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na O FENÔMENO DE CONGRUÊNCIA EM REGISTROS DE REPRESENTAÇÃO SEMIÓTICA: ANÁLISE DE UMA ATIVIDADE DE MODELAGEM MATEMÁTICA Claudia Carreira da Rosa Universidade Estadual de Londrina [email protected] Lourdes Maria Werle de Almeida Universidade Estadual de Londrina [email protected] Resumo Este texto descreve uma investigação que articula a Teoria dos Registros de Representação Semiótica e Modelagem Matemática. Nosso objetivo é investigar os Registros de Representação Semiótica, em particular, o fenômeno de congruência em conversões entre registros associados aos objetos matemáticos que emergem em atividades de Modelagem Matemática no Ensino Médio. Para tanto desenvolvemos uma proposta de ensino em duas fases. A primeira foi desenvolvida com uma turma de estudantes do primeiro ano do Ensino Médio durante as aulas de Matemática no segundo e terceiro bimestres letivos do ano de 2008, enquanto a segunda foi desenvolvida com o mesmo grupo de estudantes, cursando o segundo ano do Ensino Médio durante quatro horas consecutivas em maio de 2009. A análise revela em que medida as dificuldades para realização das conversões são decorrentes da congruência ou da não- congruência das mesmas Palavras-chave: Educação Matemática, Modelagem Matemática, Registros de Representação Semiótica. 1. Introdução Um aspecto importante para compreensão em Matemática é que para um estudante reconhecer um objeto matemático 1 ele precisa recorrer a uma representação desse objeto, uma vez que “em Matemática, toda comunicação se estabelece com base em representações” (DAMM, 1999, p.135). Além disso, é preciso também levar em conta as diferentes representações associadas ao mesmo objeto. 1 Objeto Matemático é qualquer entidade, real ou imaginária, a qual nos referimos ou da qual falamos, na atividade matemática.

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O FENÔMENO DE CONGRUÊNCIA EM REGISTROS DE

REPRESENTAÇÃO SEMIÓTICA: ANÁLISE DE UMA ATIVIDADE

DE MODELAGEM MATEMÁTICA

Claudia Carreira da Rosa

Universidade Estadual de Londrina [email protected]

Lourdes Maria Werle de Almeida

Universidade Estadual de Londrina [email protected]

Resumo

Este texto descreve uma investigação que articula a Teoria dos Registros de Representação Semiótica e Modelagem Matemática. Nosso objetivo é investigar os Registros de Representação Semiótica, em particular, o fenômeno de congruência em conversões entre registros associados aos objetos matemáticos que emergem em atividades de Modelagem Matemática no Ensino Médio. Para tanto desenvolvemos uma proposta de ensino em duas fases. A primeira foi desenvolvida com uma turma de estudantes do primeiro ano do Ensino Médio durante as aulas de Matemática no segundo e terceiro bimestres letivos do ano de 2008, enquanto a segunda foi desenvolvida com o mesmo grupo de estudantes, cursando o segundo ano do Ensino Médio durante quatro horas consecutivas em maio de 2009. A análise revela em que medida as dificuldades para realização das conversões são decorrentes da congruência ou da não-congruência das mesmas

Palavras-chave: Educação Matemática, Modelagem Matemática, Registros de Representação Semiótica. 1. Introdução

Um aspecto importante para compreensão em Matemática é que para um

estudante reconhecer um objeto matemático1 ele precisa recorrer a uma representação

desse objeto, uma vez que “em Matemática, toda comunicação se estabelece com base

em representações” (DAMM, 1999, p.135). Além disso, é preciso também levar em

conta as diferentes representações associadas ao mesmo objeto.

1 Objeto Matemático é qualquer entidade, real ou imaginária, a qual nos referimos ou da qual falamos, na atividade matemática.

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Neste contexto, Lins (2004), coloca que a Matemática possui natureza simbólica,

ou seja, os objetos matemáticos “são conhecidos, não no que eles são, mas apenas em

suas propriedades, no que deles se pode dizer” (p. 96).

