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RDS VIII (2016), 1, 7-45 Empresas públicas e corporate governance – da definição da prossecução do interesse público ao controlo externo efetuado pela supervisão MESTRE JOSÉ MIGUEL LUCAS * Sumário: I. Razão de ordem. II. Introdução. III. A prossecução do interesse público. IV. Cor- porate governance: A. Governo interno: a) Ponto prévio; b) Membros do órgão de admi- nistração; c) Membros do órgão de fiscalização; B. Controlo interno: a) Enquadramento; b) Gestão de riscos; c) Compliance; d) Auditoria interna. V. Supervisão: a) Ponto prévio; b) A Inspeção Geral de Finanças; c) O papel especial do Tribunal de Contas; d) A supervi- são das sociedades financeiras do SEE pelo Banco de Portugal. VI. Conclusão. I. Razão de ordem 1 O presente trabalho abarca diversas temáticas relacionadas com o governo das empresas públicas, começando com uma breve abordagem ao conceito de “interesse público”, na medida em que este é chave para que se possa com- preender quais os objetivos que se pretende atingir e qual a estratégia a seguir. Posteriormente, e face à economia do documento, destacaremos aquelas que nos parecem ser as matérias de corporate governance com impacto mais direto e imediato na gestão das empresas públicas: i) os requisitos de adequação dos ges- tores públicos para o exercício de funções e as funções de administração execu- * Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra e técnico do Banco de Portugal. O presente documento (e as posições nele refletidas) resultam do entendimento pessoal do seu Autor e não da posição da sua entidade empregadora atual, não representando, nem vinculando por isso esta instituição. 1 O presente artigo é publicado ao abrigo da colaboração estabelecida entre a Revista de Direito das Sociedades e o Governance Lab, grupo de investigação jurídica dedicado ao governo das organizações (www.governancelab.org). Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 7 Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 7 28/07/16 16:36 28/07/16 16:36

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Empresas públicas e corporate governance – da defi nição da prossecução do interesse público ao controlo externo efetuado pela supervisão

MESTRE JOSÉ MIGUEL LUCAS*

Sumário: I. Razão de ordem. II. Introdução. III. A prossecução do interesse público. IV. Cor-porate governance: A. Governo interno: a) Ponto prévio; b) Membros do órgão de admi-nistração; c) Membros do órgão de fi scalização; B. Controlo interno: a) Enquadramento; b) Gestão de riscos; c) Compliance; d) Auditoria interna. V. Supervisão: a) Ponto prévio; b) A Inspeção Geral de Finanças; c) O papel especial do Tribunal de Contas; d) A supervi-são das sociedades fi nanceiras do SEE pelo Banco de Portugal. VI. Conclusão.

I. Razão de ordem1

O presente trabalho abarca diversas temáticas relacionadas com o governo das empresas públicas, começando com uma breve abordagem ao conceito de “interesse público”, na medida em que este é chave para que se possa com-preender quais os objetivos que se pretende atingir e qual a estratégia a seguir. Posteriormente, e face à economia do documento, destacaremos aquelas que nos parecem ser as matérias de corporate governance com impacto mais direto e imediato na gestão das empresas públicas: i) os requisitos de adequação dos ges-tores públicos para o exercício de funções e as funções de administração execu-

* Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra e técnico do Banco de Portugal. O presente documento (e as posições nele refl etidas) resultam do entendimento pessoal do seu Autor e não da posição da sua entidade empregadora atual, não representando, nem vinculando por isso esta instituição.1 O presente artigo é publicado ao abrigo da colaboração estabelecida entre a Revista de Direito das Sociedades e o Governance Lab, grupo de investigação jurídica dedicado ao governo das organizações (www.governancelab.org).

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tiva e não executiva; ii) os mecanismos internos de vigilância e fi scalização da gestão da sociedade que garantem o cumprimento das normas aplicáveis e das boas práticas (a começar pelos administradores não-executivos, passando pelo órgão de fi scalização e terminando no correto funcionamento dos mecanismos de controlo interno2).

Por último, importará referir os mecanismos de supervisão3 – tanto em termos setoriais4, como “transversais”5 – que permitam não só uma avaliação externa sobre o cumprimento dos objetivos fi nanceiros e estratégicos previa-

2 Carlos Moreno, a propósito do controlo externo dos dinheiros públicos estabelece uma distinção relativamente a um outro conceito de “controlo interno”, que se organiza e funciona no interior da gestão fi nanceira do Setor Público: “[…] está integrado nas estruturas organizatórias e dirigentes da Administração Pública; depende sempre, ao menos em última instância, do seu órgão de cúpula, o Governo; serve a gestão e os gestores fi nanceiros públicos; constitui, hoje, uma função técnica da gestão, em paralelo com as de planeamento e de execução. […] o controlo interno surge, naturalmente, como um instrumento técnico da gestão e nela incorporado; por isso mesmo se entendendo que é a cada organização gestionária, que é a cada gestor que cumpre instituí-lo, em condições de poder responder às necessidades reais de cada estrutura e de cada processo gestionário concreto.” – cf. O controlo externo dos dinheiros públicos em Portugal, In: Coletânea de estudos de homenagem a Francisco Lucas Pires, Lisboa, Universidade Autónoma de Lisboa, 1999, pp. 40 e ss.3 Nas palavras de Pedro Ferreira Malaquias, inter alii, “pese embora, na realidade, o termo «regulação» se prenda mais com os poderes normativos atribuídos ao regulador, consubstanciando-se no acompanhamento do mercado e do sector económico em causa, gerando diretrizes e determinações de carácter genérico e, por outro lado, o termo «supervisão» se prenda mais com os poderes de acompanhamento da atividade das entidades reguladas, corporizando-se em atos administrativos, determinações concretas e/ou sanções, a verdade é que esta última expressão se tem vulgarizado, sendo hoje geralmente aceite como compreendendo ambas as realidades. Assim, poderá dizer-se que o termo «supervisão» tem, hoje, um sentido amplo, que abrange quer a regulação, quer a supervisão (em sentido estrito)” – cf. Modelos de regulação (ou supervisão) do sector fi nanceiro, Actualidad Jurídica Uría Menéndez, n.º 22, 2009, p. 41, disponível em http://www.uria.com/documentos/publicaciones/2197/documento/articuloUM.pdf?id=3096 4 Uma vez que as empresas desempenham atividades tão distintas e se regem por enquadramentos normativos específi cos terá de haver uma supervisão setorial, efetuada pelas entidades reguladoras e supervisoras, como a CMVM e o Banco de Portugal, relativamente às normas específi cas que regulam a atividade, ou que a afetam de forma direta ou indireta. Ou seja, não se pede a estas entidades que procedam a um controlo de legalidade de todos os atos praticados pelas empresas públicas, mas sempre que se confrontarem com irregularidades que se encontrem fora do âmbito das suas competências, transmitam essa informação às autoridades competentes, sejam elas a Inspeção Geral de Finanças, o Ministério das Finanças ou o próprio Ministério Público a quem cabe, em última instância, a tutela da legalidade.5 Ponderando que todas as empresas do Setor Empresarial do Estado (“SEE”) têm uma raiz comum e assentam nos mesmos modelos estabelecidos no Código das Sociedades Comerciais (“CSC”), estão sujeitas ao cumprimento das mesmas regras fi nanceiras e de governo interno, podendo ser vantajosa a existência de uma supervisão “horizontal”, que congregaria as funções transversais que se encontram dispersas por outras instituições supervisoras.

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mente defi nidos6, mas também uma avaliação do cumprimento das normas e princípios de bom governo pelas instituições. Relativamente a este aspeto, e para efeitos do presente artigo, não sendo possível abordar o universo de todas as instituições que exercem funções de controlo7, relevará, em particular, o controlo efetuado pela Inspeção Geral de Finanças (“IGF”), pelo Tribunal de Contas e pelo Banco de Portugal (relativamente às empresas do setor fi nan-ceiro, que se insiram do Setor Empresarial do Estado – SEE)8_9.

6 O controlo independente da atividade fi nanceira do Estado, neste caso através das empresas públicas, pode assumir a forma de:

i) fi scalização política, exercida pela Assembleia da República, a qual pode determinar responsabilidade política;

ii) fi scalização técnico-jurisdicional, exercida por órgãos independentes, a quem cumpre apreciar, segundo critérios técnicos, a legalidade, correção fi nanceira e a boa gestão das fi nanças públicas, sem a interferência política.

7 A título de exemplo, veja-se que o conselho de administração de um hospital entidade pública empresarial (“EPE”) deve comunicar a identidade do auditor interno e as datas de início e termo de funções a quatro entidades: à i) Administração Central do Sistema de Saúde, I. P. (“ACSS, I. P.”), ii) à Direção-Geral do Tesouro e Finanças (“DGTF”), iii) à Inspeção Geral das Atividades em Saúde (“IGAS”) e iv) à IGF – cf. Anexo II ao Decreto-Lei n.º 233/05, de 29 de Dezembro (alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 12/2015, de 26 de janeiro e alterado pelo Decreto-Lei n.º 183/2015, de 31 de agosto), disponível em http://www.dgtf.pt/ResourcesUser/SEE/Documentos/see_cha/ch_05_09_2015_estatutos.pdfNo entanto, nenhuma destas entidades dispõe legalmente de um serviço de registo para os membros responsáveis por este tipo de funções, nem, no rigor dos termos, se vislumbra a utilidade prática no tratamento desta informação separadamente por cada uma daquelas entidades, parecendo-nos sufi ciente e vantajoso que tal informação fosse reportada a um serviço central de registo, designadamente na Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração (“CRESAP”), que procederia ao registo de todos os membros de órgãos sociais de empresas públicas nos diversos sectores nos quais isso ainda não se verifi ca, fi cando esses dados disponíveis para todos os supervisores do SEE.8 As empresas públicas do setor fi nanceiro assumem particular relevância, não só pela sua dimensão e impacto no orçamento de Estado, mas também porque se formou a convicção – designadamente para evitar outras crises fi nanceiras – que a atividade dos bancos deveria ser mais regulada, designadamente em matéria de risco, o que levou a que a matéria do governo interno no setor bancário se encontre muito mais desenvolvida em termos regulamentares e doutrinais. A crise fi nanceira internacional tornou evidentes as fragilidades do próprio setor bancário e fi nanceiro e do seu sistema regulador – pondo a nu fragilidades e inefi ciências, não apenas das políticas internas e procedimentos de gestão dos riscos, como dos sistemas de governo e controlo interno, responsáveis por aqueles. Esta circunstância, despoletou, por sua vez, uma revisão do enquadramento regulamentar aplicável às questões referidas, tanto a nível nacional como internacional.No reverso da medalha, importa também ter em atenção que, por exemplo, ao mesmo tempo que se aumenta a segurança, também aumentam os custos dessa supervisão, tanto em termos fi nanceiros, como de efi ciência administrativa.

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9 Tendo em conta que as referidas temáticas (de governo e controlo interno, bem como de supervisão) têm sido objeto de um grande estudo no âmbito do setor bancário e fi nanceiro, entendemos que a experiência e desenvolvimentos normativos e doutrinários que aí ocorreram poderão servir de inspiração para as melhorias a introduzir no SEE e até mesmo como auxiliar interpretativo às normas atualmente aplicáveis. Aliás, entre as empresas públicas há diversas que são sociedades fi nanceiras e, por isso, se encontram sujeitas a regras específi cas e muito exigentes em matéria de controlo interno e de supervisão10.

São temas complexos, abarcando uma grande variedade de normas e enti-dades11, com múltiplos interesses subjacentes e com grande impacto no funcio-namento do setor público e, consequentemente, na estabilidade orçamental e na sociedade civil. O presente texto pretende dar um contributo para facilitar a compreensão e a aplicação prática das matérias em causa, dando uma perspetiva panorâmica sobre as normas e princípios aplicáveis, destacando aqueles que, no entender do autor, assumem particular relevância12_13.

9 Não serão analisadas as competências de outras entidades, como a Unidade Técnica de Acom-panhamento e Monitorização do SEE (“UTAM”), por exemplo.10 Recorda-se que, nos termos do n.º 6 do artigo 14.º do Regime Jurídico do Setor Público Empresarial (“RJSPE”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 113/2013, de 3 de outubro, o disposto nesse diploma “[…] não prejudica a aplicabilidade, às empresas públicas que tenham natureza de instituições de crédito, sociedades fi nanceiras ou empresas de investimento, das disposições especialmente aplicáveis a esse tipo de entidades, as quais prevalecem em caso de confl ito”, o que signifi ca que relativamente a estas sociedades a supervisão do governo interno – e a defi nição de medidas que eventualmente seja necessário tomar – cabe ao Banco de Portugal.11 Nesse sentido veja-se, por um lado, i) a abrangência de setores tão díspares como a saúde, a defesa, a banca ou os transportes, o que leva à criação e sobreposição de diversos regime jurídicos e exceções; e, por outro, (ii) o universo de entidades que gravitam em torno delas, como os seus controladores: IGF, Tribunal de Contas, UTAM, ou o Banco de Portugal no caso das sociedades fi nanceiras – matéria que será objeto de tratamento autónomo neste documento.12 Sem prejuízo, obviamente, de o presente documento não dever ser entendido como exaustivo ao ponto de incluir todas as normas e princípios que deverão ser seguidos pelas empresas do SEE, tanto mais que estamos perante matérias que se encontram em constante evolução e densifi cação, podendo o presente documento remeter para normas que venham a ser alteradas brevemente, como as alterações ao Estatuto do Gestor Público (“EGP”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 71/2007, de 27 de março, que quer o Governo, quer a Assembleia da República pretendem introduzir, as quais, à data da elaboração do presente trabalho, ainda não haviam sido publicadas.13 No âmbito do presente documento não serão abordados diversos temas conexos mas que merecem tratamento autónomo, como por exemplo os regimes da contratação pública ou da responsabilidade dos administradores.

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II. Introdução

As empresas públicas são responsáveis por uma parte substancial da ativi-dade do Estado e, nessa medida, é natural que tenham um impacto relevante no endividamento público14.

