O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail:...

18
Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação original seja corretamente citada. http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 16, n. 1, p. 244 - 261, jan./jul. 2017 | DOI: 10.15448/1677-9509.2017.1.23847 O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas em Ciência e Tecnologia The Principle Responsibility as Evaluation of Policies in Science and Technology ANGELA LUZIA MIRANDA MARIA RENATA DE CASTRO SULINO RESUMO – O ideal da ciência, protagonizado pela modernidade e ratificado pelo Positivismo, cujo conhecimento deva ser construído sob a égide da neutralidade e da objetividade do método científico e cujo significado de tecnologia deva restringir-se ao meramente instrumental, levou-nos à crença de que tanto a ciência quanto a técnica devem se distanciar do âmbito valorativo da ética e da dimensão social. Assim, as decisões, no que tange às políticas em ciência e tecnologia, também passaram a adquirir tal pretensão, menosprezando a cultura local. Essa problemática, mais que científica ou política, é também ética. Este trabalho analisa, portanto, a avaliação das políticas em ciência e tecnologia, com base na ética da responsabilidade de Hans Jonas, utilizando como caráter ilustrativo a fruticultura irrigada na região de Ipanguaçu/RN. De caráter exploratório e qualitativo, este estudo se utiliza da pesquisa bibliográfica (Jonas, Shiva, Herrera, Albano, etc.) e de campo para a coleta de dados. Palavras-chave – Ética da responsabilidade. Políticas públicas. Ciência e tecnologia. Agricultura. ABSTRACT – The ideal of science played by modernity and ratified by Positivism, whose knowledge should be built under the aegis of the neutrality and objectivity of the scientific method and whose technology’s meaning should be restricted to the merely instrumental, this led us to the belief that both science and technique mustdistance itself from the evaluative scope of the ethic and social dimension. In these terms, the decisions, regarding policies on science and technology, also it began to acquire such a claim, disregarding the local culture. This problematic, rather than scientific or political, is also ethical. This paper analyses, therefore, the policy application in science and technology based on the ethics of responsibility of Hans Jonas, using as an illustrative the cultivation of irrigated fruit crops in Ipanguaçu/RN. Of exploratory and qualitative feature, this study uses the literature (Jonas, Shiva, Herrera, Albano, etc.) and field research to collect data. Keywords – Ethics of responsability. Public policies. Science and technology. Agriculture. Doutora em Filosofia, Coordenadora do Grupo de Pesquisa Phrònesis (Estudos em Filosofia, Ciência, Tecnologia e Sociedade) e Professora da Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal - RN/Brasil. CV: http://lattes.cnpq.br/2841293474679022. E-mail: angelamiranda@[email protected]. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do Grupo de Pesquisa Phrònesis (Estudos em Filosofia, Ciência, Tecnologia e Sociedade), na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal - RN/Brasil. CV: http://lattes.cnpq.br/7406778073298653. E-mail: [email protected]. Submetido em: abril/2016. Aprovado em: setembro/2016.

Transcript of O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail:...

Page 1: O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail: angelamiranda@ect@ufrn.br. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do

Este artigo estaacute licenciado sob forma de uma licenccedila Creative Commons Atribuiccedilatildeo 40 Internacional que permite uso irrestrito distribuiccedilatildeo e reproduccedilatildeo em qualquer meio desde que a publicaccedilatildeo original seja corretamente citada httpcreativecommonsorglicensesby40deedpt_BR

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

DOI 10154481677-95092017123847

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

The Principle Responsibility as Evaluation of Policies in Science and Technology

ANGELA LUZIA MIRANDA

MARIA RENATA DE CASTRO SULINO

RESUMO ndash O ideal da ciecircncia protagonizado pela modernidade e ratificado pelo Positivismo cujo conhecimento deva ser construiacutedo sob a eacutegide da neutralidade e da objetividade do meacutetodo cientiacutefico e cujo significado de tecnologia deva restringir-se ao meramente instrumental levou-nos agrave crenccedila de que tanto a ciecircncia quanto a teacutecnica devem se distanciar do acircmbito valorativo da eacutetica e da dimensatildeo social Assim as decisotildees no que tange agraves poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia tambeacutem passaram a adquirir tal pretensatildeo menosprezando a cultura local Essa problemaacutetica mais que cientiacutefica ou poliacutetica eacute tambeacutem eacutetica Este trabalho analisa portanto a avaliaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia com base na eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas utilizando como caraacuteter ilustrativo a fruticultura irrigada na regiatildeo de IpanguaccediluRN De caraacuteter exploratoacuterio e qualitativo este estudo se utiliza da pesquisa bibliograacutefica (Jonas Shiva Herrera Albano etc) e de campo para a coleta de dados

Palavras-chave ndash Eacutetica da responsabilidade Poliacuteticas puacuteblicas Ciecircncia e tecnologia Agricultura

ABSTRACT ndash The ideal of science played by modernity and ratified by Positivism whose knowledge should be built under the aegis of the neutrality and objectivity of the scientific method and whose technologyrsquos meaning should be restricted to the merely instrumental this led us to the belief that both science and technique mustdistance itself from the evaluative scope of the ethic and social dimension In these terms the decisions regarding policies on science and technology also it began to acquire such a claim disregarding the local culture This problematic rather than scientific or political is also ethical This paper analyses therefore the policy application in science and technology based on the ethics of responsibility of Hans Jonas using as an illustrative the cultivation of irrigated fruit crops in IpanguaccediluRN Of exploratory and qualitative feature this study uses the literature (Jonas Shiva Herrera Albano etc) and field research to collect data

Keywords ndash Ethics of responsability Public policies Science and technology Agriculture

Doutora em Filosofia Coordenadora do Grupo de Pesquisa Phrogravenesis (Estudos em Filosofia Ciecircncia Tecnologia e Sociedade) e Professora da Escola de Ciecircncias e Tecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal - RNBrasil CV httplattescnpqbr2841293474679022 E-mail angelamirandaectufrnbr Graduanda em Quiacutemica do Petroacuteleo Bolsista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica do Grupo de Pesquisa Phrogravenesis (Estudos em Filosofia Ciecircncia Tecnologia e Sociedade) na Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal - RNBrasil CV httplattescnpqbr7406778073298653 E-mail mrenatacastrogmailcom Submetido em abril2016 Aprovado em setembro2016

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

245

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

om o advento da modernidade mais precisamente do Positivismo a ciecircncia passou a construir a imagem de um conhecimento desprovido de intencionalidades Assim o ideal de ciecircncia cujo conhecimento deva ser neutro e objetivo e cujo significado de tecnologia deva restringir-se ao

meramente instrumental levou-nos agrave crenccedila de que tanto a ciecircncia quanto a teacutecnica devem se distanciar do acircmbito valorativo da eacutetica e da dimensatildeo social Do ponto de vista dos artefatos tecnoloacutegicos por exemplo estes passaram a ser considerados como ldquoum fazer humanordquo ou um mero ldquomeio para fins de sobrevivecircncia humanardquo (HEIDEGGER 2012) Diante desta concepccedilatildeo subestimam-se as implicaccedilotildees culturais econocircmicas poliacuteticas sociais e tambeacutem eacuteticas da tecnologia

Mas se por um lado pretendeu-se inocentar as implicaccedilotildees sociais e eacuteticas da tecnologia propagados por muitos que defendem o caraacuteter da neutralidade cientiacutefica e tecnoloacutegica por outra parte Karl-Otto Apel (1994) nos mostra que os processos tecnocientiacuteficos jaacute satildeo de per si considerados eacuteticos pelos proacuteprios resultados que produzem na sociedade Apel usa como argumento as proacuteprias consequecircncias socioambientais decorrentes da accedilatildeo tecnocientiacutefica da produccedilatildeo em grande escala posto que jaacute alcanccedilaram uma dimensatildeo global Ou seja estas consequecircncias jaacute natildeo podem ser vistas apenas com um problema da microesfera pois jaacute atingiram a dimensatildeo da macroesfera das relaccedilotildees humanas natildeo se trata de um problema local mas de uma questatildeo global que diz respeito a toda humanidade Apel explica

Essas poucas indicaccedilotildees devem ser suficientes para deixar claro que os resultados da ciecircncia representam um desafio moral para a humanidade A civilizaccedilatildeo tecnocientiacutefica confrontou todos os povos raccedilas e culturas sem consideraccedilatildeo de suas tradiccedilotildees morais grupalmente especiacuteficas e culturalmente relativas com uma problemaacutetica eacutetica comum a todos Pela primeira vez na histoacuteria da espeacutecie humana os homens foram praticamente colocados ante a tarefa de assumir a responsabilidade solidaacuteria pelos efeitos de suas accedilotildees em medida planetaacuteria Deveriacuteamos ser de opiniatildeo que a essa compulsatildeo por uma responsabilidade solidaacuteria deveria corresponder a validez intersubjetiva das normas ou pelo menos do princiacutepio baacutesico de uma eacutetica da responsabilidade (APEL 1994 p 72)

Com base nessa anaacutelise criacutetica da ciecircncia e da tecnologia na modernidade onde satildeo perceptiacuteveis os efeitos desastrosos advindos dos avanccedilos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos surge a preocupaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos rumos da existecircncia e da permanecircncia da vida humana e extra-humana de forma sustentaacutevel no planeta Diante deste cenaacuterio o filoacutesofo Hans Jonas em sua obra intitulada ldquoO princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegicardquo (2006) propotildee um novo modelo de eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica ao que ele denomina ldquoeacutetica da responsabilidaderdquo Diante do papel significativo que a teacutecnica e a ciecircncia passaram a ocupar na modernidade e diante das novas consequecircncias eacuteticas decorrentes das accedilotildees tecnocientiacuteficas os modelos das eacuteticas anteriores observa Jonas (2006 p 39) jaacute natildeo conseguem mais suportar ou abarcar tal estado da questatildeo Por isso afirma Jonas eacute necessaacuterio repensar o proacuteprio modelo de eacutetica vigente Assim ele indaga

A natureza como uma responsabilidade humana eacute seguramente um novum sobre o qual uma nova teoria eacutetica deve ser pensada Que tipo de deveres ela exigiraacute Haveraacute algo mais do que o interesse utilitaacuterio Eacute simplesmente a prudecircncia que recomenda que natildeo se mate a galinha dos ovos de ouro ou que natildeo se serre o galho sobre o qual se estaacute sentado Mas ldquoesterdquo que aqui se senta e que talvez caia no precipiacutecio - quem eacute E qual eacute o meu interesse no seu sentar ou cair (JONAS 2006 p 40)

Aqui eacute possiacutevel observar a tese defendida pelo pensador a necessidade de pensar um modelo de eacutetica capaz de abranger essas novas dimensotildees da condiccedilatildeo humana e da accedilatildeo praacutetica (eacutetica) fundada na responsabilidade do agir eacutetico que leva em consideraccedilatildeo natildeo apenas o homem e seu interesse utilitaacuterio mas tambeacutem a natureza em sua dimensatildeo ontoloacutegica Para Jonas torna-se premente pensar num modelo de eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica que seja capaz de sair da esfera antropocecircntrica e utilitarista e que

C

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

246

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

reconduza a accedilatildeo humana baseada na responsabilidade e na prudecircncia no temor e na previsibilidade e em prol da biosfera

Com base nisso esta pesquisa busca aprofundar e ilustrar a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como exemplo a implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na atualidade No caso em especiacutefico analisaremos o contexto da regiatildeo de Ipanguaccedilu (municiacutepio do Rio Grande do NorteRN) e a implementaccedilatildeo do projeto da fruticultura irrigada Esta regiatildeo se destaca por sua atividade agriacutecola de um lado a agricultura familiar e do outro o agronegoacutecio Assim o intuito deste trabalho eacute analisar com base na eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas as praacuteticas da agricultura familiar e a sua relaccedilatildeo com o agronegoacutecio na regiatildeo Como propoacutesito secundaacuterio e consequente do anterior pretende-se ainda identificar e analisar a participaccedilatildeo puacuteblica na implementaccedilatildeo destas poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas atraveacutes dos agricultores e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu com o objetivo de perceber se haacute uma praacutetica democraacutetica e participativa na implementaccedilatildeo destas poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas de modo que possa garantir a cultura e as praacuteticas sociais locais Tambeacutem eacute propoacutesito desse trabalho constatar se estas praacuteticas estatildeo dissociadas da realidade local e da preservaccedilatildeo ao meio ambiente levando em conta apenas os interesses econocircmicos de uma minoria

Dito isso pretende-se num primeiro momento apresentar a eacutetica da responsabilidade proposta pelo filoacutesofo Hans Jonas expondo as suas caracteriacutesticas e explicitando como ela se propotildee a enfrentar os problemas causados pela tecnociecircncia Num segundo momento pretende-se aprofundar a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da responsabilidade na implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas levando em consideraccedilatildeo e de modo mais especiacutefico o caso da fruticultura irrigada no municiacutepio de IpanguaccediluRN

Metodologia

Do ponto de vista metodoloacutegico esta pesquisa possui caraacuteter exploratoacuterio e qualitativo que segundo Gil (2002 p 41) consiste em ldquo[] proporcionar maior familiaridade com o problema com vistas a tornaacute-lo mais expliacutecito ou a constituir hipoacuteteses Pode-se dizer que estas pesquisas tecircm como objetivo principal o aprimoramento de ideias ou a descoberta de intuiccedilotildeesrdquo Aleacutem disso o trabalho possui fonte bibliograacutefica utilizando principalmente as obras de Hans Jonas (1997 2006) e comentadores como Miranda (2012) Boff (1999) Apel (1994) Shiva (2003) entre outros

A regiatildeo de Ipanguaccedilu foi escolhida como exemplo para a pesquisa de campo devido ao seu contexto econocircmico tendo como principal atividade econocircmica a agricultura A relaccedilatildeo com a terra se daacute pelos moradores locais que praticam a agricultura familiar de um lado e de outro pelas empresas do agronegoacutecio que incentivam as poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas voltadas para o progresso e a modernizaccedilatildeo da agricultura Eacute pois diante deste cenaacuterio que encontramos um terreno feacutertil para desenvolver a pesquisa sobre a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade Desse modo como procedimento de caraacuteter instrumental foi feita uma sondagem (LAKATOS MARCONI 1992) com os agricultores locais e a visita in loco com o intuito de coletar dados de natureza qualitativa O propoacutesito aqui foi averiguar o progresso cientiacutefico e suas implicaccedilotildees com o meio socioambiental bem como a sua relaccedilatildeo com as poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e os princiacutepios eacuteticos que regem estas praacuteticas No primeiro momento foram contatados os gestores responsaacuteveis pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu para delinear quais princiacutepios eacuteticos regem suas praacuteticas cientiacuteficas E no segundo momento a sondagem foi feita com base no diaacutelogo com outros agricultores locais Levando em consideraccedilatildeo o caraacuteter qualitativo foram analisadas quatro questotildees abrangendo trecircs aspectos principais (a) a agricultura familiar e a relaccedilatildeo com o agronegoacutecio (b) a implementaccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas em ciecircncia e tecnologia e as consequecircncias ambientais (c) a percepccedilatildeo dos conceitos teoacutericos e das diretrizes aplicadas que se relacionam ao tema principal da pesquisa A amostra foi utilizada tatildeo somente como caraacuteter ilustrativo para demonstrar numa situaccedilatildeo concreta a relaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade e sua aplicabilidade nas poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia Nesta etapa do trabalho tambeacutem foram importantes os dados coletados atraveacutes de

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

247

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

documentos (IBGE 2010 AESA 2015 etc) anaacutelises complementares (HERRERA 1995 LISBOA 1996) e estudos sobre a regiatildeo (ALBANO 2008)

A eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas

Antes de abordar o que a eacutetica da responsabilidade proposta por Hans Jonas representa no contexto da nossa sociedade tecnoloacutegica eacute necessaacuterio entender em qual cenaacuterio ela surge A partir disso compreenderemos de forma mais expliacutecita o seu propoacutesito e suas principais caracteriacutesticas

O filoacutesofo Hans Jonas (1903-1993) nasceu em Moumlnchengladbach na Alemanha Foi aluno de Martin Heidegger na Universidade de Freiburg (1920) onde este foi por muito tempo o seu mentor intelectual (WOLIN 2001) Apoacutes a ascensatildeo do nazismo ao poder por ser de origem judaica Jonas partiu da Alemanha e viveu na Inglaterra na Palestina e nos Estados Unidos O filoacutesofo presenciou e vivenciou as consequecircncias da ascensatildeo do Nazismo a Primeira e a Segunda Guerra e o papel crucial que a tecnologia desempenhou nesse contexto Dessa forma principalmente apoacutes as bombas atocircmicas na Segunda Guerra Mundial e do seu efeito devastador agrave populaccedilatildeo e ao meio ambiente surge a preocupaccedilatildeo e a reflexatildeo de Jonas sobre a dimensatildeo que a tecnologia moderna estava ocupando na sociedade (MIRANDA 2012 p 72)

Diante deste panorama Jonas (2006 1997) constata que a teacutecnica e a ciecircncia atingiram um notaacutevel espaccedilo na sociedade ao mesmo tempo em que tambeacutem revelaram seu caraacuteter ameaccedilador para a vida na terra Logo a tecnologia natildeo eacute neutra e dada a sua importacircncia e sua profunda interaccedilatildeo com a sociedade e com o meio ambiente ela possui um caraacuteter eminentemente eacutetico Eacute nesse sentido que Hans Jonas propotildee o princiacutepio da responsabilidade como um modelo de eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Publicada pela primeira vez no ano de 1979 a tese central desta obra eacute a proposta de um novo modelo de eacutetica que seja capaz de englobar o importante papel que a tecnologia moderna possui na sociedade tecnoloacutegica Um modelo de eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica capaz de ir aleacutem das molduras das eacuteticas anteriores posto que estas jaacute natildeo satildeo mais capazes de abarcar as consequecircncias da tecnologia tal como observa o proacuteprio Hans Jonas (2006)

Mas para compreender em sua totalidade a eacutetica da responsabilidade eacute necessaacuterio entender porque Jonas afirma que a eacutetica tradicional jaacute natildeo consegue abranger a tecnologia moderna Tambeacutem eacute importante entender o que o filoacutesofo define como responsabilidade e suas caracteriacutesticas principais Abordaremos este assunto a seguir com base em trecircs aspectos

A insuficiecircncia da eacutetica tradicional diante do que eacute demandado eticamente pela

tecnologia moderna

O conceito de responsabilidade para Jonas

As principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade

A insuficiecircncia da eacutetica tradicional diante do que eacute demandado eticamente pela tecnologia

moderna

Observa Hans Jonas que de modo geral os modelos de eacutetica herdados pela tradiccedilatildeo ocidental se embasam na neutralidade tecnoloacutegica e no antropocentrismo onde o ser humano eacute o centro e o fim uacuteltimo da accedilatildeo eacutetica Aleacutem disso tratam-se de modelos de eacuteticas presentistas que se relacionam apenas com o agora e natildeo se preocupam ou natildeo levam em conta o futuro Mostrando que tais modelos de eacutetica jaacute natildeo satildeo mais suficientes frente ao cenaacuterio tecnificado da sociedade atual Jonas (2006) elenca algumas caracteriacutesticas da eacutetica ateacute o momento presente com o intuito de demonstrar a necessidade de um novo modelo de eacutetica capaz de fazer frente aos desafios da sociedade tecnocientiacutefica Satildeo elas

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

248

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

i) A primeira caracteriacutestica dos modelos de eacutetica herdados da tradiccedilatildeo ocidental eacute a neutralidade na esfera do domiacutenio da teacutecnica (techne) Fazendo uma comparaccedilatildeo com as caracteriacutesticas do agir humano do passado e levando em conta a eacutetica tradicional Jonas (2006 p 35) observa que a ldquotechne como atividade compreendia-se a si mesma como um tributo determinado pela necessidade e natildeo como um progresso que se autojustifica como fim preciacutepuo da humanidaderdquo Aqui nota-se que a dimensatildeo eacutetica natildeo estaacute circunscrita ao acircmbito dos objetos Dessa forma natildeo constitui uma vinculaccedilatildeo da prudecircncia na relaccedilatildeo homem-teacutecnica no mundo extra-humano

ii) A segunda caracteriacutestica evidencia o caraacuteter antropocecircntrico da eacutetica tradicional quando Jonas (2006 p 35) afirma referindo-se aos modelos das eacuteticas anteriores ldquoA significaccedilatildeo eacutetica dizia respeito ao relacionamento direto de homem com homem inclusive o de cada homem consigo mesmo toda eacutetica tradicional eacute antropocecircntricardquo Ou seja a accedilatildeo eacutetica estaacute circunscrita no acircmbito tatildeo somente da relaccedilatildeo entre seres humanos A propoacutesito o importante estudo de Michel Serres intitulado ldquoO Contrato Naturalrdquo (1992) tambeacutem evidencia este aspecto da eacutetica tradicional

iii) Outro caraacuteter da eacutetica tradicional diz respeito agrave accedilatildeo imediata Ou seja o paracircmetro de avaliaccedilatildeo do efeito da accedilatildeo eacute apenas o momento presente natildeo levando em consideraccedilatildeo o futuro Assim esclarece Hans Jonas

O bem e o mal com o qual o agir tinha de se preocupar evidenciavam-se na accedilatildeo seja na proacutepria praacutexis ou em seu alcance imediato e natildeo requeriam um planejamento de longo prazo[] O alcance efetivo da accedilatildeo era pequeno o intervalo de tempo para previsatildeo definiccedilatildeo de objetivo e imputabilidade era curto e limitado o controle sobre as circunstacircncias O comportamento correto possuiacutea seus criteacuterios imediatos e sua consecuccedilatildeo quase imediata O longo trajeto das consequecircncias ficava ao criteacuterio do acaso do destino ou da providecircncia Por conseguinte a eacutetica tinha a ver com o aqui e o agora (JONAS 2006 p 35-36)

Com base nestas caracteriacutesticas da eacutetica tradicional e frente agraves demandas do mundo tecnificado pela accedilatildeo do homem Jonas defende pois a necessidade de elaborar um modelo de eacutetica que seja capaz de suplantar a insuficiecircncias da eacutetica tradicional Assim ele justifica

A teacutecnica moderna introduziu accedilotildees de uma tal ordem ineacutedita de grandeza com tais novos objetos e consequecircncias que a moldura da eacutetica antiga natildeo consegue mais enquadraacute-las [] Isso impotildee agrave eacutetica pela enormidade de suas forccedilas uma nova dimensatildeo nunca antes sonhada de responsabilidade (JONAS 2006 p 39)

Aqui fica evidente a necessidade de um novo agir do homem um agir que natildeo estaacute circunscrito somente agrave relaccedilatildeo do homem com o proacuteprio homem reforccedilando o modelo meramente antropocecircntrico de eacutetica mas um agir que alcance o biocecircntrico isto eacute fundado na responsabilidade para com todos os seres e as geraccedilotildees futuras Mas o que eacute entendido aqui como responsabilidade E mais porque devemos situaacute-la como uma nova dimensatildeo da eacutetica Para esclarecer melhor esses questionamentos abordaremos o item a seguir

O conceito de responsabilidade para Jonas

A responsabilidade para Jonas eacute entendida como aquela accedilatildeo que se projeta tanto no presente como no futuro Do ponto de vista da civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica e seus dilemas eacuteticos trata-se da accedilatildeo diretamente incorporada ao progresso tecnoloacutegico e ao sentido do ldquopoder como deverrdquo (e natildeo ao contraacuterio tal como dizia Kant) Assim esclarece o filoacutesofo

Responsabilidade eacute o cuidado reconhecido como obrigaccedilatildeo em relaccedilatildeo a outro ser que se torna ldquopreocupaccedilatildeordquo quando haacute uma ameaccedila agrave sua vulnerabilidade Mas o medo estaacute presente na questatildeo original com a qual podemos imaginar se inicie

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

249

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

qualquer responsabilidade ativa o que pode acontecer a ele se eu natildeo assumir a responsabilidade por ele Quanto mais obscura a resposta maior se delineia a responsabilidade Quanto mais no futuro longiacutenquo situa-se aquilo que se teme quanto mais distante do nosso bem-estar ou mal-estar quanto menos familiar for o seu gecircnero mais necessitam ser diligentemente mobilizadas a lucidez da imaginaccedilatildeo e a sensibilidade dos sentidos Torna-se necessaacuteria uma heuriacutestica do medo capaz de investigar que natildeo soacute descubra e represente o novo objeto como tal mas que tome conhecimento do interesse moral particular ao ser interpelado pelo objeto (JONAS 2006 p 352 grifo nosso)

Portanto o conceito de responsabilidade para Jonas diz respeito ao cuidado com o outro ser que dada a ameaccedila de sua vulnerabilidade converte-se em pre-ocupaccedilatildeo diante da condiccedilatildeo humana de poder cuidar (MIRANDA 2012 p 82 e ss) A responsabilidade eacute o valor que deve reger a accedilatildeo praacutetica segundo Jonas Desse modo a accedilatildeo (como um agir moral) deve possuir como aspecto essencial o cuidado como obrigaccedilatildeo levando em conta a permanecircncia das futuras geraccedilotildees no planeta frente aos desafios enfrentados pela sociedade tecnocientiacutefica

Ainda na perspectiva da accedilatildeo eacutetica e levando em consideraccedilatildeo as futuras geraccedilotildees observa Jonas que a accedilatildeo humana potencialmente tecnificada pode prejudicar irreversivelmente a natureza e o proacuteprio homem A partir daiacute aparece um novo tipo de verdade como objeto do saber cientiacutefico a verdade que consiste nas condiccedilotildees futuras do homem e da natureza a verdade que deve natildeo somente diagnosticar mas tambeacutem prognosticar Neste sentido Jonas argumenta

Portanto esse saber real e eventual relativo agrave esfera dos fatos (que continua sendo teoacuterico) situa-se entre o saber ideal da doutrina eacutetica dos princiacutepios e o saber praacutetico relacionado agrave utilizaccedilatildeo poliacutetica o qual soacute pode operar com os seus diagnoacutesticos hipoteacuteticos relativos ao que se deve esperar ao que se deve incentivar ou ao que se deve evitar Haacute de se formar uma ciecircncia da previsatildeo hipoteacutetica uma ldquofuturologia comparativardquo (JONAS 2006 p 70)

Eacute nesse sentido que Jonas modifica o imperativo kantiano ateacute entatildeo predominante como modelo tradicional de eacutetica invertendo-o

Esse novo imperativo ldquoage de tal forma que os efeitos de suas accedilotildees sejam compatiacuteveis com a permanecircncia de uma vida humana autecircnticardquo ou formulando negativamente ldquonatildeo ponha em risco a continuidade indefinida da humanidade na Terrardquo vem substituir o imperativo kantiano ldquoage de tal forma que o princiacutepio da tua accedilatildeo se transforme numa lei universalrdquo (JONAS 2006 p 18)

Ao formular um novo imperativo eacutetico transformando-o em seu princiacutepio da responsabilidade Jonas atenta natildeo apenas para a destruiccedilatildeo fiacutesica da humanidade e da biosfera mas tambeacutem para o resgate essencial da relaccedilatildeo entre o ser teacutecnico e a natureza Segundo Miranda (2012 p 83) o imperativo eacutetico jonasiano da responsabilidade possui uma nova fundamentaccedilatildeo que eacute o sentido ontoloacutegico o que eacute levado em consideraccedilatildeo natildeo eacute apenas o fazer utilitarista mas essencialmente o ser Trata-se do caraacuteter metafiacutesico da eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas ou da fundamentaccedilatildeo metafiacutesica do agir eacutetico baseado na responsabilidade

Em siacutentese para Jonas os mandamentos da eacutetica tradicional estabelecidos por Kant Bentham Mill e outros filoacutesofos estatildeo direcionados agraves relaccedilotildees e agraves accedilotildees imediatas do ser humano e que natildeo se preocupam com o futuro ou a continuidade da vida no planeta de um modo geral (ZANCANARO 1998 p 09) Poreacutem para que haja responsabilidade eacute necessaacuterio existir uma consciecircncia criacutetica perante as consequecircncias advindas da aplicaccedilatildeo da ciecircncia e da tecnologia na sociedade

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

250

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

No entanto Jonas (2006 p 18) afirma que o imperativo tecnoloacutegico elimina a consciecircncia o sujeito e a liberdade em prol de um determinismo Ou seja o sujeito torna-se alienado agrave proacutepria ciecircncia e agrave tecnologia Do mesmo modo sobre o pensamento cientiacutefico Edgar Morin adverte

O pensamento cientiacutefico eacute ainda incapaz de se pensar de pensar sua proacutepria ambivalecircncia e sua proacutepria aventura A ciecircncia deve reatar com a reflexatildeo filosoacutefica como a filosofia cujos moinhos giram vazios por natildeo moer os gratildeos dos conhecimentos empiacutericos deve reatar com as ciecircncias A ciecircncia deve reatar com a consciecircncia poliacutetica e eacutetica (MORIN 2005 p 11)

Tambeacutem nesse sentido Ulrick Beck ao analisar o que ele denomina ldquoa sociedade do risco globalrdquo entende que a ciecircncia jaacute natildeo pode levar consigo a ideia de neutralidade mas sim a criticidade e a reflexatildeo quanto ao seu uso Assim ele argumenta

Na passagem para a praacutexis as ciecircncias satildeo agora confrontadas com a objetivaccedilatildeo de seu proacuteprio passado e presente consigo mesmas como produto e produtora da realidade e de problemas que cabe a elas analisar e superar Desse modo elas jaacute natildeo satildeo vistas apenas como manancial de soluccedilotildees para os problemas mas ao mesmo tempo tambeacutem como manancial de causas de problemas[] e por paradoxal que pareccedila num mundo jaacute loteado cientificamente e profissionalmente administrado as perspectivas de futuro e as oportunidades de expansatildeo da ciecircncia estatildeo vinculadas tambeacutem agrave criacutetica da ciecircncia (BECK 2010 p 236)

Esclarecido o conceito de responsabilidade dentro da eacutetica proposta por Hans Jonas e problematizada a accedilatildeo humana tecnificada no contexto da sociedade tecnocientiacutefica torna-se mister elencar as principais caracteriacutesticas que norteiam a eacutetica da responsabilidade tal como abordaremos a seguir

As principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade

Uma das caracteriacutesticas principais da eacutetica da responsabilidade proposta por Jonas eacute a questatildeo do dever para com a biosfera Mas em que consiste esse dever ldquoO dever do homem consiste em preservar este mundo fiacutesico de modo que as condiccedilotildees para tal presenccedila continuem ilesas ou intocadas ou seja proteger a vulnerabilidade do mundo que habitamos diante das ameaccedilasrdquo (JONAS 2006 p 45) Ou seja o dever estaacute incorporado ao conceito de responsabilidade e do cuidado com a biosfera levando em consideraccedilatildeo a previsibilidade da accedilatildeo teacutecnica

Para deixar mais expliacutecito em que consiste esse dever Jonas identifica-o a partir de distintos estaacutegios O primeiro dever ldquoconsiste em visualizar os efeitos a longo prazo estimar as consequecircncias dos atos natildeo soacute na sociedade mas tambeacutem no meio ambiente na naturezardquo (JONAS 2006 p 72) Ou seja aleacutem de precisar existir uma estimativa de consequecircncias dos atos humanos baseada no futuro esta previsatildeo natildeo pode vincular apenas o aspecto antropoloacutegico mas tambeacutem a natureza Jaacute o segundo dever ldquoconsiste em [] utilizar o medo dessas consequecircncias para estimular o respeito agrave vida humana e extra-humana Para isso basta lembrar o quatildeo as invenccedilotildees do homem podem ser imprevisiacuteveisrdquo (JONAS 2006 p 73) O medo aqui aparece como fator de prevenccedilatildeo principalmente para preservar as futuras geraccedilotildees A partir disso Jonas aponta para uma heuriacutestica do temor afirmando que se torna necessaacuterio o prognoacutestico e a temeridade em relaccedilatildeo agraves possiacuteveis consequecircncias catastroacuteficas do saber cientiacutefico e tecnoloacutegico aplicado perante a biosfera ou seja ldquoo saber origina-se daquilo contra o que devemos nos protegerrdquo (JONAS 2006 p 71)

Poreacutem Jonas conclui que esse temor que serve para que possamos refletir prever e prevenir as futuras consequecircncias catastroacuteficas natildeo eacute o mesmo medo que nos deixa paralisados

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

251

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Os homens experientes sabem que um dia podem desejar natildeo ter agido desta ou daquela forma O medo de que falo natildeo se refere a esse tipo de incerteza ou ele pode estar presente apenas como um efeito secundaacuterio Com efeito eacute uma das condiccedilotildees da accedilatildeo responsaacutevel natildeo se deixar deter por esse tipo de incerteza assumindo-se ao contraacuterio a responsabilidade pelo desconhecido dado o caraacuteter incerto da esperanccedila isso eacute o que chamamos de ldquocoragem para assumir a responsabilidaderdquo O medo que faz parte da responsabilidade natildeo eacute aquele que nos aconselha a natildeo agir mas aquele que nos convida a agir Trata-se de um medo que tem a ver com o objeto da responsabilidade (JONAS 2006 p 351)

Dessa forma a heuriacutestica do temor aponta para uma eacutetica baseada em antecipar os efeitos futuros e nos fazer agir de maneira mais prudente em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia Nesse sentido Miranda interpretando o sentido jonasiano de eacutetica afirma

[] podemos formular os deveres preliminares de uma eacutetica orientada para o futuro que satildeo buscar a representaccedilatildeo dos efeitos remotos pois somente o que eacute temido pode ser evitado por sua representaccedilatildeo e buscar o temor mediante a apelaccedilatildeo a um sentimento apropriado que o representa (MIRANDA 2012 p 81)

Podemos concluir portanto que a eacutetica da responsabilidade proposta por Hans Jonas eacute um modelo que pensado para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica leva em conta a biosfera a permanecircncia das futuras geraccedilotildees no planeta resgatando a ideia do cuidado do lugar onde se vive em meio aos desafios enfrentados pela sociedade tecnocientiacutefica E eacute a partir desses conceitos que a seguir abordaremos ilustrativamente a aplicaccedilatildeo (ou a ausecircncia) da responsabilidade na implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia dada uma situaccedilatildeo concreta que pertence ao local desde onde falamos e pensamos este trabalho

A aplicaccedilatildeo do princiacutepio responsabilidade de Hans Jonas numa situaccedilatildeo concreta o caso de

IpanguaccediluRN

Sobre a praacutetica do princiacutepio da responsabilidade Jonas escreveu uma obra muito interessante intitulada ldquoTeacutecnica medicina e eacuteticardquo (1997) Naquela oportunidade ele procurou estabelecer a relaccedilatildeo entre a teacutecnica a medicina e a eacutetica inserindo nesta relaccedilatildeo o princiacutepio da responsabilidade A partir daqui neste trabalho pretendemos percorrer uma trajetoacuteria semelhante considerando a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade no cenaacuterio das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas tendo como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no Municiacutepio de Ipanguaccedilu localizado no Estado do Rio Grande do Norte Agrave luz do princiacutepio da responsabilidade de Jonas analisamos as caracteriacutesticas locais da comunidade de agricultores de Ipanguaccedilu do ponto de vista econocircmico cultural e social e como se deu o processo de participaccedilatildeo dos agricultores locais nas poliacuteticas puacuteblicas voltadas para agricultura em especial o caso da fruticultura irrigada

O municiacutepio de IpanguaccediluRN

Ipanguaccedilu eacute um municiacutepio do Estado do Rio Grande do Norte que faz parte da microrregiatildeo do Vale do Accedilu Esta microrregiatildeo eacute formada por nove municiacutepios incluindo Ipanguaccedilu que estatildeo localizados na bacia do Rio PiranhasAccedilu e que possui cerca de 4368150 kmsup2 de extensatildeo segundo dados da AESA (Agecircncia Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba) Eacute importante ressaltar que o Rio PiranhasAccedilu desempenha um papel de extrema importacircncia pois possui o maior reservatoacuterio de aacutegua do Estado do RN a barragem Armando Ribeiro Gonccedilalves

Figura 1 - Mapa do Estado do Rio Grande do Norte Vale do Accedilu em destaque

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

252

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Fonte Webcarta (2015 destaque nosso)