Levando em consideração esses fatos, investigamos os Registros de

Representação Semiótica, em particular, o fenômeno de congruência em conversões

realizadas entre registros associados aos objetos matemáticos que emergem em

atividades de Modelagem Matemática no Ensino Médio.

Envolvemos os estudantes em situações ricas em registros, de forma a propiciar

a eles possibilidades de realização de conversões. É com essa perspectiva que usamos a

Modelagem Matemática nesta pesquisa. Usamos o entendimento de Modelagem

Matemática já apresentado em Almeida e Brito (2005 a, p.487), como sendo “uma

alternativa pedagógica na qual fazemos uma abordagem, por meio da Matemática, de

um problema não essencialmente matemático”.

Abordamos inicialmente a Teoria dos Registros de Representação Semiótica de

Raymond Duval e a seguir tratamos da Modelagem Matemática. Descrevemos então, as

fases de uma das atividades de Modelagem Matemática desenvolvidas por estudantes do

Ensino Médio, evidenciando as conversões realizadas por eles e analisando as mesmas

em relação ao fenômeno de congruência.

2. Registros de Representação Semiótica

As representações são essenciais para o estudo dos fenômenos relacionados ao

conhecimento. Podemos dizer que representar é uma forma de “codificar” a informação.

A representação exprime idéias, de modo que podemos dizer que representa-se para

tornar algo presente.

Para que um estudante possa perceber e reconhecer um objeto matemático, ele

precisa recorrer a uma representação desse objeto. Damm (1999) coloca que “[...] não

existe conhecimento matemático que possa ser mobilizado por uma pessoa, sem o

auxílio de uma representação” (p.137). Para a autora, em Matemática,

[ ]... toda a comunicação se estabelece com base em representações; os objetos a serem representados são conceitos, propriedades, estruturas, relações que podem expressar diferentes situações, portanto para o seu ensino devemos levar em conta as diferentes formas de representação de um mesmo objeto matemático.

(DAMM, 1999, p.135).

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Duval (2004) considera que existem três tipos de representações: as mentais, que

são as concepções que uma pessoa pode ter sobre um objeto ou sobre uma situação; as

representações internas ou computacionais, caracterizadas pela execução automática de

uma tarefa; as representações semióticas, que são produções constituídas pelo emprego

de signos pertencentes a um sistema de representação, os quais têm suas dificuldades

próprias de significado e de funcionamento. O acesso aos objetos matemáticos passa

necessariamente por representações semióticas, que são externas e conscientes ao

indivíduo. Exemplos de registro de representação semiótica são a escrita em língua

natural, escrita algébrica, tabelas, gráficos cartesianos.

Segundo Duval (2003), os registros de representação semiótica são

caracterizados por três atividades cognitivas: a primeira é a formação de uma

representação identificável, ou seja, quando é possível reconhecer nesta representação

aquilo que ela representa, dentro de um sistema de signos estabelecido socialmente; a

segunda é o tratamento, que é uma transformação que se efetua no interior de um

mesmo sistema de registros2, como por exemplo, resolver um sistema de equações; a

terceira é a conversão, que é a transformação da representação de um objeto matemático

em uma outra representação deste mesmo objeto. Para Duval (2004) “ [. ..] as

conversões são transformações de representações que consistem em mudar de registro

conservando os mesmos objetos denotados: por exemplo, passar da escrita algébrica de

uma função à sua representação gráfica” (p.16).

Nesse sentido, Damm (1999) coloca que

A conversão é um passo fundamental no trabalho com representações semióticas, pois a transformação de um registro em outro, conservando a totalidade ou uma parte do objeto matemático que está sendo representado, não pode ser confundida com o tratamento. O tratamento é interno ao registro, já a conversão se dá entre os registros, ou seja, é exterior ao registro de partida.