Mais precisamente, de acordo com o mais recente Boletim Estatístico, datado de 21 de abril de 2016, a evolução do endividamento da Administração Pública, em geral, e das empresas públicas poderia sintetizar-se desta forma15:

dez/13 dez/14 dez/15 dez/13 dez/14 dez/15

Dívida total Em milhões de euros Em percentagem do PIB

1. Administrações Públicas 267 581 281 633 288 354 157.2 162.4 160.8

2. Empresas públicas 48 171 45 536 44 018 28.3 26.3 24.5

2.1. Empresas públicas incluídas nas administrações públicas 39 249 37 694 36 825 23.1 21.7 20.5

2.2. Empresas públicas não incluídas nas administrações públicas 8 922 7 842 7 193 5.2 4.5 4.0

Total – endividamento do setor não fi nanceiro (público e privado) 699 390 703 164 703 288 410.8 405.4 392.1

Percentagem do contributo das empresas públicas para o total 6,89 6,48 6,26

Não por acaso, um dos riscos orçamentais identifi cado anualmente no Relatório do Orçamento de Estado é justamente o que se encontra associado ao SEE16, considerando-se, entre o mais, o risco da não concretização das esti-

14 Nas palavras do Relatório de Auditoria n.º 32/2008, 2.ª Secção, relativo ao “SEE e práticas de bom governo”, de outubro de 2008, o universo das empresas públicas manteve-se crescente entre 2001 e 2005, variando em mais de 15% naquele intervalo, acentuando o fenómeno da desorçamentação, porquanto quer as empresas criadas de novo, quer, em especial, as resultantes da empresarialização de serviços da Administração Central do Estado, deixam de estar sujeitas à disciplina orçamental e, bem assim, de integrar o Orçamento do Estado.15 Disponível em http://www.bportugal.pt/pt-PT/Estatisticas/PublicacoesEstatisticas/BolEstatistico/Publicacoes/BEAbr16.pdf, p.59.16 Cf. http://www.dgo.pt/politicaorcamental/OrcamentodeEstado/2015/Proposta%20do%20Or%C3%A7amento/Documentos%20do%20OE/Rel-2015.pdf, p. 65.

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mativas relativas aos resultados operacionais17_18. Além disso, no exercício de 2016, a reposição gradual das remunerações e consequente aumento dos gastos com pessoal exige um esforço acrescido de gestão – e, acrescentaríamos, de controlo sobre as empresas públicas – no sentido de garantir que a decisão sobre a realização de despesas é sempre precedida de uma análise sobre a sua necessidade, oportunidade e efi cácia, ainda que essa análise não deva bloquear a atividade das empresas.

O que já não será tão natural é que, como Duarte Schmidt Lino e Pedro Lomba19 defendem, no nosso Direito, a governação das empresas públicas seja demasiado inefi ciente20, opaca e insufi cientemente democrática e que tenham sido criados novos entes empresariais em áreas diversas da economia, com motivações e missões nem sempre evidentes21. Tal realidade terá produzido

17 Mais precisamente, considera-se o risco de os resultados operacionais das empresas se poderem revelar inferiores ao esperado e, consequentemente, de haver uma diminuição dos dividendos que poderão ser entregues ao Estado ou um aumento dos prejuízos, em virtude, por exemplo, de uma menor procura, fruto do aumento do custo de acesso aos serviços prestados ou do acréscimo de gastos com pessoal, como a decorrente do teor do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 413/2014, de 26 de junho (que declarou inconstitucional a norma que procedeu à redução das remunerações dos trabalhadores do setor público). 18 Procurando mitigar esse risco, nos últimos anos, as empresas públicas focaram-se na redução contínua dos seus gastos correntes. Em concreto, verifi ca-se que o endividamento do sector empresarial do Estado diminuiu nos nove primeiros meses de 2015. Apesar de registar uma redução de 5%, a verdade é que, no referido período, a dívida superava o objetivo previsto nos orçamentos das empresas em cerca de 290 milhões de euros, ou seja 1% do valor orçamentado – cf. “Boletim informativo do Setor Empresarial do Estado – 3.º trimestre de 2015”, de abril de 2016, elaborado pela UTAM, p. 13, disponível em http://www.utam.pt/documentos/Boletim%20Informativo%20SEE%20-%203º%20Trimestre%20de%202015%20-%20Edição%20Protegida.pdf19 Cf. Democratizar o governo das empresas públicas: o problema do duplo grau de agência, in O Governo das Organizações: a vocação universal do Corporate Governance, Paulo Câmara et al., Almedina, 2011, p. 684.20 Grande parte da literatura afi rma que existe uma diferença de rendibilidades entre as empresas públicas e as empresas privadas sendo que estas últimas são mais rentáveis, apontando dois principais fatores para esta diferença de rendibilidade: a falta de concorrência a que as empresas públicas estão sujeitas e o próprio facto de as empresas públicas pertencerem aos seus respetivos Estados – para mais sobre esta matéria, veja-se a dissertação de mestrado de Luís Miguel Guedes Rodrigues, “São as empresas privadas mais rentáveis do que as empresas públicas? Caso europeu”, setembro de 2013, disponível em https://www.iseg.ulisboa.pt/aquila/getFile.do?fi leId=446061&method=getFile.21 A este propósito recorda-se que o processo de constituição de empresas públicas é complexo e está, formalmente, revestido de um conjunto de exigências: depende sempre de autorização dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das fi nanças e do respetivo setor de atividade, antecedida de parecer (não vinculativo) da UTAM, sob pena de nulidade dos atos e de responsabilidade (nos termos dos artigos 10.º, n.º 1 e 2 e 12.º, n.º 1 e 2 do RJSPE. A sanção de

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a expansão dos encargos criados pelo crescimento das estruturas empresariais públicas e gerado ainda inúmeros exemplos perversos de gestão fi nanceira inefi ciente, endividamento, captura das estruturas de decisão por grupos de interesse e até mesmo, possivelmente, corrupção e fenómenos de desvio e abuso de poder.

Ora, estes temas assumem particular importância porque, consabidamente, a relação (de confi ança) entre os cidadãos e o Estado assenta, em grande medida, na capacidade de ser reportado de forma transparente a forma como os recursos foram (e são) usados e o grau de realização dos objetivos prometidos.

Exige-se, assim, por um lado, uma efi ciente administração dos recursos públicos (de forma a defi nir corretamente as necessidades coletivas e satisfa-zê-las com o menor sacrifício do património dos contribuintes), mas também uma análise a posteriori sobre o cumprimento dos objetivos (legal22 ou indivi-dualmente) estabelecidos, que tenha efeitos práticos concretos e visíveis23.

nulidade é forte e reforça o papel vital da supervisão, no entanto, apesar da natureza declarativa da nulidade, até que tal aconteça o ato continuará a produzir efeitos e alguns poderão mesmo ser irreversíveis.22 Em nosso entender, é essencial que tal aconteça. Não nos parece sufi ciente defi nir legalmente as medidas ou os objetivos, devendo estabelecer-se um período temporal, fi ndo o qual se faça uma avaliação sobre o regime e se pondere se deverá ser alterado ou não, após análise do impacto concreto do regime em causa. A título exemplifi cativo veja-se que, atualmente, em alguns diplomas que tiveram a sua origem em legislação europeia, o legislador já teve a preocupação de voltar a aferir o impacto das normas e um possível ajustamento, como no artigo 8.º da Lei n.º 148/2015, de 9 de setembro – que, entre o mais aprovou o Regime Jurídico da Supervisão de Auditoria (“RJSA”) – nos termos do qual: “Decorridos três anos da entrada em vigor da presente lei, o Governo promove a avaliação dos resultados da aplicação da mesma e da demais legislação adotada no quadro da transposição da Diretiva 2014/56/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014, e da execução, na ordem jurídica interna, do Regulamento (UE) n.º 537/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014, e pondera, em função dessa avaliação, a necessidade ou a oportunidade da sua revisão”.23 É, pois, necessário instituir mecanismos de tomada de decisão, de divulgação de informação e fi scalização (interna e externa) das decisões suscetíveis de induzir uma utilização efi ciente dos recursos disponíveis, em benefício exclusivo dos fi ns para que as empresas hajam sido criadas e sejam mantidas – cf. preâmbulo do RJSPE. Conforme melhor veremos abaixo, para alcançar um correto funcionamento, as empresas do SEE deverão dispor de dispositivos sólidos em matéria de governo interno, incluindo uma estrutura organizativa clara, com linhas de responsabilidade bem defi nidas, transparentes e coerentes, mas também ter nos órgãos de administração membros cuja integridade/idoneidade/boa reputação, qualifi cação profi ssional, independência de espírito e disponibilidade, entre outros critérios, deem, quer a título individual, quer ao nível dos órgãos no seu conjunto, garantias de gestão sã e prudente – destacando, desde já, este conceito de "gestão sã e prudente", o qual será novamente abordado mais adiante. A título de exemplo dos regimes especiais a que os gestores públicos estão sujeitos, veja-se o n.º 1 do artigo 12.º do EGP – de acordo com o qual os gestores públicos devem estar habilitados,

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Tem havido uma enorme evolução, e atualmente já existe um conjunto de mecanismos que visam fi scalizar e supervisionar as empresas públicas, de molde a que estas cumpram os objetivos defi nidos e se mantenham dentro dos limi-tes (orçamentais) previstos, procurando-se ponderar, no presente artigo, que melhorias se poderão introduzir no sistema.

III. A prossecução do interesse público

O objetivo de implementar uma boa estrutura de governo24 e garantir que os administradores observam boas práticas na gestão da sociedade, promotoras de maior efi ciência e transparência de gestão, em cumprimento dos princípios de corporate governance existentes é comum ao setor privado e público.

Miguel Raimundo25, acompanhando Freitas do Amaral, distingue dois tipos de motivações principais para justifi car o recurso à fi gura da empresa pública: i) motivos políticos e económicos que levam à intervenção pública na eco-nomia, tendo subjacente a atribuição de relevância sufi ciente a determinadas atividades ou setores da economia, que exigem fundadamente a manutenção de uma presença pública qualifi cada; ii) motivos administrativos e fi nanceiros, de índole organizacional, onde o sentido é o de substituir o modelo burocrá-tico de funcionamento por um modelo empresarial, com inerentes ganhos de fl exibilidade26.

no mínimo, com o grau académico de licenciatura, requisito que não é exigido no CSC para os administradores das restantes sociedades.24 Até ao presente momento, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (“CMVM”) e o Instituto Português de Corporate Governance (“IPCG”) foram as únicas instituições que publicaram um Código de Governo das Sociedades, procedendo a um elenco de diretivas cuja observância, embora se recomende às sociedades cotadas, consubstancia boas práticas que seria vantajoso que guiassem também as restantes sociedades (e, em particular, as empresas públicas) – encontrando-se em consulta pública um novo projeto de Código, ainda não exitindo uma versão fi nal à data da elaboração do presente trabalho.25 Cf. Miguel Assis Raimundo, “As empresas públicas nos tribunais administrativos: contributo para a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa face às entidades empresariais instrumentais da administração pública, Almedina, 2007, pp. 26 e ss.26 Maria João Estorninho, procede a um elenco de seis vantagens para utilização de formas priva-das (comparativamente com a existência de entidades públicas) que nos parece de chamar à colação:

1) A maior facilidade na criação e extinção de instituições; 2) Favorecimento da descentralização e autonomia, possibilidade de criação de âmbitos de

responsabilidade próprios e autónomos; menor infl uência partidária; 3) Libertação de regras de direito público;

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Apesar da aplicação do modelo empresarial privado ao setor público, a motivação subjacente à atuação no setor privado e público é, a nosso ver, diferente. Isto é, ainda que a natureza jurídica das empresas públicas seja pri-vada27 – sendo-lhes aplicáveis as regras do Código das Sociedades Comerciais (“CSC”) –, deverá ser tido em atenção que os objetivos que se pretende atingir em ambos os casos podem ser diferentes.

No caso do SEE28, ao intervir na economia como agente29, o Estado não o faz com o mesmo grau de liberdade dos privados30: o objetivo último é a

4) Adoção de processos de decisão e atuação mais fl exíveis, desburocratizados, rápidos, transparentes e efi cientes, sujeição às regras de mercado e de concorrência, maior possibilidade de obter resultados mais rentáveis; maior diversidade de bens e serviços a oferecer no mercado;

5) Maior diversidade de meios de fi nanciamento, redução de custos administrativos, possibilidade de benefícios fi scais;

6) Maior fl exibilidade de cooperação com outras entidades públicas, a possibilidade de apelo à sociedade civil e de utilização de iniciativa privada.

Cf. Maria João Estorninho, A fuga para o direito privado, contributo para o estudo da atividade de direito privado da administração pública, Almedina, 1999, p. 59 a 66.27 Da perspetiva de Paulo Otero e Jorge Coutinho de Abreu é possível de se considerar que estamos perante entidades com forma jurídica privada, dotadas de uma personalidade jurídica de direito privado, criadas e/ou controladas através da participação no respetivo capital social por entidades de direito público – cf. Paulo Otero, “Vinculação e liberdade de conformação jurídica do sector empresarial do Estado”, Coimbra Editora, 1998, p. 86 e Jorge Coutinho de Abreu, “Da empresarialidade – As empresas no Direito”, Coimbra, 1996, p. 135.28 A propósito do interesse social subjacente às empresas, destaca-se que a doutrina se divide em duas correntes: a contratualista e a institucionalista: a primeira corrente defi ne interesse social como o interesse comum dos sócios. A segunda corrente defi ne o interesse social para além do interesse comum dos sócios. Nesta segunda corrente distingue-se a teoria da empresa em si e a da pessoa em si. Na teoria da empresa em si, o interesse social não é apenas o interesse dos sócios, mas o interesse comum aos restantes sujeitos, como os trabalhadores. Na teoria da pessoa em si, o interesse da sociedade corresponde ao interesse da sociedade enquanto tal, independentemente de outros interesses, que, em relação aos da sociedade, estão num plano de inferioridade. Para mais, veja-se Tânia Meireles da Cunha, “Da responsabilidade dos gestores de sociedades perante os credores sociais: a culpa nas responsabilidades civil e tributária”, 2ª. edição, Coimbra Editora, p. 44.29 O SEE tem um grande impacto no orçamento do Estado e a importância da efi ciência das organizações e do governo interno cresceu com a entrada em vigor do Sistema Europeu de Contas 2010 (SEC2010) – o qual estabelece uma metodologia para a produção de dados de contas nacionais na União Europeia –, o qual substituiu, em setembro de 2014, o quadro metodológico para a produção de dados das contas nacionais (SEC 1995), sendo fundamental a existência de um manual conceptual, de aplicação obrigatória em todos os Estados-Membros para garantir que os resultados estatísticos são compilados de forma consistente, comparável, fi ável e atualizada.Um conjunto signifi cativo de entidades públicas foi reclassifi cado, passando para o perímetro das administrações públicas (“EPR” – Entidades Públicas Reclassifi cadas). Em consequência, os resultados operacionais destas entidades passaram a ter impacto no saldo orçamental, pelo que a

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prossecução do interesse público – com a defi nição que seja feita, em concreto, a cada momento pelo 30Estado31 –, contribuindo para a melhoria do nível de bem-estar dos cidadãos32. O interesse público é, assim, fundamento, limite e o critério da iniciativa do Estado33.

