NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO E SÃO JOSÉ, MONTES … · A construção da Igreja Matriz Nossa...

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NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO E SÃO JOSÉ, MONTES CLAROS-MG ARCANJO, THATIANA CAVALCANTE (1); MARTINS, RÉGIS EDUARDO (2) 1. Faculdades Integradas Pitágoras Montes Claros FiPMoc. Discente. Arquitetura e Urbanismo. Av. Professora Aida Mainartina Paraiso, 80 Ibituruna. 39408-007 Montes Claros MG. [email protected] 2. Faculdades Integradas Pitágoras Montes Claros FiPMoc. Docente. Arquitetura e Urbanismo. Av. Professora Aida Mainartina Paraiso, 80 Ibituruna. 39408-007 Montes Claros MG. [email protected]; [email protected] RESUMO A Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição e São José, localizada em Montes Claros-MG é datada de 1859. No decorrer da sua existência, a igreja sofreu modificações, alterações, acréscimos, demolições, entre outras intervenções, passando por duas grandes reformas nas décadas de 40 e 90. Atualmente, a edificação sofre uma terceira grande reforma, exigida pelo Ministério Público de Minas Gerais, tida como uma “readequação” para reverter à descaracterização ocorrida no ano de 1999. É importante fazer uma análise do processo em curso, pois cada uma das intervenções, feitas anteriormente, deixou uma marca profunda na imagem do bem, assim como a atual deixará. A Igreja Matriz teve sua construção em estilo colonial, de aspecto simples e sem decorativismo rebuscado, existia um frontispício simples e duas torres sineiras laterais. O interior era igualmente simples. Em 1947, o imóvel passou pela primeira reforma, que alterou inteiramente seu estilo arquitetônico e ampliou a construção. A fachada foi alterada quase por completo, no lugar do frontispício original, foram acrescentados elementos como volutas, cornijas e contracurvas foram acrescidos ao frontão e pilastras e molduras nos demais elementos, tirando a simplicidade inicial. Em 1997 houve o tombamento do bem, mas, ainda assim, a igreja sofreu mais uma reforma em 2002, que descaracterizou principalmente seu interior. No ano de 2014, após o processo movido pelo Ministério Público local contra as descaracterizações, foi iniciada a obra de “readequação” da igreja, a fim de reverter à descaracterização que ocorridas. As reformas que ocorreram na Igreja foram concebidas como a imitação de um modelo, que, buscaram dar-lhe nova estética, segundo os gostos daqueles que interviram no bem, sem preocupar-se na manutenção de seu estilo original, representante da história local. Palavras-chave: Restauração. Patrimônio. Descaracterização.

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NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO E SÃO JOSÉ, MONTES

CLAROS-MG

ARCANJO, THATIANA CAVALCANTE (1); MARTINS, RÉGIS EDUARDO (2)

1. Faculdades Integradas Pitágoras – Montes Claros – FiPMoc. Discente. Arquitetura e Urbanismo. Av. Professora Aida Mainartina Paraiso, 80 – Ibituruna. 39408-007 – Montes Claros – MG.

[email protected]

2. Faculdades Integradas Pitágoras – Montes Claros – FiPMoc. Docente. Arquitetura e Urbanismo. Av. Professora Aida Mainartina Paraiso, 80 – Ibituruna. 39408-007 – Montes Claros – MG.