(DAMM, 1999, p.147)

Segundo Duval (2004), na resolução de um problema, um registro pode aparecer

mais privilegiado do que o outro, mas o importante, é existir a possibilidade de

mobilizar ao menos dois registros de representação ao mesmo tempo, ou a possibilidade

de trocar constantemente de registro e enxergar nos diferentes registros o mesmo objeto

2 Neste trabalho, usaremos os termos “registro”, “registros de representação” e “representação” com o mesmo significado de “registro de representação semiótica”.

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matemático representado, ou seja, ter a coordenação entre os registros. Para o autor é a

articulação e a coordenação de pelo menos dois registros que constitui uma condição de

acesso a compreensão em matemática.

Para realização de conversões é necessário fazer articulações entre as variáveis

cognitivas que podem ser específicas do funcionamento de cada um dos sistemas de

registros. São essas variáveis que permitem determinar quais as unidades de significado

pertinentes que devem ser levadas em consideração em cada registro.

Para analisar a atividade cognitiva na realização de conversões, Duval (2003)

coloca também a relação entre a natureza dos diferentes registros de representação

semiótica.

Neste contexto, o autor classifica os registros de representação em

multifuncionais e monofuncionais e suas formas em discursiva e não-discursiva. Os

registros monofuncionais possuem tratamentos algoritimizáveis enquanto os

multifuncionais não.

Cada registro de representação favorece um tipo de tratamento. É comum,

segundo Duval (2003), a conversão ser considerada como uma associação

preestabelecida entre nomes e figuras, sendo considerada como uma das formas mais

simples de tratamento, o que não é verdade. Para o autor geralmente existe dificuldade

na realização de conversões e essas dificuldades podem influenciar diretamente na

aprendizagem do objeto matemático em estudo e podem estar ligadas com o fenômeno

de congruência das conversões. A realização de conversões, segundo Duval, pode ser

mais complexa ou menos complexa dependendo desse fenômeno.

Caracterizar conversões como ‘congruentes’ ou ‘não-congruentes’ constitui o

que chamamos de investigar o ‘fenômeno de congruência’.

Duval (2003) enuncia que para ser congruente, uma conversão deve satisfazer

três condições:

1. correspondência semântica, ou correspondência uma a uma entre os

elementos significantes: para cada elemento simples no registro de saída

tem um elemento simples correspondente no registro de chegada.

2. unicidade semântica terminal: cada unidade significante no registro de

saída tem uma única unidade significante no registro de chegada.

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3. ordem que compõe cada uma das representações: diz respeito à forma de

apresentação de cada uma das representações.

Para o autor, quando uma destas três condições descritas acima não está

satisfeita a conversão é não-congruente.

Neste contexto, baseados em Duval, Flores e Moretti (2008), afirmam que a

congruência nas conversões conduz a passagem de uma à outra de forma mais evidente.

“Se for o contrário, o processo será extremamente difícil e delicado” (p.27).

Duval (2004) estabelece uma relação entre o fenômeno de congruência nas

conversões e o sucesso dos estudantes na realização de uma atividade matemática.

Nessa relação, o autor evidencia a dificuldade da conversão de um registro de

representação para outro quando a conversão é não-congruente. Para o autor, quando a

conversão é congruente, os problemas são rapidamente resolvidos pelos alunos

enquanto que quando a conversão é não-congruente, a taxa de êxito dos alunos é baixa.

Além disso, segundo Duval (2004) as dificuldades que se tem pela não-

congruência da conversão podem se agravar com o desconhecimento dos registros de

representação. Se o objeto matemático em estudo não corresponde ao nível de

escolaridade que o estudante possui, executar tarefas que envolvem conversões pode ser

muito complexo e até impossível de se realizar.

