O Dinossauro - Oswaldo de Meira Penna

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JOS OSVALDO DE MEIRA PENNA

O DINOSSAUROUma pesquisa sobre o Estado, o patrimonialismo selvagem e a nova classe de intelectuais e burocratas.

T. A. QUEIROZ, EDITORSo Paulo

Capa: Dept. de Arte da TAQ Verso digital produzida e revisada por Elisa Lucena Martins

Dados de Catalogao na Publicao (CIP) Internacional (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Penna, Jos Osvaldo de Meira, 1917O dinossauro : uma pesquisa sobre o Estado, o patrimonialismo selvagem e a nova classe de intelectuais e burocratas / Jose Osvaldo de Meira Penna. -- So Paulo: T.A. Queiroz, 1988. Bibliografia. 1. Brasil - Poltica e governo 2. Burocracia 3. Burocracia - Brasil 4. Elite (Cincias sociais) - Brasil 5. Intelectuais 6. Intelectuais - Brasil I. Ttulo. II. Ttulo: Uma pesquisa sobre o Estado, o patrimonialismo selvagem e a nova classe de intelectuais e burocratas. CDD-302.35 -302.350981 -305.520981 -305.552 -305.5520981 88-0572 -320.981

P459d

ndices para catlogo sistemtico: 1. Brasil : Burocratas: Classes sociais : Sociologia 302.350981 2. Brasil .-Elite: Classes sociais: Sociologia 305.520981 3. Brasil : Intelectuais : Classes sociais : Sociologia 305.5520981 4. Brasil: Poltica320.981 5. Burocratas: Classes sociais: Sociologia302.35 6. Intelectuais: Classes sociais: Sociologia302.552

ISBN 85-85008-66-0 Direitos desta edio reservados T. A. QUEIROZ, EDITOR, LTDA. Rua Joaquim Floriano, 733 9 04534 So Paulo, SP 1988 Impresso no Brasil

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O DINOSSAURO

OUTROS LIVROS DO AUTOR Shanghaiaspectos histricos da China moderna. Afneri Edit., 1944. O sono de Sarumoto o romance da histria japonesa. Borsoi, 1948. Quando mudam as capitais. IBGE, 1958. Poltica externa, segurana e desenvolvimento. Agir, 1967. Psicologia do subdesenvolvimento (prefcio de Roberto Campos). APEC, 1972 (duas edies). Em bero esplndido ensaios de psicologia coletiva brasileira. Jos Olympio/INL, 1974. Elogio do burro. Agir, 1980. O Brasil na idade da razo. Forense Univ./INL, 1980. O Evangelho segundo Marx. Convvio, 1982. A ideologia do sculoXX. Convvio, 1985. A utopia brasileira. Itatiaia, 1988.

Coniugi Dilectissimae

Sobre essa raa de homens impera um poder imenso e tutelar que se atribui a obrigao exclusiva de gratific-los e presidir sobre seu destino. Esse poder absoluto, minucioso, regular, providente e suave. Seria como uma autoridade de pai se, como essa autoridade, fosse seu propsito preparar os homens para a idade adulta; mas ele procura, ao contrrio, mant-los em perptua infncia: contenta-se em que o povo se divirta, contanto que no pense em outra coisa seno divertimento. Para sua felicidade tal governo trabalha com prazer, mas deseja ser o agente nico e rbitro exclusivo dessa felicidade... Assim cada dia torna menos til e menos frequente o exerccio da livre capacidade do homem; circunscreve a vontade num mbito cada vez mais estreito e gradualmente priva o homem de todos os usos que, de si mesmo, pode fazer. O princpio da igualdade preparou os homens para essas coisas, os predisps para suport-las e frequentemente para consider-las como bens. Alexis de Tocqueville em De la Dmocratie en Amrique (vol II, IV, cap. 6, "Que espcie de despotismo devem temer as naes democrticas", 1840)

O Brasil s cresce durante a noite... porque de noite o governo est dormindo! Parfrase de um ditado popular

NOTA(Indicao sobre a edio original de alguns ensaios)

O presente trabalho representa a minha primeira contribuio para a Coleo do pensamento neoliberal ou liberalconservador que a Sociedade Tocqueville pretende editar. composto de material indito e de artigos vrios j publicados no correr de dezesseis anos de atividade jornalstica e literria no Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, Viso, A Tarde e outros. O principal captulo, entretanto, "O dinossauro ou a burocracia brasileira", constou do livro Psicologia do subdesenvolvimento, editado pela APEC em 1972 e reeditado no mesmo ano. A presente verso do "Dinossauro" evidentemente atualizada com novos dados, pois a burocracia no tem definhado mas conhece um crescimento teratolgico. O captulo "O Brasil e a Idade da Razo" texto da Introduo ao livro do mesmo nome (Forense Universitria, 1980). Alguns dos artigos referidos so os seguintes: "O Brasil e o mercantilismo" (JB, 20-2-85) e "Patrimonialismo e democracia" (JB, 10-7-85); "O novo pensamento liberal-conservador" {JB, 21-10-85); "Racionalismo e romantismo" (Digesto Econmico, 234, Nov. 1973); "Hobbes e o Instinto de Segurana" {JB, 19-8-73); "Rousseau e a falcia romntica" (Caderno Especial do JB, 30-9-73), "Democracia e romantismo no Brasil" (Viso, 29-10-80) e "Rousseau e o mal latino" (Jornal da Tarde do OESP, 7-8-85); "Stepan, Lacerda e os militares" (JT, 26-8-85); "O esprito das leis" (77; 16-9-85) e "Keyserling e o Estado brasileiro" (JB, 18-6-85 eJT, 17-6-85); "Do bom selvagem ao bom revolucionrio" (JB, 30-4-83, e na Introduo do livro de Carlos Rangel, com o mesmo ttulo, Editora da UnB, Braslia, 1981); "Protgoras ou o intelectual" (JT, 16-2-82); "Falta de lderes e bom governo" (Suplemento de sbado, JT, 31-12-83); "Profetas e sacerdotes" (JT, 22-7-85); "O gentleman" (JT, 20-2-84), etc.

SumrioIntroduo CAPTULO I O Estado racional e o Estado romntico 1. Racionalismo e romantismo, duas doenas da alma coletiva 2. Versalhes com o Rei-Sol. O absolutismo 3. Hobbes e o instinto de segurana 4. Intelecto e paixo 5. Rousseau e o mal romntico 6. O Contrato Social 7. O despotismo esclarecido 8. Democracia e romantismo no Brasil 9. O Brasil e a Idade da Razo CAPTULO II O Estado burocrtico patrimonialista 10. Mercantilismo e patrimonialismo 11.0 Dinossauro (ensaio sobre a burocracia brasileira) 12. Empreguismo e a mamezada 13. O Mal Latino 14. O Ogro filantrpico 15. O bom governo pode ser ensinado CAPTULO III A velha nova classe 16. Burocratas ou intelectuais? 17. A traio dos clrigos 18. A politica como vocao 19. O papel das elites no Brasil 20. O gentleman CONCLUSO Brasil, sociedade liberal-conservadora Bibliografia APNDICE Carta de Princpios da Sociedade Tocqueville 271 288 302 306 315 321 333 336 139 164 198 222 240 255 15 22 29 51 60 80 92 108 116 1

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IntroduoO mundo evolui e a humanidade se transforma, enquanto sofre uma das mais profundas crises da histria. Podemos repelir algumas das novidades que a civilizao tecnolgica moderna nos proporciona. Podemos temer, com razo, sua destruio cataclsmica. Seu suicdio. Mas temos sempre que enfrentar a realidade do moderno, o que quer dizer do futuro na prenhez do presente. O futuro est aberto e a histria imprevisvel. O futuro sempre criado, sempre novo, sendo o risco o preo da mutao evolucionria. At princpios deste sculo, os que se negavam a aceitar as transformaes aceleradas da realidade contempornea eram tidos como "conservadores". Eram em geral autoritrios. Monarquistas em matria poltica. Eurocntricos e encontradios em crculos abastados, de uma certa idade e educao. s vezes racistas e antissemitas. E concentravam-se em grande nmero no seio da Igreja catlica. No Syllabus dos erros da civilizao contempornea, Pio IX colocou Roma fortemente do lado da reao conservadora, ainda escarmentada pelas sequelas da Revoluo francesa. Pio X condenou oficialmente o "modernismo" na encclica Pascendi, de 1907. As catstrofes polticas da primeira metade do sculo confundiram as questes entre o progresso e o conservadorismo, entre o avano criador e a estagnao reacionria, substituindo a alternativa por uma falsa dicotomia poltico-ideolgica de esquerda x direita produto intelectual esprio do romantismo jacobino de 1793 e 1848. Agora, no final desta centria e deste milnio, creio que uma nova e mais esclarecida perspectiva se impe, graas qual contemplamos a paradoxal reverso de posturas filosficas, obediente ao mecanismo contraditrio da dialtica da razo. Com efeito, eis o paradoxo: os intelectuais de esquerda que se autointitulam "progressistas" so hoje "ecologistas" e os maiores inimigos das transformaes que o mundo moderno nos prope. Inversamente, os mais leais seguidores da clssica Filosofia Perene so aqueles que mais abertos se declaram, mais se arriscam diante das alternativas geradas pelo Moderno. Do mesmo modo, os chamados telogos da libertao, longe de promoverem a liberdade, o desenvolvimento e o progresso, fazem uma opo preferencial pela pobreza do passado colonial, recusam-se a aceitar as propostas imperativas de controle da natalidade, atm-se velha estrutura do clericalismo autoritrio e paternalista como

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se sua inteno fosse recriar a repblica teocrtica dos guaranis. O milenarismo dos deserdados constitui a velha promessa compensatria para aqueles maniquestas que so incapazes de arrostar os desafios de um mundo tecnolgico que se transforma e deixa para trs os inadaptados, os ignorantes, os preguiosos, os seguidores passivos de lideranas carismticas, os que perderam o bonde do Moderno. Vejam: os "progressistas" admiram a Unio Sovitica e o socialismo, quando so os Estados Unidos a nao que carrega o futuro. A URSS o ltimo abencerrage do absolutismo monrquico, do imperialismo territorial, do nacionalismo vieux jeu que aspira autarquia econmica e hegemonia poltica. O socialismo a receita da estagnao, a ltima expresso da "religio civil" como nostlgica memria de uma organizao coletiva, fortemente comunitria, onde no devam reinar os imperativos darwinianos evolucionistas de concorrncia e luta pela vida. Longe de ser a filosofia insupervel pretendida por Sartre, o marxismo a mais obsoleta verso do romantismo antieconmico, antimonetrio, antiindustrial do sculo XIX. Nesse sentido, talvez tenham razo os telogos marxistas quando acreditam, como anunciava Nietzsche, que o socialismo seja a verso secularizada de um Cristianismo supostamente em decomposio. Estar Marx mais perto de Pio IX, Pio X e Paulo VI do que podemos imaginar? De qualquer forma, o totalitarismo nacional-socialista empaca na alternativa de uma cristalizao e arcaizao definitiva do indivduo num tipo de sociedade fechada, uma sociedade de massas coletivizada, como uma formigueira ou uma termiteira. Mas ser isso o que nos anuncia o futuro? Na vida internacional, de fato, continuar presumivelmente, por longo tempo, a coexistncia mais ou menos pacfica entre o Ocidente democrtico, livre, pluralista e aberto, e o sistema sovitico fechado, opressor, militarizado e esclerosado. Entretanto, todos os povos, mesmo aqueles que mais detestam a Amrica, se americanizam. Aron est certo quando postula: "a paz impossvel, a guerra improvvel". Os dois mundos iro talvez conviver, como o imprio romano conviveu durante sculo com Parthas e Sassanidas, sem soluo do dissdio. Certo: os terceiro-mundistas torcem pela vitria do nacional-socialismo marxista mas apostam errado e isso, precisamente, o que compromete a mitologia que preside poltica externa brasileira. Mais cedo ou mais tarde, os que sentam em cima do muro pagaro caro a sua miopia ou a sua covardia. O mundo moderno no comporta a postura da avestruz. Mas se o totalitarismo reacionrio constitui um desafio ao Ocidente, um desafio que indubitavelmente exigir um esforo de imaginao para superar as nossas deficincias e injustias do outro lado da Cortina o confronto apenas confirmar os comunistas nas

