Narrativa E Modernidade - André Parente

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A diferenfa entre o cinema experimental e o outro cinema

é que o primeiro experimenta, enquanto o outro encontra, em

virtude de urna necessidade diferente da do processo filmtco.

G. Deleuze, Cinema 2: A imagem-tempo

Seja ele, p ortanto, underground, cinema direto, free cinema ou outra coisa,

o filme experimental niio é diferente do próprio cinema em stta constante evolu(:iio,

porquanto seja verdade que umfilme experimental bem-sucedido

niio é mats que o clássico de amanbii.

]. Miuy, Le cinéma e:xpérimental, bistoire et perspectives

A biparti9áo experimental/narrativo

A maioria dos "teóricos" do experimental parte da seguinte constata\;1i~: o cinema recobre duas realidades em grande parte antagónicas, o experimental e o outro. Ora,

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4 O CINEMA EXPERIMENTAL

se tentam1os interrogar os fundamentos, os distingos, pelos quais eles operam essa biparti~ao, clamo-nos conta de que eles nao concernem aos processos fílmicos: cinema comercial/cinema criativo, cinema industriaVcinema pessoal, cinema de narrativa/ cinerria da imagem, cinema de comunica~ao/cinema de poesía, cinema da significa~ao/ cinema do significante, cinema figurativo/cinema abstrato, cinema do sentido/cinema da forma, cinema minlético/cinema formalista etc. Nenhuma dessas oposi~oes se refere aos processos fílmicos que nos permitem ressaltar os tipos de imagens que caractetizam as escolas, os movimentos e as tendencias do cinema, qualquer que seja ele. Alé!U do [ato de o experimental nao ter unidade, veremos que, com exce~ao de uma tendencia do cinema experimental- o "cine-olho", o "acinema" ou "cinema-matéria", a única que merece plenamente o qualificativo de nao-narrativo -, este só pode se distinguir do outro se se recorre a falsas oposi~oes, a despeito dos processos fílmicos. Por isso, consideramos que um do~ melhores livros consagrados ao experimental, ao contrário do que se admite, é o de Jean Mitry: Le cinéma experimental: Histoires et perspectives .

. Embora o livro tenha falhas (imprecisoes históricas, moral duvidosa etc.), a presenta a vantagem de privilegiar a análise dos processos fílmicos e de nao fazer profissao de fé.

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Todos criticaram Mitry por ter tomado a palavra experimental em um sentido muito "1\ ¡ h-y amplo: para ele, todo fillne é experimental quando contribuí para o aperfei~oamento, o avan~o ou para a renova~ao do cinema e de sua linguagem. Nessa perspectiva, o experimental, depois de 1920, é aquele que tem por objeto a descoberta de um "cinema puro", no sentido de que está liberado de tudo o que nao é especificamente fílmico. Nao compreendemos a indigna~ao que tomou canta dos especialistas desse movimento, na medida em que, também para eles, é experimental todo cinema no qua! a especificidade ffimica é mais importante do que a narra~ao, a significa~ao e todas as outras amarras nao-fílmicas (industriais, comerciais etc.). A questao é saber o .que é a especificidade fílmlca. Ora, nenhum dos críticos do experimental - ]. Mekas, M. Le Grice, P. Tyler, J.P. Adams, A. Michelson, D. Nogues, C. Eizykman, entre outros- nos dá respostas satisfatórias sobre o assunto. Seus trabalhos apresentam grandes !acunas teóricas: em vez de ressaltar e determinar os processos fílmicos, imagéticos, suscitados pelos autores, escalas e movimentos do cinema dito experimental, restringem-se a falsas oposir;:oes do tipo significante/significado, forma/sentido, poética/comunicar;:ao, nao-narrativo/narrativo (o primeiro tomado no sentido de recusa da narra~o linear, significar;:ao etc., o segundo tomado no sentido da semlologia) etc. Para eles, a especificidade cinematográfica remete ao primeiro termo dessas oposir;:oes, as quais se resolvem pelo dualismo imagem/narrar;:ao. Ora, como vimos ao longo deste trabalho, a narrar;:ao é quase sempre consubstancial as imagens. Ou seja, a maioria dos processos fílmicos é, a um só tempo:~gé~co e narrativo. :o que se op6e a irnagein é a concepr;:ao semiológica da narrar;:ao que, para explicar o cinema e para determinar sua linguagem, reduz tanto a irnagem quanto a narra~o aos enunciados analógicos, ic6nicos.1

Do ponto de vista histórico, também nao há unanirnidade na questao de saber ande come~a o cinema experimental. Para alguns, esse movimento apareceu nos anos 40 ou 50, nos Estados Unidos, coma "vanguarda americana". Para outros, ele remonta as origens do cinema, com o "cine-olho", de Dziga Vertov, ou a "vanguarda francesa dos anos 20". Há até mesmo críticos para quem o experimental nasceu com os fu turistas italianos2 ou, ainda, com Melles e Lumiere.3

Na verdade, por detrás do problema terminológico, há um problema mais profundo, a um só tempo histórico e conceitual. Tal problema pode ser colocado da seguinte maneira: por que conceito(s) podem-se ligar todos os filmes, autores e

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movimentos diversos nomeados e caracte~ados diferentemente, mas integrados em um único corpus chamada de cinema ex:perimen.tal?

Queremos saber o que tornou possível a forma<;ao desse corpus, qualquer que seja seu nome. O que se chama de cinema experimental recobre realidades bem diferentes que convém distinguir. Tais rep.lidades foram colocadas juntas seja por causa de um desconhecimento, seja por causa de outra necessidade que nao a dos processos fílmicos imagéticos. Ora, tal desconhecimento está ligado ao problema da narra~o no cinema, tal como colocado pela semiologia.

Em um artigo .intitulado "Théorie(s) du (ou de) cinéma(s)?", Dominique Noguez explicava a importancia da forma.;ao de um corpus para a teoria do cinema. Disse ele (1982, p. 42): "Cada teórico, quer queira, quer nao, justifique ou nao, instaura, por suas próprias referencias, um corpus de fato." Mais adiante, ele acusa, com razao, a semiologia de ter concebido seus conceitos pela sele<;ao implícita de um corpus que nao corresponde a todo cinema, pois exclui o cinema nao-narrativo. Lembramos que a semiologia construiu seus conceitos sobre a determina<;ao de um fato historicamente adquirido, a narra<;ao. Portante, a questao colocada por Noguez - a saber, se com tal redu<;ao, o rebatimento do direito sobre o fato, nao se corria o risco de comprometer a própria idéia de que há um cinema 4

- é bem legítima. Entretanto, veremos mais adiante, Noguez, assim como a grande maioria dos teóricos desse movimento, sempre concedeu a semiologia o fato cinematográficQ imposto por ela. E foi esse consenti­mento que !hes permitiu, por muito tempo, juntar, negativamente, sob o ter~o de experimental, o que nao deve estar junto, sob pena de urna redu<;ao.

A maioria dos termos do experimental foi determinada historicamente e utilizada sem muita preocupa<;ao conceitual. Ora tais termos designam movimentos cinema­tográficos historicamente constituídos ("a vanguarda francesa dos anos 20", "a van­guarda americana dos anos 40 ou 50", "a escala de Nova York", o "New american cinema grou¡i' - NACC, "o underground americano" etc.), ora designam um acon­tecimento histórico de ordem institucional relativo a produ<;ao e a difusao dos filmes ("nao-industrial, "nao-comercial", "independente", "pessoal" etc.), a cria<;ao de um grupo ou de urna cooperativa ("o new american cinemagroup"), de urna revista ou de um festival ("filme maldito" e "escala de Nova York"), ou até mesmo foram cunhados por comodidade ou rea<;ao da crítica jornalística ("cinema marginal", "paralelo",

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"clandestino" etc.). Porta.nto, podemos observar que todos esses termos foram criados sem nenhuma preocupac;:ao conceitual.