Com base nos fatores colocados por Duval (condições de congruência, natureza

dos registros e conhecimento das características do objeto matemático) estabelecemos

níveis de congruência para uma conversão. São eles:

1. Nível de congruência alto: Uma conversão é deste nível se:

• As três condições de congruência de Duval estão satisfeitas;

• Os registros de representação de saída e de chegada possuem a mesma

natureza (ambos monofuncionais ou ambos multifuncionais) e possuem

a mesma forma, (ambos discursivos ou ambos não-discursivos).

(Exemplo: conversão de um registro tabular para um registro algébrico,

ambos são monofuncionais e de forma discursiva);

• Os estudantes que realizam a conversão de algum modo “compreendem”

o objeto matemático em estudo (não é viável usar um objeto

matemático quando os estudantes nunca tiveram a oportunidade de ter

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contato com algumas características do mesmo). Consideramos que o

estudante possui um conhecimento básico para o nível cognitivo em

que está.

De forma geral, consideramos que uma conversão é congruente com nível de

congruência alto quando a mesma corresponde a uma atividade de codificação.

2. Nível de congruência médio alto: uma conversão deste nível se

• As três condições de congruência de Duval estão satisfeitas;

• Os registros de representação de saída e de chegada possuem a mesma

natureza (ambos monofuncionais ou ambos multifuncionais) mas não

possuem a mesma forma, (um discursivo e o outro não discursivo);

• Os estudantes para realizar a conversão precisam usar conhecimentos

básicos como para realizar uma atividade de codificação. Não é

necessário ‘grandes’ conhecimentos matemáticos por parte dos

estudantes.

3. Nível de congruência médio baixo: uma conversão é deste nível se

• As três condições de congruência de Duval estão satisfeitas;

• Os registros de representação de saída e de chegada possuem a mesma

natureza (ambos monofuncionais ou ambos multifuncionais) e possuem

a mesma forma, (ambos discursivos ou ambos não-discursivos);

• Os estudantes para realizar a conversão precisam usar conhecimentos

mais avançados e em maior variedade. Não é somente realizar uma

atividade de codificação.

4. Nível de congruência baixo: uma conversão é deste nível se:

• As três condições de congruência de Duval estão satisfeitas;

• Os registros de representação de saída e de chegada não possuem a

mesma natureza (ambos monofuncionais ou ambos multifuncionais) ou/e

não possuem a mesma forma, (ambos discursivos ou ambos não-

discursivos);

• Os estudantes para realizar a conversão precisam usar conhecimentos

mais avançados e não somente realizar uma atividade de codificação.

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Consideramos que a conversão é não-congruente quando não satisfaz a pelo

menos uma das condições colocadas por Duval. Com base nessas condições, definimos

os níveis de não-congruência.

1. Nível de não-congruência baixo: não satisfaz a apenas uma das três

condições de Duval.

2. Nível de não-congruência médio: não satisfaz a duas das três condições de

Duval.

3. Nível de não-congruência alto: não satisfaz às três condições de Duval.

Para Duval (2003) a realização de conversões congruentes e não-congruentes

pode sinalizar para o fato da apreensão do objeto matemático em estudo, pois, para o

autor, a compreensão do objeto matemático está relacionada com a mobilização de ao

menos dois registros de representação simultaneamente, ou com a possibilidade de

trocar de registro de representação a todo o momento.

3. Modelagem matemática e o contexto dos Registros de Representação Semiótica

Para Skovsmose (2001), “em um processo de Modelagem Matemática, ocorre

uma transição entre linguagens diferentes”. A primeira transição é a da linguagem

natural para uma linguagem sistemática, que ocorre quando uma situação da realidade é

transformada em informações. A segunda é a transição da linguagem sistemática para

linguagem matemática, que ocorre quando as informações são transformadas, por meio

de hipóteses simplificadas em um modelo matemático.

Nesse sentido, a transição de uma linguagem a outra é o que na teoria de Duval

se constitui uma conversão. Essa transição entre a linguagem natural e a linguagem

matemática “torna presente” o problema matemático a ser resolvido e pode ser

associado com as representações semióticas, que segundo Duval (2004), são produções

constituídas pelo emprego de signos pertencentes a um sistema de representação, os

quais tem suas dificuldades próprias de significado e funcionamento.