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suas formas peculiares de tirania, de brutalidade, de estagnao econmica e de atraso cultural. No cenrio internacional, de novo, apenas reflete a intelligentsia que se intitula de "esquerda" o obsoletismo de suas convices filosficas. No podemos saber o que ser o mundo do sculo XXI. Contudo, lcito antecipar que as foras de transformao mais enrgicas da poca contempornea conduzem a um universo cosmopolita, mul-ti-racial, ecumnico, pluralista, de interdependncia cultural, integrao poltica democrtica e economia de mercado dominada pelas grandes corporaes multinacionais. A ideologia do Estado-nao soberano deve ser superada. Tudo indica que o modelo de desenvolvimento experimentado na rea do Atlntico Norte (com uma sucursal no Extremo-Oriente) o modelo do futuro precisamente porque o modelo mais liberal, mais polmico, mais dinmico, mais imprevisvel, mais contraditrio. Diante da "sociedade exemplar" ocidental, o Terceiro-Mundo o resqucio folclrico do passado autoritrio pr-moderno, a imagem pr-histrica da Idade da Pedra, o ltimo vago de carga de um trem da histria cuja locomotiva trafega em algum lugar entre Milo e Londres, entre Nova York e Los Angeles, entre Tquio e Singapura. O homem do sculo XXI mais se parecer com um pedestre da Fifth Avenue, dos Champs lyses ou da Avenida Paulista, do que com um caador de cabeas da Nova Guin ou um cacique de xavantes do Mato Grosso. O atual Terceiro Mundo fornecer qui os elementos imaginativos, estticos, emocionais e religiosos que sero elaborados no sculo XXI, mas a elaborao se processar no Primeiro Mundo! interessante destacar os sintomas da nostalgia folclrica dos que resistem ao "choque do futuro" as fantasias do complexo de retorno ao ventre materno daqueles mesmos que se consideram os machistas do "progressivismo". Com a energia do desespero na mitologia romntica do Bom Selvagem procuram os motivos para suas elucubraes saudosistas. Detrs da crtica cultura moderna, naquilo mesmo que ela obedece Filosofia Perene do Ocidente, est o desejo de fazer tabula rasa. Mas representa essa revoluo em ltima anlise, pela prpria fora das chamadas "leis dialticas", um retorno ao passado, uma revoluo a uma ordem petrificada, arcaica e cristalizada. A nica revoluo vlida aquela que, pela reforma dos costumes, institucionaliza a liberdade dentro da ordem. Novus Ordo Saeclorum... O verdadeiro revolucionrio aquele que, obediente s lies do passado transmitidas na urea catena da Filosofia Perene, se sustenta em sua autonomia moral e em sua responsabilidade racional. O progresso se dirige, como queria Weber, no sentido da racionalizao do comportamento, mas tambm da introjeo do imperativo tico. A lei impressa na pedra passa a ser gravada no corao.

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A esquerda crtica por definio e se a crtica da cultura constitui elemento indispensvel de todo avano, o mpeto criador do homem no , tambm por definio, suscetvel de classificao ideolgica. O homem criador explora o desconhecido, avana no imprevisvel, liberta o indeterminado. O homem criador arrisca-se. Lana-se na liberdade de todo constrangimento no momento mesmo em que se ergue sobre o pinculo da cultura. O desafio prometeano ao poder da natureza, a penetrao luciferiana nos segredos da Teodiceia so as alavancas que, a partir do pensamento ocidental greco-judeo-cristo transformam o mundo. Na transmutao de todos os valores, o prprio Nietzsche enfatiza a constncia da cultura, centrada no indivduo, no homem singular. A esquerda crtica no ter outro papel seno o de apontar para os erros ou descarrilamentos dos criadores, que tomam riscos precisamente porque enfrentam os enigmas e penetram s cegas nas brumas do porvir. Avanar arriscar. A esquerda crtica como um eunuco: pretende saber como se faz, mas no pode... Em suma, a ideia mais revolucionria a ideia mais antiga do Ocidente, a mais moderna e a ideia do futuro, a que surgiu entre os profetas hebraicos, aquela que est no centro da mensagem de Cristo e se desenvolveu no pensamento de Scrates e de Plato: o homem um ser livre e moralmente responsvel. Como dizia Kant, no pode ser um meio porque um fim em si mesmo. No pode, portanto, ser um escravo do Estado. O futuro no pertence aos supostos "progressistas" marxistas, social-estatizantes, terceiro-mundistas e nacional-socialistas. O futuro pertence aos que pensam e intuem. Pertence aos inventores e inovadores, "queles que no repetem velhos chaves, aos que no aderem a partidos, no seguem ideologias mas se lanam para o desconhecido, seguros em sua fortaleza moral. Este o manifesto de um mal chamado liberalismo conservador, cujo objetivo imediato reduzir o poder do Estado burocrtico. A Liberdade, j assinalava Benjamin Constant, "nada mais do aquilo que os indivduos tm o direito de fazer e o que a sociedade entenda-se, o Estado no tem o direito de impedir". *** O que o Estado? A cincia poltica o define como um sistema institucional, dotado da legitimidade do uso da fora, do poder de coero, e destinado a assegurar a ordem, a justia e a liberdade dos cidados na sociedade que o institui. Teria sido o Estado

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formado pela imposio do domnio por parte de uma minoria guerreira, como ocorreu na alta Idade Mdia em qual ocasio a classe feudal imps uma ordem local que, pouco a pouco, se estendeu e veio a constituir o poder monrquico de mbito nacional? Ou ter sido o Estado o produto de um Contrato Social, por parte de cidados originariamente iguais e livres? As duas explicaes so vlidas e no necessariamente contraditrias. Em nosso pas podemos encontrar as origens do Estado brasileiro na autoridade da potncia colonizadora portuguesa, no domnio dos grandes senhores rurais e lderes das expedies bandeirantes que, no serto, representaram um arremedo de aristocracia feudal. Podemos tambm encontr-las no Contrato Social implcito que acolheu os imigrantes que para c, voluntariamente, se trasladaram a partir dos meados do sculo XIX. ndios e negros pertencem a uma parte da populao que foi, originariamente, submetida por conquistadores europeus. Os imigrantes europeus, libaneses e japoneses pertencem outra parte da populao que aceitou as clusulas implcitas do Contrato Social ao desembarcarem nos portos do pas. Desde o princpio, contudo, parece certo que era do interesse dos indivduos aqui nascidos a qualquer raa que pertencessem possurem essa instituio, destinada a lhes granjear segurana e justia, mesmo se frequentemente de modo brutal. O Estado foi feito para os indivduos e no vice-versa. A ideia de que cabe ainda ao Estado ajudar os pobres, estimular o desenvolvimento e garantir o crescimento industrial do pas relativamente recente. um corolrio da obrigao de justia e segurana. Data do sculo XVIII, oriunda do Mercantilismo e se deduz do imperativo de igualdade surgido com a Revoluo francesa. Ela precedeu e condicionou a Revoluo industrial. O Mito do Estado foi poderosamente assistido pela literatura romntica e naturalista do sculo XIX, de homens como Victor Hugo, Zola e Dickens, que nos descreveram sob cores lgubres as coketowns, as minas de carvo trabalhadas por mulheres e crianas, as favelas imundas e poludas de Londres e Birmingham, a prostituio e a misria da migrao rural, o universo cruel do "capitalismo selvagem". O Estado apareceu como um Salvador predestinado. Estava empenhado em eliminar essas injustias, no s porque a maioria assim o exigia num regime democrtico, mas porque as prprias classes cultas, dominantes, formadas sob critrios caritativos cristos, se indignavam com o espetculo de desigualdades consideradas escandalosas. No Brasil contribuiu ainda a viso paternalista do Estado, a mamezada. Aqui como em outros pases pobres, sob o estmulo das "sociedades exemplares", a misso soteriolgica do Estado se completou com a de nos arrancar do subdesenvolvimento. O apogeu desse mito estatal ocorreu na dcada de trinta quando a esquerda, a direita e o centro democrtico,

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todos trs, exaltavam contraditoriamente o Estado e dele se tentavam apossar. Keynes salvara o capitalismo ao propor a interveno do governo para prevenir as crises econmicas cclicas de depresso e inflao, essas mesmas que haviam contribudo para a ascenso de Roosevelt nos E.U.A., de Hitler na Alemanha, Mussolini na Itlia, MacDonald na Inglaterra e o Front Populaire em Frana. Curiosamente, a liquidao do totalitarismo nazista, na Europa, e a "guerra fria" contra o totalitarismo sovitico no determinaram uma reconsiderao do papel do Estado no Ocidente, mas estimularam seu crescimento. Quarenta anos se passaram e o mundo ocidental conheceu os "trinta anos gloriosos" do milagre econmico, mas o papel do Estado nesses eventos no foi contestado. S a crise provocada pelos rabes petroleiros e o fenmeno indito da stagflation teria talvez desencadeado o princpio de contestao ao Estado. Sugiro tambm a circunstncia do amadurecimento dos antigos estudantes contestatrios que provocaram a rebordosa anrquica da Revoluo Cultural dos anos sessenta: ao atingirem a idade adulta, tornaram-se conservadores mas no esqueceram sua ojeriza burocracia estatal. O anarquismo converteu-se num liberalismo mais moderado. Como acentua J. F. Revel (artigo em Le Point, 5-12-83), o que a nova sensibilidade liberal rejeita um Estado que pretenda trazer a felicidade ao conjunto da sociedade, ao mesmo tempo em que tira-niza cada um dos indivduos que a compem. Revel cita a Louis Dumont que, em seu "ssai sur l'individualisme", observa que, sendo o indivduo o valor cardeal das sociedades modernas, est tambm perpetuamente obcecado por seu contrrio, o totalitarismo. Nunca se falou tanto e tanto se respeitaram os direitos do homem, e nunca foram esses direitos to maciamente violados como em nosso sculo. Os comunistas e terroristas que mais clamam por tais direitos so tambm aqueles que, ao assumir o poder, mais flagrantemente os desacatam. Acrescente-se que a ameaa liberdade e identidade do indivduo tem procedido tanto dos revolucionrios de esquerda quanto dos reacionrios de direita. Os catlicos conservadores da tradio tridentina tambm denunciam o individualismo, confundindo-o com o pecado atribudo ao liberalismo, ao modernismo e ao protestantismo. *** Em entrevista publicada no suplemento Cultura de O Estado de S. Paulo, de 27 de janeiro de 1985, sob o ttulo "A ambio liberal restaurar a ordem", um dos jovens intelectuais franceses mais ativos, Guy Sorman, tido como "o principal agitador das ideias liberais na Frana", define alguns princpios do chamado "neoliberalismo" que atravessa,