Em Ipanguaccedilu o processo de produccedilatildeo e a base da economia satildeo marcados principalmente pela

agricultura pecuaacuteria e induacutestria da ceracircmica Na agricultura a accedilatildeo do cultivo era de subsistecircncia poreacutem atualmente com a instalaccedilatildeo de empresas na regiatildeo a praacutetica da agricultura eacute centrada na atividade da fruticultura irrigada voltada para exportaccedilatildeo Essa mudanccedila de cenaacuterio do cultivo de subsistecircncia para o cultivo voltado para a exportaccedilatildeo alterou drasticamente o modo de agir tanto na percepccedilatildeo dos agricultores sobre a terra e o que ela simboliza ou representa quanto na forma de lidar com a terra

A construccedilatildeo da Barragem Armando Ribeiro na regiatildeo evidenciou tais mudanccedilas pois segundo Albano (2008) a construccedilatildeo da Barragem configurou dois periacuteodos importantes no municiacutepio o primeiro (1972-1992) marcado pela chegada de empresas nacionais do ramo da agricultura o segundo (1993-2015) marcado pela entrada de multinacionais no municiacutepio como eacute o caso da Del Monte Fresh Produce Essas mudanccedilas representaram natildeo apenas a inserccedilatildeo de empresas do ramo da agricultura na regiatildeo mas tambeacutem uma mudanccedila no cenaacuterio do mercado e da relaccedilatildeo com a terra Pois num primeiro momento ocorreu a migraccedilatildeo da agricultura de subsistecircncia para a de mercado enquanto que num segundo foi adotada a visatildeo de exportaccedilatildeo tendo como base a fruticultura irrigada da monocultura da banana

Outro fato importante eacute que 612 da populaccedilatildeo estaacute situada e trabalha no meio rural segundo o Censo Demograacutefico de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) Dessa forma podemos observar que a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu-RN eacute extremamente importante natildeo soacute para os agricultores locais como tambeacutem e sobretudo para a dinacircmica econocircmica do municiacutepio Eacute em torno dela que se configura a relaccedilatildeo com a terra com a cultura e com a economia no contexto social da regiatildeo

Baseados no caraacuteter metodoloacutegico jaacute explicitado anteriormente e levando em conta a dinacircmica da (re)configuraccedilatildeo da terra ficou evidente a partir da nossa observaccedilatildeo in loco realizada no municiacutepio de Ipanguaccedilu (2014) que a maioria dos trabalhadores rurais natildeo trabalha em sua proacutepria terra mas na terra de terceiros (apenas 3 do total de 10 entrevistados possuem propriedade proacutepria) Segundo o Entrevistado A trabalhador do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu antes da instalaccedilatildeo das empresas multinacionais no municiacutepio havia comunidades que possuiacuteam 50 moradores Mas nos uacuteltimos 15 anos essas comunidades tiveram um aumento populacional vertiginoso chegando a ter 500 famiacutelias Isso segundo ele aconteceu pelo fato de as pessoas deixarem ou venderem suas pequenas propriedades para trabalhar de assalariado no agronegoacutecio Segue trecho do diaacutelogo

Tecircm comunidades no municiacutepio de Ipanguaccedilu que antes das empresas serem instaladas no municiacutepio tinham 50 moradores Essa comunidade de 15 anos pra caacute estaacute com aproximadamente 500 famiacutelias porque as pessoas deixaram ou venderam suas pequenas propriedades para vir trabalhar de assalariado no agronegoacutecio Portanto hoje grande parte dessas pessoas querem voltar para suas terras que muitas vezes foram adquiridas por essas empresas que se tornaram donas das terras do municiacutepio As pessoas estatildeo batalhando para tentar conseguir

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

253

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

outro pedaccedilo de terra para voltar agrave sua origem porque eles estatildeo vendo que com a matildeo-de-obra assalariada eles nunca iratildeo ter uma autonomia econocircmica eles ganham apenas para o sustento familiar (Entrevistado A)

Neste sentido Albano (2008 p 65) acrescenta que ldquoA agricultura de subsistecircncia tambeacutem diminuiu muito com a Barragem e depois dela com as compras de terras pelas grandes empresas rurais interessadas em produzir monoculturas para exportaccedilatildeo ou para o mercado internordquo Como exemplo para ilustrar essa (re)configuraccedilatildeo do espaccedilo e da relaccedilatildeo com a terra podemos citar a multinacional Del Monte Fresh Produce Albano assim explicita o contexto da instalaccedilatildeo da empresa na Regiatildeo de Ipanguaccedilu

O ano de 1993 foi o ano do estabelecimento da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio (OMC) e o ano em que foram concluiacutedas as negociaccedilotildees da Rodada Uruguai que incluiacutea a Agricultura nas suas negociaccedilotildees e que previa uma grande liberalizaccedilatildeo do comeacutercio agriacutecola a partir daquele ano nos paiacuteses associados da OMC inclusive o Brasil Aleacutem disso eacute nesse ano que se tem o iniacutecio da compra de terras em Ipanguaccedilu por uma empresa associada agrave Multinacional Del Monte Fresh Produce Posteriormente ela se insere no municiacutepio de Accedilu e Carnaubais ambos no Vale do Accedilu (ALBANO 2008 p 68)

Contudo quais as implicaccedilotildees da instalaccedilatildeo da multinacional para a comunidade e a agricultura da regiatildeo A Tabela 1 a seguir mostra a relaccedilatildeo e a diferenccedila entre a multinacional e as empresas locais quanto aos elementos da cadeia produtiva e jaacute antecipa os indicativos de resposta vejamos

Tabela 1 - A relaccedilatildeo entre fatores de produccedilatildeo e aquisiccedilatildeo dos insumos das empresas com os lugares de compra

Fonte Elaborado por Albano (2008 p 69) baseado em Carvalho (2001)

Analisando a tabela podemos perceber que a multinacional Del Monte Fresh Produce natildeo possui interaccedilatildeo e integraccedilatildeo com a regiatildeo de Ipanguaccedilu Praticamente quase todos os fatores de produccedilatildeo de insumos e de serviccedilos satildeo exteriores ao municiacutepio A Pesquisa e Desenvolvimento (PampD) na aacuterea da fruticultura irrigada por exemplo eacute concentrada em Israel e na Ameacuterica central enquanto que nas empresas locais ela eacute fruto da proacutepria regiatildeo Eacute interessante perceber que a multinacional faz uso de apenas duas modalidades que diz respeito ao local tal como elencadas na tabela a terra e parte da assistecircncia teacutecnica

Eacute aqui que surge outra indagaccedilatildeo natildeo menos intrigante a percepccedilatildeo e a relaccedilatildeo com a terra do agricultor local satildeo as mesmas que a dos empresaacuterios das multinacionais Seraacute que a responsabilidade e o cuidado (resgatando os conceitos de Jonas) estatildeo implicados do mesmo modo em ambas situaccedilotildees Mais adiante voltaremos a estes pontos

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

254

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

As poliacuteticas puacuteblicas de modernizaccedilatildeo da fruticultura irrigada e a relaccedilatildeo essencial com a terra

Levando em consideraccedilatildeo as poliacuteticas puacuteblicas voltadas para a agricultura na regiatildeo percebe-se que apoacutes a construccedilatildeo da Barragem de Accedilu essas poliacuteticas satildeo voltadas para impulsionar a ldquoRevoluccedilatildeo Verderdquo dando iniacutecio a um forte processo de modernizaccedilatildeo da agricultura Albano a define do seguinte modo

[] consiste num grande crescimento de produtividade e de quantidade na agricultura por meio do uso de tecnologias como os tratores agriacutecolas teacutecnicas de irrigaccedilatildeo defensivos quiacutemicos variedades de sementes aviaccedilatildeo agriacutecola computadores novos meacutetodos de gestatildeo etc De um lado da produccedilatildeo vai se ter a Induacutestria Produtora de Insumos com fertilizantes defensivos e corretivos e do outro vai se ter a Induacutestria de Bens de Capital com tratores colheitadeiras e equipamentos de irrigaccedilatildeo (ALBANO 2008 p 62)

Ainda sobre a Revoluccedilatildeo Verde Shiva afirma

Os sistemas agriacutecolas tradicionais baseiam-se em sistemas de rotaccedilatildeo de culturas e cereais legumes sementes oleaginosas com diversas variedades em cada safra enquanto o pacote da Revoluccedilatildeo Verde baseia-se em monoculturas geneticamente uniformes (SHIVA 2003 p 57)

Em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas no acircmbito da agricultura irrigada em Ipanguaccedilu haacute vaacuterios esforccedilos por parte do governo para impulsionar a modernizaccedilatildeo do campo Em vista disso citando os estudos de Souza (1997) Albano (2008) elenca que no comeccedilo da deacutecada de 1970 o Governo Autoritaacuterio efetivou o I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) Este plano teve como programas mais importantes o Programa de Redistribuiccedilatildeo de Terras (PROTERRA) e de estiacutemulo agrave agroinduacutestria do Norte e Nordeste cujo principal objetivo era ampliar a agroinduacutestria e o Programa de Integraccedilatildeo Nacional (PIN) atraveacutes de um plano de irrigaccedilatildeo no Nordeste

Diante desses esforccedilos para modernizar (tecnificar) a agricultura vale a pena refletirmos sobre o ideal do progresso tecnoloacutegico aliado ao conceito de desenvolvimento econocircmico tatildeo presente na modernidade Essa concepccedilatildeo progressista desconsidera as intencionalidades existentes no artefato tecnoloacutegico e nos indiviacuteduos no que tange agrave sua construccedilatildeo histoacuterica cultural e de valores A instrumentalizaccedilatildeo da ciecircncia e da tecnologia reduz os aparatos e a proacutepria cultura ao meramente teacutecnico e cientiacutefico tendo em vista que o progresso tecnocientiacutefico na maioria das vezes aparece desvinculado da realidade da sociedade local

Herrera (1995 p 117) mostra que isso se torna evidente a partir da Segunda Guerra Mundial com o esforccedilo internacional de implementar e melhorar as Poliacuteticas de Ciecircncia e Tecnologia (CampT) nos paiacuteses considerados ldquosubdesenvolvidosrdquo Poreacutem o que se percebe entre outros fatores eacute a desconexatildeo dos investimentos com a realidade dos paiacuteses da Ameacuterica Latina Tanto as concepccedilotildees de ciecircncia e de tecnologia quanto a ideia de progresso tecnocientiacutefico desvinculados do contexto regional acabam refletindo na construccedilatildeo dos indicadores e das poliacuteticas puacuteblicas em CampT e consequentemente na participaccedilatildeo puacuteblica e na avaliaccedilatildeo deles

Mostrando a desvinculaccedilatildeo das poliacuteticas desenvolvimentistas com o contexto regional Lisboa corrobora com as teses de Robert Kurz quando afirma

As poliacuteticas desenvolvimentistas arrancaram em poucas deacutecadas populaccedilotildees inteiras da sua economia de subsistecircncia tradicional mas natildeo as integraram plenamente (ou seja natildeo as transformaram em cidadatildes) Kurz ao desnudar o colapso da modernizaccedilatildeo do terceiro mundo afirma que ldquoa maior parte da sociedade foi apenas modernizada em sentido negativo isto eacute foram destruiacutedas as estruturas tradicionais sem que alguma coisa nova ocupasse o seu lugarrdquo (LISBOA 1996 p 4-5)

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

255

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Assim as poliacuteticas desenvolvimentistas acabam eliminando a cultura e a praacutetica tradicional dos agricultores locais Relacionando esse contexto com a eacutetica da responsabilidade de Jonas que eacute o propoacutesito deste trabalho podemos testemunhar a sua total exclusatildeo pois a terra passa a ser vista como mero produto mera utilidade que visa ao lucro da exportaccedilatildeo Ou seja haacute um profundo abandono da responsabilidade enquanto cuidado e prudecircncia em relaccedilatildeo agrave terra ao meio ambiente e agraves comunidades que vivem do cultivo da terra

Retomando o olhar sobre a Tabela 1 percebemos que eacute iacutenfima a interaccedilatildeo entre as relaccedilotildees locais que envolvem as praacuteticas da agricultura com a empresa multinacional Neste tipo de praacutetica descarta-se o conhecimento local Desse modo o pensamento transforma-se em monoculturado (SHIVA 2003 p 21) e a cultura torna-se cientificada e tecnificada tendo como justificativa e produto final o progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico Aleacutem disso o proacuteprio debate e a avaliaccedilatildeo puacuteblica que deveria existir para garantir a participaccedilatildeo dos cidadatildeos e a gestatildeo mais democraacutetica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia excluem aqueles que efetivamente satildeo os atores sociais envolvidos neste processo No caso em questatildeo trata-se dos agricultores de Ipanguaccedilu

Aqui recobra sentido a ideia do imperativo tecnoloacutegico abordado por Jonas que elimina a liberdade e a consciecircncia do sujeito em prol de um determinismo tecnoloacutegico Assim o saber local deixa de ter importacircncia e em seu lugar ganha destaque o saber cientiacutefico deixando em evidecircncia as relaccedilotildees estabelecidas entre as multinacionais e o mercado exterior Notadamente na Tabela 1 o saber cientiacutefico e tecnoloacutegico (inclusive importados e produzidos fora do contexto local) satildeo os mais destacados e utilizados em detrimento ao saber local

Percebe-se ouvindo os agricultores da regiatildeo que apesar da instalaccedilatildeo das multinacionais em Ipanguaccedilu ter aumentado a quantidade de empregos a praacutetica do agronegoacutecio extinguiu a diversidade de plantio agriacutecola da regiatildeo Onde antes havia a diversidade cultivada atraveacutes da agricultura de subsistecircncia o cenaacuterio agora eacute o da monocultura com a fruticultura irrigada Um dos agricultores e morador local disse ldquoA agricultura aqui antes era em primeiro lugar Tinha tudo saiacutea muita carrada de pimentatildeo saiacutea muito tomate tinha bastante milho feijatildeo Hoje da agricultura o que tem bastante eacute soacute bananardquo (Entrevistado B)

Aleacutem disso os agricultores natildeo participam ativamente nas decisotildees das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e dos projetos voltados para a agricultura por parte da EMATER (Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural) cuja principal missatildeo eacute contribuir para a promoccedilatildeo do agronegoacutecio focando na agricultura familiar atraveacutes do serviccedilo de extensatildeo rural em prol do desenvolvimento sustentaacutevel tal como podemos observar na Tabela 2 a seguir

Tabela 2 - Projetos de agricultura irrigada implementados a partir de 1987 ateacute 1990 no Vale do Accedilu para pequenos irrigantes ndash EMATER

Fonte Pinheiro (1995 citado por Albano 2008 p 67)

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

256

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Pelos dados apresentados na tabela observa-se o baixo nuacutemero de projetos voltados para o pequeno agricultor na regiatildeo de Ipanguaccedilu Ainda falta uma poliacutetica puacuteblica que realmente integre o agricultor familiar no cenaacuterio da agricultura modernizada e que leve em conta a participaccedilatildeo popular de forma democraacutetica na sua formulaccedilatildeo Quando questionado sobre o papel da EMATER o mesmo agricultor afirma

A EMATER vem se arrastando a passos de tartaruga Eacute muito devagar Natildeo sei se eacute falta de incentivo dos governantes (que eu acredito que seja) porque tem os teacutecnicos que possuem vontade de colocar as coisas para funcionar mas por conta do recurso natildeo tem como eles colocarem para funcionar (Entrevistado B)

A regiatildeo de Ipanguaccedilu e a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas

Aleacutem do que jaacute observamos ateacute aqui que outros aspectos podemos extrair do contexto apresentado sobre a implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na regiatildeo de Ipanguaccedilu e a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da responsabilidade

Jaacute introduzimos este aspecto na parte anterior deste trabalho mas vale a pena aprofundar um pouco mais a criacutetica ao progresso tecida por Jonas (2006) ao que ele denomina de ideal baconiano e a relaccedilatildeo com o ideal de progresso presente na regiatildeo de Ipanguaccedilu Mais especificamente trata-se de evidenciar a relaccedilatildeo da dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica

Como visto anteriormente a tese principal defendida por Hans Jonas eacute que a teacutecnica moderna se converte em ameaccedila natildeo apenas fiacutesica mas tambeacutem ideoloacutegica na medida em que propaga o ideal de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico a qualquer custo o que segundo ele representa um perigo para toda a humanidade Sobre este perigo ele argumenta

O perigo decorre da dimensatildeo excessiva da civilizaccedilatildeo teacutecnico-industrial baseada nas ciecircncias naturais O que chamamos de programa baconiano ndash ou seja colocar o saber a serviccedilo da dominaccedilatildeo da natureza e utilizaacute-la para melhorar a sorte da humanidade ndash natildeo contou desde as origens na sua execuccedilatildeo capitalista com a racionalidade e a retidatildeo que lhe seriam adequadas poreacutem sua dinacircmica de ecircxito que conduz obrigatoriamente aos excessos de produccedilatildeo e consumo teria subjugado qualquer sociedade considerando-se a breve escala de tempo dos objetivos humanos e a imprevisibilidade real das dimensotildees do ecircxito (uma vez que nenhuma sociedade se compotildee de saacutebios) (JONAS 2006 p 235)

Jonas atenta aos perigos existentes na civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica e utilitaacuteria onde partimos do pressuposto de que a teacutecnica moderna eacute indispensaacutevel para a sociedade e que sobretudo eacute nela que encontraremos o triunfo (o que o filoacutesofo denomina de ecircxito) Nessa perspectiva ele afirma que ldquoa ameaccedila de cataacutestrofe do ideal baconiano de dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica reside portanto na magnitude do seu ecircxito Esse ecircxito tem dois aspectos econocircmico e bioloacutegicordquo (2006 p 235) O ecircxito econocircmico resultaria no esgotamento dos recursos naturais atraveacutes do aumento da produccedilatildeo de bens e diminuiccedilatildeo do dispecircndio do trabalho humano enquanto que o bioloacutegico consistiria em um aumento exponencial da populaccedilatildeo

Dito isso a partir da ambivalecircncia do ecircxito presente no ideal baconiano podemos fazer um contraponto com a implementaccedilatildeo das poliacuteticas voltadas para a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu Natildeo estariam inseridas nesta loacutegica as poliacuteticas puacuteblicas que surgiram para impulsionar a Revoluccedilatildeo Verde Nesse contexto percebemos um forte crescimento de produtividade na agricultura atraveacutes da utilizaccedilatildeo de novas tecnologias oriundas da ideia de modernizar o campo aumentando assim a visibilidade das empresas multinacionais e diminuindo as atividades de subsistecircncia (ldquoecircxito econocircmicordquo) Do mesmo modo constatamos o aumento populacional em certas comunidades como mostrado anteriormente onde antes

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

257

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

havia 50 moradores apoacutes a instalaccedilatildeo das multinacionais a populaccedilatildeo da comunidade aumentou para 500 moradores (ldquoecircxito bioloacutegicordquo) Isso posto e respondendo agrave pergunta anterior podemos afirmar que de certo modo essas poliacuteticas que surgem com vistas agrave modernizaccedilatildeo do campo estatildeo inseridas nesta ambiguidade do ecircxito colocada por Hans Jonas quando pensamos no ideal baconiano de um lado o econocircmico com a maior produtividade e menor dispecircndio do trabalho do outro o bioloacutegico com o aumento populacional

Outra relaccedilatildeo que podemos evidenciar levando em conta este cenaacuterio utilitaacuterio advindo da modernizaccedilatildeo da agricultura eacute a questatildeo da alimentaccedilatildeo Citando a utoacutepica ldquoreconstruccedilatildeo da naturezardquo pensada por Bloch Jonas afirma que

[] por causa do seu ecircxito bioloacutegico e do seu crescimento irresistiacutevel a humanidade se vecirc forccedilada a adicionar produtos quiacutemicos agrave camada produtiva da crosta terrestre [] As tecnologias agraacuterias de maximizaccedilatildeo tecircm impactos cumulativos sobre a natureza que mal comeccedilaram a revelar-se em acircmbito local por exemplo na poluiccedilatildeo quiacutemica dos recursos hiacutedricos e das aacuteguas costeiras (para o que contribuem tambeacutem as induacutestrias) com efeitos nocivos transmitidos pela cadeia alimentar A salinizaccedilatildeo dos solos pela irrigaccedilatildeo constante a erosatildeo provocada pela aragem dos campos [] (JONAS 2006 p 302)

Historicamente eacute sabido que a proposta da eacutetica jonasiana deu cabida a muitos movimentos ecologistas no final do seacuteculo passado inclusive orientando as diretrizes do Partido Verde na Alemanha a partir dos anos noventa Mas tambeacutem eacute fato que Jonas ao duvidar das apostas nas tecnologias modernas com o uso de fertilizantes agrotoacutexicos e o cultivo da monocultura para o crescimento a qualquer custo tambeacutem coloca em crise os ideais surgidos na Revoluccedilatildeo Verde Nesse mesmo sentido quando indagado sobre a questatildeo socioambiental e do progresso na agricultura familiar e no agronegoacutecio o entrevistado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu argumenta

Tanto os agricultores familiares precisam ainda lidar com a questatildeo socioambiental como tambeacutem as empresas que estatildeo no municiacutepio Haacute empresas que trabalhavam com a pulverizaccedilatildeo aeacuterea atraveacutes de aviotildees e envenenaram rios plantaccedilotildees houve mortandade de peixes e com isso foram feitas denuacutencias ao IDEMA ndash que eacute o oacutergatildeo de meio ambiente estadual ao IBAMA Tecircm empresas que foram multadas em vaacuterios milhotildees de reais e estatildeo procurando se adequar ao meio ambiente para prejudicar menos Tambeacutem podemos abordar a questatildeo do progresso cientiacutefico (Entrevistado A)

A visatildeo de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico aliada ao desenvolvimento presente na modernidade acaba mascarando os efeitos desastrosos da tecnificaccedilatildeo em escala planetaacuteria O discurso de um crescente bem-estar (tanto social quanto econocircmico) faz-nos acreditar que soacute existe uma uacutenica via a ser seguida que eacute a do desenvolvimento Poreacutem essa falsa sensaccedilatildeo eclipsa o pensar que questiona a teacutecnica e a sua relaccedilatildeo com a sociedade na atualidade

Ainda dentro da ameaccedila do ideal baconiano exposto por Jonas outro aspecto relevante e que merece destaque aqui eacute a questatildeo da dominaccedilatildeo da natureza a partir da teacutecnica moderna Jonas (2006 p 236) considera que na ldquodialeacutetica do poder sobre a natureza e a compulsatildeo de exercecirc-lardquo o poder tornou-se crucial nesta relaccedilatildeo Assim ele afirma

A foacutermula baconiana afirma que saber eacute poder Mas eacute o proacuteprio programa baconiano que no aacutepice do triunfo revela-se insuficiente com a sua contradiccedilatildeo intriacutenseca ou seja o descontrole sobre si mesmo mostrando-se incapaz de proteger o homem de si mesmo e a natureza do homem (2006 p 236)

A partir desta dialeacutetica estabelecida entre poder teacutecnica moderna e sua relaccedilatildeo com o homem e a proacutepria natureza Jonas afirma que tanto o homem quanto a natureza precisam de proteccedilatildeo quando se pensa na magnitude do poder que o progresso cientiacutefico alcanccedilou Pensamento semelhante jaacute havia sido

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

258

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

propagado tambeacutem por Marcuse (1982) quando nos anos sessenta do seacuteculo passado afirmava a unidimensionalidade da condiccedilatildeo humana advinda da teacutecnica moderna Esse poder eacute caracterizado pela necessidade do uso crescente da teacutecnica conduzindo o homem a uma incapacidade de frear o contiacutenuo progresso muito embora ele (o homem) insista em acreditar que a natureza eacute apenas um objeto de exploraccedilatildeo e estaacute disponiacutevel para atender meramente agrave sua vontade

Aleacutem desta problemaacutetica do progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico colocado por Jonas podemos tambeacutem fazer uma relaccedilatildeo entre as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade e o municiacutepio de Ipanguaccedilu Tal como jaacute salientamos anteriormente o primeiro aspecto a destacar desde a eacutetica jonasiana eacute o dever do homem perante a biosfera como dever responsaacutevel garantindo tanto a preservaccedilatildeo do presente quanto do futuro da humanidade e da natureza Portanto neste aspecto haveriacuteamos de indagar ateacute que ponto a agricultura familiar na regiatildeo de Ipanguaccedilu torna vaacutelido esse dever e se o mesmo procede com o agronegoacutecio Como dito anteriormente o agronegoacutecio visa agrave monocultura e agrave modernizaccedilatildeo da agricultura ou seja as atividades agriacutecolas satildeo baseadas no controle teacutecnico da terra gerando uma maior produccedilatildeo que garante a exportaccedilatildeo e o investimento no mercado interno visando ao lucro Do outro lado estaacute a agricultura familiar tendo como principal caracteriacutestica o cultivo de subsistecircncia Podemos observar que no primeiro exemplo a natureza eacute vista como um objeto de lucro enquanto que no segundo ela eacute vista como um ldquoobjetordquo de responsabilidade E eacute no contexto do segundo exemplo que se insere o sentido do ldquodever serrdquo tal como observa Jonas Poreacutem o que ocorre eacute que na atualidade as atividades desenvolvidas pelas multinacionais do agronegoacutecio em Ipanguaccedilu eacute que vecircm merecendo lugar de destaque no cenaacuterio das poliacuteticas puacuteblicas locais

Consideraccedilotildees Finais

Do exposto ateacute aqui fica expliacutecito que eacute necessaacuterio um olhar criacutetico sobre a problemaacutetica existente do paradigma cientiacutefico e tecnoloacutegico presente na modernidade que impele tudo ao progresso e ao desenvolvimento Do mesmo modo tambeacutem eacute preciso refletir sobre como tratamos a realidade e o contexto cultural local visto que natildeo podem ser marginalizados em prol do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico e econocircmico global Observando o sentido do desenvolvimento neste contexto Lisboa argumenta

O desenvolvimento comporta em si mesmo o subdesenvolvimento O padratildeo mimeacutetico do desenvolvimento fundado no estilo ocidental de vida com altos niacuteveis de consumo e desperdiacutecio tem cegado os povos do terceiro mundo os impedindo de se encontrar com sua identidade Ora um povo privado de sua identidade natildeo eacute capaz de se autodeterminar (LISBOA 1996 p 7)

Apesar de a instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo de Ipanguaccedilu ter reduzido a diversidade da regiatildeo atraveacutes do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico o pouco que haacute da praacutetica da agricultura familiar ainda insiste em preservar a relaccedilatildeo essencial com a terra e com tradiccedilotildees culturais Nela se vecirc refletido o princiacutepio eacutetico da responsabilidade de Hans Jonas onde haacute a preocupaccedilatildeo do cuidado com o lugar onde vivem para que as futuras geraccedilotildees possam viver de forma sustentaacutevel Na agricultura familiar tambeacutem se torna visiacutevel a temeridade e a relaccedilatildeo do ser teacutecnico com a prudecircncia onde os valores estatildeo na biosfera e natildeo na utilidade do fazer antropocecircntrico e egoiacutesta da condiccedilatildeo humana de estar no mundo

Insistir na permanecircncia desta praacutetica eacute insistir na participaccedilatildeo direta ativa e democraacutetica dos agricultores na formulaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e nos projetos voltados para a agricultura Pois se no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia tambeacutem estaacute inserida a dimensatildeo social entatildeo a implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia deve ser decidida pelos atores sociais nela implicados (MIRANDA 2012 p 181-182) Dessa forma eacute no espaccedilo puacuteblico de debate com a populaccedilatildeo diretamente afetada pelas implementaccedilotildees tecnocientiacuteficas que construiacutemos esta praacutetica democraacutetica e participativa frente agrave ciecircncia e agrave tecnologia eliminando assim a violecircncia contra a cultura local tal como situa Shiva

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

259

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

O primeiro plano da violecircncia desencadeada contra os sistemas locais de saber eacute natildeo consideraacute-los um saber A invisibilidade eacute a primeira razatildeo pela qual os sistemas locais entram em colapso antes de serem testados e comprovados pelo confronto com o saber dominante do Ocidente A proacutepria distacircncia elimina os sistemas locais da percepccedilatildeo Quando o saber local aparece de fato no campo da visatildeo globalizadora fazem com que desapareccedila negando-lhe o status de um saber sistemaacutetico e atribuindo-lhe os adjetivos de primitivo e anticientiacutefico (SHIVA 2003 p 22-23)

Portanto tal como ensina Shiva para que haja inclusatildeo e um processo democraacutetico na participaccedilatildeo puacuteblica voltada para a ciecircncia e para a tecnologia eacute preciso que a visatildeo globalizante da tecnificaccedilatildeo e da cientifizaccedilatildeo natildeo anule o conhecimento local com a justificativa de que eles natildeo satildeo cientiacuteficos O saber local e as praacuteticas culturais dos agricultores devem ser levados em consideraccedilatildeo nesses processos de implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de garantir o empoderamento dos atores sociais neles implicados

Ora que liccedilotildees podemos extrair destas constataccedilotildees se vincularmos ao agir eacutetico Agrave luz das teses apresentadas por Hans Jonas apontamos alguns caminhos (i) Que eacute necessaacuterio pensar numa eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica e instrumental abrangendo uma nova dimensatildeo a responsabilidade (ii) Que tal modelo de eacutetica seja capaz de resgatar o conceito de temeridade e a relaccedilatildeo da teacutecnica natildeo somente com a eficiecircncia mas tambeacutem com a prudecircncia (iii) Que eacute fundamental retomar o sentido originaacuterio da eacutetica como cuidado o cuidar do lugar onde se vive (BOFF 1999 MIRANDA 2012)

Em outros termos o questionamento diante da teacutecnica e da ciecircncia levando em consideraccedilatildeo o acircmbito da eacutetica e das poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode estar inserido meramente na dimensatildeo instrumental e antropoloacutegica Trata-se antes de tudo de uma fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da natureza e da condiccedilatildeo humana levando em conta o princiacutepio responsabilidade definido pela eacutetica jonasiana

A justificativa de uma tal eacutetica que natildeo mais se restringe ao terreno imediatamente intersubjetivo da contemporaneidade deve estender-se ateacute a metafiacutesica pois soacute ela permite que se pergunte por que afinal homens devem estar no mundo portanto por que o imperativo incondicional destina-se a assegurar-lhes a existecircncia no futuro A aventura da tecnologia impotildee com seus riscos extremos o risco da reflexatildeo extrema (JONAS 2006 p 22)

Desta forma e diante da insuficiecircncia constatada por Jonas da eacutetica tradicional em propor saiacutedas frente aos novos dilemas eacuteticos pautados pela sociedade tecnocientiacutefica eacute proposta deste estudo pensar um novo agir humano baseado na responsabilidade inclusive no acircmbito da implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de pensar saiacutedas que sejam capazes de ultrapassar as barreiras do discurso desenvolvimentista e por conseguinte determinista da tecnologia e da neutralidade cientiacutefica que ainda persistem e insistem em orientar as praacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na sociedade atual Afinal como diz Miranda com base nos estudos de Jasanoff (1995)

a ciecircncia deveria ter uma funccedilatildeo poliacutetica na medida em que tambeacutem avalia e revisa o estado do conhecimento cientiacutefico e sua aplicabilidade praacutetica Assim diante de programas de controle ambiental por exemplo mais que simplesmente aplicar certo tipo de conhecimento cientiacutefico aparentemente desinteressado neutro o papel da ciecircncia deveria ser tambeacutem eacutetico-poliacutetico no sentido de avaliar suas implicaccedilotildees sociais poliacuteticas culturais etc (MIRANDA 2012 p 181)

Em suma a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no municiacutepio de Ipanguaccedilu ensina-nos que no cenaacuterio da instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo impulsionadas por poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas supostamente de cunho desenvolvimentista e que correspondem ao ideal progressista cujo agir eacute meramente utilitaacuterio e de exploraccedilatildeo da natureza visando cada vez mais ao lucro a eacutetica da responsabilidade pode ser a criacutetica e o

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

260

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

norte de uma nova forma de agir Desde sua criacutetica tambeacutem eacute possiacutevel formular poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas que levem em conta os atores sociais nelas implicados tornando o processo democraacutetico e natildeo somente tecnocraacutetico Por outro lado e considerando o cenaacuterio da agricultura familiar e dos agricultores que ali vivem e lidam com a terra a eacutetica da responsabilidade surge como forma de corroborar com suas praacuteticas como a accedilatildeo eacutetica que visa ao cuidado com o lugar onde vivem pois eles (os agricultores) natildeo satildeo apenas ldquodonosrdquo da terra mas ocupam e essencializam a terra atraveacutes da relaccedilatildeo de cuidado e de prudecircncia no ato de cultivar a terra

Eacute a partir desta constataccedilatildeo que apresentamos a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas como uma eacutetica possiacutevel de ser aplicada nesse contexto de aparente dualidade entre a agricultura familiar e o agronegoacutecio Levando em conta as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade como o conceito da responsabilidade e do ideal utoacutepico do progresso cientiacutefico tecnoloacutegico a relaccedilatildeo com o meio ambiente e com a terra concluiacutemos que urge pensar sua aplicaccedilatildeo tambeacutem no campo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas A sua utilizaccedilatildeo no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia torna-se necessaacuteria no atual contexto da modernizaccedilatildeo em que estatildeo submetidos grupos sociais comunidades e povos inteiros E ainda que guardados seus devidos limites (MIRANDA 2012 p 143) a responsabilidade eacute um princiacutepio eacutetico que pode contribuir para nortear as accedilotildees tecnocientiacuteficas rumo agrave uma sociedade mais sustentaacutevel e equilibrada

Referecircncias

AGEcircNCIA Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba (AESA) Comitecircs Piranhas-Accedilu apresentaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwaesapbgovbrcomitespiranhasacu Acesso em 23 ago 2015

ALBANO Gleydson SAacute Alcindo Poliacuteticas puacuteblicas e globalizaccedilatildeo da agricultura no Vale do Accedilu-RN Revista de Geografia Recife UFPE ndash DCGNAPA v 25 n 2 maiago 2008

APEL Karl-Otto Estudos de moral moderna Petroacutepolis Vozes 2000

BECK Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Traduccedilatildeo original do alematildeo de Sebastiatildeo Nascimento Satildeo Paulo Editora 34 2010

BOFF Leonardo Saber cuidar eacutetica do humano Petroacutepolis Vozes 1999

HEIDEGGER Martin A questatildeo da teacutecnica Ensaios e conferecircncias I Traduzido por Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan Fode Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes Braganccedila Paulista Ed Universitaacuteria Satildeo Francisco 2012

HERRERA Amiacutelcar O Los determinantes sociales de la poliacutetica cientiacutefica en Ameacuterica Latina Poliacutetica cientiacutefica expliacutecita y poliacutetica cientiacutefica impliacutecita Argentina Redes v 2 1995

INSTITUTO Brasileiro de Geografia E Estatiacutestica (IBGE) Censo Demograacutefico 2000 sinopse ndash Rio Grande do Norte ndash Ipanguaccedilu Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtras temasphplang=ampcodmun=240470ampidtema=1ampsearch=rio-grande-do-norte|ipanguacu|censo-demografico-2010-sinopse- Acesso em 14 ago 2015

JASANOFF S Procedural choices in regulatory science Technology in Society 17 1995 httpsdoiorg1010160160-791x(95)00011-f

JONAS Hans O princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Rio de Janeiro Contraponto 2006

JONAS Hans Teacutecnica medicina y eacutetica Sobre la praacutectica del principio de la responsabilidad Barcelona Paidoacutes 1997

LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001

LISBOA Armando de Melo Desenvolvimento uma ideia subdesenvolvida Cadernos do CEAS Salvador n 161 1996

MARCUSE Herbert A ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional Rio de Janeiro Jorge Zahar 1982

MIRANDA A L iquestUna eacutetica para la civilizacioacuten tecnoloacutegica Posibilidades y liacutemites del principio de la responsabilidad de Hans Jonas AlemanhaEspanha Lap LambertEAE 2012

MORIN E Ciecircncia com consciecircncia Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005

SERRES Michel Le contrat natural Paris Flammarion 1992

SHIVA Vandana AZEVEDO Dinah de Abreu Monoculturas da mente perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia Satildeo Paulo Gaia 2003