Neste trabalho, assumimos o entendimento de modelagem já apresentado em

Almeida e Brito (2005 a), como sendo uma alternativa pedagógica na qual fazemos uma

abordagem, por meio da Matemática, de um problema não essencialmente matemático.

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De modo geral, as atividades de Modelagem Matemática envolvem várias

etapas. A primeira começa quando o indivíduo se depara com uma situação-problema

que deseja investigar. Depois, segue a identificação das características e variáveis que

influenciam diretamente no problema, é a segunda etapa, a de simplificação de

variáveis. Após, vem a etapa onde são introduzidos os conceitos matemáticos formais e

as notações, esta etapa é a etapa de abstração, que envolve a seleção dos objetos

matemáticos necessários para representar a situação em estudo. A próxima etapa

envolve a manipulação com as representações dos objetos matemáticos a fim de se obter

um modelo. Finalmente, a última etapa é a validação do modelo e interpretação da

resposta encontrada, levando em consideração a situação-problema inicial.

As atividades de Modelagem Matemática podem ser introduzidas às aulas de

matemática usando os três momentos propostos por Almeida & Dias (2004):

• Em um primeiro momento o professor desenvolve com os estudantes um

trabalho de Modelagem Matemática já estruturado, cabe aos estudantes a

resolução do problema e o professor orientar o trabalho de resolução.

• No segundo momento o professor traz para sala de aula uma situação-problema

já estruturada no contexto não matemático e informações sobre a mesma. Neste

caso cabe aos estudantes, em grupo, a seleção das variáveis, a formulação das

hipóteses, a dedução do modelo, a validação e a interpretação das respostas

encontradas diante da situação real e ao professor colaborar com trabalho.

• No terceiro momento, também em grupos, os estudantes desenvolvem uma

atividade de Modelagem Matemática desde a escolha do problema até a

obtenção de uma resposta para o mesmo. O professor atua como colaborador do

trabalho.

Assim, segundo Almeida e Dias (2004),

[. ..] na medida em que o aluno vai realizando as atividades nos

diferentes momentos [. ..] a sua compreensão acerca do processo de Modelagem, da resolução dos problemas em estudo e da reflexão sobre as soluções encontradas vai se consolidando.

(ALMEIDA E DIAS 2004, p.26)

Ao trabalhar com atividades de Modelagem Matemática em sala de aula, o

professor proporciona ao estudante a oportunidade de ele próprio decidir o caminho a

percorrer, tornando assim o problema a ser resolvido algo particular. Isso, por sua vez,

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implica em resultados diferenciados variando de estudante para estudante. Esse fato

significa que o estudante tem certa liberdade para interpretar o problema e encontrar

“uma Matemática adequada” para resolver o “seu” problema. Logo, para o mesmo

problema pode-se usar de conteúdos matemáticos diferenciados.

De modo geral, atividades de Modelagem de envolvem diferentes representações

de um objeto matemático. Gráficos, relações funcionais, tabelas, figuras geométricas

são exemplos dessas representações. O conjunto de ações realizadas pelo estudante

desde a definição da situação-problema até a interpretação dos resultados obtidos gera a

necessidade do uso os conteúdos curriculares, possibilitando a introdução de conteúdos

novos3 e revisão de conteúdos velhos4.

4. Uma atividade de Modelagem Matemática no Ensino Médio

Planejamos e desenvolvemos uma proposta de ensino fazendo uso da

Modelagem Matemática, em duas fases, sendo a primeira fase desenvolvida de maio a

setembro de 2008 e a segunda fase desenvolvida em maio de 2009. A proposta foi

desenvolvida com estudantes de um colégio público em uma cidade no interior do

Paraná. Na primeira fase os alunos cursavam o primeiro ano do Ensino Médio e na

segunda fase cursavam o segundo ano do Ensino Médio.

