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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X O CANTO DO PÁSSARO ENGAIOLADO: INTERSECCIONALIDADE E AGÊNCIA NA NARRATIVA DE MAYA ANGELOU Dayane Evellin de Souza Francisco¹ 1 Resumo: Esta pesquisa aborda interseccionalidade e agência na obra autobiográfica de Maya Angelou intitulada I Know Why The Caged Bird Sings” (1969). Mais especificamente, esta pesquisa tem como objetivo investigar a construção da metáfora do "pássaro engaiolado que canta" dentro da narrativa. A fim de conduzir tal investigação, esta pesquisa centra-se na discussão de Kimberlé Crenshaw (1991) sobre o conceito de "interseccionalidade". Além disso, esta pesquisa baseia-se na discussão de Judith Butler (1994) sobre "agência" com o intuito de analisar se é possível encontrar sinais de resistência na narrativa. Crenshaw cunhou o termo interseccionalidade para denotar as várias maneiras pelas quais diferentes eixos de identidade como raça, gênero e classe se encontram e constituem constantemente a experiência das mulheres negras. Esta pesquisa sugere que, embora diferentes modos de opressão se interseccionem e delimitem os espaços da protagonista da narrativa, Marguerite é capaz de exercer agência e expressar algumas formas de resistência criativa. Este trabalho recusa, portanto, a visão simplista de que a interseccionalidade e a narrativa de Angelou são sobre vitimização e reconhece resistência na luta desse pássaro que canta na gaiola. Palavras-chave: Interseccionalidade. Agência. Resistência. Gênero. Raça. I Know Why the Caged Bird Sings é uma narrativa sobre superação. Angelou narra sua experiência como uma menina negra vivendo no sul dos Estados Unidos (pela maior parte de sua infância) e tendo que lidar diariamente com o preconceito e o ódio ilógico branco, a segregação racial, as desigualdades de gênero e a pobreza, sem mencionar ainda outros conflitos sociais e pessoais vividos por ela. A opressão com a qual protagonista se depara acontece em diferentes esferas de sua vida, o que requer uma breve discussão sobre o conceito de “interseccionalidade”. Antes mesmo que o termo fosse criado, bell hooks já discutia como "a luta para acabar com o racismo e a luta para acabar com o sexismo foram naturalmente entrelaçadas, que separá-los é negar uma verdade básica de nossa existência (...)"(hooks, 1981, 13). Em consonância com essa ideia, Kimberlé Crenshaw cunhou o termo interseccionalidade para "denotar as várias maneiras pelas quais raça e gênero interagem para moldar as múltiplas dimensões de empregabilidade e das experiências das mulheres negras" (Crenshaw, 1991, 1244). Ainda neste termo, Maria Lugones afirma que "a interseção revela o que não é visto quando categorias como gênero e raça são separadas uma da outra" (Lugones, 2007, 192). O que todas essas discussões têm em comum é a 1 Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

O CANTO DO PÁSSARO ENGAIOLADO: INTERSECCIONALIDADE E AGÊNCIA NA

NARRATIVA DE MAYA ANGELOU

Dayane Evellin de Souza Francisco¹1

Resumo: Esta pesquisa aborda interseccionalidade e agência na obra autobiográfica de Maya

Angelou intitulada “I Know Why The Caged Bird Sings” (1969). Mais especificamente, esta

pesquisa tem como objetivo investigar a construção da metáfora do "pássaro engaiolado que canta"

dentro da narrativa. A fim de conduzir tal investigação, esta pesquisa centra-se na discussão de

Kimberlé Crenshaw (1991) sobre o conceito de "interseccionalidade". Além disso, esta pesquisa

baseia-se na discussão de Judith Butler (1994) sobre "agência" com o intuito de analisar se é

possível encontrar sinais de resistência na narrativa. Crenshaw cunhou o termo interseccionalidade

para denotar as várias maneiras pelas quais diferentes eixos de identidade – como raça, gênero e

classe – se encontram e constituem constantemente a experiência das mulheres negras. Esta

pesquisa sugere que, embora diferentes modos de opressão se interseccionem e delimitem os

espaços da protagonista da narrativa, Marguerite é capaz de exercer agência e expressar algumas

formas de resistência criativa. Este trabalho recusa, portanto, a visão simplista de que a

interseccionalidade e a narrativa de Angelou são sobre vitimização e reconhece resistência na luta

desse pássaro que canta na gaiola.

Palavras-chave: Interseccionalidade. Agência. Resistência. Gênero. Raça.