Jorge Miranda e Rui Medeiros34 chamam a atenção para a uniformidade meramente aparente do conceito de “interesse público” e para o facto de o conceito de interesse público não conseguir ser sufi cientemente abrangente para representar todas pessoas, afi rmando que “[...] não é um conceito homogéneo,

materialização dos riscos operacionais passou a ter impacto direto negativo sobre o saldo orçamental das administrações públicas.Além disso, apesar das constantes medidas de reestruturação do SEE (mais acentuadas recentemente, com redução de gastos correntes, aumento de receitas próprias, reestruturação de fi nanciamento, extinção, fusão, privatização e concessão de empresas), estas continuam a não ser sufi cientes para concretizar as estimativas relativas aos resultados operacionais das empresas públicas, daí se extraindo a conclusão da constituição de um risco orçamental para o Estado – cf. “Parecer Técnico da Unidade Técnica de Apoio Orçamental n.º 4/2014 [versão fi nal] – Análise à proposta do Orçamento do Estado para 2015”, pp. 6, 85 e 104. Disponível online.30 As empresas públicas são diferentes das privadas a vários (outros) títulos, designadamente:

i. A administração de empresas públicas envolve a gestão fi duciária de fundos públicos (dos contribuintes), por oposição aos particulares acionistas que participam nas sociedades privadas e poderão ter de responder com o capital investido; o que poderá levar a uma menor preocupação com a boa gestão no caso das empresas públicas, uma vez que existe uma maior difusão em caso de perdas; o dinheiro dos contribuintes é entregue ao Estado, que por sua vez o coloca a ser gerido no âmbito de uma empresa pública;

ii. Pode haver uma infl uência de critérios políticos na nomeação de gestores públicos; iii. Estão protegidas das Ofertas Públicas de Aquisição e das insolvências; iv. São mais permeáveis a infl uências políticas; v. Na maioria dos casos, não se encontram sujeitas à disciplina de mercado do mesmo modo

de uma empresa privada.Neste sentido, veja-se João Marrecas Ferreira, “Os problemas de governance nas Empresas Públicas”, 2009, dissertação de Mestrado em Ciências Jurídicas Empresariais, p. 11, disponível em http://run.unl.pt/bitstream/10362/6195/1/Ferreira_2009.pdf Em sentido inverso, sobre a manutenção das vinculações públicas, veja-se Sofia Tomé d’Alte, A nova confi guração do sector empresarial do Estado e a empresarialização dos serviços públicos, Almedina, 2007.31 Para mais, veja-se Edwin Rekosh, “Quem define o interesse público? Estratégias do direito de interesse público na Europa Centro-Oriental”, Revista internacional de direitos humanos, vol.2, no.2, São Paulo, 2005, disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-64452005000100008&lng=en&nrm=iso&tlng=pt&ORIGINALLANG=pt 32 Cf. Paulo Otero, Vinculação e liberdade de conformação jurídica …, ob. cit., p. 14. Nas palavras de Sofia Tomé D’Alte, o Estado “deve agir”, edifi cando um setor empresarial de acordo com as necessidades da comunidade – cf. A nova confi guração do setor empresarial do Estado… ob. cit., p. 39.33 Cf. Paulo Otero, Vinculação e liberdade de conformação jurídica …, ob. cit., p. 126. 34 Cf. Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, Tomo III.

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imutável e atemporal. Se é certo que exprime a ideia geral de bem comum, de bem-es-tar geral das pessoas e comunidades, a verdade é que esse bem comum tem margens de variação em função das especifi cidades circunstanciais das diversas comunidades. Assim, o que é de interesse público, por exemplo, para uma determinada autarquia ou região num certo momento, poderá já não o ser para outra autarquia ou região, ou até para a mesma autarquia ou região num momento diverso. Acresce que o interesse público tem carácter geral, mas não universal. Com isto pretendemos signifi car que o momento de universalidade do interesse público coincide já com o seu limite, ou seja, com os direitos fundamentais das pessoas.”35

É, assim, possível destrinçar, desde logo num i) “interesse público geral” que interessa a todo o Povo36; ii) os “interesses públicos particulares”, que se referem a uma determinada parte do Povo, de uma região específi ca, por exemplo e iii) os “interesses públicos especiais”, de determinadas categorias de pessoas (por exemplo: pescadores ou professores).

Sendo dominadas pelo Estado, e visando fi nalidades públicas, é natural que as empresas públicas sejam guiadas por este(s) interesse(s) público(s) e que os seus conselhos de administração devam observar “orientações estratégicas” e orientações setoriais, nos termos do artigo 24.º do RJSPE37. No entanto, importa apurar qual o sentido que o Estado pretende seguir.

35 Sobre a questão específi ca da satisfação do interesse público, veja-se José Carlos Vieira de Andrade, Interesse Público, [ José Pedro Fernandes (coord.)], Dicionário Jurídico da Administração Pública, Lisboa, Atlântida, 1992, Vol. V. e Rogério Guilherme Ehrardt Soares, Interesse Público, Legalidade e Mérito. Coimbra, 1955, p. 238), para quem o bem comum se decompõe em uns tantos interesses cardiais “[...] a cada um dos quais corresponde[r] um poder. Assim, a aceitação pela ordem jurídica duma pessoa coletiva pública exprime a individualização dum “centro de referência” de um ou vários desses interesses fundamentais”.36 Nas palavras de José Tavares, “[…] interessa-nos, em especial, a referência às necessidades coletivas públicas, inerentes à vida em sociedade e cuja satisfação cabe, à partida, ao Estado e a outras entidades públicas que agem por conta e em nome da coletividade […]. Ao conjunto dessas necessidades públicas poderá ser dada a designação de interesse público ou bem comum. A gestão pública visa justamente a satisfação deste interesse público «lato sensu», em conformidade com a ordem jurídica, ponderando adequadamente todos os interesses relevantes e dignos de proteção – interesses coletivos, públicos ou privados, interesses individuais, interesses difusos…” – cf. A ponderação de interesses na gestão publica vs. gestão privada, In: Estudos jurídicos e económicos em homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco, Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2006, 2.v., p. 685.37 Recorda-se que o artigo 24.º do RJSPE estabelece as orientações estratégicas e setoriais, as quais devem estar articuladas (e subordinadas) ao entendimento do interesse público que o Estado, enquanto acionista, importa prosseguir.Nesse sentido, as alíneas a) e b) do artigo 38.º daquele diploma legal estabelecem que o Estado deve defi nir as orientações a aplicar no desenvolvimento da atividade empresarial, bem como os objetivos e resultados a alcançar, em especial os económicos e fi nanceiros. Em linha com estas

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A boa gestão38 (das empresas públicas) começa com o fundamento para a criação da empresa e na boa defi nição dos objetivos39, sendo que essa matéria poderá dar azo a uma grande discussão, quase de natureza fi losófi ca, na medida em que se se pode defender que o interesse público resulta da opinião da socie-dade civil, que paga os impostos40, mas também se pode defender que o inte-resse público deve ser defi nido pelo Estado, na qualidade de representante do Povo e de defi nidor do melhor rumo.

Dessa perspetiva, pode considerar-se que a redução de custos – e, bem-as-sim, o controlo das contas – é a melhor forma de prosseguir o interesse público, reduzindo os custos para os contribuintes, no entanto, a verdade é que sendo as

orientações, o n.º 4 do artigo 39.º do RJSPE defi ne a competência dos ministérios setoriais para defi nir e comunicar a política setorial a prosseguir.Uma vez defi nidas as orientações estratégicas e aprovados os planos de atividades e orçamento, os titulares da função acionista abstêm-se de interferir na atividade prosseguida pelo órgão de administração, nos termos do n.º 2 do artigo 30.º do RJSPE.38 De acordo com Lia Olema Correia, “por boa administração deve entender-se: administração economicamente efi ciente e sustentável e socialmente justa, obter os melhores resultados ao menor custo social e os objetivos alcançados corresponderem à utilidade social desejada pelo cidadão eleitor”, defendendo ainda a Autora que a violação do dever de boa administração constitui hoje no nosso ordenamento jurídico uma ilegalidade por violação de normas que impõem determinada conduta (princípios constitucionais de boa gestão e de normas legais que concretizam o seu exercício) – cf. “O dever de boa gestão e a responsabilidade fi nanceira”, in Estudos jurídicos e económicos em homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2006, vol. II, pp. 792 e 796. Para mais sobre o tema, poderá ler-se Carlos Moreno, em “O controlo externo dos dinheiros públicos em Portugal”, ob. cit., pp. 35 e ss.39 Manifestando-se a vontade política na fi xação dos objetivos a atingir e na defi nição das normas e procedimentos que devem disciplinar a atividade, parece que a fi scalização nesta sede poderá apenas ser política, sendo absolutamente vital que esse acompanhamento seja feito. De todo o modo, “ao controlador fi nanceiro compete apreciar em que medida e com que qualidade de gestão os objetivos defi nidos pelo poder político foram atingidos e se na prossecução dos mesmos foram respeitadas as normas a que a autoridade política se autovinculou e efetivar responsabilidades fi nanceiras, se for caso disso, e se o modelo de controlo integrar poderes jurisdicionais” – cf. Lia Olema Correia, ob cit., p. 797.40 Nas palavras de Sousa Franco, o juízo social “não pode confundir-se com a opinião dos detentores do poder governativo ou burocrático que são fi scalizados: é a opinião profunda da sociedade civil que paga os impostos e deve comandar o Estado, que numa ordem de valores democráticos deve ter precedência” – cf. “O presente e o Futuro das Instituições de Controlo fi nanceiro com caráter jurisdicional”, Revista do Tribunal de Contas, n.º 19/20, 1993, p. 109. A efi ciência e a transparência das empresas públicas são do interesse de cada cidadão que, como contribuinte, é o acionista indireto da empresa e muitas vezes, destinatário fi nal da atividade empresarial – nesse sentido veja-se Lia Olema Correia, em “O dever de boa gestão e a responsabilidade fi nanceira”, in Estudos jurídicos e económicos em homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2006, vol. II, p. 792.

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empresas públicas prestadoras de serviços, estas também visam o cumprimento de outros objetivos de interesse público, pelo que, em nosso entender, a ava-liação (interna e externa) não poderá ser meramente fi nanceira, verifi cando se foi atingido um determinado nível de redução de despesa. Deve, por um lado, apurar-se se (i) o esforço de contenção fi nanceira compensou e se (ii) os objetivos estratégicos (de interesse público) foram atingidos e com que custo. Por outro lado, deve haver maior transparência, porquanto seja admissível que algumas empresas públicas sejam, por natureza, defi citárias41, o que apenas deve aumentar a exigência da verifi cação de uma gestão sã e prudente.

Em linha com o exposto, no Orçamento de Estado para 2016, mais do que uma redução contínua de gastos, o enfoque passa agora a ser a melhoria dos serviços públicos essenciais prestados aos cidadãos pelas empresas do SEE, o qual exige a otimização dos meios atualmente alocados e grande vigilância por parte da supervisão.

Assim, sem pôr em causa a necessidade de assegurar a contenção dos gastos públicos, o foco no Orçamento de Estado para 2016 passa a ser a racionalidade económica da despesa e não apenas a análise da evolução do seu valor abso-luto42. Simultaneamente, importará também assegurar a adoção de modelos de fi nanciamento que sejam compatíveis com a sustentabilidade da situação fi nanceira das empresas e a contenção do seu nível de endividamento, o que implica promover avaliações tecnicamente válidas dos investimentos a realizar, assegurando o princípio da efi ciência da despesa43.

41 Tendo isso em mente, a avaliação do modelo de governo interno tem de se focar na sua efi cácia, efi ciência, transparência e capacidade para atingir os objetivos, não se podendo guiar pelos resultados fi nanceiros (positivos ou negativos) da sociedade. Nesse sentido, veja-se que, em alguns casos, as empresas, face ao interesse público que visam servir, podem ter um desempenho económico negativo – designadamente por não atuarem ou poderem atuar em condições concorrenciais, cobrando valores rentáveis pela prestação do serviço ou a executá-lo de forma efi ciente –, o que não quer dizer necessariamente que existam problemas de governo interno ou que sejam mal geridas. De acordo com o n.º 3 do artigo 48.º do RJSPE, “as empresas públicas encarregadas de proceder à prestação de serviço público ou serviço de interesse geral celebram obrigatoriamente, para esse efeito, com a entidade pública que lhes tenha confi ado a prestação desse serviço, contrato respeitante à remuneração da atividade prosseguida, em conformidade com o disposto no Decreto-Lei n.º 167/2008, de 26 de agosto”, relativo ao regime jurídico aplicável à atribuição de subvenções públicas.42 Cf. p. 55 do Relatório do Orçamento de Estado de 2016, disponível em http://www.dgo.pt/politicaorcamental/OrcamentodeEstado/2016/Proposta%20do%20Or%C3%A7amento/Documentos%20do%20OE/Rel-2016-Revisto.pdf 43 Ora, conforme referido acima, em nosso entender, tão importante como defi nir os objetivos é acompanhá-los, para se poder analisar a evolução do seu cumprimento e, se necessário, corrigir a trajetória ou mesmo alterar o objetivo defi nido inicialmente. Obviamente que esse acompanhamento é mais complexo quando envolve conceitos indeterminados iminentemente

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Em suma, a nosso ver, é essencial garantir uma gestão sã e prudente das empresas públicas. Nesse sentido, começando pela defi nição de uma orientação estratégica transparente (designadamente para a generalidade dos cidadãos) e terminando numa avaliação independente do cumprimento desses objetivos, os controlos internos e externos sobre a atuação das empresas públicas assumem uma importância vital, a começar pela existência de um governo interno sólido e a passando por uma supervisão contínua atenta44.