SIQUEIRA JE Hans Jonas e a eacutetica da responsabilidade Mundo Sauacutede 1999

WEBCARTA Mapa do Rio Grande do Norte Disponiacutevel em webcartanetcartamapaphpid=244amplg=pt Acesso em 26 ago 2015

WOLIN Richard Heideggerrsquos children Hannah Arendt Karl Loumlwith Hans Jonas y Herbert Marcuse Princepton Princepton University Press 2001

ZANCANARO L O conceito de responsabilidade em Hans Jonas CampinasSP Ed UNICAMP 1998

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Page 2: O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail: angelamiranda@ect@ufrn.br. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

245

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

om o advento da modernidade mais precisamente do Positivismo a ciecircncia passou a construir a imagem de um conhecimento desprovido de intencionalidades Assim o ideal de ciecircncia cujo conhecimento deva ser neutro e objetivo e cujo significado de tecnologia deva restringir-se ao

meramente instrumental levou-nos agrave crenccedila de que tanto a ciecircncia quanto a teacutecnica devem se distanciar do acircmbito valorativo da eacutetica e da dimensatildeo social Do ponto de vista dos artefatos tecnoloacutegicos por exemplo estes passaram a ser considerados como ldquoum fazer humanordquo ou um mero ldquomeio para fins de sobrevivecircncia humanardquo (HEIDEGGER 2012) Diante desta concepccedilatildeo subestimam-se as implicaccedilotildees culturais econocircmicas poliacuteticas sociais e tambeacutem eacuteticas da tecnologia

Mas se por um lado pretendeu-se inocentar as implicaccedilotildees sociais e eacuteticas da tecnologia propagados por muitos que defendem o caraacuteter da neutralidade cientiacutefica e tecnoloacutegica por outra parte Karl-Otto Apel (1994) nos mostra que os processos tecnocientiacuteficos jaacute satildeo de per si considerados eacuteticos pelos proacuteprios resultados que produzem na sociedade Apel usa como argumento as proacuteprias consequecircncias socioambientais decorrentes da accedilatildeo tecnocientiacutefica da produccedilatildeo em grande escala posto que jaacute alcanccedilaram uma dimensatildeo global Ou seja estas consequecircncias jaacute natildeo podem ser vistas apenas com um problema da microesfera pois jaacute atingiram a dimensatildeo da macroesfera das relaccedilotildees humanas natildeo se trata de um problema local mas de uma questatildeo global que diz respeito a toda humanidade Apel explica

Essas poucas indicaccedilotildees devem ser suficientes para deixar claro que os resultados da ciecircncia representam um desafio moral para a humanidade A civilizaccedilatildeo tecnocientiacutefica confrontou todos os povos raccedilas e culturas sem consideraccedilatildeo de suas tradiccedilotildees morais grupalmente especiacuteficas e culturalmente relativas com uma problemaacutetica eacutetica comum a todos Pela primeira vez na histoacuteria da espeacutecie humana os homens foram praticamente colocados ante a tarefa de assumir a responsabilidade solidaacuteria pelos efeitos de suas accedilotildees em medida planetaacuteria Deveriacuteamos ser de opiniatildeo que a essa compulsatildeo por uma responsabilidade solidaacuteria deveria corresponder a validez intersubjetiva das normas ou pelo menos do princiacutepio baacutesico de uma eacutetica da responsabilidade (APEL 1994 p 72)

Com base nessa anaacutelise criacutetica da ciecircncia e da tecnologia na modernidade onde satildeo perceptiacuteveis os efeitos desastrosos advindos dos avanccedilos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos surge a preocupaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos rumos da existecircncia e da permanecircncia da vida humana e extra-humana de forma sustentaacutevel no planeta Diante deste cenaacuterio o filoacutesofo Hans Jonas em sua obra intitulada ldquoO princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegicardquo (2006) propotildee um novo modelo de eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica ao que ele denomina ldquoeacutetica da responsabilidaderdquo Diante do papel significativo que a teacutecnica e a ciecircncia passaram a ocupar na modernidade e diante das novas consequecircncias eacuteticas decorrentes das accedilotildees tecnocientiacuteficas os modelos das eacuteticas anteriores observa Jonas (2006 p 39) jaacute natildeo conseguem mais suportar ou abarcar tal estado da questatildeo Por isso afirma Jonas eacute necessaacuterio repensar o proacuteprio modelo de eacutetica vigente Assim ele indaga

A natureza como uma responsabilidade humana eacute seguramente um novum sobre o qual uma nova teoria eacutetica deve ser pensada Que tipo de deveres ela exigiraacute Haveraacute algo mais do que o interesse utilitaacuterio Eacute simplesmente a prudecircncia que recomenda que natildeo se mate a galinha dos ovos de ouro ou que natildeo se serre o galho sobre o qual se estaacute sentado Mas ldquoesterdquo que aqui se senta e que talvez caia no precipiacutecio - quem eacute E qual eacute o meu interesse no seu sentar ou cair (JONAS 2006 p 40)

Aqui eacute possiacutevel observar a tese defendida pelo pensador a necessidade de pensar um modelo de eacutetica capaz de abranger essas novas dimensotildees da condiccedilatildeo humana e da accedilatildeo praacutetica (eacutetica) fundada na responsabilidade do agir eacutetico que leva em consideraccedilatildeo natildeo apenas o homem e seu interesse utilitaacuterio mas tambeacutem a natureza em sua dimensatildeo ontoloacutegica Para Jonas torna-se premente pensar num modelo de eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica que seja capaz de sair da esfera antropocecircntrica e utilitarista e que

C

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

246

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

reconduza a accedilatildeo humana baseada na responsabilidade e na prudecircncia no temor e na previsibilidade e em prol da biosfera

Com base nisso esta pesquisa busca aprofundar e ilustrar a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como exemplo a implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na atualidade No caso em especiacutefico analisaremos o contexto da regiatildeo de Ipanguaccedilu (municiacutepio do Rio Grande do NorteRN) e a implementaccedilatildeo do projeto da fruticultura irrigada Esta regiatildeo se destaca por sua atividade agriacutecola de um lado a agricultura familiar e do outro o agronegoacutecio Assim o intuito deste trabalho eacute analisar com base na eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas as praacuteticas da agricultura familiar e a sua relaccedilatildeo com o agronegoacutecio na regiatildeo Como propoacutesito secundaacuterio e consequente do anterior pretende-se ainda identificar e analisar a participaccedilatildeo puacuteblica na implementaccedilatildeo destas poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas atraveacutes dos agricultores e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu com o objetivo de perceber se haacute uma praacutetica democraacutetica e participativa na implementaccedilatildeo destas poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas de modo que possa garantir a cultura e as praacuteticas sociais locais Tambeacutem eacute propoacutesito desse trabalho constatar se estas praacuteticas estatildeo dissociadas da realidade local e da preservaccedilatildeo ao meio ambiente levando em conta apenas os interesses econocircmicos de uma minoria

Dito isso pretende-se num primeiro momento apresentar a eacutetica da responsabilidade proposta pelo filoacutesofo Hans Jonas expondo as suas caracteriacutesticas e explicitando como ela se propotildee a enfrentar os problemas causados pela tecnociecircncia Num segundo momento pretende-se aprofundar a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da responsabilidade na implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas levando em consideraccedilatildeo e de modo mais especiacutefico o caso da fruticultura irrigada no municiacutepio de IpanguaccediluRN

Metodologia

Do ponto de vista metodoloacutegico esta pesquisa possui caraacuteter exploratoacuterio e qualitativo que segundo Gil (2002 p 41) consiste em ldquo[] proporcionar maior familiaridade com o problema com vistas a tornaacute-lo mais expliacutecito ou a constituir hipoacuteteses Pode-se dizer que estas pesquisas tecircm como objetivo principal o aprimoramento de ideias ou a descoberta de intuiccedilotildeesrdquo Aleacutem disso o trabalho possui fonte bibliograacutefica utilizando principalmente as obras de Hans Jonas (1997 2006) e comentadores como Miranda (2012) Boff (1999) Apel (1994) Shiva (2003) entre outros

A regiatildeo de Ipanguaccedilu foi escolhida como exemplo para a pesquisa de campo devido ao seu contexto econocircmico tendo como principal atividade econocircmica a agricultura A relaccedilatildeo com a terra se daacute pelos moradores locais que praticam a agricultura familiar de um lado e de outro pelas empresas do agronegoacutecio que incentivam as poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas voltadas para o progresso e a modernizaccedilatildeo da agricultura Eacute pois diante deste cenaacuterio que encontramos um terreno feacutertil para desenvolver a pesquisa sobre a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade Desse modo como procedimento de caraacuteter instrumental foi feita uma sondagem (LAKATOS MARCONI 1992) com os agricultores locais e a visita in loco com o intuito de coletar dados de natureza qualitativa O propoacutesito aqui foi averiguar o progresso cientiacutefico e suas implicaccedilotildees com o meio socioambiental bem como a sua relaccedilatildeo com as poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e os princiacutepios eacuteticos que regem estas praacuteticas No primeiro momento foram contatados os gestores responsaacuteveis pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu para delinear quais princiacutepios eacuteticos regem suas praacuteticas cientiacuteficas E no segundo momento a sondagem foi feita com base no diaacutelogo com outros agricultores locais Levando em consideraccedilatildeo o caraacuteter qualitativo foram analisadas quatro questotildees abrangendo trecircs aspectos principais (a) a agricultura familiar e a relaccedilatildeo com o agronegoacutecio (b) a implementaccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas em ciecircncia e tecnologia e as consequecircncias ambientais (c) a percepccedilatildeo dos conceitos teoacutericos e das diretrizes aplicadas que se relacionam ao tema principal da pesquisa A amostra foi utilizada tatildeo somente como caraacuteter ilustrativo para demonstrar numa situaccedilatildeo concreta a relaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade e sua aplicabilidade nas poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia Nesta etapa do trabalho tambeacutem foram importantes os dados coletados atraveacutes de

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

247

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

documentos (IBGE 2010 AESA 2015 etc) anaacutelises complementares (HERRERA 1995 LISBOA 1996) e estudos sobre a regiatildeo (ALBANO 2008)

A eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas

Antes de abordar o que a eacutetica da responsabilidade proposta por Hans Jonas representa no contexto da nossa sociedade tecnoloacutegica eacute necessaacuterio entender em qual cenaacuterio ela surge A partir disso compreenderemos de forma mais expliacutecita o seu propoacutesito e suas principais caracteriacutesticas

O filoacutesofo Hans Jonas (1903-1993) nasceu em Moumlnchengladbach na Alemanha Foi aluno de Martin Heidegger na Universidade de Freiburg (1920) onde este foi por muito tempo o seu mentor intelectual (WOLIN 2001) Apoacutes a ascensatildeo do nazismo ao poder por ser de origem judaica Jonas partiu da Alemanha e viveu na Inglaterra na Palestina e nos Estados Unidos O filoacutesofo presenciou e vivenciou as consequecircncias da ascensatildeo do Nazismo a Primeira e a Segunda Guerra e o papel crucial que a tecnologia desempenhou nesse contexto Dessa forma principalmente apoacutes as bombas atocircmicas na Segunda Guerra Mundial e do seu efeito devastador agrave populaccedilatildeo e ao meio ambiente surge a preocupaccedilatildeo e a reflexatildeo de Jonas sobre a dimensatildeo que a tecnologia moderna estava ocupando na sociedade (MIRANDA 2012 p 72)

Diante deste panorama Jonas (2006 1997) constata que a teacutecnica e a ciecircncia atingiram um notaacutevel espaccedilo na sociedade ao mesmo tempo em que tambeacutem revelaram seu caraacuteter ameaccedilador para a vida na terra Logo a tecnologia natildeo eacute neutra e dada a sua importacircncia e sua profunda interaccedilatildeo com a sociedade e com o meio ambiente ela possui um caraacuteter eminentemente eacutetico Eacute nesse sentido que Hans Jonas propotildee o princiacutepio da responsabilidade como um modelo de eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Publicada pela primeira vez no ano de 1979 a tese central desta obra eacute a proposta de um novo modelo de eacutetica que seja capaz de englobar o importante papel que a tecnologia moderna possui na sociedade tecnoloacutegica Um modelo de eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica capaz de ir aleacutem das molduras das eacuteticas anteriores posto que estas jaacute natildeo satildeo mais capazes de abarcar as consequecircncias da tecnologia tal como observa o proacuteprio Hans Jonas (2006)

Mas para compreender em sua totalidade a eacutetica da responsabilidade eacute necessaacuterio entender porque Jonas afirma que a eacutetica tradicional jaacute natildeo consegue abranger a tecnologia moderna Tambeacutem eacute importante entender o que o filoacutesofo define como responsabilidade e suas caracteriacutesticas principais Abordaremos este assunto a seguir com base em trecircs aspectos

A insuficiecircncia da eacutetica tradicional diante do que eacute demandado eticamente pela

tecnologia moderna

O conceito de responsabilidade para Jonas

As principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade

A insuficiecircncia da eacutetica tradicional diante do que eacute demandado eticamente pela tecnologia

moderna

Observa Hans Jonas que de modo geral os modelos de eacutetica herdados pela tradiccedilatildeo ocidental se embasam na neutralidade tecnoloacutegica e no antropocentrismo onde o ser humano eacute o centro e o fim uacuteltimo da accedilatildeo eacutetica Aleacutem disso tratam-se de modelos de eacuteticas presentistas que se relacionam apenas com o agora e natildeo se preocupam ou natildeo levam em conta o futuro Mostrando que tais modelos de eacutetica jaacute natildeo satildeo mais suficientes frente ao cenaacuterio tecnificado da sociedade atual Jonas (2006) elenca algumas caracteriacutesticas da eacutetica ateacute o momento presente com o intuito de demonstrar a necessidade de um novo modelo de eacutetica capaz de fazer frente aos desafios da sociedade tecnocientiacutefica Satildeo elas

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

248

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

i) A primeira caracteriacutestica dos modelos de eacutetica herdados da tradiccedilatildeo ocidental eacute a neutralidade na esfera do domiacutenio da teacutecnica (techne) Fazendo uma comparaccedilatildeo com as caracteriacutesticas do agir humano do passado e levando em conta a eacutetica tradicional Jonas (2006 p 35) observa que a ldquotechne como atividade compreendia-se a si mesma como um tributo determinado pela necessidade e natildeo como um progresso que se autojustifica como fim preciacutepuo da humanidaderdquo Aqui nota-se que a dimensatildeo eacutetica natildeo estaacute circunscrita ao acircmbito dos objetos Dessa forma natildeo constitui uma vinculaccedilatildeo da prudecircncia na relaccedilatildeo homem-teacutecnica no mundo extra-humano

ii) A segunda caracteriacutestica evidencia o caraacuteter antropocecircntrico da eacutetica tradicional quando Jonas (2006 p 35) afirma referindo-se aos modelos das eacuteticas anteriores ldquoA significaccedilatildeo eacutetica dizia respeito ao relacionamento direto de homem com homem inclusive o de cada homem consigo mesmo toda eacutetica tradicional eacute antropocecircntricardquo Ou seja a accedilatildeo eacutetica estaacute circunscrita no acircmbito tatildeo somente da relaccedilatildeo entre seres humanos A propoacutesito o importante estudo de Michel Serres intitulado ldquoO Contrato Naturalrdquo (1992) tambeacutem evidencia este aspecto da eacutetica tradicional

iii) Outro caraacuteter da eacutetica tradicional diz respeito agrave accedilatildeo imediata Ou seja o paracircmetro de avaliaccedilatildeo do efeito da accedilatildeo eacute apenas o momento presente natildeo levando em consideraccedilatildeo o futuro Assim esclarece Hans Jonas

O bem e o mal com o qual o agir tinha de se preocupar evidenciavam-se na accedilatildeo seja na proacutepria praacutexis ou em seu alcance imediato e natildeo requeriam um planejamento de longo prazo[] O alcance efetivo da accedilatildeo era pequeno o intervalo de tempo para previsatildeo definiccedilatildeo de objetivo e imputabilidade era curto e limitado o controle sobre as circunstacircncias O comportamento correto possuiacutea seus criteacuterios imediatos e sua consecuccedilatildeo quase imediata O longo trajeto das consequecircncias ficava ao criteacuterio do acaso do destino ou da providecircncia Por conseguinte a eacutetica tinha a ver com o aqui e o agora (JONAS 2006 p 35-36)

Com base nestas caracteriacutesticas da eacutetica tradicional e frente agraves demandas do mundo tecnificado pela accedilatildeo do homem Jonas defende pois a necessidade de elaborar um modelo de eacutetica que seja capaz de suplantar a insuficiecircncias da eacutetica tradicional Assim ele justifica

A teacutecnica moderna introduziu accedilotildees de uma tal ordem ineacutedita de grandeza com tais novos objetos e consequecircncias que a moldura da eacutetica antiga natildeo consegue mais enquadraacute-las [] Isso impotildee agrave eacutetica pela enormidade de suas forccedilas uma nova dimensatildeo nunca antes sonhada de responsabilidade (JONAS 2006 p 39)

Aqui fica evidente a necessidade de um novo agir do homem um agir que natildeo estaacute circunscrito somente agrave relaccedilatildeo do homem com o proacuteprio homem reforccedilando o modelo meramente antropocecircntrico de eacutetica mas um agir que alcance o biocecircntrico isto eacute fundado na responsabilidade para com todos os seres e as geraccedilotildees futuras Mas o que eacute entendido aqui como responsabilidade E mais porque devemos situaacute-la como uma nova dimensatildeo da eacutetica Para esclarecer melhor esses questionamentos abordaremos o item a seguir

O conceito de responsabilidade para Jonas

A responsabilidade para Jonas eacute entendida como aquela accedilatildeo que se projeta tanto no presente como no futuro Do ponto de vista da civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica e seus dilemas eacuteticos trata-se da accedilatildeo diretamente incorporada ao progresso tecnoloacutegico e ao sentido do ldquopoder como deverrdquo (e natildeo ao contraacuterio tal como dizia Kant) Assim esclarece o filoacutesofo

Responsabilidade eacute o cuidado reconhecido como obrigaccedilatildeo em relaccedilatildeo a outro ser que se torna ldquopreocupaccedilatildeordquo quando haacute uma ameaccedila agrave sua vulnerabilidade Mas o medo estaacute presente na questatildeo original com a qual podemos imaginar se inicie

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

249

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

qualquer responsabilidade ativa o que pode acontecer a ele se eu natildeo assumir a responsabilidade por ele Quanto mais obscura a resposta maior se delineia a responsabilidade Quanto mais no futuro longiacutenquo situa-se aquilo que se teme quanto mais distante do nosso bem-estar ou mal-estar quanto menos familiar for o seu gecircnero mais necessitam ser diligentemente mobilizadas a lucidez da imaginaccedilatildeo e a sensibilidade dos sentidos Torna-se necessaacuteria uma heuriacutestica do medo capaz de investigar que natildeo soacute descubra e represente o novo objeto como tal mas que tome conhecimento do interesse moral particular ao ser interpelado pelo objeto (JONAS 2006 p 352 grifo nosso)

Portanto o conceito de responsabilidade para Jonas diz respeito ao cuidado com o outro ser que dada a ameaccedila de sua vulnerabilidade converte-se em pre-ocupaccedilatildeo diante da condiccedilatildeo humana de poder cuidar (MIRANDA 2012 p 82 e ss) A responsabilidade eacute o valor que deve reger a accedilatildeo praacutetica segundo Jonas Desse modo a accedilatildeo (como um agir moral) deve possuir como aspecto essencial o cuidado como obrigaccedilatildeo levando em conta a permanecircncia das futuras geraccedilotildees no planeta frente aos desafios enfrentados pela sociedade tecnocientiacutefica

Ainda na perspectiva da accedilatildeo eacutetica e levando em consideraccedilatildeo as futuras geraccedilotildees observa Jonas que a accedilatildeo humana potencialmente tecnificada pode prejudicar irreversivelmente a natureza e o proacuteprio homem A partir daiacute aparece um novo tipo de verdade como objeto do saber cientiacutefico a verdade que consiste nas condiccedilotildees futuras do homem e da natureza a verdade que deve natildeo somente diagnosticar mas tambeacutem prognosticar Neste sentido Jonas argumenta

Portanto esse saber real e eventual relativo agrave esfera dos fatos (que continua sendo teoacuterico) situa-se entre o saber ideal da doutrina eacutetica dos princiacutepios e o saber praacutetico relacionado agrave utilizaccedilatildeo poliacutetica o qual soacute pode operar com os seus diagnoacutesticos hipoteacuteticos relativos ao que se deve esperar ao que se deve incentivar ou ao que se deve evitar Haacute de se formar uma ciecircncia da previsatildeo hipoteacutetica uma ldquofuturologia comparativardquo (JONAS 2006 p 70)

Eacute nesse sentido que Jonas modifica o imperativo kantiano ateacute entatildeo predominante como modelo tradicional de eacutetica invertendo-o

Esse novo imperativo ldquoage de tal forma que os efeitos de suas accedilotildees sejam compatiacuteveis com a permanecircncia de uma vida humana autecircnticardquo ou formulando negativamente ldquonatildeo ponha em risco a continuidade indefinida da humanidade na Terrardquo vem substituir o imperativo kantiano ldquoage de tal forma que o princiacutepio da tua accedilatildeo se transforme numa lei universalrdquo (JONAS 2006 p 18)

Ao formular um novo imperativo eacutetico transformando-o em seu princiacutepio da responsabilidade Jonas atenta natildeo apenas para a destruiccedilatildeo fiacutesica da humanidade e da biosfera mas tambeacutem para o resgate essencial da relaccedilatildeo entre o ser teacutecnico e a natureza Segundo Miranda (2012 p 83) o imperativo eacutetico jonasiano da responsabilidade possui uma nova fundamentaccedilatildeo que eacute o sentido ontoloacutegico o que eacute levado em consideraccedilatildeo natildeo eacute apenas o fazer utilitarista mas essencialmente o ser Trata-se do caraacuteter metafiacutesico da eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas ou da fundamentaccedilatildeo metafiacutesica do agir eacutetico baseado na responsabilidade

Em siacutentese para Jonas os mandamentos da eacutetica tradicional estabelecidos por Kant Bentham Mill e outros filoacutesofos estatildeo direcionados agraves relaccedilotildees e agraves accedilotildees imediatas do ser humano e que natildeo se preocupam com o futuro ou a continuidade da vida no planeta de um modo geral (ZANCANARO 1998 p 09) Poreacutem para que haja responsabilidade eacute necessaacuterio existir uma consciecircncia criacutetica perante as consequecircncias advindas da aplicaccedilatildeo da ciecircncia e da tecnologia na sociedade

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

250

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

No entanto Jonas (2006 p 18) afirma que o imperativo tecnoloacutegico elimina a consciecircncia o sujeito e a liberdade em prol de um determinismo Ou seja o sujeito torna-se alienado agrave proacutepria ciecircncia e agrave tecnologia Do mesmo modo sobre o pensamento cientiacutefico Edgar Morin adverte

O pensamento cientiacutefico eacute ainda incapaz de se pensar de pensar sua proacutepria ambivalecircncia e sua proacutepria aventura A ciecircncia deve reatar com a reflexatildeo filosoacutefica como a filosofia cujos moinhos giram vazios por natildeo moer os gratildeos dos conhecimentos empiacutericos deve reatar com as ciecircncias A ciecircncia deve reatar com a consciecircncia poliacutetica e eacutetica (MORIN 2005 p 11)

Tambeacutem nesse sentido Ulrick Beck ao analisar o que ele denomina ldquoa sociedade do risco globalrdquo entende que a ciecircncia jaacute natildeo pode levar consigo a ideia de neutralidade mas sim a criticidade e a reflexatildeo quanto ao seu uso Assim ele argumenta

Na passagem para a praacutexis as ciecircncias satildeo agora confrontadas com a objetivaccedilatildeo de seu proacuteprio passado e presente consigo mesmas como produto e produtora da realidade e de problemas que cabe a elas analisar e superar Desse modo elas jaacute natildeo satildeo vistas apenas como manancial de soluccedilotildees para os problemas mas ao mesmo tempo tambeacutem como manancial de causas de problemas[] e por paradoxal que pareccedila num mundo jaacute loteado cientificamente e profissionalmente administrado as perspectivas de futuro e as oportunidades de expansatildeo da ciecircncia estatildeo vinculadas tambeacutem agrave criacutetica da ciecircncia (BECK 2010 p 236)

Esclarecido o conceito de responsabilidade dentro da eacutetica proposta por Hans Jonas e problematizada a accedilatildeo humana tecnificada no contexto da sociedade tecnocientiacutefica torna-se mister elencar as principais caracteriacutesticas que norteiam a eacutetica da responsabilidade tal como abordaremos a seguir

As principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade

Uma das caracteriacutesticas principais da eacutetica da responsabilidade proposta por Jonas eacute a questatildeo do dever para com a biosfera Mas em que consiste esse dever ldquoO dever do homem consiste em preservar este mundo fiacutesico de modo que as condiccedilotildees para tal presenccedila continuem ilesas ou intocadas ou seja proteger a vulnerabilidade do mundo que habitamos diante das ameaccedilasrdquo (JONAS 2006 p 45) Ou seja o dever estaacute incorporado ao conceito de responsabilidade e do cuidado com a biosfera levando em consideraccedilatildeo a previsibilidade da accedilatildeo teacutecnica

Para deixar mais expliacutecito em que consiste esse dever Jonas identifica-o a partir de distintos estaacutegios O primeiro dever ldquoconsiste em visualizar os efeitos a longo prazo estimar as consequecircncias dos atos natildeo soacute na sociedade mas tambeacutem no meio ambiente na naturezardquo (JONAS 2006 p 72) Ou seja aleacutem de precisar existir uma estimativa de consequecircncias dos atos humanos baseada no futuro esta previsatildeo natildeo pode vincular apenas o aspecto antropoloacutegico mas tambeacutem a natureza Jaacute o segundo dever ldquoconsiste em [] utilizar o medo dessas consequecircncias para estimular o respeito agrave vida humana e extra-humana Para isso basta lembrar o quatildeo as invenccedilotildees do homem podem ser imprevisiacuteveisrdquo (JONAS 2006 p 73) O medo aqui aparece como fator de prevenccedilatildeo principalmente para preservar as futuras geraccedilotildees A partir disso Jonas aponta para uma heuriacutestica do temor afirmando que se torna necessaacuterio o prognoacutestico e a temeridade em relaccedilatildeo agraves possiacuteveis consequecircncias catastroacuteficas do saber cientiacutefico e tecnoloacutegico aplicado perante a biosfera ou seja ldquoo saber origina-se daquilo contra o que devemos nos protegerrdquo (JONAS 2006 p 71)

Poreacutem Jonas conclui que esse temor que serve para que possamos refletir prever e prevenir as futuras consequecircncias catastroacuteficas natildeo eacute o mesmo medo que nos deixa paralisados

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

251

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Os homens experientes sabem que um dia podem desejar natildeo ter agido desta ou daquela forma O medo de que falo natildeo se refere a esse tipo de incerteza ou ele pode estar presente apenas como um efeito secundaacuterio Com efeito eacute uma das condiccedilotildees da accedilatildeo responsaacutevel natildeo se deixar deter por esse tipo de incerteza assumindo-se ao contraacuterio a responsabilidade pelo desconhecido dado o caraacuteter incerto da esperanccedila isso eacute o que chamamos de ldquocoragem para assumir a responsabilidaderdquo O medo que faz parte da responsabilidade natildeo eacute aquele que nos aconselha a natildeo agir mas aquele que nos convida a agir Trata-se de um medo que tem a ver com o objeto da responsabilidade (JONAS 2006 p 351)

Dessa forma a heuriacutestica do temor aponta para uma eacutetica baseada em antecipar os efeitos futuros e nos fazer agir de maneira mais prudente em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia Nesse sentido Miranda interpretando o sentido jonasiano de eacutetica afirma

[] podemos formular os deveres preliminares de uma eacutetica orientada para o futuro que satildeo buscar a representaccedilatildeo dos efeitos remotos pois somente o que eacute temido pode ser evitado por sua representaccedilatildeo e buscar o temor mediante a apelaccedilatildeo a um sentimento apropriado que o representa (MIRANDA 2012 p 81)

Podemos concluir portanto que a eacutetica da responsabilidade proposta por Hans Jonas eacute um modelo que pensado para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica leva em conta a biosfera a permanecircncia das futuras geraccedilotildees no planeta resgatando a ideia do cuidado do lugar onde se vive em meio aos desafios enfrentados pela sociedade tecnocientiacutefica E eacute a partir desses conceitos que a seguir abordaremos ilustrativamente a aplicaccedilatildeo (ou a ausecircncia) da responsabilidade na implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia dada uma situaccedilatildeo concreta que pertence ao local desde onde falamos e pensamos este trabalho

A aplicaccedilatildeo do princiacutepio responsabilidade de Hans Jonas numa situaccedilatildeo concreta o caso de

IpanguaccediluRN

Sobre a praacutetica do princiacutepio da responsabilidade Jonas escreveu uma obra muito interessante intitulada ldquoTeacutecnica medicina e eacuteticardquo (1997) Naquela oportunidade ele procurou estabelecer a relaccedilatildeo entre a teacutecnica a medicina e a eacutetica inserindo nesta relaccedilatildeo o princiacutepio da responsabilidade A partir daqui neste trabalho pretendemos percorrer uma trajetoacuteria semelhante considerando a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade no cenaacuterio das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas tendo como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no Municiacutepio de Ipanguaccedilu localizado no Estado do Rio Grande do Norte Agrave luz do princiacutepio da responsabilidade de Jonas analisamos as caracteriacutesticas locais da comunidade de agricultores de Ipanguaccedilu do ponto de vista econocircmico cultural e social e como se deu o processo de participaccedilatildeo dos agricultores locais nas poliacuteticas puacuteblicas voltadas para agricultura em especial o caso da fruticultura irrigada

O municiacutepio de IpanguaccediluRN

Ipanguaccedilu eacute um municiacutepio do Estado do Rio Grande do Norte que faz parte da microrregiatildeo do Vale do Accedilu Esta microrregiatildeo eacute formada por nove municiacutepios incluindo Ipanguaccedilu que estatildeo localizados na bacia do Rio PiranhasAccedilu e que possui cerca de 4368150 kmsup2 de extensatildeo segundo dados da AESA (Agecircncia Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba) Eacute importante ressaltar que o Rio PiranhasAccedilu desempenha um papel de extrema importacircncia pois possui o maior reservatoacuterio de aacutegua do Estado do RN a barragem Armando Ribeiro Gonccedilalves

Figura 1 - Mapa do Estado do Rio Grande do Norte Vale do Accedilu em destaque

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

252

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Fonte Webcarta (2015 destaque nosso)

Em Ipanguaccedilu o processo de produccedilatildeo e a base da economia satildeo marcados principalmente pela

agricultura pecuaacuteria e induacutestria da ceracircmica Na agricultura a accedilatildeo do cultivo era de subsistecircncia poreacutem atualmente com a instalaccedilatildeo de empresas na regiatildeo a praacutetica da agricultura eacute centrada na atividade da fruticultura irrigada voltada para exportaccedilatildeo Essa mudanccedila de cenaacuterio do cultivo de subsistecircncia para o cultivo voltado para a exportaccedilatildeo alterou drasticamente o modo de agir tanto na percepccedilatildeo dos agricultores sobre a terra e o que ela simboliza ou representa quanto na forma de lidar com a terra

A construccedilatildeo da Barragem Armando Ribeiro na regiatildeo evidenciou tais mudanccedilas pois segundo Albano (2008) a construccedilatildeo da Barragem configurou dois periacuteodos importantes no municiacutepio o primeiro (1972-1992) marcado pela chegada de empresas nacionais do ramo da agricultura o segundo (1993-2015) marcado pela entrada de multinacionais no municiacutepio como eacute o caso da Del Monte Fresh Produce Essas mudanccedilas representaram natildeo apenas a inserccedilatildeo de empresas do ramo da agricultura na regiatildeo mas tambeacutem uma mudanccedila no cenaacuterio do mercado e da relaccedilatildeo com a terra Pois num primeiro momento ocorreu a migraccedilatildeo da agricultura de subsistecircncia para a de mercado enquanto que num segundo foi adotada a visatildeo de exportaccedilatildeo tendo como base a fruticultura irrigada da monocultura da banana

Outro fato importante eacute que 612 da populaccedilatildeo estaacute situada e trabalha no meio rural segundo o Censo Demograacutefico de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) Dessa forma podemos observar que a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu-RN eacute extremamente importante natildeo soacute para os agricultores locais como tambeacutem e sobretudo para a dinacircmica econocircmica do municiacutepio Eacute em torno dela que se configura a relaccedilatildeo com a terra com a cultura e com a economia no contexto social da regiatildeo

Baseados no caraacuteter metodoloacutegico jaacute explicitado anteriormente e levando em conta a dinacircmica da (re)configuraccedilatildeo da terra ficou evidente a partir da nossa observaccedilatildeo in loco realizada no municiacutepio de Ipanguaccedilu (2014) que a maioria dos trabalhadores rurais natildeo trabalha em sua proacutepria terra mas na terra de terceiros (apenas 3 do total de 10 entrevistados possuem propriedade proacutepria) Segundo o Entrevistado A trabalhador do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu antes da instalaccedilatildeo das empresas multinacionais no municiacutepio havia comunidades que possuiacuteam 50 moradores Mas nos uacuteltimos 15 anos essas comunidades tiveram um aumento populacional vertiginoso chegando a ter 500 famiacutelias Isso segundo ele aconteceu pelo fato de as pessoas deixarem ou venderem suas pequenas propriedades para trabalhar de assalariado no agronegoacutecio Segue trecho do diaacutelogo

Tecircm comunidades no municiacutepio de Ipanguaccedilu que antes das empresas serem instaladas no municiacutepio tinham 50 moradores Essa comunidade de 15 anos pra caacute estaacute com aproximadamente 500 famiacutelias porque as pessoas deixaram ou venderam suas pequenas propriedades para vir trabalhar de assalariado no agronegoacutecio Portanto hoje grande parte dessas pessoas querem voltar para suas terras que muitas vezes foram adquiridas por essas empresas que se tornaram donas das terras do municiacutepio As pessoas estatildeo batalhando para tentar conseguir

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

253

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

outro pedaccedilo de terra para voltar agrave sua origem porque eles estatildeo vendo que com a matildeo-de-obra assalariada eles nunca iratildeo ter uma autonomia econocircmica eles ganham apenas para o sustento familiar (Entrevistado A)

Neste sentido Albano (2008 p 65) acrescenta que ldquoA agricultura de subsistecircncia tambeacutem diminuiu muito com a Barragem e depois dela com as compras de terras pelas grandes empresas rurais interessadas em produzir monoculturas para exportaccedilatildeo ou para o mercado internordquo Como exemplo para ilustrar essa (re)configuraccedilatildeo do espaccedilo e da relaccedilatildeo com a terra podemos citar a multinacional Del Monte Fresh Produce Albano assim explicita o contexto da instalaccedilatildeo da empresa na Regiatildeo de Ipanguaccedilu

O ano de 1993 foi o ano do estabelecimento da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio (OMC) e o ano em que foram concluiacutedas as negociaccedilotildees da Rodada Uruguai que incluiacutea a Agricultura nas suas negociaccedilotildees e que previa uma grande liberalizaccedilatildeo do comeacutercio agriacutecola a partir daquele ano nos paiacuteses associados da OMC inclusive o Brasil Aleacutem disso eacute nesse ano que se tem o iniacutecio da compra de terras em Ipanguaccedilu por uma empresa associada agrave Multinacional Del Monte Fresh Produce Posteriormente ela se insere no municiacutepio de Accedilu e Carnaubais ambos no Vale do Accedilu (ALBANO 2008 p 68)

Contudo quais as implicaccedilotildees da instalaccedilatildeo da multinacional para a comunidade e a agricultura da regiatildeo A Tabela 1 a seguir mostra a relaccedilatildeo e a diferenccedila entre a multinacional e as empresas locais quanto aos elementos da cadeia produtiva e jaacute antecipa os indicativos de resposta vejamos

Tabela 1 - A relaccedilatildeo entre fatores de produccedilatildeo e aquisiccedilatildeo dos insumos das empresas com os lugares de compra

