradicional (há 17 anos) logo foi abolido; a dança da ciranda ao redor

do círio pascal perdeu a sua espontaneidade: o que antes era feito por todos – velhos, adultos,

jovens e crianças – atualmente é restrito a uma minoria. Nair P. NUNES lamenta que “ (...) os

jovens não querem mais se misturar com os mais velhos e, às vezes, até debocham de nós. A

gente não se sente mais à vontade para brincar. (...) Agora a brincadeira é só para os jovens e

os velhos apenas ficam de longe, olhando...”437.

Convém ressaltar neste último depoimento, a presença do verbo brincar e do

substantivo brincadeira. Isto nos lembra o que disse certa vez, o célebre liturgista Romano

GUARDINI: que a liturgia nada mais é do que uma gratuita brincadeira438 dos filhos e filhas

diante do Pai, a exemplo de Jesus Cristo que “brinca diante do Pai”. E continua: “Brincar di-

ante de Deus, (...) tal é a essência mais íntima da liturgia”439. Quem estabelece e evidencia as

regras desse jogo sagrado que a alma executa diante de Deus é o Espírito Santo. “É ele (o Es-

pírito) que imprime uma ordem ao jogo que a sabedoria eterna executa na Igreja, seu reino

sobre a terra, perante a face do Pai celeste. (...) Só compreendem a liturgia aqueles a quem

isto não causa estranheza”440.

A comunidade da Ponte dos Carvalhos continua enfrentando sérias dificuldades

para celebrar a seu modo, a festa da Páscoa. Por exemplo, nos anos de 1998 e 1999, a comu-

nidade foi impedida de dançar a tradicional ciranda no interior do templo. O argumento usado

por quem presidiu a liturgia nestes dois últimos anos era que “a Igreja não é lugar apropriado

para a dança”. A ciranda foi dançada, sim, mas do lado de fora, no final da celebração (em

total desconexão com o momento ritual, que seria durante o canto do Exulte), rompendo uma

tradição de 28 anos!441.

437 NUNES, Nair Paulina. Depoimento gravado em fita cassete, por nós, na residência de Genival Lima, em Ponte dos Carvalhos, em 09/07/1999. Arquivo pessoal nosso. 438 A palavra brincadeira aqui não corresponde ao sentido comum. R. GUARDINI compara a ação litúrgica a uma brincadeira, pelo fato de que esta última “nada quer, se não pôr em ação suas forças novas, expandir sua vida sob a forma, despida de finalidade, de movimento, gestos e palavras. Despida de finalidade, mas cheia de sentido profundo...” (Idem. O espírito da liturgia. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1942, p. 81). 439 Ibidem, p. 81. 440 Ibidem, p. 85. 441 Cf. LIMA, Eronice Ramos Pereira de. Depoimento gravado em fita cassete, por nós, em sua residência, em Ponte dos Carvalhos, em 09/07/1999. Arquivo pessoal nosso.

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c.1. O repertório litúrgico da celebração da Páscoa da Ressurreição do Senhor

Do repertório litúrgico executado na noite santa da ressurreição do Senhor, em

Ponte dos Carvalhos, destacaremos para a nossa análise442:

- “Proclamação da Páscoa” (Exulte): Modo de Ré;

- “Cantou Moisés” (cântico entoado após a proclamação da leitura de Ex 14, 15-51,1):

Modo de Ré;

- “A terra tremeu” (oferendas): Modos de Sol e Lá, alternados.

c.1.1. Proclamação da Páscoa

O canto do Exultet – assim conhecido pelo fato de ser esta a palavra inicial latina - é uma proclamação hínica de autoria desconhecida. O texto sofreu várias alterações ao longo da história. Partes importantes do mesmo já são documentadas no séc. IV. Embora o surgimento e popularidade do Exultet sejam remotos, a liturgia papal o ignorou até o século XI. Isso, talvez pela influência de S. Jerônimo, que numa carta a Presídio (384) ataca, com tons àsperos, a frivolidade do Exultet443.

É importante lembrar que o canto do Exultet cumpre uma importante função den-

tro da liturgia da luz, no início da vigília pascal. Trata-se de um hino de louvor que se apre-

senta como um desfecho conclusivo da liturgia da luz (1ª parte da vigília) e, ao mesmo tempo,

introduz os fiéis ao mistério pascal de Cristo que será solenemente celebrado ao longo de toda

a vigília. “Como na ouverture de uma ópera, aí se resumem e se tocam de modo admirável os

motivos mais importantes e essenciais, que serão desdobrados ou retomados na liturgia da

palavra, liturgia batismal e na liturgia eucarística: as várias faces do mistério central da nossa

fé”444.

O texto445 que apresentaremos a seguir, é uma versão adaptada daquele que se en-

contra no atual missal romano. A versão brasileira elaborada pelo poeta e compositor Regi-

naldo Veloso manteve, basicamente, a mesma estrutura do texto do missal e é composta de

duas partes bem distintas: A primeira (introdução), é um convite para que a multidão dos an-

jos (do céu) se una à assembléia dos fiéis (da terra), numa exultação plena de alegria a Deus

442 Outros cantos compostos por GLB para a vigília pascal não são modais, por isso nem sequer os menciona-mos. 443 Cf. NOCENT, A. O tríduo pascal e a semana santa. In: VV. AA. O ano litúrgico; história, teologia e celebra-ção. São Paulo: Edições Paulinas, 1991, p. 105. 444 VELOSO, Reginaldo. O canto do “Exulte”. Revista de Liturgia, São Paulo, v. 92, [mar./abr.] 1989, p. 62. 445 Cf. CNBB. Hinário litúrgico - Fascículo 2. Op. cit. p. 144.

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“por tão grande salvação”, pois o Cristo vitorioso, pela sua ressurreição nos tirou das trevas e

é “da morte o libertador”: Exulte de alegria dos anjos a multidão, Exultemos nós por tão grande salvação! Do grande Rei a vitória cantemos os resplendor: Das trevas surgiu a glória, da morte o libertador.

A segunda parte constitui-se, basicamente, na forma de um grande prefácio ou seja, uma ação

de graças que celebra, com exaltação hínica, a ação redentora de Cristo, e canta a noite pascal da ressurreição de Cristo. O olhar se volta, então, para o ato libertador de Deus em fa-vor de seus filhos de Israel, que ele conduziu da terra da escravidão (...) para a liber-dade. Esta ação salvadora de Deus torna-se símbolo do mistério pascal de Cristo, que o texto se esmera em louvar com circunlóquios e imagens sempre novas para, em seguida, irromper num ato de admiração e espanto 446.

A versão brasileira do Exulte conservou, basicamente, todo o conteúdo teológico-

litúrgico do hino tradicional, como:

- A libertação do povo da escravidão no Egito: No esplendor desta noite que viu os hebreus libertos, Nós, os cristãos bem despertos, brademos: morreu a morte!

- A vitória de Cristo sobre a morte: No esplendor desta noite que viu vencer o Cordeiro, Por Cristo salvos, cantemos: a seu sangue justiceiro! No esplendor desta noite que viu ressurgir Jesus, Do sepulcro, exultemos: pela vitória da cruz!

- O infinito amor de Deus dando-nos seu próprio Filho: Noite mil vezes feliz, Deus por nós seu Filho deu, O Filho salva os escravos, quem tanto amor mereceu?!

- O admirável e insondável mistério de amor do Pai que ressuscitou Jesus Cristo dos mor-

tos. O pecado original, chamado pelo poeta de feliz culpa447, foi um mal necessário pois

sem ele não teríamos tido o Redentor Jesus Cristo: Noite mil vezes feliz, ó feliz culpa de Adão! Que mereceu tanto amor, que recebeu tal perdão!

- A ressurreição de Cristo que, nesta noite, baniu todos os males da face da terra como a

maldade do poder opressor e restituiu a liberdade aos pobres oprimidos: 446 ADAM, Adolf. O ano litúrgico. São Paulo: Edições Paulinas, 1983, p. 81. 447 Cf. CANTALAMESSA, R. O mistério da páscoa. Aparecida: Santuário, p. 105. Essa teologia da feliz culpa “inspira-se, de fato, quase letra por letra, em Santo Ambrósio. Ele, falando da culpa de Adão, tinha exclamado: ‘Feliz ruína que foi reparada para melhor!’ (Cf. Ps. 39, 20; CSEL, 64, p. 225)”. Esta metáfora (que é um grito de esperança e de otimismo) pode ser melhor compreendida a partir das palavras do apóstolo: “onde abundou o

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Noite mil vezes feliz, aniquilou-se a maldade, As algemas se quebraram, despontou a liberdade! Noite mil vezes feliz, o opressor foi despojado, Os pobres enriquecidos, o céu e a terra irmanados!

- A esperança e a alegria, simbolizadas no círio pascal448: Noite mil vezes feliz, em círio de virgem cera, Nova esperança se acende no seio da tua Igreja! Noite mil vezes feliz, noite clara como o dia, Na luz de Cristo glorioso, exultemos de alegria!

