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O CONCEITO DE TRADIÇÃO EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI: HISTORICIDADE E PROJETO POLÍTICO Bruno Batista Bolfarini Doutorando Universidade Federal do Espírito Santo (PPGHIS-UFES) [email protected] Após um século de guerras civis e marcado pela derrota na Guerra do Pacífico (1879-1894) o Peru do início do século XX, graças a uma relativa estabilidade política marcada pela chamada República Aristocrática governo de caráter elitista civil dentro do ideal do “cesarismo ilustrado” que defendeu um projeto de modernização em moldes europeus, sustentado pelo ingresso massivo de ativos financeiros estrangeiros dentro do contexto do imperialismo econômico, passou por um profundo processo de modernização e dinamização econômica. (Cf. CONTRERAS; CUETO, 2007). Contudo, apesar da modernização que ocorria nas cidades e dinamização do mercado de trabalho, com o aumento do proletariado e de uma classe média urbana, no campo ainda era forte as formas senhoriais nas relações de trabalho. Distantes dessa modernidade, a Sierra peruana ainda trazia aspectos de uma sociedade colonial. O diagnóstico de uma sociedade dicotômica foi tratado como o principal obstáculo para o Peru não se tornar uma nação moderna. Esse diagnóstico, que já aparecia nos discursos intelectuais do século XIX, manteve-se no século XX e que ainda pode ser visto nos dias de hoje, revela um país em que na Costa podem ser encontrados elementos mais característicos de uma sociedade capitalista moderna (comércio, indústrias, urbanização e relações de trabalho assalariadas) e de elementos culturais de uma tradição criolla 1 . Por sua vez, na Sierra andina, os traços culturais indígenas ainda são muito presentes, principalmente nas formas de organização das comunidades que trazem traços dos chamados ayllus 2 associadas a relações de trabalho que remontam ao período colonial, 1 Utilizamos o termo criollo na grafia em espanhol para referir-se ao espanhol nascido na América e diferenciar do termo crioulo que em português tem outra conotação (N. A.). 2 : Palavra quéchua que significa linhagem e foi utilizada pelos administradores espanhóis para se referir as unidades agrícolas familiares indígenas. (MURRA, 2004. p. 79-80.).

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O CONCEITO DE TRADIÇÃO EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI:

HISTORICIDADE E PROJETO POLÍTICO

Bruno Batista Bolfarini

Doutorando Universidade Federal do Espírito Santo (PPGHIS-UFES)

[email protected]

Após um século de guerras civis e marcado pela derrota na Guerra do Pacífico

(1879-1894) o Peru do início do século XX, graças a uma relativa estabilidade política

marcada pela chamada República Aristocrática – governo de caráter elitista civil dentro

do ideal do “cesarismo ilustrado” que defendeu um projeto de modernização em moldes

europeus, sustentado pelo ingresso massivo de ativos financeiros estrangeiros dentro do

contexto do imperialismo econômico, passou por um profundo processo de modernização

e dinamização econômica. (Cf. CONTRERAS; CUETO, 2007).

Contudo, apesar da modernização que ocorria nas cidades e dinamização do

mercado de trabalho, com o aumento do proletariado e de uma classe média urbana, no

campo ainda era forte as formas senhoriais nas relações de trabalho. Distantes dessa

modernidade, a Sierra peruana ainda trazia aspectos de uma sociedade colonial.

O diagnóstico de uma sociedade dicotômica foi tratado como o principal obstáculo

para o Peru não se tornar uma nação moderna. Esse diagnóstico, que já aparecia nos

discursos intelectuais do século XIX, manteve-se no século XX e que ainda pode ser visto

nos dias de hoje, revela um país em que na Costa podem ser encontrados elementos mais

característicos de uma sociedade capitalista moderna (comércio, indústrias, urbanização

e relações de trabalho assalariadas) e de elementos culturais de uma tradição criolla1. Por

sua vez, na Sierra andina, os traços culturais indígenas ainda são muito presentes,

principalmente nas formas de organização das comunidades que trazem traços dos

chamados ayllus2 associadas a relações de trabalho que remontam ao período colonial,

1 Utilizamos o termo criollo na grafia em espanhol para referir-se ao espanhol nascido na América e

diferenciar do termo crioulo que em português tem outra conotação (N. A.). 2: Palavra quéchua que significa linhagem e foi utilizada pelos administradores espanhóis para se referir as

unidades agrícolas familiares indígenas. (MURRA, 2004. p. 79-80.).