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como uma vaga, os Estados Unidos e a Europa. Sustentando o ponto de vista de seu compatriota, numa conferncia que pronunciou em So Paulo em julho de 85, no auditrio da Federao do Comrcio, JeanFranois Revel referiu-se "grande reviravolta cultural da dcada". Segundo o ilustre jornalista e escritor francs foi por volta de 1980-81 que o "estoque" de ideias que se havia acumulado aps a segunda guerra mundial e reforado na dcada dos 60 passou a ser contestado e liquidado. Nossa meditao neste livro gira sobre esse tema. Na realidade, creio que o ano crucial foi o "ano louco" de 1968 o ano da Grande Revoluo Cultural, dos hippies, do chienlit de Paris, das aberraes de Marcuse, da revoluo sexual e das badernas universais de estudantes. Foi esse o momento de apogeu de um fluxo ideolgico romntico que, na falta de melhor expresso, qualificaramos de "Nova Esquerda". O movimento coincidiu com a poltica de dtente em relao URSS; com a descolonizao afro-asitica e a criao do conceito de Terceiro-Mundo, "no-alinhado", a favor do comunismo nacionalista; com o processo de integrao racial nos Estados Unidos e a catstrofe do Vietn; e, finalmente, com o aparente triunfo da ideia igualitarista segundo a qual o poder do Estado devia ser identificado com o interesse geral eis que tudo aquilo que participasse do domnio da iniciativa privada refletiria o egosmo, a concorrncia selvagem e a decadncia do "capitalismo tardio". Um dos mais curiosos paradoxos do neoliberalismo , justamente, essa sua conexo com o movimento da Nova Esquerda de 1968 e a Revoluo Cultural chinesa. Lembremos que a Revoluo Cultural foi desencadeada contra a burocracia do PCC e o estranho paradoxo se descobre no fato de que o burocrata-mor, o mandarim-tipo, o herdeiro fiel de Chou Enlai, a vtima milagrosamente sobrevivida da violncia dos Guardas Vermelhos Deng Xiaoping, aquele que hoje dirige o processo de modernizao da China e encabea a luta contra o poder excessivo do Estado. Na Europa tambm muitos dos principais pioneiros do pensamento neoliberal so egressos dos vnements de maio de 1968. Foram os Nouveaux-Philosophes que primeiro denunciaram os campos de concentrao comunistas e retiraram o Marxismo da prateleira dos livros de sucesso. de 1970 o livro de Benoist, Marx est mort... Afinal de contas, at um dos gurus do Ano Louco foi Marcuse, uma de cujas obras influentes consistiu em denunciar como burocrtico o comunismo sovitico. Assim, uma forte dose de destempero anrquico que caracterizou a Nova Esquerda passou para os libertrios dos anos oitenta, tidos hoje como de direita. Mas de qualquer forma, no decorrer da dcada dos 70, lentamente o pndulo balanou para o outro lado.

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Os liberais sentem, de certo modo, nos Estados Unidos, na Inglaterra, em Frana e nos demais pases avanados da Europa, que o futuro lhes pertence. A esquerda marxista e socialista tornou-se ctica, cnica, pessimista. Na Frana de Mitterrand, podemos assinalar que a vitria da coligao socialista-comunista em 1981, alis j desfeita, teve a virtude de lanar na oposio a chamada "direita", com todo o glamour que a postura oposicionista adquire nos meios intelectuais franceses. O fato que o pensamento marxista em Frana esgotou-se, fenmeno perfeitamente simbolizado na cuca doente de um Althusser ou de um Lacan. Os Novos Filsofos gozam do atrativo adicional de haverem, na juventude, fumado o pio dos intelectuais. Escrevem, por isso, com o fervor paulnico de novos conversos, denunciando os horrores do totalitarismo. Surgiu ao mesmo tempo uma nouvelle-droite radical e ardente, no sendo de espantar que a reverso das expectativas ideolgicas tenha levado o partido do Front National do Sr. Le Pen a receber mais votos que o PCF. Na Europa ocidental, a virada de 180 foi marcada pela vitria eleitoral de Kohl na Alemanha e de Mrs. Thatcher na Gr-Bretanha. A Dama de Ferro foi aquela que, com maior tenacidade e coragem, se props liquidar com o monstruoso edifcio do Welfare e do sindicalismo, que havia sido montado desde 1945 e marcou a decadncia do Reino Unido. O propsito da grande lder conservadora reverter essas expectativas mas a questo ainda permanece em aberto. Em quase todo o resto da Europa Ocidental, inclusive na Escandinvia, ustria e Pases Baixos a tendncia no sentido de superao do socialestatismo, muito embora o liberalismo esquerdizante e populista da linha de Rousseau continue, do mesmo modo como nos Estados Unidos, a controlar os pilares do establishment cultural. O social-estatismo populista mantm-se como alternativa dominante nos pases da Europa meridional, isto , justamente nos mais atrasados e naqueles que, por mais tempo, foram afetados por ditadores direitistas estatizantes: a Espanha, Portugal e a Grcia. Podemos salientar que, na Espanha, os excessos do estatismo so atribudos a Franco, o que induziu o socialista Gonzalez a defender paradoxalmente um regime de mais livre iniciativa. Essa cnica postura "neocapitalista" dos partidos marxistas ou paramarxistas a grande novidade da dcada dos 80 uma novidade com repercusses surpreendentes no apenas no Ocidente, mas na Europa oriental (o caso da Hungria) e no Extremo-Oriente. A China de Deng Xiaoping o mais clamoroso e mundialmente influente exemplo do desprestgio em que est caindo o profetismo do velho economista barbudo do sculo XIX. Resta o problema do pacifismo, da dtente e da dezinformatsiya conduzida pela Unio Sovitica. Trao comum das novas tendncias liberal-conservadoras recolocar em

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foco a legitimidade do anticomunismo, apontando para a crescente ameaa do imperialismo sovitivo. nesse terreno de poltica externa, creio eu, que se travar o combate ideolgico decisivo. A popularidade de Reagan ultrapassa hoje a de Roosevelt e Kennedy. H uma reao caracterstica contra o derrotismo que perdurou do Vietn administrao Carter. No obstante as manifestaes contra os msseis Pershing pelos pacifistas e "verdes" europeus, surge uma vaga de protesto contra a decadncia e contra a ameaa sovitica. Os marxistas, que continuam controlando o magistrio, grande parte dos meios de comunicao e vastos setores das igrejas, esto hoje contudo na defensiva, incapazes de explicar os fracassos econmicos catastrficos da URSS e de seus satlites, e dos governos socialistas em Frana, Alemanha e Portugal. Preferiram ento recuar para a tcnica da "conspirao do silncio". Promovem o patrulhamento... Se o socialismo no possui mais dinamismo, no revela mais qualquer criatividade, est falido o que Sorman chama de "hora planetria" da soluo liberal se manifesta pelo sucesso de Reagan, inclusive na Europa por mais que se esforcem os litterati festivos de debic-lo e caluni-lo. No o marxismo mas o liberalismo conservador que hoje chic entre a juventude mais sofisticada. E at o governo do senhor Mitterrand se pretende "modernizante", para no usar o termo "liberalizante" de seus adversrios. Universalmente, o pblico descobriu, como uma revelao sbita, que a culpa de nossos males atuais cabe ao Estado, ao Estado forte e aambarcador, ao Estado burocrtico repressivo. Eu mesmo me confesso surpreendido com essa "revelao" embora minha primeira crtica ao Dinossauro date de 1972. Triunfa nos Estados Unidos a corrente dita neoconservadora (Kristol, Novak, Sowell, Friedman, Gilder, Podhoretz, etc). Em Frana, so os chamados nouveauxphilosophes e homens como Peyrefitte, Besanon, Monnerot, Ellul, J. M. Benoist, Lepage, Revel. Na Inglaterra, uma srie importante de pensadores acentuou o declnio do socialismo dos Fabianos que haviam conduzido ao impasse sindicalista. Curiosamente, em 1984 comemorou-se os primeiros sinais de sucesso da reao orwelliana. Reativou-se, simultaneamente, graas escola de Viena transferida para Londres e Chicago, o esprito do "capitalismo democrtico". Brilharam homens como Hayek, von Mises, Friedman e Peter Bauer (lord Bauer), at ento desconhecidos. Em princpios da dcada de oitenta, na poca mencionada por Revel, o que ocorreu que a mar neoconservadora ou neoliberal com a releitura de Locke, de Adam Smith, de Montesquieu, de Burke, dos Pais da Ptria americanos, de Tocqueville a Benjamin Constant, de John Stuart Mill e" outros comeou a alcanar os degraus do poder. Na Amrica, essa vitria foi assegurada pela eleio de

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Reagan: uma srie enorme de tendncias variadas e frequentemente contraditrias proliferaram, desde a Moral Majority e os partidrios do Senador Helms, at os Libertarians e os Anarcho-Capitalists, alguns associados ala direita do Partido Republicano, outros fiis aos princpios jeffersonianos do Partido Democrtico. O movimento no ideolgico mas francamente anti-ideolgico (Daniel Bell). pluralista, s vezes ambguo e sempre dificilmente passvel de definies. Contm, no entanto, um trao comum que o combate excessiva interveno do Estado na economia, para assegurar o welfare, e na poltica social para impor a igualdade econmica. Mantm-se, contudo, a ambiguidade do termo "liberal" que, nos EUA, carrega um rano esquerdista socializante, mais condizente com as tradies populistas da linha romntica de Jefferson, Paine e Jackson do que com os componentes verdadeiramente liberais de 1776. Diga-se de passagem que, no obstante o comprometimento oficial da reagonomics com a desestatizao, o fato que o prprio Reagan ainda no conseguiu seriamente abalar o poder do social-estatismo surgido poca do New-Deal rooseveltiano. Na entrevista de Sorman a que me refiro, notei um erro, no sei se do entrevistado ou do entrevistador, mas de qualquer forma sintomtico. Bernard de Mandeville, embora de origem huguenote, no era francs mas holands de Rotterdam. Viveu e morreu na Inglaterra ( 1733). Sua Fbula das abelhas desempenhou sem dvida um importante papel na gnese da Teoria do Liberalismo econmico moderno mas no do tipo daquele suscetvel de "restaurar a ordem". Sorman s superficialmente se refere, na parte final de sua entrevista, ao fato de a restaurao de uma economia de mercado, com suas "virtudes", implicar um novo vigor da ordem moral. Isso est claro nos aspectos mais salientes da chamada Revoluo conservadora americana. "A economia liberal s pode desenvolver-se efetivamente dentro de um estado de direito... Se voc vive numa sociedade que no respeita a palavra dada, os contratos, os acordos, a situao dos empregados, etc. o capitalismo no pode subsistir." Enfim, contrariando Mandeville, no so os "vcios privados" que se tornam benefcios pblicos, mas uma poderosa estrutura tica e legal (e tambm religiosa) que assegure, como queria Tocqueville, o funcionamento harmonioso de uma democracia e de um laissez-faire econmico. O neoliberalismo nesse sentido ter que escapar das velhas e rgidas frmulas da bipolaridade ideolgica esquerda x direita. A dimenso tica vertical: no est nem esquerda, nem direita. No se trata tampouco de fazer "a crtica do autoritarismo sob todas suas formas". Trata-se, isso sim, de impor uma forte autoridade moral que, sobre o alicerce das virtudes privadas e a conscincia da responsabilidade, possa erguer o majestoso