Ao longo de todo o canto aparecem as repetições ou seja: o solista entoa uma frase

e a assembléia repete

a) toda a frase:

//:Exulte de alegria dos anjos a multidão://

//:Exultemos também nós por tão grande salvação:// //:Do grande Rei a vitória cantemos o resplendor:// //:Das trevas surgiu a glória, da morte o Libertador:// //: O Senhor esteja convosco! Está no meio de nós:// //:Os corações para o alto! A Deus ressoe nossa voz://

b) ou parte da frase449:

pecado superabundou a graça” (Rm 5,20). Em outras palavras: o poder de Deus é tal que sabe tirar o bem de tudo, também do mal, como dizia Santo Agostinho (cf. Ibidem). 448 Na Igreja Matriz de Ponte dos Carvalhos, o círio pascal ficava no centro da nave. Assim, todos podiam facil-mente se locomover em sua volta, cantando e dançando durante o canto do Exulte. 449 Vale observar que a melodia não coincide com o fragmento de texto que se repete.

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No esplendor desta noite //:que viu os hebreus libertos:// Nós, os cristãos bem despertos //:brademos: morreu a morte://

No esplendor desta noite //:que viu vencer o Cordeiro:// Por Cristo salvos, cantemos //:a seu sangue justiceiro:// Etc. ...

Estas repetições – muito comuns na etnomúsica religiosa nordestina - além de

facilitar a participação dos fiéis, dispensando o uso de folhetos ou livros, reforçam o conteú-

do teológico-litúrgico das loas que cantam o esplendor da noite e a alegria dos cristãos reu-

nidos:

- (noite) que viu os hebreus libertos; - (nós, os cristãos) brademos: morreu a morte (estrofe 1); - (noite) que viu vencer o Cordeiro; - (cantemos também nós): a seu sangue justiceiro (estrofe 2); - (noite) que viu ressurgir Jesus; - (exultemos também nós): pela vitória da cruz (estrofe 3); - (noite em que) Deus por nós seu Filho deu; - (nós, os libertados): quem tanto amor mereceu?! (estrofe 4); - (noite) ó feliz culpa da Adão! - (nós, todo o povo) que recebeu o perdão (estrofe 5); - (noite em que) aniquilou-se a maldade; - (para nós) despontou a liberdade! (estrofe 6); - (noite em que) o opressor foi despojado; - (para nós), o céu à terra irmanado (estrofe 7);

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- (noite) em círio de virgem cera; - (nós celebramos nova esperança) no seio de Tua Igreja (estrofe 8); - noite clara como o dia; - (nós): exultemos de alegria! (estrofe 9). Após cada estrofe, a assembléia externa sua alegria aclamando o vibrante refrão:

Quanto à execução desta peça, sugerimos a seguinte instrumentação: Na introdu-

ção (compassos 1-32)450, que se use apenas o atabaque. Os demais instrumentos como: sanfo-

na, violões, triângulo, chocalho, bongô..., sejam tocados a partir do compasso 33 ou seja,

quando se dá início à dança ritual, coincidindo com o canto dos elogios à noite esplendorosa e

mil vezes feliz. Esta forma de instrumentação sugerida por nós, tem como principal objetivo

valorizar ainda mais a dança que, desde 1969 era uma tradição em Ponte dos Carvalhos451.

Ao utilizar o modo de Ré e o ritmo de maracatu para esta proclamação pascal, o

compositor GLB colaborou para que o povo de Deus – especialmente o nordestino - partici-

passe ativa, plena e frutuosamente da celebração da luz, na vigília pascal. E além do mais, a

música e a dança são dois ingredientes indispensáveis nas festas e folguedos populares, em

todo o Brasil.

Enfim, ao perceber mais esta filigrana da arte popular, GLB introduziu o canto e a

dança durante a solene proclamação da Páscoa do Senhor, para que a alegria desta noite al-

cançasse a sua plenitude. Em outras palavras, GLB proporcionou à assembléia tamanho fervor

pascal, graças ao irresistível poder da melodia e do ritmo utilizados no canto do Exulte, que

nos leva a dançar e pular – a exemplo dos hebreus libertos.

450 Veja a partitura completa no ANEXO I. 451 Vale lembrar aqui, mais uma vez, que a partir do ano de 1998, esta tradição de dançar em redor do círio pas-cal foi interrompida. Os padres que presidiram a vígilia pascal em Ponte dos Carvalhos nestes dois últimos anos, proibiram esta dança ritual.

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c.1.2. Cântico de Moisés

Este cântico bíblico é um prolongamento da leitura do livro do Êxodo (Ex 14, 15-

15,l) que, a cada ano, é proclamada na vigília pascal. Esta perícope narra a história da primei-

ra páscoa do povo de Deus ou seja: quando o Senhor o libertou da escravidão do Egito. Nesta

ocasião, a mão poderosa do Senhor protegeu o povo de Israel que, após atravessar o mar, a pé

enxuto, viu o extermínio do exército do Faraó. Diante de tamanho prodígio, Moisés e os filhos

de Israel cantaram este cântico de ação de graças ao Senhor (cf. Ex 15, 1-18): Cantou Moisés um canto, um hino ao Senhor Todo o povo de Deus bateu palmas E unido cantou, dançou e pulou. 1. O Senhor glorioso, Ele triunfou Cavaleiro e cavalo no mar afogou. O Senhor é a minha força e meu canto Salvação Ele sempre foi no meu pranto. 2. O Senhor, sim que é santo e forte guerreiro, E o seu nome grande Senhor Justiceiro. Lança ao fundo do mar soldados e chefes Carros e homens nas ondas do mar perecem. 3. O furor de tua direita ameaça O inimigo se junta, se arma e fracassa. No teu santo monte os introduzirás E, pra sempre, Senhor, aqui reinarás!

O cântico de Moisés tinha um relevante papel no conjunto de toda a liturgia judai-

ca. O mesmo “era quotidianamente cantado na oração matinal, no sábado, depois do sacrifício

vespertino e, naturalmente, na liturgia da páscoa, de forma especial no sétimo dia da Pás-

coa”452. Para a tradição rabínica, embora sendo um cântico de grande valor teológico e de

acentuado cunho salvífico, este não é o verdadeiro “cântico novo”. O verdadeiro e perfeito

cântico novo deverá ser composto e entoado nos dias do Messias.

F. J. BASURCO constata que há uma relação direta, inclusive com paralelismos

entre o cântico de Moisés e o cântico novo (do Cordeiro) do Apocalipse453. Tais paralelismos

podem ser identificados entre o êxodo e a libertação messiânica, entre Moisés e o Messias

452 BASURCO, J. El canto cristiano en la tradición primitiva. Op. cit. p. 172. 453 Cf. Ap 5, 12-13 e Ap 15, 2-4.

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libertador. O cântico do Cordeiro traz a novidade da Jerusalém Celeste, onde o Cristo aparece

no centro, pois Ele fez novas todas as coisas454. “É difícil não ver no cântico novo do Apoca-

lipse uma realização do cântico novo tal como era contemplado na tradição rabínica”455.

O compositor GLB, utilizando-se da versão popular do cântico de Moisés feita por

Reginaldo Veloso, compôs para o mesmo cântico uma bela e singular melodia:

Analisando a linha melódica, constatamos que nos compassos 6, 10 e 14, a nota

musical (Si) que caracteriza o modo desta peça (modo de Ré), ganha um tratamento todo espe-

cial da parte do compositor: sobre esta nota recaem três semi-cadências. Estes repousos provi-

sórios (semi-cadenciais) nos evocam um rastro de luminosidade pascal, sugerido pela força

poética do próprio texto456:

(...) Todo o povo de Deus bateu palmas, 454 Cf. BASURCO. F. J. El canto cristiano en la tradición primitiva. Op. cit. p. 183-184. 455 Ibidem, p. 179. 456 Esta observação refere-se ao refrão e à primeira estrofe. Certamente estes versos (refrão e primeira estrofe), foram decisivos no momento criativo do compositor.

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(...) O Senhor glorioso, Ele triunfou, (...) O Senhor é minha força e meu canto...

A sensação que sentimos enquanto entoamos este cântico - sobretudo durante a

vigília pascal - é de profunda gratidão ao Pai, que em seu Filho amado, continua nos libertan-

do da escravidão do pecado e da morte e transportando-nos para o reino da páscoa definitiva.

O ritmo de samba proposto para a execução deste cântico – talvez o mais efusivo

e mais brasileiro de todos os ritmos – vem sublinhar o caráter festivo do mesmo na ação litúr-

gica da noite pascal. Este ritmo aparece claro já nos primeiros compassos da melodia:

Enfim, o cântico de Moisés deve ser entoado não só com a voz mas também, com

o samba nos pés.

c.1.3. A terra tremeu

Nada mais apropriado para se entoar na noite pascal que o salmo 76/75. Este sal-

mo canta a ação vigorosa de Deus que “se levantou e vem para julgar os fracos e os humildes

da terra salvar”:

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A terra tremeu, a terra tremeu; Tremeu e parou, parou e ouviu. 1. Que o Deus de Israel, famoso é seu nome Constrói sua morada no meio dos homens. 2. Que o Deus de Israel é forte e não falha Destrói o escudo, a espada e a batalha. 3. Que os fortes caíram e estão a dormir Nenhum dos valentes se viu resistir.