[email protected]; [email protected]

RESUMO

A Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição e São José, localizada em Montes Claros-MG é datada de 1859. No decorrer da sua existência, a igreja sofreu modificações, alterações, acréscimos, demolições, entre outras intervenções, passando por duas grandes reformas nas décadas de 40 e 90. Atualmente, a edificação sofre uma terceira grande reforma, exigida pelo Ministério Público de Minas Gerais, tida como uma “readequação” para reverter à descaracterização ocorrida no ano de 1999. É importante fazer uma análise do processo em curso, pois cada uma das intervenções, feitas anteriormente, deixou uma marca profunda na imagem do bem, assim como a atual deixará. A Igreja Matriz teve sua construção em estilo colonial, de aspecto simples e sem decorativismo rebuscado, existia um frontispício simples e duas torres sineiras laterais. O interior era igualmente simples. Em 1947, o imóvel passou pela primeira reforma, que alterou inteiramente seu estilo arquitetônico e ampliou a construção. A fachada foi alterada quase por completo, no lugar do frontispício original, foram acrescentados elementos como volutas, cornijas e contracurvas foram acrescidos ao frontão e pilastras e molduras nos demais elementos, tirando a simplicidade inicial. Em 1997 houve o tombamento do bem, mas, ainda assim, a igreja sofreu mais uma reforma em 2002, que descaracterizou principalmente seu interior. No ano de 2014, após o processo movido pelo Ministério Público local contra as descaracterizações, foi iniciada a obra de “readequação” da igreja, a fim de reverter à descaracterização que ocorridas. As reformas que ocorreram na Igreja foram concebidas como a imitação de um modelo, que, buscaram dar-lhe nova estética, segundo os gostos daqueles que interviram no bem, sem preocupar-se na manutenção de seu estilo original, representante da história local.

Palavras-chave: Restauração. Patrimônio. Descaracterização.

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

CRÍTICA ÀS INTERVENÇÕES REALIZADAS NA IGREJA MATRIZ NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO E SÃO JOSÉ, MONTES

CLAROS-MG

Contextualização

Em 1707, os bandeirantes Matias Cardoso de Almeida e Antônio Gonçalves Figueira

estabeleceram ao norte do estado de Minas Gerais a Fazenda dos Montes Claros,

povoação essa que deu origem a cidade homônima. Passada posteriormente para os

herdeiros, a fazenda foi vendida ao Alferes José Lopes de Carvalho que, mediante a

ausência de um templo religioso católico, manda erguer uma capela para sanar as

necessidades espirituais dos vivos e dos mortos. No dia 19 de junho de 1769 Carvalho

manda erguer uma capela em honra a Nossa Senhora da Conceição e São José. (Cotrim,

2007). Bueno (2009) afirma que:

[...] a institucionalização de povoados dispersos dava se, inicialmente, pela oficialização de sua ermida. A elevação de uma comunidade ao estatuto de capela curada significava a ascensão de uma região inóspita a núcleo reconhecido pela Igreja e também a garantia de visita de um pároco (cura). (Bueno, 2009, p. 252)

A construção da capela então foi um atrativo para trazer mais cidadãos para a fazenda.

Esse fato contribuiu para que o povoado se expandisse em torno dessa edificação, o que

contribuiu para que na localidade fosse instituída a Freguesia de Nossa Senhora da

Conceição e São José das Formigas de Montes Claros. Fato atestado por Cotrim (2007) no

trecho abaixo:

E, assim, o pequeno povoado da fazenda dos Montes Claros, desde o seu nascedouro, em volta da capelinha construída pelo Alferes José Lopes de Carvalho, tomou o nome de Freguesia de Nossa Senhora da Conceição e São José das Formigas de Montes Claros. (Cotrim, 2007, p. 108)

Passado meio século desde a construção da capela, seu estado de conservação era muito

precário e a paróquia demandava de uma nova sede: “[...] achou-se que a capela do Alferes

José Lopes de Carvalho era muito pequena e tímida para ser sede da paróquia”

(SECRETARIA DE CULTURA DE MONTES CLAROS, 1998, p. 07). A nova sede era

necessária, não somente para representar a paróquia, mas também para atender à

ascensão da vila, com uma população cada vez mais numerosa, requerendo um local de

culto proporcional à fé e às necessidades de seu povo. Desde sua construção, a capela não

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havia passado por nenhuma reforma, considerando-se que era um edifício público religioso.

