O Matematico Ideal

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Prof - T( ) N( cão dos sentimentos internos que podem estar por trás do en- volvimento com a matemática. O Matemático Ideal C ONSTRUIREMOS UM retrato do "matemático ideal". Com isso, não queremos dizer o ma- temático perfeito, o matemático sem defeito ou li- mitação. Queremos representar o matemático mais parecido com um matemático, como se poderia descre- ver o galgo de raça ideal, ou o monge do século treze ideal. Tentaremos construir urrí espécime impossivelmente puro, a fim de exibir os aspectos paradoxais e problemáticos do pa- pel do matemático. Em particular, desejamos exibir clara- mente a discrepância entre o trabalho e as atividades reais de um matemático e sua própria percepção de seu trabalho e ati- vidades. O trabalho do matemático ideal é inteligível somente a um pequeno grupo de especialistas, perfazendo algumas dúzias ou no máximo algumas centenas de pessoas. Este grupo exis- te somente poucas décadas, e há fortes probabilidades de que esteja extinto dentro de mais algumas décadas. No en- tanto, o matemático considera seu trabalho como parte da própria estrutura do mundo, contendo verdades que são válidas para sempre, desde o princípio dos tempos, mesmo nos locais mais remotos do universo. Sua fé são as demonstrações rigorosas; acredita que a dife- rençajpntre uma demonstração correta e incorreta é uma di- ferença decisiva e inconfundível. Não consegue imaginar ne- nhuma condenação mais execrável do que dizer de alguém r glè não sabe nem o que^uma^emonstração''. No entanto, riaó~cõnsêgue dãFnenfiumã explicaçãõTcoê'fénfe"do que signi- fica o rigor, ou o que é necessário para tornar uma demons- tração rigorosa. Em seu próprio trabalho, a fronteira entre as demonstrações completas e incompletas é algo vaga e fre- quentemente controvertida. 61

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Prof-

T( ) N(

cão dos sentimentos internos que podem estar por trás do en-volvimento com a matemática.

O MatemáticoIdeal

C ONSTRUIREMOS UM retrato do "matemáticoideal". Com isso, não queremos dizer o ma-temático perfeito, o matemático sem defeito ou li-mitação. Queremos representar o matemático

mais parecido com um matemático, como se poderia descre-ver o galgo de raça ideal, ou o monge do século treze ideal.Tentaremos construir urrí espécime impossivelmente puro, afim de exibir os aspectos paradoxais e problemáticos do pa-pel do matemático. Em particular, desejamos exibir clara-mente a discrepância entre o trabalho e as atividades reais deum matemático e sua própria percepção de seu trabalho e ati-vidades.

O trabalho do matemático ideal é inteligível somente a umpequeno grupo de especialistas, perfazendo algumas dúziasou no máximo algumas centenas de pessoas. Este grupo exis-te somente há poucas décadas, e há fortes probabilidades deque esteja extinto dentro de mais algumas décadas. No en-tanto, o matemático considera seu trabalho como parte daprópria estrutura do mundo, contendo verdades que sãoválidas para sempre, desde o princípio dos tempos, mesmonos locais mais remotos do universo.

Sua fé são as demonstrações rigorosas; acredita que a dife-rençajpntre uma demonstração correta e incorreta é uma di-ferença decisiva e inconfundível. Não consegue imaginar ne-nhuma condenação mais execrável do que dizer de alguémrglè não sabe nem o que^uma^emonstração''. No entanto,riaó~cõnsêgue dãFnenfiumã explicaçãõTcoê'fénfe"do que signi-fica o rigor, ou o que é necessário para tornar uma demons-tração rigorosa. Em seu próprio trabalho, a fronteira entreas demonstrações completas e incompletas é algo vaga e fre-quentemente controvertida.

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Para podermos falar sobre o matemático ideal, devemoster um nome para seu "campo", seu assunto. Chamemo-lo,por exemplo, "hiperquadrados não-riemannianos".

Ele é classificado por seu assunto, por quanto publica, eespecialmente pelos autores que usa, e por quem segue, naescolha de problemas.