Fonte Elaborado por Albano (2008 p 69) baseado em Carvalho (2001)

Analisando a tabela podemos perceber que a multinacional Del Monte Fresh Produce natildeo possui interaccedilatildeo e integraccedilatildeo com a regiatildeo de Ipanguaccedilu Praticamente quase todos os fatores de produccedilatildeo de insumos e de serviccedilos satildeo exteriores ao municiacutepio A Pesquisa e Desenvolvimento (PampD) na aacuterea da fruticultura irrigada por exemplo eacute concentrada em Israel e na Ameacuterica central enquanto que nas empresas locais ela eacute fruto da proacutepria regiatildeo Eacute interessante perceber que a multinacional faz uso de apenas duas modalidades que diz respeito ao local tal como elencadas na tabela a terra e parte da assistecircncia teacutecnica

Eacute aqui que surge outra indagaccedilatildeo natildeo menos intrigante a percepccedilatildeo e a relaccedilatildeo com a terra do agricultor local satildeo as mesmas que a dos empresaacuterios das multinacionais Seraacute que a responsabilidade e o cuidado (resgatando os conceitos de Jonas) estatildeo implicados do mesmo modo em ambas situaccedilotildees Mais adiante voltaremos a estes pontos

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

254

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

As poliacuteticas puacuteblicas de modernizaccedilatildeo da fruticultura irrigada e a relaccedilatildeo essencial com a terra

Levando em consideraccedilatildeo as poliacuteticas puacuteblicas voltadas para a agricultura na regiatildeo percebe-se que apoacutes a construccedilatildeo da Barragem de Accedilu essas poliacuteticas satildeo voltadas para impulsionar a ldquoRevoluccedilatildeo Verderdquo dando iniacutecio a um forte processo de modernizaccedilatildeo da agricultura Albano a define do seguinte modo

[] consiste num grande crescimento de produtividade e de quantidade na agricultura por meio do uso de tecnologias como os tratores agriacutecolas teacutecnicas de irrigaccedilatildeo defensivos quiacutemicos variedades de sementes aviaccedilatildeo agriacutecola computadores novos meacutetodos de gestatildeo etc De um lado da produccedilatildeo vai se ter a Induacutestria Produtora de Insumos com fertilizantes defensivos e corretivos e do outro vai se ter a Induacutestria de Bens de Capital com tratores colheitadeiras e equipamentos de irrigaccedilatildeo (ALBANO 2008 p 62)

Ainda sobre a Revoluccedilatildeo Verde Shiva afirma

Os sistemas agriacutecolas tradicionais baseiam-se em sistemas de rotaccedilatildeo de culturas e cereais legumes sementes oleaginosas com diversas variedades em cada safra enquanto o pacote da Revoluccedilatildeo Verde baseia-se em monoculturas geneticamente uniformes (SHIVA 2003 p 57)

Em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas no acircmbito da agricultura irrigada em Ipanguaccedilu haacute vaacuterios esforccedilos por parte do governo para impulsionar a modernizaccedilatildeo do campo Em vista disso citando os estudos de Souza (1997) Albano (2008) elenca que no comeccedilo da deacutecada de 1970 o Governo Autoritaacuterio efetivou o I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) Este plano teve como programas mais importantes o Programa de Redistribuiccedilatildeo de Terras (PROTERRA) e de estiacutemulo agrave agroinduacutestria do Norte e Nordeste cujo principal objetivo era ampliar a agroinduacutestria e o Programa de Integraccedilatildeo Nacional (PIN) atraveacutes de um plano de irrigaccedilatildeo no Nordeste

Diante desses esforccedilos para modernizar (tecnificar) a agricultura vale a pena refletirmos sobre o ideal do progresso tecnoloacutegico aliado ao conceito de desenvolvimento econocircmico tatildeo presente na modernidade Essa concepccedilatildeo progressista desconsidera as intencionalidades existentes no artefato tecnoloacutegico e nos indiviacuteduos no que tange agrave sua construccedilatildeo histoacuterica cultural e de valores A instrumentalizaccedilatildeo da ciecircncia e da tecnologia reduz os aparatos e a proacutepria cultura ao meramente teacutecnico e cientiacutefico tendo em vista que o progresso tecnocientiacutefico na maioria das vezes aparece desvinculado da realidade da sociedade local

Herrera (1995 p 117) mostra que isso se torna evidente a partir da Segunda Guerra Mundial com o esforccedilo internacional de implementar e melhorar as Poliacuteticas de Ciecircncia e Tecnologia (CampT) nos paiacuteses considerados ldquosubdesenvolvidosrdquo Poreacutem o que se percebe entre outros fatores eacute a desconexatildeo dos investimentos com a realidade dos paiacuteses da Ameacuterica Latina Tanto as concepccedilotildees de ciecircncia e de tecnologia quanto a ideia de progresso tecnocientiacutefico desvinculados do contexto regional acabam refletindo na construccedilatildeo dos indicadores e das poliacuteticas puacuteblicas em CampT e consequentemente na participaccedilatildeo puacuteblica e na avaliaccedilatildeo deles

Mostrando a desvinculaccedilatildeo das poliacuteticas desenvolvimentistas com o contexto regional Lisboa corrobora com as teses de Robert Kurz quando afirma

As poliacuteticas desenvolvimentistas arrancaram em poucas deacutecadas populaccedilotildees inteiras da sua economia de subsistecircncia tradicional mas natildeo as integraram plenamente (ou seja natildeo as transformaram em cidadatildes) Kurz ao desnudar o colapso da modernizaccedilatildeo do terceiro mundo afirma que ldquoa maior parte da sociedade foi apenas modernizada em sentido negativo isto eacute foram destruiacutedas as estruturas tradicionais sem que alguma coisa nova ocupasse o seu lugarrdquo (LISBOA 1996 p 4-5)

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

255

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Assim as poliacuteticas desenvolvimentistas acabam eliminando a cultura e a praacutetica tradicional dos agricultores locais Relacionando esse contexto com a eacutetica da responsabilidade de Jonas que eacute o propoacutesito deste trabalho podemos testemunhar a sua total exclusatildeo pois a terra passa a ser vista como mero produto mera utilidade que visa ao lucro da exportaccedilatildeo Ou seja haacute um profundo abandono da responsabilidade enquanto cuidado e prudecircncia em relaccedilatildeo agrave terra ao meio ambiente e agraves comunidades que vivem do cultivo da terra

Retomando o olhar sobre a Tabela 1 percebemos que eacute iacutenfima a interaccedilatildeo entre as relaccedilotildees locais que envolvem as praacuteticas da agricultura com a empresa multinacional Neste tipo de praacutetica descarta-se o conhecimento local Desse modo o pensamento transforma-se em monoculturado (SHIVA 2003 p 21) e a cultura torna-se cientificada e tecnificada tendo como justificativa e produto final o progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico Aleacutem disso o proacuteprio debate e a avaliaccedilatildeo puacuteblica que deveria existir para garantir a participaccedilatildeo dos cidadatildeos e a gestatildeo mais democraacutetica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia excluem aqueles que efetivamente satildeo os atores sociais envolvidos neste processo No caso em questatildeo trata-se dos agricultores de Ipanguaccedilu

Aqui recobra sentido a ideia do imperativo tecnoloacutegico abordado por Jonas que elimina a liberdade e a consciecircncia do sujeito em prol de um determinismo tecnoloacutegico Assim o saber local deixa de ter importacircncia e em seu lugar ganha destaque o saber cientiacutefico deixando em evidecircncia as relaccedilotildees estabelecidas entre as multinacionais e o mercado exterior Notadamente na Tabela 1 o saber cientiacutefico e tecnoloacutegico (inclusive importados e produzidos fora do contexto local) satildeo os mais destacados e utilizados em detrimento ao saber local

Percebe-se ouvindo os agricultores da regiatildeo que apesar da instalaccedilatildeo das multinacionais em Ipanguaccedilu ter aumentado a quantidade de empregos a praacutetica do agronegoacutecio extinguiu a diversidade de plantio agriacutecola da regiatildeo Onde antes havia a diversidade cultivada atraveacutes da agricultura de subsistecircncia o cenaacuterio agora eacute o da monocultura com a fruticultura irrigada Um dos agricultores e morador local disse ldquoA agricultura aqui antes era em primeiro lugar Tinha tudo saiacutea muita carrada de pimentatildeo saiacutea muito tomate tinha bastante milho feijatildeo Hoje da agricultura o que tem bastante eacute soacute bananardquo (Entrevistado B)

Aleacutem disso os agricultores natildeo participam ativamente nas decisotildees das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e dos projetos voltados para a agricultura por parte da EMATER (Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural) cuja principal missatildeo eacute contribuir para a promoccedilatildeo do agronegoacutecio focando na agricultura familiar atraveacutes do serviccedilo de extensatildeo rural em prol do desenvolvimento sustentaacutevel tal como podemos observar na Tabela 2 a seguir

Tabela 2 - Projetos de agricultura irrigada implementados a partir de 1987 ateacute 1990 no Vale do Accedilu para pequenos irrigantes ndash EMATER

Fonte Pinheiro (1995 citado por Albano 2008 p 67)

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

256

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Pelos dados apresentados na tabela observa-se o baixo nuacutemero de projetos voltados para o pequeno agricultor na regiatildeo de Ipanguaccedilu Ainda falta uma poliacutetica puacuteblica que realmente integre o agricultor familiar no cenaacuterio da agricultura modernizada e que leve em conta a participaccedilatildeo popular de forma democraacutetica na sua formulaccedilatildeo Quando questionado sobre o papel da EMATER o mesmo agricultor afirma

A EMATER vem se arrastando a passos de tartaruga Eacute muito devagar Natildeo sei se eacute falta de incentivo dos governantes (que eu acredito que seja) porque tem os teacutecnicos que possuem vontade de colocar as coisas para funcionar mas por conta do recurso natildeo tem como eles colocarem para funcionar (Entrevistado B)

A regiatildeo de Ipanguaccedilu e a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas

Aleacutem do que jaacute observamos ateacute aqui que outros aspectos podemos extrair do contexto apresentado sobre a implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na regiatildeo de Ipanguaccedilu e a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da responsabilidade

Jaacute introduzimos este aspecto na parte anterior deste trabalho mas vale a pena aprofundar um pouco mais a criacutetica ao progresso tecida por Jonas (2006) ao que ele denomina de ideal baconiano e a relaccedilatildeo com o ideal de progresso presente na regiatildeo de Ipanguaccedilu Mais especificamente trata-se de evidenciar a relaccedilatildeo da dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica

Como visto anteriormente a tese principal defendida por Hans Jonas eacute que a teacutecnica moderna se converte em ameaccedila natildeo apenas fiacutesica mas tambeacutem ideoloacutegica na medida em que propaga o ideal de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico a qualquer custo o que segundo ele representa um perigo para toda a humanidade Sobre este perigo ele argumenta

O perigo decorre da dimensatildeo excessiva da civilizaccedilatildeo teacutecnico-industrial baseada nas ciecircncias naturais O que chamamos de programa baconiano ndash ou seja colocar o saber a serviccedilo da dominaccedilatildeo da natureza e utilizaacute-la para melhorar a sorte da humanidade ndash natildeo contou desde as origens na sua execuccedilatildeo capitalista com a racionalidade e a retidatildeo que lhe seriam adequadas poreacutem sua dinacircmica de ecircxito que conduz obrigatoriamente aos excessos de produccedilatildeo e consumo teria subjugado qualquer sociedade considerando-se a breve escala de tempo dos objetivos humanos e a imprevisibilidade real das dimensotildees do ecircxito (uma vez que nenhuma sociedade se compotildee de saacutebios) (JONAS 2006 p 235)

Jonas atenta aos perigos existentes na civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica e utilitaacuteria onde partimos do pressuposto de que a teacutecnica moderna eacute indispensaacutevel para a sociedade e que sobretudo eacute nela que encontraremos o triunfo (o que o filoacutesofo denomina de ecircxito) Nessa perspectiva ele afirma que ldquoa ameaccedila de cataacutestrofe do ideal baconiano de dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica reside portanto na magnitude do seu ecircxito Esse ecircxito tem dois aspectos econocircmico e bioloacutegicordquo (2006 p 235) O ecircxito econocircmico resultaria no esgotamento dos recursos naturais atraveacutes do aumento da produccedilatildeo de bens e diminuiccedilatildeo do dispecircndio do trabalho humano enquanto que o bioloacutegico consistiria em um aumento exponencial da populaccedilatildeo

Dito isso a partir da ambivalecircncia do ecircxito presente no ideal baconiano podemos fazer um contraponto com a implementaccedilatildeo das poliacuteticas voltadas para a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu Natildeo estariam inseridas nesta loacutegica as poliacuteticas puacuteblicas que surgiram para impulsionar a Revoluccedilatildeo Verde Nesse contexto percebemos um forte crescimento de produtividade na agricultura atraveacutes da utilizaccedilatildeo de novas tecnologias oriundas da ideia de modernizar o campo aumentando assim a visibilidade das empresas multinacionais e diminuindo as atividades de subsistecircncia (ldquoecircxito econocircmicordquo) Do mesmo modo constatamos o aumento populacional em certas comunidades como mostrado anteriormente onde antes

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

257

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

havia 50 moradores apoacutes a instalaccedilatildeo das multinacionais a populaccedilatildeo da comunidade aumentou para 500 moradores (ldquoecircxito bioloacutegicordquo) Isso posto e respondendo agrave pergunta anterior podemos afirmar que de certo modo essas poliacuteticas que surgem com vistas agrave modernizaccedilatildeo do campo estatildeo inseridas nesta ambiguidade do ecircxito colocada por Hans Jonas quando pensamos no ideal baconiano de um lado o econocircmico com a maior produtividade e menor dispecircndio do trabalho do outro o bioloacutegico com o aumento populacional

Outra relaccedilatildeo que podemos evidenciar levando em conta este cenaacuterio utilitaacuterio advindo da modernizaccedilatildeo da agricultura eacute a questatildeo da alimentaccedilatildeo Citando a utoacutepica ldquoreconstruccedilatildeo da naturezardquo pensada por Bloch Jonas afirma que

[] por causa do seu ecircxito bioloacutegico e do seu crescimento irresistiacutevel a humanidade se vecirc forccedilada a adicionar produtos quiacutemicos agrave camada produtiva da crosta terrestre [] As tecnologias agraacuterias de maximizaccedilatildeo tecircm impactos cumulativos sobre a natureza que mal comeccedilaram a revelar-se em acircmbito local por exemplo na poluiccedilatildeo quiacutemica dos recursos hiacutedricos e das aacuteguas costeiras (para o que contribuem tambeacutem as induacutestrias) com efeitos nocivos transmitidos pela cadeia alimentar A salinizaccedilatildeo dos solos pela irrigaccedilatildeo constante a erosatildeo provocada pela aragem dos campos [] (JONAS 2006 p 302)

Historicamente eacute sabido que a proposta da eacutetica jonasiana deu cabida a muitos movimentos ecologistas no final do seacuteculo passado inclusive orientando as diretrizes do Partido Verde na Alemanha a partir dos anos noventa Mas tambeacutem eacute fato que Jonas ao duvidar das apostas nas tecnologias modernas com o uso de fertilizantes agrotoacutexicos e o cultivo da monocultura para o crescimento a qualquer custo tambeacutem coloca em crise os ideais surgidos na Revoluccedilatildeo Verde Nesse mesmo sentido quando indagado sobre a questatildeo socioambiental e do progresso na agricultura familiar e no agronegoacutecio o entrevistado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu argumenta

Tanto os agricultores familiares precisam ainda lidar com a questatildeo socioambiental como tambeacutem as empresas que estatildeo no municiacutepio Haacute empresas que trabalhavam com a pulverizaccedilatildeo aeacuterea atraveacutes de aviotildees e envenenaram rios plantaccedilotildees houve mortandade de peixes e com isso foram feitas denuacutencias ao IDEMA ndash que eacute o oacutergatildeo de meio ambiente estadual ao IBAMA Tecircm empresas que foram multadas em vaacuterios milhotildees de reais e estatildeo procurando se adequar ao meio ambiente para prejudicar menos Tambeacutem podemos abordar a questatildeo do progresso cientiacutefico (Entrevistado A)

A visatildeo de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico aliada ao desenvolvimento presente na modernidade acaba mascarando os efeitos desastrosos da tecnificaccedilatildeo em escala planetaacuteria O discurso de um crescente bem-estar (tanto social quanto econocircmico) faz-nos acreditar que soacute existe uma uacutenica via a ser seguida que eacute a do desenvolvimento Poreacutem essa falsa sensaccedilatildeo eclipsa o pensar que questiona a teacutecnica e a sua relaccedilatildeo com a sociedade na atualidade

Ainda dentro da ameaccedila do ideal baconiano exposto por Jonas outro aspecto relevante e que merece destaque aqui eacute a questatildeo da dominaccedilatildeo da natureza a partir da teacutecnica moderna Jonas (2006 p 236) considera que na ldquodialeacutetica do poder sobre a natureza e a compulsatildeo de exercecirc-lardquo o poder tornou-se crucial nesta relaccedilatildeo Assim ele afirma

A foacutermula baconiana afirma que saber eacute poder Mas eacute o proacuteprio programa baconiano que no aacutepice do triunfo revela-se insuficiente com a sua contradiccedilatildeo intriacutenseca ou seja o descontrole sobre si mesmo mostrando-se incapaz de proteger o homem de si mesmo e a natureza do homem (2006 p 236)

A partir desta dialeacutetica estabelecida entre poder teacutecnica moderna e sua relaccedilatildeo com o homem e a proacutepria natureza Jonas afirma que tanto o homem quanto a natureza precisam de proteccedilatildeo quando se pensa na magnitude do poder que o progresso cientiacutefico alcanccedilou Pensamento semelhante jaacute havia sido

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

258

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

propagado tambeacutem por Marcuse (1982) quando nos anos sessenta do seacuteculo passado afirmava a unidimensionalidade da condiccedilatildeo humana advinda da teacutecnica moderna Esse poder eacute caracterizado pela necessidade do uso crescente da teacutecnica conduzindo o homem a uma incapacidade de frear o contiacutenuo progresso muito embora ele (o homem) insista em acreditar que a natureza eacute apenas um objeto de exploraccedilatildeo e estaacute disponiacutevel para atender meramente agrave sua vontade

Aleacutem desta problemaacutetica do progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico colocado por Jonas podemos tambeacutem fazer uma relaccedilatildeo entre as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade e o municiacutepio de Ipanguaccedilu Tal como jaacute salientamos anteriormente o primeiro aspecto a destacar desde a eacutetica jonasiana eacute o dever do homem perante a biosfera como dever responsaacutevel garantindo tanto a preservaccedilatildeo do presente quanto do futuro da humanidade e da natureza Portanto neste aspecto haveriacuteamos de indagar ateacute que ponto a agricultura familiar na regiatildeo de Ipanguaccedilu torna vaacutelido esse dever e se o mesmo procede com o agronegoacutecio Como dito anteriormente o agronegoacutecio visa agrave monocultura e agrave modernizaccedilatildeo da agricultura ou seja as atividades agriacutecolas satildeo baseadas no controle teacutecnico da terra gerando uma maior produccedilatildeo que garante a exportaccedilatildeo e o investimento no mercado interno visando ao lucro Do outro lado estaacute a agricultura familiar tendo como principal caracteriacutestica o cultivo de subsistecircncia Podemos observar que no primeiro exemplo a natureza eacute vista como um objeto de lucro enquanto que no segundo ela eacute vista como um ldquoobjetordquo de responsabilidade E eacute no contexto do segundo exemplo que se insere o sentido do ldquodever serrdquo tal como observa Jonas Poreacutem o que ocorre eacute que na atualidade as atividades desenvolvidas pelas multinacionais do agronegoacutecio em Ipanguaccedilu eacute que vecircm merecendo lugar de destaque no cenaacuterio das poliacuteticas puacuteblicas locais

Consideraccedilotildees Finais

Do exposto ateacute aqui fica expliacutecito que eacute necessaacuterio um olhar criacutetico sobre a problemaacutetica existente do paradigma cientiacutefico e tecnoloacutegico presente na modernidade que impele tudo ao progresso e ao desenvolvimento Do mesmo modo tambeacutem eacute preciso refletir sobre como tratamos a realidade e o contexto cultural local visto que natildeo podem ser marginalizados em prol do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico e econocircmico global Observando o sentido do desenvolvimento neste contexto Lisboa argumenta

O desenvolvimento comporta em si mesmo o subdesenvolvimento O padratildeo mimeacutetico do desenvolvimento fundado no estilo ocidental de vida com altos niacuteveis de consumo e desperdiacutecio tem cegado os povos do terceiro mundo os impedindo de se encontrar com sua identidade Ora um povo privado de sua identidade natildeo eacute capaz de se autodeterminar (LISBOA 1996 p 7)

Apesar de a instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo de Ipanguaccedilu ter reduzido a diversidade da regiatildeo atraveacutes do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico o pouco que haacute da praacutetica da agricultura familiar ainda insiste em preservar a relaccedilatildeo essencial com a terra e com tradiccedilotildees culturais Nela se vecirc refletido o princiacutepio eacutetico da responsabilidade de Hans Jonas onde haacute a preocupaccedilatildeo do cuidado com o lugar onde vivem para que as futuras geraccedilotildees possam viver de forma sustentaacutevel Na agricultura familiar tambeacutem se torna visiacutevel a temeridade e a relaccedilatildeo do ser teacutecnico com a prudecircncia onde os valores estatildeo na biosfera e natildeo na utilidade do fazer antropocecircntrico e egoiacutesta da condiccedilatildeo humana de estar no mundo

Insistir na permanecircncia desta praacutetica eacute insistir na participaccedilatildeo direta ativa e democraacutetica dos agricultores na formulaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e nos projetos voltados para a agricultura Pois se no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia tambeacutem estaacute inserida a dimensatildeo social entatildeo a implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia deve ser decidida pelos atores sociais nela implicados (MIRANDA 2012 p 181-182) Dessa forma eacute no espaccedilo puacuteblico de debate com a populaccedilatildeo diretamente afetada pelas implementaccedilotildees tecnocientiacuteficas que construiacutemos esta praacutetica democraacutetica e participativa frente agrave ciecircncia e agrave tecnologia eliminando assim a violecircncia contra a cultura local tal como situa Shiva

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

259

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

O primeiro plano da violecircncia desencadeada contra os sistemas locais de saber eacute natildeo consideraacute-los um saber A invisibilidade eacute a primeira razatildeo pela qual os sistemas locais entram em colapso antes de serem testados e comprovados pelo confronto com o saber dominante do Ocidente A proacutepria distacircncia elimina os sistemas locais da percepccedilatildeo Quando o saber local aparece de fato no campo da visatildeo globalizadora fazem com que desapareccedila negando-lhe o status de um saber sistemaacutetico e atribuindo-lhe os adjetivos de primitivo e anticientiacutefico (SHIVA 2003 p 22-23)

Portanto tal como ensina Shiva para que haja inclusatildeo e um processo democraacutetico na participaccedilatildeo puacuteblica voltada para a ciecircncia e para a tecnologia eacute preciso que a visatildeo globalizante da tecnificaccedilatildeo e da cientifizaccedilatildeo natildeo anule o conhecimento local com a justificativa de que eles natildeo satildeo cientiacuteficos O saber local e as praacuteticas culturais dos agricultores devem ser levados em consideraccedilatildeo nesses processos de implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de garantir o empoderamento dos atores sociais neles implicados

Ora que liccedilotildees podemos extrair destas constataccedilotildees se vincularmos ao agir eacutetico Agrave luz das teses apresentadas por Hans Jonas apontamos alguns caminhos (i) Que eacute necessaacuterio pensar numa eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica e instrumental abrangendo uma nova dimensatildeo a responsabilidade (ii) Que tal modelo de eacutetica seja capaz de resgatar o conceito de temeridade e a relaccedilatildeo da teacutecnica natildeo somente com a eficiecircncia mas tambeacutem com a prudecircncia (iii) Que eacute fundamental retomar o sentido originaacuterio da eacutetica como cuidado o cuidar do lugar onde se vive (BOFF 1999 MIRANDA 2012)

Em outros termos o questionamento diante da teacutecnica e da ciecircncia levando em consideraccedilatildeo o acircmbito da eacutetica e das poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode estar inserido meramente na dimensatildeo instrumental e antropoloacutegica Trata-se antes de tudo de uma fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da natureza e da condiccedilatildeo humana levando em conta o princiacutepio responsabilidade definido pela eacutetica jonasiana

A justificativa de uma tal eacutetica que natildeo mais se restringe ao terreno imediatamente intersubjetivo da contemporaneidade deve estender-se ateacute a metafiacutesica pois soacute ela permite que se pergunte por que afinal homens devem estar no mundo portanto por que o imperativo incondicional destina-se a assegurar-lhes a existecircncia no futuro A aventura da tecnologia impotildee com seus riscos extremos o risco da reflexatildeo extrema (JONAS 2006 p 22)

Desta forma e diante da insuficiecircncia constatada por Jonas da eacutetica tradicional em propor saiacutedas frente aos novos dilemas eacuteticos pautados pela sociedade tecnocientiacutefica eacute proposta deste estudo pensar um novo agir humano baseado na responsabilidade inclusive no acircmbito da implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de pensar saiacutedas que sejam capazes de ultrapassar as barreiras do discurso desenvolvimentista e por conseguinte determinista da tecnologia e da neutralidade cientiacutefica que ainda persistem e insistem em orientar as praacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na sociedade atual Afinal como diz Miranda com base nos estudos de Jasanoff (1995)

a ciecircncia deveria ter uma funccedilatildeo poliacutetica na medida em que tambeacutem avalia e revisa o estado do conhecimento cientiacutefico e sua aplicabilidade praacutetica Assim diante de programas de controle ambiental por exemplo mais que simplesmente aplicar certo tipo de conhecimento cientiacutefico aparentemente desinteressado neutro o papel da ciecircncia deveria ser tambeacutem eacutetico-poliacutetico no sentido de avaliar suas implicaccedilotildees sociais poliacuteticas culturais etc (MIRANDA 2012 p 181)

Em suma a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no municiacutepio de Ipanguaccedilu ensina-nos que no cenaacuterio da instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo impulsionadas por poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas supostamente de cunho desenvolvimentista e que correspondem ao ideal progressista cujo agir eacute meramente utilitaacuterio e de exploraccedilatildeo da natureza visando cada vez mais ao lucro a eacutetica da responsabilidade pode ser a criacutetica e o

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

260

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

norte de uma nova forma de agir Desde sua criacutetica tambeacutem eacute possiacutevel formular poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas que levem em conta os atores sociais nelas implicados tornando o processo democraacutetico e natildeo somente tecnocraacutetico Por outro lado e considerando o cenaacuterio da agricultura familiar e dos agricultores que ali vivem e lidam com a terra a eacutetica da responsabilidade surge como forma de corroborar com suas praacuteticas como a accedilatildeo eacutetica que visa ao cuidado com o lugar onde vivem pois eles (os agricultores) natildeo satildeo apenas ldquodonosrdquo da terra mas ocupam e essencializam a terra atraveacutes da relaccedilatildeo de cuidado e de prudecircncia no ato de cultivar a terra

Eacute a partir desta constataccedilatildeo que apresentamos a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas como uma eacutetica possiacutevel de ser aplicada nesse contexto de aparente dualidade entre a agricultura familiar e o agronegoacutecio Levando em conta as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade como o conceito da responsabilidade e do ideal utoacutepico do progresso cientiacutefico tecnoloacutegico a relaccedilatildeo com o meio ambiente e com a terra concluiacutemos que urge pensar sua aplicaccedilatildeo tambeacutem no campo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas A sua utilizaccedilatildeo no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia torna-se necessaacuteria no atual contexto da modernizaccedilatildeo em que estatildeo submetidos grupos sociais comunidades e povos inteiros E ainda que guardados seus devidos limites (MIRANDA 2012 p 143) a responsabilidade eacute um princiacutepio eacutetico que pode contribuir para nortear as accedilotildees tecnocientiacuteficas rumo agrave uma sociedade mais sustentaacutevel e equilibrada

Referecircncias

AGEcircNCIA Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba (AESA) Comitecircs Piranhas-Accedilu apresentaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwaesapbgovbrcomitespiranhasacu Acesso em 23 ago 2015

ALBANO Gleydson SAacute Alcindo Poliacuteticas puacuteblicas e globalizaccedilatildeo da agricultura no Vale do Accedilu-RN Revista de Geografia Recife UFPE ndash DCGNAPA v 25 n 2 maiago 2008

APEL Karl-Otto Estudos de moral moderna Petroacutepolis Vozes 2000

BECK Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Traduccedilatildeo original do alematildeo de Sebastiatildeo Nascimento Satildeo Paulo Editora 34 2010

BOFF Leonardo Saber cuidar eacutetica do humano Petroacutepolis Vozes 1999

HEIDEGGER Martin A questatildeo da teacutecnica Ensaios e conferecircncias I Traduzido por Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan Fode Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes Braganccedila Paulista Ed Universitaacuteria Satildeo Francisco 2012

HERRERA Amiacutelcar O Los determinantes sociales de la poliacutetica cientiacutefica en Ameacuterica Latina Poliacutetica cientiacutefica expliacutecita y poliacutetica cientiacutefica impliacutecita Argentina Redes v 2 1995

INSTITUTO Brasileiro de Geografia E Estatiacutestica (IBGE) Censo Demograacutefico 2000 sinopse ndash Rio Grande do Norte ndash Ipanguaccedilu Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtras temasphplang=ampcodmun=240470ampidtema=1ampsearch=rio-grande-do-norte|ipanguacu|censo-demografico-2010-sinopse- Acesso em 14 ago 2015

JASANOFF S Procedural choices in regulatory science Technology in Society 17 1995 httpsdoiorg1010160160-791x(95)00011-f

JONAS Hans O princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Rio de Janeiro Contraponto 2006

JONAS Hans Teacutecnica medicina y eacutetica Sobre la praacutectica del principio de la responsabilidad Barcelona Paidoacutes 1997

LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001

LISBOA Armando de Melo Desenvolvimento uma ideia subdesenvolvida Cadernos do CEAS Salvador n 161 1996

MARCUSE Herbert A ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional Rio de Janeiro Jorge Zahar 1982

MIRANDA A L iquestUna eacutetica para la civilizacioacuten tecnoloacutegica Posibilidades y liacutemites del principio de la responsabilidad de Hans Jonas AlemanhaEspanha Lap LambertEAE 2012

MORIN E Ciecircncia com consciecircncia Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005

SERRES Michel Le contrat natural Paris Flammarion 1992

SHIVA Vandana AZEVEDO Dinah de Abreu Monoculturas da mente perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia Satildeo Paulo Gaia 2003

SIQUEIRA JE Hans Jonas e a eacutetica da responsabilidade Mundo Sauacutede 1999

WEBCARTA Mapa do Rio Grande do Norte Disponiacutevel em webcartanetcartamapaphpid=244amplg=pt Acesso em 26 ago 2015

WOLIN Richard Heideggerrsquos children Hannah Arendt Karl Loumlwith Hans Jonas y Herbert Marcuse Princepton Princepton University Press 2001

ZANCANARO L O conceito de responsabilidade em Hans Jonas CampinasSP Ed UNICAMP 1998

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Page 3: O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail: angelamiranda@ect@ufrn.br. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

246

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

reconduza a accedilatildeo humana baseada na responsabilidade e na prudecircncia no temor e na previsibilidade e em prol da biosfera

Com base nisso esta pesquisa busca aprofundar e ilustrar a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como exemplo a implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na atualidade No caso em especiacutefico analisaremos o contexto da regiatildeo de Ipanguaccedilu (municiacutepio do Rio Grande do NorteRN) e a implementaccedilatildeo do projeto da fruticultura irrigada Esta regiatildeo se destaca por sua atividade agriacutecola de um lado a agricultura familiar e do outro o agronegoacutecio Assim o intuito deste trabalho eacute analisar com base na eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas as praacuteticas da agricultura familiar e a sua relaccedilatildeo com o agronegoacutecio na regiatildeo Como propoacutesito secundaacuterio e consequente do anterior pretende-se ainda identificar e analisar a participaccedilatildeo puacuteblica na implementaccedilatildeo destas poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas atraveacutes dos agricultores e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu com o objetivo de perceber se haacute uma praacutetica democraacutetica e participativa na implementaccedilatildeo destas poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas de modo que possa garantir a cultura e as praacuteticas sociais locais Tambeacutem eacute propoacutesito desse trabalho constatar se estas praacuteticas estatildeo dissociadas da realidade local e da preservaccedilatildeo ao meio ambiente levando em conta apenas os interesses econocircmicos de uma minoria

Dito isso pretende-se num primeiro momento apresentar a eacutetica da responsabilidade proposta pelo filoacutesofo Hans Jonas expondo as suas caracteriacutesticas e explicitando como ela se propotildee a enfrentar os problemas causados pela tecnociecircncia Num segundo momento pretende-se aprofundar a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da responsabilidade na implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas levando em consideraccedilatildeo e de modo mais especiacutefico o caso da fruticultura irrigada no municiacutepio de IpanguaccediluRN

Metodologia

Do ponto de vista metodoloacutegico esta pesquisa possui caraacuteter exploratoacuterio e qualitativo que segundo Gil (2002 p 41) consiste em ldquo[] proporcionar maior familiaridade com o problema com vistas a tornaacute-lo mais expliacutecito ou a constituir hipoacuteteses Pode-se dizer que estas pesquisas tecircm como objetivo principal o aprimoramento de ideias ou a descoberta de intuiccedilotildeesrdquo Aleacutem disso o trabalho possui fonte bibliograacutefica utilizando principalmente as obras de Hans Jonas (1997 2006) e comentadores como Miranda (2012) Boff (1999) Apel (1994) Shiva (2003) entre outros

A regiatildeo de Ipanguaccedilu foi escolhida como exemplo para a pesquisa de campo devido ao seu contexto econocircmico tendo como principal atividade econocircmica a agricultura A relaccedilatildeo com a terra se daacute pelos moradores locais que praticam a agricultura familiar de um lado e de outro pelas empresas do agronegoacutecio que incentivam as poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas voltadas para o progresso e a modernizaccedilatildeo da agricultura Eacute pois diante deste cenaacuterio que encontramos um terreno feacutertil para desenvolver a pesquisa sobre a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade Desse modo como procedimento de caraacuteter instrumental foi feita uma sondagem (LAKATOS MARCONI 1992) com os agricultores locais e a visita in loco com o intuito de coletar dados de natureza qualitativa O propoacutesito aqui foi averiguar o progresso cientiacutefico e suas implicaccedilotildees com o meio socioambiental bem como a sua relaccedilatildeo com as poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e os princiacutepios eacuteticos que regem estas praacuteticas No primeiro momento foram contatados os gestores responsaacuteveis pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu para delinear quais princiacutepios eacuteticos regem suas praacuteticas cientiacuteficas E no segundo momento a sondagem foi feita com base no diaacutelogo com outros agricultores locais Levando em consideraccedilatildeo o caraacuteter qualitativo foram analisadas quatro questotildees abrangendo trecircs aspectos principais (a) a agricultura familiar e a relaccedilatildeo com o agronegoacutecio (b) a implementaccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas em ciecircncia e tecnologia e as consequecircncias ambientais (c) a percepccedilatildeo dos conceitos teoacutericos e das diretrizes aplicadas que se relacionam ao tema principal da pesquisa A amostra foi utilizada tatildeo somente como caraacuteter ilustrativo para demonstrar numa situaccedilatildeo concreta a relaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade e sua aplicabilidade nas poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia Nesta etapa do trabalho tambeacutem foram importantes os dados coletados atraveacutes de

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

247

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

documentos (IBGE 2010 AESA 2015 etc) anaacutelises complementares (HERRERA 1995 LISBOA 1996) e estudos sobre a regiatildeo (ALBANO 2008)

A eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas

Antes de abordar o que a eacutetica da responsabilidade proposta por Hans Jonas representa no contexto da nossa sociedade tecnoloacutegica eacute necessaacuterio entender em qual cenaacuterio ela surge A partir disso compreenderemos de forma mais expliacutecita o seu propoacutesito e suas principais caracteriacutesticas

