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O POETA E A SEREIA: A PARCERIA ENTRE A PALAVRA DE VINICIUS DE

MORAIS E A VOZ DE MARIA BETHÂNIA

Leonardo Davino de Oliveira (FBN)1

RESUMO: Nesse trabalho analiso o projeto Que falta você me faz, de Maria Bethânia

(2005). O disco apresenta uma Bethânia de voz mais contida, menos caudalosa, porém

não menos enfática na medida em que investe na personificação dos sujeitos líricos

vividos no ato de cantar. Ao invés dos alongamentos vocálicos precisos e típicos de suas

interpretações, a cantora opta por enfatizar o verbo (a palavra cantada) de Vinícius,

sentindo cada filigrana das sensações e criando sujeitos cancionais que intensificam a

pulsão da palavra escrita por Vinicius. Interessa-me a sereia que devolve ao poeta, via

performance vocal, a condição fundamental do existir, pois acredito que este disco de

Bethânia guarda na distribuição progressiva do repertório a narrativa exemplar da

conjunção e da disjunção lírico-amorosa, matéria do fazer poético-cancional de

Vinicius.

Palavras-chave: Poesia. Canção. Sujeito cancional.

O disco Que falta você me faz (2005) traz uma Maria Bethânia de voz mais

contida e introspectiva, menos caudalosa, porém não menos enfática na medida em que

investe na personificação dos sujeitos líricos vividos no ato de cantar. Ao invés dos

alongamentos vocálicos precisos e típicos de suas interpretações, ela opta por enfatizar

o verbo (a palavra cantada) de Vinícius, sentindo cada filigrana das sensações. A sereia

parece entender as palavras de Eucannã Ferraz sobre a lírica do poeta:

São marcas de uma poesia moderna, na qual o lirismo se dá de modo

concentrado, num jogo bem estruturado de anáforas e emprego de

estruturas sintáticas semelhantes, rimas internas, paralelismos,

metáforas renovadoras dos mecanismos líricos tradicionais, associações

inesperadas, polissemias, tensão entre a intensidade afetiva e a recusa de

seu transbordamento, daí resultando um perfeito equilíbrio entre uma

1 Leonardo Davino de OLIVEIRA. Pesquisador residente da Fundação Biblioteca Nacional.

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atitude poética que articula a novidade e a tradição (FERRAZ: 2008, p.

57).

Interessa-me a sereia que devolve ao poeta, via performance vocal, a condição

fundamental do existir. Acredito que este disco de Bethânia guarda na distribuição

progressiva do repertório a narrativa exemplar da conjunção e da disjunção lírico-

amorosa, matéria do fazer poético-cancional de Vinicius. Ou seja, a sequência do

repertório é um roteiro narrativo.

Antes de mergulhar nas canções do disco, acredito ser importante reafirmar que

letra de canção – palavra feita para a emissão vocal – não é poesia, e nem quer, nem

deve querer ser, isto já está claro, posto que a canção tem funcionamento lógico, ético e

estético próprio. A letra precisa dizer o ritmo-melódico. Mas é na dimensão

vocoperformática que as intenções se sustentam. Ou seja, nem toda palavra escrita serve

à palavra cantada. E vice-versa. A primeira precisa pedir a segunda para que a canção

surja. É por isso que letra e poesia são e não são a “mesma coisa”. Para vir a ser canção,

a palavra escrita precisa “ter” um “ritmo vocal”, pois é na voz de “alguém cantando”

que a canção se realiza. Deste modo a letra de canção também é poesia se tomarmos

este termo num sentido mais amplo. No livro Performance, recepção, leitura, Paul

Zumthor anota que poesia é “uma arte humana, independente de seus modos de

concretização e fundamentada nas estruturas antropológicas mais profundas” (2007, p.

12). A partir disso, podemos lembrar que a poesia antecede a literatura e a escrita e

nasce junto com a música nos rituais da antiguidade. Desde sempre, portanto, poesia e

música se equilibram, dialogam: engendram canções de manutenção da vida do humano

na terra.