Pudemos constatar também que os textos consagrados ao cinema experimental, em sua maioria, sao exercícios de estilo, profissoes de fé e que representam votos pios. Segundo esses textos, basta que o filme seja classificado como nao-experimental5 para que seja vivamente criticado e déclarado ruim; ao contrário, excelente se o filme recebeu essa marca de. qualidade, qualquer que seja a razao (ele nao conta história, é produzido com baixo orc;:amento, parece ser o produto de urna expressao pessoal etc.), nunca encontramos urna crítica sobre um fUme experimental por parte de- seus especialistas. Com freqüencia, encontramo-los julgando o neo-realismo, a nouvelle vague e grandes autores como Orson Welles, Godard, Pasolini, Cassavetes e Robbe­Grillet, em termos de fracasso: "o fracasso de Robbe-Grillet e de Pasolini é explicado pelo fato de eles trabalharem nos limites do cinema convencional" e "nao ousam ir além das ·práticas da nouvelle vagul!' (Mekas 1972, p. 313). ]onas Mekas chega até mesmo a condenar filmes porque foram rodados em Hollywood (ídem, pp. 16-17).6

Seria inútil arroJar aquí as reprovac;:oes e acusac;:oes desses críticos.7

Duas observac;:oes se impoem: a primeira relativa as condic;:oes de produc;:ao e de ¡ divulgac;:ao, que constituem um dos critérios característicos do cinema experimental. ' Nao negamos a diferenc;:a entre cinema comercial e cinema criativo, pelo contrário. Mas -acreditamos que tal distinc;:ao nao se refere aos processos fílmicos, no sentido de que eles nunca sao comerciais, até mesmo no cinema hollywoodiano. O fato de um filme ter um orc;:amento alto nao quer dizer muita coisa: o orc;:amento de um filme nao se op6e a su a criatividade. Por o utro lado, é preciso dizer que a grande maioria dos filmes experimentais é composta de fúmes de baixo o u médio orc;:amento.8 Suas condic;:oes de produc;:ao e de divulgac;:ao nao diferem nmito das dos filmes de curta-metragem, sejam eles narrativos o u nao, comerciais ou nao. Além disso, há muitos fumes narrativos e comerciais de Ionga-metragem- sobretudo os que nao sao produzidos e distribuídos pelas grandes produtoras - que tiveram as mesmas dificuldades de produc;:ao e de distribuic;:ao. Podemos acrescentar que a maioria dos filmes do Terceiro Mundo teve tanta dificuldade de produc;:ao e de divulgac;:ao quanto os filmes experimentais americanos e europeus. O "cinema udigntdf' (o unde1-ground brasileiro) é muito pouco conhecido, no Brasil ou em outra parte.9 Nao há um único filme desse movimento citado em um livro o u catálogo de filmes underground o u experimentais,

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quando esse movimento teve um florescimento táo grande no Brasil, entre 1966 e 1972, quanto naFran~ ou em qualquer país da Europa. Dito isso,_os ~rit~~ios de produ~o e de difusao, assim como a distin~ao comerciaVcriativo, sao importantes, mas nao podem contribuir muito para a teoria cinematográfica.10

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A segunda observa~ao diz respeito aos termos "conceituais". Alguns desses termos "nao-figurativo", "abstrato" etc. - desapareceram porque designavam aspectos

secundários do cinema experimental e se aplicavam a poucos filmes. Outros - "cinema criativo", "cinema de arte", "cinema de poesía" etc. - já nao sao utilizados porque se aplicam ao cinema nao-experimental. Finalmente, há aqueles que nao significam grande coisa hoje em dia - "cinema puro", "cinema de vanguarda" etc. Resta apenas o termo "nao-narrativo". Entretanto, este muda completamente de perspectiva quando nao opoe mais a narra~ao a imagem cinematográfica. Além disso, o cinema dito experimental nem sempre é nao-narrativo.

Até hoje, o que é unanimidade na crítica dessa corrente "é a recusa da narra~o linear" e da "figura da significa~o".11 Ora, a recusa da narra~ao linear é u rna característica de todo o cinema d o pós-guerra (de Welles a Godard). A recusa da figura da significa~ao (ou da comunica~o) é, em nossa opiniaq, um critério que contracliZ a concep~ao serniológica. O cinema, mesmo o clássico, só é uma linguagem secundaría­mente, depois que a semiología se apoderou dele.

O experimental niio tem unidade

Vejamos como a oposi~ao cinema narrativo/nao-narrativo se apresenta em alguns teóricos. Em Noguez, a distin~ao N/N-N tem matizes e é duplicada por outra oposi~ao: cinema de comunica~ao (sentido e significado)/cinema de poesía (forma e signifi­cante). Segundo esse autor, se se aplica ao cinema a classifica~o de Jakobson das fun~oes da linguagem, "poder-se-á definir o filme experimental como um ftlme em que a fun~o poética se sobr~poe as outras, sobretudo a fun~ao 'fática' e a fun~ao 'referencial"' (Noguez 1979, pp. 15-16). Orá, para que Noguez possa aplicar tal classifi­ca~o ao cinema, seria preciso que nos mostrasse, antes de tudo, como falar de linguagem cinematográfica em rela~o ao cinema, em particular em rela~o ao cinema experimental.

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Para compreender melhor a idéia de base de Noguez, é melhor deixar de lado a classifica~ao de jakobson. Segundo ele, "é experimental todo filme em que as 'preocupa~oes formais' estao no comando" (idem, ibid.). Por preocupas;ao formal, Noguez entende toda preocupas;ao ligada a aparencia sensível ou a esirutura da obra, independentemente do sentido que veicula. Ora, tal idé ia nao é nova. Remonta a Víctor Chklovski, para quem, vimos, o cinema poético é o cinema que priv:ilegia os "momentos formais" a despeito dos "momentos semanticos (o argumento)" (Chklovski 1971, p. 87). Em Chklovski e nos formalistas o argumento é o homem diante de urna situa~ao, ao passo que, com a semiología, o argumento (a diegese ou a narratividade) tornou-se íntimamente ligado as fun~oes lingüísticas. A concep~ao da comunicas;ao cinematográfica de Noguez é reveladora dos mal-entendidos e confusoes que afetam essa parte da crítica. Dessa perspectiva, o cinema narrativo, sobretudo o cinema clássico, é aquele que privilegia, antes de tudo, a comunica~ao, o sentido (Noguez) e a significa~ao (C. Eizykman e G. Fihman). Mas a comunica~ao cinematográfica, para eles, como para os semiólogos, confunde-se com a comunicas;ao lingüística e suas fun~oes. Por isso, para Noguez, como para C. Eizykman, G. Fihman e outros, o sentido

. veiculado se opoe aos agregados sensíveis, e o cinema narrativo , que secreta a significa~ao, opoe-se ao cinema experimental.

Para esses críticos, se os sons e as imagens claras sao assimilados as fun~;oes da comunica~ao, entao, é preciso confundí-los para que. eles nao possam comunicar.12

Nesse sentido, todo o cinema experimental nao passa de urna subversao, urna nega~ao das regras comunicativas, lingüísticas, e nada mais. Em nossa opiniao, tais oposi~oe!i

evocadas por Noguez - cinema do significado, do sentido, da comunica~ao x cinema do significan te, da forma, poético - , em toda sua obra, nao dao conta da diferen~;a (e até mesmo da novidade) entre o experimental e o outro, supondo que ela exista em bloca. Por um lado, a dupla significante/significado nao é pertinente para distinguir as imagens cinematográficas. Por outro, o cinema criativo (e até mesmo a arte cinema­tográfica), qualquer que ele seja, hollywoodiano ou nao, nao existe sem esfor~os formais específicos. É verdade que, se se compara o conteúdo mais imediato e mais aparente de um ftlme hollywoodiano com um filme experimental, parece que o primeiro se preocupa bem pouco coro a forma. Entretanto, Hollywood deu lugar a obras muito criativas no genero burlesco, faroeste, policial e comédia musical, cujo aspecto formal nao era inexistente ou negligenciado. Analisaremos ulteriormente o

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papel que a anamorfose desempenha na imagem-sonho, que domina urna das tendencias do experimental. Ora, muitos filmes burlescos de Buster Keaton e de Marc Senn~t apresentam grandes afinidades com o surrealismo e .o dadaísmo.13 Em Sherlockjunior, Keaton faz urna série de anamorf~ses que estao entre as mais belas do cinema: "a imagem da cadeíra desequilibrada no jardim dá lugar a cambalhota na rua, e depois ao precipício em cuja.beira o herói se inclina, mas dentro da goela de um leao, e depois ao deserto e ao cacto sobre o qual ele se senta, depois ao monte que faz surgir urna ilha na qual ondas se arrebentam, e onde ele mergulha numa extensao agora coberta de neve, de onde sai para se ver, de novo, no jardim".14

Ero Claudine Eizykman, La jouissance-cinéma, o par N/N-N se duplica por outros dualismos, aparentemente mais interessantes~ o energético casual x o energético psíquico; os processos secundários x os processos primários; o cinema NRI (narrativo­representativo-industrial), o "cinema que secreta a significa~ao" x o cinema experimen­tal etc. Segundo essa autora, devemos derrubar as rela~oes entre o cinema e as ciencias sociais que se apoderaram do cinema:

Nao apenas o cinema nao tem de se meter coma estética, a fisiologia, a lingüística estrutmal, gramática

generativa, psicanálise, masé da compleltidade de seus constiruintes (cinematográficos, sociais, psíqui­cos) e de seus agenciamentos que se pode tirar um modelo infinitamente mais completo para apreender o funcionamento social e o do pensarnento. (Eizyk:man 1976, p. 14)

Somos da mesma opiniao que Claudine Eizykman. Mas, ao contrário das aparen­cías, seu livro refor~. indiretamente, a semiología, no momento de operar a distin~ao entre cinema NRI e cinema N-NRI. Segundo a autora, o cinema NRI se afma muito bem com a semiología, pois tr¡¡.ta-se de um cinema "que secreta a significa~ao". Por outro lado, ela apela para a psicanálise para mostrar que os filmes N-NRI trabalham com a energética psíquica e com os processos primários, ao passo que o cinema NRI trabalha com a energética causal e com os processos secundários.15 Essas deterrnina~oes aplicadas, psicanalíticas e semiológicas criam problemas. Eizykmarl nao nos explica como se pode passar das energías psíquicas as imagens. Veremos mais adiante que se f há energética cinematográfica, ela é antes .cósmica do que psíquica.

Além disso, como Noguez, Eizykman, Lyotard e Fihman sao cúmplices da apología da confusao do som e das imagens. A idéia deles é urna espécie de "se deixar levar"

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pelo principio do prazer" pelo "puro e simples vomito da irnagem e do som"16 para impedir a rnimese e a irnpressao de realidade de se estabelecer. Parece-nos que esse ponto de vista supoe, como contraponto, uma concep~ao "naturalista" da irnagem cinematográfica: se se pede para confundir o visível, para introduzir movirnentos e sons imotivados etc., é porque se acredita que a imagem é irnpressao de realidade e percep~ao natural. Voltaremos a isso.

Primeira tendencia: ucinema-matéria"

O que se chama de cinema experimental reúne várias tendencias diferentes que só puderam ser agrupadas negativamente, quando se !hes opas um aspecto secundário do cinema, a significa~ao lingüística. O cinema experimental é, no mais das vezes, o resultado de u~ falso problema ou de uma comodidade classificatória. Embora nossas análises sejam muito sumárias, acreditamos poder confirmar essa tese mostrando que a distin~ao das prirlcipais tendencias desse cirlema nao passa pela oposi~o narrativo/ nao-narrativo, tal como foi colocada por seus críticos. Além disso, veremos que o experimental é apenas urna maneira de ser do outro cinema.

A primeira tenden0a do cinema experimental reúne o ' "frlme gráfico". de Lye, Breer, Kubelka e outros, o:jurg_~§~l?i~~vo'~ de Markopoulos, Brakhage e outro~, e os fllmes de Snow, Sharits, Gehr, Frampton e Landow, em que a distin~o entre "filme gráfico" e "filme subjetivo" tende a desaparecer. Tal tendencia, que se pode chamar de "acinema" ou éc~~~a-matéria";desenvolve plenamente a concep~o que Vertov havia lan~ado como título de."cine-olho'; e cujo exemplo ele deu com Um homem com urna cámera. 17

O "cine-olho" se define por urna nova concep~ao da montagem que conecta "qualquer ponto do universo a outro, em qualquer ordem temporal" (Vertov 1973, p. 126). O "cine-olho" implica o ultrapassamento do olho humano rumo a um olho nao-humano, que estaría nas coisas. Ao passar da camara a montagem, o "cine-olho" pode superar a irnobilidade relativa do olho e da camara, e !he dat urna determina~ao objetiva. Ele é objetivo no sentido em que introduz a percep~ao nas coisas e na matéria, de maneira que qualquer ponto do espa~o varie ou perceba todos os outros sobre os quais ele age ou que agem sobre ele, sem fronteiras nem distancias. No "cine-olho" as imagens variam urnas em relayao as outras, em todas as suas faces e em todos os seus

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.Pontos. O "cine-olho" é a universal varia~ao, a universal intera~ao: "já é o que Cézanne chamava de mundo anterior ao homem 'aurora de nós mesmos', 'caos irisado', 'virgindade do mundo'".18 Todas as anomalias que Vertov havia inventariado - as paradas, as camaras lentas, as acelera~oes, as fragmen~~oes da irnagem, as S1Jper~

posi~oes, a microfilmagem (Michelson 1973, p . 307) - estao a servi~o da varia~ao universal. "O que Vertov materialista realiza através do cinema- diz Deleuze -'- é o programa materialista do prirneiro capítulo de Matiere et mémoire: 'o em si da imagem"'.19 Se o "cine-olho" é objetivo; nao é porque duplicada o real melhor do que o olho humano. O "cine-olho" nao é a objetiva da cimara. Sua objetividade reside na ~

imanencia da matéria. É preciso distinguir a rnáquina-camara do agenciamento ' maquíníco da montagem na "teoría dos intervalos", de Vertov.

O "cine-olho" implica o ultrapassamento do intervalo de movimento . O intervalo deixa de ser a distancia que separa urna a~ao sofrida (percep~ao) de uma rea~ao (a~ao propriamente dita); ele deixa de ser urna imagem privilegiada em rela~ao a qua! as outras variariam para se tornar uma' imagem nao-específica, que reage ou se agarra a qualquer faceta do universo. O ultrapassamento do intervalo de movimento significa que já riao há, ao menos em direito, a possibilidade de passar de urna irnagem a outra. Nao há mais história, porque já nao podemos passar de uma irnagem a outra: nao há

r ' mais irltervalo de movirnento, nem de a~ao, nem de rea~ao. Isso significa dizer que a rela~ao entre in1agens é incomensurável do ponto de vista da percep~ao humana.

Se, como observaram Michelson e Deleuze, Um bomem com uma cámera representa urna evolu~ao na concep~ao do "cine-olho", é porque vai além da percep~ao humana rumo ao elemento genético de toda percep~ao possível, e porque o movirnento é ultrapassado rumo a seu elemento material energético, o fotograma?0

"Ele nao 'termina' o movimento sem ser também o princípio de sua acelera~ao, de sua redu~o, de sua varia.;ao. Ele é a vibra.;ao, a solicita.;ao elementar que compoe o movimento a cada instante, o 'clinamen' do materialismo epicurista", o elemento material energético? 1 Essa é urna constante de todo o cinema experimental. Trata-se, como diz Deleuze, da constru.;ao de um estado gasoso da percep~ao, definido pelo livre percurso das imagens. Kubelka remonta do movimento e das formas coloridas· a montagem quase monofotogramica (Markopoulos), a "livre navega~ao das superfícies planas" (Noguez 1985, p. 146), como em Malevitch, e a urna sincroniza~ao cósmica, com associa~oes fulgurantes de luzes, cores e sons, de urna extrema mobilidade

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atomizante; Lye e Breer atingem velocidades incríveis, com superfícies loucas de cor, vibra~oes e oscila~oes, gra~as a imagens pintadas ou gravadas a mao, visando fazer "cinema como um ritual moldado de energía" (Sitney 1976, p. 128); Snow faz a camara perder o centro e filma a universal varia~ao de imagens; Belson extrai de formas e movimentos for~s moleculares; Conrad, Sharits fazem a imagem piscar, destacando um hlpermovimento e urna vibra~ao para além do movimento. Gehr, ]acobs e Landow utilizam a refll.magem para produzir a granulac;;ao da matéria; Brakhage "explora um mundo cezanniano de antes dos homens", um mundo "anterior ao come~o, antes de haver palavra".22 Para todos esses cineastas, e para muitos outros, trata-se de atingir a universal variac;;ao de imagens, tao longe quanto se estendem as intera~oes molecu­lares. No início de Metaphors on vision, Brak.hage resume muito bem o espírito do "cine-olho":

Imaginero um olbo que nao seja governado por leis da perspectiva fabricadas pelo boroerñ, um olho que nao se preocupa com a lógica da composi9lio, um olho que nao responde instintivamente a cada nome, mas que deve reconhecer cada objeto na vida ou através de urna aventura de percep9ao. Quantas cores há num grarnado para o bebe que engatinha, ainda nao-consciente do verde? Quantos arcos-frisa luz pode criar para um olho desprovido de tutela? A que ponto esse olho pode tomar consciencia das varia9oes de ondas de calor? Imaginero um mundo vivo povoado de objetos incompreensíveis, e cintilando ao Jongo de uma gama infinita de movimentos e de inúmeras gradayaes de cor. Imaginero um mundo "anterior ao conhecimento, antes de a palavra ser". (Apud Sitney 1976, p. 21)

Brakhage é talvez o cineasta que se aproxima mais, com Kubelka e Snow, do "cine-olho" de Vertov, com sua "montagem fluida" (cf. Noguez 1985, p. 128). Em seu último fUme Whiteye, o tema é menos o percebido do que aquilo que se passa entre o que é percebido e aquele que percebe. O título do filme evoca a fusao do olhado (white) e daquele que olha (eye) . Trata-se menos de por em cena objetos ou seres vivos do que ~e tirar deles um conjunto de movimentos e de clarees, que teriam por efeito urna liquidez luminosa (wbiteye).