Para o envolvimento dos estudantes desta turma com atividades de Modelagem

Matemática, nos fundamentamos nas etapas da Modelagem Matemática e usamos os

três momentos propostos por Almeida & Dias (2004) descritos no item três deste texto.

Descrevemos aqui uma das dez atividades de Modelagem Matemática desenvolvidas

pelos estudantes. Essa atividade foi desenvolvida na primeira fase de acordo com o

terceiro momento da Modelagem Matemática e na segunda fase foi desenvolvida de

acordo com o segundo momento da Modelagem Matemática, conforme definimos na

seção anterior.

3 Usamos o termo “novos” para nos referir a conceitos matemáticos ainda não estudados. 4 Usamos o termo “velho” para nos referir a conceitos matemáticos já estudados.

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4.1 Desenvolvimento da atividade na primeira fase

O interesse pelo tema surgiu a partir de uma reportagem assistida pelos

estudantes na televisão sobre a reciclagem de lixo orgânico, que era a idéia inicial para o

trabalho. À procura de dados na internet, encontraram a reportagem “Reciclagem, um

bem não muito praticado” que faz um paralelo entre a reciclagem de garrafas pet em

outros paises e no Brasil. O senso da reciclagem de PET no Brasil (2006/2007)

disponibilizado pela ABIPET- Associação Brasileira de Embalagens PET- apresenta

dados atualizados da evolução da reciclagem de garrafas PET no Brasil nos últimos

anos conforme mostra a tabela 1. Segundo o jornal Express, em 1994 oitenta mil

toneladas de garrafas pet foram produzidas no Brasil e para 2008 a previsão seria que

seriam 700 mil toneladas produzidas.

Tabela 1: Dados usados pelo grupo

ANO RECICLAGEM PET (unidades)

ÍNDICE (%)

1994 13.000 18,80

1996 22.000 21,00

1998 40.000 17,90

2000 67.000 26,27

2002 105.000 35,00

2004 173.000 48,00

2006 194.000 51,30

Fonte: ABIPET

A partir dos dados mostrados na tabela 1, os estudantes calcularam o número de

garrafas pet fabricadas no Brasil neste período e definiram as questões do problema a

investigar; “Quantas garrafas pet forma recicladas no Brasil durante o ano de 2008?”

“Considerando o número de garrafas recicladas em 2008, qual percentual do número

de garrafas pet produzidas em 2008 ele representa?

Começaram então a definição das variáveis: número de garrafas pet recicladas

(R) (variável dependente); (t) tempo (variável independente). Esta foi a primeira

conversão realizada, que denominaremos conversão 1. Ocorreu da linguagem natural

para a linguagem matemática. A conversão 1 não satisfaz as condições (2) e (3) de

Duval. Não possui unicidade terminal, uma vez que podemos encontrar outra forma de

representar as variáveis em relação a variável dependente e a variável independente e

não possui a ordem que compõe as representações, pois ao mudarmos as variáveis, a

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ordem também mudaria. Portanto a conversão 1 é não-congruente com nível de não-

congruência médio.

Para formulação das hipóteses, os alunos estudaram o comportamento dos dados

com o passar dos anos e fizeram o registro gráfico, conforme mostra a figura 1 e a

figura 2 respectivamente.

Figura 1: Análise dos dados da tabela 1

Figura 2: Registro gráfico realizado pelo grupo- 1ª fase

Consideramos como conversão 2 a passagem do registro tabular (tabela 1) para o

registro gráfico (figura 2).

A partir da visualização gráfica dos dados e das relações encontradas o grupo

definiu suas hipóteses:

garrafas

garrafas

garrafas

garrafas

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1. 1994=tempo1, 1996=tempo 2 ... 2004=tempo 6

2. nR

R∆ é praticamente constante

3. A curva lembra uma função exponencial

Com essas hipóteses começaram a dedução do modelo. Os registros dos

estudantes estão na figura 3.