Ele estuda objetos cuja existência não é nem suspeitada,exceto por um pequeno grupo de colegas. Em verdade, se

; uma pessoa não iniciada lhe pergunta o que estuda, é incapaz; de mostrar ou dizer de que se trata. É necessário submeter-se

a uma aprendizagem árdua de vários anos, para poder enten-der a teoria a que ele se devota. Somente então estariamospreparados para receber sua explicação do que está estudan-do. Sem isso, receber-se-ia uma definição tão obscura quederrotaria todas as tentativas de compreensão.

Os objetos que nosso matemático estuda eram desconheci-dos antes do século vinte; muito provavelmente, eram desco-nhecidos mesmo há trinta anos. Hoje, são o principal inte-resse da vida de algumas dúzias (no máximo algumas cente-nas) de seus colegas. Ele e seus colegas não duvidam, no en-tanto, que os hiperquadrados não-riemannianos têm umaexistência real tão definitiva e objetiva como a do rochedo deGibraltar ou do cometa de Halley. Em verdade, a demons-tração da existência dos hiperquadrados não-riemannianos éum de seus maiores feitos, enquanto que a existência do ro-chedo de Gibraltar é muito provável, mas não rigorosamentedemonstrada.

Nunca lhe ocorreu questionar o significado, aqui, da pala-vra "existe". Poder-se-ia tentar descobrir seu significadoobservando-se em seu trabalho e examinando o que a palavra"existe" significa operacionalmente.

De qualquer maneira, para ele o hiperquadrado não-riemanniano existe, e ele o estuda com devoção apaixonada.Passa todos os seus dias contemplando-os. Sua vida só ébem-sucedida na medida em que consegue descobrir novosfatos sobre o hiperquadrado.

Acha difícil conversar significativamente com a grandeparte da humanidade que nunca ouviu falar de um hiperqua-drado não-riemanniano. Isso lhe causa sérios problemas; hádois colegas em seu departamento que sabem um pouco so-bre os hiperquadrados não-riemannianos, mas um deles estáausente, em seu ano sabático, e o outro está muito mais inte-

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ressado em semi-anéis não-eulerianos. Ele vai a congressos evisita colegas durante os verões, para encontrar-se com pes-soas que falem sua linguagem, que possam avaliar seu traba-lho e cujo reconhecimento, aprovação e admiração são asúnicas recompensas a que ele poderá jamais aspirar.

Nos congressos, o tópico principal é geralmente o "proble-ma da decisão" (ou talvez o "problema da construção" ou"o problema da classificação") para os hiperquadrados não-riemannianos. Este problema foi enunciado pela primeiravez pelo professor Sem Nome, o fundador da teoria dos hi-perquadrados não-riemannianos. O problema é importanteporque o professor Sem Nome o enunciou e deu uma soluçãoparcial que, infelizmente, ninguém, a não ser o professorSem Nome, jamais conseguiu entender. Desde o professorSem Nome, todos os "hiperquadrados não-riemannianistas"têm trabalhado no problema, obtendo muitos resultadosparciais. Assim, o problema adquiriu grande prestígio.

Nosso herói imagina frequentemente que resolveu o pro-blema. Por duas vezes esteve convencido, acordado, de que ohavia resolvido, mas, de ambas as vezes, uma falha em seuraciocínio foi descoberta por outro devoto dos hiperquadra-dos não-riemannianos. A seus colegas do assunto ele comu-nica estes resultados em um estilo abreviado e descuidado."Aplicando um amaciador tangencial à quase-martingale daesquerda, você poderá obter uma estimativa melhor do quequadrática, de maneira que a convergência do teorema deBergstein será da mesma ordem que o grau de aproximaçãodo teorema de Steinberg."

Este estilo ameno não será encontrado em suas publi-cações. Aí, ele acumula formalismos sobre formalismos.Três páginas de definições são seguidas de sete lemas e, final-mente, por um teorema cujas hipóteses ocupam meia páginapara serem enunciadas, enquanto que a demonstração é es-sencialmente "Aplique os Lemas 1-7 às definições A-H".