O cinema experimental americano consiste, no rastro do "cine-olho" de Vertov, numa tentativa de atingir o plano luminoso de imanen da até obter a ondula~ao cósmica das imagens-movimento. Trata-se de produzir urna matéria imagética energética, na qual as moléculas tem livre percurso. Tal regime energético nao é psíquico, como pretendem C. Eizykman e J.F. Lyotard, pois ele se cría lá onde ainda nao há nem

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cérebro nem olho humano._ Tampouco se pode falar de pulsao e de proc~sso primário nesse estado gasoso. Dever-se-ia falar, antes, de<fji.I!soes livres, cósmica~e nao de pulsoes psíquicas freudianas. Por um lado, as pulsOes freudianas nao explicam todas as pulsoes psíquicas. As pulsoes psíquicas freudianas sao um caso particuiar, quando o sistema da representa~ao se apodera das pulsoes. Por outro, parece-nos que a psicanálise nao pode nos ajudar na determina~ao dos conceitos suscitados pelo cinema, qualquer que seja ele. Ao con trário do que pensam Eizylanan, Fihman, Lyotard e Noguez, o fato de o "cinema-matéria" te r necessidade de um exGesso de movimento nao deve, parece-nos, ser interpretado como um ato de perversao (confusao), e sim como urna vontade propriamente artística. A tese preconizada por esses críticos só pode ser válida se se concebe o cinema nao-experimental como mimese e impressao de realidade (semiología). Ora, como vimos, a im¡)ressao de realidade nao dá canta do cinema, qualquer que seja ele.

Antes de passar para a segunda tendencia do cinema dito experimental, queremos acrescentar o seguinte: o "cinema-matéria" é o único cinema que merece ser qualliicado

< de nao-narrativo. A razao disso é evidente: no "cinema-matéria", o olho nao é distinto das coisas e o mundo é urna matéria quente anterior aos homens. Para que haja histófi:a e narra~ao, é preciso que haja imagens privilegiadas, ou seja, centros sensório-motores (intervalo de movimento, centro de indetermina\=ao, cérebro, organismo vivo, homem). Se nao há intervalo de movimento, nao se pode passar de u rna imagem a outra, seja para diferenciá-las ou integrá-las. Quanto as outras tendencias do cinema experimental, elas só se distinguem dos outros cinemas em relacao a distingos exteriores aos processos filmicos.

Segunda tendencia: IJ Cinema-subjetivo 11

A segup.da tendencia do cinema experimental reúne o que os críticos - P. Tyler, P.A. Sitney, M. Legrice, D. Noguez e outros- chamaram de "filme subjetivo", "filme de transe", "filme onírico" ou "fantasmático" etc.23 Trata-se desse cinema coro tend~ncia fu turista, expressionista, impressionista, surrealista etc., que surgiu com os futuristas, os expressiohistas e a vanguarda francesa dos .anos 20 e que continuou até a vanguarda americana dos anos 40 (á segunda vanguarda) e o ttnderground, ande encontramos os ftlmes de Deren, Petterson, Broughton, Harrington, Markopoulos, Linder e muitos

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outros. Estimamos que o que caracteriza o cinema ·dos "ismos" serve também para caracterizar essa segunda tendencia: O cinema subjetivo experimental inova muito pouco em rela~o a todo esse cinema que privilegia o eixo da expressividade e a "imagem-sonho". Nao compreendemos por que, se filmes como 1bé last moment (1927), de Paul Fejos, 1be lije and death oj9413 (1927), johann the co.ffin maker(1927), de Robert Florey, 1be jall oj the house ofUsher (1928), de Webber e Watson- que sao todos filmes expressionistas feítos nos Estados Unidos - sao ·considerados por Noguez e por outtos como flimes experimentais, por que, nesse cas·o, os filmes expressionistas, impressionistas, ou outros,24 que foram feítos antes, na Europa, e que sao indiscutivel­mente mais interessantes, nao sao também considerados como tais? Por que os filmes de Petterson, Broughton, Harrington e muitos outros, que reproduzem, 30 anos mais tarde, os temas e os efeitos expressionistas e surrealistas sao filmes experimentais? Por que, fmalmente, falar do cinema experimental para todos os fUmes dessa segunda tendencia, se eles estao mais próximos do cinema narrativo expressio~sta do que do cinema nao-narrativo da primeira tendencia? Para Noguez, o que liga todos os ftlmes "underground"- "dos prirneiros flimes de Deren, Anger ou Markopoulos e os filmes abstratos de Belson ou dos Whitney, a Brakhage e aos ftlmes contemplativos de Warhol

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e Snow" - é que "se trata sempre, em última instancia, de um ~in~ma da iñ:Í:eri¿;id~d;l É só que as media~oes narrativas ou míticas se atenuam e chega-se, de .certa maneira, aos dados imediatos da consciencia fílmicos. A explora~o é feíta sem truque, no pr:óprio filme. Como se o flime tivesse se tornado a~etáf~i-á·da_con~ci~nCla~ (Noguez 1985, pp. 378-379). Em primeiro lugar, quando Bergson fala de dados imediatos da consciencia, isso nao quer dizer que eles o s~jam. Ero segundo lugar,. o cinema .da primeira tendencia é um <;;ffiema ail.terior a cons~iencia,_,que nao tem nada a ver com o de Markopoulos, Anger e beren, que _remete, antes,. aos processos ou mecanismos inconscientes. Em terceiro lugar, ilenhurila dessas tendencias explica os filmes ''de Warhol. Em suma/ ; · ·underground americano nao tero unidade no que se refere aos processos fifuucos ... o ·cinema da interiorídade só pode se' aphcar aos ftlmes dessa segunda tendencia.

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Sobre isso, podemos recorrer a Bergson, mas por outras razoes. Dissei:nos anteriormente que o "cinema-matéria" consistía em urna tentativa de u ltrapassame:nto da percep~ao (semprf:! subjetiva), remontando o caminho rumo a seu' elemento J senéti~o, rumo a urna perceptiao pura que estaría nas éoisas. É, em nossa Ópiniio, o '

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uruco cinema que merece o nome de cinema puro , nao-narrativo. Os cineastas da segunda tendencia efetuam o caminho inverso: trata-se de ir do plano de imanencia,

l\ acentrado a um plano de especifica~ao de imagens, onde estas vafiam em rela~ao aos centros de indetennina~ao (intervalo de .movimento, organismo, cérebro etc.). A história é a varia~o das imagens em r~la~o as imagens especiais. Nessa ·varia~a.-;: passa~se sempre d o homem (imagem especial) a situa~o e vice-versa. As imagens­movimento se especU'i~am e!Jl imagens-percep~ao, · afec~ao e a~ao, quando sao reportadas ao esquema sensório-mot0r. Os la~os entre o homem. e o mundo, o que ele ve, experimenta, sente, fa~, podel)l se expriniir pelo encadeamento de image~s atuais .. Mas é possível que o homem se ache confrontado a urna situa~ao ou a sensa~oes visuais e sonoras - ou mesmo tácteis, cutáneas, cinestésicas - que perderam seu prolongamento motor. O la~o sensório-motor fica suspenso ou é retardado se a personagem se defronta com urna situa~ao-limite (patología psíquica, iminencia ou conseqüencia de um acidente, proximidade da morte), ou se ela se encontJ;a em um estado psicológico anormal (hipnose, amnésia, alucj.na~o, confl.itos inconscientes, efeito de drogas etc.) ou até mesmo normal (sono, sonho, perturba~ao da aten~ao etc.). É possível ainda que a personagem se defronte com situa~éies que exprimam urna visao de um mundo fantástico ou surrealista expressionista - que preconize a anima~ao do inorganico ou a vida nao-organica das cqisas - ou até mesmo psicodélico. "O cinema europeu defrontou-se muito cedo .com um conjunto de fenómenos: amnésia, hipnose alucina~o, delirio visoes de moribundos e, sobretudo, pesadelo e sonho. Esse foi um aspecto importante do cinema soviético e de suas alian~as variáveis com o futurismo, o construtivismo, o formalismo¡ do expressionismo alem ao e de suas alian~as

variáveis com a psiquiatría, com a psicanálise¡ ou da escola francesa e de suas alian~as variáveis com o surrealismo"25