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que o intelectual peruano José Carlos Mariátegui (1896-1930) chamou nos seus Siete

Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana de feudalidade.

A partir de uma concepção materialista histórica, Mariátegui enxergava que no

Peru coexistiam formas feudais e capitalistas, que estavam presentes de forma dicotômica

nesses espaços geográficos. Ele expõe que no caso peruano o capitalismo manteve

justamente essa dicotomia porque a incipiente burguesia peruana estaria colonizada pelo

capitalismo internacional e assim, mantinha-se a colonialidade3 na sociedade peruana que

tinha, portanto, por características um capitalismo incipiente na Costa, relações servis na

Sierra andina e a subjugação dos elementos histórico-culturais indígenas (nesse caso

trata-se dos elementos remanescentes do período incaico) pelos elementos histórico-

culturais criollos e defende que o socialismo seria a única via para romper com essa

colonialidade.

Esa liquidación del gamonalismo, o de la feudalidad, podía haber sido

realizada por la república dentro de los principios liberales y capitalistas. [...].

Saboteados por la propia clase encargada de aplicarlos, durante más de un siglo

han sido impotentes para redimir al indio de una servidumbre que constituía

un hecho absolutamente solidario con el de la feudalidad. No es el caso de

esperar que hoy, que estos principios están en crisis en el mundo, adquieran

repentinamente en el Perú una insólita vitalidad creadora. El pensamiento revolucionario, y aún el reformista, no puede ser ya liberal sino

socialista. El socialismo aparece en nuestra historia no por una razón de azar,

de imitación o de moda, como espíritus superficiales suponen, sino como una

fatalidad histórica. Y sucede que mientras, de un lado, los que profesamos el

socialismo propugnamos lógica y coherentemente la reorganización del país

sobre bases socialistas y, - constatando que el régimen económico y político

que combatimos se ha convertido gradualmente en una fuerza de colonización

del país por los capitalismos imperialistas extranjeros, - proclamamos que este

es un instante de nuestra historia en que no es posible ser efectivamente

nacionalista y revolucionario sin ser socialista; [...]. (MARIÁTEGUI, 1984, p.

37-38).

Vale destacar que durante o período de produção intelectual de Mariátegui o Peru

passou pelo fim da chamada República Aristocrática para o Oncenio de Leguia (governo

ditatorial de Augusto B. Leguia entre 1919 e 1930).

3 Utilizamos o termo colonialidade como correlato ao que Mariátegui denomina feudalidade, pois o autor

utiliza este termo para se referir à manutenção de uma organização econômica e do trabalho do período

colonial. Neste sentido, em diversos textos o autor, dentro de uma perspectiva marxista, fez um uso indevido

e anacrônico do termo feudalismo para caracterizar o regime de exploração da terra e do indígena no

altiplano peruano para contrapor ao que ele referia como forma capitalista de exploração da terra,

principalmente no cultivo da cana-de-açúcar no litoral norte peruano (Cf. BOLFARINI, 2017).

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Esse rompimento político foi possibilitado graças à modernização e o progresso

tão almejados pelos civilistas, pois o modelo elitista de governo perdeu sustentação com

as inúmeras convulsões urbanas e em 1918 os civilistas perderiam as eleições para

Leguia, que teve sua posse garantida pelos movimentos operários e estudantis e por

setores da classe média e militar que impediram um golpe que o impedisse de assumir o

governo. Então, com esse apoio Leguia consegue o contragolpe e institui a Pátria Nueva.

Além das convulsões no meio urbano, o campo estava passando por um

verdadeiro turbilhão, motivado pelos levantes de comunidades indígenas contra a perda

de suas terras contra a exploração dos gamonales4 ocasionando um ciclo de rebeliões

indígenas no Sul Andino peruano. Uma das principais reivindicações desses levantes foi

a restauração do Tawantinsuyo5, assim, para além de uma questão agrária, esses levantes

portavam uma reivindicação de recuperação de um passado idealizado no passado

incaico.