Então, fora decidido que era inútil realizar qualquer gasto com ela, conforme foi informado

na época pelo Coronel José Pinheiro Neves, primeiro presidente da Câmara de Vereadores,

da Vila de Montes Claros de Formigas. Ao referir-se à capela, expressou: “A Matriz,

considerada como deve ser, um edifício público, à vista do seu estado de ruína [...] o que faz

inútil toda e qualquer despesa em reparos, deverá ser construída de novo em diferente

posição de norte e sul mais ao lado de oeste.”. (SECRETARIA DE CULTURA DE MONTES

CLAROS, 1998, p. 07).

A construção da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição e São José foi iniciada em 1859

(figura 1), em estilo colonial, com aparência simples, sem decorativismo rebuscados, com

fachada composta por duas torres sineiras, o coro era iluminado por três janelas.

Fig. 01 – Igreja Matriz no início do séc. XX. Fonte: Acervo da Secretaria de Cultura da cidade de Montes Claros, MG.

Em 1880, a igreja sofreu algumas melhorias e o altar (figuras 2 e 3) foi finalizado pelo

entalhador Mestre Constantino Martins Rêgo, proveniente de Januária, MG. (SECRETARIA

DE CULTURA DE MONTES CLAROS, 1998, p. 07).

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Fig. 02 – Altar feito pelo Mestre Constantino Martins Rêgo. Fonte: Acervo da Secretaria de Cultura da cidade de Montes Claros, MG.

Fig. 03 – Altar feito pelo Mestre Constantino Martins Rêgo. Fonte: Acervo da Secretaria de Cultura da cidade de Montes Claros, MG.

Reconstrução da Igreja na década de 40 do século XX

Na década de 40, a Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição e São José passou por uma grande

intervenção que “[...] alterou inteiramente seu estilo arquitetônico, inclusive com a retirada dos

altares do Mestre Constantino.”. (SECRETARIA DE CULTURA DE MONTES CLAROS, 1998, p. 07). A

reforma de 1947 abrangeu principalmente o exterior da igreja, com alterações em sua fachada,

inserindo elementos ornamentais como: pilastras em estuque, curvas e contracurvas no frontão,

acabamento em forma de bulbo nas torres e balcão nas janelas do coro. Não houve alteração no

partido, permanecendo a composição da fachada por duas torres sineiras, mas houve significativas

alterações estruturais como a construção do campanário das torres e do novo frontão em alvenaria,

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no lugar dos existentes em madeira, além das demais adequações na estrutura. Segundo o IPAC -

Inventário de Proteção do Acervo Cultual de Minas Gerais, MG, de agosto de 1985, quanto ao

resultado da reforma da década de 40:

A fachada compõe-se de corpo central ladeado de torres sineiras. No corpo central, encontra-se porta única de acesso, em verga de arco abatido, único elemento original preservado. Possui três janelas de coro, rasgadas por inteiro com balcão em balaustrada vazada, sendo a central emoldurada por cartela. A cornija alteia-se em arco pleno e o frontão, com óculo vedado, tem acabamento em curvas, contracurvas e volutas. As torres sineiras têm cunhais marcados em massa à semelhança de pedra possuindo três aberturas coladas na base, uma janela na altura do coro e janelas sineiras, todas em verga de arco pleno. Arrematando as torres observa-se cobertura bulbosa com pináculo final. Telhado em duas águas cobre o corpo edificado. (IPAC, 1985)

Fig. 04 – Igreja Matriz reconstruída, ano de 1947. Fonte: Acervo da Secretaria de Cultura de Montes Claros, MG.

Na reconstrução de 1947, a fachada foi alterada por completo, restando apenas um

elemento da Igreja Matriz de 1859, a porta de acesso (IPAC, 1985). Elementos que

contrastam com a simplicidade inicial como as volutas, cornijas e contracurvas foram

acrescidos ao frontão, distanciando o bem da imagem colonial da construção original. O

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partido arquitetônico original em duas torres sineiras e porta única de acesso foram

mantidas, mas com diferenciações significativas de acordo com o estilo eclético, aproveita

elementos de inspiração barroca na composição.