- podemos acrescentar que se trata aí de um aspecto muito importante do cinema experimental e de suas alian~as variáveis com o expressionismo, o surrealismo, o formalismo, o fantástico e, também, o abstracionismo. P.A. Sitney o pressentira intitulando u m dos capítulos de VtSionary film "Do t,ranse ao mito", para caracterizar a corrente "subjetiva", "simbólica", "fantas~tica" etc., que iría de O gabinete do Dr. Calligari aos filmes de Deren, Menken, Anger, Markopoulos e outros, p~ssando por Le sang d'un poete, La coquille et le c!ergyman, Un chien andalou, L'age d'or etc. e todo:;; esses filmes experimentais expressionistas realizados em Hollywood por P. Fejos, R. Florey, M. Webber ~ J.S. Watson, H.G. Weinberger e outros.

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Também M. Le Grice obseiVa que, no essendal, o cinema underground é "tomado em urna tradi~o romantica, simbolista, expressionista" e que "as raízes de sua forma cinematográfica" devem ser procuradas "no cinema surrealista" (1977, p. 87). Poderíamos citar também o capítulo "Surrealismo USA", consagrado por Mitry (1974, pp. 221-232) a essa corrente do experimental e que confirma essa idéia.

O que há de comum em toda essa corrente que liga o experimental a todos os "ismos" é que as ~agens perderam seu prolongaril.ento motor imediat~. Tratava-se, para o cinema europeu, e mais tarde para o cinema americano, de romper com os limites do realismo americano da irnagem-a¡;:ao, mas também de levar a consciencia mecanismos inconscientes do ¡:iensamento. Como Deleuze obseiVa, trata-se de atiñgir um rnistério do tempo,26 de unir as imagens ébrias, o monólogo ébrio- a rnassa plástica encarregada de todas as espécies de tra~os de expressao - ao pensamento pri..mitivo e inconsciente do autómata espiritual. Se, ao contrário, a irnagem-a¡;:ao, o prolongamento sensório-motor fica suspenso ou é retardado pelas perturba~oes psicomotoras -perturba~oes da memória, fracasso do reconhecimento esperado ou outro -, a imagem atual de quem dorme, do sonambulo, do drogado, do doente etc. nao se encadeia nem com a imagem-motora (a~ao, afeq:ao e percep~o) nem com a imagem-lembran~. que remete a um presente antigo, e que restabeleceria o contato com a imagem atual, mas entra em rela~ao com um conjunto de imagens virtuais instáveis, flutuantes e desen­cadeadas: lembran~as flutuantes e vertiginosas, paroxismo visual, fus5es, super­posi~oes e anamorfoses loucas, estado poeirento e difuso da consciencia, imagens inconscientes, fantasías, alucina¡;:oes etc. Em Tbe last móment (1927), de Paul Fejos, a história de um homem for~ado ao suicídio é quebrada pelo efeito de anamorfose psíquica. O filme se a presenta como um caso de "visao panorfunica dos moribundos" .27

Nos filmes oníricos e fantasiosos de Robert Florey, o desencadeamento das irnagens atesta o desespero que toma conta de suas personagens: um pobre músico que nao acha amor em parte alguma (Tbe /ove of zero), um pobre figurante, que recebeu o na 9413, nunca encontra trabalho (Lije and deatb oj9413J. Este último filme, urna espécie de pantomima burlesca e satírica sobre as dificuldades dos candidatos ao vedetismo hollywoodiano, faz-nos pensar em Keaton e até mesmo em Chaplin. Florey realiza também um "pastiche expressionista", Tbe co.ffin maker (1928), em q ue os entrecho­ques de imagens flutuantes, a montagem rápida e o estilo dos cenários e.da ilumina~ao remetem aos expressionistas. O fi~e é a história de um velho vigía que sonha e recebe

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a visita dos mortos e da própria morte (mulher morena vestida de negro). No fim, os visitantes noturnos desaparecem e o velho vigia parece dormir realmente, enquanto a morte lhe sorri. Muitos filmes do "cinema subjetivo", seja ele experimental. ou ·nao, terminam por um vacilo sutil entre "sonho" e "realidade". É o caso de Mesbes oj the afternoon (1943), de Maya Deren, e de Fireworks (1947), de Kenneth Anger. Segundo Mltry, o essencial dessa corrente do experimental, que mistura onirismo, simbolismo, surrealismo etc., é a oposi~ao, a justaposi~ao e a confusao incessante entre o pas.sado e o presente, o real e o imaginário, a fic~ao e a realidade, a realidade mental e ·a realidade sensível, tais como aparecem a consciencia (Mitry 1974, p. 229). Noguez observa:

A imagem eponima de toda essa veía do cinema experimental é a famosa travessia do espélho de Le san8

d'un poete ( ... ), pois essa imagem do eu perseguida pela camara para-além de seu reflexo é, no mais das

vezes, opaca, envolta pela ooite ou tomada na placenta do sonho. ( ... ) De onde vem, como Jamentava

Melcas, que as "personageos" - seria preciso dizer os duplos - que obcecam, como em estado de

sonambulismo, tantos desses filmes, sao "zumbis": o espectador pode se empenhar em !bes dar vida, ele

se acha com freqüeocia com "cadáveres nos bra9os" ?8

De fato, muitos sao os filmes em que a presen~a do sonho é indicada: o sonho do padre em La coquilleet leclergyman(1927), de G. Dulac; o sonho do vigía de cemitério, em 1be coffi.n maker (1927), de R. Florey; os seis sonhos tocados pela caixa de música, em Dreams that money can buy (1946), realizado por H. Richter coma colabora~o de F. Léger, M. Ernst, M. Duchamp, M. Raye Calder; o sonho da heroína de Meshes ofthe afternoon; o sonho sadomasoquista do adolescente de Firewórks; o sonho do jovem que dorme nos bra~os de urna estátua maternal em Motber's day (1948), de ]. Broughton e tc. Mas há o caso dos outros filmes nos quais há sonhos acordados ou implicados;29 ou seja, filmes construídos na forma do sonho, dos estados de devaneio, do fantástico, da estranheza, do feérico etc., sem que a forma do fllme seja atribuída a urna personagem qualquer.

Segundo Richter, pelo fato de o surrealismo "deixar o sonho penetrar no reino da arte e em seu programa", ele aceitava "de bom grado, a etiqueta de surrealismo" (apud Mitry 1974, p. 143). Foi, com efeito, um sonho que primitivamente inspirou seu curta-metragem Filmstudies. O resultado obtid<;>, em ritmo lento, é um cortejo de

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anamorfoses: cabe~s suspensas . que se metamorfoseiam em olhos, olhos que se transforma.m em luas, as luas em urna espécie de bolinhas, as bolinhas em chuva qu~ faz a superfície da água ondular até formar ondas, que, fmalmente, arrastam as cabe(:as etc. É sabido que todo o surrealismo recorría ao sonho, ·mesmo Artaud, que dizia .que "se o cinema nao é feíto para traduzir os sonhos ou tuda o que na vida desperta se aparenta ao campo dos sonhos, entao, o cinema nao existe". Le retour a la raison (1923), Emak Bakia (1927), Etoile de mer (1928), de Man Ray, La souriante Madame Beudet (1923), La coquille et le clergyman (1927), de G. Dulac, Entr'acte (1924); de René Clair, Filmstudies e Revesa vendre (1944-47), de Hans Richter, Un cbien andalou (1928) e L 'age d'or (1930), de Luis Bu ñu el e Le sang d'un poete (1930), de Jean Cocteau, sao todos autenticas visees de sonho, com tuda o que isso implica: série de anamor­foses que procedem por todas as espécies de efeitos visuais - fusao, ,superposi(:oes, movimentos de dimara, efe~tos especiais de cenário e de laqc:;>ratório etc. -, chegando até a abstra(:ao.