I Know Why the Caged Bird Sings é uma narrativa sobre superação. Angelou narra sua

experiência como uma menina negra vivendo no sul dos Estados Unidos (pela maior parte de sua

infância) e tendo que lidar diariamente com o preconceito e o ódio ilógico branco, a segregação

racial, as desigualdades de gênero e a pobreza, sem mencionar ainda outros conflitos sociais e

pessoais vividos por ela. A opressão com a qual protagonista se depara acontece em diferentes

esferas de sua vida, o que requer uma breve discussão sobre o conceito de “interseccionalidade”.

Antes mesmo que o termo fosse criado, bell hooks já discutia como "a luta para acabar com o

racismo e a luta para acabar com o sexismo foram naturalmente entrelaçadas, que separá-los é negar

uma verdade básica de nossa existência (...)"(hooks, 1981, 13). Em consonância com essa ideia,

Kimberlé Crenshaw cunhou o termo interseccionalidade para "denotar as várias maneiras pelas

quais raça e gênero interagem para moldar as múltiplas dimensões de empregabilidade e das

experiências das mulheres negras" (Crenshaw, 1991, 1244). Ainda neste termo, Maria Lugones

afirma que "a interseção revela o que não é visto quando categorias como gênero e raça são

separadas uma da outra" (Lugones, 2007, 192). O que todas essas discussões têm em comum é a

1 Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil.

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noção de que diferentes categorias identitárias e diferentes sistemas de opressão se encontram e

influenciam a experiência de um indivíduo.

Ao discutir a construção da protagonista como o “pássaro engaiolado que canta”, metáfora

central para este artigo, é possível dizer que Marguerite é o pássaro engaiolado, emprisionada pela

intersecção de todas essas forças e estruturas sociais de seu contexto histórico. No entanto, embora

restrita pelo efeito de enjaulamento que tais forças exercem sobre a vida dela, Marguerite ainda

encontra forças para “cantar sua canção”, para resistir de alguma forma. Caged Bird ilustra o

processo no qual Maya Angelou torna-se uma "personagem feminina formidável"2. Depois de lutar

para superar a adversidade e a opressão, ela consegue encontrar novas possibilidades e assume um

papel de agente em sua própria vida, criando novas narrativas para si mesma e para o leitor. Este

artigo discute algumas circunstâncias nas quais sinais de resistência podem ser percebidos na

narrativa de Angelou no que se refere às ações e escolhas de Marguerite3. Para isso, esta pesquisa

enfoca o mutismo de Marguerite, o conceito de voz, e o uso da literatura e do acesso ao

conhecimento como forma de resistência.

Antes de discutir alguns momentos que mostram o desenvolvimento de Marguerite (e o

envelhecimento), é importante lembrar o início de sua história. Caged Bird começa com Marguerite

em frente à igreja, sentindo-se assustada e deslocada, e consciente do seu próprio deslocamento na

comunidade negra. Ela é apresentada ao leitor como uma garota insegura que internalizou noções

racistas de beleza, sentindo-se inferior e inadequada. Esta baixa autoestima e insegurança têm tanta

influência na vida de Marguerite quanto sua experiência com gênero e raça. Seu sentimento de

deslocamento (displacement) e seu constante desejo de ser amada também influenciam a

experiência dela. Todos esses fatores a tornaram mais vulnerável ao domínio e interferência de

outras pessoas. Portanto, analisar as situações em que Marguerite começa a ganhar mais confiança

em si mesma e a conceituar sua experiência a seu modo é importante para reconhecer momentos em

que ela resiste e recusa submeter-se à opressão.

Nos primeiros anos de sua vida, Marguerite vivencia mais sofrimento que a maioria das

crianças de sua idade. Como se o racismo e o sexismo não fossem suficientes, Marguerite também é

2 De acordo com Angelou, ao discutir a construção de mulheres negras na sociedade, a força das mulheres negras

resulta da intersecção de diferentes fatores - como a discriminação racial e o sexismo, etc. Ela afirma: “The fact that the

adult American Negro female emerges a formidable character is often met with amazement, distaste and even

belligerence. It is seldom accepted as an inevitable outcome of the struggle won by survivors and deserves respect if not

enthusiastic acceptance” (Angelou, 1969, 292). Nesta perspectiva, para sobreviver a um mundo tão opressivo, as

mulheres negras inevitavelmente (precisam) tornar-se fortes, formidáveis.

3 Eu estou usando Marguerite (Maya) quando me refiro à personagem de Caged Bird e Angelou ao me referir à autora.

Sendo uma narrativa reconhecidamente autobiográfica, Angelou também será usado quando me referir à narradora.