O filoacutesofo Hans Jonas (1903-1993) nasceu em Moumlnchengladbach na Alemanha Foi aluno de Martin Heidegger na Universidade de Freiburg (1920) onde este foi por muito tempo o seu mentor intelectual (WOLIN 2001) Apoacutes a ascensatildeo do nazismo ao poder por ser de origem judaica Jonas partiu da Alemanha e viveu na Inglaterra na Palestina e nos Estados Unidos O filoacutesofo presenciou e vivenciou as consequecircncias da ascensatildeo do Nazismo a Primeira e a Segunda Guerra e o papel crucial que a tecnologia desempenhou nesse contexto Dessa forma principalmente apoacutes as bombas atocircmicas na Segunda Guerra Mundial e do seu efeito devastador agrave populaccedilatildeo e ao meio ambiente surge a preocupaccedilatildeo e a reflexatildeo de Jonas sobre a dimensatildeo que a tecnologia moderna estava ocupando na sociedade (MIRANDA 2012 p 72)

Diante deste panorama Jonas (2006 1997) constata que a teacutecnica e a ciecircncia atingiram um notaacutevel espaccedilo na sociedade ao mesmo tempo em que tambeacutem revelaram seu caraacuteter ameaccedilador para a vida na terra Logo a tecnologia natildeo eacute neutra e dada a sua importacircncia e sua profunda interaccedilatildeo com a sociedade e com o meio ambiente ela possui um caraacuteter eminentemente eacutetico Eacute nesse sentido que Hans Jonas propotildee o princiacutepio da responsabilidade como um modelo de eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Publicada pela primeira vez no ano de 1979 a tese central desta obra eacute a proposta de um novo modelo de eacutetica que seja capaz de englobar o importante papel que a tecnologia moderna possui na sociedade tecnoloacutegica Um modelo de eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica capaz de ir aleacutem das molduras das eacuteticas anteriores posto que estas jaacute natildeo satildeo mais capazes de abarcar as consequecircncias da tecnologia tal como observa o proacuteprio Hans Jonas (2006)

Mas para compreender em sua totalidade a eacutetica da responsabilidade eacute necessaacuterio entender porque Jonas afirma que a eacutetica tradicional jaacute natildeo consegue abranger a tecnologia moderna Tambeacutem eacute importante entender o que o filoacutesofo define como responsabilidade e suas caracteriacutesticas principais Abordaremos este assunto a seguir com base em trecircs aspectos

A insuficiecircncia da eacutetica tradicional diante do que eacute demandado eticamente pela

tecnologia moderna

O conceito de responsabilidade para Jonas

As principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade

A insuficiecircncia da eacutetica tradicional diante do que eacute demandado eticamente pela tecnologia

moderna

Observa Hans Jonas que de modo geral os modelos de eacutetica herdados pela tradiccedilatildeo ocidental se embasam na neutralidade tecnoloacutegica e no antropocentrismo onde o ser humano eacute o centro e o fim uacuteltimo da accedilatildeo eacutetica Aleacutem disso tratam-se de modelos de eacuteticas presentistas que se relacionam apenas com o agora e natildeo se preocupam ou natildeo levam em conta o futuro Mostrando que tais modelos de eacutetica jaacute natildeo satildeo mais suficientes frente ao cenaacuterio tecnificado da sociedade atual Jonas (2006) elenca algumas caracteriacutesticas da eacutetica ateacute o momento presente com o intuito de demonstrar a necessidade de um novo modelo de eacutetica capaz de fazer frente aos desafios da sociedade tecnocientiacutefica Satildeo elas

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

248

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

i) A primeira caracteriacutestica dos modelos de eacutetica herdados da tradiccedilatildeo ocidental eacute a neutralidade na esfera do domiacutenio da teacutecnica (techne) Fazendo uma comparaccedilatildeo com as caracteriacutesticas do agir humano do passado e levando em conta a eacutetica tradicional Jonas (2006 p 35) observa que a ldquotechne como atividade compreendia-se a si mesma como um tributo determinado pela necessidade e natildeo como um progresso que se autojustifica como fim preciacutepuo da humanidaderdquo Aqui nota-se que a dimensatildeo eacutetica natildeo estaacute circunscrita ao acircmbito dos objetos Dessa forma natildeo constitui uma vinculaccedilatildeo da prudecircncia na relaccedilatildeo homem-teacutecnica no mundo extra-humano

ii) A segunda caracteriacutestica evidencia o caraacuteter antropocecircntrico da eacutetica tradicional quando Jonas (2006 p 35) afirma referindo-se aos modelos das eacuteticas anteriores ldquoA significaccedilatildeo eacutetica dizia respeito ao relacionamento direto de homem com homem inclusive o de cada homem consigo mesmo toda eacutetica tradicional eacute antropocecircntricardquo Ou seja a accedilatildeo eacutetica estaacute circunscrita no acircmbito tatildeo somente da relaccedilatildeo entre seres humanos A propoacutesito o importante estudo de Michel Serres intitulado ldquoO Contrato Naturalrdquo (1992) tambeacutem evidencia este aspecto da eacutetica tradicional

iii) Outro caraacuteter da eacutetica tradicional diz respeito agrave accedilatildeo imediata Ou seja o paracircmetro de avaliaccedilatildeo do efeito da accedilatildeo eacute apenas o momento presente natildeo levando em consideraccedilatildeo o futuro Assim esclarece Hans Jonas

O bem e o mal com o qual o agir tinha de se preocupar evidenciavam-se na accedilatildeo seja na proacutepria praacutexis ou em seu alcance imediato e natildeo requeriam um planejamento de longo prazo[] O alcance efetivo da accedilatildeo era pequeno o intervalo de tempo para previsatildeo definiccedilatildeo de objetivo e imputabilidade era curto e limitado o controle sobre as circunstacircncias O comportamento correto possuiacutea seus criteacuterios imediatos e sua consecuccedilatildeo quase imediata O longo trajeto das consequecircncias ficava ao criteacuterio do acaso do destino ou da providecircncia Por conseguinte a eacutetica tinha a ver com o aqui e o agora (JONAS 2006 p 35-36)

Com base nestas caracteriacutesticas da eacutetica tradicional e frente agraves demandas do mundo tecnificado pela accedilatildeo do homem Jonas defende pois a necessidade de elaborar um modelo de eacutetica que seja capaz de suplantar a insuficiecircncias da eacutetica tradicional Assim ele justifica

A teacutecnica moderna introduziu accedilotildees de uma tal ordem ineacutedita de grandeza com tais novos objetos e consequecircncias que a moldura da eacutetica antiga natildeo consegue mais enquadraacute-las [] Isso impotildee agrave eacutetica pela enormidade de suas forccedilas uma nova dimensatildeo nunca antes sonhada de responsabilidade (JONAS 2006 p 39)

Aqui fica evidente a necessidade de um novo agir do homem um agir que natildeo estaacute circunscrito somente agrave relaccedilatildeo do homem com o proacuteprio homem reforccedilando o modelo meramente antropocecircntrico de eacutetica mas um agir que alcance o biocecircntrico isto eacute fundado na responsabilidade para com todos os seres e as geraccedilotildees futuras Mas o que eacute entendido aqui como responsabilidade E mais porque devemos situaacute-la como uma nova dimensatildeo da eacutetica Para esclarecer melhor esses questionamentos abordaremos o item a seguir

O conceito de responsabilidade para Jonas

A responsabilidade para Jonas eacute entendida como aquela accedilatildeo que se projeta tanto no presente como no futuro Do ponto de vista da civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica e seus dilemas eacuteticos trata-se da accedilatildeo diretamente incorporada ao progresso tecnoloacutegico e ao sentido do ldquopoder como deverrdquo (e natildeo ao contraacuterio tal como dizia Kant) Assim esclarece o filoacutesofo

Responsabilidade eacute o cuidado reconhecido como obrigaccedilatildeo em relaccedilatildeo a outro ser que se torna ldquopreocupaccedilatildeordquo quando haacute uma ameaccedila agrave sua vulnerabilidade Mas o medo estaacute presente na questatildeo original com a qual podemos imaginar se inicie

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

249

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

qualquer responsabilidade ativa o que pode acontecer a ele se eu natildeo assumir a responsabilidade por ele Quanto mais obscura a resposta maior se delineia a responsabilidade Quanto mais no futuro longiacutenquo situa-se aquilo que se teme quanto mais distante do nosso bem-estar ou mal-estar quanto menos familiar for o seu gecircnero mais necessitam ser diligentemente mobilizadas a lucidez da imaginaccedilatildeo e a sensibilidade dos sentidos Torna-se necessaacuteria uma heuriacutestica do medo capaz de investigar que natildeo soacute descubra e represente o novo objeto como tal mas que tome conhecimento do interesse moral particular ao ser interpelado pelo objeto (JONAS 2006 p 352 grifo nosso)

Portanto o conceito de responsabilidade para Jonas diz respeito ao cuidado com o outro ser que dada a ameaccedila de sua vulnerabilidade converte-se em pre-ocupaccedilatildeo diante da condiccedilatildeo humana de poder cuidar (MIRANDA 2012 p 82 e ss) A responsabilidade eacute o valor que deve reger a accedilatildeo praacutetica segundo Jonas Desse modo a accedilatildeo (como um agir moral) deve possuir como aspecto essencial o cuidado como obrigaccedilatildeo levando em conta a permanecircncia das futuras geraccedilotildees no planeta frente aos desafios enfrentados pela sociedade tecnocientiacutefica

Ainda na perspectiva da accedilatildeo eacutetica e levando em consideraccedilatildeo as futuras geraccedilotildees observa Jonas que a accedilatildeo humana potencialmente tecnificada pode prejudicar irreversivelmente a natureza e o proacuteprio homem A partir daiacute aparece um novo tipo de verdade como objeto do saber cientiacutefico a verdade que consiste nas condiccedilotildees futuras do homem e da natureza a verdade que deve natildeo somente diagnosticar mas tambeacutem prognosticar Neste sentido Jonas argumenta

Portanto esse saber real e eventual relativo agrave esfera dos fatos (que continua sendo teoacuterico) situa-se entre o saber ideal da doutrina eacutetica dos princiacutepios e o saber praacutetico relacionado agrave utilizaccedilatildeo poliacutetica o qual soacute pode operar com os seus diagnoacutesticos hipoteacuteticos relativos ao que se deve esperar ao que se deve incentivar ou ao que se deve evitar Haacute de se formar uma ciecircncia da previsatildeo hipoteacutetica uma ldquofuturologia comparativardquo (JONAS 2006 p 70)

Eacute nesse sentido que Jonas modifica o imperativo kantiano ateacute entatildeo predominante como modelo tradicional de eacutetica invertendo-o

Esse novo imperativo ldquoage de tal forma que os efeitos de suas accedilotildees sejam compatiacuteveis com a permanecircncia de uma vida humana autecircnticardquo ou formulando negativamente ldquonatildeo ponha em risco a continuidade indefinida da humanidade na Terrardquo vem substituir o imperativo kantiano ldquoage de tal forma que o princiacutepio da tua accedilatildeo se transforme numa lei universalrdquo (JONAS 2006 p 18)

Ao formular um novo imperativo eacutetico transformando-o em seu princiacutepio da responsabilidade Jonas atenta natildeo apenas para a destruiccedilatildeo fiacutesica da humanidade e da biosfera mas tambeacutem para o resgate essencial da relaccedilatildeo entre o ser teacutecnico e a natureza Segundo Miranda (2012 p 83) o imperativo eacutetico jonasiano da responsabilidade possui uma nova fundamentaccedilatildeo que eacute o sentido ontoloacutegico o que eacute levado em consideraccedilatildeo natildeo eacute apenas o fazer utilitarista mas essencialmente o ser Trata-se do caraacuteter metafiacutesico da eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas ou da fundamentaccedilatildeo metafiacutesica do agir eacutetico baseado na responsabilidade

Em siacutentese para Jonas os mandamentos da eacutetica tradicional estabelecidos por Kant Bentham Mill e outros filoacutesofos estatildeo direcionados agraves relaccedilotildees e agraves accedilotildees imediatas do ser humano e que natildeo se preocupam com o futuro ou a continuidade da vida no planeta de um modo geral (ZANCANARO 1998 p 09) Poreacutem para que haja responsabilidade eacute necessaacuterio existir uma consciecircncia criacutetica perante as consequecircncias advindas da aplicaccedilatildeo da ciecircncia e da tecnologia na sociedade

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

250

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

No entanto Jonas (2006 p 18) afirma que o imperativo tecnoloacutegico elimina a consciecircncia o sujeito e a liberdade em prol de um determinismo Ou seja o sujeito torna-se alienado agrave proacutepria ciecircncia e agrave tecnologia Do mesmo modo sobre o pensamento cientiacutefico Edgar Morin adverte

O pensamento cientiacutefico eacute ainda incapaz de se pensar de pensar sua proacutepria ambivalecircncia e sua proacutepria aventura A ciecircncia deve reatar com a reflexatildeo filosoacutefica como a filosofia cujos moinhos giram vazios por natildeo moer os gratildeos dos conhecimentos empiacutericos deve reatar com as ciecircncias A ciecircncia deve reatar com a consciecircncia poliacutetica e eacutetica (MORIN 2005 p 11)

Tambeacutem nesse sentido Ulrick Beck ao analisar o que ele denomina ldquoa sociedade do risco globalrdquo entende que a ciecircncia jaacute natildeo pode levar consigo a ideia de neutralidade mas sim a criticidade e a reflexatildeo quanto ao seu uso Assim ele argumenta

Na passagem para a praacutexis as ciecircncias satildeo agora confrontadas com a objetivaccedilatildeo de seu proacuteprio passado e presente consigo mesmas como produto e produtora da realidade e de problemas que cabe a elas analisar e superar Desse modo elas jaacute natildeo satildeo vistas apenas como manancial de soluccedilotildees para os problemas mas ao mesmo tempo tambeacutem como manancial de causas de problemas[] e por paradoxal que pareccedila num mundo jaacute loteado cientificamente e profissionalmente administrado as perspectivas de futuro e as oportunidades de expansatildeo da ciecircncia estatildeo vinculadas tambeacutem agrave criacutetica da ciecircncia (BECK 2010 p 236)

Esclarecido o conceito de responsabilidade dentro da eacutetica proposta por Hans Jonas e problematizada a accedilatildeo humana tecnificada no contexto da sociedade tecnocientiacutefica torna-se mister elencar as principais caracteriacutesticas que norteiam a eacutetica da responsabilidade tal como abordaremos a seguir

As principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade

Uma das caracteriacutesticas principais da eacutetica da responsabilidade proposta por Jonas eacute a questatildeo do dever para com a biosfera Mas em que consiste esse dever ldquoO dever do homem consiste em preservar este mundo fiacutesico de modo que as condiccedilotildees para tal presenccedila continuem ilesas ou intocadas ou seja proteger a vulnerabilidade do mundo que habitamos diante das ameaccedilasrdquo (JONAS 2006 p 45) Ou seja o dever estaacute incorporado ao conceito de responsabilidade e do cuidado com a biosfera levando em consideraccedilatildeo a previsibilidade da accedilatildeo teacutecnica

Para deixar mais expliacutecito em que consiste esse dever Jonas identifica-o a partir de distintos estaacutegios O primeiro dever ldquoconsiste em visualizar os efeitos a longo prazo estimar as consequecircncias dos atos natildeo soacute na sociedade mas tambeacutem no meio ambiente na naturezardquo (JONAS 2006 p 72) Ou seja aleacutem de precisar existir uma estimativa de consequecircncias dos atos humanos baseada no futuro esta previsatildeo natildeo pode vincular apenas o aspecto antropoloacutegico mas tambeacutem a natureza Jaacute o segundo dever ldquoconsiste em [] utilizar o medo dessas consequecircncias para estimular o respeito agrave vida humana e extra-humana Para isso basta lembrar o quatildeo as invenccedilotildees do homem podem ser imprevisiacuteveisrdquo (JONAS 2006 p 73) O medo aqui aparece como fator de prevenccedilatildeo principalmente para preservar as futuras geraccedilotildees A partir disso Jonas aponta para uma heuriacutestica do temor afirmando que se torna necessaacuterio o prognoacutestico e a temeridade em relaccedilatildeo agraves possiacuteveis consequecircncias catastroacuteficas do saber cientiacutefico e tecnoloacutegico aplicado perante a biosfera ou seja ldquoo saber origina-se daquilo contra o que devemos nos protegerrdquo (JONAS 2006 p 71)

Poreacutem Jonas conclui que esse temor que serve para que possamos refletir prever e prevenir as futuras consequecircncias catastroacuteficas natildeo eacute o mesmo medo que nos deixa paralisados

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

251

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Os homens experientes sabem que um dia podem desejar natildeo ter agido desta ou daquela forma O medo de que falo natildeo se refere a esse tipo de incerteza ou ele pode estar presente apenas como um efeito secundaacuterio Com efeito eacute uma das condiccedilotildees da accedilatildeo responsaacutevel natildeo se deixar deter por esse tipo de incerteza assumindo-se ao contraacuterio a responsabilidade pelo desconhecido dado o caraacuteter incerto da esperanccedila isso eacute o que chamamos de ldquocoragem para assumir a responsabilidaderdquo O medo que faz parte da responsabilidade natildeo eacute aquele que nos aconselha a natildeo agir mas aquele que nos convida a agir Trata-se de um medo que tem a ver com o objeto da responsabilidade (JONAS 2006 p 351)

Dessa forma a heuriacutestica do temor aponta para uma eacutetica baseada em antecipar os efeitos futuros e nos fazer agir de maneira mais prudente em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia Nesse sentido Miranda interpretando o sentido jonasiano de eacutetica afirma

[] podemos formular os deveres preliminares de uma eacutetica orientada para o futuro que satildeo buscar a representaccedilatildeo dos efeitos remotos pois somente o que eacute temido pode ser evitado por sua representaccedilatildeo e buscar o temor mediante a apelaccedilatildeo a um sentimento apropriado que o representa (MIRANDA 2012 p 81)

Podemos concluir portanto que a eacutetica da responsabilidade proposta por Hans Jonas eacute um modelo que pensado para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica leva em conta a biosfera a permanecircncia das futuras geraccedilotildees no planeta resgatando a ideia do cuidado do lugar onde se vive em meio aos desafios enfrentados pela sociedade tecnocientiacutefica E eacute a partir desses conceitos que a seguir abordaremos ilustrativamente a aplicaccedilatildeo (ou a ausecircncia) da responsabilidade na implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia dada uma situaccedilatildeo concreta que pertence ao local desde onde falamos e pensamos este trabalho

A aplicaccedilatildeo do princiacutepio responsabilidade de Hans Jonas numa situaccedilatildeo concreta o caso de

IpanguaccediluRN

Sobre a praacutetica do princiacutepio da responsabilidade Jonas escreveu uma obra muito interessante intitulada ldquoTeacutecnica medicina e eacuteticardquo (1997) Naquela oportunidade ele procurou estabelecer a relaccedilatildeo entre a teacutecnica a medicina e a eacutetica inserindo nesta relaccedilatildeo o princiacutepio da responsabilidade A partir daqui neste trabalho pretendemos percorrer uma trajetoacuteria semelhante considerando a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade no cenaacuterio das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas tendo como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no Municiacutepio de Ipanguaccedilu localizado no Estado do Rio Grande do Norte Agrave luz do princiacutepio da responsabilidade de Jonas analisamos as caracteriacutesticas locais da comunidade de agricultores de Ipanguaccedilu do ponto de vista econocircmico cultural e social e como se deu o processo de participaccedilatildeo dos agricultores locais nas poliacuteticas puacuteblicas voltadas para agricultura em especial o caso da fruticultura irrigada

O municiacutepio de IpanguaccediluRN

Ipanguaccedilu eacute um municiacutepio do Estado do Rio Grande do Norte que faz parte da microrregiatildeo do Vale do Accedilu Esta microrregiatildeo eacute formada por nove municiacutepios incluindo Ipanguaccedilu que estatildeo localizados na bacia do Rio PiranhasAccedilu e que possui cerca de 4368150 kmsup2 de extensatildeo segundo dados da AESA (Agecircncia Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba) Eacute importante ressaltar que o Rio PiranhasAccedilu desempenha um papel de extrema importacircncia pois possui o maior reservatoacuterio de aacutegua do Estado do RN a barragem Armando Ribeiro Gonccedilalves

Figura 1 - Mapa do Estado do Rio Grande do Norte Vale do Accedilu em destaque

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

252

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Fonte Webcarta (2015 destaque nosso)

Em Ipanguaccedilu o processo de produccedilatildeo e a base da economia satildeo marcados principalmente pela

agricultura pecuaacuteria e induacutestria da ceracircmica Na agricultura a accedilatildeo do cultivo era de subsistecircncia poreacutem atualmente com a instalaccedilatildeo de empresas na regiatildeo a praacutetica da agricultura eacute centrada na atividade da fruticultura irrigada voltada para exportaccedilatildeo Essa mudanccedila de cenaacuterio do cultivo de subsistecircncia para o cultivo voltado para a exportaccedilatildeo alterou drasticamente o modo de agir tanto na percepccedilatildeo dos agricultores sobre a terra e o que ela simboliza ou representa quanto na forma de lidar com a terra

A construccedilatildeo da Barragem Armando Ribeiro na regiatildeo evidenciou tais mudanccedilas pois segundo Albano (2008) a construccedilatildeo da Barragem configurou dois periacuteodos importantes no municiacutepio o primeiro (1972-1992) marcado pela chegada de empresas nacionais do ramo da agricultura o segundo (1993-2015) marcado pela entrada de multinacionais no municiacutepio como eacute o caso da Del Monte Fresh Produce Essas mudanccedilas representaram natildeo apenas a inserccedilatildeo de empresas do ramo da agricultura na regiatildeo mas tambeacutem uma mudanccedila no cenaacuterio do mercado e da relaccedilatildeo com a terra Pois num primeiro momento ocorreu a migraccedilatildeo da agricultura de subsistecircncia para a de mercado enquanto que num segundo foi adotada a visatildeo de exportaccedilatildeo tendo como base a fruticultura irrigada da monocultura da banana

Outro fato importante eacute que 612 da populaccedilatildeo estaacute situada e trabalha no meio rural segundo o Censo Demograacutefico de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) Dessa forma podemos observar que a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu-RN eacute extremamente importante natildeo soacute para os agricultores locais como tambeacutem e sobretudo para a dinacircmica econocircmica do municiacutepio Eacute em torno dela que se configura a relaccedilatildeo com a terra com a cultura e com a economia no contexto social da regiatildeo

Baseados no caraacuteter metodoloacutegico jaacute explicitado anteriormente e levando em conta a dinacircmica da (re)configuraccedilatildeo da terra ficou evidente a partir da nossa observaccedilatildeo in loco realizada no municiacutepio de Ipanguaccedilu (2014) que a maioria dos trabalhadores rurais natildeo trabalha em sua proacutepria terra mas na terra de terceiros (apenas 3 do total de 10 entrevistados possuem propriedade proacutepria) Segundo o Entrevistado A trabalhador do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu antes da instalaccedilatildeo das empresas multinacionais no municiacutepio havia comunidades que possuiacuteam 50 moradores Mas nos uacuteltimos 15 anos essas comunidades tiveram um aumento populacional vertiginoso chegando a ter 500 famiacutelias Isso segundo ele aconteceu pelo fato de as pessoas deixarem ou venderem suas pequenas propriedades para trabalhar de assalariado no agronegoacutecio Segue trecho do diaacutelogo

Tecircm comunidades no municiacutepio de Ipanguaccedilu que antes das empresas serem instaladas no municiacutepio tinham 50 moradores Essa comunidade de 15 anos pra caacute estaacute com aproximadamente 500 famiacutelias porque as pessoas deixaram ou venderam suas pequenas propriedades para vir trabalhar de assalariado no agronegoacutecio Portanto hoje grande parte dessas pessoas querem voltar para suas terras que muitas vezes foram adquiridas por essas empresas que se tornaram donas das terras do municiacutepio As pessoas estatildeo batalhando para tentar conseguir

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

253

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

outro pedaccedilo de terra para voltar agrave sua origem porque eles estatildeo vendo que com a matildeo-de-obra assalariada eles nunca iratildeo ter uma autonomia econocircmica eles ganham apenas para o sustento familiar (Entrevistado A)

Neste sentido Albano (2008 p 65) acrescenta que ldquoA agricultura de subsistecircncia tambeacutem diminuiu muito com a Barragem e depois dela com as compras de terras pelas grandes empresas rurais interessadas em produzir monoculturas para exportaccedilatildeo ou para o mercado internordquo Como exemplo para ilustrar essa (re)configuraccedilatildeo do espaccedilo e da relaccedilatildeo com a terra podemos citar a multinacional Del Monte Fresh Produce Albano assim explicita o contexto da instalaccedilatildeo da empresa na Regiatildeo de Ipanguaccedilu

O ano de 1993 foi o ano do estabelecimento da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio (OMC) e o ano em que foram concluiacutedas as negociaccedilotildees da Rodada Uruguai que incluiacutea a Agricultura nas suas negociaccedilotildees e que previa uma grande liberalizaccedilatildeo do comeacutercio agriacutecola a partir daquele ano nos paiacuteses associados da OMC inclusive o Brasil Aleacutem disso eacute nesse ano que se tem o iniacutecio da compra de terras em Ipanguaccedilu por uma empresa associada agrave Multinacional Del Monte Fresh Produce Posteriormente ela se insere no municiacutepio de Accedilu e Carnaubais ambos no Vale do Accedilu (ALBANO 2008 p 68)

Contudo quais as implicaccedilotildees da instalaccedilatildeo da multinacional para a comunidade e a agricultura da regiatildeo A Tabela 1 a seguir mostra a relaccedilatildeo e a diferenccedila entre a multinacional e as empresas locais quanto aos elementos da cadeia produtiva e jaacute antecipa os indicativos de resposta vejamos

Tabela 1 - A relaccedilatildeo entre fatores de produccedilatildeo e aquisiccedilatildeo dos insumos das empresas com os lugares de compra

Fonte Elaborado por Albano (2008 p 69) baseado em Carvalho (2001)

Analisando a tabela podemos perceber que a multinacional Del Monte Fresh Produce natildeo possui interaccedilatildeo e integraccedilatildeo com a regiatildeo de Ipanguaccedilu Praticamente quase todos os fatores de produccedilatildeo de insumos e de serviccedilos satildeo exteriores ao municiacutepio A Pesquisa e Desenvolvimento (PampD) na aacuterea da fruticultura irrigada por exemplo eacute concentrada em Israel e na Ameacuterica central enquanto que nas empresas locais ela eacute fruto da proacutepria regiatildeo Eacute interessante perceber que a multinacional faz uso de apenas duas modalidades que diz respeito ao local tal como elencadas na tabela a terra e parte da assistecircncia teacutecnica

Eacute aqui que surge outra indagaccedilatildeo natildeo menos intrigante a percepccedilatildeo e a relaccedilatildeo com a terra do agricultor local satildeo as mesmas que a dos empresaacuterios das multinacionais Seraacute que a responsabilidade e o cuidado (resgatando os conceitos de Jonas) estatildeo implicados do mesmo modo em ambas situaccedilotildees Mais adiante voltaremos a estes pontos

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

254

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

As poliacuteticas puacuteblicas de modernizaccedilatildeo da fruticultura irrigada e a relaccedilatildeo essencial com a terra

Levando em consideraccedilatildeo as poliacuteticas puacuteblicas voltadas para a agricultura na regiatildeo percebe-se que apoacutes a construccedilatildeo da Barragem de Accedilu essas poliacuteticas satildeo voltadas para impulsionar a ldquoRevoluccedilatildeo Verderdquo dando iniacutecio a um forte processo de modernizaccedilatildeo da agricultura Albano a define do seguinte modo

[] consiste num grande crescimento de produtividade e de quantidade na agricultura por meio do uso de tecnologias como os tratores agriacutecolas teacutecnicas de irrigaccedilatildeo defensivos quiacutemicos variedades de sementes aviaccedilatildeo agriacutecola computadores novos meacutetodos de gestatildeo etc De um lado da produccedilatildeo vai se ter a Induacutestria Produtora de Insumos com fertilizantes defensivos e corretivos e do outro vai se ter a Induacutestria de Bens de Capital com tratores colheitadeiras e equipamentos de irrigaccedilatildeo (ALBANO 2008 p 62)

Ainda sobre a Revoluccedilatildeo Verde Shiva afirma

Os sistemas agriacutecolas tradicionais baseiam-se em sistemas de rotaccedilatildeo de culturas e cereais legumes sementes oleaginosas com diversas variedades em cada safra enquanto o pacote da Revoluccedilatildeo Verde baseia-se em monoculturas geneticamente uniformes (SHIVA 2003 p 57)

Em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas no acircmbito da agricultura irrigada em Ipanguaccedilu haacute vaacuterios esforccedilos por parte do governo para impulsionar a modernizaccedilatildeo do campo Em vista disso citando os estudos de Souza (1997) Albano (2008) elenca que no comeccedilo da deacutecada de 1970 o Governo Autoritaacuterio efetivou o I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) Este plano teve como programas mais importantes o Programa de Redistribuiccedilatildeo de Terras (PROTERRA) e de estiacutemulo agrave agroinduacutestria do Norte e Nordeste cujo principal objetivo era ampliar a agroinduacutestria e o Programa de Integraccedilatildeo Nacional (PIN) atraveacutes de um plano de irrigaccedilatildeo no Nordeste

Diante desses esforccedilos para modernizar (tecnificar) a agricultura vale a pena refletirmos sobre o ideal do progresso tecnoloacutegico aliado ao conceito de desenvolvimento econocircmico tatildeo presente na modernidade Essa concepccedilatildeo progressista desconsidera as intencionalidades existentes no artefato tecnoloacutegico e nos indiviacuteduos no que tange agrave sua construccedilatildeo histoacuterica cultural e de valores A instrumentalizaccedilatildeo da ciecircncia e da tecnologia reduz os aparatos e a proacutepria cultura ao meramente teacutecnico e cientiacutefico tendo em vista que o progresso tecnocientiacutefico na maioria das vezes aparece desvinculado da realidade da sociedade local

Herrera (1995 p 117) mostra que isso se torna evidente a partir da Segunda Guerra Mundial com o esforccedilo internacional de implementar e melhorar as Poliacuteticas de Ciecircncia e Tecnologia (CampT) nos paiacuteses considerados ldquosubdesenvolvidosrdquo Poreacutem o que se percebe entre outros fatores eacute a desconexatildeo dos investimentos com a realidade dos paiacuteses da Ameacuterica Latina Tanto as concepccedilotildees de ciecircncia e de tecnologia quanto a ideia de progresso tecnocientiacutefico desvinculados do contexto regional acabam refletindo na construccedilatildeo dos indicadores e das poliacuteticas puacuteblicas em CampT e consequentemente na participaccedilatildeo puacuteblica e na avaliaccedilatildeo deles

Mostrando a desvinculaccedilatildeo das poliacuteticas desenvolvimentistas com o contexto regional Lisboa corrobora com as teses de Robert Kurz quando afirma

As poliacuteticas desenvolvimentistas arrancaram em poucas deacutecadas populaccedilotildees inteiras da sua economia de subsistecircncia tradicional mas natildeo as integraram plenamente (ou seja natildeo as transformaram em cidadatildes) Kurz ao desnudar o colapso da modernizaccedilatildeo do terceiro mundo afirma que ldquoa maior parte da sociedade foi apenas modernizada em sentido negativo isto eacute foram destruiacutedas as estruturas tradicionais sem que alguma coisa nova ocupasse o seu lugarrdquo (LISBOA 1996 p 4-5)

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

255

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Assim as poliacuteticas desenvolvimentistas acabam eliminando a cultura e a praacutetica tradicional dos agricultores locais Relacionando esse contexto com a eacutetica da responsabilidade de Jonas que eacute o propoacutesito deste trabalho podemos testemunhar a sua total exclusatildeo pois a terra passa a ser vista como mero produto mera utilidade que visa ao lucro da exportaccedilatildeo Ou seja haacute um profundo abandono da responsabilidade enquanto cuidado e prudecircncia em relaccedilatildeo agrave terra ao meio ambiente e agraves comunidades que vivem do cultivo da terra

Retomando o olhar sobre a Tabela 1 percebemos que eacute iacutenfima a interaccedilatildeo entre as relaccedilotildees locais que envolvem as praacuteticas da agricultura com a empresa multinacional Neste tipo de praacutetica descarta-se o conhecimento local Desse modo o pensamento transforma-se em monoculturado (SHIVA 2003 p 21) e a cultura torna-se cientificada e tecnificada tendo como justificativa e produto final o progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico Aleacutem disso o proacuteprio debate e a avaliaccedilatildeo puacuteblica que deveria existir para garantir a participaccedilatildeo dos cidadatildeos e a gestatildeo mais democraacutetica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia excluem aqueles que efetivamente satildeo os atores sociais envolvidos neste processo No caso em questatildeo trata-se dos agricultores de Ipanguaccedilu

Aqui recobra sentido a ideia do imperativo tecnoloacutegico abordado por Jonas que elimina a liberdade e a consciecircncia do sujeito em prol de um determinismo tecnoloacutegico Assim o saber local deixa de ter importacircncia e em seu lugar ganha destaque o saber cientiacutefico deixando em evidecircncia as relaccedilotildees estabelecidas entre as multinacionais e o mercado exterior Notadamente na Tabela 1 o saber cientiacutefico e tecnoloacutegico (inclusive importados e produzidos fora do contexto local) satildeo os mais destacados e utilizados em detrimento ao saber local

Percebe-se ouvindo os agricultores da regiatildeo que apesar da instalaccedilatildeo das multinacionais em Ipanguaccedilu ter aumentado a quantidade de empregos a praacutetica do agronegoacutecio extinguiu a diversidade de plantio agriacutecola da regiatildeo Onde antes havia a diversidade cultivada atraveacutes da agricultura de subsistecircncia o cenaacuterio agora eacute o da monocultura com a fruticultura irrigada Um dos agricultores e morador local disse ldquoA agricultura aqui antes era em primeiro lugar Tinha tudo saiacutea muita carrada de pimentatildeo saiacutea muito tomate tinha bastante milho feijatildeo Hoje da agricultura o que tem bastante eacute soacute bananardquo (Entrevistado B)

Aleacutem disso os agricultores natildeo participam ativamente nas decisotildees das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e dos projetos voltados para a agricultura por parte da EMATER (Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural) cuja principal missatildeo eacute contribuir para a promoccedilatildeo do agronegoacutecio focando na agricultura familiar atraveacutes do serviccedilo de extensatildeo rural em prol do desenvolvimento sustentaacutevel tal como podemos observar na Tabela 2 a seguir

Tabela 2 - Projetos de agricultura irrigada implementados a partir de 1987 ateacute 1990 no Vale do Accedilu para pequenos irrigantes ndash EMATER

Fonte Pinheiro (1995 citado por Albano 2008 p 67)

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

256

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Pelos dados apresentados na tabela observa-se o baixo nuacutemero de projetos voltados para o pequeno agricultor na regiatildeo de Ipanguaccedilu Ainda falta uma poliacutetica puacuteblica que realmente integre o agricultor familiar no cenaacuterio da agricultura modernizada e que leve em conta a participaccedilatildeo popular de forma democraacutetica na sua formulaccedilatildeo Quando questionado sobre o papel da EMATER o mesmo agricultor afirma

A EMATER vem se arrastando a passos de tartaruga Eacute muito devagar Natildeo sei se eacute falta de incentivo dos governantes (que eu acredito que seja) porque tem os teacutecnicos que possuem vontade de colocar as coisas para funcionar mas por conta do recurso natildeo tem como eles colocarem para funcionar (Entrevistado B)

A regiatildeo de Ipanguaccedilu e a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas

Aleacutem do que jaacute observamos ateacute aqui que outros aspectos podemos extrair do contexto apresentado sobre a implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na regiatildeo de Ipanguaccedilu e a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da responsabilidade

Jaacute introduzimos este aspecto na parte anterior deste trabalho mas vale a pena aprofundar um pouco mais a criacutetica ao progresso tecida por Jonas (2006) ao que ele denomina de ideal baconiano e a relaccedilatildeo com o ideal de progresso presente na regiatildeo de Ipanguaccedilu Mais especificamente trata-se de evidenciar a relaccedilatildeo da dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica

Como visto anteriormente a tese principal defendida por Hans Jonas eacute que a teacutecnica moderna se converte em ameaccedila natildeo apenas fiacutesica mas tambeacutem ideoloacutegica na medida em que propaga o ideal de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico a qualquer custo o que segundo ele representa um perigo para toda a humanidade Sobre este perigo ele argumenta

O perigo decorre da dimensatildeo excessiva da civilizaccedilatildeo teacutecnico-industrial baseada nas ciecircncias naturais O que chamamos de programa baconiano ndash ou seja colocar o saber a serviccedilo da dominaccedilatildeo da natureza e utilizaacute-la para melhorar a sorte da humanidade ndash natildeo contou desde as origens na sua execuccedilatildeo capitalista com a racionalidade e a retidatildeo que lhe seriam adequadas poreacutem sua dinacircmica de ecircxito que conduz obrigatoriamente aos excessos de produccedilatildeo e consumo teria subjugado qualquer sociedade considerando-se a breve escala de tempo dos objetivos humanos e a imprevisibilidade real das dimensotildees do ecircxito (uma vez que nenhuma sociedade se compotildee de saacutebios) (JONAS 2006 p 235)

Jonas atenta aos perigos existentes na civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica e utilitaacuteria onde partimos do pressuposto de que a teacutecnica moderna eacute indispensaacutevel para a sociedade e que sobretudo eacute nela que encontraremos o triunfo (o que o filoacutesofo denomina de ecircxito) Nessa perspectiva ele afirma que ldquoa ameaccedila de cataacutestrofe do ideal baconiano de dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica reside portanto na magnitude do seu ecircxito Esse ecircxito tem dois aspectos econocircmico e bioloacutegicordquo (2006 p 235) O ecircxito econocircmico resultaria no esgotamento dos recursos naturais atraveacutes do aumento da produccedilatildeo de bens e diminuiccedilatildeo do dispecircndio do trabalho humano enquanto que o bioloacutegico consistiria em um aumento exponencial da populaccedilatildeo

Dito isso a partir da ambivalecircncia do ecircxito presente no ideal baconiano podemos fazer um contraponto com a implementaccedilatildeo das poliacuteticas voltadas para a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu Natildeo estariam inseridas nesta loacutegica as poliacuteticas puacuteblicas que surgiram para impulsionar a Revoluccedilatildeo Verde Nesse contexto percebemos um forte crescimento de produtividade na agricultura atraveacutes da utilizaccedilatildeo de novas tecnologias oriundas da ideia de modernizar o campo aumentando assim a visibilidade das empresas multinacionais e diminuindo as atividades de subsistecircncia (ldquoecircxito econocircmicordquo) Do mesmo modo constatamos o aumento populacional em certas comunidades como mostrado anteriormente onde antes

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

257

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

havia 50 moradores apoacutes a instalaccedilatildeo das multinacionais a populaccedilatildeo da comunidade aumentou para 500 moradores (ldquoecircxito bioloacutegicordquo) Isso posto e respondendo agrave pergunta anterior podemos afirmar que de certo modo essas poliacuteticas que surgem com vistas agrave modernizaccedilatildeo do campo estatildeo inseridas nesta ambiguidade do ecircxito colocada por Hans Jonas quando pensamos no ideal baconiano de um lado o econocircmico com a maior produtividade e menor dispecircndio do trabalho do outro o bioloacutegico com o aumento populacional

Outra relaccedilatildeo que podemos evidenciar levando em conta este cenaacuterio utilitaacuterio advindo da modernizaccedilatildeo da agricultura eacute a questatildeo da alimentaccedilatildeo Citando a utoacutepica ldquoreconstruccedilatildeo da naturezardquo pensada por Bloch Jonas afirma que

[] por causa do seu ecircxito bioloacutegico e do seu crescimento irresistiacutevel a humanidade se vecirc forccedilada a adicionar produtos quiacutemicos agrave camada produtiva da crosta terrestre [] As tecnologias agraacuterias de maximizaccedilatildeo tecircm impactos cumulativos sobre a natureza que mal comeccedilaram a revelar-se em acircmbito local por exemplo na poluiccedilatildeo quiacutemica dos recursos hiacutedricos e das aacuteguas costeiras (para o que contribuem tambeacutem as induacutestrias) com efeitos nocivos transmitidos pela cadeia alimentar A salinizaccedilatildeo dos solos pela irrigaccedilatildeo constante a erosatildeo provocada pela aragem dos campos [] (JONAS 2006 p 302)

Historicamente eacute sabido que a proposta da eacutetica jonasiana deu cabida a muitos movimentos ecologistas no final do seacuteculo passado inclusive orientando as diretrizes do Partido Verde na Alemanha a partir dos anos noventa Mas tambeacutem eacute fato que Jonas ao duvidar das apostas nas tecnologias modernas com o uso de fertilizantes agrotoacutexicos e o cultivo da monocultura para o crescimento a qualquer custo tambeacutem coloca em crise os ideais surgidos na Revoluccedilatildeo Verde Nesse mesmo sentido quando indagado sobre a questatildeo socioambiental e do progresso na agricultura familiar e no agronegoacutecio o entrevistado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu argumenta

Tanto os agricultores familiares precisam ainda lidar com a questatildeo socioambiental como tambeacutem as empresas que estatildeo no municiacutepio Haacute empresas que trabalhavam com a pulverizaccedilatildeo aeacuterea atraveacutes de aviotildees e envenenaram rios plantaccedilotildees houve mortandade de peixes e com isso foram feitas denuacutencias ao IDEMA ndash que eacute o oacutergatildeo de meio ambiente estadual ao IBAMA Tecircm empresas que foram multadas em vaacuterios milhotildees de reais e estatildeo procurando se adequar ao meio ambiente para prejudicar menos Tambeacutem podemos abordar a questatildeo do progresso cientiacutefico (Entrevistado A)

A visatildeo de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico aliada ao desenvolvimento presente na modernidade acaba mascarando os efeitos desastrosos da tecnificaccedilatildeo em escala planetaacuteria O discurso de um crescente bem-estar (tanto social quanto econocircmico) faz-nos acreditar que soacute existe uma uacutenica via a ser seguida que eacute a do desenvolvimento Poreacutem essa falsa sensaccedilatildeo eclipsa o pensar que questiona a teacutecnica e a sua relaccedilatildeo com a sociedade na atualidade

Ainda dentro da ameaccedila do ideal baconiano exposto por Jonas outro aspecto relevante e que merece destaque aqui eacute a questatildeo da dominaccedilatildeo da natureza a partir da teacutecnica moderna Jonas (2006 p 236) considera que na ldquodialeacutetica do poder sobre a natureza e a compulsatildeo de exercecirc-lardquo o poder tornou-se crucial nesta relaccedilatildeo Assim ele afirma

A foacutermula baconiana afirma que saber eacute poder Mas eacute o proacuteprio programa baconiano que no aacutepice do triunfo revela-se insuficiente com a sua contradiccedilatildeo intriacutenseca ou seja o descontrole sobre si mesmo mostrando-se incapaz de proteger o homem de si mesmo e a natureza do homem (2006 p 236)

A partir desta dialeacutetica estabelecida entre poder teacutecnica moderna e sua relaccedilatildeo com o homem e a proacutepria natureza Jonas afirma que tanto o homem quanto a natureza precisam de proteccedilatildeo quando se pensa na magnitude do poder que o progresso cientiacutefico alcanccedilou Pensamento semelhante jaacute havia sido

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

258

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

propagado tambeacutem por Marcuse (1982) quando nos anos sessenta do seacuteculo passado afirmava a unidimensionalidade da condiccedilatildeo humana advinda da teacutecnica moderna Esse poder eacute caracterizado pela necessidade do uso crescente da teacutecnica conduzindo o homem a uma incapacidade de frear o contiacutenuo progresso muito embora ele (o homem) insista em acreditar que a natureza eacute apenas um objeto de exploraccedilatildeo e estaacute disponiacutevel para atender meramente agrave sua vontade

Aleacutem desta problemaacutetica do progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico colocado por Jonas podemos tambeacutem fazer uma relaccedilatildeo entre as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade e o municiacutepio de Ipanguaccedilu Tal como jaacute salientamos anteriormente o primeiro aspecto a destacar desde a eacutetica jonasiana eacute o dever do homem perante a biosfera como dever responsaacutevel garantindo tanto a preservaccedilatildeo do presente quanto do futuro da humanidade e da natureza Portanto neste aspecto haveriacuteamos de indagar ateacute que ponto a agricultura familiar na regiatildeo de Ipanguaccedilu torna vaacutelido esse dever e se o mesmo procede com o agronegoacutecio Como dito anteriormente o agronegoacutecio visa agrave monocultura e agrave modernizaccedilatildeo da agricultura ou seja as atividades agriacutecolas satildeo baseadas no controle teacutecnico da terra gerando uma maior produccedilatildeo que garante a exportaccedilatildeo e o investimento no mercado interno visando ao lucro Do outro lado estaacute a agricultura familiar tendo como principal caracteriacutestica o cultivo de subsistecircncia Podemos observar que no primeiro exemplo a natureza eacute vista como um objeto de lucro enquanto que no segundo ela eacute vista como um ldquoobjetordquo de responsabilidade E eacute no contexto do segundo exemplo que se insere o sentido do ldquodever serrdquo tal como observa Jonas Poreacutem o que ocorre eacute que na atualidade as atividades desenvolvidas pelas multinacionais do agronegoacutecio em Ipanguaccedilu eacute que vecircm merecendo lugar de destaque no cenaacuterio das poliacuteticas puacuteblicas locais

Consideraccedilotildees Finais

Do exposto ateacute aqui fica expliacutecito que eacute necessaacuterio um olhar criacutetico sobre a problemaacutetica existente do paradigma cientiacutefico e tecnoloacutegico presente na modernidade que impele tudo ao progresso e ao desenvolvimento Do mesmo modo tambeacutem eacute preciso refletir sobre como tratamos a realidade e o contexto cultural local visto que natildeo podem ser marginalizados em prol do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico e econocircmico global Observando o sentido do desenvolvimento neste contexto Lisboa argumenta

O desenvolvimento comporta em si mesmo o subdesenvolvimento O padratildeo mimeacutetico do desenvolvimento fundado no estilo ocidental de vida com altos niacuteveis de consumo e desperdiacutecio tem cegado os povos do terceiro mundo os impedindo de se encontrar com sua identidade Ora um povo privado de sua identidade natildeo eacute capaz de se autodeterminar (LISBOA 1996 p 7)

Apesar de a instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo de Ipanguaccedilu ter reduzido a diversidade da regiatildeo atraveacutes do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico o pouco que haacute da praacutetica da agricultura familiar ainda insiste em preservar a relaccedilatildeo essencial com a terra e com tradiccedilotildees culturais Nela se vecirc refletido o princiacutepio eacutetico da responsabilidade de Hans Jonas onde haacute a preocupaccedilatildeo do cuidado com o lugar onde vivem para que as futuras geraccedilotildees possam viver de forma sustentaacutevel Na agricultura familiar tambeacutem se torna visiacutevel a temeridade e a relaccedilatildeo do ser teacutecnico com a prudecircncia onde os valores estatildeo na biosfera e natildeo na utilidade do fazer antropocecircntrico e egoiacutesta da condiccedilatildeo humana de estar no mundo

Insistir na permanecircncia desta praacutetica eacute insistir na participaccedilatildeo direta ativa e democraacutetica dos agricultores na formulaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e nos projetos voltados para a agricultura Pois se no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia tambeacutem estaacute inserida a dimensatildeo social entatildeo a implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia deve ser decidida pelos atores sociais nela implicados (MIRANDA 2012 p 181-182) Dessa forma eacute no espaccedilo puacuteblico de debate com a populaccedilatildeo diretamente afetada pelas implementaccedilotildees tecnocientiacuteficas que construiacutemos esta praacutetica democraacutetica e participativa frente agrave ciecircncia e agrave tecnologia eliminando assim a violecircncia contra a cultura local tal como situa Shiva

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

259

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

O primeiro plano da violecircncia desencadeada contra os sistemas locais de saber eacute natildeo consideraacute-los um saber A invisibilidade eacute a primeira razatildeo pela qual os sistemas locais entram em colapso antes de serem testados e comprovados pelo confronto com o saber dominante do Ocidente A proacutepria distacircncia elimina os sistemas locais da percepccedilatildeo Quando o saber local aparece de fato no campo da visatildeo globalizadora fazem com que desapareccedila negando-lhe o status de um saber sistemaacutetico e atribuindo-lhe os adjetivos de primitivo e anticientiacutefico (SHIVA 2003 p 22-23)

Portanto tal como ensina Shiva para que haja inclusatildeo e um processo democraacutetico na participaccedilatildeo puacuteblica voltada para a ciecircncia e para a tecnologia eacute preciso que a visatildeo globalizante da tecnificaccedilatildeo e da cientifizaccedilatildeo natildeo anule o conhecimento local com a justificativa de que eles natildeo satildeo cientiacuteficos O saber local e as praacuteticas culturais dos agricultores devem ser levados em consideraccedilatildeo nesses processos de implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de garantir o empoderamento dos atores sociais neles implicados

Ora que liccedilotildees podemos extrair destas constataccedilotildees se vincularmos ao agir eacutetico Agrave luz das teses apresentadas por Hans Jonas apontamos alguns caminhos (i) Que eacute necessaacuterio pensar numa eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica e instrumental abrangendo uma nova dimensatildeo a responsabilidade (ii) Que tal modelo de eacutetica seja capaz de resgatar o conceito de temeridade e a relaccedilatildeo da teacutecnica natildeo somente com a eficiecircncia mas tambeacutem com a prudecircncia (iii) Que eacute fundamental retomar o sentido originaacuterio da eacutetica como cuidado o cuidar do lugar onde se vive (BOFF 1999 MIRANDA 2012)

Em outros termos o questionamento diante da teacutecnica e da ciecircncia levando em consideraccedilatildeo o acircmbito da eacutetica e das poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode estar inserido meramente na dimensatildeo instrumental e antropoloacutegica Trata-se antes de tudo de uma fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da natureza e da condiccedilatildeo humana levando em conta o princiacutepio responsabilidade definido pela eacutetica jonasiana

A justificativa de uma tal eacutetica que natildeo mais se restringe ao terreno imediatamente intersubjetivo da contemporaneidade deve estender-se ateacute a metafiacutesica pois soacute ela permite que se pergunte por que afinal homens devem estar no mundo portanto por que o imperativo incondicional destina-se a assegurar-lhes a existecircncia no futuro A aventura da tecnologia impotildee com seus riscos extremos o risco da reflexatildeo extrema (JONAS 2006 p 22)

Desta forma e diante da insuficiecircncia constatada por Jonas da eacutetica tradicional em propor saiacutedas frente aos novos dilemas eacuteticos pautados pela sociedade tecnocientiacutefica eacute proposta deste estudo pensar um novo agir humano baseado na responsabilidade inclusive no acircmbito da implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de pensar saiacutedas que sejam capazes de ultrapassar as barreiras do discurso desenvolvimentista e por conseguinte determinista da tecnologia e da neutralidade cientiacutefica que ainda persistem e insistem em orientar as praacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na sociedade atual Afinal como diz Miranda com base nos estudos de Jasanoff (1995)

a ciecircncia deveria ter uma funccedilatildeo poliacutetica na medida em que tambeacutem avalia e revisa o estado do conhecimento cientiacutefico e sua aplicabilidade praacutetica Assim diante de programas de controle ambiental por exemplo mais que simplesmente aplicar certo tipo de conhecimento cientiacutefico aparentemente desinteressado neutro o papel da ciecircncia deveria ser tambeacutem eacutetico-poliacutetico no sentido de avaliar suas implicaccedilotildees sociais poliacuteticas culturais etc (MIRANDA 2012 p 181)

Em suma a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no municiacutepio de Ipanguaccedilu ensina-nos que no cenaacuterio da instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo impulsionadas por poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas supostamente de cunho desenvolvimentista e que correspondem ao ideal progressista cujo agir eacute meramente utilitaacuterio e de exploraccedilatildeo da natureza visando cada vez mais ao lucro a eacutetica da responsabilidade pode ser a criacutetica e o

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

260

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

norte de uma nova forma de agir Desde sua criacutetica tambeacutem eacute possiacutevel formular poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas que levem em conta os atores sociais nelas implicados tornando o processo democraacutetico e natildeo somente tecnocraacutetico Por outro lado e considerando o cenaacuterio da agricultura familiar e dos agricultores que ali vivem e lidam com a terra a eacutetica da responsabilidade surge como forma de corroborar com suas praacuteticas como a accedilatildeo eacutetica que visa ao cuidado com o lugar onde vivem pois eles (os agricultores) natildeo satildeo apenas ldquodonosrdquo da terra mas ocupam e essencializam a terra atraveacutes da relaccedilatildeo de cuidado e de prudecircncia no ato de cultivar a terra

Eacute a partir desta constataccedilatildeo que apresentamos a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas como uma eacutetica possiacutevel de ser aplicada nesse contexto de aparente dualidade entre a agricultura familiar e o agronegoacutecio Levando em conta as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade como o conceito da responsabilidade e do ideal utoacutepico do progresso cientiacutefico tecnoloacutegico a relaccedilatildeo com o meio ambiente e com a terra concluiacutemos que urge pensar sua aplicaccedilatildeo tambeacutem no campo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas A sua utilizaccedilatildeo no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia torna-se necessaacuteria no atual contexto da modernizaccedilatildeo em que estatildeo submetidos grupos sociais comunidades e povos inteiros E ainda que guardados seus devidos limites (MIRANDA 2012 p 143) a responsabilidade eacute um princiacutepio eacutetico que pode contribuir para nortear as accedilotildees tecnocientiacuteficas rumo agrave uma sociedade mais sustentaacutevel e equilibrada

Referecircncias

AGEcircNCIA Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba (AESA) Comitecircs Piranhas-Accedilu apresentaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwaesapbgovbrcomitespiranhasacu Acesso em 23 ago 2015

ALBANO Gleydson SAacute Alcindo Poliacuteticas puacuteblicas e globalizaccedilatildeo da agricultura no Vale do Accedilu-RN Revista de Geografia Recife UFPE ndash DCGNAPA v 25 n 2 maiago 2008

APEL Karl-Otto Estudos de moral moderna Petroacutepolis Vozes 2000

BECK Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Traduccedilatildeo original do alematildeo de Sebastiatildeo Nascimento Satildeo Paulo Editora 34 2010

BOFF Leonardo Saber cuidar eacutetica do humano Petroacutepolis Vozes 1999

HEIDEGGER Martin A questatildeo da teacutecnica Ensaios e conferecircncias I Traduzido por Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan Fode Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes Braganccedila Paulista Ed Universitaacuteria Satildeo Francisco 2012

HERRERA Amiacutelcar O Los determinantes sociales de la poliacutetica cientiacutefica en Ameacuterica Latina Poliacutetica cientiacutefica expliacutecita y poliacutetica cientiacutefica impliacutecita Argentina Redes v 2 1995

INSTITUTO Brasileiro de Geografia E Estatiacutestica (IBGE) Censo Demograacutefico 2000 sinopse ndash Rio Grande do Norte ndash Ipanguaccedilu Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtras temasphplang=ampcodmun=240470ampidtema=1ampsearch=rio-grande-do-norte|ipanguacu|censo-demografico-2010-sinopse- Acesso em 14 ago 2015

JASANOFF S Procedural choices in regulatory science Technology in Society 17 1995 httpsdoiorg1010160160-791x(95)00011-f

JONAS Hans O princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Rio de Janeiro Contraponto 2006

JONAS Hans Teacutecnica medicina y eacutetica Sobre la praacutectica del principio de la responsabilidad Barcelona Paidoacutes 1997

LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001

LISBOA Armando de Melo Desenvolvimento uma ideia subdesenvolvida Cadernos do CEAS Salvador n 161 1996

MARCUSE Herbert A ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional Rio de Janeiro Jorge Zahar 1982

MIRANDA A L iquestUna eacutetica para la civilizacioacuten tecnoloacutegica Posibilidades y liacutemites del principio de la responsabilidad de Hans Jonas AlemanhaEspanha Lap LambertEAE 2012

MORIN E Ciecircncia com consciecircncia Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005

SERRES Michel Le contrat natural Paris Flammarion 1992

SHIVA Vandana AZEVEDO Dinah de Abreu Monoculturas da mente perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia Satildeo Paulo Gaia 2003

SIQUEIRA JE Hans Jonas e a eacutetica da responsabilidade Mundo Sauacutede 1999

WEBCARTA Mapa do Rio Grande do Norte Disponiacutevel em webcartanetcartamapaphpid=244amplg=pt Acesso em 26 ago 2015

WOLIN Richard Heideggerrsquos children Hannah Arendt Karl Loumlwith Hans Jonas y Herbert Marcuse Princepton Princepton University Press 2001

ZANCANARO L O conceito de responsabilidade em Hans Jonas CampinasSP Ed UNICAMP 1998

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Page 4: O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail: angelamiranda@ect@ufrn.br. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

247

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

documentos (IBGE 2010 AESA 2015 etc) anaacutelises complementares (HERRERA 1995 LISBOA 1996) e estudos sobre a regiatildeo (ALBANO 2008)

A eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas

Antes de abordar o que a eacutetica da responsabilidade proposta por Hans Jonas representa no contexto da nossa sociedade tecnoloacutegica eacute necessaacuterio entender em qual cenaacuterio ela surge A partir disso compreenderemos de forma mais expliacutecita o seu propoacutesito e suas principais caracteriacutesticas

O filoacutesofo Hans Jonas (1903-1993) nasceu em Moumlnchengladbach na Alemanha Foi aluno de Martin Heidegger na Universidade de Freiburg (1920) onde este foi por muito tempo o seu mentor intelectual (WOLIN 2001) Apoacutes a ascensatildeo do nazismo ao poder por ser de origem judaica Jonas partiu da Alemanha e viveu na Inglaterra na Palestina e nos Estados Unidos O filoacutesofo presenciou e vivenciou as consequecircncias da ascensatildeo do Nazismo a Primeira e a Segunda Guerra e o papel crucial que a tecnologia desempenhou nesse contexto Dessa forma principalmente apoacutes as bombas atocircmicas na Segunda Guerra Mundial e do seu efeito devastador agrave populaccedilatildeo e ao meio ambiente surge a preocupaccedilatildeo e a reflexatildeo de Jonas sobre a dimensatildeo que a tecnologia moderna estava ocupando na sociedade (MIRANDA 2012 p 72)

Diante deste panorama Jonas (2006 1997) constata que a teacutecnica e a ciecircncia atingiram um notaacutevel espaccedilo na sociedade ao mesmo tempo em que tambeacutem revelaram seu caraacuteter ameaccedilador para a vida na terra Logo a tecnologia natildeo eacute neutra e dada a sua importacircncia e sua profunda interaccedilatildeo com a sociedade e com o meio ambiente ela possui um caraacuteter eminentemente eacutetico Eacute nesse sentido que Hans Jonas propotildee o princiacutepio da responsabilidade como um modelo de eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Publicada pela primeira vez no ano de 1979 a tese central desta obra eacute a proposta de um novo modelo de eacutetica que seja capaz de englobar o importante papel que a tecnologia moderna possui na sociedade tecnoloacutegica Um modelo de eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica capaz de ir aleacutem das molduras das eacuteticas anteriores posto que estas jaacute natildeo satildeo mais capazes de abarcar as consequecircncias da tecnologia tal como observa o proacuteprio Hans Jonas (2006)

Mas para compreender em sua totalidade a eacutetica da responsabilidade eacute necessaacuterio entender porque Jonas afirma que a eacutetica tradicional jaacute natildeo consegue abranger a tecnologia moderna Tambeacutem eacute importante entender o que o filoacutesofo define como responsabilidade e suas caracteriacutesticas principais Abordaremos este assunto a seguir com base em trecircs aspectos

A insuficiecircncia da eacutetica tradicional diante do que eacute demandado eticamente pela

tecnologia moderna

O conceito de responsabilidade para Jonas

As principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade

A insuficiecircncia da eacutetica tradicional diante do que eacute demandado eticamente pela tecnologia

moderna

Observa Hans Jonas que de modo geral os modelos de eacutetica herdados pela tradiccedilatildeo ocidental se embasam na neutralidade tecnoloacutegica e no antropocentrismo onde o ser humano eacute o centro e o fim uacuteltimo da accedilatildeo eacutetica Aleacutem disso tratam-se de modelos de eacuteticas presentistas que se relacionam apenas com o agora e natildeo se preocupam ou natildeo levam em conta o futuro Mostrando que tais modelos de eacutetica jaacute natildeo satildeo mais suficientes frente ao cenaacuterio tecnificado da sociedade atual Jonas (2006) elenca algumas caracteriacutesticas da eacutetica ateacute o momento presente com o intuito de demonstrar a necessidade de um novo modelo de eacutetica capaz de fazer frente aos desafios da sociedade tecnocientiacutefica Satildeo elas

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

248

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

i) A primeira caracteriacutestica dos modelos de eacutetica herdados da tradiccedilatildeo ocidental eacute a neutralidade na esfera do domiacutenio da teacutecnica (techne) Fazendo uma comparaccedilatildeo com as caracteriacutesticas do agir humano do passado e levando em conta a eacutetica tradicional Jonas (2006 p 35) observa que a ldquotechne como atividade compreendia-se a si mesma como um tributo determinado pela necessidade e natildeo como um progresso que se autojustifica como fim preciacutepuo da humanidaderdquo Aqui nota-se que a dimensatildeo eacutetica natildeo estaacute circunscrita ao acircmbito dos objetos Dessa forma natildeo constitui uma vinculaccedilatildeo da prudecircncia na relaccedilatildeo homem-teacutecnica no mundo extra-humano

ii) A segunda caracteriacutestica evidencia o caraacuteter antropocecircntrico da eacutetica tradicional quando Jonas (2006 p 35) afirma referindo-se aos modelos das eacuteticas anteriores ldquoA significaccedilatildeo eacutetica dizia respeito ao relacionamento direto de homem com homem inclusive o de cada homem consigo mesmo toda eacutetica tradicional eacute antropocecircntricardquo Ou seja a accedilatildeo eacutetica estaacute circunscrita no acircmbito tatildeo somente da relaccedilatildeo entre seres humanos A propoacutesito o importante estudo de Michel Serres intitulado ldquoO Contrato Naturalrdquo (1992) tambeacutem evidencia este aspecto da eacutetica tradicional

iii) Outro caraacuteter da eacutetica tradicional diz respeito agrave accedilatildeo imediata Ou seja o paracircmetro de avaliaccedilatildeo do efeito da accedilatildeo eacute apenas o momento presente natildeo levando em consideraccedilatildeo o futuro Assim esclarece Hans Jonas

O bem e o mal com o qual o agir tinha de se preocupar evidenciavam-se na accedilatildeo seja na proacutepria praacutexis ou em seu alcance imediato e natildeo requeriam um planejamento de longo prazo[] O alcance efetivo da accedilatildeo era pequeno o intervalo de tempo para previsatildeo definiccedilatildeo de objetivo e imputabilidade era curto e limitado o controle sobre as circunstacircncias O comportamento correto possuiacutea seus criteacuterios imediatos e sua consecuccedilatildeo quase imediata O longo trajeto das consequecircncias ficava ao criteacuterio do acaso do destino ou da providecircncia Por conseguinte a eacutetica tinha a ver com o aqui e o agora (JONAS 2006 p 35-36)

Com base nestas caracteriacutesticas da eacutetica tradicional e frente agraves demandas do mundo tecnificado pela accedilatildeo do homem Jonas defende pois a necessidade de elaborar um modelo de eacutetica que seja capaz de suplantar a insuficiecircncias da eacutetica tradicional Assim ele justifica

A teacutecnica moderna introduziu accedilotildees de uma tal ordem ineacutedita de grandeza com tais novos objetos e consequecircncias que a moldura da eacutetica antiga natildeo consegue mais enquadraacute-las [] Isso impotildee agrave eacutetica pela enormidade de suas forccedilas uma nova dimensatildeo nunca antes sonhada de responsabilidade (JONAS 2006 p 39)

Aqui fica evidente a necessidade de um novo agir do homem um agir que natildeo estaacute circunscrito somente agrave relaccedilatildeo do homem com o proacuteprio homem reforccedilando o modelo meramente antropocecircntrico de eacutetica mas um agir que alcance o biocecircntrico isto eacute fundado na responsabilidade para com todos os seres e as geraccedilotildees futuras Mas o que eacute entendido aqui como responsabilidade E mais porque devemos situaacute-la como uma nova dimensatildeo da eacutetica Para esclarecer melhor esses questionamentos abordaremos o item a seguir

O conceito de responsabilidade para Jonas

A responsabilidade para Jonas eacute entendida como aquela accedilatildeo que se projeta tanto no presente como no futuro Do ponto de vista da civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica e seus dilemas eacuteticos trata-se da accedilatildeo diretamente incorporada ao progresso tecnoloacutegico e ao sentido do ldquopoder como deverrdquo (e natildeo ao contraacuterio tal como dizia Kant) Assim esclarece o filoacutesofo

Responsabilidade eacute o cuidado reconhecido como obrigaccedilatildeo em relaccedilatildeo a outro ser que se torna ldquopreocupaccedilatildeordquo quando haacute uma ameaccedila agrave sua vulnerabilidade Mas o medo estaacute presente na questatildeo original com a qual podemos imaginar se inicie

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

249

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

qualquer responsabilidade ativa o que pode acontecer a ele se eu natildeo assumir a responsabilidade por ele Quanto mais obscura a resposta maior se delineia a responsabilidade Quanto mais no futuro longiacutenquo situa-se aquilo que se teme quanto mais distante do nosso bem-estar ou mal-estar quanto menos familiar for o seu gecircnero mais necessitam ser diligentemente mobilizadas a lucidez da imaginaccedilatildeo e a sensibilidade dos sentidos Torna-se necessaacuteria uma heuriacutestica do medo capaz de investigar que natildeo soacute descubra e represente o novo objeto como tal mas que tome conhecimento do interesse moral particular ao ser interpelado pelo objeto (JONAS 2006 p 352 grifo nosso)

Portanto o conceito de responsabilidade para Jonas diz respeito ao cuidado com o outro ser que dada a ameaccedila de sua vulnerabilidade converte-se em pre-ocupaccedilatildeo diante da condiccedilatildeo humana de poder cuidar (MIRANDA 2012 p 82 e ss) A responsabilidade eacute o valor que deve reger a accedilatildeo praacutetica segundo Jonas Desse modo a accedilatildeo (como um agir moral) deve possuir como aspecto essencial o cuidado como obrigaccedilatildeo levando em conta a permanecircncia das futuras geraccedilotildees no planeta frente aos desafios enfrentados pela sociedade tecnocientiacutefica

Ainda na perspectiva da accedilatildeo eacutetica e levando em consideraccedilatildeo as futuras geraccedilotildees observa Jonas que a accedilatildeo humana potencialmente tecnificada pode prejudicar irreversivelmente a natureza e o proacuteprio homem A partir daiacute aparece um novo tipo de verdade como objeto do saber cientiacutefico a verdade que consiste nas condiccedilotildees futuras do homem e da natureza a verdade que deve natildeo somente diagnosticar mas tambeacutem prognosticar Neste sentido Jonas argumenta

Portanto esse saber real e eventual relativo agrave esfera dos fatos (que continua sendo teoacuterico) situa-se entre o saber ideal da doutrina eacutetica dos princiacutepios e o saber praacutetico relacionado agrave utilizaccedilatildeo poliacutetica o qual soacute pode operar com os seus diagnoacutesticos hipoteacuteticos relativos ao que se deve esperar ao que se deve incentivar ou ao que se deve evitar Haacute de se formar uma ciecircncia da previsatildeo hipoteacutetica uma ldquofuturologia comparativardquo (JONAS 2006 p 70)

Eacute nesse sentido que Jonas modifica o imperativo kantiano ateacute entatildeo predominante como modelo tradicional de eacutetica invertendo-o

Esse novo imperativo ldquoage de tal forma que os efeitos de suas accedilotildees sejam compatiacuteveis com a permanecircncia de uma vida humana autecircnticardquo ou formulando negativamente ldquonatildeo ponha em risco a continuidade indefinida da humanidade na Terrardquo vem substituir o imperativo kantiano ldquoage de tal forma que o princiacutepio da tua accedilatildeo se transforme numa lei universalrdquo (JONAS 2006 p 18)

Ao formular um novo imperativo eacutetico transformando-o em seu princiacutepio da responsabilidade Jonas atenta natildeo apenas para a destruiccedilatildeo fiacutesica da humanidade e da biosfera mas tambeacutem para o resgate essencial da relaccedilatildeo entre o ser teacutecnico e a natureza Segundo Miranda (2012 p 83) o imperativo eacutetico jonasiano da responsabilidade possui uma nova fundamentaccedilatildeo que eacute o sentido ontoloacutegico o que eacute levado em consideraccedilatildeo natildeo eacute apenas o fazer utilitarista mas essencialmente o ser Trata-se do caraacuteter metafiacutesico da eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas ou da fundamentaccedilatildeo metafiacutesica do agir eacutetico baseado na responsabilidade

Em siacutentese para Jonas os mandamentos da eacutetica tradicional estabelecidos por Kant Bentham Mill e outros filoacutesofos estatildeo direcionados agraves relaccedilotildees e agraves accedilotildees imediatas do ser humano e que natildeo se preocupam com o futuro ou a continuidade da vida no planeta de um modo geral (ZANCANARO 1998 p 09) Poreacutem para que haja responsabilidade eacute necessaacuterio existir uma consciecircncia criacutetica perante as consequecircncias advindas da aplicaccedilatildeo da ciecircncia e da tecnologia na sociedade

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

250

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

No entanto Jonas (2006 p 18) afirma que o imperativo tecnoloacutegico elimina a consciecircncia o sujeito e a liberdade em prol de um determinismo Ou seja o sujeito torna-se alienado agrave proacutepria ciecircncia e agrave tecnologia Do mesmo modo sobre o pensamento cientiacutefico Edgar Morin adverte

O pensamento cientiacutefico eacute ainda incapaz de se pensar de pensar sua proacutepria ambivalecircncia e sua proacutepria aventura A ciecircncia deve reatar com a reflexatildeo filosoacutefica como a filosofia cujos moinhos giram vazios por natildeo moer os gratildeos dos conhecimentos empiacutericos deve reatar com as ciecircncias A ciecircncia deve reatar com a consciecircncia poliacutetica e eacutetica (MORIN 2005 p 11)

Tambeacutem nesse sentido Ulrick Beck ao analisar o que ele denomina ldquoa sociedade do risco globalrdquo entende que a ciecircncia jaacute natildeo pode levar consigo a ideia de neutralidade mas sim a criticidade e a reflexatildeo quanto ao seu uso Assim ele argumenta

Na passagem para a praacutexis as ciecircncias satildeo agora confrontadas com a objetivaccedilatildeo de seu proacuteprio passado e presente consigo mesmas como produto e produtora da realidade e de problemas que cabe a elas analisar e superar Desse modo elas jaacute natildeo satildeo vistas apenas como manancial de soluccedilotildees para os problemas mas ao mesmo tempo tambeacutem como manancial de causas de problemas[] e por paradoxal que pareccedila num mundo jaacute loteado cientificamente e profissionalmente administrado as perspectivas de futuro e as oportunidades de expansatildeo da ciecircncia estatildeo vinculadas tambeacutem agrave criacutetica da ciecircncia (BECK 2010 p 236)

Esclarecido o conceito de responsabilidade dentro da eacutetica proposta por Hans Jonas e problematizada a accedilatildeo humana tecnificada no contexto da sociedade tecnocientiacutefica torna-se mister elencar as principais caracteriacutesticas que norteiam a eacutetica da responsabilidade tal como abordaremos a seguir

As principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade

Uma das caracteriacutesticas principais da eacutetica da responsabilidade proposta por Jonas eacute a questatildeo do dever para com a biosfera Mas em que consiste esse dever ldquoO dever do homem consiste em preservar este mundo fiacutesico de modo que as condiccedilotildees para tal presenccedila continuem ilesas ou intocadas ou seja proteger a vulnerabilidade do mundo que habitamos diante das ameaccedilasrdquo (JONAS 2006 p 45) Ou seja o dever estaacute incorporado ao conceito de responsabilidade e do cuidado com a biosfera levando em consideraccedilatildeo a previsibilidade da accedilatildeo teacutecnica