Seus escritos seguem uma convenção inquebrantável: es-conder qualquer vestígio de que o autor ou o leitor ao qual sedirige são seres humanos. Dá a impressão de que, a partirdas definições enunciadas, os resultados desejados decorreminfalivelmente de um processo puramente mecânico. Em ver-dade, jamais foi construído um computador que pudesseaceitar suas definições como entrada. Para ler suas demons-trações, deve-se partilhar de toda uma subcultura de moti-

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vações, raciocínios-padrão e exemplos, hábitos de pensa-mento e concordância sobre certos tipos de raciocínios. Osleitores (todos os doze) aos quais se dirigem os trabalhos po-dem decodificar a apresentação formal, descobrir a novaideia escondida no lema 4, ignorar os cálculos rotineiros e de-sinteressantes dos lemas 1,2,3,5,6,7 e ver o que o autor estáfazendo, e por que o faz. Mas, para o não-iniciado, trata-sede um código que nunca revelará seu segredo. Se (que Deusnos livre disso) a fraternidade dos "hiperquadrados não-riemannistas" devesse desaparecer algum dia, os escritos denosso herói menos traduzíveis do que os dos Maias.

As dificuldades de relacionamento apareceram vivamentequando o matemático ideal foi visitado pelo diretor de re-lações públicas da universidade.

D.R.P. Agradeço que me tenha recebido. A matemáticasempre foi meu pior assunto.

MJ. Está bem. Você tem que fazer seu trabalho.D.R.P. Pediram-me que escreva uma notícia para impren-

sa, sobre a renovação de seu contrato de apoio fi-nanceiro. Normalmente, faríamos uma declaraçãode uma frase, "O professor X recebeu um auxíliode Y dólares para continuar com suas pesquisassobre o problema de decisão dos hiperquadradosnão-riemannianos". Mas achei que seria um bomdesafio para mim tentar fornecer ao público umaideia mais real do seu trabalho. Em primeiro lu-gar, o que é um hiperquadrado?

M. l. Detesto ter que dizê-lo, mas a verdade é que se eulhe dissesse o que eles são, você pensaria que estoutentanto diminuí-lo e fazer com que você se consi-dere burro. A definição é realmente um poucotécnica, e não significaria nada para a maioria daspessoas.

D.R.P. Seria alguma coisa conhecida pelos engenheiros oufísicos?

M.L Não. Bem, talvez por uns poucos físicos teóricos.Muito poucos.

D.R.P. Mesmo se o Sr. não pode dar-me a definição real,não poderia dar-me uma ideia da natureza real edo objetivo de seu trabalho?

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MJ. Muito bem, tentarei. Considere uma função suave/sobre um espaço de medida e tomando seus valo-res em um feixe de germes equipados com uma es-trutura de convergência de tipo saturado. No casom ais simples...

D.R.P. Talvez eu esteja fazendo as perguntas erradas. OSr. poderia me dizer algo sobre as aplicações desuas pesquisas?

M. L Aplicações?D.R.P. Sim, aplicações.M.L Disseram-me que tentaram usar hiperquadrados

não-riemannianos como modelos de partículas ele-mentares em física nuclear. Não sei se efetuaramprogressos nesta direção.

D.R.P. Têm havido descobertas decisivas em sua área, re-centemente? Há resultados estimulantes sendo co-mentados pelas pessoas^

M.I. Claro, há o trabalho de Steinberg e Bergstein. Foio maior progresso em pelo menos cinco anos.

D.R.P. O que é que eles fizeram?M.I. Não dá para contar-lhe.D.R.P. Entendo. O Sr. acha que há apoio financeiro sufi-

ciente para as pesquisas em sua área?M.I. Suficiente? Mal se trata de apoio pró-forma. Al-

guns dos jovens mais promissores da área não têmconseguido apoio financeiro. Não tenho nenhumadúvida de que com apoio extra poderíamos estarfazendo progressos muito mais rápidos no proble-ma da decisão.

D.R.P. O Sr. percebe alguma maneira como o trabalho emsua área poderia conduzir a alguma coisa que pu-desse ser compreendida pelo indivíduo comumdeste país?