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estuprada por seu padrasto em uma das formas mais explícitas de subjugação feminina. Depois de

ser estuprada pelo Sr. Freeman, ela perde sua inocência e se refugia no silêncio. Isto porque ela se

sente responsável pela morte do Sr. Freeman por causa da sua negação durante o julgamento que

acontece após o estupro – ela teme admitir que ele alguma vez chegou a tocá-la. De certa forma, a

partir do fato de o Sr. Freeman ter sido encontrado morto depois do julgamento e da suspeita de que

a família de Marguerite possa estar envolvida, ela entende o poder nocivo das palavras e se torna

mais consciente dos perigos do "discurso". Embora Marguerite acredite que ao se calar para o

mundo ela está protegendo seus entes queridos, o silêncio apenas a isola do mundo, mas não

necessariamente a protege contra os perigos da vida. Ao contrário, de forma metafórica, o seu

mutismo pode ser associado à inabilidade de expressar suas preocupações, o que a impede de

estabelecer alguma independência.

Portanto, se fez necessário que Marguerite encontrasse o potencial transformador e positivo

das palavras. Foi necessário que ela encontrasse sua própria voz. Uma das maneiras pelas quais

Marguerite lida com o mutismo e começa a reencontrar sua voz é através da sua relação com a

literatura e o mundo literário. Marguerite e seu irmão estavam sempre interessados em livros. Para

eles, livros eram uma maneira de passar o tempo em Stamps, onde viviam. Desde cedo, eles

criavam pequenas peças teatrais, memorizavam as palavras dos livros e as encenavam. Este

interesse pelos livros foi crucial para a recuperação de Marguerite após o estupro. Quando ela

retorna a Stamps, ela quase não fala com ninguém, o que leva ao convite da Sra. Flowers para uma

visita à sua casa. Sra. Flowers encoraja Marguerite a continuar lendo e a ler em voz alta. Mais do

que isso, ela a convida a encontrar nas palavras escritas algo que as transcenda. E ao reproduzir as

palavras com diferentes entonações e tentar imaginar novos significados para elas, Marguerite não

está apenas experimentando com criatividade e performatividade, mas também lidando com a

linguagem de uma forma mais abstrata e positiva. Se anteriormente ela tinha apreendido o poder

negativo das palavras e os potenciais efeitos prejudiciais do discurso, agora ela está lidando com as

palavras como algo fundamental de um mundo que ela aprecia e onde ela se sente segura: o mundo

da literatura.

Com isso em mente, é possível dizer que a relação de Marguerite com a literatura e seu amor

por ela podem ser vistos como uma forma de resistência em I Know Why the Caged Bird Sings. Ao

ler, Marguerite torna-se menos frágil, uma vez que ela se separa de seu ambiente agressivo e habita

espaços que não lhe são permitidos. Angelou narra o encantamento de Marguerite com a literatura

como algo quase indescritível:

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I have tried often to search behind the sophistication of years for the enchantment I so

easily found in those gifts. The essence escapes but its aura remains. To be allowed, no,

invited, into the private lives of strangers, and to share their joys and fears, was a chance to

exchange the Southern bitter wormwood for a cup of mead with Beowulf or a hot cup of tea

and milk with Oliver Twist. When I said aloud, ‘It’s a far, far better thing that I do, than I

have ever done…’ tears of love filled my eyes at my selflessness. (Angelou, 1969, 109)

Marguerite faz da literatura seu lugar seguro, o que lhe dá força para continuar vivendo. Quando ela

pronuncia as palavras de Dickens, sente-se cheia de amor por elas. Suas lágrimas também podem

ser um reflexo de tudo o que ela viveu até aquele momento. Depois de ser estuprada e perder a

habilidade de falar, ela encontra na literatura o desejo de falar de novo.

Em Caged Bird, a Sra. Flowers incentiva Marguerite a "infundir palavras com tons de

significado mais profundos" (Angelou 106). Para Correa, esta "infusão" é também uma estratégia de

resistência e construção da identidade, e uma vez que essa voz se torna presente, o oprimido começa

seu processo de cura". Segundo a autora, Marguerite está aprendendo com a Sra. Flores como

libertar-se (do silêncio) através da linguagem (Correa, 201, 83). Na verdade, pode-se observar que

esse processo de cura começa a tomar contornos logo no primeiro encontro que Marguerite tem

com a Sra. Flowers. Este encontro a faz a refletir sobre as palavras no papel, a animar-se, e

novamente se interessar por algo. Através da literatura ela começa a se recuperar de seu trauma e

redescobrir prazeres na vida. O interesse ávido pela literatura oferece a ela um espaço para

expressar suas ideias e usar a linguagem como ferramenta de resistência.