Tombamento e reformas posteriores

A Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição e São José foi tombada pelo Conselho

Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural de Montes Claros em 28 de setembro de 1999,

conforme Decreto nº 1761. Nesse ano foi iniciada uma campanha sob a denominação S.O.S

Matriz que visou reunir fundos para a reforma da Igreja, que se encontrava em estado de

conservação ruim.

A reforma coordenada pelo Padre Manoel Pereira dos Santos Neto em 2002, incialmente

destinada à reforma do bem, não abrangeu somente a recuperação funcional do imóvel,

mas interviu no exterior da Igreja e provocou alterações significativas no seu interior.

Arquivos encontrados na Secretaria de Cultural de Montes Claros contêm a descrição das

intervenções e permitem relacionar as descaracterizações sofridas pela Igreja Matriz Nossa

Senhora da Conceição e São José. No exterior da igreja se fez: a colocação de gradis,

resultando no fechamento de áreas públicas frontais e a limitação de acesso às edificações

periféricas; duas construções nos becos laterais em via pública; a cobertura dos toldos

externos com polipropileno alveolar; cobertura da estrutura lateral dos nichos com acrílico;

colocação de gradis nos vitrais das janelas; telhas de amianto na cobertura.

Fig. 05 – Vista da fachada lateral esquerda após a reforma em 2002. Os destaques mostram a adição de gradis e de cobertura de polipropileno alveolar. Fonte: Acervo do autor, 2015.

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Nas modificações internas se fizeram a inclusão de painéis (tipo afrescos) pintados nas

paredes, colunas e teto da Igreja, de imagens pintadas nos nichos e a substituição do forro

original em madeira por outro de PVC. Os altares da igreja, altar central, laterais, a mesa do

altar e o sacrário também sofreram intervenção, (figuras 6 e 7), estes foram desmontados e

remontados. Em sua remontagem, os autores da intervenção utilizaram tijolos e cimento

para realizar a união das partes e a elevação da mesa do altar, que foi realizada sobre o

piso do altar-mor.

A intervenção nos altares e na mesa retirou o aspecto original desse elemento e não

atendeu adequadamente às ‘Orientações para projeto e Construção de Igrejas e disposição

do Espaço Celebrativo’ da CNBB, que diz: “[...] que o altar seja digno, sólido, de material

nobre e verdadeiro, não removível (OLIVEIRA FILHO, 2013, p. 31).

Fig. 06 – Vista frontal de um dos altares laterais. Fonte: Acervo do autor.

Fig. 07 – Fotografia tirada da parte inferior do altar. Fonte: Acervo do autor.

O piso original que era em cimento queimado azul e cinza foi substituído por outro feito em

granilite, fato que alterou a paginação anterior a fim de se adequar à coloração dos tons

adotados na igreja.

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Fig. 08 – Interior da igreja antes da reforma – vista para o coro. Fonte: Acervo do autor.

Fig. 09 – Interior da igreja após à reforma – vista para o altar-mór. Fonte: Acervo do autor.

A reforma realizada em 2002 causou danos estruturais no imóvel, uma vez que houve a

diminuição das colunas adossadas pela metade (figura 9), o que comprometeu a

sustentação do telhado, uma vez que as tesouras são apoiadas diretamente nesses

elementos. Além dessas alterações, ocorreu a substituição dos vidros das janelas por vitrais

coloridos, que não foram feitos da maneira correta (utilizando o aço e o vidro para a

construção das imagens figurativas). Em algumas partes, os vitrais foram pintadas à mão

com tinta guache de péssima qualidade. As paredes dos altares laterais receberam pinturas

que imitam afrescos de baixa qualidade técnica, nos quais se podia perceber que as imagens dos

santos estavam distorcidas e fora de proporção.