Dito isso, passemos a Que falta você me faz. No encarte do disco um texto de

Vinicius de Moraes datado de 03/12/1965 diz: “Maria Bethânia canta como uma jovem

árvore que queima / numa trepidação de madeira que se extingue para o alto” e termina

afirmando que “Maria Bethânia canta com a liberdade dos pássaros para fora e para

cima, mas sem perda dessa intimidade fundamental à comunicação”. Ao que Bethânia,

em entrevista à revista Época retribui:

ÉPOCA: Que critérios você usou para escolher o repertório?

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Maria Bethânia: Foi dificílimo, eu tinha 250 canções e precisava fazer

o menor que pudesse. Fechei pelo menos os parceiros mais

importantes e, dentro dessas parcerias, escolhi as canções que mais se

adaptassem a minha voz, ao meu estilo, porque não sou cantora bossa-

nova. Me dei o direito de fazer porque ele, com o amor dele, as

palavras dele, que estão expressas no disco, me autorizou.

É no elogio do poeta à voz da sereia que mora a eficácia da beleza do disco.

Poeta e sereia se unem no elogio à musa: a poesia. Aqui pouco importa se a poesia

aparece escrita, falada, cantada. Importa apenas que ela surja. Para tanto, a primeira

canção do disco é “Modinha” (Tom Jobim / Vinícius de Moraes), cujos versos “Vai,

triste canção, sai do meu peito / E semeia a emoção / Que chora dentro do meu coração /

Coração” condensam e compreendem as mensagens que serão retomadas ao longo do

disco: a transformação da melancolia em canção. Além de servir como evocação da

canção: da união entre a palavra escrita com a palavra vocalizada. O gesto de evocação

da musa sela o encontro da sereia com o poeta. Evocada, a musa-canção, que contém

em si a musa-poesia, abre os trabalhos de vocalização das emoções.

A dimensão lírica do texto escrito por um sujeito de coração dilacerado é

potencializada tanto na voz dramática em tons tristes de Bethânia, quanto no

acompanhamento do piano. A associação entre a melancolia da letra, reiterada na

melodia instrumental compõem a base que dá vida ao sujeito da triste canção do eu que

se pronuncia na voz de Bethânia.

Na faixa seguinte emerge a voz do poeta parceiro. O soneto “Poética” (Vinícius

de Moraes) é declamado por Vinicius de Moraes na clave da poesia falada, mais uma

vez chamando a atenção do ouvinte à interação do poeta com a sereia. Ela aproveita as

palavras finais dele para engendrar o canto. É assim que o sujeito que antes reclama da

tristeza amorosa começa a dar sinais de recuperação ao dizer: “Eu morro ontem // Nasço

amanhã / Ando onde há espaço: / - Meu tempo é quando”. Fisgada, a sereia dá

continuidade ao projeto de recuperação emocional do sujeito e emenda cantando “O

astronauta” (Vinícius de Moraes / Baden Powell) – “Quando me pergunto / Se você

existe mesmo, amor” – para arrematar “Mas você, sei lá / Você é uma mulher / Sim,

você é linda / Porque é”. Realiza-se desse modo o pacto entre palavra falada e palavra

cantada no elogio da musa-poesia feita mulher.

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Diante desta constatação da beleza do outro, desta lindeza que é linda pelo fato

de ser linda, além de qualquer intervenção da razão, nasce a possibilidade do

enamoramento registrado nos versos de “Minha namorada” (Carlos Lira / Vinícius de

Moraes). Mais do que uma lista de critérios amorosos, destaco aqui o convite ao pacto:

“Você tem que me fazer um juramento / De só ter um pensamento / Ser só minha até

morrer / E também de não perder esse jeitinho / De falar devagarinho / Essas histórias

de você”. Identifico aqui o pacto das canções, ou seja, o pacto entre o poeta que concebe

com a sereia que lhe canta os versos concebidos. “E você tem que ser a estrela

derradeira / Minha amiga e companheira / No infinito de nós dois”, conclui o sujeito.