Correa enfatiza a importância da Sra. Flowers para o crescimento de Marguerite em relação

à agência afirmando que

[t]he lessons Maya receives from Mrs. Flowers were given through books of poetry and

philosophical conversations. These lessons reinforce the values and wisdom transmitted

from generation to generation. Remembering the poems, repeating them aloud, and

reflecting upon their meaning gives Maya a certain sense of power and makes her transcend

her immediate environment. On a second level, these lessons offer young Maya a closer

observation of the relations of blacks and whites. (Correa, 2001, 84)

Além disso, a experiência de Marguerite com a literatura também expandiu seu conhecimento sobre

o mundo, sobre narrativas literárias e sobre memória. Devido ao mutismo, Marguerite já havia

começado a apreender o máximo que podia ao seu redor – a narradora diz que, para alcançar um

silêncio particular, era necessário que ela apreendesse todos os sons ao seu redor – e, através da

literatura, Marguerite expandiu seus conhecimentos ainda mais. Esse contato com a vida de outras

pessoas também é um modo de refletir sobre a própria vida. Além disso, a relação de Marguerite

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com a literatura também pode ser entendida como um sinal de resistência porque o conhecimento é

uma forma de adquirir poder. Ou seja, ao adquirir mais conhecimento sobre o mundo ou ter um

excelente desempenho escolar, Marguerite pode ter melhores chances de alcançar sucesso na vida

e/ou ocupar espaços não permitidos às pessoas com contextos econômicos, culturais e sociais

semelhantes ao seu.

Uma outra forma de resistência que é possível encontrar na narrativa de Angelou se dá a

partir da representação de mulheres fortes, batalhadoras e independentes. Porque Marguerite

cresceu cercada de mulheres fortes, ela pode contestar a invenção sexista de que mulheres são

definidas em oposição às características associadas aos homens – e por isto fracas, irracionais,

passivas e assim por diante. Não estou tentando dizer que Marguerite estava completamente livre

dessas narrativas – tais ideologias opressoras influenciaram a experiência dela como uma mulher

negra. No entanto, observando as complexidades e as diferentes personalidades das mulheres ao seu

redor, ela pode repensar esses discursos dominantes sobre mulheres (negras) e criar sua própria

narrativa sobre quem ela é e sobre quem quer ser. A relevância dessa narrativa autobiográfica reside

no fato de que a narradora é o sujeito que cria sua própria representação, ao mesmo tempo em que é

criada dentro de discursos já preexistentes. A experiência de Marguerite é constituída dentro e

através do discurso, mas não é determinada por ele, uma vez que, como afirmado por Judith Butler,

"cultura" e "discurso" influenciam os sujeitos, mas não constituem esse sujeito" (Butler, 1990, 143).

Em outras palavras, o contexto social de Marguerite influencia quem ela é, mas não a determina.

Em vez disso, dá-lhe a possibilidade de agência.

Outras formas de resistência surgem pela narrativa, sendo uma delas um incidente com as

porcelanas da Sra. Cullinan – uma mulher que a emprega como ajudante doméstica. Este incidente

ilustra como Marguerite já está mudando e se tornando mais resistente às estruturas de poder e às

sutis formas de dominação. A relutância e resistência de Marguerite às ordens sociais é percebida

quando, por exemplo, ela mostra-se irritada com a sugestão de uma amiga de sua patroa de que Sra.

Cullinan deveria encurtar seu nome para Mary porque "Margaret" é um nome muito longo (elas

pronunciam “Marguerite” de forma errada): “I fumed to the kitchen. That horrible woman would

never have the chance to call me Mary because if I was starving I’d never work for her. I decided I

wouldn’t pee on her if her heart was on fire” (Angelou, 1969, 117). Esta passagem não mostra

somente a raiva de Marguerite em relação à sugestão de renomeação – o que sugere a consciência

de sua opressão racial e social, mas também revela o pensamento reflexivo e a consciência de

Marguerite de que ela tem algum controle em sua vida e o direito de decidir para quem ela trabalha.

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No dia seguinte, a Sra. Cullinan chama Marguerite pelo nome abreviado, uma atitude

altamente ofensiva, como pode ser visto na passagem abaixo:

Every person I knew had a hellish horror of being ‘called out of his name.’ It was a

dangerous practice to call a Negro anything that could be loosely construed as insulting

because of the centuries of their having been called niggers, jigs, dinges, blackbirds, crows,

boots and spooks. (Angelou 118)

Enfurecida por ter seu nome trocado, Marguerite quer abandonar o cargo. No entanto, uma vez que

sua avó não aceita facilmente sua renúncia, ela decide se demitir: por uma semana ela não segue

horários e não realiza suas tarefas apropriadamente. Visando tomar medidas radicais para causar sua

própria demissão, ela decide destruir algo que a Sra. Cullinan realmente gosta (as porcelanas). No

dia seguinte, quando Marguerite ouve a Sra. Cullinan gritando "Mary", ela faz exatamente isto,

deixando a herança favorita de sua patroa no chão. Transtornada pela perda de seus pratos de

porcelana, a Sra. Cullinan abandona seu racismo velado e xinga: “‘That clumsy nigger. Clumsy

little black nigger4’” (Angelou, 1969, 120).