Figura 3: Registro algébrico realizado pelo grupo- 1ª fase

Ao encontrar a representação algébrica para o modelo, os estudantes realizaram

a conversão 3, sendo esta do registro gráfico para o registro tabular.

As conversões 2 e 3 são congruentes, pois satisfazem às três condições de Duval,

ambas são entre registros de mesma natureza (monofuncionais), mas com formas

diferentes, uma vez que o registro gráfico possui forma não-discursiva enquanto o

registro tabular e o registro algébrico possuem forma discursiva. Para realização da

conversão 2 os estudantes somente precisavam “marcar” os pontos da tabela no sistema

cartesiano, ou seja, a atividade estava muito próxima de uma codificação. A conversão

3 exigiu “mais matemática” os estudantes usaram índices, variações, potenciação,

interpretaram a curva mostrada no gráfico, usaram substituição numérica, trabalharam

com o erro. Portanto a conversão 2 possui nível de congruência médio alto e a

conversão 3 nível de congruência baixo.

Após substituírem valores para 0R e K no modelo genérico encontrado (figura

3) chegaram ao modelo que representava a situação inicial, ttR )6745,1(84,7)( = e então

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encontraram que o número estimado de garrafas pet para o ano de 2008 seria de

aproximadamente 484.590 garrafas.

Para responder a segunda questão do problema inicial, os estudantes utilizaram

de regra de três, como mostra a figura 4.

Figura 4: Tratamento usado para responder a segunda questão – 1ª fase

Ao responder as questões com base no problema inicial, os estudantes

realizaram conversão, no caso, do registro algébrico para o registro em língua natural

(conversão 4).

A conversão 4 não satisfaz as três condições de Duval. Não possui a

correspondência semântica entre as unidades significativas, pois em nenhum lugar no

registro algébrico é possível reconhecer a representação em língua natural usada. Não

existe a unicidade terminal entre os registros de saída e de chegada, uma vez que os

estudantes poderiam ter escrito suas conclusões de outra forma usando outras palavras,

e devido a esse fato não podemos garantir que prevalecerá a ordem. Há necessidade de

interpretar o registro de saída que está numa linguagem matemática para chegar ao

registro de chegada que está em língua natural. Assim a conversão 4 é uma conversão

não-congruente com nível de não-congruência alto.

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4.2 Desenvolvimento da atividade na segunda fase

Não houve variações nas conversões realizadas no desenvolvimento da atividade

na segunda fase. Os estudantes definiram as variáveis da mesma forma que o grupo da

primeira fase (variável dependente a reciclagem e variável independente o tempo).

Na formulação das hipóteses usaram também o registro gráfico como ponto de

partida. Para deduzir o modelo (registro algébrico) é que houve diferença no

desenvolvimento da atividade do grupo da primeira fase. Os estudantes consideraram

como registro algébrico genérico da função exponencial o registro tABR .= .

Substituíram pontos da tabela inicial (tabela 1) para encontrar os valores de A e B. Na

primeira tentativa usaram o quinto e o sétimo ponto (tabela 1) e encontraram o registro

algébrico tR )121,1(197.87= , que segundo a validação que fizeram não representava

bem a situação inicial.

Para segunda tentativa de encontrar o modelo algébrico para função exponencial

partiram do mesmo registro genérico da função exponencial usada anteriormente,

mudando os pontos substituídos. Usaram o segundo e sexto ponto da tabela (tabela 1) e

encontraram a representação algébrica mostrada na figura 5. Validaram e concluíram

que o registro algébrico da função representava bem a situação inicial.

Figura 5: 2º modelo encontrado pelo grupo – 2ª fase

O grupo na segunda fase não respondeu a segunda questão do problema inicial,

pois segundo eles “houve falta de tempo”, embora a resposta dada para primeira questão

não condiz com o que a mesma perguntava.