IV. Corporate governance45

A. Governo interno

a) Ponto prévio

Antes de mais, começa por recordar-se que o conceito de sistema de governo interno tem sido objeto de bastante desenvolvimento doutrinário e é

económicos como “racionalidade económica da despesa”, ou mesmo “princípio da efi ciência da despesa”, cabendo ao Direito uma maior defi nição destes conceitos, bem como dos mecanismos que aumentem a transparência.44 Assim, seguindo Carlos Moreno, o controlo fi nanceiro público, poderá comportar i) uma verifi cação da legalidade e regularidade da atividade de gestão de dinheiros públicos; ii) apreciar a boa gestão fi nanceira, efi ciência e a preservação do ambiente, relativamente ao dispêndio de dinheiros públicos; iii) ajuizar do comportamento dos gestores, no tocante aos dinheiros públicos que administram; e, por último, iv) avaliar políticas, ações, programas e projetos públicos, bem como a utilidade social das estruturas e a qualidade das respetivas prestações.45 Ou “governação das organizações”, pode ser defi nida tão-só como “sistema através do qual as sociedades são dirigidas e controladas” (cf. Join Forum, Report of the Commitee on the Financial Aspects of Corporate Governance (The Cadbury Report), 1992, p. 15 (disponível em www.ecgi.org/codes/documents/cadbury.pdf ) ou, indo mais longe, “o sistema de normas jurídicas, de práticas e de comportamentos relacionados com a estrutura dos poderes decisórios – incluindo a administração, a direção e demais órgãos diretivos – e a fi scalização das organizações, compreendendo nomeadamente a determinação do perfi l funcional dos atores organizativos e titulares de órgãos e corpos organizativos e as relações entre estes, os titulares de capital, os associados ou os fundadores e os outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da organização (stakeholders)” – cf. Paulo Câmara, “Vocação e infl uência universal do Corporate Governance: Uma visão transversal sobre o tema”, in “O Governo das Organizações – a Vocação Universal do Corporate Governance, Coimbra, 2011, p. 14.O conceito de corporate governance, em abstrato, abrange um conjunto diversifi cado de temas societários, nomeadamente: a) organização e estrutura da sociedade; b) as formas de designação da administração; c) remuneração dos administradores; d) deveres e responsabilidade dos titulares dos órgãos de gestão e fi scalização; e) meios de controlo interno e externos; f) direitos dos acionistas; e g) formas de relacionamento com os shareholders e stakeholders – Cf. António Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2006, pág. 525, Jorge Manuel Coutinho

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comum às empresas públicas e privadas: consubstancia um conjunto de regras de governo e controlo, bem como de procedimentos internos que relacionam, em termos gerais, os seus órgãos sociais com os restantes stakeholders – neste caso, de forma mais proeminente, o Estado, enquanto acionista, mas há outras fi guras a ter em consideração, desde os utilizadores dos bens e serviços, os cre-dores e até aos cidadãos em geral.

b) Membros do órgão de administração

Seguindo o disposto no n.º 3 do artigo 31.º do RJSPE, todas as empresas públicas têm de ter um órgão de administração – o qual gere as atividades compreendidas no respetivo objeto e representa a empresa – e um órgão de fi scalização – a quem compete, principalmente, vigiar pela observância da lei e dos estatutos (nomeadamente por parte dos gestores), conforme a estrutura orgânica prevista no CSC46.

Todos os administradores (sejam de empresas públicas ou não) estão sujei-tos aos deveres fi duciários previstos no artigo 64.º do CSC47, no qual se plas-mou que é dever dos administradores prosseguir o interesse de longo prazo dos sócios e dos demais stakeholders, abrangendo os interesses dos credores e

de Abreu, Governação das Sociedades Comerciais, Coimbra, Almedina, 2006, pp. 6 e 7 e Paulo Fernando Bandeira, Princípios de Corporate Governance e a Reforma dos Modelos Societários, in Boletim da Ordem dos Advogados, N.º 41 (Março-Abril 2006), pág.27.Indo mais longe, no Relatório “Governance in the Public Sector: A Governing Body Pespective -- International Public Sector Study”, da “International Federation of Accountants”, faz-se a ligação entre i) “corporate governance” – a governação das organizações do setor privado – e ii) “government governance” – a governação das organizações do Governo, do setor público, entendido de forma ampla, de molde a abranger todas as entidades – disponível em http://www1.worldbank.org/publicsector/pe/April2003Seminar/Course%20Readings/08.%20Internal%20Control%20and%20Audit/Study_13_Governance.pdf , p. 1.46 Para mais sobre esta matéria, veja-se, Jorge Manuel Coutinho de Abreu, “As novíssimas empresas públicas: segundo o DL 133/2013”, Boletim de Ciências Económicas, Coimbra, v. 57 t. 1, 2014, pp. 53 e ss.Especifi camente quanto aos órgãos sociais, recorda-se que, nos termos das disposições conjuntas dos artigos 1.º e 3.º do EGP, apenas se considera gestor público quem seja designado como membro do órgão de administração, não sendo assim considerado quem seja eleito para outros órgãos sociais.47 A este propósito, a OCDE elaborou recentemente um documento com aqueles que foram considerados “princípios de governo”, de entre os quais destacamos, sobre este tema o ponto VI.A., nos termos do qual “os membros do órgão de administração devem agir com base em informações completas, de boa fé, com a devida diligência e cuidado e no melhor interesse da empresa e dos seus acionistas” – Cf. G20/OECD Principles of Corporate Governance, p. 45, disponível online.

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clientes48. No caso das empresas públicas, considerando que o acionista único é o Estado, o interesse público – ou, talvez melhor, o interesse público tal como defi nido pelo Estado – tem primazia, devendo os gestores públicos evitar retirar benefícios que correspondam a prejuízos para aquele49.

Além das tarefas de gestão da sociedade50, o órgão de administração é tam-bém responsável pela aplicação de sistemas de governo que garantam a gestão efi caz e prudente, acompanhando e avaliando periodicamente a efi cácia dos seus sistemas de governo e tomando e propondo as medidas adequadas para corrigir quaisquer defi ciências detetadas nos mesmos51.

Ainda que os riscos numa empresa pública do setor não fi nanceiro não sejam os mesmos do que numa empresa deste setor, entendemos que o critério defi nido no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”) – de garantir uma gestão sã e prudente – seria uma ótima refe-

48 A este propósito – e pegando no exemplo dos “swaps” que eram, até há pouco tempo, contratos correntes no mercado (como um dos instrumentos de cobertura de riscos, sobretudo cambiais ou de taxas de juro), poderia colocar-se uma outra questão, abordada por Manuel Carneiro da Frada que é a do impacto da “business judgement rule” no quadro dos deveres gerais dos administradores -- in: A reforma do código das sociedades comerciais: jornadas em Homenagem ao Professor Doutor Raúl Ventura, Almedina, 2007, p. 66 e disponível em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=59032&ida=59045, matéria que, no entanto, não será objeto de análise no presente trabalho.49 Cf. n.º 4 do artigo 31.º do RJSPE.50 Consubstanciando-se o dever de administrar no exercício de um conjunto amplo de poderes de gestão na sociedade – melhor descritos nos artigos 405.º e 406.º do CSC –, conforme aos deveres de cuidado, empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado, o que requer um processo correto de tomada de decisão.Pedro Caetano Nunes, na sentença proferida a 27.10.2003, no âmbito do processo n.º 208/99, da Comarca de Lisboa, 3.ª Vara Cível, 1.ª Secção, sustenta que: “consideramos preferível o entendimento de que o dever de gestão é constituído por um dever de obtenção de informação no iter decisional e um dever de não tomar decisões irracionais, reduzindo assim a análise do mérito das decisões empresariais à sua (ir)racionalidade. Rejeitamos o entendimento de que o dever de gestão é constituído por um dever de tomar decisões adequadas, sendo a sindicabilidade do mérito das decisões empresariais limitada apenas através da aceitação de uma margem de discricionariedade. Modifi cando o entendimento oferecido num texto anterior [Pedro Caetano Nunes, Responsabilidade civil dos administradores perante os acionistas, Coimbra, 2001, p. 26], consideramos agora que a mera aceitação de uma margem de discricionariedade constitui um mecanismo insufi ciente de limitação da sindicabilidade do mérito das decisões empresariais” [sem acrescento no original], disponível em http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/rpd_MA_12351.pdf 51 O RJSPE estabelece também mecanismos adicionais de proteção relativamente à despesa, como a exigência de que o conselho de administração das empresas públicas integre sempre um elemento designado ou proposto pelo membro do Governo responsável pela área das fi nanças, que deve aprovar expressamente qualquer matéria cujo impacto fi nanceiro na empresa seja superior a 1% do ativo líquido.

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rência para avaliar a administração dos gestores públicos52. Adicionalmente, o artigo 75.º do RGICSF estabelece uma norma especial de acordo com a qual “os membros dos órgãos de administração das instituições de crédito, bem como as pes-soas que nelas exerçam cargos de direção, gerência, chefi a ou similares, devem proceder nas suas funções com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, de acordo com o princípio da repartição de riscos e da segurança das aplicações e ter em conta o interesse dos depositantes, dos investidores, dos demais credores e de todos os clientes em geral”.

Face ao exposto, tendo em vista a promoção de uma gestão sã e prudente, o primeiro mecanismo sempre será o da seleção dos gestores públicos, assente numa avaliação exaustiva e criteriosa que permita aferir a adequação do mem-bro indicado.

De acordo com os artigos 12.º, n.º 1 e 22.º do EGP, os gestores públicos devem cumprir os requisitos de i) idoneidade, ii) mérito profi ssional, iii) com-petências e experiência de gestão, iv) sentido de interesse público, v) qualifi ca-ção (no mínimo, com o grau académico de licenciatura) e vi) independência de espírito, cabendo à Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (“CRESAP”) efetuar essa avaliação, tendo em consideração, entre o mais, questionários de avaliação curricular e declarações de incompatibilidades e impedimentos53.

52 Em especial no que diz respeito às sociedades fi nanceiras, de acordo com o ponto B.1.8. das Orientações (ou mais comumente designadas “Guidelines”) da Autoridade Bancária Europeia (European Banking Authority ou “EBA”) em matéria de governo interno das instituições (“GL 44”), de 27 de setembro de 2011, “O bom desempenho das responsabilidades do órgão de administração e fi scalização é a base de uma gestão sã e prudente da instituição”.No mesmo sentido, o considerando 59 da Diretiva 2013/36/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013 (CRD IV) consagra que “Ao nomearem os membros do órgão de administração, os acionistas ou sócios de uma instituição deverão analisar se os candidatos têm os conhecimentos, qualifi cações e competências necessários para assegurar uma gestão sã e prudente da instituição” e, o artigo 91.º, n.º 8 do mesmo diploma estabelece que “Os membros do órgão de administração devem agir com honestidade, integridade e independência de espírito que lhes permitam avaliar e criticar efetivamente as decisões da direção de topo, quando necessário, e fi scalizar e monitorizar efetivamente o processo de tomada de decisões em matéria de gestão”.O que sucede muitas vezes é que existem iniciativas legislativas, mas que posteriormente, por falta de regulamentação ou controlo, acabam por não ser (corretamente aplicadas e utilizadas), como é o caso da exigência de relatórios estabelecida no ponto 17. da Resolução do Conselho de Ministros n.º 49/2007, entretanto revogada. De acordo com esta norma, “os membros não executivos dos órgãos de administração, os membros do conselho geral e de supervisão ou, quando estes não existam, os membros do órgão de fi scalização devem emitir anualmente um relatório de avaliação do desempenho individual dos gestores executivos, bem como uma apreciação global das estruturas e dos mecanismos de governo em vigor na empresa”, no entanto, não se referia a quem devia ser entregue tal relatório, nem para que efeitos relevava.53 Cf. http://www.cresap.pt/gestores-publicos/cat_view/5-gestores-publicos/13-reguladores.html.

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Tendo em vista a salvaguarda do interesse público, os gestores públicos devem, no exercício das suas funções, estar em condições de garantir, em per-manência, uma gestão sã e prudente, agindo com honestidade, integridade e independência de espírito, razão pela qual a avaliação da sua adequação apenas pode ser feita em concreto. O regime atualmente aplicável e as condições em que tal avaliação de adequação é efetuada podem ser melhorados, no entanto, não cabe na economia do presente documento debruçarmo-nos sobre esses aspetos ou sobre a forma como tal avaliação é feita pela CRESAP e como pro-cede à densifi cação dos referidos critérios.

Um outro mecanismo para procurar garantir uma gestão sã e prudente advém da existência de gestores não executivos54. Assim, enquanto aos admi-nistradores executivos cabe a gestão do dia-a-dia da sociedade, a tomada das decisões correntes55, inerentes e necessárias à prossecução do respetivo objeto social, a verdade é que as funções dos administradores não executivos e as responsabilidades que estas acarretam, não são menos importantes, embora a prática demonstre que nem sempre são de fácil compreensão e implementação.

Assim, e no que nos parece relevante destacar no âmbito deste documento, além dos deveres de cuidado e diligência acima referidos, cabe aos administra-dores não executivos56, nos termos do n.º 8 do artigo 407.º do CSC, a “[…] vigilância geral da atuação do administrador ou administradores delegados ou da comis-são executiva e, bem assim, pelos prejuízos causados por atos ou omissões destes, quando,

54 A lei não defi ne o conceito de gestores públicos não executivos, dispondo apenas o EGP, no seu artigo 21.º, que são gestores públicos não executivos os administradores designados nessa condição, podendo, no entanto, recorrer-se ao artigo 407.º, n.º 8, do CSC, disposição que enquadra as funções dos administradores executivos e não executivos, constituindo o ponto de partida para a adequada compreensão do seu papel vital, conforme melhor veremos abaixo.55 No conceito de “gestão corrente” não deve caber a chamada “alta administração”, entendida como a realização de escolhas estratégicas para a sociedade e a defi nição dos seus objetivos gerais – cf. Alexandre de Soveral Martins, “Soft? ; Not soft enough? ; Too soft? : leitura crítica de algumas soluções contidas nos códigos de Governo das Sociedades em Portugal (em 15 minutos)”, in: III Congresso Direito das Sociedades em Revista, 2014, p. 346, defendendo este autor que “(…) pode surgir nos administradores que não são membros da comissão executiva ou delegados a convicção de que pouco ou nada têm que fazer relativamente à atividade dos que o são. Aliás, é isso que vemos por vezes dito pelos que procuram alijar as suas responsabilidades, afi rmando que o delegado ou o presidente da comissão executiva é que tratavam de tudo ou que eram muito autoritários ou centralizadores” – cf. p. 349.56 Além disso, no que diz respeito à situação dos gestores públicos que são membros da comissão de auditoria, há que ter em atenção, além do mais, os deveres que lhes são especialmente impostos por integrarem aquele órgão. Para mais veja-se Alexandre de Soveral Martins, “Administradores-delegados e comissões executivas. Algumas considerações”, 2.ª edição, Almedina/IDET, Coimbra, 2011, p. 109.