Este incidente revela como Marguerite tornou-se mais confiante. Ela decide não trabalhar

para a Sra. Cullinan e opta por agir de acordo com sua decisão.

Everything was happening so fast I can’t remember whether her action preceded

her words, but I know that Mrs. Cullinan said, ‘Her name’s Margaret, goddamn it, her

name’s Margaret!’ And she threw a wedge of the broken plate at me. It could have been the

hysteria which put her aim off, but the flying crockery caught Miss Glory right over her ear

and she started screaming.

I left the front door wide opened so all the neighbors could hear.

Mrs. Cullinan was right about one thing. My name wasn’t Mary. (Angelou, 1969,

120)

Triunfante por alcançar seus objetivos, recusando-se a ser renomeada e a trabalhar para uma

mulher abusiva, ela deixa a casa da patroa. O fato de que Miss Glory5 é atingida pelo objeto voador

e começa a gritar enquanto Marguerite deixa a porta aberta para que os vizinhos também possam

ouvir pode ser entendido como uma espécie de desafio à Sra. Cullinan. Até aquele momento, a Sra.

Cullinan não tinha sido explicitamente racista, mas no primeiro sinal de problemas ela perde a

calma e revela seu comportamento abusivo. Ao deixar a porta aberta, Marguerite está quase

obrigando-a a revelar seu "privilegiado e racista verdadeiro eu". Além disso, a porta aberta também

4 É importante lembrar que o termo em inglês “nigger” é considerado uma forma extremamente ofensiva de dirigir-se a

uma pessoa negra. 5 Miss Glory é uma outra empregada doméstica da casa da Sra. Cullinan que costumava ser chamada Hallejujah.

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pode ser vista como um convite aos vizinhos (provavelmente pessoas brancas privilegiadas) para

testemunhar o triunfo e a agência desta menina negra.

Correa argumenta que o incidente com as porcelanas da Sra. Cullinan tem um efeito positivo

sobre Marguerite e contribui para o seu processo de autodescoberta. Para Correa, mesmo que

Marguerite não tenha certeza absoluta sobre quem ela é, ela sabe o que ela não é e aprende o que ela

não quer ser ou fazer. Como consequência, ela pode começar a redefinir-se em um novo "ser"

(Correa 85). Isto é, ao recusar as narrativas hegemônicas criadas sobre ela e a redefinição de sua

identidade, Marguerite começa a desenvolver seu senso de autoconhecimento.

Ao mudar-se para San Francisco para viver com sua mãe, Marguerite parece estar vivendo

um constante e crescente processo de mudança. Como parte desta mudança, ela decide que quer

trabalhar como condutora de bonde. Ela se fascina com a ideia de conduzir um bonde pela cidade,

em um uniforme, com uma pochete em sua cintura. No entanto, ela descobre que pessoas negras

não são aceitas como condutoras de bonde. A narradora confessa que, embora quisesse dizer que

seu primeiro sentimento era "uma fúria imediata que foi seguida pela nobre determinação de romper

a tradição restritiva", sua primeira reação à restrição foi decepção. No entanto, ela se convencera de

que ela conseguiria o cargo de condutora e logo ela iria "ascend(ed) the emotional ladder to haughty

indignation, and finally to that state of stubbornness where the mind is locked like the jaws of an

enraged bulldog " (Angelou, 1969, 284). Durante as próximas três semanas, Marguerite usaria toda

a sua determinação para conseguir o emprego que queria.

Marguerite é diariamente rejeitada ou evitada por recepcionistas, oficiais do escritório dos

condutores de bonde e até mesmo pelas organizações negras a quem recorreu para pedir apoio; não

conseguiram entender seu interesse por essa posição particular quando outros empregos, melhores

empregos, estavam abertos para pessoas negras. A narradora descreve quão exaustivo este processo

foi:

Downtown San Francisco became alien and cold, and the streets I had loved in a personal

familiarity were unknown lanes that twisted with malicious intent. Old buildings […] were

then imposing structures viciously joined to keep me out. My trips to the streetcar office

were of the frequency of a person on salary. The struggle expanded. I was no longer in

conflict only with the Market Street Railway but with the marble lobby of the building

which housed its offices, and elevators and their operators. (Angelou, 1969, 287) (Minha

ênfase)

O conflito interno de Marguerite é resultado do racismo como uma prática institucional que

mantém os negros excluídos e impotentes. Toda a discriminação que Marguerite encontra para

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preencher uma posição simples, como condutora, é o reflexo de anos de preconceito contra pessoas

negras e a necessidade de pessoas brancas de controlar os espaços que lhes são permitidos.