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edifcio da liberdade individual. As virtudes democrticas, afirma Midge Decter, a secretria do Comit pelo Mundo Livre (Committee for the Free World de N. York) e notvel ativista neoconservadora, as virtudes democrticas so a modstia, a humildade e a castidade. Talvez tenhamos dificuldade, ns latinos, em entender que o liberalismo no a porta aberta para a libertinagem, e que a "ordem liberal" s poder ser construda com o fortalecimento da autonomia da conscincia moral. O Estado legal implica no apenas a garantia dos direitos humanos mas a coero e punio dos transgressores. O dever dos cidados. No nos esqueamos de que a ordem liberal e uma economia de mercado s funcionam a contento nos Estados Unidos e na Europa quando leva o Estado a srio a sua funo precpua de fazer respeitar o Direito. Em suma, o liberalismo-conservador est em ascenso. No s que o programa liberal comporta a luta contra o "social-estatismo" e que, no Brasil, poderamos tambm denunciar como o nacional -socialismo do monstruoso Estado burocrtico. Mas o que ele oferece, sob inspirao das velhas doutrinas de Locke, Montesquieu, Adam Smith, Burke, os militaristas britnicos, Tocqueville e os Pais da Ptria americanos, uma nova verso socioeconmica, nica suscetvel de carregar de enxurrada a ideologia totalitria que desgraou nosso sculo inclusive neste pas. O tema liberal tem que ser ventilado. Como sempre, permanecemos no Brasil com vinte ou trinta anos de atraso e ainda estamos vivendo a Grande Revoluo Cultural, ainda estamos experimentando a rebordosa desvairada de 1968, quando o problema restaurar a Ordem, sendo isso, exatamente como acentuam os liberais-conservadores, a ambio liberal. Festivais de rock, aberraes antinmicas, contestao geral, greves, avalancha pornogrfica e o esplendor da Esquerda Festiva que, controlando as universidades, os meios de comunicao de massa e a Esquerdigreja, subiu arrogantemente ao Planalto na aparente ignorncia do que se passa no resto do mundo, nada disso mudar a realidade. Mas nem tudo o que podemos fazer esperar que o festival de tolice se esgote por si mesmo, antes que um aventureiro populista possa empolgar o poder vacante. H vrios pontos, entretanto, que de fato no me satisfazem e que, inclusive, acho obscuros na obra de Mises, Hayek, Aron, Friedman e outros. Razo pela qual acredito na necessidade de debate intenso e esclarecimento, pois no podemos importar a ideologia (mais uma!) sem sabermos precisamente qual seu contedo, numa nao em desenvolvimento ou em plena revoluo industrial. O neoliberalismo bem-vindo em nossa terra e oxal tenha algum efeito nos programas da Nova Repblica Velha, isso na medida

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exata em que estamos oprimidos pela velha Nova Classe burocrtica, a qual comeou a se apossar das alavancas de comando muito antes de 1964, muito embora o agravamento do fenmeno se haja processado mais nitidamente a partir das presidncias Mdici e Geisel. Na verdade, o social-estatismo no Brasil herdado da velha estrutura paternalista ou patrimonialista, autoritria, mercantilista e clientelista dos tempos de Pombal e da colnia. uma paradoxal combinao de nacional-socialismo do sculo XX e absolutismo modernizante de fins do sculo XVIII. As circunstncias do Brasil ainda esto longe de corresponderem s dos pases avanados da Europa ocidental e Amrica do Norte, onde redesponta a estrela liberal depois de um sculo de eclipse. Contrariando as teses do ilustre senador Fernando Henrique Cardoso, no creio que jamais tenhamos sofrido uma verdadeira revoluo burguesa liberal. Ter chegado o momento? Uma vez que j nos elevamos pelo take off do desenvolvimento industrial, podemos porventura avanar para o neoliberalismo sem antes sobrepujar o pesado handicap social do analfabetismot da falta de sade, da pobreza rural, da criminalidade, da exploso demogrfica? Tais as questes que merecem ser levantadas no amplo debate. Tocqueville falava no conflito entre os dois princpios democrticos, o de liberdade e o de igualdade. Foi o segundo que alimentou o movimento socialista estatizante mas, no mundo ocidental, se impe novamente o retorno ao primeiro. luz dessas consideraes, a pergunta que permanece : que fazer no Brasil? Nosso pas atrasa-se. Como sempre, mentalmente subdesenvolvido. Ainda que compartilhando do pessimismo de Revel quanto aos perigos mortais que cercam a democracia ocidental e que ele expe em sua ltima obra sou otimista num outro sentido. Acredito que a crise de patologia ideolgica melanclica acompanhante da Nova Repblica se poder dissolver medida que os melhores autores do novo pensamento ocidental forem sendo traduzidos e lidos. Oxal isso em breve se manifeste. Meu propsito oferecer uma anlise das origens filosficas do social-estatismo, a partir da dialtica do Racionalismo de Hobbes e do Romantismo de Rousseau. A crtica do Dinossauro burocrtico ser necessariamente seguida de uma tentativa de caracterizao do que tem geralmente sido descrito como a Nova Classe. Quem constitui a velhssima "Nova Classe", os intelectuais ou os burocratas? Minha inteno destacar claramente o papel que desempenha na sociedade moderna, e de modo particularmente conspcuo na nossa, a tenso dialtica entre esses dois setores da elite da nao, notveis por seu poder e influncia nos ltimos anos.

Braslia, outubro de 1986

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CAPTULO I

O Estado racional e o Estado romnticoThings fall apart. The center cannot hold. Mere anarchy is loose upon the world. The blood-dimmed tide is loosed and everywhere The ceremony of innocence is drowned. The best lack all conviction and the worst Are full of passionate intensity.

William B. Yeats

(Rompem-se as coisas. O Centro no mais aguenta. Mera anarquia anda solta sobre o mundo. A mar sangrenta no contida E por toda parte afogada a cerimnia da inocncia. Privados os melhores de qualquer convico E cheios os piores de apaixonada intensidade.)

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1RACIONALISMO E ROMANTISMO,duas doenas da alma coletivaA psicologia moderna aceita, como postulado fundamental, o princpio de equilbrio ou compensao, segundo o qual toda tendncia unilateral ou excessiva, que venha a dominar a conscincia, provoca a atividade inconsciente de uma tendncia diametralmente oposta. hipertrofia da disposio determinante, em certo momento, corresponde, necessariamente, uma intensificao da inclinao contrria. O dinanismo psquico implica, consequentemente, o fenmeno de substituio de uma tendncia dada pela tendncia antagnica, num ritmo cclico ou pendular. Assim, para oferecermos um exemplo, pode o Romantismo da primeira metade do sculo dezenove em seus primrdios ser entendido, em termos psicolgicos, como uma reao normal ao Racionalismo exacerbado do sculo XVIII, a Idade da Razo. Do mesmo modo, lcito analisar os movimentos mais importantes dos ltimos cem anos pelo predomnio, tour de rle, de um elemento racional e intelectualista, e de um fator romntico, emocional ou sentimental que, pela sua permanente tenso, ativam a psique coletiva. O movimento hippie da dcada dos sessenta suscetvel, similarmente, de ser apreciado como uma reao jovem contra a civilizao industrial e puritana, triunfante na era vitoriana. As correntes msticas da poca moderna, o renascimento da astrologia e do ocultismo, o prprio sucesso da psicologia de C. G. Jung, o revigoramento do sentimento religioso sob formas exticas e o protesto filosfico contra a civilizao tcnico-cientfca representam, todos, fenmenos paralelos de contestao civilizao industrial e aos excessos da sociedade de consumo materialista. Esse conflito constituiu uma das preocupaes essenciais de Jung em suas pesquisas psicolgicas, como, alis, a de tantos outros pensadores que se tm debruado sobre os desequilbrios da Idade moderna. Foi, precisamente, nessa grande idade das artes e do pensamento ocidental a assim chamada Iluminao, Ilustrao, Aufklrung, Enlightenment, les Lumires que a tendncia fatal principiou a registrar-se, conduzindo procura frentica do poder atravs da cincia e da tecnologia. O homem se declarou soberbamente seguro de sua fora intelectual, sem a interveno da Providncia de Deus dominis private superbis. O humanismo transformou o homem em medida de todas as

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coisas. Na proporo em que o processo vicioso se desdobrou, a revoluo tecnolgica foi criando um verdadeiro split na alma coletiva. Roendo lentamente as razes de nossa civilizao, a nfase extrema sobre a Razo e sobre o intelecto proporcionou instrumentos maravilhosos de domnio sobre a natureza, mas abriu simultaneamente os portais do mundo subterrneo em nosso tempo. Desde Max Weber estamos bem informados sobre a "racionalizao" da tica e do comportamento entre as naes influenciadas pelo Protestantismo. O triunfo do mtodo e do metodismo. O desenvolvimento tremendo da civilizao tecnolgica, tanto quanto a filosofia da cincia com ela associada, foram de certo modo determinados por esse momentoso passado religioso. Temos que mirar para trs. Temos que reconhecer a crise histrica da Reforma e Aufkrung subsequente, tal como deixaram rastos no Inconsciente Coletivo das grandes naes industriais do Ocidente, a fim de obter uma melhor compreenso dos acontecimentos correntes. Nem tampouco podemos abstrair as contracorrentes geradas, em todo o mundo menos desenvolvido, pelo impacto dessa civilizao tecnolgica. No se trata porm, aqui, de definir a reao do Romantismo. Descobrir se consiste na procura de um "esprito nacional" como ocorreu na Alemanha, na Itlia e em pases da Europa oriental, assim como na Amrica Latina. Se, nesse sentido, um "racismo literrio", como o definiu Thibaudet. Se, esteticamente, determinou o nascimento de um culto do estilo gtico, em contraposio ao Classicismo propugnado desde o Renascimento e triunfante na Idade da Razo. Se, assim tambm na literatura dos "romances", tem sua origem na poesia dos trovadores medievais, como sugere Denis de Rougemont a frmula implicando, nesse caso, a contestao do casamento monogmico cristo. Se, finalmente, o "liberalismo na literatura", definido por Victor Hugo e, por extenso, a contrapartida literria e esttica do movimento liberal no mbito da poltica, essencialmente um mpeto antinmico e niilista. No nos estenderemos, por enquanto, sobre essas graves e difceis questes. O problema especfico com que estamos aqui preocupados no pode ser, apenas, o do sculo que deu nascimento ao Moderno, mas o problema histrico da tenso entre o Racionalismo e o Romantismo. Explodindo em sua epifania moderna l para os meados do sculo XVIII, o movimento romntico contrabalanou e constrangiu a marcha triunfal da Razo, contra ela combatendo e, ao mesmo tempo, estimulando-a com novo vigor emocional. Na literatura, nas artes, na filosofia, nas cincias polticas e, finalmente, no prprio comportamento das massas, o mito revolucionrio romntico constelou energias insuspeitas, iniciando um processo de anttese dialtica que teceu a histria dos ltimos 200