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tendo conhecimento de tais atos ou omissões ou do propósito de os praticar, não provo-quem a intervenção do conselho para tomar as medidas adequadas” [negrito nosso]57.

Estas funções dos administradores não executivos ganham ainda maior rele-vância quando se atenta ao facto de a delegação de competências de gestão corrente nos administradores executivos não precludir a responsabilidade dos administradores no seu conjunto, incluindo a dos não executivos, pelo exercí-cio das respetivas funções nos termos da lei58.

c) Membros do órgão de fi scalização

Entre 2007 e 2008, na sequência das alterações introduzidas ao CSC, foram aprovados novos modelos de governo societário em 27 entidades do SEE. Esta alteração visou concretizar, no sector empresarial do Estado, as mudanças já introduzidas no sector privado através da reforma do CSC, que alterou o modelo de fi scalização das empresas em função das melhores práticas interna-cionais de bom governo, corporizando o reforço da fi scalização de (i) maté-rias fi nanceiras e outras que lhes são adjacentes59_60, como sejam, a fi scalização do (ii) processo de relato fi nanceiro, da (iii) efi cácia dos sistemas de controlo interno (adequado à sua dimensão, características e complexidade da sua ati-vidade), de auditoria interna (tomando e propondo as medidas adequadas para corrigir quaisquer defi ciências detetadas nos mesmos) e de gestão de riscos.

Resulta, assim, que o enquadramento jurídico do governo societário atri-bui um papel essencial aos membros do respetivo órgão de fi scalização, aos

57 Sobre este dever de vigilância, veja-se Maria Elisabete Ramos, “Responsabilidade Civil dos administradores e diretores de sociedades anónimas perante os credores sociais”, pp. 113. e ss.58 Finalmente, uma última referência às boas práticas em matéria de administração não executiva das sociedades em geral, que têm por missão a proteção do interesse público, quando recomendam a existência no órgão de administração de um número adequado de administradores independentes. A este respeito veja-se o Código do Governo das Sociedades da CMVM e o Código de Governo do Instituto Português de Corporate Governance.59 Cf. artigos 420.º, n.º 1, al. i), 423.º-F e 441.º do CSC.60 Por exemplo, o n.º 4 do artigo 33.º do RJSPE, estabelece que sem prejuízo do que se encontrar previsto nos estatutos, “[…] o conselho de administração das empresas públicas obtém parecer prévio favorável do conselho fi scal para a realização de operações de fi nanciamento ou para a celebração de atos ou negócios jurídicos dos quais resultem obrigações para a empresa superiores a 5% do ativo líquido, salvo nos casos em que os mesmos tenham sido aprovados nos planos de atividades e orçamento”. Além disso, de acordo com o artigo 54.º do RJSPE, as empresas públicas apresentam anualmente relatórios de boas práticas de governo interno competindo aos órgãos de fi scalização aferir no respetivo relatório o cumprimento da exigência de que dele conste informação atual e completa sobre todas as matérias reguladas pelo capítulo de governo interno do RJSPE.

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quais cabe, em conjunto e articulação com os administradores não executivos, a efetiva supervisão interna de uma gestão e de um sistema de controlo interno adequados às características das empresas públicas.

Adicionalmente, importa referir que as empresas públicas que sejam enti-dades gestoras de fundos ou que durante dois anos consecutivos, apresentem um volume de negócios superior a € 50 000 000, ou um ativo líquido total superior a € 300 000 000 são consideradas entidades de interesse público61, e, consequentemente, “a) Devem incluir pelo menos um membro que tenha habilitação académica adequada ao exercício das suas funções e conhecimentos em auditoria ou conta-bilidade; b) Os seus membros devem ter, no seu conjunto, formação e experiência prévias no sector em que opera a entidade; e c) A maioria dos seus membros, incluindo o presi-dente, deve ser considerada independente, nos termos do n.º 5 do artigo 414.º do Código das Sociedades Comerciais.”62 A esta exigência relativa à fi scalização das entidades de interesse público acresce, desde 1.1.2016, a exigência de que o respetivo presidente seja formalmente independente, sendo porém de reter que a entrada em vigor do novo regime “não implica a cessação dos mandatos em curso dos titulares dos órgãos de fi scalização das entidades classifi cadas de interesse público ao abrigo da mesma, nem afeta, até à data prevista para a renovação ou cessação dos respetivos man-datos, a atual estrutura e composição dos referidos órgãos”. No entanto, as empresas públicas consideradas entidades de interesse público, cujos mandatos tenham terminado a 31.12.201563 deverão adaptar a sua estrutura imediatamente no mandato que se inicia em 2016 ou, nos casos em que o mandato ainda esteja em curso, no próximo.

B. Controlo interno

a) Enquadramento

O conceito de controlo interno é transversal e, apesar da multiplicidade de conceitos que a doutrina e diversas entidades elaboraram, em termos sinté-ticos, poderíamos dizer que consiste num processo que deve ser colocado em

61 Cf. artigo 3.º, al. l) do RJSA. 62 Cf. artigo 3.º da Lei n.º 148/2015, de 9 de setembro.63 A este propósito considera-se que se deve seguir o entendimento plasmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no proc. 4699/2008-1, de 9.9.2008, de acordo com o qual “ a duração do mandato dos administradores por três anos signifi ca que corresponde a um triénio, com início em 1 de Janeiro do ano x e termo em 31 de Dezembro do ano x+3, e não com começo no dia do início de funções” (disponível online).

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prática por todos os que trabalham na empresa (a começar pelos membros dos órgãos sociais) e que tem como objetivo a promoção da efi cácia e efi ciência das operações, o desenvolvimento de relatos fi nanceiros fi áveis e a certifi cação de que estes relatos e restantes informações estão em conformidade com a lei e regulamentos aplicáveis64_65.

64 Cf. American Institute of Certifi ed Public Accountants – Statement of Auditing Standards (“SAS”) n.º 109: Understanding the Entity and its Environment and Assessing the Risks of Material Misstatements, disponível em http://www.aicpa.org/research/standards/auditattest/downloadabledocuments/au-00314.pdf Em sentido semelhante veja-se a defi nição adotada pela Ordem dos Revisores Ofi ciais de Contas em Portugal, na sua Diretriz de Revisão/Auditoria 410, de maio de 2010, sobre controlo interno, disponível em http://www.infocontab.com.pt/download/DRA/DRA410.pdf , p. 2.Paulo Câmara, citando Paolo Montalenti, La Societá Quotata, in Gastone Cottino (org), Trattato di Diritto Commerciale, Vol. IV, Padova, 2004, p.227, afi rma que se pode defi nir controlo interno como o conjunto de normas organizativas e de práticas dirigido a proporcionarem garantia razoável (reasonable assurance) quanto ao cumprimento dos objetivos da sociedade, segundo cânones de transparência, efi cácia e regularidade de funcionamento societário – cf. “A auditoria interna e o governo das sociedades”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha, 2010, p. 305.65 O objetivo da estrutura de controlo interno é, desde logo, i) diminuir riscos inerentes às atividades das sociedades, mas também ii) proteger os stakeholders, permitindo um escrutínio rigoroso do desempenho da gestão, iii) incrementar a prestação de contas efi ciente pelo órgão de administração e iv) aumentar a efi ciência da supervisão. O Tribunal de Contas acrescenta ainda como objetivos do controlo interno i) o registo e atualização do imobilizado da entidade; ii) a promoção da integralidade e exatidão dos registos contabilísticos; iii) o alcance de uma imagem fi el das demonstrações fi nanceiras; e iv) a promoção da efi cácia da gestão e a qualidade da informação – Cf. Manual de Auditoria e Procedimentos, vol. I, 1999, disponível em http://www.tcontas.pt/pt/actos/manual/manual.pdf , p. 48. Para mais, veja-se Paulo Câmara, “A auditoria interna e o governo das sociedades”, ob cit., p. 304 e Carlos Baptista da Costa, Auditoria fi nanceira – Teoria e prática, 8.ª ed., p. 100. Em meados dos anos 80 foi constituída uma comissão por iniciativa privada – a National Comission on Fraudulent Financial Reporting, presidida por James Treadway Jr., razão pela qual a Comissão fi cou conhecida por Treadway Commission, cujo trabalho foi seguido pelo Commitee of Sponsoring Organization ofthe Treadway Comission (“COSO”) – e, segundo o modelo defi nido, o controlo interno integrava cinco componentes que se interrelacionam. Os primeiros quatro componentes (ambiente de controlo, avaliação de risco, atividades de controlo e informação e comunicação) estão relacionados com a operacionalização do controlo interno. O quinto componente (monitorização) tem como objetivo principal garantir que o controlo interno opera de forma efetiva – cf. Thomas Olach e Shayamini Weeramantri, How COSO has improved internal controls in the United States, Internal Auditing, 24, 3-12.Em 2004 o COSO apresentou um novo modelo intitulado “Risk Management – Integrated Framework”, na sequência dos estudos e relatórios que foram sendo feitos pela Treadway Comission, contribuindo para a expansão do controlo interno focando o papel da gestão de risco no sucesso das organizações. A partir deste momento, o controlo interno passou a ser compreendido à luz de

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O governo interno de uma sociedade exige que a sua estrutura organizacio-nal consiga (i) defi nir, de modo claro e objetivo, a cadeia hierárquica e das res-ponsabilidades, (ii) assegurar a segregação de funções e (iii) defi nir claramente os deveres de todos os intervenientes, de modo a evitar potenciais confl itos de interesses. A este propósito importa recordar o modelo das “três linhas de defesa”, nas quais se pode dividir o controlo interno: i) gestão operacional, ii) gestão de risco e compliance e iii) auditoria interna.

Começando pela primeira linha de defesa, as unidades de negócio e áreas operacionais de uma empresa são responsáveis pela identifi cação, assunção e gestão ongoing do risco, designadamente identifi cando, avaliando e reportando as exposições inerentes aos produtos ou serviços, atividades, processos e siste-mas da sua competência, tendo em conta o perfi l de risco da empresa e as suas políticas, processos e controlos.

O funcionamento da primeira linha de defesa é revelador da cultura de risco das sociedades, cabendo ao órgão de administração promover uma forte adesão a limites e à gestão de exposição ao risco.

Em complemento, como segunda linha de defesa, surgem a função de ges-tão de risco e a função de compliance, que assumem um papel transversal através da sua responsabilidade de monitorização e reporte.

Por fi m, a terceira linha de defesa é constituída por uma função de auditoria interna, forte e independente, que desafi e os controlos de gestão de risco das instituições, bem como os seus processos e sistemas, sendo vital para assegurar um adequado governo interno, uma cultura de risco sólida e o necessário fl uxo de comunicação, nomeadamente entre as três linhas de defesa e entre estas e os órgãos sociais. No presente capítulo centrar-nos-emos na segunda e terceira linha de defesa dando especial enfoque à função de auditoria interna.

b) Gestão de riscos

De acordo com o ponto 19. da Resolução do Conselho de Ministros n.º 49/2007, de 28 de março – que tratava dos “Princípios de Bom Governo das Empresas do Setor Empresarial do Estado” e que foi revogada pelo RJSPE, pas-sando tais princípios agora a estar integrados neste diploma legal – “o órgão de administração deve criar e manter um sistema de controlo adequado à dimensão e à com-plexidade da empresa, em ordem a proteger os investimentos da empresa e os seus ativos.

sete componentes: ambiente de controlo; defi nição de objetivos; identifi cação de eventos; resposta ao risco; atividades de controlo; informação e comunicação e monitorização.

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Tal sistema deve abarcar todos os riscos relevantes assumidos pela empresa” [sem negrito no original].

É neste enquadramento que se procura assegurar que o sistema de gestão de riscos66 implementado no seio de uma instituição consiga (i) identifi car todos os riscos relevantes a que a mesma está exposta e (ii) prestar informação atem-pada sobre aqueles, possibilitando que as conclusões obtidas com as análises de gestão de riscos infl uenciem ativamente as decisões, quer estas sejam tomadas ao nível do conselho de administração ou ao nível da direção de topo. Cada empresa do SEE tem o seu próprio perfi l de risco, que lhe cabe conhecer e gerir, assegurando que as decisões que toma são devidamente sustentadas e não extravasam esse perfi l. Obviamente que para conseguir uma boa capacidade de gestão de riscos a empresa necessita de investir em algumas áreas, como os recursos humanos, informática e cultura de gestão de riscos.

A função de controlo de riscos assegura que as unidades pertinentes da instituição identifi cam e gerem adequadamente cada risco importante que esta enfrenta, bem como a apresentação ao órgão de administração e fi scalização de uma perspetiva holística sobre todos os riscos relevantes. Esta função é um ele-mento organizativo essencial da instituição e está estruturada de modo a poder aplicar políticas em matéria de risco e controlar o quadro de gestão de riscos.

Mais do que assentar na vigilância dos diversos tipos de riscos materiais de uma instituição, deve refl etir a importância que os responsáveis por funções na primeira linha de defesa atribuem à identifi cação, avaliação, gestão, monitoriza-ção e mitigação dos riscos das atividades desenvolvidas. A função de gestão de riscos é, assim, um elemento essencial da boa governação das empresas do SEE, devendo estas instituir esta função de modo autónomo e esta deve identifi car e compreender os riscos a que estão expostas, determinando os seus níveis de tolerância ao risco e defi nindo estratégias destinadas a melhor gerir, mitigar e controlar esses riscos.

A liderança da função de gestão de riscos deve ser atribuída a um respon-sável67, o qual, considerando as competências e responsabilidades atribuídas aos

66 De acordo com o Commitee of Sponsoring Organizations of the Treadway Comission (“COSO”), gestão de risco é um processo desenvolvido pela Administração (e outras pessoas), aplicado na defi nição estratégica ao longo da organização, desenhado para identifi car potenciais eventos que podem afetar a entidade e gerir os riscos para níveis aceitáveis, fornecendo uma garantia razoável de que os objetivos da organização serão alcançados – p. 2, disponível em http://www.coso.org/documents/coso_erm_executivesummary.pdf .67 Mariana Abrantes de Sousa, no entanto, identifi ca aí uma desvantagem relacionada com a “[…] acumulação de um nível de gestores não comerciais, a que se somam custos diretos, de burocracia e também uma menor rapidez de resposta” – cf. “A gestão de riscos de crédito como principal fator de sucesso bancário”, Revista da Banca, Lisboa, n. 23(Jul.-Set.1992), p. 35.