Um dos problemas com o racismo institucionalizado é que ele pode ser ignorado ou mesmo

não percebido pelas pessoas envolvidas no processo, especialmente aquelas que são privilegiadas

pela discriminação racial. Por exemplo, na primeira visita de Marguerite aos escritórios da empresa

ferroviária, a recepcionista a descarta dizendo que o gerente está fora e que ela não tem certeza se

ele voltaria no dia seguinte. No entanto, a descrição de Marguerite revela o quão espantada a

recepcionista pareceu estar com o interesse de Marguerite nesse trabalho e como ficou surpresa

quando Marguerite pediu o nome do gerente. A recepcionista já internalizou como natural essas

formas de discriminação e, embora não seja explicitamente racista com Marguerite, ela perpetua o

racismo, concordando com práticas discriminatórias, mesmo que em forma de racismo velado.

A narradora descreve sua interação com a recepcionista e pode-se entender melhor as

complexidades por trás dessas formas sutis de racismo:

In the street I saw the receptionist and myself going faithfully through paces that were stale

with familiarity, although I had never encountered that kind of situation before and,

probably, neither had she. We were like actors who, knowing the play by heart, were still

able to cry afresh over the old tragedies and laugh spontaneously at the comic situations.

The miserable little encounter had nothing to do with me, the me of me, any more

than it had to do with that silly clerk. The incident was a recurring dream, concocted years

before by stupid whites and it eternally came back to haunt us all. The secretary and I were

like Hamlet and Laertes in the final scene, where, because of harm done by one ancestor to

another, we were bound to duel to the death. Also because the play must end somewhere.

(Angelou, 1996, 286) (Minha ênfase)

Neste encontro (passivo-agressivo), Marguerite e a recepcionista são cordiais uma com a outra

porque fazem parte desta peça, deste jogo de poder. No entanto, para uma pessoa negra, este tipo de

"incidente" é parte de sua vida cotidiana, por isso aprendem a criar estratégias para lidar com essas

formas de racismo-de-cada-dia. Como a narração de Marguerite indica, a recepcionista pode nem

estar ciente de que ela está discriminando Marguerite com base em sua cor, mas ela, no entanto,

nega os direitos de Marguerite como cidadã. Além disso, dando uma desculpa para não receber

adequadamente as papeladas referentes à candidatura de Marguerite à vaga, ela se recusa a dar-lhe a

chance de competir.

A partir desta passagem em Caged Bird, pode-se estabelecer um diálogo com a discussão de

Butler sobre a performatividade. De acordo com Butler:

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Performativity is thus not a singular "act," for it is always a reiteration of a norm or set of

norms, and to the extent that it acquires an act-like status in the present, it conceals or

dissimulates the conventions of which it is a repetition. Moreover, this act is not primarily

theatrical; indeed, its apparent theatricality is produced to the extent that its historicity

remains dissimulated (and, conversely, its theatricality gains certain inevitability given the

impossibility of a full disclosure of its historicity). (Butler, 1993, 12-13)

Em consonância com esta noção de performatividade, pode-se entender as maneiras pelas

quais a recepcionista dissimula suas práticas discriminatórias. Com base na reformulação de

Derrida sobre (potencial) poder da performance, Butler chama a atenção para a noção de "citação

dissimulada" (dissimulated citation), que consiste em práticas que são tão constantemente repetidas

na história que passam a ser vistas como naturais. A narradora compara o encontro com a

recepcionista com a cena final de Hamlet, onde Hamlet e Laerte estão lutando até a morte por causa

das pendências e danos causados por um antepassado ao outro, uma luta que eles não começaram,

mas continuaram. Da mesma forma, a recepcionista e Marguerite se envolvem em uma “luta” que

acontece devido ao racismo e às imposições de gênero. Enquanto a recepcionista continua

carregando e perpetuando os preconceitos e o ódio de seus antepassados, Marguerite compartilha

com os seus o ressentimento e insatisfação causados por ideologias racistas historicamente

perpetuadas na sociedade. No entanto, Marguerite, que tem uma “consciência dupla” (double

consciousness), lê o "ato", revelando assim sua dissimulação6.