Durante o governo de Leguia, houve uma tentativa de pacificar os setores

indígenas através de políticas paternalistas e de uso político do passado incaico, por outro

lado, houve um recrudescimento das relações servis no campo com a promulgação da Ley

de Conscripción Vial, que previa o recrutamento compulsório de indígenas para

trabalharem em obras viárias no interior peruano, tratava-se de uma reinvenção da mita6

colonial e, com o passar dos anos, o governo que instituíra o Patronato de la Raza

Indígena como forma de proteger as comunidades indígenas do gamonalismo reforçou as

formas de dominação sobre elas. Além disso, nas cidades houve uma perseguição aos

movimentos anarcossocialistas, que haviam crescido desde a última década, e restrições

à imprensa. Foi, nesse contexto, que a vanguarda intelectual indigenista peruana dos anos

19207 ficou permeada pelo ideário socialista e pelo ideal indigenista.

4 O gamonal era uma espécie de senhor de terras que tinha plenos poderes sobre a população local, ditando

suas próprias leis na região em que exercia influência, e que tinha seu poder baseado no controle sobre a

mão de obra indígena. (Cf. CONTRERAS; CUETO, 2007, p. 108). 5 Antiga unidade administrativa que correspondia ao domínio inca. (N.A.). 6 Sistema de recrutamento de trabalho com origens ao período pré-colonial, que ocorreu no espaço de

dominação incaica, e que foi adaptada e mantida pelos espanhóis durante o período colonial, em que

parcelas da população índia masculina era destinada a cumprir serviços temporários e após cumprido o

período, os índios retornavam às suas comunidades de origem. (N.A.). 7 Aqui nos referimos ao movimento intelectual peruano que a historiadora Fernanda Beigel denominou de

indigenismo revolucionário, que preconizou um discurso indigenista que, como movimento estético e

político juntou a reivindicação da tradição indígena com o socialismo, que teve como um dos principais

expoentes José Carlos Mariátegui. (Cf. BEIGEL, 2015, p. 39).

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Motivados pelos eventos de 1917 na Rússia e pelos levantes indígenas no campo,

essa geração de intelectuais, entre eles Mariátegui enxergaram que algo de novo estava

por ocorrer, abrindo-se, assim, uma possibilidade de ruptura com a sociedade dicotômica

e colonial peruana através do resgate da tradição andina projetando-a em uma expectativa

revolucionária e, assim, os levantes indígenas desse período fizeram com que os

intelectuais socialistas indigenistas enxergassem o novo a partir da ideia de uma

revolução indígena e socialista. Não se tratava uma mera restauração do incásico, de uma

revolução no sentido estrito do conceito de retorno, mas sim de trazer de volta o passado

inca como possibilidade de revolução dentro da perspectiva moderna, isto é, da revolução

como rompimento, como novidade.

Como visto, na análise histórica que fez da sociedade peruana, Mariátegui,

mostrou, através de uma perspectiva materialista histórica, um esgotamento nas fórmulas

liberais capitalistas para resolução do problema peruano: da permanência da

colonialidade no Peru que o inviabilizaria de ser uma nação moderna. Então, diante da

impossibilidade de realização da revolução burguesa no Peru, propôs um socialismo

heterodoxo como forma de romper com essa colonialidade , e assim, contra o etapismo

dogmático marxista que estabelecia invés da sociedade burguesa liberal como condição

histórica para realização da revolução socialista, Mariátegui propõe que o passado andino

teria o mito como força desencadeadora desse processo revolucionário: “A teoria dos

mitos revolucionários, que aplica ao movimento socialista a experiência dos movimentos

religiosos, estabelece as bases de uma filosofia da revolução, [...]” (MARIÁTEGUI, 2011,

p. 30).

Nessa tensão entre dogma e heterodoxia, entendemos que surge em sua concepção

marxista o resgate do passado indígena como o mito para a construção de uma tradição

peruana, que rompesse com o passadismo criolla trazendo o passado andino em um

contexto vanguardista. Dessa forma, o rompimento com a colonialidade viria da criação

de uma nova tradição nacional, que uniria o passado indígena com a modernidade

socialista.

Em sua análise histórica da sociedade peruana, Mariátegui critica a exaltação do

colonizador espanhol e da sociedade colonial como elementos nacionais peruanos e

enxerga nesse ideal hispanista um ideal passadista.