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anos. Meu propsito tentar descrever nossa presente situao psicolgica como o resultado da coliso de emoes apaixonadas, de fonte inconsciente, com a estrutura altamente racional, sensvel e inevitavelmente sofisticada da sociedade industrial. O corao contra a eficincia cerebrina... A exploso romntica teve o efeito imediato de libertar, com fora devastadora, os instintos que nosso pobre, nosso soberbo e tambm tolo intelecto exigiu sculos para controlar. Cabe assim certo espanto quanto aos motivos por que Jung, como alis muitos outros pensadores modernos, no tratou o fenmeno romntico da mesma maneira rspida com que julgou o Racionalismo. Como membros da cultura dominante, nrdica e protestante, esses pensadores parecem menos preocupados com a exploso do pathos romntico. Uma exceo, talvez, possa ser aberta para muitos alemes que sentiram na pele os resultados funestos da filosofia idealista de Herder, Fichte, Hegel, Schelling, Marx e seus seguidores pensadores que, para a metafsica, carrearam o mpeto do exagero elucubrativo. Vale aqui apontar para o estudo que, em sua obra sobre os "Tipos psicolgicos", desenvolveu Jung quanto distino postulada por Nietzsche entre o Dionisaco e o Apolneo. Essa dicotomia do filsofo germnico adquiriu uma bem merecida fama, embora no devamos esquecer que, em sua verso original tal como exposta em O nascimento da tragdia, os termos de Nietzsche estavam unicamente relacionados com um problema de valor na rea da esttica pura. Naquele captulo ainda, est Jung a preparar o argumento de seu esquema de duas atitudes e quatro funes da conscincia. O Apolneo e o Dionisaco so usados como introduo para seu prprio conceito tipolgico. Em outra seo da obra, Jung critica, alm disso, a anttese biogrfica de W. Ostwald entre os tipos Clssico e Romntico. Jung parece associar o arqutipo nietzscheano do Apolneo ao homem cuja reao basicamente reflexiva, elaborando imagens de acordo com o carter da atividade intelectual. Corresponderia, grosso modo, ao tipo clssico introvertido de Ostwald. Por outro lado, a descrio emocional que Nietzsche nos oferece do esprito de Dionsio sugere uma extraverso violenta de sentimento, juntamente com um elemento de sensao. Jung considera essa atitude sob o ttulo de Gefhlsempfindungen, o que quer dizer, sentimentosensao. Est naturalmente fora dos limites deste nosso inqurito discutir o que pretendia Nietzsche exatamente alcanar com suas noes de Dionisaco e de Apolneo. Uma coisa parece certa: essas categorias originariamente estticas evoluram, no decurso da vida do filsofo, de modo a atingir um "prodgio metafsico" quando ele props a conciliao dos dois deuses filhos de Zeus, irmos e inimigos num plano superior de harmonia dentro dos sagrados precintos de Delphos. Em minha tentativa de capturar uma imagem aceitvel

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do carter nacional brasileiro, empreendida no livro Em bero esplndido, tentei assim tambm a ele aplicar as categorias nietzscheanas do Apolneo e do Dionisaco como frmulas psicolgicas conflitantes cuja conciliao se impe, no Brasil, como condio da emergncia de um nvel superior de cultura. A glorificao de Dionsio por Nietzsche talvez no possa ser equacionada ao Romantismo. O Romantismo foi por ele assaltado com aspereza desenfreada nas pessoas de Rousseau e de Wagner. Mas possvel que esteja Jung pensando na revoluo romntica quando declara que "os impulsos represados no homem civilizado so terrivelmente destruidores e muito mais perigosos do que os impulsos do homem primitivo". O horror da inimizade entre os fantasmas de Apoio e de Dionsio uma querela que os gregos conseguiram pouco a pouco superar, medida que alcanaram seu supremo triunfo cultural constitui, certamente, uma das maneiras de descrever o mal-estar espiritual da civilizao. Jung oferece-nos uma chave para a compreenso da extraordinria intuio de Nietzsche. O homem ocidental ainda requer uma conciliao da anttese anttese que aqui contemplamos sob a perspectiva do antagonismo entre o crebro racionalista do frio classicismo apolneo e o corao ardente no pathos do romantismo revolucionrio dionisaco. H ainda um lado importante nesta questo: quando trata extensamente de seus tipos psicolgicos, salienta Jung o fato de que o tipo de Sentimento, o tipo afetivo verdadeiro, geralmente encontradio entre as mulheres. Ele declara, sem sombra de dvida, que a maior parte dos extravertidos de sentimento que conheceu eram mulheres. Ora, possua o psiclogo uma experincia relativamente limitada de pacientes de origem latina italianos, espanhis, outros nacionais da Europa mediterrnica e sul-americanos. Houvesse conhecido essas pessoas com maior intimidade, certamente teria revisto sua opinio. O fato que os latinos e os meridionais de um modo geral (rabes, africanos, iranianos, hindus) e digo, homens latinos e meridionais so, segundo creio, tipos geralmente afetivos. So homens conscientemente submissos s regras e humores de sua nima. No so prometeanos, so epimeteanos. Eles ouvem o conselho de Rousseau: "Eu sempre sinto antes de pensar. Sou o animal mais sensvel da terra"... Ouvem igualmente o de Goethe: Gefhl ist Alies... Podereis objetar, naturalmente, que o movimento romntico pouco tem a ver com a classificao de tipos psicolgicos e que, alm disso, o Romantismo no se limitou Europa meridional. Na verdade, Mme. de Stal, inspirada talvez por Benjamin Constant e os irmos Schlegel, sugeriu que o Romantismo era, mais propriamente, uma tendncia

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literria alem. Certo. Na medida em que se configura no Racionalismo uma postura filosfica extrema daqueles que gozam e proclamam um desenvolvimento extraordinrio das funes intelectuais, pode o Romantismo ser definido, em contraposio, como uma tentativa de restringir a tirania da massa cinzenta e alargar o mbito do rubro corao. A nfase sobre o poder da Razo Humana certamente sensvel entre os italianos do Renascimento. Mas prosperou somente depois da Reforma protestante sobretudo a de Calvino e Zwingli e ganhou terreno na Europa ocidental e setentrional, alimentando-se da propenso dos Protestantes nrdicos em dirigir sua vida consciente de acordo com estritos e metdicos princpios racionais. Nessas circunstncias, o Romantismo deve ser considerado, na Europa nrdica, no como dado estrutural primrio, mas como fenmeno reativo, como compensao necessria, como contrapartida, contraproposta ou contradio psicologicamente explicvel na base das relaes consciente-inconsciente. Entre os latinos meridionais, ao contrrio, constitui o Romantismo mais que um ponto de vista filosfico ou um estilo literrio: um modo de vida. uma forma primria de expresso. E uma tendncia potica natural, uma caracterstica musical inata. Jung compara a profundidade de significado da palavra Sentiment entre os franceses com o tipo inferior de sentimento de um alemo, por exemplo. As erupes romnticas de Gemtlichkeit comumente cheiram a cerveja. Para um alemo tpico, um alemo do norte, ser gemtlich significa afagar os seios de uma gorda Fraulein, enquanto ouve um Lied de Schubert. Fausto o modelo, o homem-smbolo do alemo de estilo gtico. Se Splenger pde chamar a civilizao ocidental de Fustica e oferecer o grande alquimista com prottipo da cultura germnica poderamos, de igual maneira, propor Dom Juan ou talvez Otelo, esses heris extravertidos e erticos, como gnios tutelares da cultura catlica latina. Ora, Fausto um homem de razo, um intelectual apanhado pela cauda mefistoflica seduo do Romantismo, ao passo que Dom Juan romntico de nascena, um heri romntico e desafiador demonaco da ordem do Logos divino. Na verdade, o heri latino tpico eminentemente romntico. No por acaso escolheu Shakespeare, entre os latinos, seus grandes personagens amorosos Romeu e Otelo. Hamlet, por outro lado, esse pensador introvertido e angustiado, necessariamente um nrdico. No latino, o arqutipo da Grande Me exerce seu poder hegemnico muito perto, quase ao nvel da conscincia, enquanto lhe controla a nima o comportamento normal em relao ao mundo. Nenhum italiano precisa ser convencido de que la Madonna e la Mamma so figuras de importncia primordial em sua vida, sobretudo se um napolitano, um calabrs ou siciliano. Nenhum espanhol requer os ensinamentos de Freud para ser

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persuadido do papel predominante em sua alma desempenhada pela libido sexual. Contrariamente ao que ocorreu entre os anglo-saxes, os alemes, os escandinavos, os suos ou os holandeses, em cujo meio o arqutipo feminino mergulhou com modstia, com temor e vergonha, nas sombras do Inconsciente, os catlicos do Sul no reprimiram tenazmente os seus impulsos erticos e seus entusiasmos dionisacos. Na verdade, a noo de um Complexo de dipo possui limitado mrito revolucionrio em nossas partes do globo, j que sabemos intuitivamente que, em nossa sociedade patriarcal e patrimonialista, o Pai de fato o representante do Logos. Ele o chefo, rodeado de prestgio, respeito e no pouco terror Pai, padrinho e patro. A questo existencial que comporta o machismo latino , precisamente, contra ele rebelar-se como o espanhol que, ao chegar a um novo pas, pergunta: "Hay Gobierno? Soy contra!" Entrementes, entre ns permanece a Me como a grande deusa de mil seios, amante e devoradora, que adoramos e que, h milnios, governa ao redor das praias deste mais belo e mais venervel de todos os mares do mundo, o Mediterrneo. Afetos extravertidos e intuies profundas constituem as funes de referncia usual do latino, para serem usadas em suas reaes artsticas e musicais perante o mundo. E inclusive nos campos poltico e social. Por isso sempre caracterizei o brasileiro como um afetivo intuitivo.* Consequentemente, na dialtica do classicismo racional e do protesto romntico encontramos uma certa anttese que possui conotaes religiosas, raciais e geogrficas, tais como as que acabo de rascunhar. O problema transport-la para o mbito da poltica. Em suma, no meu entender, o Racionalismo representa a forma de expresso consciente daquela que chamo de "sociedade lgica", e o Romantismo a ilimitada expresso da alma da "sociedade ertica". Ambos os movimentos constituem, mutatis mutandis, formas reativas inconscientes nessas duas sociedades. E assim como as atitudes e pontos de vista cartesianos esto criando um profundo impacto sobre os afetivos da rea meridional em desenvolvimento, os quais sofrem em seu lado sombrio ao enfrentar com sofreguido e angstia os desafios da Idade Industrial assim tambm o movimento romntico representa uma influncia anmica profundamente agitadora e desequilibradora que se exerce sobre os pensadores severos, introvertidos e reflexivos do mundo protestante nrdico. Isso no quer dizer, insisto, que qualquer das duas tendncias filosficas, literrias ou estticas em debate possam ser exatamente equacionadas com tipos raciais, psicolgicos ou religiosos. Minha digresso possui a inteno nica de estabelecer alguns pontos de referncia para uma tentativa de apreciao dessa difcil matria.* Meus livros O Brasil na Idade da Razo e A Ideologia do Sculo XX.

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Para facilitar o caso no mbito da filosofia poltica, um dos melhores mtodos ser o de concentrar nosso inqurito sobre algumas poucas personalidades-chave. Apenas alguns episdios e alguns pensadores: essas simples ilustraes devero satisfazer nosso propsito. Entre as personalidades escolhi Thomas Hobbes para retratar a postura racionalista extremada e Jean-Jacques Rousseau como representante do fenmeno romntico. E os franceses, no cenrio de Versalhes, foram eleitos para carregar o peso inicial de nosso argumento.