Os cineastas do underground subjetivo recorriam, também eles, a imagetn-sonho, quer se trate de sonhos indicados ou explícitos, acordados ou implicados: o estado de sonambulismo (sao os heróis sonfunbulos; de Deren, Anger e Markopoulos), a atmosfera fantasiosa, o onirismo etc. Eles retomam por sua canta os temas oníricos, de pesadelo e surrealistas clássicos: as perseguic;oes - Mesbes of tbe ajternoon e Ritual in transfigured time, de Deren, Fragment of seeking, de Harrington, Swain, de Markopou­los etc.; os fantasmas de Potted psalm e de muitos <?Utros filmes de Petterson e de Broughton; mas também de Harrington; as estátuas que as vezes ganham vida -Mótber's day e Tbe pleasure garden, de Broughton, Mesbes of tbe afternoon, de Deren, Fragment of seeking, de Harrington, Narcisse, de Markopoulos, Gondola rye, de Hugo etc.; a noite e a angústia na maioria dos filmes desses autores, que quase sempre terminam com um choque afetivo ou com a morte. Ademais, a maioria desses fll.mes utiliza vários procedimentos fílmicos que foram empregados nos cinemas dos "ismos": fusao, superposi(:ao, anamorfoses, movimentos aberrantes da dimara, encadeamento frouxo, paroxismo visual, cascatas de imagens, efeitos de cenário e de laboratório etc.30

Segundo Deren, seus filmes sao intervenc;oes da imaginac;ao na forma do sonho. Para ~ger, "os de~ejos infl~mados que o d ia apaga com a água fria da consciencia sao reacesos a noite por fósforos libertários do sano e se abrasam em chuvas incandescen­tés furta-cor" .31 O que é a imagem-sonho? A "imagem-sonho"32 é urna . imagem

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particular entre outras, que . escapa a consciencia do homem e que remete ao p~nsamento primitivo e aos mecanismos inconscientes do pensamento. No sonho, como. na alucina~o, no delirio, na hipnose e em muitas outras perturba~oes da consciencia, o homem - o sonhador, o alucinado, o .hipnotizado, o drogado etc. - se defronta com imagens que perderam, de imediato, seu~ encadeamentos sensório­motores. A série de imagens-sonho, que representa um circuito aparente muito vasto, "o invólucro extremo de todos os circuitos", é urna série de imagens flutuan tes, sendo que cada urna pode ser virtual em rela~ao a outra, que a atualiza. No sonho, como em muitas outras distor~oes da consciencia, as imagens remetem a sensa<;ao e ao pensamento primitivo, oculto, mas atual no inconsciente do herói. A imagem-sonho nao é urna metáfora no sentido lingüístico do termo nem urna "metáfora e~trutural" :­como quer acreditar D. Noguez, segundo J. Ricardou -, definida em termos de discurso signilü;:ante ou símbolo. Nao se trata de deixar flutuar os significados e de dar livre curso aos significantes.

As imagens-sonho inscrevem-se ainda, como as imagens-lembran<;a, na situa~ao sensório-motora, que projetam ao infinito, substituindo a a~ao das personagens por movimentos do mundo, e assegurando a metamorfose ou a anamorfose da situa~o. Quando os movimentos de mundo e as metamorfoses que afetam a situa<;ao se liberam da personagem, quando as irnagens flutuantes nao se encadeiam mais na cabe~ do

/ sonhador, do sonambulo, do alucinado, do drogado etc., dir-se-ia que exprimem a \ ' alnla do mundq,..JÉ o caso das sinfonías das cidades - Manhattan (1921), de P. Stn¡nd

e C. Shee\er, Rien que les beures (1926), de Cavalcanti, Berlín, die sinfonie einer Grosstadt (1927), de Ruttmann, Skyscraper symphonie (1928), de Florey, Skyscraper (1929), de Murphy, City symphonie (1929), de Weinberg, Bronx morning (1931), de Leyda, Ciry of contrast (1931), de Browning, Autumn fire (1930-31), de Weinberg etc. -, dos balés mecanicos dos c01pos - Ballet mécanique (1924), de Léger, Photogénies 0924), de Epstein, Photogénies mécaniques (1924), de Grémillo n, Entr'acte (1924), de Clair, Emak Bakia (1926), de Man Ray, Ballets of bands (1928), de Simon, Mecbanical principies (1930) e Hands (1942), de Steiner, Tbe long bodies (1946-49), de Crockwel, Object lesson (1941), de Young e tc. - e toda espécie de b¡llés e músicas para os olhos, do cinema abstrato que vai de Ruttman, Eggeling, Richter e Fishinger, na Europa, até Smith, Cornell, os irmaos Whitney, Belson e Hirsch, nos Estados Unidos, passando por Len Lye, Lewis Jacob, Schillinger, Ellen Bute e Crockwell.

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Em nossa opiniao, todo o cinema experimental da segunda tendencia oscila entre um n'.io~ólogo interior que opera por figuras ébrias e imagens flutuantes - cujo tip~ mais importante é a "imagem-sonho" - e o cinema abstrato que poe em evidencia o jogo e o movimento dos corpos, formas, cores etc. Esse é um aspecto importante do cinema experin1ental e de suas alian~as variáveís com o cinema dos "ísmos". As

díferen~as entre o experimental e o outro cinema, o cinema dos "ismos", só podem ser estabelecidas com base nos processos nao-fílmicos. Retomemos a questao colocada: por que os "filmes expressíonistas" americanos (de P. Fejos, R. Florey, S.S. Watson e outros) sao experimentaís e nao os fJlmes expressíonistas, in1pressíonistas e surrealistas dos maiores cineastas europeus? Por que o dadaísmo, o surrealismo e o expressionismo colegial de Deren, Petterson, Harrington, Broughton e Markopoulos sao experimentais e nao os filmes dos maiores realizadores como Murnau, Dreyer, Gance Stroheím, Keaton, os quais contribuíram para algo novo no que concerne aos processos fílmicos?

Terceira tendencia: ~~Cinema do corpo"

Para temúnar este capítulo, fazemos questao de indicar também urna terceira tendencia do cinema experimental, que reúne cineastas tao diferentes como Andy Warhol, Paul Morríssey, Agnes Yarda, Chantal Ackerman, Marguerite Duras, Philippe Garrel e outros. Essa terceira tendencia do experimental resulta de urna muta~ao que afetou todo o cinema do pós-guerra: o cinema direto, de Jean Rouch, Shirley Clarke, John Cassavetes entre outros, o cinema dísnarrativo, de Bresson, Resnais, Godard, Straub etc. Podemos chamá-la, com Deleuze, de "cinema do corpo".33

O cinema experimental da primeira tendencia, o "cinema-matéria", é urn cinema anterior aos corpos, obstáculos ou rea~oes. Qualquer corpo pode se ligar a qualquer outro, sem limite espa~o-temporal. No cinema-matéria, o corpo está liberado da percep~ao humana e das rela~oes sensórío-motoras que ela implica. Por outro lado, a própria percep\=ao está liberada do corpo. Trata-se de urna irnagem e de urna percep~ao moleculares anteriores aos corpos e seus limites. A regiao central, de Snow, fornece um bom exemplo, pois, como todo o acinema, ele se constituí pelo ultrapas­sagem das coordenadas humanas e pela eleva~ao da percep~ao e do carpo a urna universal varia\=ao, em que todas as in1agens, carpos e eixos se pern1Utam. A camera, fixada por Pierre Abeloos sobre um dispositivo complexo de bra~o móvel, pode fazer

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todo tipo de movimento, círculos, espirais e outros, com velocidades variadas. Essa camera, dei.xada sozinha em urna regili.o "desértica" (o que define o deserto é que, em qualquer lugar qLle a pessoa se encontre, ela está sempre no centro) do Quebec, toma-se, como diz Snow, "urna espécie de olho sem corpo, flutuando no espa\=o".34

O cinema experimental da segunda tendencia imp6e aos corpos u m balé mecanico (as músicas visuais dos corpos, formas e cores e as sinfonías dos corpos e das cidádes), e séries de anamorfoses. Em todos os casos, o corpo está ainda submetido a um espa~o hodológico vivido, mesmo que tal espa~o seja mais frouxo e flutuante do que no cinema de a~o. Vim~s que, se o espa~o hodológico é, em certos momentos, perturbado, isso se deve as perturba~6es psíquicas, metafísicas, fantásticas ou outras que afetam o sonhador, o drogado, o sonfunbulo, o doente mental ou o próprio mundo.