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Las preocupaciones de otros pueblos son más o menos futuristas. Las del

nuestro casi siempre tácita o explícitamente pasadistas. El futuro ha tenido en

esta tierra muy mala suerte y ha recibido muy injusto trato. [...].

El pasadismo que tanto ha oprimido y deprimido el corazón de los peruanos

es, por otra parte, un pasadismo de mala ley. El período de nuestra historia que

más nos ha atraído no ha sido nunca el período incaico. Esa edad es demasiado

autóctona, demasiado nacional, demasiado indígena para emocionar a los

lánguidos criollos de la República. Estos criollos no se sienten, no se han

podido sentir, herederos y descendientes de lo incásico. El respeto a lo incásico no es aquí espontáneo sino en algunos artistas y arqueólogos. (MARIÁTEGUI,

1986, p. 29-30).

É importante ressaltar que aqui reside uma crítica à geração intelectual peruana

anterior, a “Geração dos 900”8, que fortemente pelo ideal arielista (baseada na obra Ariel,

de José Rodó), defendiam a exaltação das tradições coloniais e da herança hispânica

contra o materialismo anglo-saxão. (Cf. SANDERS, 1997). Nesse ideal hispanista,

Mariátegui, enxerga que havia uma valorização do passado como passado, sem uma

perspectiva de projeto de futuro, não apresentando a possibilidade de algo novo, que seria

o rompimento com a colonialidade. Além disso, apontou que nessa valorização do

elemento hispânico houve uma negação do passado incaico, pois entendeu que os

hispanistas, com sua atitude passadista, enxergaram esse passado autóctone como uma

“curiosidade arqueológica. E foi nessa crítica que Mariátegui contrapôs sua perspectiva

histórica ao que ele chamou de passadismo.

La capacidad de comprender el pasado es solidaria de la capacidad de sentir el

presente y de inquietarse por el porvenir. El hombre moderno no es sólo el que

más ha avanzado en la reconstrucción de lo que fue, sino también el que más ha avanzado en la previsión de lo que será.

El espíritu de nuestra gente es, pues, pasadista; pero no es histórico. Tenemos

algunos trabajos parciales de exploración histórica, más no tenemos todavía

ningún gran trabajo de síntesis. Nuestros estudios históricos son, casi en su

totalidad, inertes o falsos, fríos o retóricos.

El culto romántico del pasado es una morbosidad de la cual necesitamos

curarnos. (MARIÁTEGUI, 1986, p. 32-33).

O pensador peruano propõe uma possibilidade de história que compreendesse o

passado solidariamente com o sentimento que se tem no presente e com a inquietude em

relação ao futuro, não se tratando apenas de reconstruir um passado, mas de pensá-lo

projetando-o para o futuro.

8 Grupo de intelectuais oriundos da oligarquia peruana e formados pela Universidade de São Marcos, tem

como principais expoentes Francisco García Calderón e José de la Riva-Agüero y Osma. (N.A.).

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A atitude passadista com suas raízes fincadas em uma tradição colonial hispanista

continuaria nutrindo as gerações posteriores de todos os prejuízos que a colonialidade

traria para uma possibilidade de uma unidade, já que esse passado apenas separou e

distanciou os diversos elementos históricos e culturais que comporiam a sociedade

peruana. Assim, como contraponto ao que chama passadismo e tradicionalismo,

Mariátegui propõe seu conceito de tradição.

Porque la tradición es, contra lo que desean los tradicionalistas, viva y móvil.

La crean los que la niegan para renovarla y enriquecerla. La matan los que la quieren muerta y fija, prolongación de un pasado en un presente sin fuerza,

para incorporar en ella su espíritu y para meter en ella su sangre.

Estas palabras merecen ser solícitamente recalcadas y explicadas. Desde que

las he escrito, me siento convidado a estrenar una tesis revolucionaria de la

tradición. Hablo, claro está, de la tradición entendida como patrimonio y

continuidad histórica. (MARIÁTEGUI, 1986, p.161).

Ao conceito de tradição é imputado uma ideia de mobilidade. Não se trata de um

passado fixo, mas de um passado que é projetado como potência no presente, isto é, aquilo

que é transmitido como continuidade histórica e tem força no presente no sentido de

futuridade. Por fim, acerca da oposição entre tradição e tradicionalismo, esclarece que:

No hay que identificar a la tradición con los tradicionalistas. El tradicionalismo

- no me refiero a la doctrina filosófica sino a una actitud política o sentimental

que se resuelve invariablemente en mero conservantismo - es verdad, el mayor enemigo de la tradición. Porque se obstina interesadamente en definirla como

un conjunto de reliquias inertes y símbolos extintos. Y en compendiarla en una

receta escueta y única.