Estes versos finais lembram que o tempo da canção, o tempo da duração do pacto entre

poeta e sereia, é quando, isto é, dura enquanto dura a emissão vocal: “é como a pluma /

Que o vento vai levando pelo ar / Voa tão leve / Mas tem a vida breve / Precisa que haja

vento sem parar”, como canta o sujeito de “A felicidade” (Tom Jobim / Vinícius de

Moraes), quarta canção do disco. O enlace amoroso precisa do sopro da voz da sereia

cantando para manter o amor vivo. É por isso que “Tristeza não tem fim / Felicidade

sim”.

Apaixonado, animado pelo encontro, o sujeito lírico se retira para uma

paradisíaca “Tarde em Itapuã” (Toquinho / Vinícius de Moraes). Itapuã, essa pedra que

ronca, com um mar que inaugura infinitamente um verde novinho em folha, é o tempo-

espaço “sem ontem nem amanhã” ideal para a vivência do ócio, da vadiação, do “falar

de amor”. “Ao sol que arde em Itapuã” arde também o desejo. E o dia passa e chega a

lua, a cúmplice simbólica dos enamorados.

“Lamento no morro” (Tom Jobim / Vinícius de Moraes) e “Monólogo de Orfeu”

(Vinícius de Moraes) aprofundam a entrega, o amor. O sujeito narrador desdobra-se

para dentro de si, numa investigação lírica adensada. “Mulher amada / Destino meu / É

madrugada / Sereno dos meus olhos já correu”, diz o sujeito da primeira, enquanto a

melodia alegre vai aos poucos dando espaço à introspecção da voz de Bethânia que

muda do canto à fala para declamar o monólogo do amor-maior-que-tudo: Orfeu. E a

“mulher amada” transmuta-se em “mulher mais adorada”. Diz o sujeito: “(...) Ah, minha

Eurídice / Meu verso, meu silêncio, minha música! / Nunca fujas de mim! Sem ti, sou

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nada / Sou coisa sem razão, jogada, sou / Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice: coisa

incompreensível!”. E mais adiante novamente surge a citação da relação entre palavra e

música: “Quem poderia pensar que Orfeu: / Orfeu cujo violão é a vida da cidade / E

cuja fala, como o vento à flor / Despetala as mulheres – que ele, Orfeu / Ficasse assim

rendido aos teus encantos!”.

Lembramos aqui da atuação de Orfeu entre os argonautas quando, usando a lira

que ganhou de Apolo, silenciou as sereias e salvou a tripulação de Jasão que estava em

busca do tosão de ouro. Desde modo, o Orfeu de Vinicius se opõe ao Orfeu de

Apolônio, enquanto este renuncia ao canto, aquele se deixa sucumbir ao amor sirênico.

E festeja isso na canção seguinte “Mulher, sempre mulher” (Tom Jobim / Vinícius de

Moraes): “Mulher, martírio meu / O nosso amor / Deu no que deu / E sendo assim, não

insista / Desista, vá fazendo a pista / Chore um bocadinho / E se esqueça de mim / E se

esqueça de mim”.

Logo em seguida, perdido de si no mar sonoro amoroso e já se ressentindo na

disjunção afetiva, o sujeito lírico criado por Bethânia percebe o mundo ao redor e canta

a melancólica “Gente humilde” (Garoto / Vinícius de Moraes / Chico Buarque) a qual

ele se assemelha diante do abandono: “Igual a como quando eu passo no subúrbio / Eu

muito bem, vindo de trem, de algum lugar / E aí me dá uma inveja dessa gente / Que vai

em frente, sem nem ter com que contar”. Aqui o conteúdo lírico indica o auto-

esquecimento do sujeito a fim de elaborar um conteúdo social. O sujeito aponta que a

canção não é mera expressão de emoções individuais, mas universal, evidenciando

aquilo que todos vivenciam: a certeza de ser só. O mergulho no individualizado

transvaloriza o poema lírico ao universal humano. O uso de um acordeon lamurioso

figurativiza tal estado do ser. Lírico e universal. Afirmação do desejo e participação no

mundo.