No experimental de Warhol, Morrissey, Yarda, Duras, Akerrnan, entre outros, os carpos nao se encadeiam mais conforme a situa~ao sensório-motora, tampouco conforme suas propriedades abstratas, geométricas ou sensitivas. Nao se trata de mostrar as rea~6es dos corpos uns sobre os outros, de !hes impor um balé ou concerto visual e sonoro, ou mesmo de reabilitar o corpo e a sexualidade, fazendo do corpo o objeto de urna reconquista global ou seletiva: seios (CosrrzicRay rfll, 2,3, de Conner), nádegas (Cosmic Ray n!J. 3, de Conner, Taylor Mead's ass, de Warhol, rfl4, de Yoko Ono), penis (Puses, de Schneemann, Cosmic Ray rfl 3, Relativity, d'Emsh Willer), vagina (Kodak ghost poems, de N oren etc.).

Essa muta~;ao, pela qua! o corpo dei.xa de ser um objeto naturalizado, nao surgiu com o experimental. Ela está presente em todo o cinema do pós-guerra, tanto em Bresson ou Rouch quanto em Antonioni, Fellini e Pasolini, Rivene, Godard e Rocha, Cassavetes e Clarke, entre outros. Em todo o cinema, o corpo perde sua naturalidade de corpo visto e faz ver o que nao se dei.xa mostrar. O que o "cinema do corpo" produz, diz Deleuze, "é a genese de um 'corpo desconhecido' que ternos atrás da cabe~a, como o impensado do pensamento, nascimento do visível, que se furta a vista".35 A esse respeito, Deleuze analisa vários autores modernos - Antonioni, Bene, Warhol, Cas­savetes, Rivene, Godard, Garel, Akerman, Yarda, Eustache, Doillon e outros -, para mostrar que o cinema do corpo p6e o tempo no corpo.

No "cinema do carpo'', os corpos sao afetados pelo tempo, pela dura~ao (presente vivo) de tal maneira que exprimem urna pluralidade das maneiras de ser no presente.

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Nao é tanto que os corpos ajam mais. Mas suas ao;:oes - a balada, a conversa, a d.an<;a, a espera, o voyeurismo etc. - nao sao mais determinadas em rela<;ao ao espa<;o hodológico, vivido, homogeneo e causal. Os corpos tornam-se imagens óticas e sonoras puras indeterminadas ou, entao, um jogo de máscaras. O "cinema do. corpo" introduz a durao;:ao nos corpos, 36 fa zendo-os sair do presente linear composto de urna sucessao de instantes presentes. Deleuze observa que, para obter tal resultado, ora o filme monta a dimara sobre o corpo cotidiano - sao os célebres ensaios de Warhol, seis horas e meia sobre o homem que come um cogumelo (Sleep e :Eat); ora o fúme monta urna cerirnónia qualquer - seja iniciática, litúrgica, estereotipada, paródica, violenta etc. -, ou se prepara para urna ce¡;imónia que consiste em esperar: "tal como a ionga preparas;ao do ca~al em Mecbanics of /ove, de Maas e Moore",37 ou a do prostituto, em Flesh (Warhol e Morrissey) etc. O cinema do corpo se deu os meios de urna cotidianidade que nao pára de transcorrer nos preparativos de unia cerirnónia (cerirnónia paródica, em Carmelo Bene, cerimónia litúrgica, em Philippe Garrel etc.) ou de urna lenta teatraliza<;ao cotidiana do corpo (estiliza<;ao hierática ou burlesca· em Chantal Akerman, teatralizao;:ao espetáculo em Cassavetes etc.). Por outro lado, as atitudes e posturas do corpo (a demonstra<;ao das posturas categoriais da iinagem ein Godard, as atitudes e posturas da ferninilidade em Yarda etc.) estao sempre passando pela teatralizao;:ao cotidiana do corpo, com suas esperas, seus cansa<;os e relaxamentos. Os cineastas do cinema direto (J. Rouch, S. Clarke, J. Cassavetes, J. Rozier e outros) levaram bem longe as atitudes e posturas do corpo. Comolli (1968) observava que ftS personagens de Cassavetes "se constituem gesto por gesto e palavra por palavra, a medida que o filme avan<;a, fabricam-se a si mesmas, a filmagem agindo sobre ejas como um revelador, cada progresso do fll.me lhes yerrnite um novo desenvolvirnento de seu comportamento, sua duras;ao própria coincidindo exatamente com a do filme". Ora, em nossa opiniao, esse é um aspecto de todo o cinema moderno, da nouvelle vague ao underground americano. Todo o cinema moderno, <;fe Rouch a Godard, de Antonioni e Fellini a. Carmelo Bene, de Marguerite Duras e Agnes Yarda etc., faz das personagens do ftlme - sejam elas personagens reais, ficticias ou formais (os sons, cores, atos de fala etc.) - atitudes do carpo que estao sempre passando por um espetáculo, urna teatraliza<;ao ou urna cerirnónia. Cada autor tem sua própria con­cepo;:ao das atitudes e posturas dos corpos, de sua genese, de seus encadeamentos formais etc. Nao vemos por que dizer que Warhol, Akerman, Duras e Garrel seriam

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cineastas experimentais e iiao Morrissey,38 Cassavetes, Rouch, Godard, Yarda, Eus­tache, Straub, entre outros). Em todo caso, parece-nos que Warhof e Garrel estao mais próximos ?e Rouch e Godard do que dos cineastas da primeira tendenc;:ia do experimental. Por outra parte, parece-nos que o "cinema-sonho" e o "cinema do corpo" sao tendencias gerais do cinema que nao forarn inventadas pelo cinema experimental.

Por um lado, se se leva em conta processos fílmicos na<;>-narrativos, poder-se-ia dizer que 6 cinema experimental s~ reduz unicam~nte a0 "cinema-matéria". Por outro, se se leva em canta a inova~ao dos processos fílmicos, poder-se-ia, entao, dizer que o cinema. experimen~ é o cinema em que a vontade artística' está no comando. Nesse sentido, é experimental o cinema dos verdadeiros criadores, quaisquer que sejarn eles.

N~tas

1. Veremos que os criticas do experimental foram vítimas de um pensamento abstrato e dualista análogo ao da semiologia. Com efeito, para eles, a imagem do cinema experimental s6 pode se distinguir daquela do outro cinema. "mimética demais", por seu formalismo abstrato.

2. M. Kirby e D. Noguez tentaram mostrar que o manifesto futurista da, "cineínatografia futurista"- publicado em 1916 e assinado por Marinetti, B. Corra, E. Settimelli, A. Ginna, G. Baila e R. Chiti- foi um documento que, ao contrário do que pensam Sadoul e Mitry, prefigura as van guardas interruicionais. M. Kirb 1971; D. Noguez, ''Du fui;Urisme a l'wulergrowul", em Cinéma: Théorie,/ectures, 2•ed., 1978.

3. Lumiere e Melies parecem ser os dois heróis favoritos para muitos críticos e cineastas experimentais. Cf. K. Anger "Magic lantern cycle" (apud Sitney 1974, p. 123); D. Noguez 1985, p. 292.

4. Op. cit., p. 43. "Eu gostaria simplesmente de observar os efeitos dessa seletividade inevitável do olhar teórico e me perguntar se, em wn caso preciso, ela nao corre o risco de questionar a própria idéia de wn corpu.s único( ... ); em suma. se nao corre o risco de questionar a própria idéia de que bá 'wn' cinema."

5 . "Mesmo as falhas de alguns cineastas (experimentais) sao ma.is interessantes do que os sucessos de muitos diretores de Hollywood ou da rwuvelle vague de hoje" (Melcas 1972, p. 69). Parece-nos que, com exceyao dos trabaihos de Annette Miche1son, esse é um pensamento corren te em numerosos críticos do cinema experimental (D. Noguez, C. Eizykman, G. Fihrnan, P.A. Sitney).

6. Para Melcas, Privare property (1960), de Leslie Stevens, e Savage eye (1959), de S. Meyers, B. Maddow e J. Striclc, podem ter sido rodados com baixq o~amento, resta-lhes ¡¡. inexplicável tara de terem sido rodados na Califórnia, perlo demais de Hollywood! ·

7. Para os críticos do experimental, nao há diferen~a entre o neo-realismo, a nouvel/e vagué, o cinema direto, o cinema novo, o disnarrativo, entre outros, e Hollywcxid. Diz Noguez (1985, p. 44): ''Mais ou menos rapidamente, .a maioria dos diretores da 'Escala de Nova York' acabará encontrando o caminho de Hollywood ou de seus feudos. Assim Cassavetes, Bogdanovich, Strick. Para eles, a aventura do cinema 'independente' só terá sido o

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rneio de realizar um primeiro longa-metragem e de passar na prava aos olhos dos futuros produtores hollywoodi­anos ( ... )". Com efeito, para esses criticas, o cinema se divide ern dais campos: de urn lado, bá o cinema experimental, de outro, o cinema "hollywoodiano".