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2VERSALHES COM O REI-SOL. O ABSOLUTISMONo maravilhoso cenrio de Versalhes*, a Corte tornou-se o centro da vida francesa. Uma pea teatral no estilo de uma pera de Lulli em que o Rei-Sol desempenhava o papel de estrela principal. Um sistema planetrio regido por estritas leis newtonianas. O Rei no se satisfazia com suas vitrias militares, ganhas no princpio do Reinado; e menos ainda com as conquistas de uma administrao eficiente que grandemente contribuiu para o rpido crescimento da fortuna da Frana. sua glria desejava acrescer ao cercar-se de homens a quem as Musas haviam amado. A Frana era sua plateia e patrimnio. Afinal de contas, era Apoio, o Rei-Sol, o centro do Universo. Sua generosidade para com o talento estimulou o florescimento do gnio francs. Nunca, desde os tempos de Pricles e de Augusto, ou desde a Renascena italiana, um tamanho lustre fora testemunhado:

La docte antiquit, dans toute sa dure, l'gal de nos jours ne fut point claire...

assim cantava Charles Perrault com justo orgulho. O prestgio da Frana na guerra, nas artes e na literatura ecoou por toda parte, num fulgor de tal ordem que permaneceu na vanguarda da civilizao durante os duzentos anos seguintes, graas ao impulso alcanado. Na verdade, o sol do Rei brilhou, com uma tal claridade que a poca se qualificou orgulhosamente de "o Sculo das Luzes". E os contemporneos se declararam ofuscados! Enquanto viveu, Lus XIV transformou sua capital-palcio num palco brilhante onde deliberadamente fez-se de Cosmocrator, nomeado por Deus. A etiqueta complicada, o luxo extravagante, as cerimnias de carter semirreligioso como o Grand Lever e o Coucher du Roi, qual alegorias da alvorada e do crepsculo; as festas de ostentao em que participavam milhares de pessoas; as decoraes e a indumentria ridiculamente opulenta; a arte da cortesia e da bajulao cortes elevada categoria de mtodo maquiavlico de governo e se transformando na preocupao exclusiva da nobreza-da-corte tudo isso

* No captulo "Versalhes" de meu livro Quando mudam as capitais, examinei mais pormenorizadamente o relacionamento entre o urbanismo e arte do' palcio versaIhesco com os fundamentos da Idade da Razo.

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visava salientar o culto da personalidade do Rei como smbolo central da coletividade e encarnao do logos poltico. Um Leviat muito civilizado... O poder absoluto patrimonialista. Michelet procurou as origens desse "culto da personalidade" do soberano na antiga divinizao de Alexandre. A ideia apolnea solar de Versalhes lembra, sem dvida, as pretenses faranicas do grande conquistador macednio mas, na verdade, tais associaes do Rei e do Sol so to velhas quanto a ordem cosmolgica das antigas sociedades orientais. A identificao do soberano como heri solar motivo familiar de todas as mitologias polticas, desde as de Babilnia e Egito, at as da China e Japo. Aparece na Repblica de Plato. Invade o Ocidente com os projetos de Alexandre em Helipolis. Est presente em Roma com o culto do Sol Invictus onde influncias orientais da mesma espcie se fizeram sentir, na poca da decadncia; e culminou no csaro-papismo teocrtico de Bizncio onde as colunas de prfiro do templo do Sol foram adornar Santa Sofia e o Palcio imperial. Em Constantinopla, o herdeiro da coroa era o Porfirogneta. Mesmo no Cristianismo, como sabido, a associao persiste nos atributos de Cristo como Sol da Justia; no simbolismo do galo que, do alto da torre da igreja, anuncia a alvorada; em certas sobrevivncias da cosmologia pag como, por exemplo, na designao do domingo como Dia do Senhor (Sonn-tag e Sun-day), e na celebrao do solstcio de inverno (o dia do nascimento do sol nas latitudes setentrionais) como data do Natal do menino Jesus. Na identificao de Lus, o Rei-Sol, com o soberano dos cus, descobrimos, portanto, a revivescncia de ideias muito antigas que veiculam um dos motivos mais perenes da simbologia poltica. A paixo de Lus XIV pela glria constitui uma manifestao tangvel e terrena da imagem da radiao de luz, calor e fora de gravitao universal. Mais facilmente podemos assim compreender a tese urbanstica de que o plano de Versalhes exprime a ideia dominante do absolutismo monrquico. Mas, no necessrio supor que os arquitetos da poca estivessem conscientes de tal significado, nem certamente avaliassem at que ponto estavam exprimindo adequadamente o arqutipo, ao desenhar suas cidades segundo um plano radioconcntrico, em forma estelar. O leito do Rei foi colocado bem no meio do Palcio, como foco de todo o esquema urbanstico. Lus considerava-se a prpria emanao da Frana: "L'Etat, c'est moi!" dizia bem alto. Isso sobretudo quando dormia em seu leito de aparato, o que prova que a planta do palcio no representava apenas uma soluo racional para o problema artstico: sente-se uma verdadeira emergncia de matria-prima inconsciente, constelada em torno dessa obra arquitetnica suprema da Idade da Razo.

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Sem dvida, a beleza de Versalhes a expresso prpria de uma filosofia e mesmo de uma viso monrquica do mundo. A beleza, declarou Hegel, uma manifestao da mente. A arte barroca foi incontestavelmente o produto da Idade de Descartes: mostrou os efeitos da inveno da bssola e do uso de coordenadas no desenho de mapa-mundi to necessrios para a descoberta de novos continentes. Refletiu a cosmologia mecnica de Coprnico, Kepler, Galileu e Newton. Manifestou um paralelismo com os novos brinquedos mecnicos que fascinavam os contemporneos, anunciando a aurora da Revoluo Industrial. "Mecanizao do tempo, mecanizao do espao, mecanizao do poder" comenta Lewis Mumford. Podemos assim afirmar que Descartes, Newton, Spinoza e Leibniz, o clculo diferencial e a trigonometria so criaes da psique barroca, tanto quanto Le Ntre e Hardouin-Mansart, Poussin e Claude Lorrain, Bach, Mozart e a msica contrapontstica. No Discurso de Descartes deparamos com o mtodo de clareza, de preciso matemtica, lgica dedutiva, crtica fria e mais soberba simetria que to caracteristicamente presidiu elaborao do pensamento da poca. verdade que essa arte uma arte intelectual. uma arte sem muito gnio intuitivo, uma arte infusa por certo esprit de finesse, o esprito francs no que h de melhor, corrigindo a lgica cartesiana e o esprit de gometrie (para usar as categorias de Pascal) na sua talvez excessiva rigidez. Entretanto, permanece o fato de a identificao solar do Rei no constituir apenas um simples recurso potico. No uma parte plenamente consciente do protocolo de estado, nem mero "cerimonial da corte" destinado a exaltar toutes les gloires de la France... O que ocorria era uma verdadeira anexao de camadas profundas do Inconsciente Coletivo, produzindo uma extenso da personalidade do Rei. O mesmo que ocorreria em nosso sculo em personalidades paranoicas como as de Hitler, Stalin e Pol Pot. Esse fenmeno pode atingir pessoas sobrepujadas por novos conhecimentos ou por novas realizaes: "O conhecimento infla", escreveu S. Paulo aos Corntios. Maior cincia ou um acrscimo de conscincia acarreta o perigo da vaidade e do orgulho, da obsesso do poder, da megalomania ou do que os telogos costumam condenar como pecado de Superbia. Foram os novos conhecimentos da Idade da Razo, de que o Cogito cartesiano constituiu a frmula suprema, o que explica a ominosa ocorrncia desse sintoma inflacionrio. Uma coisa, porm, incontestvel. O retorno ao simbolismo cosmolgico pago constitua um sinal muito mais srio, no mbito da poltica, do que compreendiam ou admitiam os contemporneos. Os racionalistas tendiam a desvalorizar esse simbolismo. Encolhendo os ombros, consideravam tais "alegorias" inteiramente aceitveis, sempre que confinadas ao campo das artes e da poesia. Do ponto de vista da especulao filosfica,

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consistiam apenas em "ornamentos", sem valor intrnseco. No escondiam outro propsito seno o de dar vida s pedras, significado vegetao, enchendo as guas, as florestas, as grutas e as clareiras de Versalhes com uma nova populao de seres fantsticos. Seriam escapadas romnticas para o sonho. Iluses estupendas a inflamar com sensualidade o domnio frio dos espaos e as abstraes geomtricas da "arquitetura da inteligncia". Entretanto, uma vez reduzida a linguagem dos smbolos a algo que s pode ser compreendido quando externalizado em arte, perde inteiramente seu poder sobre o esprito humano: torna-se artificial e morre. O Romantismo representa uma tentativa fracassada de dar nova vida aos smbolos. Os romnticos so, no fundo, reacionrios que apenas agravam a dissociao entre o Logos e o Eros, o aspecto mais alarmante do modernismo. Por outro lado, a tentativa intelectualista de "explicar" o mito solar conduz ao absurdo completo, como quando escreveu Renan: "...antes que tenha a religio conseguido proclamar a Deus no absoluto e no ideal, isto , fora do mundo, um s culto foi racional e cientfico, o culto do sol". Com a lgica de tal argumento, o animismo da mitologia primitiva declarado "cientfico e racional"! essa a atitude paradoxal dos positivistas. O fato que a simbolizao cosmolgica pag era um sinal portentoso dos novos tempos. O indcio da nova religio civil estatal. Na medida em que o culto da personalidade cobria uma divinizao real do Homo Sapiens, na pessoa do rei, correspondia a uma perda sensvel do poder dos smbolos cristos sobre a alma coletiva. Ouamos La Bruyre, que escrevia: "Quem quer que considere a fisionomia do rei como a felicidade suprema do corteso, e passe a vida olhando para ela e a mantenha no mbito de sua vista, poder at certo ponto compreender como constitui a viso de Deus a glria e a felicidade dos santos." Neste ponto, citemos as observaes de Jung concernentes aos fenmenos neurticos que coincidem com a inflao psicolgica, na situao anormal resultante da emergncia de contedos inconscientes. Um sinal infalvel, escreve Jung em Dois ensaios de Psicologia Analtica, "parece ser o aparecimento do elemento 'csmico', isto , as imagens nos sonhos e nas fantasias ficam relacionadas com qualidades csmicas tais como infinidade temporal ou espacial, velocidades enormes ou extenso do movimento, associaes 'astrolgicas', analogias telricas, lunares ou solares, mudanas nas propores do corpo, etc... O elemento coletivo muito frequentemente anunciado por sintomas peculiares como, por exemplo, sonhos onde o sujeito se v ou se sente voando pelos espaos como um cometa, ou pensa que a Terra, ou o Sol, ou uma estrela". A inflao provocada pelo absolutismo monrquico estendeu-se da poltica para a aparncia pessoal, que se tornou to artificial quanto possvel. Todo o mundo e todas as

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coisas passaram a usar uma mscara fantstica. Criou-se uma Persona fenomenal. Os cortesos vestiram cabeleiras de tamanho enorme e roupas extravagantes, usando make-up feminino. As rvores foram cortadas em formas geomtricas. Os interiores se carregaram de pesadas decoraes douradas. As fachadas dos palcios transformaram-se em dcors para cenrio de peras heroicas e tragdias racinianas. Lus XIV fez-se chamar de Rei-Sol, considerando-se talvez uma reencarnao de Apoio. A identificao do Rei-Estado com a Persona produziu um sentimento de elevao vertiginosa. Foi um desenvolvimento fatal pois acarretou uma conscincia de semelhana a Deus, como se Deus no passasse de um Logos cartesiano cuja existncia pudesse ser comprovada por um raciocnio matemtico, no importando se o modelo para a corte, como esfera celeste, fosse simplesmente o novo cu "racional" e mecnico, inventado por Coprnico, Kepler e Newton. A Razo,