4. Que Deus é terrível em ira e poder

Cavalos e carros faz esmorecer. 5. Que Deus levantou-se e vem pra julgar Os fracos e humildes da terra salvar. 6. Que Deus o egoísmo dos grandes rejeita Os dons e presentes dos pobres aceita.

A assembléia reunida na noite luminosa da Páscoa do Senhor dá graças ao Pai

“pela vitória definitiva de Jesus Cristo, cujo nome é grande e que no fim dos tempos virá e

será glorificado nos seus santos. Ele fez-se conhecer entre os homens, venceu Satanás e liber-

tou-nos do seu poder”457. Junto a esta ação de graças, a comunidade congregada no Espírito

Santo suplica ao Pai em favor da Igreja peregrina, para que a mesma seja sinal visível da mo-

rada do Ressuscitado, sobretudo entre os excluídos e oprimidos da terra.

O refrão “A terra tremeu, a terra tremeu; tremeu e parou, parou e ouviu”, quer

lembrar a todos os filhos e filhas de Deus, que o mistério da ressurreição de Cristo dos mortos

foi algo tão prodigioso, que até as entranhas da terra se estremeceram.

457 SECRETARIADO NACIONAL DE LITURGIA. Saltério litúrgico. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1999, p. 213.

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Conversando informalmente com algumas pessoas da comunidade de Ponte dos

Carvalhos, uma delas fez-nos a seguinte observação: “Cada vez que eu canto ‘a terra tremeu,

a terra tremeu...’, eu sinto que dentro de mim algo também estremece (...); é uma coisa que

não dá para explicar com palavras”458.

Aliás, a ação do Espírito Santo que canta em nós, nos impulsiona para a verdadei-

ra adoração ao Pai em Espírito e verdade. Ione BUYST lembra-nos que “é preciso levar a

sério a força sacramental da música na liturgia e fazer do canto um ato de fé, um gesto de a-

mor. Por isso, não podemos cantar de maneira rotineira, inconsciente, superficial”459. Esta

força sacramental se tornará mais eficaz quando texto, melodia e ritmo estiverem “prenhes do

mistério de Deus, celebrado na liturgia e vivenciado no dia-a-dia de nossa caminhada históri-

ca”460.

Para esta versão popular do salmo 76/75, o compositor GLB utilizou os modos de

Sol (para o refrão) e de Lá (para as estrofes). Este procedimento no uso de modos alternados

numa mesma composição é muito comum na música brasileira. Ao servir-se do modo maior

no refrão (modo de Sol), o compositor certamente quis sublinhar a força do texto com suas

ricas metáforas ligadas diretamente à terra que tremeu, parou e ouviu. O modo menor (modo

de Lá), foi utilizado para descrever as façanhas de Deus que aparecem de forma prodigiosa ao

longo do salmo:

458 LIMA, Eronice Ramos Pereira de. Depoimento gravado em fita cassete, por nós, em sua residência, em Ponte dos Carvalhos, em 20/02/1999. Arquivo pessoal nosso. 459 BUYST, I. Liturgia, de coração. Op. cit. p. 59. 460 Ibidem, p. 59.

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Conclusão

Pudemos constatar, neste capítulo, que a realidade desafiadora em que se encon-

trava o povo de Ponte dos Carvalhos nas décadas de 60 e 70, instigou GLB a desenvolver uma

pastoral litúrgica pioneira no campo da inculturação.

GLB abraçou de cheio os desafiantes apelos que emergiram do Concílio Vaticano

II, especialmente da Constituição “Sacrosanctum Concilium” que, repetidas vezes, insiste na

participação ativa, plena e frutuosa do povo sacerdotal na liturgia461. E, aos poucos, foi-se

criando em Ponte dos Carvalhos, uma liturgia inculturada com feições nordestinas. Nas ano-

tações registradas por GLB, no livro de tombo da paróquia de N. Sra. do Bom Conselho, além

daquelas já citadas em outros lugares deste capítulo, percebemos claramente uma incessante

preocupação deste pastor e liturgo, em criar uma liturgia popular e inculturada 462.

A música ritual, encarnada na cultura popular nordestina, foi certamente o meio

mais expressivo e pioneiro em que GLB encontrou para levar a assembléia celebrante a uma

participação ativa, plena e frutuosa na liturgia. A acentuada presença de escalas modais co-

muns na música nordestina (modos de sol, lá, ré, mi...), o uso de instrumentos musicais típi-

cos da região (o tambor, a sanfona, o triângulo, o chocalho...), os ritmos igualmente regionais

(o maracatu, o baião...), foram conseqüência natural da proposta inovadora de um pastor, li-

turgo e compositor que possibilitou àquela porção do povo de Deus em Ponte dos Carvalhos,

uma melhor vivência do mistério pascal de Cristo. Portanto, o repertório litúrgico do tríduo

pascal do compositor GLB é um exemplo significativo de inculturação da ML no Nordeste

Brasileiro.

461 Cf. SC 11, 14, 19, 21, 30, 41, 48, 79, ... 462 Na festa do natal do ano de 1963, o galpão (ainda não tinha sido construída a Matriz) foi todo coberto de palha para que se parecesse melhor com o presépio. A imagem do Deus Menino saiu em procissão da casa de uma das famílias mais pobres do lugar, e foi levada até ao galpão-matriz (cf. LIVRO DE TOMBO, p. 16-16v). No ano seguinte, antes da missa do galo, foi feito pelas ruas do arraial, um grande cortejo apresentando: os pro-fetas, João Batista, os pastores, os reis, anjos e a Sagrada Família. “A Virgem estava montada num burrico, o que chamou a atenção de todos” (cf. Ibidem, p. 25). Nas observações pessoais feitas no dia 31/12/1966, GLB obser-va: “A liturgia tomou um aspecto muito mais regional. Começamos introduzindo os cantos e os instrumentos do

134

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À guisa de conclusão geral ___________________________________________________________________________

O repertório do tríduo pascal do compositor GLB que acabamos de analisar, cons-

titui um exemplo significativo de ML inculturada no Nordeste, por vários motivos:

• Os textos com sua força poética ora reforçam o conteúdo bíblico (por exemplo: “Jesus

ergueu-se da ceia”, “as sete últimas palavras”, “cantou Moisés”...), ora explicitam o mo-

mento simbólico-ritual (“prepara o coração”, “proclamação da Páscoa”...). No sentido

mais amplo, estes textos pertencem ao conjunto de cantos que compõem um repertório li-

túrgico bem definido que é o do tríduo pascal463.

• As melodias construídas a partir dos modos nordestinos (modos de sol, lá, ré, mi...) pro-

porcionam à assembléia dos fiéis uma dupla vantagem: além de facilitar uma melhor ade-

são da mesma assembléia ao mistério celebrado (pelo fato desta estar executando um tipo

de melodia com características próprias de sua cultura), os modos ainda possibilitam uma

maior variedade de coloridos melódicos e cadenciais.

• Os ritmos característicos da música nordestina como o maracatu e o baião, largamente

presentes na ML de GLB, assim como outros ritmos populares brasileiros, propiciam o

envolvimento de todo o corpo humano na ação litúrgica. O vigor do ritmo faz com que a

pessoa, como um todo, mergulhe numa inebriante vibração interior que, por sua vez, vai

se convertendo em movimento, em dança.

• Os instrumentos musicais típicos nordestinos usados desde o início dos anos 60, na comu-

nidade de Ponte dos Carvalhos, como: a sanfona, o tambor, o triângulo, o chocalho..., pos-

sibilitaram a esta comunidade aquilo que sempre a caracterizou como assembléia litúrgica:

uma assembléia que expressava sua fé no mistério pascal de forma exuberante como con-

vém a uma prazerosa festa.

Enfim, a força poética do texto, o poder da melodia, o vigor do ritmo e a sonori-

dade dos instrumentos unida ao brilho da voz humana, por si mesmos, já conferem à liturgia

um caráter festivo. Porém, se os mesmos (texto, melodia, ritmo, instrumentos) vierem da pró-

povo. Sem cair no exagero do esnobismo, apresentamos com toda aprovação da autoridade eclesiástica, melodias próprias, que realmente correspondem à nossa realidade” (Ibidem, p. 37). 463 Vale lembrar que estes elementos verificados no texto dos cantos do compositor GLB não são determinantes (apenas) para o processo de inculturação, mas para a ML em geral.

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pria cultura, a ML propiciará à assembléia celebrante uma participação mais frutuosa na ação

litúrgica.