Chegamos um pouco mais da metade do disco. A separação entre os amantes se

configura através da canção “O mais-que-perfeito” (Jards Macalé / Vinícius de Moraes):

“Ah, quem me dera amar-te / Sem mais ciúmes / De alguém em algum lugar / Que nem

presumes”, diz o sujeito, para depois completar: “Ah, quem me dera ter-te / Morar-te até

morrer-te”. Esta sensação de perda e solitude será ratifica nos versos da canção

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seguinte, “O que tinha de ser” (Tom Jobim / Vinícius de Moraes), cujos verbos

conjugados no passado agregam valor ao não-arrependimento do sujeito que amou e

agradece por ter amado, apesar da tristeza de agora: “Porque foste na vida / A última

esperança / Encontrar-te me fez criança (...) Porque foste em minh’alma / como um

amanhecer / Porque foste o que tinha de ser”. A relação humana desfeita é o tônico da

canção, ou seja, é o estímulo do canto que mantém o sujeito vivo.

E a tristeza cobre o narrador de apatia. Sozinho, apartado da “mulher mais

adorada”, distante paradisíaca Itapuã, o luto se instala e com ele o isolamento. Isso é

configurado na tristíssima versão de “Bom dia, tristeza” (Adorinan Barbosa / Vinícius

de Moraes): “(...) Se chegue, tristeza /Se sente comigo / Aqui, nesta mesa de bar / Beba

do meu copo / Me dê o seu ombro / Que é para eu chorar / Chorar de tristeza / Tristeza

de amar”, canta Bethânia.

A essa sequência impregnada de morte, o sujeito percebe que “pra fazer um

samba com beleza é preciso um bocado de tristeza” e vocaliza versos rumo ao seu

reposicionamento depois do luto, ou seja, passa da fase do isolamento do outro para

uma aproximação através do canto do “samba em forma de oração / Porque o samba é a

tristeza que balança”, como diz os versos de “Samba da bênção” (Baden Powell /

Vinícius de Moraes): “Ponha um pouco de amor numa cadência / E vai ver que ninguém

no mundo vence / A beleza que tem um samba, não”. E assim o samba dá sentido à dor

e sustenta o sujeito na vida, com “a esperança divina de amar em paz” e “de um dia não

ser mais triste não”.

Vem daí, portanto, o entusiasmo do sujeito criado por Bethânia ao cantar “Você

e eu” (Carlos Lyra / Vinícius de Moraes). Alheio aos julgamentos dos outros, o sujeito

assume que amou, sofreu, mas que isso basta para seguir vivendo, já que ele consegue

responder à vida com vida, com canção. “Podem me chamar / E me pedir / E me rogar /

E podem mesmo falar mal / Ficar de mal / Que não faz mal (...) Eu sou mais você e eu”,

canta o sujeito que sabe que “todo grande amor só é bem grande se for triste”, como

afirma na canção seguinte: “Eu não existo sem você” (Tom Jobim / Vinícius de

Moraes).

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“Eu sei e você sabe que a distância não existe / Que todo grande amor / Só é

bem grande se for triste / Por isso, meu amor / Não tenha medo de sofrer / Que todos os

caminhos me encaminham pra você // Assim como a canção / Só tem razão se se cantar

// Assim como o poeta / Só é grande se sofrer / Assim como viver / Sem ter amor não é

viver / Não há você sem mim / E eu não existo sem você”, canta Maria Bethânia

coroando esta interdependência entre canção e voz, poeta e dor, viver e amar, entre

sereia e poeta.

Já tendo sido cantada por grandes artistas, entre eles, Agostinho dos Santos,

Maysa, Ângela Maria e Cauby Peixoto, Rosa Passos e o próprio Tom Jobim, sem

esquecer a antológica gravação de Elizete Cardoso no definitivo disco Canção do amor

demais, “Eu não existo sem você” expõe uma Maria Bethânia contida, imersa no

conteúdo emotivo e intelectivo do sujeito da canção. O processo enunciativo, o “aqui-

agora” do sujeito é presentificado na voz e na melodia passional (TATIT: 1996)

incentivando não apenas a cumplicidade do ouvinte quanto a resignação advinda da

certeza que a vida é bonita porque é, apenas e mesmo com a presença da dor, da tristeza.

As sereias entendem isso e cantam esta emoção.