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órgãos sociais em matéria de controlo interno, deverá ter acesso direto aos órgãos de administração e fi scalização, reportando-lhes periodicamente o exer-cício da sua atividade, ainda que, no caso do órgão de administração, este possa ter delegado num dos seus membros executivos ou num comité especializado responsabilidades em matéria de gestão de risco (caso do Comité de Risco).

c) Compliance

Enquanto à administração cabe defi nir e difundir (em articulação com a direção de topo) uma política de compliance devidamente fundamentada, à fun-ção de compliance compete assegurar que o cumprimento das obrigações legais, regulamentares e recomendatórias, bem como das diretrizes internas é contro-lado de forma autónoma, independente e permanente. Esta função compete a um responsável de compliance a quem devem ser atribuídos poderes e recursos materiais adequados, bem como recursos humanos sufi cientes e devidamente qualifi cados e amplo acesso a informação e documentação para o exercício das suas funções.

De acordo com o ponto 11. da Resolução do Conselho de Ministros n.º 49/2007 (entretanto revogada), “as empresas detidas pelo Estado devem cumprir a legislação e a regulamentação em vigor. O seu comportamento deve, em particular, ser eticamente irrepreensível no que respeita à aplicação de normas de natureza fi scal, de branqueamento de capitais, de concorrência, de proteção do consumidor, de natureza ambiental e de índole laboral, nomeadamente relativas à não discriminação e à promoção da igualdade entre homens e mulheres”, o que estabelece um objetivo bastante ambicioso.

À semelhança do que acontece relativamente à função de gestão de riscos, também a função de compliance deve ter acesso direto aos órgãos de adminis-tração e fi scalização, aos quais deverá reportar periodicamente o exercício da sua atividade, ainda que, no que respeita ao órgão de administração, este tenha delegado num dos seus membros responsabilidades executivas em matéria de compliance.

d) Auditoria interna

A terceira linha de defesa consiste numa função de auditoria interna68 à qual, entre o mais, cabe efetuar uma revisão independente e objetiva da qua-

68 A defi nição para auditoria interna (mais simples), foi aprovada em junho de 1999, pelo Conselho de Administração do Institute of Internal Auditors (“IIA”) – cf. https://na.theiia.org/standards-

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lidade e efi cácia do sistema de controlo interno, da primeira e segunda linha de defesa e do enquadramento de gestão de risco69, incluindo a ligação para a cultura da organização, bem como a estratégia comercial e processo de tomada de decisão70.

De acordo com o ponto 16. da Resolução do Conselho de Ministros n.º 49/2007 (entretanto revogada), “as empresas de maior dimensão e complexidade devem especializar a função de supervisão através da criação de comissões especializadas, entre as quais se deve incluir uma comissão de auditoria ou uma comissão para as maté-rias fi nanceiras consoante o modelo de governo adotado”71_72.

guidance/mandatory-guidance/Pages/Defi nition-of-Internal-Auditing.aspx, na qual, mais do que a simples fi scalização do controlo interno, assume especial relevância a avaliação dos processos de gestão do risco e da governação.Até 1999, o “International Professional Practices Framework“ (“IPPF”) defi nia auditoria interna como “an independent appraisal function established within an organization to examine and evaluate its activities as a service to the organization. The objective of internal auditing is to assist members of the organization in the eff ective discharge of their responsibilities. To this end, internal auditing furnishes them with analyses, appraisals, recommendations, counsel and information concerning the activities reviewed. The audit objective includes promoting eff ective control at reasonable cost”. 69 No Relatório da Auditoria “A função de Auditoria Interna no SEE”, do Tribunal de Contas, o Instituto Português de Auditoria Interna (“IPAI”), considera discutível a afi rmação de que a auditoria interna hoje tem esta função (de supervisão da gestão do risco), porquanto “esse é um dos papéis possíveis, mas apenas quando a organização não dispõe de um gestor de risco dedicado, o que deveria acontecer… na banca a existência dessa função é obrigatória” – cf. p. 22 do referido Relatório.70 Historicamente, a auditoria interna em serviços públicos tem sido encarada apenas como um simples procedimento administrativo, principalmente composto por verifi cações de documentos, contagens de ativos, e reportes sobre eventos ocorridos – cf. Joaquim José dos Santos Alves, Auditoria no Sector Público: uma análise ao sistema português, citando Gausberghe, C. (2005). Internal Auditing in Public Sector, Internal Auditor, August, 69-73.71 Inicialmente cometia-se à auditoria interna, sobretudo as funções de salvaguarda dos ativos das empresas, a verifi cação do cumprimento dos procedimentos estabelecidos pelo órgão de gestão e a constatação acerca da credibilidade da informação fi nanceira, dando-se também grande ênfase à detenção de fraude. Ou seja, o trabalho dos auditores internos era relativamente limitado, cingindo-se à área contabilístico-fi nanceira – para mais sobre esta matéria veja-se Carlos Baptista da Costa, “Auditoria fi nanceira: teoria e prática”, 7.ª ed., Lisboa, Rei dos Livros, 2003. 72 A criação, em 1941, nos Estados Unidos da América, do Institute of Internal Auditors (“IIA”), foi determinante para o desenvolvimento da atividade em termos mundiais, tendo sido dado outro passo importante em 1978 com a aprovação dos “Standards for the professional practice of internal auditing”, no qual se defi niu auditoria interna como “uma função de apreciação independente, estabelecida dentro de uma organização, como um serviço para a mesma, para examinar e avaliar as suas atividades. O objetivo da auditoria interna é o de auxiliar os membros da organização no desempenho efi caz das suas responsabilidades. Com esta fi nalidade, a auditoria interna fornece-lhes análises, apreciações, recomendações, conselhos e informações respeitantes às atividades analisadas”.

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Onde anteriormente a auditoria interna apenas detinha o papel de assegurar que os procedimentos e controlos eram cumpridos, relatando nada mais do que factos e identifi cando erros, hoje tem uma função de supervisão dos controlos e dos processos de governação, tal como decorre do conceito emanado pelo IIA: “A Auditoria Interna é uma atividade independente, de garantia e de consultoria, destinada a acrescentar valor e a melhorar as operações de uma organização. Ajuda a organização, a alcançar os seus objetivos, através de uma abordagem sistemática e disci-plinada, na avaliação e melhoria da efi cácia dos processos de gestão de risco, de controlo e de governação”.

De acordo com o IIA, a auditoria do sector público tem vindo a ampliar o seu enfoque, que passou para o controlo de sistemas, operações e programas, cada vez maiores e mais complexos, exigindo cada vez mais dos auditores e da auditoria interna. Por outras palavras, os modelos societários que visam assegu-rar a efetiva segregação de funções de administração e de fi scalização, especia-lizando as funções de supervisão e de auditoria, através da criação de comissões especializadas, de entre as quais se destaca a “Comissão de Auditoria”, altera-ram completamente o paradigma da função de auditoria interna, passando de assessor de conformidade, para o de parceiro estratégico da gestão executiva das organizações73_74.

A função de auditoria interna assume um papel fundamental, devendo ter um caráter permanente e atuar com independência, sendo responsável por facultar informação rigorosa aos órgãos sociais, alertando o órgão de adminis-

73 Cf. “A função de Auditoria Interna no SEE”, do Tribunal de Contas, p. 22.74 Ainda de acordo com o IIA, a auditoria do sector público exerce funções ligadas à i) supervisão, ii) deteção, iii) dissuasão e iv) aconselhamento. No contexto da supervisão, a auditoria ajuda a avaliar o seguinte: se as entidades do SEE aplicam os fundos no que devem e em conformidade com leis e regulamentos; se estão implementados controlos efi cazes para minimizar os riscos; se os programas de execução fi nanceira e programática foram alcançados; e se há adesão às regras da organização e aos seus objetivos. Ainda neste contexto, a auditoria proporciona acesso a informações de desempenho das entidades públicas e avalia os processos de gestão dos riscos e a efi cácia dos controlos para atingir os objetivos e evitar riscos. Na vertente da deteção, a auditoria identifi ca atos inadequados, inefi cientes, ilegais, fraudulentos ou abusivos e recolhe evidências para apoiar decisões de processos criminais, ações disciplinares, ou outras medidas. No capítulo da dissuasão a auditoria é utilizada numa vertente que diríamos ser preventiva, para identifi car e reduzir as condições que permitem a corrupção, através da avaliação dos controlos e dos riscos, e também, da análise das alterações propostas às leis, regras e procedimentos, assim como da revisão de contratos para identifi car potenciais confl itos de interesse.Cf. The Role of Auditing in Public Sector Governance, IIA, November 2006.

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tração para informação relevante e procurando prevenir irregularidades75. Isto é, procura examinar e avaliar a adequação e a efi cácia das diversas componentes do sistema de controlo interno da instituição, bem como do sistema de con-trolo interno como um todo, emitir recomendações baseadas nos resultados das avaliações realizadas e verifi car a efetiva implementação; e contribuir para o conteúdo do relatório de controlo interno, com uma síntese das principais defi ciências detetadas, ainda que sejam imateriais quando considerados isolada-mente, podem evidenciar tendências de deterioração do sistema de controlo interno, bem como indicando e identifi cando as recomendações que foram seguidas e justifi cando as que não foram.

Os auditores internos devem exercer as suas funções de forma indepen-dente em relação aos serviços da organização que são objeto da sua atenção76, permitindo-lhe realizar as suas tarefas de forma livre e objetiva. Daí que se entenda que devem depender diretamente do órgão de gestão e não de qual-quer Direção. À semelhança do que acontece relativamente às funções de ges-tão de riscos e compliance, também a função de auditoria interna deve ter acesso direto aos órgãos de administração e fi scalização, aos quais deverá reportar periodicamente o exercício da sua atividade77, ainda que, no que respeita ao

75 De acordo com o Relatório da Auditoria “Função de Auditoria Interna no SEE”, do Tribunal de Contas, p. 19, das empresas inquiridas, em mais de metade foi referido que a auditoria interna ainda não prestava o apoio desejável na prevenção e deteção da fraude, mas que tenderia a melhorar com a implementação de políticas de Gestão de Risco de Fraude e do plano de prevenção de risco de gestão, que inclui riscos de corrupção e infrações conexas.76 O auditor interno é um funcionário da sociedade, estando, normalmente, vinculado a esta através de contrato de trabalho (assim se distinguindo do auditor externo). Os responsáveis pela função de auditoria interna têm de ser qualifi cados – sendo vantajoso que fossem certifi cados pelo IIA e ISACA (“Information Systems Audit and Control Association”) para o exercício cabal da função – e independentes, designadamente das funções operacionais objeto da sua atuação, não devendo estar envolvidos, designadamente, na gestão de riscos e na aprovação das suas operações. No Relatório de auditoria “Função de auditoria interna no SEE do Tribunal de Contas”, p. 17, verifi cou-se que alguns auditores internos tinham exercido anteriormente cargos de chefi a, situação que potencia o risco para a independência das operações das unidades de auditoria interna e que não se coaduna com a Prática Recomendada 1130.A1-1 o IIA e, de acordo com o “Enquadramento Internacional de Práticas Profi ssionais de Auditoria Interna” do IPAI, “os auditores internos deverão abster-se de avaliar operações específi cas cuja responsabilidade lhes havia sido anteriormente confi ada. Considera-se que a objetividade é prejudicada quando um auditor interno avalia uma atividade perante a qual fora responsável durante o ano precedente” – cf. p. 19.77 Esta função está numa posição privilegiada que lhe permite ter um conhecimento extensivo de toda a empresa, linhas de comunicação direta com a gestão de topo, assim como experiência e competências adequadas. “Os auditores internos têm que possuir o conhecimento adequado para avaliar o risco de fraude e a forma como ele é gerido pela organização, mas não se espera que disponham da perícia de uma pessoa cuja responsabilidade principal seja a deteção e a investigação da fraude” – cf. prática n.º 1210.A2,

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órgão de administração, este tenha delegado num dos seus membros ou num comité especializado responsabilidades em matéria de auditoria interna.

No entender do Tribunal de Contas78, em 2008, em regra, as empresas estatais não tinham assimilado, na sua essência, o conceito de Auditoria Interna (“AI”) do IIA, como “uma atividade independente de avaliação objetiva e de consul-tadoria, que tem como objetivo acrescentar valor e melhorar as operações de uma organi-zação”, nem tão pouco seguiam as melhores práticas e exigências profi ssionais internacionais, não obstante o enfoque e o reforço dado à função de AI por via legislativa, em matéria de governo.

Nesse sentido, veja-se que apesar da aparência, existem diversas formas que levam a que, de facto, na realidade, as empresas acabem por não cumprir as boas práticas. Vejamos alguns exemplos. Apesar de 16 das 20 empresas inquiridas pelo Tribunal de Contas terem revelado possuir uma unidade orgânica de AI, constatou-se desde logo que apenas 5 demonstraram conhecer a total amplitude do conceito de AI do IIA e aplicá-lo, ma vez que as restantes limitavam a sua atividade à simples fi scalização do controlo interno, descurando aspetos como a avaliação dos processos de gestão do risco e da governação.

Em segundo lugar, em metade das 16 empresas a função de AI limitava-se apenas à fi scalização do Sistema de Controlo Interno (“SCI”), subvalorizando o seu papel como parceiro estratégico de gestão.

Mais. De nada vale a AI reportar diretamente ao Conselho de Adminis-tração, de molde a garantir a independência de acesso sem restrições aquele órgão, se não integrarem membros não executivos. Nesse caso, a indepen-dência daquelas unidades poderá fi car prejudicada, na medida em que uma Comissão de Auditoria, a existir, seria composta por membros não executivos.

p. 20, disponível em http://www.ipai.pt/fotos/gca/ippf_2009_port_normas_0809_1252171596.pdf – “Enquadramento Internacional de Práticas Profi ssionais de Auditoria Interna”, IPAI, edição em janeiro de 2009 e tradução revista em agosto de 2009. No relatório de auditoria sobre a “Função de auditoria interna do SEE”, do Tribunal de Contas, p. 16, foi detetado que, “em regra, nas empresas da amostra, a AI reportava funcionalmente à gestão de topo, não sendo defi nida com clareza a distinção entre os órgãos a quem reportavam funcional e administrativamente, como é expressamente recomendado pelo IPAI” e que apenas 4% das vinte empresas inquiridas possuíam uma Comissão de Auditoria, tendo-se verifi cado que num caso, a proposta de estatuto para o funcionamento da atividade de Auditoria Interna partiu da Direção de Gestão da Qualidade, o que confi gura uma situação delicada, por propor normas para o exercício da Auditoria Interna, quando concebe e gere processos com riscos e controlos associados e como unidade gestora, pertencendo ao universo auditável pela Auditoria Interna. Por outro lado, também se verifi cou em quatro empresas que a responsabilidade de propor e de aprovar o estatuto coube ao mesmo órgão, o que põe em causa o princípio da segregação de funções.78 No relatório de auditoria sobre a “Função de auditoria interna do SEE”, do Tribunal de Contas, p. 15.