La tradición, en tanto, se caracteriza precisamente por su resistencia a dejarse

aprehender en una fórmula hermética. Como resultado de una serie de

experiencias, - esto es de sucesivas transformaciones de la realidad bajo la

acción de un ideal que la supera consultándola y la modela obedeciéndola [...].

(MARIÁTEGUI, 1986, p. 162-163).

Ao propor a oposição entre tradição e tradicionalismo, José Carlos Mariátegui

busca justamente romper com essa oposição entre mito e razão. Nesse sentido, contra um

passado inerte presente no tradicionalismo criollo, é colocado o ideal de tradição andina

que teria potência no presente de ser desencadeadora do processo revolucionário. Não

seria uma restauração do passado incaico imutável naquilo que se realizou, mas a

incorporação do que aquele passado transmitiu dentro de um processo revolucionário,

que representaria a ação de um ideal. Aí estaria, para Mariátegui, a tarefa histórica da

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vanguarda indigenista – romper com o tradicionalismo e buscar no passado incaico a

verdadeira tradição peruana.

En oposición a este espíritu, la vanguardia propugna la reconstrucción peruana

sobre la base del indio. La nueva generación reivindica nuestro verdadero

pasad, nuestra verdadera historia. El pasadismo se contenta, entre nosotros con los frágiles recuerdos galantes del virreinato. El vanguardismo, en tanto, busca

para su obra más remotamente antiguos.

Y su indigenismo no es una especulación literaria ni un pasatiempo romántico

[...]. Los indigenistas revolucionarios, en lugar de un platónico amor al pasado

incaico, manifiestan una activa y concreta solidaridad con el indio de hoy.

Este indigenismo no sueña con utópicas restauraciones. Siente el pasado como

una raíz, pero no como un programa. Su concepción de la historia y de sus

fenómenos es realista y moderna. No ignora ni olvida ninguno de los hechos

históricos que, en estos cuatro siglos, han modificado, con la realidad del Perú,

la realidad del mundo. (MARIÁTEGUI, 1986, p. 99-100)

Podemos perceber que para Mariátegui a tradição se encerra em uma fórmula: a

soma de uma série de experiências que transformaram a realidade e que nos foi

transmitida sob a ação de um ideal, isto é, de uma projeção, que entendemos como um

lançar-se em direção ao passado. Portanto, nessa crítica a uma postura romântica de

valorização do passado como um baú de antiguidades, Mariátegui trouxe uma leitura

idealista acerca da História – é nesse ponto que é imputada à tradição um papel mítico

motriz de um processo revolucionário, pois ela é moldada pela ação de um ideal.

Aqui, julgamos interessante trazer a crítica de Hans-Georg Gadamer acerca do

historicismo para compreender esse movimento na concepção mariateguiana em relação

ao que ele entende por tradição. Em Verdade e Método, Gadamer coloca que na

compreensão o sentido se manifesta a partir de determinadas expectativas e de um sentido

determinado (GADAMER, 1999, p. 402), desse modo no processo de compreensão há

uma noção de futuridade que corresponderia a entender o passado a partir de uma

expectativa – projeto de futuro que seria, então, formada pela apropriação das opiniões

prévias e dos preconceitos.

Como condição temporal existencial, a noção de preconceito refere a um lançar-

se em direção ao passado a partir daquilo do que nos foi transmitido, da nossa circunvisão

de mundo, “por isso os preconceitos de um indivíduo são muito mais que seus juízos, são

a realidade histórica do seu ser” (GADAMER, 1999, p. 415). Assim, esse conceito pode

ser entendido como um conceito que porta uma noção temporal de futuro projetado para

o passado.