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Atualmente, a Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição e São José passa por uma

intervenção, exigida pelo Ministério Público de Minas Gerais, destinada a recuperar o imóvel

de acordo com a imagem do bem antes da reforma de 2002.

Crítica à proposta de restauração do bem

A proposta de restauro da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição e São José,

empreendida a partir de 2014, é resultado de um processo instaurado pelo Ministério

Público de Minas Gerais após denúncias feitas à época pelo Conselho de Patrimônio

Cultural de Montes Claros. Nela, o que pelas definições dos órgãos fiscalizadores locais é

tratado como uma restauração, propõe a recuperação do imóvel na forma encontrada em

1999, durante o processo de tombamento, conforme pode ser observado na figura 8. No

entanto, pode-se questionar os procedimentos que estão sendo adotados, uma vez que não

se tem conhecimento de um projeto de restauro para tal, mas, de acordo com os envolvidos

(pároco responsável pela paróquia, secretaria de cultura e o arquiteto que conduz os

serviços), existe somente um relatório que indicam de modo geral as modificações a serem

feitas.

Considerando a Carta de Restauro de 1972, “[...] uma exigência fundamental da restauração

é respeitar e salvaguardar a autenticidade dos elementos construtivos da obra. Esse

princípio deve sempre guiar as escolhas operacionais” (Brandi, 2005, p. 244). Para tanto, na

atualidade se entende que a restauração de um bem envolve uma equipe multidisciplinar

que, envolvida nas decisões, deve indicar soluções que proporcionem ao bem a

manutenção da sua autenticidade e evitem descaracterizações que interfiram na

transmissão do bem cultural às gerações futuras. Nesse entendimento, a Carta de Brasília

de 1995 observa também que:

Os edifícios e lugares são objetos materiais, portadores de uma mensagem ou de um argumento cuja validade, no quadro de um contexto social e cultural determinado e de sua compreensão e aceitação pela comunidade, os converte em um patrimônio. Poderíamos dizer, com base neste princípio, que nos encontramos diante de um bem autêntico quando há correspondência entre o objeto e seu significado. (IPHAN, 2004, p.325-326)

Para muitos frequentadores da Igreja Matriz, a correspondência entre objeto e seu

significado estava na imagem do imóvel após as intervenções de 2002. Sendo assim, para

essas pessoas a autenticidade estava definida na edificação ornamentada com as pinturas e

os elementos decorativos acrescentados pela reforma realizada sob o comando do Padre

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Manoel Pereira dos Santos Neto. Esse fato não justifica a manutenção dessas

características no lugar do restauro proposto, mas, ao se considerar que o bem permaneceu

com esse aspecto durante mais de 12 anos, pergunta-se qual a imagem que se quer criar a

partir das intervenções atuais? Será possível resgatar uma imagem da edificação antes da

reforma sem um embasamento apropriado?

Se para muitos a imagem associada à Igreja Matriz se forma a partir das características

adquiridas após as reformas, é necessário, ao se propor uma “restauração” tão

transformadora como a que está sendo realizada, ter bases sólidas para a intervenção

proposta. Não sendo desse modo, corre-se um sério risco de haver perda de identidade em

relação ao bem, pois já existe um processo de reconhecimento formado nos últimos anos.

De acordo com Halbwachs (2006, p.55), “reconhecer por imagens, ao contrário, é ligar a

imagem (vista ou evocada) de um objeto a outras imagens que formam com elas um

conjunto e uma espécie de quadro, é reencontrar as ligações desse objeto com outros que

podem ser também pensamentos ou sentimentos”.