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Nas empresas da amostra da auditoria efetuada pelo Tribunal de Contas, a AI reportava funcionalmente à gestão de topo, não sendo defi nida com cla-reza a distinção entre os órgãos a quem reportavam funcional e administrativa-mente, como é expressamente recomendado pelo IPAI.

Veja-se que também não se pode considerar que uma empresa está a cum-prir as boas práticas se afi rma que tem uma unidade orgânica de AI, mas não tem (formalmente) aprovado um estatuto para o funcionamento da atividade de AI ou, se a proposta de estatuto tiver cabido à Direção de Gestão da Qualidade, uma vez que esta propor normas para o exercício da AI, quando concebe e gere processos com riscos e controlos associados e como unidade gestora, pertence ao universo auditável pela própria AI.

Por último, se a responsabilidade de propor e de aprovar o estatuto couber ao mesmo órgão, isso porá em causa o princípio da segregação de funções. Ou se os auditores internos tiverem exercido anteriormente cargos de chefi a, potenciar-se-á uma situação de risco para a independência das operações das Unidade de Auditoria Interna79, uma vez que, com grande probabilidade a AI irá analisar situações que foram os próprios auditores a autorizar antes, nos seus lugares de chefi a.

Ora, como é possível detetar e colmatar este tipo de falhas? Apenas com uma supervisão contínua forte que acompanhe as empresas públicas e que tenha poderes para impor uma alteração atempada dos modelos das instituições. Por essa razão passamos a analisar o modelo de supervisão existente para que melhor se possa compreender o seu papel e como pode ser melhorado.

V. Supervisão80

a) Ponto prévio

A importância do controlo interno em qualquer organização é inquestioná-vel. Contudo, é fundamental proceder à certifi cação do controlo interno, atra-vés do controlo externo, na medida em que aquele é suscetível de manipulação,

79 E que não se coaduna com a Prática Recomendada 1130.A1-1 do IIA.80 Ainda que a propósito de um setor muito específi co, nas palavras de Luís Guilherme Catarino, citando Garcia de Enterria, Curso de Derecho Administrativo, Tomo II, 2000, p. 105 “a supervisão assenta sobremaneira na possibilidade de controlo e vigilância dos administrados [as sociedades supervisionadas], num ambiente dominado pela vigência de princípios constitucionalmente consagrados de liberdade (de empresa, de iniciativa, de associação, de profi ssão, de acesso aos diversos sectores de produção), liberdade que tem como contrapartida limitações para controlo do exercício de direitos (comunicações, autorizações, imposição de prestações obrigatórias como as informações periódicas” – cf. Regulação e Supervisão dos Mercados e Instrumentos

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tendo em conta não só as suas limitações, mas também a sua íntima associação à gestão81. Os acontecimentos económicos e fi nanceiros verifi cados nos últimos anos, respeitantes ao Estado e às contas públicas, nomeadamente aqueles que estão relacionados com a transmissão de uma visão não real das condições das empresas, levou à necessidade de serem criadas normas e mecanismos que pro-movam uma visão mais real e fi dedigna da situação económica das empresas, designadamente as do SEE.

Exige-se, assim, uma validação e certifi cação da legalidade e regularidade das operações fi nanceiras públicas, bem como uma fi scalização de toda a ges-tão fi nanceira das empresas82 (incluindo a informação prestada pelo controlo interno, a qual só possível através da existência de um controlo externo livre e independente83.

Ao modelo de controlo interno referido acima, nas empresas do SEE tem de acrescer, assim, um outro, externo, estruturado em três níveis84:

Financeiros – fundamento e limites do governo e jurisdição das autoridades independentes, Almedina, 2010, p. 270, nota de rodapé 176. Ou, mais adiante, nas pp. 280, 287 e 288: “[a] Supervisão traduz a atuação da Administração tendo vista assegurar que os agentes que operam num determinado setor (ou sistema) económico cumprem o estabelecido para o exercício da sua atividade e do mercado onde opera (controlo e vigilância), assegurando o interesse público e a proteção dos direitos e garantias dos administrados que entram em relação”.81 Cf. Joaquim José dos Santos Alves, Auditoria no setor público…, p. 5.82 O controlo externo não se limita apenas a fi scalizar a legalidade e regularidade das operações fi nanceiras públicas, mas fi scaliza igualmente toda a gestão fi nanceira das empresas do SEE (e todas as entidades que benefi ciam de fundos públicos), cabendo-lhe as responsabilidades mais elevadas no que respeita à auditoria pública – Cf. Armindo Fernandes da Costa, José Manuel Pereira e Sílvia Ruíz Blanco, Auditoria do setor público no contexto da nova gestão pública, Revista de Estudos Politécnicos, 5, 2006, pp. 201- 225.83 A este propósito e para um maior aprofundamento do tema, veja-se Susana Brandão e Carlos Santos, Impacto do controlo interno no controlo externo, no âmbito do “XV Encontro da Asociación Española de Contabilidad y Administración de Empresas – Novos caminhos para a Europa: O papel das empresas e dos governos”, no painel paralelo sobre sistemas de gestão e controlo, 2012, disponível em http://www.aeca1.org/xvencuentroaeca/cd/62d.pdf84 Carlos Moreno, “O controlo externo dos dinheiros públicos em Portugal”, ob. cit., p 44, refere-se ao sistema de controlo interno da administração fi nanceira do Estado, colocado na dependência do Governo e em especial articulação com o Ministério das Finanças, que compreende os domínios orçamental, económico, fi nanceiro e patrimonial e visa assegurar o exercício coerente e articulado do controlo no âmbito da Administração Pública. Conforme referido, o controlo interno consiste na verifi cação, acompanhamento, avaliação e informação sobre a legalidade, regularidade e boa gestão, relativamente a atividades, programas, projetos, ou operações de entidades de direito público ou privado, com interesse no âmbito da gestão ou tutela governamental em matéria de fi nanças públicas, nacionais e comunitárias, bem como de outros interesses fi nanceiros públicos nos termos da lei.

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i) operacional ou autocontrolo, centrado nas decisões dos órgãos de ges-tão de cada uma das unidades85;

ii) setorial, centrado no controlo operacional, avalia a adequada inserção das atividades das unidades nos planos globais do respetivo Ministério86; e

iii) estratégico ou de alto nível, exercido horizontalmente a toda a Admi-nistração Financeira do Estado, abarca todo o âmbito das atribuições do Ministério das Finanças e Administração Pública87.

Adicionalmente, pode haver ainda uma outra perspetiva ou modelo, orga-nizando o controlo externo no setor público em três grandes áreas: a nível polí-tico (destacando-se a Assembleia da República88); a nível técnico (auditorias e Tribunal de Contas89); e a nível jurisdicional (efetivação da responsabilidade fi nanceira pelo Tribunal de Contas). Além disso, o controlo externo deve ser pautado por duas grandes características: autonomia, de forma a garantir a sua independência das entidades controladas, e transparência/divulgação, uma vez que todos os resultados devem ser devidamente divulgados90.

Integram o SCI as inspeções-gerais, a Direcção-Geral do Orçamento, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social e os órgãos e serviços de inspeção, auditoria ou fi scalização que tenham como função o exercício do controlo interno.85 O qual é feito nos serviços integrados, pela contabilidade e nos serviços autónomos, para além da contabilidade, pela auditoria e inspeções inseridas no âmbito da respetiva unidade.86 Este controlo é feito pelas inspeções-gerais ou órgãos equiparados de cada Ministério. Os serviços de inspeção e auditoria consagrados em cada Ministério, além de apreciarem a legalidade e a regularidade fi nanceira dos atos praticados pelos seus serviços ou organismos, avaliam ainda a sua gestão e os seus resultados. Estes serviços de inspeção e auditoria, criados no âmbito do Programa de Reestruturação da Administração do Estado (PRACE) têm, também, entre outras, a missão de auditar os sistemas e procedimentos de controlo interno dos serviços e organismos do respetivo Ministério.87 Este controlo é feito pela IGF, pela Direção-Geral do Orçamento e pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.88 Que apresenta igualmente poderes e competências de controlo fi nanceiro, de natureza política, incidindo a sua fi scalização, sobretudo, no acompanhamento da execução orçamental, desde a sua aprovação, passando pela sua execução e terminando no seu encerramento.89 O Banco de Portugal (fi scaliza as atividades das instituições de crédito e sociedades fi nanceiras) e a Ordem dos Revisores Ofi ciais de Contas (regulando as matérias relacionadas com a atividade de auditoria às contas e serviços de empresas ou de outras entidades).90 Cf. Susana Brandão e Carlos Santos, “Impacto do controlo interno…”, p. 7, concluindo os autores que ” foi notório que todos os autores, assim como todas as instituições de controlo, fi scalização e supervisão, consideram importante que haja uma cooperação e complementaridade entre controlo interno e controlo externo. Face às evidências recolhidas podemos afi rmar que o controlo interno tem, de facto, um impacto no controlo externo, não sendo menos ver”.

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b) A Inspeção Geral de Finanças

De acordo com o artigo 2.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 96/2012, de 23 de abril, a IGF tem, entre o mais, por missão assegurar o controlo estratégico da administração fi nanceira do Estado, compreendendo o controlo da legalidade e a auditoria fi nanceira e de gestão, bem como a avaliação de serviços e organis-mos, atividades e programas, e também a de prestar apoio técnico especializado, abrangendo todas as entidades do setor público empresarial

Ao invés de abordarmos em termos genéricos as competências da IGF, preferimos forcar-nos num ponto. A propósito da criação de empresas do SEE, Duarte Schmidt Lino e Pedro Lomba91 referem a existência de “motivações e missões nem sempre evidentes”. Pegando nesse tema, destaca-se, por exemplo, que de acordo com o n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto (que estabelece o Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local e das Par-ticipações Locais), “a constituição de empresas locais e as participações […] devem ser fundamentadas na melhor prossecução do interesse público e, no caso da constituição de empresas locais, também na conveniência de uma gestão subtraída à gestão direta face à especifi cidade técnica e material da atividade a desenvolver”.

É, portanto, defensável que, em caso de incumprimento, o ato de consti-tuição da sociedade possa estar inquinado por vício de falta de fundamentação, erro nos pressupostos de direito ou de facto, acrescentando, assim, um requisito adicional de controlo de legalidade logo à “nascença” da sociedade, cabendo, esse controlo, desde logo à “entidade-mãe” e criadora da sociedade. Posterior-mente, deverá ser a entidade responsável pela sua fi scalização/supervisão e à IGF92.

Porém, a referida necessidade especial de fundamentação não foi consa-grada do mesmo modo no RJSPE para as empresas públicas do SEE, o qual estabelece que para a constituição de empresas públicas é necessária autorização dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das fi nanças e do respe-tivo setor de atividade, antecedido de parecer prévio, mas não vinculativo, da UTAM. Este parecer deve ser emitido com base em estudos técnicos que aferem, designadamente, a viabilidade económica e fi nanceira da entidade a constituir, e identifi cam os ganhos de qualidade e de efi ciência resultantes da

91 Cf. “Democratizar o governo das empresas públicas…” ob. cit., p. 68492 Para mais sobre esta matéria, designadamente sobre a possibilidade de a empresa pública ser criada sob a forma de Decreto-Lei, confi gurando um ato administrativo incluído em ato jurídico-público formalmente legislativo e, como tal sujeito ao controlo de legalidade dos tribunais administrativos – cf. Miguel Assis Raimundo, “As empresas públicas nos tribunais administrativos…”, ob cit., pp. 173 e ss.

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exploração da atividade em moldes empresariais, o que parece estabelecer uma sobreposição da decisão política face à fundamentação (puramente) económica.

Ainda que exista transparência, atendendo a que, nos termos do n.º 1 do artigo 10.º do RJSPE, a constituição de empresas públicas do SEE se processa nos termos e condições aplicáveis à constituição de sociedades comerciais, não há requisitos adicionais que permitam efetuar um de controlo de legalidade nesta fase. O artigo 12.º do RJSPE estabelece como sanção a nulidade no caso de não ter(em) sido obtida(s) a(s) autorização(ões) devidas, no entanto, caso as autorizações tenham sido obtidas, mas em discordância com os pareceres técni-cos, inexiste qualquer vício.

A Resolução do Conselho de Ministros n.º 49/2007, entretanto revogada, tinha defi nido um conjunto de informações que tinha de ser divulgadas pelas empresas públicas, destacando-se a análise de sustentabilidade nos domínios económico, social e ambiental no qual a empresa daria conta da sua estratégia, metas alcançadas e planos de ação para o futuro93. No entanto, a verifi cação da conformidade com o regime legal aplicável apenas cabe à Unidade Técnica no caso das entidades do setor público local, em relação às quais a referida enti-dade deve proceder à verifi cação da atuação – designadamente em termos de diretrizes orçamentais e fi nanceiras legalmente defi nidas, devendo, caso encon-tre alguma desconformidade, informar obrigatoriamente a Inspeção Geral de Finanças para que esta promova a ação inspetiva devida, dever que não ocorre no caso das empresas do SEE.

c) O papel especial do Tribunal de Contas

O Tribunal de Contas é um órgão de soberania e o órgão supremo de con-trolo fi nanceiro externo no plano técnico e jurisdicional, sendo independente – constituindo garantias desta independência o autogoverno e a inamovibilidade e irresponsabilidade dos seus juízes. Ao Tribunal de Contas cabe não apenas uma análise fi nanceira94, mas também uma auditoria “externa” ao funciona-mento do setor empresarial95.

93 Cf. pontos 8. e 10. da referida Resolução.94 De acordo com o n.º 1 do artigo 1.º da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, “o Tribunal de Contas fi scaliza a legalidade e regularidade das receitas e das despesas públicas, aprecia a boa gestão fi nanceira e efetiva responsabilidades por infrações fi nanceiras”, a al. e) do n.º 2 do mesmo diploma estabelece que estão sujeitas à jurisdição e aos poderes de controlo fi nanceiro deste Tribunal as empresas públicas, incluindo as entidades públicas empresariais.95 O Tribunal de Contas dispõe de poderes jurisdicionais ( julgar contas e efetivar responsabilidade fi nanceiras) e não jurisdicionais (de mero controlo fi nanceiro em sentido técnico – as auditorias).