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Por sua vez, Gadamer coloca que a tradição, no romantismo, é vista como uma

forma de autoridade, no sentido em que nosso ser histórico é determinado pela autoridade

do que foi transmitido. Aí residiria o caráter ambíguo da tradição, já que o romantismo,

na crítica ao Aufklärung9, entendeu-a como contrária à liberdade da razão, isto é, como

algo dado histórico da natureza. Nesse contexto, o historicismo, como reflexão crítica

própria, procurou renovar a tradição opondo-a à razão, transformando-a em

tradicionalismo (Cf. GADAMER, 1999, p. 422). Contra essa oposição, Gadamer explica

que:

[...] entre a tradição e a razão não existe nenhuma oposição que seja assim tão

incondicional. [...]. Na realidade, a tradição sempre é um momento da

liberdade e da própria história. Também a tradição mais autêntica e venerável

não se realiza naturalmente, em virtude da capacidade de permanência daquilo

que, singularmente está aí, mas necessita ser afirmada, assumida e cultivada.

(GADAMER, 1999, p. 422).

Hans Gadamer explica que na valorização do passado por ele mesmo, o

romantismo colocou a tradição (no sentido daquilo que nos é transmitido) como uma

forma de autoridade, assim nosso ser histórico é determinado pela autoridade do que foi

transmitido. (Cf. GADAMER, 1999, p. 421-422). Nesse sentido, fazendo um paralelo à

crítica mariateguiana ao passadismo, podemos colocar que ao imputar no passado uma

autoridade através daquilo do que nos foi transmitido, fechamos nossas possibilidades de

compreensão histórica e de expectativas em relação ao futuro, assim, o futuro estaria dado

em relação ao que nos foi transmitido. Trata-se, assim, de uma atitude histórica que não

permite romper com o velho, a que Mariátegui chamaria de tradicionalismo

No se puede afirmar hechos e ideas nuevas si no se rompe definitivamente con

los hechos e ideas viejas. Mientras algún cordón umbilical nos una a las

generaciones que nos han precedido, nuestra generación seguirá alimentándose

de prejuicios y de supersticiones. Lo que este país tiene de vital son sus

hombres jóvenes; no sus mestizas antiguallas. El pasado y sus pobres residuos

son, en nuestro caso, un patrimonio demasiado exiguo. El pasado, sobre, todo,

dispersa, aísla, separa, diferencia demasiado los elementos de la nacionalidad,

tan mal combinados, tal mal concertados todavía. El pasado nos enemista. Al

porvenir le toca darnos unidad. (MARIÁTEGUI, 1986, p. 34).

9 Podemos traduzir por Esclarecimento ao invés de Iluminismo, mas mantivemos o conceito colocado por

Gadamer mantendo a sua argumentação e relacionando às mudanças na forma de compreensão do mundo

a partir do século XVIII, isto é, os paradigmas da modernidade. (N.A.).

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Vimos que no conceito de tradição de Mariátegui há uma crítica à compreensão

da histórica como um mero conjunto de relíquias e antiguidades, e também há uma

concepção idealista de que a tradição adquire importância como permanência no presente,

mas que voltada para um ideal de futuro, isto é, uma filosofia da História na qual existiria

uma expectativa a se realizar, que no caso seria a revolução socialista.

Desse modo, trazer a tradição andina para a construção de uma nova tradição

peruana adquire importância no ideal mariateguiano pelo fato de ser portador do elemento

mítico que desencadearia a revolução e, por conseguinte, realizaria o socialismo no Peru.

El pasado incaico ha entrado en nuestra historia, reivindicado no por los

tradicionalistas sino por los revolucionarios. En esto consiste la derrota del

colonialismo, sobreviviente aún, en parte, como estado social -feudalidad,

gamonalismo-, pero batido para siempre como espíritu. La revolución ha

reivindicado nuestra más antigua tradición.

Y esto no tiene nada de insólito, y ni siquiera nacional no como un utópico

ideal de restauración romántica, sino como una reintegración espiritual de la

historia y la patria peruanas. Reintegración profundamente revolucionaria en su intención y su trascendencia. (MARIÁTEGUI, 1986, p. 168).

O passado incaico, como elemento mítico, é reivindicado pela revolução, isto é, a

visão idealizada do passado é movida pela ação de um ideal, pelo ideal de rompimento

da colonialidade e, por conseguinte da realização da revolução socialista. A reintegração

do passado incaico se dá pelo caráter transcendente daquilo que aconteceu como

possibilidade de acontecer. Mito e razão se conciliam no sentido em que o antigo mostra

sua potência na vanguarda, é aí que tradição e revolução se conectariam.