Em se tratando de um edifício com finalidades religiosas existe uma apropriação sentimental

do bem, pois, para a comunidade católica, a igreja é um local de celebrações de rituais que

envolvem os indivíduos desde o seu nascimento até a sua morte. Nesse sentido, é possível

afirmar que há um forte laço estabelecido a partir do reconhecimento pelas imagens,

conforme o indicado pelo autor citado, pois fatos memoráveis à vida dos usuários

acontecem no interior desses bens.

Uma das funções da arquitetura é servir para a consolidação dos referenciais de memória

coletiva, capaz de intermediar contínuos processos identitários em um grupo social. Esse

papel de intermediação atende à necessidade manutenção de certos elementos simbólicos

que se formam pelas imagens criadas na relação estabelecida com o espaço construído.

Dessa maneira, surgem experiências que se difundem numa determinada comunidade e

que, inegavelmente, permitem a perpetuação de valores, crenças, hábitos e relações sociais

em comum. Entretanto, no caso da Igreja Matriz, as intervenções que irão alterar novamente

a linguagem estilística do imóvel, se introduzidas sem a fundamentação adequada, pode

gerar o sentimento de perda por parte dos usuários desse patrimônio e não produzir efeito

esperado, se essa ação for constituída de modo arbitrário e compulsório.

Quando dotado de significação para uma comunidade, o bem arquitetônico é integrado à

malha urbana da cidade, que naturalmente se transforma e se modifica, mas que, naquele

bem, faz permanecer os referenciais do passado em seu conjunto. A Igreja Matriz Nossa

Senhora da Conceição e São José é um desses objetos de ligação com o passado, devido a

sua construção estar associada à origem da cidade de Montes Claros. Para boa parte da

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população, o imóvel não é somente o vínculo com o passado, mas o próprio representante

de um tempo que o crescimento local apagou. Desse modo, quaisquer modificações na

imagem do bem geraria conflito, pois para muitos a Igreja não necessitava de uma reforma

que intervisse no corpo do edifício, transformando-a em uma “nova” edificação com inserção

de alguns elementos e a retirada de outros. Entendia-se que o principal a ser feito seria uma

reforma no telhado, a troca dos vidros nas janelas que estavam quebrados, a realização de

uma pintura na igreja, uma vez que, estava descascada e desgastada.

A proposta de intervenção que irá se realizar deveria ser elaborada a partir das concepções

atuais da teoria da restauração e não ser concebida como a reprodução de uma imagem

que se tinha ou se pode reconstruir por meio de fotografias antigas. Se feita desse modo, a

realização do restauro pode conduzir a soluções recriadoras como às empreendidas por

Viollet-Le-Duc no século XIX. Restaurar o imóvel a partir de uma visão nostálgica seria

negar a transformação contida na própria evolução da Igreja Matriz, que foi de tempos em

tempos recriada, adaptada aos novos usos e contextos sociais dos seus usuários. Feitas

sem um verdadeiro propósito, qual seria então a verdadeira imagem do bem a se revelar? A

colonial do séc. XIX ou a eclética da década de 40 do século XX? A sem ornamentos de

1997 ou uma imagina em 2015?

Antes de tudo, é preciso integrar o imóvel antigo às necessidades atuais, sem, contudo,

adotar uma postura descaracterizante ou de utilização indiscriminada do restauro como uma

ação capaz de retornar à origem. A Carta de Burra de 1980, nos artigos 6º, 7º e 8º, destaca

que as opções a serem feitas na conservação do bem arquitetônico deverão ser definidas

previamente com base na compreensão de sua significação cultural e de sua condição

material. Determinando, assim, que as opções assim efetuadas definam as futuras

destinações consideradas compatíveis com o bem, o que implica: primeiramente na

ausência de modificações ou naquelas que possibilitem reversão ou, ainda, modificações

cujo impacto sejam o menor possível, a fim de se manterem as características tradicionais.