Com a noção de performatividade em mente, pode-se entender o jogo de poderes envolvidos

nas tentativas de Marguerite de conseguir o emprego. As constantes rejeições feitas pela

recepcionista do escritório podem ser vistas como a "citação dissimulada" repetida ao longo da

história como uma forma de negar aos negros a oportunidade de competir no mercado de trabalho.

No entanto, não foi apenas porque o enunciado performativo ocorreu com o uso de uma

"citacionalidade dissimulada" que falhou, mas porque a prática reiterativa da "citação" também

proporcionou a Marguerite a oportunidade de exercer agência. Ela joga o jogo do poder e "finge"

não se pautar em enunciações performativas (ela finge não reconhecer a citação como um modelo

iterável), e assim o discurso e a prática discriminatória não conseguem mais restringi-la.

6O texto de Derrida, citado em Butler, é: “Could a performative utterance succeed if its formulation did not repeat a

“coded” or iterable utterance, or in other words if the formula I pronounce in order to open a meeting, launch a ship or a

marriage was not identifiable as conforming with an iterable model, if it were not then identifiable in some ways as a

“citation”?. in such a typology the category of intention will not disappear: it will have its place, but from that place it

will no longer be able to govern the entire scene and system of utterance.” [l’enonciation] (Derrida APUD Butler, 1993,

12-13)

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Após o primeiro encontro de Marguerite com a recepcionista, ela inicialmente a perdoa em

sua mente, considerando-a como vítima do mesmo sistema que as tratam como marionetes. No

entanto, com o tempo, ela repensa a situação e reflete sobre os poderes da intersecção que

ocorreram naquela interação:

Her Southern nasal accent sliced my meditation and I looked deep into my thoughts. All

lies, all comfortable lies. The receptionist was not innocent and neither was I. The whole

charade we had played out in that crummy waiting room had directly to do with me, Black,

and her, white. (Angelou, 1969, 287)

Afinal, embora a recepcionista seja uma mulher (e provavelmente economicamente

desprivilegiada), ela é privilegiada o suficiente para oprimir Marguerite por ser negra. Marguerite e

a recepcionista ocupam diferentes pontos de uma linha de fatores que se cruzam, o que muda suas

perspectivas e experiências. Marguerite também se responsabiliza por fazer parte e aceitar “jogar”

nesse jogo de charadas.

Como já mencionado, ideologias opressivas, práticas e crenças discriminatórias precisam se

repetir para manter seu poder na sociedade. No entanto, a sociedade está em constante mudança. O

momento histórico em San Francisco se difere de outros momentos do passado e em outros lugares.

Por exemplo, na época que a narração retrata, negros já haviam conquistado alguns direitos e as

manifestações explícitas de racismo no local de trabalho já não eram aceitas. Portanto, a

recepcionista (e também as outras pessoas com quem Marguerite fala) tenta disfarçar seu

preconceito quando Marguerite se recusa a aceitar sua rejeição. E depois de semanas de

persistência, Marguerite é contratada como a primeira pessoa negra a dirigir os bondes de San

Francisco. Sua determinação é o exemplo final de como ela se desenvolveu e cresceu ao longo da

narrativa. De uma pequena menina com um complexo de inferioridade, ela se desenvolve em uma

adolescente forte e independente.

O argumento final de Correa em "Through Their Voices She Found Your Voice" é que

Marguerite canta sua canção com as vozes de seus antepassados e com as vozes de todas as

mulheres em sua vida que a ajudaram a encontrar sua própria voz e a cantar sua canção de

liberdade. De fato, a sabedoria da Grandmother Henderson, sua criatividade, a poderosa aura que

ela tinha, o amor que emanava de todos os seus gestos e sua esperança infinita em um futuro melhor

para os negros; a força e a coragem da Grandmother Baxter, que não era facilmente intimidada ou

constrangida pelas imposições e expectativas sociais sobre ela como mulher branca; o amor da Sra.

Flowers pela literatura e a consciência dela sobre a importância da alfabetização; isso tudo sem

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mencionar a graça de Vivian Baxter (mãe de Marguerite) e seu desapego pelas convenções da

sociedade – todas essas mulheres influenciaram a constante formação da identidade de Marguerite.