Conforme acenamos na introdução geral desta dissertação, o repertório do tríduo

pascal do compositor GLB pode ser considerado como um paradigma ou seja: um referencial

indispensável para todos aqueles e aquelas que se propõem a servir ao povo de Deus, seja na

arte da composição musical, seja no momento da escolha do repertório litúrgico. A profunda

experiência litúrgica enraizada no sertão nordestino, marcou de forma significativa a obra

deste compositor permambucano.

Um repertório litúrgico de boa qualidade dispensa o modismo das novidades, pois

a pedagogia intrínseca no ato de repetir, a cada ano, o mesmo canto, possibilita à assembléia

uma maior vivência espiritual do canto na ação litúrgica.

a repetição do mesmo canto no mesmo tempo litúrgico e de um ano para ou-tro - ensina-nos Ione BUYST -, permitirá sua penetração mais profunda, fa-zendo com que se volte espontaneamente à nossa memória ao longo do dia, fazendo-nos cantar no coração, ajudando, assim, a estabelecer a oração per-manente, o diálogo permanente da Aliança com o Senhor 464.

Tomando como referencial o repertório litúrgico do tríduo pascal do compositor

GLB e cientes de todos os pré-requisitos que uma verdadeira ML inculturada se impõe, suge-

rimos:

• Cada região brasileira, dentro de suas possibilidades, crie o seu repertório litúrgico com

feições próprias. Os compositores e letristas, além de buscarem na Sagrada Escritura e nas

fontes litúrgicas465 as bases para suas futuras composições de ML, não podem prescindir

da sua cultura local466.

• O modalismo não precisa ser uma exclusividade da Região Nordeste. Outras regiões brasi-

leiras poderão beneficiar-se das estruturas modais. Porém, as futuras composições adqui-

ram uma fisionomia própria. Em outras palavras: A ML (modal) oriunda de outras regi-

ões, não seja um tipo de cópia estilizada de um modalismo à maneira nordestina. O fun-

damental é que os compositores tomem conhecimento das estruturas escalares e das leis

básicas que regem a harmonia modal e suas fórmulas cadenciais. A partir desse conheci-

mento prévio, os compositores de ML estarão habilitados a navegar no vasto oceano do

modalismo.

464 BUYST, I. Cristo ressuscitou... Op. cit. p. 167. 465 Cf. SC 121 466 Cf. CNBB. Pastoral da Música litúrgica... Op.cit. n. 1.1.8.

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• Este princípio não anula a possibilidade de outras regiões brasileiras, sobretudo aqueles

lugares onde há uma grande concentração de pessoas provindas da região Nordeste - como

por exemplo, a periferia das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro - fazerem um bom

uso desta ML composta por GLB. Aliás, nossa opinião é de que o repertório do tríduo

pascal do compositor GLB, ultrapassa as fronteiras de um mero regionalismo, podendo

vir a ser propriedade de uma porção do povo de Deus bem mais abrangente que a nordes-

tina.

• Enfim, vale ainda ressaltar o expressivo número de cantos com características nordestinas 467 que fazem parte de repertórios litúrgicos por todo o Brasil. Esta constatação vem refor-

çar a idéia de que uma boa ML ultrapassa os limites geográficos de uma região.

467 O Ofício Divino das Comunidades e o Hinário Litúrgico da CNBB contribuíram, de forma expressiva, para a divulgação de cantos que, há algum tempo atrás, eram apenas executados em determinadas comunidades do Nordeste.

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Bibliografia __________________________________________________________________________________

A – Fontes não publicadas

A1. Depoimentos escritos A2. Depoimentos gravados em fita cassete e de vídeo A3. Outras

B – Obras consultadas

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B2.1. Obras de Geraldo Leite Bastos B2.2. Obras sobre Geraldo Leite Bastos

B3. Monografias B3.1. Música B3.2. Inculturação B3.3. Outras

___________________________________________________________________________ A – Fontes não publicadas A1. Depoimentos escritos (apenas os nomes das pessoas)468

- Adolfo Temme (Lago da Pedra – MA) - Alexandrina Maria da Silva - Amara Silva - Antônio Severino da Silva - Avelina Maria da Conceição - Celina - Dietmar Bader (Freiburg – Alemanha) - Edval Marinho de Araújo - Eliza Rodrigues - Evangelina Maria Lins - Flora Gustinha da Silva - Giovanni Coppola (Vico Equense – Itália) - Irmão Michel (Alagoinhas – BA) - Margarida Pereira de Souza (Guida) - Maria do Carmo do Espírito Santo - Maria dos Anjos da Conceição - Maria Inez Tavares Marinho - Maria Joana da Paixão - Maria José de Albuquerque - Maria José dos Santos - Maria Sampaio Pereira

468 Os nomes onde não constam o lugar de origem são de pessoas da comunidade de Ponte dos Carvalhos – PE.

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- Maria Santana Barbosa - Nino Savaresi (Vico Equense – Itália) - Paulo (vitralista) - Zefinha

A2. Depoimentos gravados em fita cassete e de vídeo:

- Ansgar Fleischer (Oscar) – Freiburg – (fita cassete) - Antônia Maria Nunes (fita cassete) - Célia De Biase (fita cassete) - Dom Marcelo P. Carvalheira – Arcebispo de João Pessoa (fita cassete) - Eronice Ramos Pereira Lima (fita cassete) - Fernando Manoel Correia (Nando Cordel) (fita cassete) - Genilson Marcelino de Santana (fita cassete) - Genival Lima (fita cassete) - Gicélia Leite (fita cassete) - Giselda Leite (fita cassete) - João Luiz da Silva (fita cassete) - José Generino de Luna (fita cassete) - José Ramos da Silva (Raminho) (fita cassete) - Maria Auxiliadora Alves (Dôra) (fita cassete) - Maria do Carmo do Espírito Santo (fita cassete) - Maria Inês do Nascimento Correia (fita cassete) - Nair Paulina Nunes (fita cassete) - Pedro Severino da Silva (Pedro Perigoso) (fita cassete) - Reginaldo Veloso – 1 (fita cassete) - Reginaldo Veloso – 2 (fita cassete) - Reginaldo Veloso (fita de vídeo produzida por G. Coppola) - Renata do Nascimento Correia (fita Cassete) - Severino Antônio da Silva (fita cassete) - Zélia Rocha Serra (fita de vídeo)

A3. Outras: - Ansgar Fleischer: Carta contendo informações sobre a estadia dos teólogos a-

lemães D. Bader e H. Müller no Brasil, 04/10/1999. - Frei Francisco van de Poel (Frei Chico): FAX com o verbete sobre o canto da

Verônica e o sermão das sete palavras, 08/09/1999 e 09/09/1999. - Frei Francisco van der Poel: Carta companhada de textos do Pe. Geraldo Leite

Bastos, entre eles, o do “Encontro de Penitência”, 02/03/1999. - Frei Joel Postma: Carta acompanhada de fotocópias sobre o modalismo,

23/03/1998. - Frei Joel Postma: FAX contendo as harmonizações das escalas modais e fórmu-

las cadenciais, 19/09/1999. - Frei Joel Postma: Carta acompanhada de algumas observações sobre o capítulo

III (o modalismo), 24/09/1999. - Gil Amaral: FAX com texto sobre o sermão das sete palavras em S. João Del

Rei, 12/09/1999.

139

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- Pe. Luiz E. Baronto: Carta acompanhada de fita cassete contendo a gravação do “Canto para Verônica” do compositor Geraldo Leite Bastos, 31/03/1999.

- Pe. Reginaldo Veloso, acompanhada de uma fita de vídeo sobre o Pe. Geraldo Leite Bastos, produzida por G. Coppola (Itália), 06/03/1998.

- Sulamita Vieira: Carta acompanhada de uma lista bibliográfica sobre a música brasileira e a cultura nordestina, 08/11/1998.

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ANEXO I __________________________________________________________________________________________

Repertório litúrgico do tríduo pascal do compositor Geraldo Leite Bastos:

• Páscoa da Ceia

- Jesus ergueu-se da ceia (lava-pés): Modo de Ré;

- Prepara o coração (canto de comunhão): Modo de Sol.

• Páscoa da Cruz

- Eis o lenho (encontro de penitência – introdução): Modo de Sol;

- Canto de Cirineu (encontro de penitência – 1º passo): Modo de Lá;

- Canto da queda (encontro de penitência – 2º passo): Modo de Lá;

- Pranto das mulheres (encontro de penitência - 3º passo): Modo de Lá;

- Canto para Verônica (encontro de penitência – 4º passo): Modo de Lá;

- Afinal, chegamos! (encontro de penitência – canto final): Modo de Sol e Lá, alternados;

- Ó vós que passais (descida da cruz – 1º canto): Modo de Lá;

- Na glória de tua casa (descida da cruz – 2º canto): Modo de Lá;

- Bendita e louvada seja (descida da cruz – 3º canto): Modo de Lá;

- Fiel Madeiro da cruz (adoração da cruz): Modo de Sol;

- As sete últimas palavras (adoração da cruz): Modo de Mi.