Nem Elizete, nem Bethânia são cantoras do estilo cool exigido pela bossa nova,

ambas tem vibratos e potências vocais encorpados, de altos volumes. Ambas investem

no “calor” resultado das emoções dos sujeitos líricos que cantam. Sobre Elizete e o

disco Canção do amor demais, que pelo gosto de Vinicius se chamaria “Eu não existo

sem você”, o poetinha escreveu:

Não foi somente por amizade que Elizete Cardoso foi escolhida para

cantar este LP. (...) Mas a diversidade dos sambas e canções exigia uma

voz particularmente afinada; de timbre popular brasileiro mas podendo

respirar acima do puramente popular, com um registro amplo e natural

nos graves e agudos e, principalmente, uma voz experiente, com a

pungência dos que amaram e sofreram, crestada pela pátina da vida.

(abril de 1958).

Encurtando um pouco os alongamentos vocálicos, Maria Bethânia homenageia a

voz de Elizete. Parece querer cantar semelhante à sua referência. Sereia cantando sereia,

em gesto artístico promovido pelo poeta. O valor tensivo – entre expressão sonora e

conteúdo linguístico – é ratificado e assinado na voz de Bethânia: voz que afirma que

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ter medo de amar não faz ninguém feliz. Os dois blocos que dividem a canção

trabalham na tematização de um sujeito que evoca a natureza e a estetiza para compor

seus sentimentos e registrar a interdependência entre ele e o outro.

Bloco 1

Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim

Que nada nesse mundo levará você de mim

Eu sei e você sabe que a distância não existe

Que todo grande amor

Só é bem grande se for triste

Por isso, meu amor

Não tenha medo de sofrer

Que todos os caminhos me encaminham pra você

Bloco 2

Assim como o oceano

Só é belo com luar

Assim como a canção

Só tem razão se se cantar

Assim como uma nuvem

Só acontece se chover

Assim como o poeta

Só é grande se sofrer

Assim como viver

Sem ter amor não é viver

Não há você sem mim

E eu não existo sem você

As vozes das duas sereias, nas distintas e dialógicas versões, lidam com o

equilíbrio entre o ímpeto do amor e o resfriamento do sofrer, promovendo a junção

entre a voz do sujeito lírico e ouvinte. A letra se dilui no encaminhamento vagaroso da

melodia. A forma musical se mistura com a voz. Tudo para fazer crer que a sereia não

vive sem o poeta; para a aceitação daquilo “que a vida quis assim”.

Por fim, temos o que considero o posfácio e o ponto central do disco: a canção

“Nature boy” (Eden Ahbez – versão de Caetano Veloso), cantada em português por

Bethânia, num versão feita por Caetano Veloso e em inglês por Vinicius de Moraes,

com a sereia dando ao poeta a voz que fecha o disco, o livro, a narrativa e sua poética

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lírico-amorosa. Afinal, para ela, “Ele ensinou / Nada é maior / Que dar amor / E receber

de volta / Amor”.

Para concluir, estou certo que este passeio pela narrativa insinuada no disco Que

falta você me faz confirma a intenção de sua criadora, quando afirmou na entrevista de

lançamento:

ÉPOCA: O que você pretende passar com o disco Que falta que você

me faz?

Maria Bethânia: Tudo o que Vinicius me ensinou, que ensinou para

todos nós através de sua poesia e de sua música. Eu tive o privilégio

de conviver algumas épocas com ele muito proximamente e herdei mil

ensinamentos. Eu queria que ficasse bem nítido no disco todos os

jeitos de Vinicius: namorador, conquistador, maravilhoso, um charme

puro! Vinícius menino, brincalhão, poeta com a mágoa do mundo,

amador, um homem generosíssimo, nos ensinando que não tem graça

viver sem generosidade e amor. Que um homem sozinho realmente é

triste.

Referências:

BETHÂNIA, Maria. Que falta você me faz (CD). Brasil: Biscoito Fino, 2005.

FERRAZ, Eucanaã. “A palavra na canção”. In: Vinicius de Moraes. São Paulo:

Publifolha, 2006.

MORAES, Vinicius. Samba falado: (crônicas musicais). Org. Jost Miguel, Sérgio Cohn

e Simone Campos. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.

TATIT, Luiz. O cancionista. São Paulo: EdUSP, 1996.

ZUMTHOR. Paul. Performance, recepção e leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007.