MJ. Não.D.R.P. E pelos engenheiros ou cientistas?MJ. Tenho minhas dúvidas.D.R.P. A maioria dos matemáticos puros estaria interes-

sada em seu trabalho, ou o conheceria?MJ. Não, seria urna pequena minoria.D.R.P. O Sr. desejaria dizer qualquer coisa sobre seu tra-

balho?

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Alfred Tarski1902-

M.L E suficiente publicar a frase geral que você citouno início.

D.R.P. O Sr. não deseja que o público simpatize com seutrabalho e o apoie?

M.L Claro, mas não se para isso eu tiver que me rebai-xar.

D.R.P. Rebaixar-se?M;J. Ter que usar esses truques de relações públicas,

coisas assim.D.R.P. Percebi. Bem, mais uma vez obrigado por receber-

me.M.I. Não há de quê. Você tem que fazer seu trabalho.

Bem, tratava-se de um diretor de relações públicas. O queesperaríamos que acontecesse? Vejamos como nosso ma-temático ideal saiu-se com um aluno que lhe trouxe um pro-blema estranho.

Estudante

MJ.EstudanteMJ.

Estudante

MJ.

Estudante

M J.

Professor, o que é uma demonstração ma-temática?Você não sabe issol Em que ano você está?Terceiro ano de pós-graduação.Incrível! Uma demonstração é o que você metem visto fazer no quadro-negro três vezes porsemana durante três anos! Eis o que é uma de-monstração.Desculpe, professor. Eu deveria ter explicadomelhor. Eu sou de filosofia, não de matemática.Nunca segui seus cursos.Oh! Bem, neste caso, você já fez algum curso dematemática, não? Conhece a demonstração doteorema fundamental do cálculo ou do teoremafundamental da álgebra?Já vi raciocínios em geometria; em álgebra e emcálculo que eram chamados de demonstrações.O que lhe estou pedindo não são exemplos dedemonstrações, é por uma definição de demons-tração. De outra maneira como posso saber queexemplos estão certos?Bem, tudo isso já foi esclarecido pelo lógicoTarski, acho eu, e alguns outros, talvez Russelou Peano. De qualquer maneira, o que se deve

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Estudante

MJ.

Estudante

M. L

Estudante

M. I.

EstudanteM. L -

Estudante

MJ.

fazer é o seguinte: você escreve os axiomas desua teoria em uma linguagem formal com umalista ou alfabeto de símbolos dados. Então, vocêescreve as hipóteses de seu teorema usando omesmo simbolismo. Você mostra então comopoderá transformar a hipótese passo a passo,usando as regras da lógica, até chegar à conclu-são. Isso é uma demonstração.É mesmo? Espantoso! Já segui cursos de cálculoelementar e avançado, álgebra básica e topolo-gia, e nunca vi isso ser feito.Oh! em verdade ninguém nunca faz realmenteisso. Levaria toda a vida! Mostra-se simples-mente que poderia ser feito, isso é suficiente.Mas nem isso parece com o que era feito emmeus cursos e textos. Assim, no fim das contas,os matemáticos realmente não fazem demons-trações.Claro que fazemos! Se um teorema não for de-monstrado não vale nada.Então o que é uma demonstração? Se for estahistória de linguagem formal e de transformarfórmulas, ninguém jamais demonstra algumacoisa. Temos que saber linguagem formal elógica formal antes de poder entender o que éuma demonstração matemática?Claro que não! Quanto menos você souber, me-lhor. Todas essas coisas são idiotices abstraias,de qualquer maneira.Então o que é realmente uma demonstração?Bem, é um raciocínio que convence alguém queconhece o assunto.Alguém que conhece o assunto? Então a defi-nição de demonstração é subjetiva; depende daspessoas. Antes que eu possa decidir se algo éuma demonstração, tenho que decidir quem sãoos peritos. O que é que isso tem a ver com de-monstrações?Não, não. Não há nada subjetivo sobre isso!Todo mundo sabe o que é uma demonstração.Basta ler alguns livros, assistir a cursos de um

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matemático competente, e você aprenderá o queé uma demonstração.