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Figura 6: Validação e resposta dada pelo grupo para questão do problema inicial – fase 2

Como as conversões realizadas nessa fase para esta atividade não se alterou em

relação a primeira fase com exceção do tratamento usado para obter o registro algébrico

do modelo procurado, a análise do fenômeno de congruência é equivalente a análise

feita para o desenvolvimento da atividade na primeira fase.

Em relação ao conteúdo matemático, verificamos que o grupo sabia as

características principais do objeto matemático em estudo (função exponencial), uma

vez que as conversões foram realizadas sem a necessidade de nossa interferência,

embora os tratamentos usados na segunda fase, principalmente no registro algébrico,

foram mais econômicos do que os usados pelos estudantes na primeira fase.

5. Considerações finais

Para Duval (2003) atividades de conversão põem em evidência o fenômeno de

congruência e não-congruência. Segundo o autor uma conversão pode ser mais

complexa ou menos complexa de acordo com esse fenômeno. Em nossa pesquisa,

estabelecemos níveis de congruência e níveis de não-congruência para análise das

conversões apresentadas nas atividades realizadas por estudantes do Ensino Médio e

concluímos que o fenômeno de congruência, de fato, influenciou a realização das

conversões pelos estudantes, sendo as conversões congruentes realizadas com maior

êxito.

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Verificamos que o registro gráfico somente era utilizado quando não tinham

mais recursos e sempre que necessário usavam o registro tabular para intermediar essa

conversão. Também percebemos na atividade descrita neste texto o uso privilegiado da

linguagem algébrica e do registro tabular o que converge para o argumento já

apresentado por Duval (2003) de que “[...] em uma resolução de problema um registro

pode aparecer explicitamente privilegiado, mas deve existir sempre a possibilidade de

passar de um registro ao outro”.

Constatamos que na realização de conversões congruentes com nível de

congruência alto e médio alto os estudantes não apresentaram dificuldades enquanto que

nas conversões não-congruentes ou congruentes com nível de congruência baixo os

estudantes demonstraram dificuldades na realização das mesmas, além de ter sido

nessas o número maior de erros cometidos, e que sem nossa interferência

provavelmente teria causado o insucesso das conversões.

Segundo Duval (2004) o tempo de resposta ao realizar uma conversão

congruente é muito menor do que ao realizar uma não-congruente, além de aumentar

consideravelmente o tratamento realizado. Na nossa pesquisa confirmamos também esta

observação do autor e concluímos que a dificuldade na realização de conversões

depende do nível de congruência da mesma.

Outro fator que está diretamente ligado ao fenômeno de congruência numa

conversão é o conhecimento dos registros por parte de quem realiza a conversão. Para

Duval (2004) as “dificuldades que se tem pela não-congruência de uma conversão,

podem se agravar pelo desconhecimento de um dos registros de representação” (p. 60).

Neste sentido, na nossa pesquisa, o sucesso de algumas conversões realizadas na

segunda fase pode ser associado a esse aspecto uma vez que os estudantes já estavam

familiarizados com a realização de conversões, bem como os objetos matemáticos

desenvolvidos.

Nesse contexto, consideramos importante a realização de conversões e a

coordenação entre os registros para a aprendizagem em Matemática. Sabemos que essas

atividades cognitivas, em geral não são espontâneas. Com isso, este trabalho apresenta

a Modelagem Matemática como uma alternativa pedagógica que possibilita a realização

dessas atividades.

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As atividades de Modelagem Matemática imprimem, aos poucos, uma nova

postura nos estudantes diante de situações propostas, uma postura mais reflexiva em

relação ao objeto matemático e em relação à situação problema.

Verificamos essa mudança de postura nos estudantes no decorrer da pesquisa,

principalmente na segunda fase em relação à primeira fase. Isso ficou evidenciado na

posição que eles tomaram frente a atividade de Modelagem Matemática sugerida na

segunda fase. Durante toda aula, questionaram uns aos outros, propuseram caminhos

diferentes e mostraram uma postura muito independente.

6. Referências Bibliográficas

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