Para deixar mais expliacutecito em que consiste esse dever Jonas identifica-o a partir de distintos estaacutegios O primeiro dever ldquoconsiste em visualizar os efeitos a longo prazo estimar as consequecircncias dos atos natildeo soacute na sociedade mas tambeacutem no meio ambiente na naturezardquo (JONAS 2006 p 72) Ou seja aleacutem de precisar existir uma estimativa de consequecircncias dos atos humanos baseada no futuro esta previsatildeo natildeo pode vincular apenas o aspecto antropoloacutegico mas tambeacutem a natureza Jaacute o segundo dever ldquoconsiste em [] utilizar o medo dessas consequecircncias para estimular o respeito agrave vida humana e extra-humana Para isso basta lembrar o quatildeo as invenccedilotildees do homem podem ser imprevisiacuteveisrdquo (JONAS 2006 p 73) O medo aqui aparece como fator de prevenccedilatildeo principalmente para preservar as futuras geraccedilotildees A partir disso Jonas aponta para uma heuriacutestica do temor afirmando que se torna necessaacuterio o prognoacutestico e a temeridade em relaccedilatildeo agraves possiacuteveis consequecircncias catastroacuteficas do saber cientiacutefico e tecnoloacutegico aplicado perante a biosfera ou seja ldquoo saber origina-se daquilo contra o que devemos nos protegerrdquo (JONAS 2006 p 71)

Poreacutem Jonas conclui que esse temor que serve para que possamos refletir prever e prevenir as futuras consequecircncias catastroacuteficas natildeo eacute o mesmo medo que nos deixa paralisados

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

251

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Os homens experientes sabem que um dia podem desejar natildeo ter agido desta ou daquela forma O medo de que falo natildeo se refere a esse tipo de incerteza ou ele pode estar presente apenas como um efeito secundaacuterio Com efeito eacute uma das condiccedilotildees da accedilatildeo responsaacutevel natildeo se deixar deter por esse tipo de incerteza assumindo-se ao contraacuterio a responsabilidade pelo desconhecido dado o caraacuteter incerto da esperanccedila isso eacute o que chamamos de ldquocoragem para assumir a responsabilidaderdquo O medo que faz parte da responsabilidade natildeo eacute aquele que nos aconselha a natildeo agir mas aquele que nos convida a agir Trata-se de um medo que tem a ver com o objeto da responsabilidade (JONAS 2006 p 351)

Dessa forma a heuriacutestica do temor aponta para uma eacutetica baseada em antecipar os efeitos futuros e nos fazer agir de maneira mais prudente em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia Nesse sentido Miranda interpretando o sentido jonasiano de eacutetica afirma

[] podemos formular os deveres preliminares de uma eacutetica orientada para o futuro que satildeo buscar a representaccedilatildeo dos efeitos remotos pois somente o que eacute temido pode ser evitado por sua representaccedilatildeo e buscar o temor mediante a apelaccedilatildeo a um sentimento apropriado que o representa (MIRANDA 2012 p 81)

Podemos concluir portanto que a eacutetica da responsabilidade proposta por Hans Jonas eacute um modelo que pensado para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica leva em conta a biosfera a permanecircncia das futuras geraccedilotildees no planeta resgatando a ideia do cuidado do lugar onde se vive em meio aos desafios enfrentados pela sociedade tecnocientiacutefica E eacute a partir desses conceitos que a seguir abordaremos ilustrativamente a aplicaccedilatildeo (ou a ausecircncia) da responsabilidade na implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia dada uma situaccedilatildeo concreta que pertence ao local desde onde falamos e pensamos este trabalho

A aplicaccedilatildeo do princiacutepio responsabilidade de Hans Jonas numa situaccedilatildeo concreta o caso de

IpanguaccediluRN

Sobre a praacutetica do princiacutepio da responsabilidade Jonas escreveu uma obra muito interessante intitulada ldquoTeacutecnica medicina e eacuteticardquo (1997) Naquela oportunidade ele procurou estabelecer a relaccedilatildeo entre a teacutecnica a medicina e a eacutetica inserindo nesta relaccedilatildeo o princiacutepio da responsabilidade A partir daqui neste trabalho pretendemos percorrer uma trajetoacuteria semelhante considerando a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade no cenaacuterio das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas tendo como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no Municiacutepio de Ipanguaccedilu localizado no Estado do Rio Grande do Norte Agrave luz do princiacutepio da responsabilidade de Jonas analisamos as caracteriacutesticas locais da comunidade de agricultores de Ipanguaccedilu do ponto de vista econocircmico cultural e social e como se deu o processo de participaccedilatildeo dos agricultores locais nas poliacuteticas puacuteblicas voltadas para agricultura em especial o caso da fruticultura irrigada

O municiacutepio de IpanguaccediluRN

Ipanguaccedilu eacute um municiacutepio do Estado do Rio Grande do Norte que faz parte da microrregiatildeo do Vale do Accedilu Esta microrregiatildeo eacute formada por nove municiacutepios incluindo Ipanguaccedilu que estatildeo localizados na bacia do Rio PiranhasAccedilu e que possui cerca de 4368150 kmsup2 de extensatildeo segundo dados da AESA (Agecircncia Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba) Eacute importante ressaltar que o Rio PiranhasAccedilu desempenha um papel de extrema importacircncia pois possui o maior reservatoacuterio de aacutegua do Estado do RN a barragem Armando Ribeiro Gonccedilalves

Figura 1 - Mapa do Estado do Rio Grande do Norte Vale do Accedilu em destaque

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

252

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Fonte Webcarta (2015 destaque nosso)

Em Ipanguaccedilu o processo de produccedilatildeo e a base da economia satildeo marcados principalmente pela

agricultura pecuaacuteria e induacutestria da ceracircmica Na agricultura a accedilatildeo do cultivo era de subsistecircncia poreacutem atualmente com a instalaccedilatildeo de empresas na regiatildeo a praacutetica da agricultura eacute centrada na atividade da fruticultura irrigada voltada para exportaccedilatildeo Essa mudanccedila de cenaacuterio do cultivo de subsistecircncia para o cultivo voltado para a exportaccedilatildeo alterou drasticamente o modo de agir tanto na percepccedilatildeo dos agricultores sobre a terra e o que ela simboliza ou representa quanto na forma de lidar com a terra

A construccedilatildeo da Barragem Armando Ribeiro na regiatildeo evidenciou tais mudanccedilas pois segundo Albano (2008) a construccedilatildeo da Barragem configurou dois periacuteodos importantes no municiacutepio o primeiro (1972-1992) marcado pela chegada de empresas nacionais do ramo da agricultura o segundo (1993-2015) marcado pela entrada de multinacionais no municiacutepio como eacute o caso da Del Monte Fresh Produce Essas mudanccedilas representaram natildeo apenas a inserccedilatildeo de empresas do ramo da agricultura na regiatildeo mas tambeacutem uma mudanccedila no cenaacuterio do mercado e da relaccedilatildeo com a terra Pois num primeiro momento ocorreu a migraccedilatildeo da agricultura de subsistecircncia para a de mercado enquanto que num segundo foi adotada a visatildeo de exportaccedilatildeo tendo como base a fruticultura irrigada da monocultura da banana

Outro fato importante eacute que 612 da populaccedilatildeo estaacute situada e trabalha no meio rural segundo o Censo Demograacutefico de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) Dessa forma podemos observar que a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu-RN eacute extremamente importante natildeo soacute para os agricultores locais como tambeacutem e sobretudo para a dinacircmica econocircmica do municiacutepio Eacute em torno dela que se configura a relaccedilatildeo com a terra com a cultura e com a economia no contexto social da regiatildeo

Baseados no caraacuteter metodoloacutegico jaacute explicitado anteriormente e levando em conta a dinacircmica da (re)configuraccedilatildeo da terra ficou evidente a partir da nossa observaccedilatildeo in loco realizada no municiacutepio de Ipanguaccedilu (2014) que a maioria dos trabalhadores rurais natildeo trabalha em sua proacutepria terra mas na terra de terceiros (apenas 3 do total de 10 entrevistados possuem propriedade proacutepria) Segundo o Entrevistado A trabalhador do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu antes da instalaccedilatildeo das empresas multinacionais no municiacutepio havia comunidades que possuiacuteam 50 moradores Mas nos uacuteltimos 15 anos essas comunidades tiveram um aumento populacional vertiginoso chegando a ter 500 famiacutelias Isso segundo ele aconteceu pelo fato de as pessoas deixarem ou venderem suas pequenas propriedades para trabalhar de assalariado no agronegoacutecio Segue trecho do diaacutelogo

Tecircm comunidades no municiacutepio de Ipanguaccedilu que antes das empresas serem instaladas no municiacutepio tinham 50 moradores Essa comunidade de 15 anos pra caacute estaacute com aproximadamente 500 famiacutelias porque as pessoas deixaram ou venderam suas pequenas propriedades para vir trabalhar de assalariado no agronegoacutecio Portanto hoje grande parte dessas pessoas querem voltar para suas terras que muitas vezes foram adquiridas por essas empresas que se tornaram donas das terras do municiacutepio As pessoas estatildeo batalhando para tentar conseguir

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

253

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

outro pedaccedilo de terra para voltar agrave sua origem porque eles estatildeo vendo que com a matildeo-de-obra assalariada eles nunca iratildeo ter uma autonomia econocircmica eles ganham apenas para o sustento familiar (Entrevistado A)

Neste sentido Albano (2008 p 65) acrescenta que ldquoA agricultura de subsistecircncia tambeacutem diminuiu muito com a Barragem e depois dela com as compras de terras pelas grandes empresas rurais interessadas em produzir monoculturas para exportaccedilatildeo ou para o mercado internordquo Como exemplo para ilustrar essa (re)configuraccedilatildeo do espaccedilo e da relaccedilatildeo com a terra podemos citar a multinacional Del Monte Fresh Produce Albano assim explicita o contexto da instalaccedilatildeo da empresa na Regiatildeo de Ipanguaccedilu

O ano de 1993 foi o ano do estabelecimento da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio (OMC) e o ano em que foram concluiacutedas as negociaccedilotildees da Rodada Uruguai que incluiacutea a Agricultura nas suas negociaccedilotildees e que previa uma grande liberalizaccedilatildeo do comeacutercio agriacutecola a partir daquele ano nos paiacuteses associados da OMC inclusive o Brasil Aleacutem disso eacute nesse ano que se tem o iniacutecio da compra de terras em Ipanguaccedilu por uma empresa associada agrave Multinacional Del Monte Fresh Produce Posteriormente ela se insere no municiacutepio de Accedilu e Carnaubais ambos no Vale do Accedilu (ALBANO 2008 p 68)

Contudo quais as implicaccedilotildees da instalaccedilatildeo da multinacional para a comunidade e a agricultura da regiatildeo A Tabela 1 a seguir mostra a relaccedilatildeo e a diferenccedila entre a multinacional e as empresas locais quanto aos elementos da cadeia produtiva e jaacute antecipa os indicativos de resposta vejamos

Tabela 1 - A relaccedilatildeo entre fatores de produccedilatildeo e aquisiccedilatildeo dos insumos das empresas com os lugares de compra

Fonte Elaborado por Albano (2008 p 69) baseado em Carvalho (2001)

Analisando a tabela podemos perceber que a multinacional Del Monte Fresh Produce natildeo possui interaccedilatildeo e integraccedilatildeo com a regiatildeo de Ipanguaccedilu Praticamente quase todos os fatores de produccedilatildeo de insumos e de serviccedilos satildeo exteriores ao municiacutepio A Pesquisa e Desenvolvimento (PampD) na aacuterea da fruticultura irrigada por exemplo eacute concentrada em Israel e na Ameacuterica central enquanto que nas empresas locais ela eacute fruto da proacutepria regiatildeo Eacute interessante perceber que a multinacional faz uso de apenas duas modalidades que diz respeito ao local tal como elencadas na tabela a terra e parte da assistecircncia teacutecnica

Eacute aqui que surge outra indagaccedilatildeo natildeo menos intrigante a percepccedilatildeo e a relaccedilatildeo com a terra do agricultor local satildeo as mesmas que a dos empresaacuterios das multinacionais Seraacute que a responsabilidade e o cuidado (resgatando os conceitos de Jonas) estatildeo implicados do mesmo modo em ambas situaccedilotildees Mais adiante voltaremos a estes pontos

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

254

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

As poliacuteticas puacuteblicas de modernizaccedilatildeo da fruticultura irrigada e a relaccedilatildeo essencial com a terra

Levando em consideraccedilatildeo as poliacuteticas puacuteblicas voltadas para a agricultura na regiatildeo percebe-se que apoacutes a construccedilatildeo da Barragem de Accedilu essas poliacuteticas satildeo voltadas para impulsionar a ldquoRevoluccedilatildeo Verderdquo dando iniacutecio a um forte processo de modernizaccedilatildeo da agricultura Albano a define do seguinte modo

[] consiste num grande crescimento de produtividade e de quantidade na agricultura por meio do uso de tecnologias como os tratores agriacutecolas teacutecnicas de irrigaccedilatildeo defensivos quiacutemicos variedades de sementes aviaccedilatildeo agriacutecola computadores novos meacutetodos de gestatildeo etc De um lado da produccedilatildeo vai se ter a Induacutestria Produtora de Insumos com fertilizantes defensivos e corretivos e do outro vai se ter a Induacutestria de Bens de Capital com tratores colheitadeiras e equipamentos de irrigaccedilatildeo (ALBANO 2008 p 62)

Ainda sobre a Revoluccedilatildeo Verde Shiva afirma

Os sistemas agriacutecolas tradicionais baseiam-se em sistemas de rotaccedilatildeo de culturas e cereais legumes sementes oleaginosas com diversas variedades em cada safra enquanto o pacote da Revoluccedilatildeo Verde baseia-se em monoculturas geneticamente uniformes (SHIVA 2003 p 57)

Em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas no acircmbito da agricultura irrigada em Ipanguaccedilu haacute vaacuterios esforccedilos por parte do governo para impulsionar a modernizaccedilatildeo do campo Em vista disso citando os estudos de Souza (1997) Albano (2008) elenca que no comeccedilo da deacutecada de 1970 o Governo Autoritaacuterio efetivou o I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) Este plano teve como programas mais importantes o Programa de Redistribuiccedilatildeo de Terras (PROTERRA) e de estiacutemulo agrave agroinduacutestria do Norte e Nordeste cujo principal objetivo era ampliar a agroinduacutestria e o Programa de Integraccedilatildeo Nacional (PIN) atraveacutes de um plano de irrigaccedilatildeo no Nordeste

Diante desses esforccedilos para modernizar (tecnificar) a agricultura vale a pena refletirmos sobre o ideal do progresso tecnoloacutegico aliado ao conceito de desenvolvimento econocircmico tatildeo presente na modernidade Essa concepccedilatildeo progressista desconsidera as intencionalidades existentes no artefato tecnoloacutegico e nos indiviacuteduos no que tange agrave sua construccedilatildeo histoacuterica cultural e de valores A instrumentalizaccedilatildeo da ciecircncia e da tecnologia reduz os aparatos e a proacutepria cultura ao meramente teacutecnico e cientiacutefico tendo em vista que o progresso tecnocientiacutefico na maioria das vezes aparece desvinculado da realidade da sociedade local

Herrera (1995 p 117) mostra que isso se torna evidente a partir da Segunda Guerra Mundial com o esforccedilo internacional de implementar e melhorar as Poliacuteticas de Ciecircncia e Tecnologia (CampT) nos paiacuteses considerados ldquosubdesenvolvidosrdquo Poreacutem o que se percebe entre outros fatores eacute a desconexatildeo dos investimentos com a realidade dos paiacuteses da Ameacuterica Latina Tanto as concepccedilotildees de ciecircncia e de tecnologia quanto a ideia de progresso tecnocientiacutefico desvinculados do contexto regional acabam refletindo na construccedilatildeo dos indicadores e das poliacuteticas puacuteblicas em CampT e consequentemente na participaccedilatildeo puacuteblica e na avaliaccedilatildeo deles

Mostrando a desvinculaccedilatildeo das poliacuteticas desenvolvimentistas com o contexto regional Lisboa corrobora com as teses de Robert Kurz quando afirma

As poliacuteticas desenvolvimentistas arrancaram em poucas deacutecadas populaccedilotildees inteiras da sua economia de subsistecircncia tradicional mas natildeo as integraram plenamente (ou seja natildeo as transformaram em cidadatildes) Kurz ao desnudar o colapso da modernizaccedilatildeo do terceiro mundo afirma que ldquoa maior parte da sociedade foi apenas modernizada em sentido negativo isto eacute foram destruiacutedas as estruturas tradicionais sem que alguma coisa nova ocupasse o seu lugarrdquo (LISBOA 1996 p 4-5)

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

255

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Assim as poliacuteticas desenvolvimentistas acabam eliminando a cultura e a praacutetica tradicional dos agricultores locais Relacionando esse contexto com a eacutetica da responsabilidade de Jonas que eacute o propoacutesito deste trabalho podemos testemunhar a sua total exclusatildeo pois a terra passa a ser vista como mero produto mera utilidade que visa ao lucro da exportaccedilatildeo Ou seja haacute um profundo abandono da responsabilidade enquanto cuidado e prudecircncia em relaccedilatildeo agrave terra ao meio ambiente e agraves comunidades que vivem do cultivo da terra

Retomando o olhar sobre a Tabela 1 percebemos que eacute iacutenfima a interaccedilatildeo entre as relaccedilotildees locais que envolvem as praacuteticas da agricultura com a empresa multinacional Neste tipo de praacutetica descarta-se o conhecimento local Desse modo o pensamento transforma-se em monoculturado (SHIVA 2003 p 21) e a cultura torna-se cientificada e tecnificada tendo como justificativa e produto final o progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico Aleacutem disso o proacuteprio debate e a avaliaccedilatildeo puacuteblica que deveria existir para garantir a participaccedilatildeo dos cidadatildeos e a gestatildeo mais democraacutetica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia excluem aqueles que efetivamente satildeo os atores sociais envolvidos neste processo No caso em questatildeo trata-se dos agricultores de Ipanguaccedilu

Aqui recobra sentido a ideia do imperativo tecnoloacutegico abordado por Jonas que elimina a liberdade e a consciecircncia do sujeito em prol de um determinismo tecnoloacutegico Assim o saber local deixa de ter importacircncia e em seu lugar ganha destaque o saber cientiacutefico deixando em evidecircncia as relaccedilotildees estabelecidas entre as multinacionais e o mercado exterior Notadamente na Tabela 1 o saber cientiacutefico e tecnoloacutegico (inclusive importados e produzidos fora do contexto local) satildeo os mais destacados e utilizados em detrimento ao saber local

Percebe-se ouvindo os agricultores da regiatildeo que apesar da instalaccedilatildeo das multinacionais em Ipanguaccedilu ter aumentado a quantidade de empregos a praacutetica do agronegoacutecio extinguiu a diversidade de plantio agriacutecola da regiatildeo Onde antes havia a diversidade cultivada atraveacutes da agricultura de subsistecircncia o cenaacuterio agora eacute o da monocultura com a fruticultura irrigada Um dos agricultores e morador local disse ldquoA agricultura aqui antes era em primeiro lugar Tinha tudo saiacutea muita carrada de pimentatildeo saiacutea muito tomate tinha bastante milho feijatildeo Hoje da agricultura o que tem bastante eacute soacute bananardquo (Entrevistado B)

Aleacutem disso os agricultores natildeo participam ativamente nas decisotildees das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e dos projetos voltados para a agricultura por parte da EMATER (Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural) cuja principal missatildeo eacute contribuir para a promoccedilatildeo do agronegoacutecio focando na agricultura familiar atraveacutes do serviccedilo de extensatildeo rural em prol do desenvolvimento sustentaacutevel tal como podemos observar na Tabela 2 a seguir

Tabela 2 - Projetos de agricultura irrigada implementados a partir de 1987 ateacute 1990 no Vale do Accedilu para pequenos irrigantes ndash EMATER

Fonte Pinheiro (1995 citado por Albano 2008 p 67)

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

256

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Pelos dados apresentados na tabela observa-se o baixo nuacutemero de projetos voltados para o pequeno agricultor na regiatildeo de Ipanguaccedilu Ainda falta uma poliacutetica puacuteblica que realmente integre o agricultor familiar no cenaacuterio da agricultura modernizada e que leve em conta a participaccedilatildeo popular de forma democraacutetica na sua formulaccedilatildeo Quando questionado sobre o papel da EMATER o mesmo agricultor afirma

A EMATER vem se arrastando a passos de tartaruga Eacute muito devagar Natildeo sei se eacute falta de incentivo dos governantes (que eu acredito que seja) porque tem os teacutecnicos que possuem vontade de colocar as coisas para funcionar mas por conta do recurso natildeo tem como eles colocarem para funcionar (Entrevistado B)

A regiatildeo de Ipanguaccedilu e a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas

Aleacutem do que jaacute observamos ateacute aqui que outros aspectos podemos extrair do contexto apresentado sobre a implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na regiatildeo de Ipanguaccedilu e a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da responsabilidade

Jaacute introduzimos este aspecto na parte anterior deste trabalho mas vale a pena aprofundar um pouco mais a criacutetica ao progresso tecida por Jonas (2006) ao que ele denomina de ideal baconiano e a relaccedilatildeo com o ideal de progresso presente na regiatildeo de Ipanguaccedilu Mais especificamente trata-se de evidenciar a relaccedilatildeo da dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica

Como visto anteriormente a tese principal defendida por Hans Jonas eacute que a teacutecnica moderna se converte em ameaccedila natildeo apenas fiacutesica mas tambeacutem ideoloacutegica na medida em que propaga o ideal de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico a qualquer custo o que segundo ele representa um perigo para toda a humanidade Sobre este perigo ele argumenta

O perigo decorre da dimensatildeo excessiva da civilizaccedilatildeo teacutecnico-industrial baseada nas ciecircncias naturais O que chamamos de programa baconiano ndash ou seja colocar o saber a serviccedilo da dominaccedilatildeo da natureza e utilizaacute-la para melhorar a sorte da humanidade ndash natildeo contou desde as origens na sua execuccedilatildeo capitalista com a racionalidade e a retidatildeo que lhe seriam adequadas poreacutem sua dinacircmica de ecircxito que conduz obrigatoriamente aos excessos de produccedilatildeo e consumo teria subjugado qualquer sociedade considerando-se a breve escala de tempo dos objetivos humanos e a imprevisibilidade real das dimensotildees do ecircxito (uma vez que nenhuma sociedade se compotildee de saacutebios) (JONAS 2006 p 235)

Jonas atenta aos perigos existentes na civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica e utilitaacuteria onde partimos do pressuposto de que a teacutecnica moderna eacute indispensaacutevel para a sociedade e que sobretudo eacute nela que encontraremos o triunfo (o que o filoacutesofo denomina de ecircxito) Nessa perspectiva ele afirma que ldquoa ameaccedila de cataacutestrofe do ideal baconiano de dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica reside portanto na magnitude do seu ecircxito Esse ecircxito tem dois aspectos econocircmico e bioloacutegicordquo (2006 p 235) O ecircxito econocircmico resultaria no esgotamento dos recursos naturais atraveacutes do aumento da produccedilatildeo de bens e diminuiccedilatildeo do dispecircndio do trabalho humano enquanto que o bioloacutegico consistiria em um aumento exponencial da populaccedilatildeo

Dito isso a partir da ambivalecircncia do ecircxito presente no ideal baconiano podemos fazer um contraponto com a implementaccedilatildeo das poliacuteticas voltadas para a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu Natildeo estariam inseridas nesta loacutegica as poliacuteticas puacuteblicas que surgiram para impulsionar a Revoluccedilatildeo Verde Nesse contexto percebemos um forte crescimento de produtividade na agricultura atraveacutes da utilizaccedilatildeo de novas tecnologias oriundas da ideia de modernizar o campo aumentando assim a visibilidade das empresas multinacionais e diminuindo as atividades de subsistecircncia (ldquoecircxito econocircmicordquo) Do mesmo modo constatamos o aumento populacional em certas comunidades como mostrado anteriormente onde antes

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

257

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

havia 50 moradores apoacutes a instalaccedilatildeo das multinacionais a populaccedilatildeo da comunidade aumentou para 500 moradores (ldquoecircxito bioloacutegicordquo) Isso posto e respondendo agrave pergunta anterior podemos afirmar que de certo modo essas poliacuteticas que surgem com vistas agrave modernizaccedilatildeo do campo estatildeo inseridas nesta ambiguidade do ecircxito colocada por Hans Jonas quando pensamos no ideal baconiano de um lado o econocircmico com a maior produtividade e menor dispecircndio do trabalho do outro o bioloacutegico com o aumento populacional

Outra relaccedilatildeo que podemos evidenciar levando em conta este cenaacuterio utilitaacuterio advindo da modernizaccedilatildeo da agricultura eacute a questatildeo da alimentaccedilatildeo Citando a utoacutepica ldquoreconstruccedilatildeo da naturezardquo pensada por Bloch Jonas afirma que

[] por causa do seu ecircxito bioloacutegico e do seu crescimento irresistiacutevel a humanidade se vecirc forccedilada a adicionar produtos quiacutemicos agrave camada produtiva da crosta terrestre [] As tecnologias agraacuterias de maximizaccedilatildeo tecircm impactos cumulativos sobre a natureza que mal comeccedilaram a revelar-se em acircmbito local por exemplo na poluiccedilatildeo quiacutemica dos recursos hiacutedricos e das aacuteguas costeiras (para o que contribuem tambeacutem as induacutestrias) com efeitos nocivos transmitidos pela cadeia alimentar A salinizaccedilatildeo dos solos pela irrigaccedilatildeo constante a erosatildeo provocada pela aragem dos campos [] (JONAS 2006 p 302)

Historicamente eacute sabido que a proposta da eacutetica jonasiana deu cabida a muitos movimentos ecologistas no final do seacuteculo passado inclusive orientando as diretrizes do Partido Verde na Alemanha a partir dos anos noventa Mas tambeacutem eacute fato que Jonas ao duvidar das apostas nas tecnologias modernas com o uso de fertilizantes agrotoacutexicos e o cultivo da monocultura para o crescimento a qualquer custo tambeacutem coloca em crise os ideais surgidos na Revoluccedilatildeo Verde Nesse mesmo sentido quando indagado sobre a questatildeo socioambiental e do progresso na agricultura familiar e no agronegoacutecio o entrevistado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu argumenta

Tanto os agricultores familiares precisam ainda lidar com a questatildeo socioambiental como tambeacutem as empresas que estatildeo no municiacutepio Haacute empresas que trabalhavam com a pulverizaccedilatildeo aeacuterea atraveacutes de aviotildees e envenenaram rios plantaccedilotildees houve mortandade de peixes e com isso foram feitas denuacutencias ao IDEMA ndash que eacute o oacutergatildeo de meio ambiente estadual ao IBAMA Tecircm empresas que foram multadas em vaacuterios milhotildees de reais e estatildeo procurando se adequar ao meio ambiente para prejudicar menos Tambeacutem podemos abordar a questatildeo do progresso cientiacutefico (Entrevistado A)

A visatildeo de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico aliada ao desenvolvimento presente na modernidade acaba mascarando os efeitos desastrosos da tecnificaccedilatildeo em escala planetaacuteria O discurso de um crescente bem-estar (tanto social quanto econocircmico) faz-nos acreditar que soacute existe uma uacutenica via a ser seguida que eacute a do desenvolvimento Poreacutem essa falsa sensaccedilatildeo eclipsa o pensar que questiona a teacutecnica e a sua relaccedilatildeo com a sociedade na atualidade

Ainda dentro da ameaccedila do ideal baconiano exposto por Jonas outro aspecto relevante e que merece destaque aqui eacute a questatildeo da dominaccedilatildeo da natureza a partir da teacutecnica moderna Jonas (2006 p 236) considera que na ldquodialeacutetica do poder sobre a natureza e a compulsatildeo de exercecirc-lardquo o poder tornou-se crucial nesta relaccedilatildeo Assim ele afirma

A foacutermula baconiana afirma que saber eacute poder Mas eacute o proacuteprio programa baconiano que no aacutepice do triunfo revela-se insuficiente com a sua contradiccedilatildeo intriacutenseca ou seja o descontrole sobre si mesmo mostrando-se incapaz de proteger o homem de si mesmo e a natureza do homem (2006 p 236)

A partir desta dialeacutetica estabelecida entre poder teacutecnica moderna e sua relaccedilatildeo com o homem e a proacutepria natureza Jonas afirma que tanto o homem quanto a natureza precisam de proteccedilatildeo quando se pensa na magnitude do poder que o progresso cientiacutefico alcanccedilou Pensamento semelhante jaacute havia sido

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

258

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

propagado tambeacutem por Marcuse (1982) quando nos anos sessenta do seacuteculo passado afirmava a unidimensionalidade da condiccedilatildeo humana advinda da teacutecnica moderna Esse poder eacute caracterizado pela necessidade do uso crescente da teacutecnica conduzindo o homem a uma incapacidade de frear o contiacutenuo progresso muito embora ele (o homem) insista em acreditar que a natureza eacute apenas um objeto de exploraccedilatildeo e estaacute disponiacutevel para atender meramente agrave sua vontade

Aleacutem desta problemaacutetica do progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico colocado por Jonas podemos tambeacutem fazer uma relaccedilatildeo entre as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade e o municiacutepio de Ipanguaccedilu Tal como jaacute salientamos anteriormente o primeiro aspecto a destacar desde a eacutetica jonasiana eacute o dever do homem perante a biosfera como dever responsaacutevel garantindo tanto a preservaccedilatildeo do presente quanto do futuro da humanidade e da natureza Portanto neste aspecto haveriacuteamos de indagar ateacute que ponto a agricultura familiar na regiatildeo de Ipanguaccedilu torna vaacutelido esse dever e se o mesmo procede com o agronegoacutecio Como dito anteriormente o agronegoacutecio visa agrave monocultura e agrave modernizaccedilatildeo da agricultura ou seja as atividades agriacutecolas satildeo baseadas no controle teacutecnico da terra gerando uma maior produccedilatildeo que garante a exportaccedilatildeo e o investimento no mercado interno visando ao lucro Do outro lado estaacute a agricultura familiar tendo como principal caracteriacutestica o cultivo de subsistecircncia Podemos observar que no primeiro exemplo a natureza eacute vista como um objeto de lucro enquanto que no segundo ela eacute vista como um ldquoobjetordquo de responsabilidade E eacute no contexto do segundo exemplo que se insere o sentido do ldquodever serrdquo tal como observa Jonas Poreacutem o que ocorre eacute que na atualidade as atividades desenvolvidas pelas multinacionais do agronegoacutecio em Ipanguaccedilu eacute que vecircm merecendo lugar de destaque no cenaacuterio das poliacuteticas puacuteblicas locais

Consideraccedilotildees Finais

Do exposto ateacute aqui fica expliacutecito que eacute necessaacuterio um olhar criacutetico sobre a problemaacutetica existente do paradigma cientiacutefico e tecnoloacutegico presente na modernidade que impele tudo ao progresso e ao desenvolvimento Do mesmo modo tambeacutem eacute preciso refletir sobre como tratamos a realidade e o contexto cultural local visto que natildeo podem ser marginalizados em prol do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico e econocircmico global Observando o sentido do desenvolvimento neste contexto Lisboa argumenta

O desenvolvimento comporta em si mesmo o subdesenvolvimento O padratildeo mimeacutetico do desenvolvimento fundado no estilo ocidental de vida com altos niacuteveis de consumo e desperdiacutecio tem cegado os povos do terceiro mundo os impedindo de se encontrar com sua identidade Ora um povo privado de sua identidade natildeo eacute capaz de se autodeterminar (LISBOA 1996 p 7)

Apesar de a instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo de Ipanguaccedilu ter reduzido a diversidade da regiatildeo atraveacutes do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico o pouco que haacute da praacutetica da agricultura familiar ainda insiste em preservar a relaccedilatildeo essencial com a terra e com tradiccedilotildees culturais Nela se vecirc refletido o princiacutepio eacutetico da responsabilidade de Hans Jonas onde haacute a preocupaccedilatildeo do cuidado com o lugar onde vivem para que as futuras geraccedilotildees possam viver de forma sustentaacutevel Na agricultura familiar tambeacutem se torna visiacutevel a temeridade e a relaccedilatildeo do ser teacutecnico com a prudecircncia onde os valores estatildeo na biosfera e natildeo na utilidade do fazer antropocecircntrico e egoiacutesta da condiccedilatildeo humana de estar no mundo

Insistir na permanecircncia desta praacutetica eacute insistir na participaccedilatildeo direta ativa e democraacutetica dos agricultores na formulaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e nos projetos voltados para a agricultura Pois se no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia tambeacutem estaacute inserida a dimensatildeo social entatildeo a implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia deve ser decidida pelos atores sociais nela implicados (MIRANDA 2012 p 181-182) Dessa forma eacute no espaccedilo puacuteblico de debate com a populaccedilatildeo diretamente afetada pelas implementaccedilotildees tecnocientiacuteficas que construiacutemos esta praacutetica democraacutetica e participativa frente agrave ciecircncia e agrave tecnologia eliminando assim a violecircncia contra a cultura local tal como situa Shiva

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

259

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

O primeiro plano da violecircncia desencadeada contra os sistemas locais de saber eacute natildeo consideraacute-los um saber A invisibilidade eacute a primeira razatildeo pela qual os sistemas locais entram em colapso antes de serem testados e comprovados pelo confronto com o saber dominante do Ocidente A proacutepria distacircncia elimina os sistemas locais da percepccedilatildeo Quando o saber local aparece de fato no campo da visatildeo globalizadora fazem com que desapareccedila negando-lhe o status de um saber sistemaacutetico e atribuindo-lhe os adjetivos de primitivo e anticientiacutefico (SHIVA 2003 p 22-23)

Portanto tal como ensina Shiva para que haja inclusatildeo e um processo democraacutetico na participaccedilatildeo puacuteblica voltada para a ciecircncia e para a tecnologia eacute preciso que a visatildeo globalizante da tecnificaccedilatildeo e da cientifizaccedilatildeo natildeo anule o conhecimento local com a justificativa de que eles natildeo satildeo cientiacuteficos O saber local e as praacuteticas culturais dos agricultores devem ser levados em consideraccedilatildeo nesses processos de implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de garantir o empoderamento dos atores sociais neles implicados

Ora que liccedilotildees podemos extrair destas constataccedilotildees se vincularmos ao agir eacutetico Agrave luz das teses apresentadas por Hans Jonas apontamos alguns caminhos (i) Que eacute necessaacuterio pensar numa eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica e instrumental abrangendo uma nova dimensatildeo a responsabilidade (ii) Que tal modelo de eacutetica seja capaz de resgatar o conceito de temeridade e a relaccedilatildeo da teacutecnica natildeo somente com a eficiecircncia mas tambeacutem com a prudecircncia (iii) Que eacute fundamental retomar o sentido originaacuterio da eacutetica como cuidado o cuidar do lugar onde se vive (BOFF 1999 MIRANDA 2012)

Em outros termos o questionamento diante da teacutecnica e da ciecircncia levando em consideraccedilatildeo o acircmbito da eacutetica e das poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode estar inserido meramente na dimensatildeo instrumental e antropoloacutegica Trata-se antes de tudo de uma fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da natureza e da condiccedilatildeo humana levando em conta o princiacutepio responsabilidade definido pela eacutetica jonasiana

A justificativa de uma tal eacutetica que natildeo mais se restringe ao terreno imediatamente intersubjetivo da contemporaneidade deve estender-se ateacute a metafiacutesica pois soacute ela permite que se pergunte por que afinal homens devem estar no mundo portanto por que o imperativo incondicional destina-se a assegurar-lhes a existecircncia no futuro A aventura da tecnologia impotildee com seus riscos extremos o risco da reflexatildeo extrema (JONAS 2006 p 22)