(IPHAN, 2004)

Ao mesmo tempo, o profissional responsável pelas intervenções deve ser especializado e

experiente no restauro de edifícios. O pouco conhecimento sobre a restauração, às vezes

presente na formação geral do arquiteto, pode trazer perdas irreversíveis para o patrimônio

cultural, já que o bem cultural do passado é dotado de singularidade e não possui saber-

fazer correspondente na atualidade. Desse modo, o ato de restaurar quando confundido

com retorno ao estado original pode produzir consequências graves para a preservação do

imóvel, pois uma vez descaracterizado é impossível recuperar o objeto, pois não há

metodologia ou técnica capaz de fazer reverter o dano produzido. Em outras palavras,

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Mediante a análise de intervenções recentes no patrimônio construído, verifica-se que a falta do ensino, na graduação de arquitetura e urbanismo, da disciplina de restauro arquitetônico resulta em profissionais não habilitados a trabalhar num tecido urbano pré-existente, há a destruição de documentos importantes existentes no ambiente construído, dado que os monumentos são objetos de valor documental e formal, afetando, assim, a memória coletiva e a transmissão do conhecimento para as gerações futuras. A deturpação da memória acarreta danos para cultura e identidade da sociedade. (Farah, 2008, p. 34)

Devido às obras de restauro serem muito díspares das obras convencionais, na elaboração

do projeto demanda-se conhecimentos que excedam a mera definição de processos ou

procedimentos a se utilizar para a restauração do bem em si. Em outras palavras, o restauro

de um imóvel se caracteriza por envolver uma reflexão crítica que conjuga saberes

provenientes da teoria da restauração, do campo das ciências humanas, da engenharia, do

patrimônio cultural, entre outros. Dessa forma, como produto final,

Compreende-se por Projeto de Intervenção no Patrimônio Edificado, [...] o conjunto de elementos necessários e suficientes para execução das ações destinadas a prolongar o tempo de vida de uma determinada edificação ou conjunto de edificações, englobando os conceitos de restauração, manutenção, estabilização, reabilitação ou outras. Cada um destes conceitos corresponde a um tipo de intervenção, que depende, principalmente, do estado de conservação do Bem. (MINC/Monumenta, 2005, p.19)

Sabendo-se que a elaboração e a execução de um projeto de restauração para edifícios é

um processo de bastante complexidade que envolve fatores que ultrapassam a dimensão

física a se recuperar do bem cultural em si. Para a realização em um restauro não basta

apenas um diagnóstico preciso do estado de conservação do imóvel ou o embasamento por

meio de registros provenientes do passado. Antes de tudo, qualquer ação é definida a partir

de um estudo particular de cada situação encontrada, onde a intervenção que será

estipulada é analisada em referência em função do contexto cultural, histórico e espacial

que o cerca. Nessa dimensão,

O bem cultural imóvel arquitetônico é, talvez, o que apresenta maior complexidade no momento da elaboração do projeto de intervenção. Neste caso, à conservação física soma-se uma gama de fatores que nela interferem e que determinam suas diretrizes. A começar por sua condição de patrimônio cultural, dotado de significados e representações, passando por sua utilização - a adequação dos espaços antigos a novos usos, pela necessidade de atualização ou, muitas vezes, de introdução de novas

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instalações prediais que garantam a segurança e a possibilidade de um uso atual, até a definição de materiais e técnicas atuais adequadas e compatíveis aos presentes no edifício. (Coelho, 2003, p.19)

Dessa forma, cada etapa do projeto de restauro analisa a constituição do bem segundo sua

historicidade; suas características arquitetônicas, originais ou acrescentadas, como no caso

da Igreja Matriz; sua inserção no meio urbano; os materiais utilizados; além de outros pontos

importantes, sob os quais irão definirem-se as medidas de conservação e restauração a

serem realizadas.