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Em março de 2011 o Tribunal de Contas levou a cabo uma ação de âmbito temático intitulada “ação de controlo à função de Auditoria Interna no Setor Empresa-rial do Estado” sobre vinte entidades do SEE96, uma vez que face ao histórico de auditorias de gestão executadas por aquele tribunal se constatou a existência de defi ciências no desempenho adequado da função de Auditoria Interna naquelas entidades, sendo proveitoso proceder a uma análise da evolução.

Em virtude da publicação de legislação sobre princípios de bom governo e mecanismos de fi scalização alterou signifi cativamente o papel e o posiciona-mento da função de Auditoria Interna nas empresas, passando esta de simples fi scalizador de Sistema de Controlo Interno (“SCI”) a parceiro estratégico de gestão, procurando o Tribunal analisar aspetos ligados ao cumprimento dos critérios da economia, efi ciência e efi cácia.

Dos objetivos da referida auditoria importam-nos particularmente três:

– Caraterizar a função de auditoria interna das entidades do SEE face às melhores práticas internacionais;

– Determinar a infl uência dos modelos de governação, em particular a existência de uma Comissão de Auditoria;

– Avaliar o papel da função de auditoria interna na estrutura de governa-ção, designadamente a sua relação com a Comissão de Auditoria, quando existente.

O Tribunal de Contas concluiu, entre o mais, que “(…) em regra, as empre-sas estatais não assimilaram o conceito do IIA, nem tão pouco existe prioridade no uso da Auditoria Interna para a melhoria dos processos de gestão, limitando-a a simples fi s-calizador do controlo interno e não cumprindo grande parte das melhores práticas interna-cionais”, recomendando ao Estado, entre o mais, que publicasse um documento de boas práticas para orientar as entidades do SEE em matéria de auditoria interna e ao órgão de administração e redinamizar a função de auditoria interna permitindo desempenhar um papel na avaliação da efi cácia de gestão do risco, de controlo e de governação, incentivar a auditoria interna a apoiar a empresa

No entanto, pode haver uma tentativa de impedir que as instituições superiores de controlo, como é o caso do Tribunal de Contas, formulem juízos relativos à substância fi nanceira da gestão de bens públicos “[…] alegando que a legitimidade eleitoral é a única das legitimidades democráticas […], quer fugindo na prática, através de pseudo privatizações e dos mais diversos expedientes de recusa da transparência e ocultação de informação […]. É o último refl exo da sociedade autoritária, que entendia que o Estado não pode ser julgado e que os políticos não respondem perante nada nem ninguém, senão em sede política” – cf. Sousa Franco, O Presente e o Futuro…, ob. cit., pp. 112 e 113. 96 Cf. Relatório de Auditoria n.º 8/2011, disponível em http://www.tcontas.pt/pt/actos/rel_auditoria/2011/2s/audit-dgtc-rel008-2011-2s.pdf

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na prevenção, deteção e reporte das atividade potenciadoras de fraude, garantir a independência, a objetividade e competência técnica dos recursos humanos das Unidades de auditoria interna e estabelecer num documento a medição do desempenho da unidade orgânica de auditoria interna. Em face do exposto, fi ca a questão sobre se o Tribunal de Contas não poderia ter um papel mais interventivo e que permitisse uma resolução mais célere das questões suscitadas, analisando-se, de seguida, o papel do Banco de Portugal e a sua intervenção no âmbito do setor bancário e fi nanceiro.

d) A supervisão das sociedades fi nanceiras do SEE pelo Banco de Portugal

Em Portugal, a supervisão direta das instituições nacionais consideradas signifi cativas à luz do Regulamento que estabelece o Mecanismo Único de Supervisão97 – como é o caso da Caixa Geral de Depósitos, S.A. e do Caixa – Banco de Investimento, SA – cabe ao Banco Central Europeu (“BCE”) – e ao Banco de Portugal98 a cooperação com o BCE nesse âmbito, estando essa supervisão sujeita ao Direito europeu e ao direito nacional. Adicionalmente, tratando-se de empresas públicas as referidas sociedades encontram-se sujeitas às regras e exigências específi cas pelas duas vias99.

No âmbito do exercício da supervisão microprudencial do sector bancá-rio, nomeadamente do sistema de governo interno das instituições de crédito, o supervisor, seja o BCE ou o Banco de Portugal dispõe de um vasto leque de poderes de autoridade, que se concretizam em atos de controlo prévio (atos de autorização, de recusa ou de revogação de autorização de instituições de crédito, pessoas ou atividades) e na supervisão contínua, consubstanciando

97 Regulamento (UE) N.º 468/2014, do Banco Central Europeu, de 16 de abril de 2014.98 Mais especifi camente, de acordo com o artigo 12.º da sua Lei Orgânica, cabe ao Banco de Portugal velar pela estabilidade do sistema fi nanceiro nacional, decorrente da proteção de outros valores de recorte constitucional, como o funcionamento efi ciente dos mercados, a segurança das poupanças e o princípio da confi ança, ínsito ao Estado de Direito (conforme artigos 81.º, alínea f ), 101.º e 2.º da Constituição da República Portuguesa, respetivamente), tal como referido na página 57 do Livro Branco sobre a regulação e supervisão do setor fi nanceiro, disponível em https://www.bportugal.pt/pt-PT/PublicacoeseIntervencoes/Banco/OutrasPublicacoes/Documents/LivroBranco2016.pdf.99 Recorda-se que, nos termos do n.º 6 do artigo 14.º do RJSPE, o disposto nesse diploma “[…] não prejudica a aplicabilidade, às empresas públicas que tenham natureza de instituições de crédito, sociedades fi nanceiras ou empresas de investimento, das disposições especialmente aplicáveis a esse tipo de entidades, as quais prevalecem em caso de confl ito”, o que signifi ca que relativamente a estas sociedades a supervisão do governo interno – e a defi nição de medidas que eventualmente seja necessário tomar – cabe ao Banco de Portugal.

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esta i) o acompanhamento permanente da atividade das entidades sujeitas à supervisão, designadamente através da verifi cação do pontual cumprimento da lei e da regulamentação aplicáveis a essa atividade, da exigência de reportes periódicos, de realização de inspeções no local e da tomada de medidas de supervisão, consoante os contextos que estejam em causa100 e ii) inspeções no local, dedicadas, sempre que o supervisor entenda que o contexto das insti-tuições o justifi ca.

Especifi camente quanto à supervisão contínua, o Regime Geral das Insti-tuições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”) estabelece expressa-mente os respetivos procedimentos101, nos quais se incluem:

a. O acompanhamento da atividade das instituições de crédito;b. A vigilância do cumprimento das normas que disciplinam a atividade das

instituições de crédito;c. A emissão de recomendações e determinações específi cas, para que

sejam sanadas irregularidades detetadas no exercício da atividade das ins-tituições de crédito;

d. O sancionamento de infrações.

Adicionalmente, e indo mais longe na densifi cação normativa dos proce-dimentos de supervisão contínua, o legislador estabelece102 que ao supervisor cabe analisar as disposições, estratégias, processos e mecanismos aplicados pelas instituições de crédito para dar cumprimento ao RGICSF e avaliar os riscos a

100 No âmbito da supervisão contínua, o Banco de Portugal vê-se muitas vezes confrontado com o seguinte dilema:

a. se a regulamentação e medidas a implementar forem muito limitativas, as instituições enfrentarão obstáculos substanciais na maximização da sua rendibilidade, que podem afetar a sua efi ciência e a sua capacidade competitiva;

b. se for pouco exigente e se a supervisão for pouco efetiva, os riscos de insolvência de instituições de crédito e de fraudes nessas instituições podem atingir dimensões perigosas e redundar em problemas graves – cf. Ob. Cit., Livro branco…, p. 336.

Nas palavras de António Pedro Ferreira, há “(...) necessidade de um acompanhamento vigilante, embora não castrador, da iniciativa empresarial, que garanta o exercício da atividade num quadro de sã e controlada concorrência” – Cf. O Governo das sociedades e a supervisão bancária – interações e complementaridades, Lisboa, 2009, pp. 69 a 71; Nazaré da Costa Cabral, O princípio da Desregulação e o Sector Bancário, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra, v.38, n.2, 1997; e Giuseppe Roma, I controlli sull’attività bancaria: obietivi e linee guida per l’effi cienza e la stabilità, Milão, Edibank, 1999, p. 22, para quem as especifi cidades do sistema bancário e a relevância dos interesses públicos em causa justifi cam a existência de controlos mais intensos e penetrantes na atividade desenvolvida.101 Cf. n.º 1 do artigo 116.º do RGICSF.102 Cf. n.º 1 e 2 do artigo 116.º-A do RGICSF.

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que as instituições de crédito estejam ou possam vir a estar expostas e, com base na análise e avaliação referidas, decidir se as disposições, estratégias, processos e mecanismos aplicados pelas instituições de crédito e os fundos próprios que detêm garantem uma gestão sólida e a cobertura dos seus riscos. Entre esses ris-cos inclui-se um em particular com especial relevância para o presente trabalho: o risco associado ao governo interno.

Neste exercício, o supervisor tem em conta todas as situações de identifi ca-ção de riscos e o modo como estes interagem com as características das institui-ções, apurando e defi nindo depois, preferencialmente em conjunto com estas, os resultados aos quais se pretende chegar e dispondo nesta sede de poderes para adotar vários tipos de medidas103. Por sua vez, os dois tipos de supervisão referidos – acompanhamento permanente e inspeções no local – contam com instrumentos importantes, os quais acrescem a documentos como relatórios e contas, relatórios de governo interno das instituições, constituindo igualmente fontes de informação supervisiva incontornáveis.

VI. Conclusão

No atual contexto de mudança (no seguimento de uma crise económica à escala global e das restrições orçamentais que ainda se fazem sentir), impõe-se

103 Designadamente:

a. atos administrativos não tipifi cados, necessários ao acompanhamento das instituições [artigo 116.º, alínea a)];

b. Recomendações [artigo 116.º, alínea c)];c. Determinações específi cas [artigo 116.º, alínea c)] – são qualifi cáveis como determinações

específi cas todos os comandos emanados pelo Banco de Portugal no contexto das suas atribuições supervisivas, desde que invocada a al. c) do n.º 1 do artigo 116.º. De outra forma, tratar-se-ão de atos administrativos enquadrados no acompanhamento da atividade das instituições de crédito, prevista na al. a) do mesmo preceito;

d. Medidas corretivas (artigo 116.º-C) – caso o Banco de Portugal verifi que que alguma instituição de crédito não cumpre alguma norma (imperativa) ou disponha de informação evidenciando que não as cumprirá no prazo de um ano, pode exigir a adoção de medidas corretivas. A título de exemplo, dispõe da possibilidade de exigir que as instituições de crédito limitem a remuneração variável em termos de percentagem dos lucros líquidos quando essa remuneração não seja consentânea com a manutenção de uma base sólida de fundos próprios;

e. Medidas de intervenção corretiva (n.º 1 dos artigos 139.º e artigo 141.º), dirigidas, de modo individualizado, às instituições de crédito;

ou avançar para outro tipo de soluções, como:f. Medidas de administração provisória (artigo 145.º); e g. Medidas de resolução (artigo 145.º-A).

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como desafi o, por um lado, para as organizações, a procura de maior efi ciên-cia organizativa, otimização do desempenho, robustecimento da fi scalização, adequada estruturação dos incentivos, prevenção do confl ito de interesses e transparência quanto aos respetivos mecanismos, levando-as a reformularem as suas estruturas de administração e mecanismos de fi scalização em função das boas práticas de governo interno.

Por outro lado, para o Estado, representado pelo Governo, na qualidade de acionista e de defi nidor e garante do interesse público, impõe-se supervisionar que essas boas práticas são seguidas (e, se for o caso, impô-las) e verifi car se os objetivos que defi niu foram atingidos. Em nosso entender, a avaliação (interna e externa) do desempenho das empresas públicas não poderá ser meramente fi nanceira, verifi cando se foi atingido um determinado nível de redução de despesa. Deve, por um lado, apurar-se se (i) o esforço de contenção fi nan-ceira compensou e se (ii) os objetivos estratégicos (de interesse público) foram atingidos e com que custo. Adicionalmente, deve haver maior transparência, porquanto seja admissível que algumas empresas públicas sejam, por natureza, defi citárias, o que apenas deve aumentar a exigência da verifi cação de uma gestão sã e prudente.

Quanto às matérias corporate governance, importa reforçar os mecanismos relativos à adequação dos gestores públicos, efetuando um juízo preventivo, importando-se o conceito de ”gestão sã e prudente” do âmbito do setor ban-cário e fi nanceiro. Devem também reforçar-se os mecanismos de vigilância e fi scalização da gestão da sociedade que garantem o cumprimento das normas aplicáveis e das boas práticas (a começar pelos membros não-executivos, pas-sando pelo órgão de fi scalização e terminando nos mecanismos de controlo interno).

Permanecem as seguintes questões: as empresas públicas não deveriam ter uma supervisão contínua mais apertada, designadamente em termos de verifi -cação da adequação dos gestores públicos – semelhante à realizada pelo Banco de Portugal, com um papel determinante em todos os passos da vida das insti-tuições? E o Tribunal de Contas não poderia ter um papel mais interventivo na verifi cação a posteriori da concretização dos objetivos? Sem esquecer, que ainda que tenha como objetivo um ganho de efi ciência, esta supervisão tem custos.

De todo o modo, caso as respostas às questões sejam afi rmativas, este modelo não é revolucionário, tendo em conta que as referidas temáticas (de governo e controlo interno, bem como de supervisão) têm sido objeto de um grande estudo no âmbito do setor bancário e fi nanceiro. Dessa perspetiva entendemos que a experiência e desenvolvimentos normativos e doutrinários que aí ocor-reram poderão servir de inspiração para as melhorias a introduzir no SEE e até mesmo como auxiliar interpretativo às normas atualmente aplicáveis. Aliás,

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entre as empresas públicas há diversas que são sociedades fi nanceiras e, por isso, se encontram sujeitas a regras específi cas e muito exigentes em matéria de controlo interno e de supervisão, com ganhos visíveis de efi ciência e melhoria na gestão.

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