God-like reason... that noble and most sovereign reason... essa razo to nobre, to soberana, to igual divindade, matutada pelo Hamlet shakespeareano, procurava uma localizao espacial no crebro humano enquanto, coletivamente, j encontrava a sua representao adequada no sistema de governo do Dspota Esclarecido e sua monarquia absoluta. Descartes postulou, enfaticamente, que todas as aes de valor emanam de grandes personalidades. E assim a supremacia da "Razo de Estado" passou a constituir um corolrio do L'Etat, c'est moi, configurando, precisamente, a gravidade do processo pelo qual o smbolo do Estado nacional pretendeu configurar uma manifestao do Logos Divino. Ouam estas palavras de Bossuet: "O trono real no o trono de um homem, mas o trono de Deus!" Exaltando a personificao do Estado como um instrumento secularizado da providncia divina, passou essa concepo falaz a dominar progressivamente a vida coletiva dos povos ocidentais, gerando a nova religio estatal do nacionalismo. Por toda parte frmulas sacrlegas foram inventadas ou ressuscitadas: Gesta Dei per Francos, Gott mit uns, Dieu et mon Droit, Deutschland ber alles... Um Logos desse tipo um falso dolo, um demnio, um fantasma, o Leviat que perdeu suas razes no verdadeiro Centro da alma. Culpado da soberba absolutista, isto , da prpria Falta Original de Satans, esse Logos dissolve a conscincia pela corrupo fatal da vontade de poder. No palcio do Rei-Sol descobrimos apenas os primrdios do processo. Mas logo que foram os contedos irracionais ativados pela autonomizao do intelecto,

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conduziram inexoravelmente os acontecimentos neurose da Revoluo e aos distrbios bem mais graves que atormentam nossa prpria idade. No final das contas, o rei acabou perdendo a cabea. A guilhotina passou a ser o novo smbolo da coletividade revolucionria: um smbolo certamente romntico... Mas, logo em seguida, foi a vez de Paris, a capital (do latim caput, cabea), de inchar e acrescer de modo patolgico. Nos ltimos duzentos anos, quinze vezes mudou a Frana de regime. Atravessou crises srias em 1814, 1815, 1830, fevereiro e junho de 1848, 1851, 1871, 1937, 1940, 1944, 1958, 1968 e 1981. A Comuna de 1871 prova eloquente de que a oclocracia de um populacho anrquico e sedento de sangue, fcil presa de demagogos, pode fazer periclitar os destinos da nao to seriamente quanto uma corte parasitria e corrupta. As revolues e os distrbios, provocados pelo grito contagioso de "s barricadas!" entre os hoi-poloi, ocorreram nas ruas estreitas da capital (antes que Haussman abrisse os grandes boulevards para facilitar o tiro de canho) e decidiram, em dez ocasies diferentes, do destino dos governos. Violentas oscilaes abalaram a vida poltica do pas, ora para a direita, ora para a esquerda; ora para governos pessoais autoritrios, ora para a difuso do poder em assembleias ineficientes e agitadas, to prejudiciais aos processos suaves de evoluo social. Versalhes sem dvida se havia desligado de Paris. Mas Paris frequentemente ignorou os verdadeiros sentimentos da Frana, e os caprichos de suas multides arruaceiras no foram menos condenveis do que o bon plaisir dos reis. A Revoluo Francesa ofereceu um modelo e constituiu um ensaio para as rebordosas romnticas que ocorreriam, da por diante, aqui e acol em todo o mundo. Criou-se a mstica da Revoluo jacobina. Exaltou-se a paixo rebelde com seus smbolos, suas bandeiras, seus hinos, seus heris, suas crueldades e sobretudo seus lderes populistas carismticos. Depois do assassnio ritual do monarca a decapitao pela guilhotina da imagem do Logos o gesto simblico seguinte foi levado a efeito pelos Jacobinos entusiastas que promoveram uma meretriz entre os sans-culottes e entronizaram-na em Notre-Dame convenientemente transformada, para a ocasio, em templo atesta como personificao da Deusa Razo. Uma colheita grotesca, sem dvida, para as sementes do mtodo cartesiano! A alma francesa foi ento eroticamente possuda por um incubo proxeneta que havia substitudo o Logos sem cabea: o incubo da ideologia socialestatizante. Em seguida, merc dos caprichos desse demnio obsceno, foi escravizada por uma nova manifestao ressurgida da Razo imanente, Napoleo que a grandiloquncia de Hegel proclamou "a alma do mundo" (Weltgeist)! Um pequeno intervalo neoclssico na

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tragdia... Mais tarde, houve novos sintomas evidentes de que o feliz matrimnio da idade de ouro da Razo ia por gua abaixo: sinais da violenta querela entre os dois companheiros no segredo da alcova. E mesmo quando uma soluo artificial parecia haver sido encontrada, na superfcie dos acontecimentos, sempre permanecia uma sombra escura, ameaadora, ativando todas as filosofias radicais, idealistas, nacionalistas, socialistas, positivistas, fascistas e comunistas; todos os movimentos de massas, perseguindo utopias sociais; e comportando-se como L'Autre no eterno tringulo do adultrio que tanto empolga a imaginao francesa. Entretanto, no foi a Frana nem a nica, nem a pior sofredora. Ela apenas ofereceu, a esse respeito, graas ao brilho invulgar e lgica da inteligncia francesa, os sintomas mais visveis da doena. O distrbio afetou subsequentemente a alma germnica, cujos sinais de equilbrio perdido foram cedo atestados pela produo de um Hegel, de um Fichte, de um Wagner e de um Nietzsche cada um atravs de sua prpria expresso de contedos neurticos. Na Alemanha, efetivamente, deveria causar calamidades mais terrveis do que em Frana, tanto em detrimento de si prprio quanto do resto do mundo.

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3HOBBES E O INSTINTO DE SEGURANAA melhor expresso que j tenha talvez sido oferecida ao conceito do Estado como um produto racional da vida coletiva, visando garantir a ordem e a segurana, a que se encontra no Leviathan de Thomas Hobbes. O homem, em sociedade, simultaneamente impelido por duas necessidades, dois impulsos bsicos mas contraditrios: o de Segurana e o de Liberdade. Segurana contra o medo, a fome, as necessidades da vida, para sua prpria conservao diante dos perigos que o cercam, e a defesa coletiva de seu grupo. Liberdade individual contra a regra, a lei, a opresso, as estruturas sociais conservadoras que mantm injustias; e contra o agressor e o domnio do mais forte. Desde sempre, na histria, a dialtica desses dois mpetos naturais teceu o emaranhado da poltica, a poltica de poder, servindo de pano de fundo para o jogo cruel dos interesses, das ambies, das intrigas e ferozes lutas partidrias. A excessiva preocupao com a Segurana, a ponto de amortecer o desejo natural de ser livre, determinou o aparecimento de regimes autoritrios, eficientes na preservao da ordem. Contrariamente, a nsia de independncia no apenas joga pela janela todas as contingncias legais, mas se atreve a enfrentar os perigos anrquicos e circunstncias imprevisveis da vida social procurando o novo, o indito, a soluo que implique progresso e mudana, ou o que chamaramos hoje Desenvolvimento. O gozo excessivo de liberdade incontrolada desinibe, porm, as foras do mal. A libertinagem aumenta a desordem, estimula o crime e o abuso. E ainda, por converso dialtica num movimento pendular conforme aos ritmos da experincia histrica, desperta novamente no povo a procura da segurana perdida. E assim como antes acompanhara o heri que, diante de seus olhos, fizera brilhar a chama ofuscante da liberdade, recebe agora, com alvio, a autoridade draconiana daquele que reconstitui a ordem, restabelece a segurana e garante a subsistncia. O desejo de segurana fsica e econmica est supinamente desenvolvido nos velhos pases da Europa ocidental, especialmente em naes neutras como a Sucia e a Sua. Muitos sculos de invases e de flagelos naturais, como a fome e as epidemias,

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escarmentaram seus povos no sentido de seriamente pensarem no futuro. Esse o sentido literal da previdncia social, o welfare. preciso recordar que, ainda no sculo passado, se morria de fome nos invernos da Escandinvia, sendo essa uma das razes pelas quais parte to considervel de sua populao emigrou para o Novo Mundo. Na Sucia, o conceito de trygget, que carrega ao mesmo tempo o sentido de confiana protetora (como a da criana no colo materno) e o de ausncia de perigo (quando se fala, por exemplo, na segurana do trfego), ou de carncia de risco (o risco corrigido pelo Seguro, no sentido comercial da palavra), reflete uma procura obsessiva de segurana. um sentimento to poderoso que pouca margem acaba deixando para o esprito de iniciativa e a liberdade humana. Se uma permanncia em qualquer cidade escandinava, sua ou neerlandesa proporciona uma sensao imensamente confortvel de tranquilidade o turista no est ameaado de roubo, de assalto, de atropelamento, de priso, nem de qualquer outra violncia imprevista no fim de algum tempo essa sensao se vai tornando opressiva. O Princpio do Nirvana de que fala Freud pode ser um dos que orientam o comportamento humano. Acarreta tambm o tdio... O sistema previdencirio pode ser utilizado, em alguns pases muito avanados no caminho do socialismo, como um mtodo de controle e arbtrio estatal. na base da fiscalizao previdenciria que j foram os suecos chamados de neototalitrios. Segundo Roland Huntford o ambiente a que chegou a Sucia j o da gaiola de ouro eis que para um passarinho representa a gaiola, com sua alimentao diria garantida, um ambiente certamente mais seguro do que a floresta hostil. Na Sucia, em nome da prosperidade, da igualdade e da segurana econmica, o partido social-democrtico do sr. Olof Palme governa desde 1932 com uma curta interrupo estabelecendo precisamente esse tipo de neototalitarismo. As teocracias seculares comunistas da Europa oriental oferecem condies semelhantes. Conta-se que os judeus russos, ao emigrarem s dezenas de milhares para Israel e ali encontrar um ambiente absolutamente entregue audcia da iniciativa privada, sentiram-se em alguns casos a tal ponto desambientados que alguns preferiram o retorno Unio Sovitica. H uns vinte anos dois pilotos da Fora Area Sovitica fugiram com seus Migs e pousaram na Turquia. Ali pediram e obtiveram asilo poltico nos Estados Unidos, onde foram viver. Um ano depois, segundo contaram os jornais, um deles se apresentou ao Consulado da URSS em Nova York, declarando desejar voltar para sua ptria de origem. O cnsul russo naturalmente convocou imediatamente a imprensa local para entrevistar o rapaz. Perguntado por um reprter americano a razo espantosa de preferir deixar os EUA, enfrentando a severssima punio que certamente o