No caso da Igreja Matriz, as intervenções deveriam ser tratadas de acordo com a Carta de

Restauro de 1972, conforme o trecho abaixo:

A realização do projeto para a restauração de uma obra arquitetônica deverá ser precedida de um exaustivo estudo sobre o monumento, elaborado de diversos pontos de vista (que estabeleçam a análise de sua posição no contexto territorial ou no tecido urbano, dos aspectos tipológicos, das elevações e qualidades formais, dos sistemas e caracteres construtivos, etc), relativos à obra original, assim como aos eventuais acréscimos ou modificações. Parte integrante desse estudo serão pesquisas bibliográficas, iconográficas e arquivísticas, etc., para obter todos os dados históricos possíveis. O projeto se baseará em uma completa observação gráfica e fotográfica, interpretada também sob o aspecto metrológico, dos traçados reguladores e dos sistemas proporcionais e compreenderá um cuidadoso estudo específico para a verificação das condições de estabilidade. (IPHAN, 2004, p.157)

Levando-se em conta as transformações já ocorridas sobre a igreja, o restauro do imóvel

deveria por obrigação ser estabelecido sobre bases sólidas, documentos e discussões

multidisciplinares, que conduziriam a um processo diferente do desejo de retorno à origem.

Sendo assim, as intervenções propostas, mesmo quando destinadas a reconstituir aspectos

semelhantes aos anteriormente existentes, deveria ser fundamentados nos princípios

apresentados por Kühl (2005):

- Distinguibilidade: pois a restauração (que é vinculada às ciências históricas) não propõe o tempo como reversível e não pode induzir o observador ao engano de confundir a intervenção ou eventuais acréscimos com o que existia anteriormente, além de dever documentar a si própria.

- Reversibilidade: pois a restauração não deve impedir, tem, antes, de facilitar qualquer intervenção futura; portanto, não pode alterar a obra em sua substância, devendo-se inserir com propriedade e de modo respeitoso em relação ao preexistente.

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- Mínima intervenção: pois a restauração não pode desnaturar o documento histórico nem a obra como imagem figurada. (Kühl, 2005, p. 25-26)

Os princípios da distinguibilidade, da reversibilidade e da mínima intervenção visam garantir

que o restauro seja realizado segundo um processo metodológico, desenvolvido com intuito

de permitir a transmissão do bem cultural às futuras gerações sem suprimir ou alterar as

marcas do tempo sobre este e que, ao mesmo tempo, visa evitar os equívocos do passado

feitos na tentativa de se restaurar um imóvel de acordo com seu estado ideal.

Considerações Finais

De acordo com Brandi (2004), o restauro é "o momento metodológico do reconhecimento da

obra de arte, na sua consistência física e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com

vistas à sua transmissão ao futuro". As intervenções realizadas então devem ser

identificáveis como uma marca distinta da época que a produziu, sem que se reduza a

restauração a uma mera recomposição estética ou que se produza um falso histórico a partir

dela.

A proposta de restauração da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição e São José fere o

conceito brandiano, pois se pretende reconstituir uma imagem recriada por meio de

fotografias e de relatos sobre as características originais do bem. As estâncias estéticas e

históricas, no caso em questão, tendem a se constituir a partir de um processo de

reconstrução e não da interpretação da perda que se houve quando ocorreu a reforma de

2002. Negando-se a impossibilidade de se retornar a origem, a proposta tenta retroagir a um

estado que a igreja tinha em 1997 no momento do tombamento.

Esse fato segue uma tendência contrária ao próprio entendimento da Igreja Matriz como um

patrimônio cultural, pois essa compreensão se dá por meio de um reconhecimento de

valores que tornam o bem um objeto singular. Sendo uma edificação tombada, dever-se-ia à

época realizar uma proteção efetiva e se empregar os meios apropriados para evitar que

ocorressem as intervenções propostas na reforma. Quase dozes anos após o ocorrido,

tentar retornar ao estado anterior se traduz como um grande equívoco que, novamente,

interferirá na imagem do imóvel e, logo, nas formas de apropriação que os usuários terão

desse patrimônio.

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