• Páscoa da Ressurreição

- Proclamação da Páscoa (Exulte): Modo de Ré;

- Cantou Moisés (canto entoada após a proclamação da leitura de

Ex 14, 15-51,1): Modo de Ré;

- A terra tremeu (oferendas): Modos de Sol e Lá, alternados.

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ANEXO II __________________________________________________________________________________________

Encontro de Penitência Texto: Geraldo Leite Bastos e José Maria Tavares

Música: Geraldo Leite Bastos. 1º Cantor: 2º Cantor: 2º cantor: 1º Cantor: 2º Cantor: 1º Cantor: 2º Cantor: 1º Cantor: 2º Cantor: 1º Cantor: 2º Cantor: 1º Cantor: 2º Cantor: 1º Cantor: 2º Cantor: 1º Cantor: 2º Cantor: 1º Cantor:

Introdução

Eis aí o lenho da cruz Que em seus ombros carregou Jesus. Responde-me por que estais sem Cristo Quem poderá levá-la em seus ombros nus? (frases entremeadas com o canto) Ante tão grande peso O mundo inteiro se assusta Mas não existe dor do homem Que à essa cruz não se ajuste. Mas depois que Deus sofreu Nela uma morte injusta Não há mais dor nesta terra Que a morte de Deus não custa. Olha, pecador, teu pecado Vê, foi preciso isto Não há mais crime sem um Deus embaixo Não há mais cruz sem Cristo.

Primeiro Passo

Jesus é ajudado por Simão Cirineu

A subida era difícil O chão os pés lhe feria A cruz mordia seus ombros A cada instante caía. Certo homem de Cirene Que do trabalho voltava Deparou-se com o Senhor

149

149

2º Cantor: Coro (canto): 1º Homem: Operário: 2º Homem: Operário: 1º Homem: Operário: 2º Homem: Cirineu:

Que sua cruz carregava. Na subida da ladeira Uma vez mais ele tombou Simão oferece os ombros E a cruz de Deus carregou Neste vale de dor e lágrimas //:Desde quando Adão o fruto proibido comeu:// (bis) Todo aquele que sofre, é Cristo que sofre Todo aquele que ajuda, quem ajuda é Cirineu.

Contra-cena

(Um fato da vida)

Quem se apresenta para colocar Nos seus ombros o madeiro? Para que a ele se una O seu sofrimento inteiro. Eu! Quem és para colocar nos ombros esta cruz? Sou um pobre trabalhador E tenho as mãos calejadas Nove bocas pra comer Minha mulher tá internada Seis meses procuro emprego Mas até agora, nada É a mesma via sacra Só ouço a palavra não Nas portas de cada fábrica Cada dia, uma estação. Ninguém pode consertar O que neste mundo está torto O que não pode viver Neste mundo nasce morto. Mas senhores, só quero ganhar meu pão! Isso a nós não interessa. Tu tens cara de ladrão Ninguém para me ajudar Nove bocas pra comer E tudo a se lastimar E ninguém para me ajudar?

150

150

Coro (Canto): 2º Cantor: 1º Cantor: 2º Cantor: 1º Cantor: 2º Cantor: 1º Cantor: Juntos: Ébrio: 1º Homem: Ébrio: 2º Homem: 1º Homem: Coro (canto): 2º Homem:

Pronto. Nós te ajudaremos. Unidos seremos fortes Juntos venceremos. A miséria, a fome e a morte. Neste vale de dor e lágrimas //:Desde quando Adão o fruto proibido comeu:// (bis) Todo aquele que sofre, é Cristo que sofre Todo aquele que ajuda, quem ajuda é Cirineu.

Segundo Passo

A queda do Senhor

Escolheram a madeira mais pesada. Escolheram a madeira mais pesada. Crimes, roubos e traições A ela se acrescentou Adultérios, misérias e ambições A ela se uniu Sob um peso tão infame Como um bêbado o Senhor caiu. O caso do bêbado

Ouvi dizer que o mundo Foi um tal de Deus que inventou Eu bebo pra esquecer E cachaceiro é o que sou Esquecer? Esquecer o que? Não sei, já esqueci Esqueceste mesmo. Começaste muito cedo Logo hoje, Sexta-feira da Paixão. Vamos, toma tua cruz, pau d’água Vamos ver se suportas Esta boa bicada. No cálice da amargura Escarros, fezes e crimes Cristo sorveu de uma tragada. No Jardim das Oliveiras No beijo da traição A escória da geração inteira Na mais terrível bicada.

151

151

1º Homem: 1º Cantor: 2º Cantor: 1º Cantor: 2º Cantor: 1º Cantor: 2º Cantor 1º Cantor: 1º Cantor:

Levanta-te cachaceiro Vê se suportas, como a cachaça Este tão leve madeiro. Se a cruz fosse um copo (coro canta em surdina Tu levantava ligeiro “No cálice da amargura...”) Tu bebes meu irmão Para esquecer Numa falsa alegria Este relógio parado Dentro de ti Sempre ao meio dia. Tu és o Cristo Que no meio da rua cai Como um cão sem dono Como um filho sem pai. Tu não tens nome O teu é um qualquer Vira-mundo, Meião, Zé Doido ou Zé Migué Tu não tens roupas De nudez tu vestes Como a pobreza peregrina De todo Nordeste. Tu vives mas não tem vida Tua morte certa É morte de pista Estás e estarás Sempre no chão Enquanto todos nós Não soubermos dar as mãos. Qual será o dia Que levantarás do chão? Será somente no dia Da final Ressurreição?

Terceiro passo

O lamento da mulheres

A certa altura do caminho

152

152

2º Homem (canto): 1º Homem: Viúva: 2º Homem: 1º Homem: Viúva: 1º Homem: Viúva:

As mulheres que seguiam o cortejo da dor Tanto choravam, tanto batiam no peito, Que Jesus as ouviu e suspirou: Não choreis sobre mim um choro tão triste Mas chorai sobre vós e sobre os filhos que paristes. Pois muitos dirão: //: Bendito os ventres murchos E os peitos ressequidos, que não amamentaram Nem geraram filhos :// (bis) O tempo já chegou. Já está por aí. Vós vos arrependereis de ter nascido. Em vão gritareis para as montanhas: //: Caí sobre nós. Matai-nos depressa Somos ferro velho, só para o fogo presta :// (bis) Mas elas estarão surdas aos vossos pedidos. O Caso da viúva nova

Ei, vem aqui tua farsa apresentar Como não respeitas uma mulher Uma dor que ela tenta disfarçar? Ficaste viúva, não? E deves até agradecer És completamente livre Podes de tudo fazer. Mereces nosso desprezo Não adianta enganar Sabemos que nada vales Para o povo deste lugar. Sinto as forças me faltarem Nesse caminho que trilho Para mim tudo acabou Só vivo para os meus filhos Peço um emprego decente Este são os filhos meus É triste a situação De quem o marido perdeu. Sou casado não importa Resolve tua vida neste instante Os meus braços te esperam Eu te quero como amante. Vocês são interesseiros Aproveitadores de ocasiões

153

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1º Homem: 2ª Mulher: Viúva: Coro (canto): Coro (canto):

Dificilmente ajudam uma mulher Sem uma segunda intenção Seu dinheiro compra tudo Mas a mim, não compra não. Sinto muito minha filha Tenho vontade de chorar Esta é a vontade de Deus Tu deves te conformar. Eu também sinto demais A vida é mesmo assim. Mas tenho marido e filhos Com mil problemas enfim Se for me preocupar com os outros O que será então de mim? Sempre se encontra gente A chorar de coração Chorando até por novela De rádio ou televisão Chora no cinema, Chora na romaria Chora nesta procissão Só não chora o que devia. Não choreis sobre mim um choro tão triste Mas chorai sobre vós e sobre os filhos que paristes. Pois muitos dirão: //: Bendito os ventres murchos e os peitos ressequidos, Que não amamentaram nem geraram filhos :// (bis) O tempo já chegou, já está por aí. Vós vos arrependereis de ter nascido Em vão gritareis para as montanhas: //: Caí sobre nós, matai-nos depressa Somos ferro velho, só para o fogo presta :// (bis)

Quarto passo

Verônica enxuga o rosto de Jesus

Certa mulher Verônica Vendo o rosto de Jesus coberto de lama e pó. Roído o rosto dele por uma máscara De espuma de sangue e de suor. O mais branco de seus véus tirou E com os joelhos em terra O pasno sobre a face divina colocou

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1º Homem: 2º Homem: Mulher: 1º Homem: Mulher: 1º Homem: Verônica: 1º Cantor: 2º Cantor:

E Ele deixou no pano a sua imagem A imagem de sua doçura Nada, nada esqueceu. Em seu doloroso esplendor Nada, nada esqueceu Em sua terna censura. A mulher de quem quiser Que terá vindo buscar? Talvez o dinheiro de ontem Esqueci de lhe pagar Sou mulher de ninguém Sou mulher de todo mundo Não te acanhes vagabunda Deste teu proceder imundo Eu sei que deixo sem pão Muitos filhos E muitas mães faço chorar Mas não posso deixar esta vida Pois meu emprego é pecar Quando criança fui feliz Aprendi o catecismo Freqüentei uma escola Fui anjo de procissão E como as vossas filhas Também eu fiz A primeira comunhão Depois vi-me desprezada Por ter errado uma vez Sem ajuda fui caindo E mais uma vez, pequei Mas muitos que aqui estão Descalços nesta procissão Também são fregueses meus Retirai-vos, ide embora Palhaços e fariseus. Cala-te mulher infame e vagabunda Basta de tanta maldade. Homens desprovidos de pudor Raça mesquinha, víboras venenosas Incapazes de um gesto de amor. No teu rosto contraído De doenças estragado

155

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1º Cantor: 2º Cantor: 1º Cantor: Coro (canto):

Contemplo o Cristo traído E por Judas beijado. Nas lágrimas que derramas Nas tuas fundas olheiras Vejo o Cristo amargurado No Jardim das Oliveiras. Das mais terríveis doenças Teu corpo todo minado É o Cristo na coluna Por chicotes flagelado. O homem buscando prazer Vai matando tua sorte É o Cristo destruído Na hora de sua morte Neste teu rosto desfeito Eu vejo o rosto de Cristo Pecador e imperfeito Verdadeiro, nunca visto. E ainda hoje essa face se retrata No rosto da viúva, Do órfão ou do ladrão Na cara do cachaceiro Ou da mulher safada. No canceroso, no mendigo ou no leproso É a face desfigurada Mas, alto lá, não te enganes! //: É face de Jesus Cristo: não prafanes! :// (bis)

156

156

ANEXO – III __________________________________________________________________________________________

A descida da Cruz

Texto: Geraldo Leite Bastos e José Maria Tavares

Música: Geraldo Leite Bastos

1ª Mulher: 1º Homem: 2º Homem: 1º Homem: 1ª Mulher: 2ª Mulher: 1ª Mulher: 3º Homem: 2º Homem: 1º Homem: 2ºHomem: 1ª Mulher: 2ª Mulher: 3º Homem: 2º Homem: 1ª Mulher: 2ª Mulher: 3º Homem: 1ª Mulher: 2ª Mulher:

A cruz que Ele levou tão alto, O levará mais alto ainda. O martelo sobre o cravo. O cravo na mão e no osso. E o cravo na madeira. A mão sangra. A mão direita que abençoava. Que curava. A outra mão. Já está pronta. O martelo e o cravo. A carne e a madeira A mão esquerda que ignorava... O que dava a direita. Os pés! Um sobre o outro! Como dois irmãos... A pecadora não mais os lavará... Não mais pisarão este solo maldito! Pronto! Ergamos a cruz! Os ossos estalam! A cabeça oscila!

157

157

Mulheres: Coro: Cristo: João: 1º Homem: 2º Homem: 3º Homem: 4º Homem: João: Todos: João: Maria:

Senhor!... Canto: Ó Vós todos que passais

Ó Vós todos que passais, Que passais pelo caminho! Olhai e vede a minha dor, Vede se há outra mais mesquinha, Se há uma dor maior que a minha! Atendei, povos do universo, O tamanho da minha aflição. Já correu água nos meus olhos, Que fez um poço no chão! Pai! Perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. Ouvi ó filhos, a palavra do discípulo que Jesus amava. Ouvi a palavra de João Evangelista. A palavra do que estava de pé, ao lado da cruz. Como estava e como está também a mãe dolorosa. Os outros fugiram! Nem Tiago! Nem Tadeu! Nem Felipe! Nem Bartolomeu! Nenhum!!! Pedro! O próprio Pedro chegou a renegar o seu mestre E diante da criada assim falou: - Não conheço este homem! Mas eu que reclinei a cabeça em seu peito na última ceia! Eu fiquei ao seu lado para ver todas as coisas E meu testemunho é verdadeiro. Sua mãe também não fugiu, Eis que está de pé ao lado, como no presépio, Guardando todas as coisas em seu coração Agora traspassado e clama a todos os que passam Para contemplar, para participar, Para completar em si a Paixão do Senhor! Ó vós que passais pela estrada! Aquele que não pode caminhar! Cujos pés sagrados estão presos à cruz por um cravo.

158

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João: 3ª Mulher: 2º Homem: 4ª Mulher: João: José: João: José: Cristo: José:

E, no entanto, foi esse agora imóvel que criou todo movimento. É Ele que sustenta o pássaro no seu vôo! A estrela na sua amplidão! E o mundo no espaço! Mas por nosso amor se fez móvel. Está parado e pregado na cruz. Como sua mãe está parada e pregada na dor. Porque nossos pés se afastam do bem! Porque nossos pés nos levam para o mal e para a morte. Eis que os seus pés estão pregados para pagar por nós! Eis os pés que Madalena enxugou com as ondas do seu cabelo. Eis os pés a cujas plantas o mar se fez estradas! Eis os pés que os anjos foram mandados guardar Para que não ferissem no caminho! Porque estão pregados os teus pés, ó Jesus? Meus pés estão pregados para que os teus se soltem! Para que possais sacudir as correntes que te prendem. Porque o homem escravizou o homem seu irmão, Porque uma nação escraviza uma outra nação, eu fiquei preso. Há vinte séculos, fui levado às barras do tribunal, E ainda hoje, a justiça continua quase sempre, do lado do que tem mais dinheiro, mais poder e mais posição. Para que haja mais liberdade e menos libertinagem E para que possais caminhar, correr livremente no caminho do Senhor E voltar um dia para a casa do Pai do Céu, Eu fiquei preso na Cruz. Eis os pés que pagaram sozinho O cativeiro de todos os homens, Desde os filhos de Abel Até o último que brotar das entranhas de uma mãe. Eis os pés em cruz sobre a cruz. Como são belos os pés do libertador Que um dia disse ao paralítico: Levanta-te e anda! Senhor! Tu que pregastes a liberdade E por amor à liberdade ficastes preso,

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João: 3ª Mulher: Maria: João: José: João: José: João: José: Cristo:

Não agüento mais pisar neste chão Onde se cometem tanta injustiça, morte e traição. Prende-me eternamente a Ti E leva-me para a habitação da casa de Teu Pai! Sim! Seria ótimo voltar para o Céu. Voltar para a casa do Pai! Mas, nós temos ainda na terra as nossas casas! Então deixai essas casas um momento! Todos! Vinde com aqueles que passam pela estrada Contemplar o meu filho que não tem casa, Não tem sequer onde repousar a cabeça. No entanto, foi Ele que nos deu a grande casa que é o mundo. O mundo que é de todos, e que Ele não passou escritura para nin-guém. Este mundo é tão mal dividido. Mas como na noite em que nasceu, Não havia lugar para Ele... Porque muitos não quiseram casas, nem palácios Eis que Ele sem casa morre na cruz! Morre suspenso entre o céu e a terra! Não encontrou onde repousar a cabeça, onde pousar os pés. O Filho de Deus não encontrou os que encontraram as raposas, O que encontraram as pombas. O filho do carpinteiro!.. O que era julgado o filho do carpinteiro, daquele José da Galiléia. José como eu, de Arimatéia, não encontrou um mocambo para si. O Filho de Deus por quem tudo foi feito, não pôde edificar para si uma casa. Porque estais sem casa, ó Jesus? Estou sem casa para que tenhais na terra uma casa. Quando veres alguém sem casa, debaixo das marquises, Das pontes, morando em mocambos e barracos, pensei então: Foi por isso que o Senhor ficou sem casa na cruz. Estou sem casa para que tenhais uma outra casa, que é a chaga do meu lado, uma casa que é a minha Igreja, Cuja mesa é farta de pão e vinho. Para que tenhais na terra uma casa, para que haja no céu moradas, estou sem casa, na cruz.

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Mau Ladrão: Bom Ladrão: Cristo: José: Bom Ladrão: Cristo: Todos: Cristo: Todos: Jesus: Todos: João: José: João: José: Maria: João:

Não és Tu o Cristo? Salva-te a Ti e a nós, também? Não temes o Senhor quando sofre a mesma condenação? Nós, com justiça, fomos condenados, Mas este aí, não fez mal nenhum. Senhor, lembra-te de mim Quando chegares na glória de Tua casa! Hoje mesmo estarás comigo na minha casa. Como são agradáveis as tuas moradas, Ó Deus Onipotente! Ó Deus de todo poder! Canto: Na glória da tua casa

Na glória da tua casa, quero um dia estar contigo Os meus pecados são grandes, bem que mereço um castigo! Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso Lá na glória do meu Pai serás sempre meu amigo. Faço também meu pedido, apesar dos meus defeitos Como o ladrão penitente, quero também ser aceito. Como a ovelha desgarrada, nos braços eu te estreito Não serás meu camarada, mas meu amigo do peito. Diante tão grande bondade, Senhor, eu te agradeço De estar aberta a entrada do porto que não mereço. Tu me dizes eu te amo. Eu te digo: sou todo Teu. Tu serás eternamente meu Senhor e meu Deus. Aqui está imóvel! Aqui está na cruz! Aqui está sem casa! Aqui está nu! Vinde todos que passais pela estrada! Todos que estais em casa! Vinde ver se há dor igual à minha, Vergonha maior que a minha, E nudez maior que a dele!