A una crítica familiarizada con las conciliaciones de la revolución y la

tradición, el indigenismo de los vanguardistas peruanos no les parece arbitrario. Comentando el primer número de la revista Amauta, "La Fiera

Letteraria" se complacía de que su vanguardismo se armonizase con la más

anciana tradición nacional.

Este criterio, por otra parte, no asoma en la crítica sólo ahora. La filosofía post-

hegeliana de la historia, tiende espontánea y naturalmente, a la misma

conciliación. (MARIÁTEGUI, 1986, p. 168)

Ao reconhecer que sua concepção histórica seria pós-hegeliana, Mariátegui

propõe que essa reivindicação do passado incaico não seja mera restauração, mas sim

uma reintegração espiritual à história peruana que a colonialidade tentou apagar. Nesse

sentido, a tradição andina vista como uma reconexão com o passado, buscou naquilo que

está permanente no presente daquilo que foi transmitido do incásico – o comunitarismo

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andino, a força revolucionária que possibilitaria a realização da modernidade como razão

histórica, isto é, o socialismo.

Fica claro que há um ideal no conceito de tradição em Mariátegui de superação e

de progresso que faria com que a tradição adquirisse um aspecto revolucionário.

[...] la tradición tiene siempre un aspecto ideal - que es el fecundo como

fermento o impulso de progreso o superación - y un aspecto empírico, que la

refleja sin contenerla esencialmente. Y porque la tradición está siempre en

crecimiento bajo nuestros ojos, que tan frecuentemente se empeñan en quererla

inmóvil y acabada. (MARIÁTEGUI, 1986, p. 170)

Então, leitura do passado feita pelo pensador peruano, pode ser entendida a partir

dos termos propostos por Gadamer, como uma leitura preconceituosa do passado, já que

a história andina é idealizada conforme uma expectativa de futuro que foi baseada nas

experiências acumuladas daquilo que foi transmitido. Nesse sentido, a partir de uma

concepção idealista histórica, o papel da vanguarda indigenista peruana, para José Carlos

Mariátegui, seria o de mostrar a potência no presente desse passado andino e, desvelar

seu potencial revolucionário e realizar a História, conciliando mito e razão.

Essa expectativa pelo novo, pelo revolucionário, que experiência de aceleração

temporal que o progresso e modernidade trouxeram para a sociedade peruana não

conciliava mais como o imobilismo de uma sociedade dicotômica. Nesse sentido,

Mariátegui estava experimento essa articulação temporal que a modernidade trouxe, na

qual, segundo Reinará Koselleck:

[...] as categorias da aceleração e do retardamento, evidentes desde a

Revolução Francesa, modificam, em ritmo variável, as relações entre passado

e futuro, conforme o partido ou ponto de vista político. Aqui reside o caráter

comum entre progresso e o historicismo.” (KOSELLECK, 2006, p. 59).

Dessa maneira, o passado adquire potência no presente ao ser projetado como

possibilidade para o futuro. Assim, o passado andino, resgatado como tradição adquire

um aspecto de futuro, contudo, a possibilidade de futuro reside no passado evocado, aí

reside o aspecto pelo qual a historicidade, entendida como possibilidade de potência do

passado no presente, pode ser compreendida como mote revolucionário no projeto

político de José Carlos Mariátegui.

El socialismo, en fin, está en la tradición americana. La más avanzada

organización comunista, primitiva, que registra la historia, es la inkaica.

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No queremos, ciertamente, que el socialismo sea en América calco y copia.

Debe ser creación heroica. Tenemos que dar vida, con nuestra propia realidad,

en nuestro propio lenguaje, al socialismo indo-americano. He aquí una misión

digna de una generación nueva. (MARIÁTEGUI, 1972, p. 249)

Portanto, o ideal de revolução socialista mariateguiano, que foi heterodoxo em

relação ao etapismo preconizado pelo socialismo dogmático, tem suas bases na concepção

que Mariátegui elaborou a respeito da tradição. É na conciliação entre mito – o passado

andino - e a razão – interpretação desse passado como possibilidade de futuro sob a ação

de um ideal, que podemos enxergar como o projeto socialista de José Carlos Mariátegui

deveria levar em conta o elemento indígena.

BIBLIOGRAFIA

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