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esperava na KGB como desertor e trnsfuga, o oficial arrependido respondeu: "No posso continuar a viver num pas onde ningum me diz o que devo fazer!..." No foi um tipo de reao como essa que inspirou Dostoievski, em uma das peas mais profundas e gigantescas que tenham sido escritas sobre filosofia e teologia poltica na Legenda do Grande Inquisidor? A filosofia do socialismo seria, justamente, a de proporcionar segurana econmica segurana contra os lances adversos da empresa privada, azares notrios, riscos de falncia, de desemprego, de misria. Nesse contexto, o socialismo comporta exatamente o oposto da concepo clssica do liberalismo capitalista, tal como politicamente proposto por Locke, por Adam Smith e por seus sucessores at Hayek, Friedman e Gilder nos dias que correm. Numa economia dedicada competio, luta, eliminao darwiniana dos menos eficientes e menos dotados, em benefcio dos mais trabalhadores, dos mais previdentes, mais espertos e sem escrpulos, ou mais austeros e econmicos, mais propensos poupana ou mais bem aquinhoados pela sorte cega impera a liberdade mas se reduz a margem de segurana. Em grau extremo, fala-se mesmo em "capitalismo selvagem"... Segurana econmica. por ela que se est disposto a sacrificar a liberdade, ou pelo menos uma parte dessa livre iniciativa. J Aldous Huxley previra o funesto resultado em sua famosa distopia Admirvel mundo novo que apresenta, justamente, um quadro premonitrio de uma sociedade absolutamente condicionada contra os riscos da liberdade. Repitamos: levado ao extremo, o socialismo promete a gaiola de ouro... Outro aspecto mais banal da manifestao do instinto de segurana, que determina o aparecimento do Leviat totalitrio, a xenofobia, com o temor patolgico ameaa externa. Eis a motivao mais forte na ideologia nacional-socialista. Na Alemanha hitleriana como na Rssia sovitica, a ameaa externa, real ou suposta ou deliberadamente brandida como um espantalho mobilizador, serviu de justificao para o "contrato social" coercitivo que promove a entrega servil ao Estado das liberdades e da prpria dignidade individual. A segurana que os anglo-saxes derivam de seu sistema de estrita obedincia e respeito s leis concebidas justamente para defender as liberdades e direitos do cidado configura, a meu ver, a nica soluo sensata e mediana anttese dos dois impulsos contraditrios. Ora, essa segurana que, no Brasil como em muitos pases latinos, ainda s pode ser encontrada no mago da Grande Famlia patriarcal e do crculo restrito dos amigos e clientes. Depositamos geralmente no recurso ao apelo da amizade aquela confiana que,

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bem ou mal, entre os povos nrdicos democrticos se dirige ao juiz, ao policial e ao funcionrio pblico. O problema evoca profundas meditaes filosficas do domnio da tica. Segurana e liberdade seriam as duas exigncias fundamentais ou objetivos permanentes que, na histria poltica, justificariam, respectivamente, os regimes de tendncia conservadora autoritria e os regimes liberais progressistas. Na histria da filosofia, esses dois regimes procurariam legitimar-se atravs de duas metafsicas igualmente contraditrias, sendo que a primeira enfatizaria a crueldade essencial do homem, ao passo que a segunda alardearia a crena em sua bondade natural. So, ambas, posturas fundamentalmente naturalsticas que, colocadas com excluso uma da outra, acabam falseando a verdadeira natureza problemtica da alma humana. No abordaremos aqui essa questo, politicamente da maior relevncia, relacionada com o Bem e o Mal. Mencionemos apenas suas origens teolgicas no Maniquesmo, no Pelagianismo e no pensamento central de Sto. Agostinho. Desde logo, porm, podemos notar que os pensadores polticos da atualidade, ditos ''neoconservadores", se articulam quase que unanimemente numa postura que procura recuperar, na filosofia poltica, o conceito cristo de falta moral. Existiria no exerccio do poder, e consequentemente no Estado, como que uma manifestao indisfarvel de um "Pecado Original", uma forma viciosa do que chamavam os gregos de pleonexia, a corrupo do poder. A separao entre poder temporal e poder espiritual encontra sua justificativa nessa presena do mal e a razo mais profunda pela qual nos aconselhou Cristo a dar a Csar o que de Csar e a Deus o que de Deus. Homens como Eric Voegelin, Leo Strauss, John Hallowell, William Buckley e outros reintroduziram no vocabulrio poltico da atualidade a noo de pecado e de Mal Original, sem por isso invocar necessariamente textos eclesisticos. a mesma linha de pensamento que inspirou lord Acton em seu famoso aforismo: "O poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente". A atitude dos neoconservadores na Europa e nos Estados Unidos se explicaria pelo trauma de duas guerras mundiais, pela ameaa crescente do Estado totalitrio sovitico e pelo aparecimento do "universo concentracionrio" moderno. Todos esses autores concordam com a tese de que a tradio do pensamento judeo-cristo no Ocidente, expressa sobretudo na filosofia de Sto. Agostinho, se prende crena na presena de um ncleo luciferiano na natureza humana, elemento que se manifesta no relacionamento social. A ideia de Sartre que "l'enfer, c'est les autres"... O liberalismo revolucionrio ou de esquerda, ao contrrio, tende a menosprezar essa crena. Criou o mito da bondade natural do homem, mito que aparece no

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Renascimento e atinge o pinculo de sua popularidade no sculo XVIII, particularmente na filosofia de Rousseau. O socialismo hoje o principal suporte da convico esdrxula de que a presena do Mal deve ser exclusivamente atribuda s "estruturas sociais", as quais cabe subverter e substituir por outras. Mas, no nos adiantemos... Ao longo do debate que ops, nas academias europeias, os racio-nalistas e os romnticos tiveram os primeiros tendncia a exaltar o planejamento pela autoridade racional e seu valor no governo eficiente, segundo os princpios do "direito natural"; ao passo que os romnticos, menos preocupados com a lgica de seus argumentos, sempre se sentiram seduzidos pelos mpetos ardentes do protesto libertrio. Isso no quer dizer que os racionalistas da Enciclopdie no hajam contribudo para a Revoluo Francesa. Nem tampouco que a filosofia idealista alem, de tendncias romnticas, no haja exaltado o Estado prussiano nascente e o nacionalismo belicoso, criador do imperialismo germnico. Nem, menos ainda, que os socialistas de esquerda, oriundos ao mesmo tempo do Racionalismo e do Romantismo, no hajam, em nome da Liberdade, elaborado as bases ideolgicas para o despotismo mais feroz que o mundo jamais conheceu. De qualquer forma, o que h de mais tpico na crtica racionalista o ceticismo de Voltaire: "Prefiro ser governado por um grande Rei leo, do que por ratos como eu, um milho"...* O verdadeiro fruto da idade da Razo o Despotismo Esclarecido. E alguns consideram que tambm a verdadeira vocao da civilizao tecnolgica e cientfica moderna para a arregimentao autoritria, com gigantismo estatal. Foi essa convico pessimista que inspirou as duas maiores distopias do sculo XX: o Admirvel novo mundo de Aldous Huxley, e o 1984 de George Orwell. O tema que nos ocupa , portanto, da mais ldima atualidade. E vale por isso relembrar o que sobre ele nos tem a dizer Thomas Hobbes, que morreu em 1679, com 91 anos Hobbes que foi, provavelmente, um dos mais funestos e o maior psiclogo poltico que j conheceu a Europa. O sucesso supremo de Hobbes foi haver compreendido e sentido a tnica pessimista da posio racionalista extrema (Hobbes considerava-se discpulo de Descartes e de Galileu), no que diz respeito aos problemas do Estado, do poder, da lei, da ordem e da segurana nas sociedades civilizadas modernas. Tal pessimismo, que contrasta, to surpreendentemente, com o otimismo generalizado da maior parte dos racionalistas do Sculo das Luzes, Hobbes o revela, desde logo, na prpria escolha do ttulo de sua obra. Ele evocou o Leviathan da Bblia. O destino de uma Cidade (no sentido de Estado-nao) que construda neste mundo sobre a base nica de um Logos secularizado, imanentizado e* Je prefere tre gouvern par un grand lion de Roi, que par um million de rats comme moi.

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autonomizado, certamente o de transformar-se nesse animal robusto, Leviat, "essa serpente escorregadia, serpente tortuosa e drago que est no mar" (Isaas 27:1) um monstro terrvel, feito sem medo, ou um redemoinho que devorar o homem, a no ser que o Senhor, "armado com sua espada dura, grande e forte", o visite e mate. Os Santos Padres da Igreja sempre reconheceram no Leviat o seu sentido etimolgico original a "sociedade dos maus". O imprio romano, por exemplo, para os primeiros mrtires cristos. Leviat a sociedade do demnio e seus discpulos. Leviat tem, portanto, um significado apocalptico. Hobbes, obviamente, conhecia essa procedncia da palavra. Isso nos deve levar a insistir no seja Hobbes verdadeiramente um apologista entusistico do Estado absoluto, como vulgarmente descrito mas talvez um realista dogmtico e pessimista que reconhece a essncia perversa e demonaca do poder poltico. Ele no seria um Satanista mas apenas estaria explorando aquilo que est profundamente impregnado no sentimento cristo. O poder perverso, o poder corruptor e diablico. O Estado, por conseguinte, mau. E tanto pior quanto mais poderoso. A partir dessa tese de Hobbes, os pensadores liberais, a comear com Locke, Adam Smith e Montesquieu, iriam propor a reduo do poder do Estado, ou sua descentralizao ou diviso em "Trs Poderes" funcionais. Em suma, nesse sentido que no me parece correto adiantar tenha Hobbes proposto a ressacralizao do Estado, pois algo que descrito, mesmo por ironia, como um monstro satnico dificilmente poderia ser santificado ou endeusado. Com olhos glidos e lcidos, percebeu Hobbes a essncia do problema poltico no mundo moderno em gestao, este nosso mundo ocidental que produziu, ao mesmo tempo, a monarquia absoluta, a democracia liberal e o nacional-socialismo totalitrio. Mais profundo do que Maquiavel, pressentiu as contradies em que se formava o Estado, secularizado pela Reforma e pela decadncia do poder da Igreja de Roma, e ressacralizado pela monarquia absoluta. Para o pensador ingls, vivendo emocionalmente os anos das grandes revolues inglesas do sculo XVII, a poltica um produto da razo a qual tem que enfrentar as vorazes paixes do homem. Particularmente, a paixo fundamental, a mais central, a mais ntima, a mais tirnica, irresistvel e englobante: a pleonexia, a libido dominandi. Esta o impulso ou instinto, a concupiscncia de domnio, a Vontade de Poder de que, exaltado, falar Nietzsche, que estudar Adler e que angustiar Freud (dando-lhe o nome de Instinto de Morte) a agressividade sob todas suas formas; preocupao dos etlogos e antroplogos; aflio de todos aqueles que contemplam as grandes tragdias da histria contempornea. A libido de poder seduz para o pecado de orgulho superbia, o prprio vcio do

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Diabo, sendo corolrio do Pecado Original a ponto de obter uma ascendncia completa sobre o Ego. E, j que a psique humana apenas motivada por desejos e que seu objeto "no apenas de gozar uma nica vez, e por um s instante", mas de "se assegurar para sempre o caminho para seu futuro desejo", conclui Hobbes, pessimisticamente, que "existe uma inclinao geral da humanidade, um desejo perptuo e infatigvel no sentido de obter poder e mais poder, o qual apenas cessa com a morte". Lembrai-vos do aforismo de Lenine: a nica realidade o poder. Eis o postulado exclusivista e unilateral da psicologia de Hobbes: a natureza primria do instinto de vida a preservao darwiniana de si prprio e o domnio sobre os outros, por quaisquer meios. Esse ponto de vista pode oferecer aspectos lamentveis: o amor, por exemplo, nada mais seria que o sentimento de nosso prprio poder, quando dele suficientemente dispomos para nos permitir o luxo de ajudar a outrem. O princpio dos opostos, na doutrina determinstica das "moes vitais", construdo como uma polaridade de prazer e de dor, de desejo e averso, de amor e dio, de medo e ataque todos esses impulsos surgindo a partir do instinto primordial de autopreservao. Toma Hobbes de Sto. Agostinho a concepo de amor sui, literalmente o "amor prprio" ou egosmo que constituiria o campo volitivo de nossa vida objetiva na terra. E a partir desse argumento, que ressurgir na metfora darwiniana de luta pela vida e de "gene egosta" que se quer reproduzir a qualquer custo, props-se Hobbes a reconstruir, com lgica e exclusiva seriedade, um edifcio poltico de envergadura realmente monu