To be left alone on the tightrope of youthful unknowing is to experience the excruciating

beauty of a full freedom and the threat of eternal indecision. Few, if any, survive their

teens. Most surrender to the vague but murderous pressure of adult conformity. It becomes

easier to die and avoid conflicts than to maintain a constant battle with the superior forces

of maturity. (Angelou 291)

A narradora observa como a identidade das mulheres negras é um constante processo que

resulta da interseção de diferentes forças - como o racismo, o sexismo e a sensação de impotência

que o racismo causa na mente de pessoas negras. Marguerite pode ser vista nesta perspectiva em I

Know Why the Caged Bird Sings. Ela é uma mulher negra lutando para sobreviver, e nesta luta ela

torna-se cada vez mais formidável. O fato de que a narrativa termina com a descoberta de que

Marguerite, ainda adolescente, se encontra grávida, revela a complexidade de sua experiência, isto

é, apesar de ter-se tornado mais responsável por suas próprias escolhas, Marguerite ainda está

sujeita a cometer erros. Ela é um sujeito em constante transformação e não se pode impor uma

fixidez à sua identidade, pois esta é um processo que, como a vida, está sempre em movimento.

Durante a narrativa, Marguerite amadurece, e é possível encontrar sinais de resistência nesta

transformação.

Conforme discutido ao longo deste artigo, a imagem do "pássaro engaiolado" está associada

à ideia de restrição. Esta restrição pode ser física, mas também pode referir-se à prisão em uma

esfera mais psicológica, econômica e também social. A atividade de cantar presente na metáfora do

"pássaro engaiolado que canta" envolve a noção de criatividade e voz. Sendo assim, pode-se

estender a metáfora de "o pássaro engaiolado que canta" para toda a narrativa de Angelou, sendo I

Know Why the Caged Bird Sings uma entre muitas das canções produzidas por uma geração de

“pássaros literários”. Nesta perspectiva, a própria Maya Angelou poderia ser vista como o "pássaro

engaiolado". Pode-se perguntar em que sentido Angelou como autora poderia ser considerada um

"pássaro engaiolado"? Mas a história silenciou pessoas negras e mulheres por tanto tempo que a

resposta é simples. Aos negros e às mulheres não só foram negados durante séculos o direito de ler

e escrever, mas eles foram também silenciados quando conseguiam contar suas histórias. As

restrições por algum tempo também foram físicas, uma vez que foram proibidos de ocupar os

espaços destinados aos homens brancos. As implicações de tais restrições impostas aos negros e às

mulheres ainda afetam a sociedade, e a luta para encontrar uma voz em um ambiente

heteronormativo masculino e branco continua até hoje. Ainda assim, há pessoas como Angelou que

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compartilham sua experiência e contribuem para criar novas narrativas, abrindo espaço para mais

possibilidades fictícias e reais para mulheres e para pessoas negras.

Referências

ANGELOU, Maya. I Know Why the Caged Bird Sings. 1969. London: Virago Press, 2014.

BRAH, Avtar. Ain't I a Woman? Revisiting Intersectionality. Journal of International Women's

Studies 5.3 Feminist Challenges: Crossing Boundaries. 2004. 75-86.

BUTLER, Judith. Bodies that Matter: On the Discursive Limits of “Sex”. London: Routledge,

1993.

BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. 1990. 10th anniversary

edition. London: Routledge, 1999.

CÔRREA, Cláudia Maria Fernandes. "Though Their Voice She Found Her Voice." Ariel: A

Review of International English Literature 41.01 (2001): 69-90.

CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence

Against Women of Color." Stanford Law Review 43.6 (1991): 1241-299.

HOOKS, bell. Ain't I a Woman: Black Women and Feminism. Boston, MA: South End, 1981.

LUGONES, Maria. "Heterosexualism and the Colonial/Modern Gender System." Hypatia. 22:1

(2007): 186-209.

The song of the caged bird: intersectionality and agency in Maya Angelou’s narrative

Astract: This research addresses the issue of intersectionality and agency in Maya Angelou’s I

Know Why the Caged Bird Sings (1969). More specifically, this research aims at investigating the

construction of the metaphor of the “caged bird that sings” in this autobiographical work. In order

to tackle such investigation, this research focuses on Kimberlé Crenshaw’s (1991) discussion on the

concept of “intersectionality”. In addition, this research draws on Judith Butler’s (1994) discussion

on “agency” in order to investigate whether the narrative indicates signs of resistance. Crenshaw

coined the term intersectionality to denote the several ways in which different axis of identity–such

as race, gender, and class–intersect and constantly constitute the experience of black women. This

research suggests that although different modes of oppression intersect and constrain the protagonist

of the narrative, Marguerite is vested with the capacity for exercising agency and expressing some

forms of creative resistance. This research refuses the simplistic view that intersectionality and

Angelou’s narrative is about victimization and recognizes resistance in the struggle of the caged

bird that sings.

Keywords: Intersectionality. Agency. Resistance. Gender. Race.