Estudante O Sr. tem certeza?M.I. Bem, é possível que você não aprenda, se não ti-

ver nenhuma aptidão para isso. O que podeacontecer, você entende.

Estudante Então, o Sr. determina o que é uma demons-tração, e se eu-não aprender a determinar damesma maneira, o Sr. concluirá que eu não te-nho aptidão para o assunto.

M.L Se eu não concluir, quem o fará?

O matemático ideal encontrou-se, então, com um filósofopositivista.

F.P. Este seu platonismo é quase incrível. O aluno de gra-duação mais bobo sabe bastante para entender quenão pode multiplicar entidades, e você está lidandocom mais de algumas, você está trabalhando com infi-nidades não-enumeráveis de entidades! E ninguém asconhece, a não ser você e seus colegas. Você acha queconsegue enganar todo mundo?

M.L Não estou interessado em filosofia, eu sou um ma-temático.

F.P. Você é como aquele personagem de Molière que nãosabia que falava em prosa. Você comete idiotices fi-losóficas com suas "demonstrações rigorosas de exis-tência". Você não sabe que o que existe tem que serobservado, ou pelo menos observável?

MJ. Olha, eu não tenho tempo para controvérsias filosófi-cas. Francamente, duvido que vocês saibam do que es-tão falando; de outra maneira, poderiam enunciá-lode forma precisa, e eu poderia verificar seu raciocínio.Quanto ao fato de eu ser platonista, isso é somenteuma expressão conveniente. Nunca supus que os hi-perquadrados existissem. Quando digo que eles exis-tem, quero dizer é que os axiomas de um hiperquadra-do têm um modelo. Em outras palavras, nenhumacontradição formal pode ser deduzida deles, e assim,da maneira matemática normal, temos liberdade parapostular sua existência. Em verdade, tudo realmente

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não faz sentido, é um jogo, como o xadrez, que joga-mos com axiomas e regras de inferência.

F.P. Bem, eu não quis atacá-lo demais. Tenho certeza deque é útil, para as pesquisas de vocês, imaginar que es-tão falando de algo real.

M.I. Eu não sou um filósofo, filosofia me aborrece. Vocêsdiscutem, discutem, e nunca chegam a ponto algum.Meu trabalho é demonstrar teoremas, e nãopreocupar-me com o que eles significam.

O matemático ideal acha-se preparado, caso isso aconteça,a encontrar-se com uma inteligência extragaláctica. Sua pri-meira tentativa de comunicação seria escrever (ou transmitirde alguma outra maneira) as primeiras centenas de algaris-mos do desenvolvimento binário de pi. Ele acha óbvio quequalquer inteligência capaz de comunicação intergalácticaseria matemática e faz sentido falar de uma inteligência ma-temática, a parte dos pensamentos e ações de seres humanos.Além disso, ele acha óbvio que representações binárias e queo número real pi são ambos parte da ordem intrínseca douniverso.

Ele admitirá que nenhum dos dois é um objeto natural,mas insistirá que são descobertos, e não inventados. Sua des-coberta, em uma forma como naquela em que os conhece-mos, é inevitável, caso uma espécie se eleve suficientementeacima da lama primordial a ponto de poder comunicar-secom outras galáxias (ou mesmo com outros sistemas sola-res.)

O diálogo a seguir foi travado entre o matemático ideal eum classicista cético.

C.C. Você acredita em seus números e curvas da mesmamaneira que os missionários cristãos acreditavam emseus crucifixos. Se um missionário tivesse ido à lua em1500, estaria a brandir seu crucifixo, a fim de mostraraos homens da lua que ele era um cristão, e que estariaesperando que eles tivessem seu próprio símbolo, como qual acenariam em resposta.* Vocês, com o desen-volvimento de pi são ainda mais arrogantes.

"Confronte com a descrição da expedição de Coronado a Cibola, em 1540:"...haviamais ou menos oitenta cavaleiros na vanguarda, além dê vinte e cinco ou trinta a pé,

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M.I. Arrogantes? Ele foi verificado e reverificado, até100.000 algarismos!