8. Cf. por exemplo a filmografia apresentada em Une hisroire du cinéma, 1976, pp. 67-103. Em 1978, fundarnos urna "cooperativa dos realizadores cinematográficos au!Onomos" (Corcina) no Río de Janeiro, que reunía uns 30 jovens cineastas e técnicos. De 1978 a 1982, produzirnos e realizarnos uns 60 filmes - principalmente curtas­metragens (de todos os estilos) - com or~entos de cinco a sete mil dólares.

9. O "udigrudi" brasileiro pretendia fazer um cinema bem livre, paleolítico e atonal. O udigrudi fez urna crítica acerba e paródica das estéticas dominantes. Os principais cineastas do udigrudi sao: Rogério Sganzerla (O bandido da luz vennelha, 1968, A mulher de todos, 1969, Betty Bomba, a exibicionista, 1970, Sem essa ar(J}ÚIIl, 1970, Nemtudo é verdade, 1986); Júlio Bressane (Cara a cara, 1967, Matou ajamflia efoi ao cinenra, 1969, O anjo nasceu, 1969, F(J}m1ia do barulho, 1970, Bariío Olavo, o horrlvel, 1970, Cuidado nradame, 1970, O reí do baralho, 1973, O monstro caralba, 1975, Agonia, 1977-78); Luiz Rosernberg Filbo (Jardim de espumas, 1971, lmagens do silencio, 1973, Assuntina das Américas, 1975, Cronicas de w11 industrial, 1976); Neville d' Almeida, André Luiz Oliveira, Joao Batista de Andrade, Ozualdo Candeias, Sérgio Bemardes, Artbur Ornar e outros.

1 O. Em cornpensas:ao, parece-nos que o cinema experimental foi muitas vezes ligado a criayao de um genero corn objetivos de distribuiyao. Assirn como se pode ir ver um filme por causa de seu tema, de seus atores, scus autores, sua nacionalidade, seu ors;amento, seu sucesso etc., do mesmo modo, pode-se ir ver urn filme porque ele foi considerado experimental. -

11 . Diz P. Adarns Sitney (1976, p. 9): "Se devernos levar a sério a recusa da rum¡¡yao linear que constituí o tras:o quase essencial do cinema independente, como iremos proceder para dar canta de mais de 50 anos de sucesso nesse contexto?" Ver também C. Eizykman, "Que sans discours aparaissent les films", em Cinéma: 71réories, lectures, 2~ed. , 1978, p. 159: "( ... ) Há filmes cuja leiturajá nlio é a que secreta a sigoificas:ao."

12. Essa é urna idéia que foi difundida por Noguez, Eizykrnan, Filunan, Lyotard e outros.

13. Nesse sentido, compartilbarnos as teses de Mitry, para quern - se o surrealismo é esse cinema que enriquece a realidade com seu conteúdo latente- o verdadeiro surrealismo de cinema slio as comédias de Keaton, Sennett e Langdon, e até mesmo de Chaplin. Cf. Le cbziuUL experimentaL Histoire et perspectives, 1974, p. 152.

14. Deleuze 1985, p. 78 (trad. bras., p. 74).

15. Op. cit. , pp. 9-23. Cf. Lyotard 1978 (21 ed.), pp. 357-369.

16. Em um comentário sobre a montagem "irracional" em Godard, Pascal Bonitzer (1976, p. 70) diz o seguinte: "Nós nos situarlamos se esse desecadeamento nao-narrativo da dupla banda fílmica respondesse a um 'se deixar levar' pelo princípio do prazer, genero undergrowrd, aopuro e simples vomito da irnagem e do som que encanta o senbor Lyotard, porque nao se pode mais fruir da mi mese."

17. Sobre esse ponto, reportar-se a Michelson "L'hornme a la caméra. De la magie a l'epistémologie", em Cinémr1-· Théories, lectures, za eci, 1978, pp. 295-310. Em nossa opinilio, Annette Micbelson é um dos raros críticos do cinema experimental que nao se dcixa levar por falsas oposi¡:6es NIN-N.

18. Deleuze 1983, p. 117 (trad. bras., p.l07).

19. lbidem.

20. Kubelka gasta va de dizer que "o cinema nao é movimento". É verdade que o "cinema-matéria" é u m cinema que tenta ir além do movimento para uro movimento puro.

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21. Deleuze 1983, p. 120 (trad. bras., p. 109).

22. Op.cit.,p.l22(trad.bras.,p.111).

23. Cf. Tyler 1969; Sitney 1974; Le Grice 1977; Noguez 1985, pp. 311 e 377-378. Para Le Grice, o rmdergrowui é tomado em urna tradi~o romantica, simbolista, expressiooista, e as rnízes de sua forma cinematográfica devem ser procuradas no cinema surrealista, inclusive nos filmes da escoJa abstrata da costa oeste. De faio, é preciso distinguir a abstra~o da primeira e da segunda tendencia, pois esta última inantém ainda as linhas, os eixos e as formas que remetem a um mundo das formas, geométricas ou outras, ao passo que a primeira tendencia faz desaparecer os eixos-as diagonais, as linhas, os pontos, as formas geométricas ou outras.

24. Referimo-nos a filmes como: Cabiria, de G. Pastore, Fantomos, de L. Feuillade, Der Golem, de H. Gateen, La folie du docteur Tube e La roue, de Gance, El Dorado, de L'Herbier, La chute de la maison Usher, de Epstein etc.

25. Deleuze 1985, p. 76 (trad. bras., p. 71).

26. O mistério do tcmpo é o fato de o tempo se tornar movimento da alma, e nlío movimento exterior. O expressionismo, como diz Mitry, tenta traduzir, como cenário, o estado da alnia das personágens. Mas, para o expressionismo, o mundo também tem urna alma. A alma expressionista é a vida nlío-orgfinica das coisas. Seria ioteressante distinguir os "ismos"- fu turismo, expressionismo, dadaísmo, surrealismo, simbolismo etc.- e suas diferentes conceps;5es da imagem, do movimento e do tempo.

27. Segundo Parker Tyler ( 1969, p. 151 ), The last mamen/ é uro dos primeiros exemp1os de "cinema subjetivo" em que a linearidade da narrativa é quebrada, "verticalizada", por um efeito "de anarnorfose psíquica".

28. Noguez 1985, p. 301. Noguez retoma aqui a idéia de Sitney, segundo a qua! a corrente subjetiva está centrada na metáfora do sonho e do espelho. Cf. Sitney 1976, pp. 14-26.

29. Cf. Leooardi 1971, p. 61; Noguez 1985, pp. 83 e 301; M. DeviUers, "Reves infortunés", em Cinématographe Jf 35, fevereiro de 1978; Deleuze 1983, p. 80. Os deis primeiros autores falarn de "sonhos acordados", os deis últimos falam de "sonho implicado". Trata-se, porém, da mesma coisa.

30. Sobre todos esses pontos, cf. o capítulo "Surrealisme USA", Mitry 1974, pp. 221·232; cf. também os capítulos IV, XX'I e XXVI em Une rellllissance du ciném.a, 1985.

3 1. Report.adoporNoguez 1985, p. 302, nota 27.

32. Retomamos por nossa canta a defini9ao dada ¡Íor Deleuze da "imagem-sonho". Cf. Deleuze 1985, pp. 75-86 (trad. bras., pp. 71·81).

33. Cf. De1euze 1985, pp. 246-265 (trad. bras., pp. 227·244).

3 4. 'The life and times ofMichael Snow", "Entretiens avec Joe Medjuck", em Tak.e one, Montreal, abril de 1972.

3 5. Deleuzc 1985, p. 262 (trad. bras., p. 241).

3 6. Parece-nos que o que Ropars· Wuilleumier diz sobre o que e la chama de "cinema 1iterário" convém perfeitamente ao cinema do corpo. Segundo Ropars (1970b, pp. 131-132), o "cinema literário" de Antonioni consiste cm fazer passar o tempo sobre os seres segundo as diversas maneiras que os seres tem de passar no tempo.

37. Deleuze 1985, p. 249 (trad. bras., p. 230).

38. D. Nogucz nao reconhece os filmes que Warhol fez cóm Morrissey (Blue movie, Flesh, Trash etc.) como sendo cinema experimental. Chega mesmo ao absurdo de dizer que esses ftlmes vem, antes, de uma "explora~o interessada".

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