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1º Homem: José: Cristo: 1º Homem: 2º Homem: 3º Homem: 4º Homem: Maria:

Nu, como se criou e nos criou. Nu como Adão após o pecado, E quando vê o seu corpo a vergonha, Procura folhas para o cobrir. Nu como Noé após a embriaguez. Nu como Abel assassinado E ninguém para o cobrir. A falta sem o prazer, a vergonha sem a falta. Nossa vergonha, sobre um corpo sem falta e vergonha. Sobre um homem sem pecado; Todas as taras do pecado. Eis o homem! Obra prima dos homens. Porque todos os homens se puseram juntos, Cada um juntando um traço de horror A fim de compor esta máscara ridícula Para a obra prima da criação de Deus. Eis o homem! Eis o que fizemos do homem! Está nu, aquele que veste os lírios do campo. E que estendeu os céus como um pano. Os soldados sortearam-lhe a túnica. Sai do mundo nu como veio. Nada leva para o céu de feito, de tecido pelas mãos dos homens, Senão essas chagas que o vestem de púrpura. Porque estais nu sobre a cruz, ó Jesus? Porque te despojastes daquela veste de glória que eu te dei no paraí-so. Eis que eu me despojei por ti. Despi-me do esplendor que eu tinha no seio do meu Pai E tomei o corpo de um de vós em Belém. Só uma vez vos deixei contemplar um pouco da minha glória. No cimo da montanha, no cimo como agora em que eu despojei, Não só das vestes dos homens, Mas também das vestes de Deus. Para ti vestir com minha graça, Eis que eu estou nu sobre a cruz. Veste-nos, Senhor, com tua graça! Veste-nos, Senhor, com as tuas chagas! Veste-nos, Senhor, com a tua nudez! O Senhor está nu, lá no alto da cruz!

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1ª Mulher: 2ª Mulher: Maria: Cristo: João: 3ª Mulher: 4ª Mulher: João: José: Cristo: José: João: José:

Vinde vê-lo, vós que passais pela estrada! Vós! Vós que vestis com luxo! Vós! Vós que banqueteais sem ver o pobre! Vinde ver o meu filho que está nu E que agora tem sede! Tenho sede! Tem sede. No entanto, foi Ele que criou as águas E que as separou. E chamou as de cima, firmamento. E as debaixo, mar. E ordenou que elas jamais transpusessem seus limites. Foi Ele que mudou a água em vinho nas Bodas de Caná E com ela lavou os pés dos discípulos na última ceia, Quando eu reclinei-me sobre se peito. Aquele que sentado à beira do poço Pediu água à Samaritana, tem sede agora na cruz. Tem sede, a fonte das águas tem sede, E nós lhes damos fel e vinagre. Porque tens sede agora na cruz, ó Jesus? Tenho sede porque a ganância dos homens é tão grande que ainda hoje ninguém pode negar, que em continentes inteiros são inumeráveis os homens e as mulheres torturados pela fome. Inumeráveis as crianças mal alimentadas, Ao ponto de morrerem na mais tenra idade, E o crescimento físico e o desenvolvimento mental de muitas crian-ças correm perigo. E todos sabem que regiões inteiras estão condenadas por esse mes-mo mal ao mais triste desânimo. Para que tenhais na terra sede de paz e de justiça e de amor, Mais aumenta minha sede nesta hora na cruz. Dá-nos, Senhor, desta fonte de água viva Que vai brotar do teu lado e vai jorrar dentro de mim, Para que lavado com esta tua água, Todo mundo sinta esta sede de justiça, de paz e de amor. A mesma lança que levou à tua boca a esponja de fel e vinagre Irá abrir o rochedo do teu peito. Por nós está sem casa!

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João: José: João: Maria: Cristo: 1ª Mulher: 2ª Mulher: José: João: José: 1º Homem: 3ª Mulher: João: Cristo: José: Cristo:

Por nós está nu! Por nós está com sede! Por nós está só! Serão acaso companheiros esses dois lá em cima E esta multidão lá em baixo? Pois dos seus discípulos, só eu fiquei! Mas eu fiquei para torná-lo mais só ainda! Eu fiquei para roubar o tesouro do que morre nu entre dois ladrões. Não havia homem algum que se unisse a Ele! Mas eu estava de pé ao seu lado porque sou mãe. Eu chorava um filho inocente que perdia e me alegrava com os filhos pecadores que eu ganhava! Mãe! Eis aí teu filho! Filho, eis aí tua mãe! Maria se inclina! João soluça! A Virgem é dada ao discípulo amado. A Virgem que fora dada outrora a José da Galiléia. É dada hoje a mim, José de Arimatéia. É dada a toda Igreja como mãe pelo seu filho. Assim os que ele deixa terão uma mãe. Uma família, um lar. Está só! Se Ele quisesse viriam legiões de anjos para libertá-lo Mas não há com Ele agora homem! Não há mulher! Não há Deus com Ele. O próprio Pai o vai abandonar! O vai entregar à dor! A totalidade de dor!. Meu Pai! Meu pai! Porque me abandonastes? Ó solidão incompreensível! Ó incompreensível solidão! O Pai se afasta abandonando o filho! Porque estais só sobre a cruz, ó Jesus? Estou só porque não é bom que o homem esteja só. Estarei só até que o homem entenda que deve encontrar o homem, E que as nações compreendam que devem encontrar-se como ir-mãos e irmãs,

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4ª Mulher: 2ª Mulher: 4º Homem: 1ª Mulher: 3º Homem: 4º Homem: 2º Homem: 1º Homem: Todos: João: Cristo: Coro: João:

Como filhos de Deus nesta compreensão e amizade mútuas, Nesta comunhão sagrada convém começar a trabalhar juntos Para construir o futuro comum da humanidade. Eu falei tanto: amai-vos uns aos outros, E ainda hoje os homens continuam a se odiar. Para que o encontro do homem com o homem seja de amor, Compreensão e ajuda, Eu o próprio Deus, sozinho, morro por vós. Já está entrando em agonia! Já está entrando em agonia! A nuvem se torna escura! A multidão se alarma e foge! O mau ladrão blasfema! Reza o bom! Não são sequer três horas e eis a noite! Deus mudou o curso dos astros? Para que não vejam Deus morrer! Para que tenhais vida morre a vida. Para que a tenhais plenamente a vida morre! Pai! Em tuas mãos entrego o meu espírito! Está tudo consumado! Canto: Bendita e louvada seja

Bendita e louvada seja a paixão do redentor Para nos salvar da culpa padeceu por nosso amor. Nós que somos tão ingratos que não sabemos agradecer Deus tão grande e tão imenso pra nos dar vida morreu. Nós te saudamos, ó cruz! Em ti prendeu do mundo o preço Só tu abriste a estrada do porto que eu não mereço. Baixa um pouco teu braços, tuas fibras amolece Durezas em ti buscamos, hoje te pedimos esquece. Ao rei que em ti pregamos, um doce leito oferece. Não interrogueis mais José de Arimatéia! Sua voz cansou. Eu serei agora sua voz.

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José: 1º Homem: 2º Homem: 3º Homem: 4º Homem: 1º Homem: 2º Homem: 3º Homem: 4º Homem: 1ª Mulher: 2ª Mulher: 3ª Mulher: 4ª Mulher: 1ª Mulher: 2ª Mulher: 3ª Mulher: 4ª Mulher: Solista: Maria: Coro:

João Batista o precedeu. João Evangelista agora o sucede. No principio, como no fim. Há sempre um João apontando: Eis o Cordeiro de Deus que tira e que tirou O pecado do mundo. O fruto tombou da árvore! (E nós com Ele tombamos) Precipitados pelo remorso e pela vergonha Do alto do nosso orgulho De nossa indiferença De nosso tédio De nossa crueldade Manchados por um sangue que não é nosso! Nós pisamos o justo contra o solo. Este homem era verdadeiramente o Filho de Deus!!! Se nós tivéssemos vivido melhor! Se nós tivéssemos amado mais! Ele não estaria morto! Não estaria morto, ó mãe! E vós não estarias aí nas trevas ao pé da árvore da salvação. Abrindo os vossos braços, reabrindo os vossos joelhos, A fim de receber o fruto que vosso ventre carregou E que teve de amadurecer duas vezes, Para vossa alegria e vossa dor! Uma vez em Belém no vosso amor! A outra aqui nos vossos ultrajes. Canto: Excelências (enquanto se canta, todos devem sair

caminhando)

Uma palavra disse a Virgem vendo o seu filho preso. Ôoo... Eu teria coragem de ver mil vezes o meu filho preso,

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Solista: Maria: Coro: Solista: Maria: Coro: Solista: Maria: Coro: Solista: Maria: Coro: Solista: Maria: Coro: Solista: Maria: Coro:

E não gostaria de ver meu povo acorrentado. Mais que Virgem, hoje és mãe deste povo acorrentado! Duas palavras disse a Virgem vendo o seu filho sem casa. Ôoo... Eu teria coragem de ver mil vezes o meu filho sem casa E não gostaria de ver o meu povo desabrigado! Mais que Virgem, hoje és mãe deste povo desabrigado! Três palavras disse a Virgem vendo o seu filho nu. Ôoo... Eu teria coragem de ver mil vezes o meu filho despido, E não gostaria de ver o meu povo despojado! Mais que Virgem, hoje és mãe deste povo despojado! Quatro palavras disse a Virgem vendo o seu filho com sede. Ôoo... Eu teria coragem de ver mil vezes o meu filho com sede, E não gostaria de ver o meu povo tão sedento. Mais que Virgem, hoje és mãe deste povo tão sedento! Cinco palavras disse a Virgem vendo o seu filho só. Ôoo... Eu teria coragem de ver mil vezes o meu filho só, E não gostaria de ver o meu povo abandonado!. Mais que Virgem, hoje és mãe deste povo abandonado! Seis palavras disse a Virgem vendo o seu filho sofrendo. Ôoo. Eu teria coragem de mil vezes passar por este sofrimento, A ver meu povo desprotegido. Mais que Virgem, hoje és mãe deste povo desprotegido! Sete palavras disse a Virgem vendo o seu filho morto. Ôoo... Eu teria coragem de ver mil vezes o meu filho morto, E não gostaria de ver o meu povo aniquilado. Recebei-nos, mãe, nos braços como temos recebido Incertos são nossos passos. Mãe, como temos vivido!

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ANEXO IV __________________________________________________________________________________________

A páscoa do servidor da Nação do Divino

Em memória do Pe. Geraldo Leite Bastos

Pe. Reginaldo Veloso

Os antigos procuravam informar-se com cuidado

sobre os detalhes da morte de pessoas famosas, alvo da admiração popular. Para eles, a ma-

neira como alguém viveu seus últimos momentos selava toda uma existência, era como o teste

final, a prova de fogo, capaz de tirar qualquer dúvida sobre o real valor e significado da sua

vida.

Essa sabedoria dos antigos tem muito a ver, porque, a final de contas se morre

como se viveu. A morte não é mais do que um desfecho lógico daquilo que foi a essência da

vida de alguém, das suas opções fundamentais, dos traços característicos da sua personalida-

de.

Por isso resolvi contar para vocês como foi a morte do Pe. Geraldo, primeiro pá-

roco da Ponte dos Carvalhos, primeiro administrador paroquial da Paróquia do Morro da

Conceição, pároco da Escada.

*******

Semana Santa de 1987! Para o “Servidor da Nação do Divino”, Deus reservou o

que havia de mais precioso, de mais belo e significativo, como coroamento da sua existência.

A final de contas, ao longo de 25 anos de exercício do ministério presbiteral, a Semana Santa

foi para Geraldo a menina dos olhos. No brilho de sua celebração investira com generosidade

e esmero todos os dons com os quais o Espírito largamente dotara. Pelo que Deus não podia

conceder-lhe melhor oportunidade de “passar deste mundo para o Pai”. E assim, cumprida a

missão que Jesus lhe confiara, preenchida a medida do seu testemunho, a “hora’ do Servidor

coincidiu igualmente com a “hora” do Mestre.

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Quinta Feira Santa, Pe. Severino Santiago vai até o Hospital Português celebrar

com Geraldo a Última Ceia do Senhor.

“Tantas vidas eu tivesse, tantas eu seria padre!” Assim respondeu a uma pergun-

ta feita por Severino sobre como se sentia enquanto padre, neste dia. Foi sua maneira de reno-

var as promessas que os presbíteros costumam fazer diante do Bispo e do Povo de Deus, na

Quinta Feira Maior.

*******

Sexta Feira da Paixão, Geraldo sofre uma forte crise de falta de ar... Profunda-

mente emocionados, ele e os que com ele se encontravam, cantam juntos o canto do Bom La-

drão, que ele havia composto para a famosa Via Sacra da Ponte: “Na glória da tua Casa”. Do

seu pulmão quase todo devorado pelo câncer, Geraldo arranca aquele grito de esperança:

“Hoje mesmo estarás

Comigo no paraíso!

Lá na glória de meu Pai,

Serás sempre meu amigo!”

*******

Mas era preciso cumprir toda a justiça. Geraldo passa o Sábado Santo cercado de

amigos. Dona Bela, sua mãe, chorosa e firme como Maria junto à cruz, não arreda.

*******

Finalmente, Domingo de Páscoa! Às 16 horas no Morro da Conceição, iniciava a

confraternização de páscoa das comunidades. Mal terminava o canto de abertura, Salmo 139:

“Ressuscitei Senhor, contigo estou, Senhor, teu grande amor, Senhor, de mim se recordou;

tua mão se levantou, me libertou”... Chegava-me um recado imperioso de Geraldo: “Venha,

imediatamente!” Comuniquei-o à assembléia, a qual não somente compreendeu, emocionada,

que eu deveria partir “imediatamente”, como me enviava qual representante seu, junto ao leito

de agonia, daquele que fora seu primeiro Pastor.

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*******

Como ninguém, Geraldo soubera captar as finezas da alma do povo... interpretar a

nobreza dos seus sentimentos e de sua fé, tantas vezes ingênua, mas sempre muito concreta e

fiel... fazer a síntese dos seus valores culturais, um acervo inesgotável de beleza e encanto...

traduzindo tudo isso em cores e ritmos, em melodias e dança, em versos e teatro, em escultura

e alfaias, em vitrais, pintura e arquitetura, certamente, com a colaboração de muita gente, que

acreditou na intuição penetrante deste gênio e formou, como que, uma escola, uma oficina de

produção de beleza, a serviço da glória de Deus e da alegria do povo.

Pois bem, justamente à celebração da Semana Santa, Geraldo dedicara o melhor

de sua capacidade criativa do seu gênio artístico, colocando-se prazerosamente como intérpre-

te autorizado da religiosidade de um povo pobre de dinheiro, privado dos bens deste mundo,

mas profundamente prendado das riquezas e dons que o Pai reservou para os pequeninos, seus

preferidos.

Merecidamente, a Divina Providência presenteia-lhe um Domingo de Páscoa para

que ele, faça, como e com seu Mestre, a passagem definitiva, deste mundo para o céu, com

certeza, na força do Divino Espírito, inspirador de sua vida e de sua arte.

*******

Chegando ao quarto, encontrei-o rodeado de familiares e amigos. Já ofegante, mas

ainda cheio do seu costumeiro humor, perguntou por que um amigo o estava fotografando.

- É porque você está bonito, explicou o amigo brincando, com a certeza de que eram as

últimas fotos que dele fazia.

- Tou uma beleza, respondeu ele, com um leve sorriso de gozação.

Aos poucos, sua respiração vai se tornando cada vez mais difícil e logo se faz ne-

cessária a máscara de oxigênio. A certa altura da noite, que já caíra, ele brada com voz forte e

insistente:

- Irmão! Irmão! Irmão!

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Mas já não conversava, nem dava explicações. E nós ficávamos tentando decifrar

o significado de cada palavra, de cada gesto seu... Será que estava pedindo que colaborásse-

mos para o fim da sua prolongada agonia, retirando-lhe o oxigênio?... Mas quem o ousaria?...

Mais adiante, surpreende-nos com um brado ainda mais forte e misteriosos:

- Abra a porta! Abra a porta! Abra a porta! Foram suas últimas palavras.

A porta do quarto estava, praticamente, o tempo

todo aberta. Amigos e familiares se revezavam continuamente, entrando ou saindo... Por que

este pedido tão insistente?... Abrir a porta para quê?... Para quem?...

O fato é que, pouco tempo depois, enquanto nós

cantávamos o Salmo 31, um dos muitos cantados por ele e sua gente da Ponte, do Morro ou

da Escada, especialmente na semana Santa, de repente, Geraldo ergueu um pouco a cabeça,

como que num último estrênuo esforço, e seus olhos brilharam com o brilho de quem se depa-

rava com refulgente claridade, vinda não se sabe de onde. Arreou a cabeça e deu seu último

suspiro. Eram 11 horas da noite, daquele Domingo de Páscoa, 19 de abril de 1987. O Servidor

da Nação do Divino, fechava seus olhos neste mundo, para abri-los, com certeza, no Reino da

eterna claridade, que talvez, de alguma maneira, já se refletia no brilho daquele seu último

olhar.

“Vem, bendito do meu Pai, tomar posse do reino

que foi preparado para ti desde a criação do mundo!” Imagino que tenham sido, precisamen-

te estas, as palavras que ouviu neste último instante, o primeiro da eterna vida.

Reginaldo Veloso, presbítero das CEB’s,

A pedido de Frei Joaquim.

Recife, 25/08/1999.

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