C.C. Já percebi como você tem pouco a dizer, mesmo a ummatemático americano que não conhece suas brinca-deiras com os hiperquadrados. Você não conseguenem começar a comunicar-se com um físico teórico;você não consegue ler os trabalhos dele, da mesma ma-neira que ele não consegue ler os seus. Os trabalhos depesquisa de sua área, escritos antes de 1910, estãomortos para você quanto o testamento Tutankhamon.Que razão há no mundo para imaginar que você pode-ria comunicar-se com uma inteligência extragaláctica?

M./. Se não for eu, quem será?C.C. Qualquer outra pessoa. Será que a vida e a morte, o

amor e o ódio, a alegria e o desespero não teriam pro-babilidades de serem mais universais do que umafórmula pedante e seca que ninguém — a não ser algu-mas centenas de pessoas como você — será capaz dedistinguir de um risco traçado por uma galinha em umterreiro?

MJ. A razão por que minhas fórmulas são apropriadas pa-ra a comunicação intergaláctica é a própria razão queas torna pouco apropriadas para a comunicação entreos habitantes da terra. Seu conteúdo não é terrestre.Estão livres da especificidade humana.

C. C. Acho que o missionário não teria dito a mesma coisasobre o crucifixo, mas teria dito provavelmente algosemelhante, e certamente não menos absurdo e preten-sioso.

Os esboços acima não têm a intenção de serem maldosos;em verdade, são aplicáveis aos autores deste livro. Mas é de-masiadamente óbvio, e portanto facilmente esquecido, que otrabalho matemático, aceito sem explicações pelo ma-temático, sem dúvida como resultado de uma longa familia-ridade, é um fenómeno misterioso, quase inexplicável, doponto de vista do não-iniciado. Neste caso, o não-iniciado

e um grande número de índios aliados. No grupo, foram todos os padres, pois ne-nhum desejava permanecer com o exército. Sua missão era lidar com os índios ami-gos que pudessem encontrar, e eles eram, particularmente, os portadores da cruz,um símbolo que... já tinha começado a exercer no caminho influência sobre os nati-vos" (H. E. Bolton, Coronado, University of New México Press, 1949).

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poderia ser um leigo, outro professor da universidade, oumesmo um cientista que usa a matemática em seu própriotrabalho.

O matemático supõe, em geral, que sua visão sobre si mes-mo é a única que precisa ser levada em conta. Permitiríamosque qualquer outra fraternidade esotérica tivesse a mesmapretensão? Ou será que uma descrição objetiva de suas ativi-dades por um observador não-iniciado e educado não seriamais confiável do que a de um participante, que talvez sejaincapaz de notar, e muito menos questionar, as crenças deseu grupo?

Os matemáticos sabem que estão estudando uma realidadeobjetiva. Para um não-iniciado, parecem estar ocupados emuma comunhão esotérica entre si e com um pequeno grupode amigos. Como poderíamos, como matemáticos, demons-trar a um observador cético que nossos teoremas têm signifi-cação no mundo exterior à nossa própria fraternidade?

Se uma tal pessoa aceita nossa disciplina e se submete adois ou três anos de estudos pós-graduados em matemática,ela absorve nossa maneira de pensar, e não é mais o observa-dor crítico que era antes. Da mesma maneira, um crítico decientologia, que se submetesse a vários anos de "estudo" sob"autoridades reconhecidas" de cientologia poderá muitobem converter-se em um crente, em vez de crítico.

Se o estudante não consegue absorver nossa maneira depensar, nós naturalmente o reprovamos. Se ele consegue pas-sar por nossa pista de obstáculos e decide então que nossosraciocínios não são claros ou são incorretos, nós o pomos delado como um excêntrico, maluco ou desajustado.

Naturalmente, nada disso demonstra que não estamos cer-tos em nossa autopercepção de que temos um método con-fiável de descobrir verdades objetivas. Mas devemos fazeruma pausa para percebermos que, fora de nosso grupo,grande parte do que fazemos é incompreensível. Não há ma-neira pela qual possamos convencer um cético com autocon-fiança de que as coisas de que falamos fazem sentido, ou, oque é ainda mais difícil, existem.

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