Desta forma e diante da insuficiecircncia constatada por Jonas da eacutetica tradicional em propor saiacutedas frente aos novos dilemas eacuteticos pautados pela sociedade tecnocientiacutefica eacute proposta deste estudo pensar um novo agir humano baseado na responsabilidade inclusive no acircmbito da implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de pensar saiacutedas que sejam capazes de ultrapassar as barreiras do discurso desenvolvimentista e por conseguinte determinista da tecnologia e da neutralidade cientiacutefica que ainda persistem e insistem em orientar as praacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na sociedade atual Afinal como diz Miranda com base nos estudos de Jasanoff (1995)

a ciecircncia deveria ter uma funccedilatildeo poliacutetica na medida em que tambeacutem avalia e revisa o estado do conhecimento cientiacutefico e sua aplicabilidade praacutetica Assim diante de programas de controle ambiental por exemplo mais que simplesmente aplicar certo tipo de conhecimento cientiacutefico aparentemente desinteressado neutro o papel da ciecircncia deveria ser tambeacutem eacutetico-poliacutetico no sentido de avaliar suas implicaccedilotildees sociais poliacuteticas culturais etc (MIRANDA 2012 p 181)

Em suma a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no municiacutepio de Ipanguaccedilu ensina-nos que no cenaacuterio da instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo impulsionadas por poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas supostamente de cunho desenvolvimentista e que correspondem ao ideal progressista cujo agir eacute meramente utilitaacuterio e de exploraccedilatildeo da natureza visando cada vez mais ao lucro a eacutetica da responsabilidade pode ser a criacutetica e o

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

260

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

norte de uma nova forma de agir Desde sua criacutetica tambeacutem eacute possiacutevel formular poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas que levem em conta os atores sociais nelas implicados tornando o processo democraacutetico e natildeo somente tecnocraacutetico Por outro lado e considerando o cenaacuterio da agricultura familiar e dos agricultores que ali vivem e lidam com a terra a eacutetica da responsabilidade surge como forma de corroborar com suas praacuteticas como a accedilatildeo eacutetica que visa ao cuidado com o lugar onde vivem pois eles (os agricultores) natildeo satildeo apenas ldquodonosrdquo da terra mas ocupam e essencializam a terra atraveacutes da relaccedilatildeo de cuidado e de prudecircncia no ato de cultivar a terra

Eacute a partir desta constataccedilatildeo que apresentamos a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas como uma eacutetica possiacutevel de ser aplicada nesse contexto de aparente dualidade entre a agricultura familiar e o agronegoacutecio Levando em conta as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade como o conceito da responsabilidade e do ideal utoacutepico do progresso cientiacutefico tecnoloacutegico a relaccedilatildeo com o meio ambiente e com a terra concluiacutemos que urge pensar sua aplicaccedilatildeo tambeacutem no campo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas A sua utilizaccedilatildeo no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia torna-se necessaacuteria no atual contexto da modernizaccedilatildeo em que estatildeo submetidos grupos sociais comunidades e povos inteiros E ainda que guardados seus devidos limites (MIRANDA 2012 p 143) a responsabilidade eacute um princiacutepio eacutetico que pode contribuir para nortear as accedilotildees tecnocientiacuteficas rumo agrave uma sociedade mais sustentaacutevel e equilibrada

Referecircncias

AGEcircNCIA Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba (AESA) Comitecircs Piranhas-Accedilu apresentaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwaesapbgovbrcomitespiranhasacu Acesso em 23 ago 2015

ALBANO Gleydson SAacute Alcindo Poliacuteticas puacuteblicas e globalizaccedilatildeo da agricultura no Vale do Accedilu-RN Revista de Geografia Recife UFPE ndash DCGNAPA v 25 n 2 maiago 2008

APEL Karl-Otto Estudos de moral moderna Petroacutepolis Vozes 2000

BECK Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Traduccedilatildeo original do alematildeo de Sebastiatildeo Nascimento Satildeo Paulo Editora 34 2010

BOFF Leonardo Saber cuidar eacutetica do humano Petroacutepolis Vozes 1999

HEIDEGGER Martin A questatildeo da teacutecnica Ensaios e conferecircncias I Traduzido por Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan Fode Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes Braganccedila Paulista Ed Universitaacuteria Satildeo Francisco 2012

HERRERA Amiacutelcar O Los determinantes sociales de la poliacutetica cientiacutefica en Ameacuterica Latina Poliacutetica cientiacutefica expliacutecita y poliacutetica cientiacutefica impliacutecita Argentina Redes v 2 1995

INSTITUTO Brasileiro de Geografia E Estatiacutestica (IBGE) Censo Demograacutefico 2000 sinopse ndash Rio Grande do Norte ndash Ipanguaccedilu Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtras temasphplang=ampcodmun=240470ampidtema=1ampsearch=rio-grande-do-norte|ipanguacu|censo-demografico-2010-sinopse- Acesso em 14 ago 2015

JASANOFF S Procedural choices in regulatory science Technology in Society 17 1995 httpsdoiorg1010160160-791x(95)00011-f

JONAS Hans O princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Rio de Janeiro Contraponto 2006

JONAS Hans Teacutecnica medicina y eacutetica Sobre la praacutectica del principio de la responsabilidad Barcelona Paidoacutes 1997

LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001

LISBOA Armando de Melo Desenvolvimento uma ideia subdesenvolvida Cadernos do CEAS Salvador n 161 1996

MARCUSE Herbert A ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional Rio de Janeiro Jorge Zahar 1982

MIRANDA A L iquestUna eacutetica para la civilizacioacuten tecnoloacutegica Posibilidades y liacutemites del principio de la responsabilidad de Hans Jonas AlemanhaEspanha Lap LambertEAE 2012

MORIN E Ciecircncia com consciecircncia Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005

SERRES Michel Le contrat natural Paris Flammarion 1992

SHIVA Vandana AZEVEDO Dinah de Abreu Monoculturas da mente perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia Satildeo Paulo Gaia 2003

SIQUEIRA JE Hans Jonas e a eacutetica da responsabilidade Mundo Sauacutede 1999

WEBCARTA Mapa do Rio Grande do Norte Disponiacutevel em webcartanetcartamapaphpid=244amplg=pt Acesso em 26 ago 2015

WOLIN Richard Heideggerrsquos children Hannah Arendt Karl Loumlwith Hans Jonas y Herbert Marcuse Princepton Princepton University Press 2001

ZANCANARO L O conceito de responsabilidade em Hans Jonas CampinasSP Ed UNICAMP 1998

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Page 5: O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail: angelamiranda@ect@ufrn.br. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

248

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

i) A primeira caracteriacutestica dos modelos de eacutetica herdados da tradiccedilatildeo ocidental eacute a neutralidade na esfera do domiacutenio da teacutecnica (techne) Fazendo uma comparaccedilatildeo com as caracteriacutesticas do agir humano do passado e levando em conta a eacutetica tradicional Jonas (2006 p 35) observa que a ldquotechne como atividade compreendia-se a si mesma como um tributo determinado pela necessidade e natildeo como um progresso que se autojustifica como fim preciacutepuo da humanidaderdquo Aqui nota-se que a dimensatildeo eacutetica natildeo estaacute circunscrita ao acircmbito dos objetos Dessa forma natildeo constitui uma vinculaccedilatildeo da prudecircncia na relaccedilatildeo homem-teacutecnica no mundo extra-humano

ii) A segunda caracteriacutestica evidencia o caraacuteter antropocecircntrico da eacutetica tradicional quando Jonas (2006 p 35) afirma referindo-se aos modelos das eacuteticas anteriores ldquoA significaccedilatildeo eacutetica dizia respeito ao relacionamento direto de homem com homem inclusive o de cada homem consigo mesmo toda eacutetica tradicional eacute antropocecircntricardquo Ou seja a accedilatildeo eacutetica estaacute circunscrita no acircmbito tatildeo somente da relaccedilatildeo entre seres humanos A propoacutesito o importante estudo de Michel Serres intitulado ldquoO Contrato Naturalrdquo (1992) tambeacutem evidencia este aspecto da eacutetica tradicional

iii) Outro caraacuteter da eacutetica tradicional diz respeito agrave accedilatildeo imediata Ou seja o paracircmetro de avaliaccedilatildeo do efeito da accedilatildeo eacute apenas o momento presente natildeo levando em consideraccedilatildeo o futuro Assim esclarece Hans Jonas

O bem e o mal com o qual o agir tinha de se preocupar evidenciavam-se na accedilatildeo seja na proacutepria praacutexis ou em seu alcance imediato e natildeo requeriam um planejamento de longo prazo[] O alcance efetivo da accedilatildeo era pequeno o intervalo de tempo para previsatildeo definiccedilatildeo de objetivo e imputabilidade era curto e limitado o controle sobre as circunstacircncias O comportamento correto possuiacutea seus criteacuterios imediatos e sua consecuccedilatildeo quase imediata O longo trajeto das consequecircncias ficava ao criteacuterio do acaso do destino ou da providecircncia Por conseguinte a eacutetica tinha a ver com o aqui e o agora (JONAS 2006 p 35-36)

Com base nestas caracteriacutesticas da eacutetica tradicional e frente agraves demandas do mundo tecnificado pela accedilatildeo do homem Jonas defende pois a necessidade de elaborar um modelo de eacutetica que seja capaz de suplantar a insuficiecircncias da eacutetica tradicional Assim ele justifica

A teacutecnica moderna introduziu accedilotildees de uma tal ordem ineacutedita de grandeza com tais novos objetos e consequecircncias que a moldura da eacutetica antiga natildeo consegue mais enquadraacute-las [] Isso impotildee agrave eacutetica pela enormidade de suas forccedilas uma nova dimensatildeo nunca antes sonhada de responsabilidade (JONAS 2006 p 39)

Aqui fica evidente a necessidade de um novo agir do homem um agir que natildeo estaacute circunscrito somente agrave relaccedilatildeo do homem com o proacuteprio homem reforccedilando o modelo meramente antropocecircntrico de eacutetica mas um agir que alcance o biocecircntrico isto eacute fundado na responsabilidade para com todos os seres e as geraccedilotildees futuras Mas o que eacute entendido aqui como responsabilidade E mais porque devemos situaacute-la como uma nova dimensatildeo da eacutetica Para esclarecer melhor esses questionamentos abordaremos o item a seguir

O conceito de responsabilidade para Jonas

A responsabilidade para Jonas eacute entendida como aquela accedilatildeo que se projeta tanto no presente como no futuro Do ponto de vista da civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica e seus dilemas eacuteticos trata-se da accedilatildeo diretamente incorporada ao progresso tecnoloacutegico e ao sentido do ldquopoder como deverrdquo (e natildeo ao contraacuterio tal como dizia Kant) Assim esclarece o filoacutesofo

Responsabilidade eacute o cuidado reconhecido como obrigaccedilatildeo em relaccedilatildeo a outro ser que se torna ldquopreocupaccedilatildeordquo quando haacute uma ameaccedila agrave sua vulnerabilidade Mas o medo estaacute presente na questatildeo original com a qual podemos imaginar se inicie

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

249

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

qualquer responsabilidade ativa o que pode acontecer a ele se eu natildeo assumir a responsabilidade por ele Quanto mais obscura a resposta maior se delineia a responsabilidade Quanto mais no futuro longiacutenquo situa-se aquilo que se teme quanto mais distante do nosso bem-estar ou mal-estar quanto menos familiar for o seu gecircnero mais necessitam ser diligentemente mobilizadas a lucidez da imaginaccedilatildeo e a sensibilidade dos sentidos Torna-se necessaacuteria uma heuriacutestica do medo capaz de investigar que natildeo soacute descubra e represente o novo objeto como tal mas que tome conhecimento do interesse moral particular ao ser interpelado pelo objeto (JONAS 2006 p 352 grifo nosso)

Portanto o conceito de responsabilidade para Jonas diz respeito ao cuidado com o outro ser que dada a ameaccedila de sua vulnerabilidade converte-se em pre-ocupaccedilatildeo diante da condiccedilatildeo humana de poder cuidar (MIRANDA 2012 p 82 e ss) A responsabilidade eacute o valor que deve reger a accedilatildeo praacutetica segundo Jonas Desse modo a accedilatildeo (como um agir moral) deve possuir como aspecto essencial o cuidado como obrigaccedilatildeo levando em conta a permanecircncia das futuras geraccedilotildees no planeta frente aos desafios enfrentados pela sociedade tecnocientiacutefica

Ainda na perspectiva da accedilatildeo eacutetica e levando em consideraccedilatildeo as futuras geraccedilotildees observa Jonas que a accedilatildeo humana potencialmente tecnificada pode prejudicar irreversivelmente a natureza e o proacuteprio homem A partir daiacute aparece um novo tipo de verdade como objeto do saber cientiacutefico a verdade que consiste nas condiccedilotildees futuras do homem e da natureza a verdade que deve natildeo somente diagnosticar mas tambeacutem prognosticar Neste sentido Jonas argumenta

Portanto esse saber real e eventual relativo agrave esfera dos fatos (que continua sendo teoacuterico) situa-se entre o saber ideal da doutrina eacutetica dos princiacutepios e o saber praacutetico relacionado agrave utilizaccedilatildeo poliacutetica o qual soacute pode operar com os seus diagnoacutesticos hipoteacuteticos relativos ao que se deve esperar ao que se deve incentivar ou ao que se deve evitar Haacute de se formar uma ciecircncia da previsatildeo hipoteacutetica uma ldquofuturologia comparativardquo (JONAS 2006 p 70)

Eacute nesse sentido que Jonas modifica o imperativo kantiano ateacute entatildeo predominante como modelo tradicional de eacutetica invertendo-o

Esse novo imperativo ldquoage de tal forma que os efeitos de suas accedilotildees sejam compatiacuteveis com a permanecircncia de uma vida humana autecircnticardquo ou formulando negativamente ldquonatildeo ponha em risco a continuidade indefinida da humanidade na Terrardquo vem substituir o imperativo kantiano ldquoage de tal forma que o princiacutepio da tua accedilatildeo se transforme numa lei universalrdquo (JONAS 2006 p 18)

Ao formular um novo imperativo eacutetico transformando-o em seu princiacutepio da responsabilidade Jonas atenta natildeo apenas para a destruiccedilatildeo fiacutesica da humanidade e da biosfera mas tambeacutem para o resgate essencial da relaccedilatildeo entre o ser teacutecnico e a natureza Segundo Miranda (2012 p 83) o imperativo eacutetico jonasiano da responsabilidade possui uma nova fundamentaccedilatildeo que eacute o sentido ontoloacutegico o que eacute levado em consideraccedilatildeo natildeo eacute apenas o fazer utilitarista mas essencialmente o ser Trata-se do caraacuteter metafiacutesico da eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas ou da fundamentaccedilatildeo metafiacutesica do agir eacutetico baseado na responsabilidade

Em siacutentese para Jonas os mandamentos da eacutetica tradicional estabelecidos por Kant Bentham Mill e outros filoacutesofos estatildeo direcionados agraves relaccedilotildees e agraves accedilotildees imediatas do ser humano e que natildeo se preocupam com o futuro ou a continuidade da vida no planeta de um modo geral (ZANCANARO 1998 p 09) Poreacutem para que haja responsabilidade eacute necessaacuterio existir uma consciecircncia criacutetica perante as consequecircncias advindas da aplicaccedilatildeo da ciecircncia e da tecnologia na sociedade

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

250

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

No entanto Jonas (2006 p 18) afirma que o imperativo tecnoloacutegico elimina a consciecircncia o sujeito e a liberdade em prol de um determinismo Ou seja o sujeito torna-se alienado agrave proacutepria ciecircncia e agrave tecnologia Do mesmo modo sobre o pensamento cientiacutefico Edgar Morin adverte

O pensamento cientiacutefico eacute ainda incapaz de se pensar de pensar sua proacutepria ambivalecircncia e sua proacutepria aventura A ciecircncia deve reatar com a reflexatildeo filosoacutefica como a filosofia cujos moinhos giram vazios por natildeo moer os gratildeos dos conhecimentos empiacutericos deve reatar com as ciecircncias A ciecircncia deve reatar com a consciecircncia poliacutetica e eacutetica (MORIN 2005 p 11)

Tambeacutem nesse sentido Ulrick Beck ao analisar o que ele denomina ldquoa sociedade do risco globalrdquo entende que a ciecircncia jaacute natildeo pode levar consigo a ideia de neutralidade mas sim a criticidade e a reflexatildeo quanto ao seu uso Assim ele argumenta

Na passagem para a praacutexis as ciecircncias satildeo agora confrontadas com a objetivaccedilatildeo de seu proacuteprio passado e presente consigo mesmas como produto e produtora da realidade e de problemas que cabe a elas analisar e superar Desse modo elas jaacute natildeo satildeo vistas apenas como manancial de soluccedilotildees para os problemas mas ao mesmo tempo tambeacutem como manancial de causas de problemas[] e por paradoxal que pareccedila num mundo jaacute loteado cientificamente e profissionalmente administrado as perspectivas de futuro e as oportunidades de expansatildeo da ciecircncia estatildeo vinculadas tambeacutem agrave criacutetica da ciecircncia (BECK 2010 p 236)

Esclarecido o conceito de responsabilidade dentro da eacutetica proposta por Hans Jonas e problematizada a accedilatildeo humana tecnificada no contexto da sociedade tecnocientiacutefica torna-se mister elencar as principais caracteriacutesticas que norteiam a eacutetica da responsabilidade tal como abordaremos a seguir

As principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade

Uma das caracteriacutesticas principais da eacutetica da responsabilidade proposta por Jonas eacute a questatildeo do dever para com a biosfera Mas em que consiste esse dever ldquoO dever do homem consiste em preservar este mundo fiacutesico de modo que as condiccedilotildees para tal presenccedila continuem ilesas ou intocadas ou seja proteger a vulnerabilidade do mundo que habitamos diante das ameaccedilasrdquo (JONAS 2006 p 45) Ou seja o dever estaacute incorporado ao conceito de responsabilidade e do cuidado com a biosfera levando em consideraccedilatildeo a previsibilidade da accedilatildeo teacutecnica

Para deixar mais expliacutecito em que consiste esse dever Jonas identifica-o a partir de distintos estaacutegios O primeiro dever ldquoconsiste em visualizar os efeitos a longo prazo estimar as consequecircncias dos atos natildeo soacute na sociedade mas tambeacutem no meio ambiente na naturezardquo (JONAS 2006 p 72) Ou seja aleacutem de precisar existir uma estimativa de consequecircncias dos atos humanos baseada no futuro esta previsatildeo natildeo pode vincular apenas o aspecto antropoloacutegico mas tambeacutem a natureza Jaacute o segundo dever ldquoconsiste em [] utilizar o medo dessas consequecircncias para estimular o respeito agrave vida humana e extra-humana Para isso basta lembrar o quatildeo as invenccedilotildees do homem podem ser imprevisiacuteveisrdquo (JONAS 2006 p 73) O medo aqui aparece como fator de prevenccedilatildeo principalmente para preservar as futuras geraccedilotildees A partir disso Jonas aponta para uma heuriacutestica do temor afirmando que se torna necessaacuterio o prognoacutestico e a temeridade em relaccedilatildeo agraves possiacuteveis consequecircncias catastroacuteficas do saber cientiacutefico e tecnoloacutegico aplicado perante a biosfera ou seja ldquoo saber origina-se daquilo contra o que devemos nos protegerrdquo (JONAS 2006 p 71)

Poreacutem Jonas conclui que esse temor que serve para que possamos refletir prever e prevenir as futuras consequecircncias catastroacuteficas natildeo eacute o mesmo medo que nos deixa paralisados

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

251

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Os homens experientes sabem que um dia podem desejar natildeo ter agido desta ou daquela forma O medo de que falo natildeo se refere a esse tipo de incerteza ou ele pode estar presente apenas como um efeito secundaacuterio Com efeito eacute uma das condiccedilotildees da accedilatildeo responsaacutevel natildeo se deixar deter por esse tipo de incerteza assumindo-se ao contraacuterio a responsabilidade pelo desconhecido dado o caraacuteter incerto da esperanccedila isso eacute o que chamamos de ldquocoragem para assumir a responsabilidaderdquo O medo que faz parte da responsabilidade natildeo eacute aquele que nos aconselha a natildeo agir mas aquele que nos convida a agir Trata-se de um medo que tem a ver com o objeto da responsabilidade (JONAS 2006 p 351)

Dessa forma a heuriacutestica do temor aponta para uma eacutetica baseada em antecipar os efeitos futuros e nos fazer agir de maneira mais prudente em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia Nesse sentido Miranda interpretando o sentido jonasiano de eacutetica afirma

[] podemos formular os deveres preliminares de uma eacutetica orientada para o futuro que satildeo buscar a representaccedilatildeo dos efeitos remotos pois somente o que eacute temido pode ser evitado por sua representaccedilatildeo e buscar o temor mediante a apelaccedilatildeo a um sentimento apropriado que o representa (MIRANDA 2012 p 81)

Podemos concluir portanto que a eacutetica da responsabilidade proposta por Hans Jonas eacute um modelo que pensado para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica leva em conta a biosfera a permanecircncia das futuras geraccedilotildees no planeta resgatando a ideia do cuidado do lugar onde se vive em meio aos desafios enfrentados pela sociedade tecnocientiacutefica E eacute a partir desses conceitos que a seguir abordaremos ilustrativamente a aplicaccedilatildeo (ou a ausecircncia) da responsabilidade na implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia dada uma situaccedilatildeo concreta que pertence ao local desde onde falamos e pensamos este trabalho

A aplicaccedilatildeo do princiacutepio responsabilidade de Hans Jonas numa situaccedilatildeo concreta o caso de

IpanguaccediluRN

Sobre a praacutetica do princiacutepio da responsabilidade Jonas escreveu uma obra muito interessante intitulada ldquoTeacutecnica medicina e eacuteticardquo (1997) Naquela oportunidade ele procurou estabelecer a relaccedilatildeo entre a teacutecnica a medicina e a eacutetica inserindo nesta relaccedilatildeo o princiacutepio da responsabilidade A partir daqui neste trabalho pretendemos percorrer uma trajetoacuteria semelhante considerando a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade no cenaacuterio das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas tendo como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no Municiacutepio de Ipanguaccedilu localizado no Estado do Rio Grande do Norte Agrave luz do princiacutepio da responsabilidade de Jonas analisamos as caracteriacutesticas locais da comunidade de agricultores de Ipanguaccedilu do ponto de vista econocircmico cultural e social e como se deu o processo de participaccedilatildeo dos agricultores locais nas poliacuteticas puacuteblicas voltadas para agricultura em especial o caso da fruticultura irrigada

O municiacutepio de IpanguaccediluRN

Ipanguaccedilu eacute um municiacutepio do Estado do Rio Grande do Norte que faz parte da microrregiatildeo do Vale do Accedilu Esta microrregiatildeo eacute formada por nove municiacutepios incluindo Ipanguaccedilu que estatildeo localizados na bacia do Rio PiranhasAccedilu e que possui cerca de 4368150 kmsup2 de extensatildeo segundo dados da AESA (Agecircncia Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba) Eacute importante ressaltar que o Rio PiranhasAccedilu desempenha um papel de extrema importacircncia pois possui o maior reservatoacuterio de aacutegua do Estado do RN a barragem Armando Ribeiro Gonccedilalves

Figura 1 - Mapa do Estado do Rio Grande do Norte Vale do Accedilu em destaque

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

252

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Fonte Webcarta (2015 destaque nosso)

Em Ipanguaccedilu o processo de produccedilatildeo e a base da economia satildeo marcados principalmente pela

agricultura pecuaacuteria e induacutestria da ceracircmica Na agricultura a accedilatildeo do cultivo era de subsistecircncia poreacutem atualmente com a instalaccedilatildeo de empresas na regiatildeo a praacutetica da agricultura eacute centrada na atividade da fruticultura irrigada voltada para exportaccedilatildeo Essa mudanccedila de cenaacuterio do cultivo de subsistecircncia para o cultivo voltado para a exportaccedilatildeo alterou drasticamente o modo de agir tanto na percepccedilatildeo dos agricultores sobre a terra e o que ela simboliza ou representa quanto na forma de lidar com a terra

A construccedilatildeo da Barragem Armando Ribeiro na regiatildeo evidenciou tais mudanccedilas pois segundo Albano (2008) a construccedilatildeo da Barragem configurou dois periacuteodos importantes no municiacutepio o primeiro (1972-1992) marcado pela chegada de empresas nacionais do ramo da agricultura o segundo (1993-2015) marcado pela entrada de multinacionais no municiacutepio como eacute o caso da Del Monte Fresh Produce Essas mudanccedilas representaram natildeo apenas a inserccedilatildeo de empresas do ramo da agricultura na regiatildeo mas tambeacutem uma mudanccedila no cenaacuterio do mercado e da relaccedilatildeo com a terra Pois num primeiro momento ocorreu a migraccedilatildeo da agricultura de subsistecircncia para a de mercado enquanto que num segundo foi adotada a visatildeo de exportaccedilatildeo tendo como base a fruticultura irrigada da monocultura da banana

Outro fato importante eacute que 612 da populaccedilatildeo estaacute situada e trabalha no meio rural segundo o Censo Demograacutefico de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) Dessa forma podemos observar que a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu-RN eacute extremamente importante natildeo soacute para os agricultores locais como tambeacutem e sobretudo para a dinacircmica econocircmica do municiacutepio Eacute em torno dela que se configura a relaccedilatildeo com a terra com a cultura e com a economia no contexto social da regiatildeo

Baseados no caraacuteter metodoloacutegico jaacute explicitado anteriormente e levando em conta a dinacircmica da (re)configuraccedilatildeo da terra ficou evidente a partir da nossa observaccedilatildeo in loco realizada no municiacutepio de Ipanguaccedilu (2014) que a maioria dos trabalhadores rurais natildeo trabalha em sua proacutepria terra mas na terra de terceiros (apenas 3 do total de 10 entrevistados possuem propriedade proacutepria) Segundo o Entrevistado A trabalhador do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu antes da instalaccedilatildeo das empresas multinacionais no municiacutepio havia comunidades que possuiacuteam 50 moradores Mas nos uacuteltimos 15 anos essas comunidades tiveram um aumento populacional vertiginoso chegando a ter 500 famiacutelias Isso segundo ele aconteceu pelo fato de as pessoas deixarem ou venderem suas pequenas propriedades para trabalhar de assalariado no agronegoacutecio Segue trecho do diaacutelogo

Tecircm comunidades no municiacutepio de Ipanguaccedilu que antes das empresas serem instaladas no municiacutepio tinham 50 moradores Essa comunidade de 15 anos pra caacute estaacute com aproximadamente 500 famiacutelias porque as pessoas deixaram ou venderam suas pequenas propriedades para vir trabalhar de assalariado no agronegoacutecio Portanto hoje grande parte dessas pessoas querem voltar para suas terras que muitas vezes foram adquiridas por essas empresas que se tornaram donas das terras do municiacutepio As pessoas estatildeo batalhando para tentar conseguir

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

253

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

outro pedaccedilo de terra para voltar agrave sua origem porque eles estatildeo vendo que com a matildeo-de-obra assalariada eles nunca iratildeo ter uma autonomia econocircmica eles ganham apenas para o sustento familiar (Entrevistado A)

Neste sentido Albano (2008 p 65) acrescenta que ldquoA agricultura de subsistecircncia tambeacutem diminuiu muito com a Barragem e depois dela com as compras de terras pelas grandes empresas rurais interessadas em produzir monoculturas para exportaccedilatildeo ou para o mercado internordquo Como exemplo para ilustrar essa (re)configuraccedilatildeo do espaccedilo e da relaccedilatildeo com a terra podemos citar a multinacional Del Monte Fresh Produce Albano assim explicita o contexto da instalaccedilatildeo da empresa na Regiatildeo de Ipanguaccedilu

O ano de 1993 foi o ano do estabelecimento da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio (OMC) e o ano em que foram concluiacutedas as negociaccedilotildees da Rodada Uruguai que incluiacutea a Agricultura nas suas negociaccedilotildees e que previa uma grande liberalizaccedilatildeo do comeacutercio agriacutecola a partir daquele ano nos paiacuteses associados da OMC inclusive o Brasil Aleacutem disso eacute nesse ano que se tem o iniacutecio da compra de terras em Ipanguaccedilu por uma empresa associada agrave Multinacional Del Monte Fresh Produce Posteriormente ela se insere no municiacutepio de Accedilu e Carnaubais ambos no Vale do Accedilu (ALBANO 2008 p 68)

Contudo quais as implicaccedilotildees da instalaccedilatildeo da multinacional para a comunidade e a agricultura da regiatildeo A Tabela 1 a seguir mostra a relaccedilatildeo e a diferenccedila entre a multinacional e as empresas locais quanto aos elementos da cadeia produtiva e jaacute antecipa os indicativos de resposta vejamos

Tabela 1 - A relaccedilatildeo entre fatores de produccedilatildeo e aquisiccedilatildeo dos insumos das empresas com os lugares de compra

Fonte Elaborado por Albano (2008 p 69) baseado em Carvalho (2001)

Analisando a tabela podemos perceber que a multinacional Del Monte Fresh Produce natildeo possui interaccedilatildeo e integraccedilatildeo com a regiatildeo de Ipanguaccedilu Praticamente quase todos os fatores de produccedilatildeo de insumos e de serviccedilos satildeo exteriores ao municiacutepio A Pesquisa e Desenvolvimento (PampD) na aacuterea da fruticultura irrigada por exemplo eacute concentrada em Israel e na Ameacuterica central enquanto que nas empresas locais ela eacute fruto da proacutepria regiatildeo Eacute interessante perceber que a multinacional faz uso de apenas duas modalidades que diz respeito ao local tal como elencadas na tabela a terra e parte da assistecircncia teacutecnica

Eacute aqui que surge outra indagaccedilatildeo natildeo menos intrigante a percepccedilatildeo e a relaccedilatildeo com a terra do agricultor local satildeo as mesmas que a dos empresaacuterios das multinacionais Seraacute que a responsabilidade e o cuidado (resgatando os conceitos de Jonas) estatildeo implicados do mesmo modo em ambas situaccedilotildees Mais adiante voltaremos a estes pontos

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

254

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

As poliacuteticas puacuteblicas de modernizaccedilatildeo da fruticultura irrigada e a relaccedilatildeo essencial com a terra

Levando em consideraccedilatildeo as poliacuteticas puacuteblicas voltadas para a agricultura na regiatildeo percebe-se que apoacutes a construccedilatildeo da Barragem de Accedilu essas poliacuteticas satildeo voltadas para impulsionar a ldquoRevoluccedilatildeo Verderdquo dando iniacutecio a um forte processo de modernizaccedilatildeo da agricultura Albano a define do seguinte modo

[] consiste num grande crescimento de produtividade e de quantidade na agricultura por meio do uso de tecnologias como os tratores agriacutecolas teacutecnicas de irrigaccedilatildeo defensivos quiacutemicos variedades de sementes aviaccedilatildeo agriacutecola computadores novos meacutetodos de gestatildeo etc De um lado da produccedilatildeo vai se ter a Induacutestria Produtora de Insumos com fertilizantes defensivos e corretivos e do outro vai se ter a Induacutestria de Bens de Capital com tratores colheitadeiras e equipamentos de irrigaccedilatildeo (ALBANO 2008 p 62)

Ainda sobre a Revoluccedilatildeo Verde Shiva afirma

Os sistemas agriacutecolas tradicionais baseiam-se em sistemas de rotaccedilatildeo de culturas e cereais legumes sementes oleaginosas com diversas variedades em cada safra enquanto o pacote da Revoluccedilatildeo Verde baseia-se em monoculturas geneticamente uniformes (SHIVA 2003 p 57)

Em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas no acircmbito da agricultura irrigada em Ipanguaccedilu haacute vaacuterios esforccedilos por parte do governo para impulsionar a modernizaccedilatildeo do campo Em vista disso citando os estudos de Souza (1997) Albano (2008) elenca que no comeccedilo da deacutecada de 1970 o Governo Autoritaacuterio efetivou o I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) Este plano teve como programas mais importantes o Programa de Redistribuiccedilatildeo de Terras (PROTERRA) e de estiacutemulo agrave agroinduacutestria do Norte e Nordeste cujo principal objetivo era ampliar a agroinduacutestria e o Programa de Integraccedilatildeo Nacional (PIN) atraveacutes de um plano de irrigaccedilatildeo no Nordeste

Diante desses esforccedilos para modernizar (tecnificar) a agricultura vale a pena refletirmos sobre o ideal do progresso tecnoloacutegico aliado ao conceito de desenvolvimento econocircmico tatildeo presente na modernidade Essa concepccedilatildeo progressista desconsidera as intencionalidades existentes no artefato tecnoloacutegico e nos indiviacuteduos no que tange agrave sua construccedilatildeo histoacuterica cultural e de valores A instrumentalizaccedilatildeo da ciecircncia e da tecnologia reduz os aparatos e a proacutepria cultura ao meramente teacutecnico e cientiacutefico tendo em vista que o progresso tecnocientiacutefico na maioria das vezes aparece desvinculado da realidade da sociedade local

Herrera (1995 p 117) mostra que isso se torna evidente a partir da Segunda Guerra Mundial com o esforccedilo internacional de implementar e melhorar as Poliacuteticas de Ciecircncia e Tecnologia (CampT) nos paiacuteses considerados ldquosubdesenvolvidosrdquo Poreacutem o que se percebe entre outros fatores eacute a desconexatildeo dos investimentos com a realidade dos paiacuteses da Ameacuterica Latina Tanto as concepccedilotildees de ciecircncia e de tecnologia quanto a ideia de progresso tecnocientiacutefico desvinculados do contexto regional acabam refletindo na construccedilatildeo dos indicadores e das poliacuteticas puacuteblicas em CampT e consequentemente na participaccedilatildeo puacuteblica e na avaliaccedilatildeo deles

Mostrando a desvinculaccedilatildeo das poliacuteticas desenvolvimentistas com o contexto regional Lisboa corrobora com as teses de Robert Kurz quando afirma

As poliacuteticas desenvolvimentistas arrancaram em poucas deacutecadas populaccedilotildees inteiras da sua economia de subsistecircncia tradicional mas natildeo as integraram plenamente (ou seja natildeo as transformaram em cidadatildes) Kurz ao desnudar o colapso da modernizaccedilatildeo do terceiro mundo afirma que ldquoa maior parte da sociedade foi apenas modernizada em sentido negativo isto eacute foram destruiacutedas as estruturas tradicionais sem que alguma coisa nova ocupasse o seu lugarrdquo (LISBOA 1996 p 4-5)

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

255

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Assim as poliacuteticas desenvolvimentistas acabam eliminando a cultura e a praacutetica tradicional dos agricultores locais Relacionando esse contexto com a eacutetica da responsabilidade de Jonas que eacute o propoacutesito deste trabalho podemos testemunhar a sua total exclusatildeo pois a terra passa a ser vista como mero produto mera utilidade que visa ao lucro da exportaccedilatildeo Ou seja haacute um profundo abandono da responsabilidade enquanto cuidado e prudecircncia em relaccedilatildeo agrave terra ao meio ambiente e agraves comunidades que vivem do cultivo da terra

Retomando o olhar sobre a Tabela 1 percebemos que eacute iacutenfima a interaccedilatildeo entre as relaccedilotildees locais que envolvem as praacuteticas da agricultura com a empresa multinacional Neste tipo de praacutetica descarta-se o conhecimento local Desse modo o pensamento transforma-se em monoculturado (SHIVA 2003 p 21) e a cultura torna-se cientificada e tecnificada tendo como justificativa e produto final o progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico Aleacutem disso o proacuteprio debate e a avaliaccedilatildeo puacuteblica que deveria existir para garantir a participaccedilatildeo dos cidadatildeos e a gestatildeo mais democraacutetica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia excluem aqueles que efetivamente satildeo os atores sociais envolvidos neste processo No caso em questatildeo trata-se dos agricultores de Ipanguaccedilu

Aqui recobra sentido a ideia do imperativo tecnoloacutegico abordado por Jonas que elimina a liberdade e a consciecircncia do sujeito em prol de um determinismo tecnoloacutegico Assim o saber local deixa de ter importacircncia e em seu lugar ganha destaque o saber cientiacutefico deixando em evidecircncia as relaccedilotildees estabelecidas entre as multinacionais e o mercado exterior Notadamente na Tabela 1 o saber cientiacutefico e tecnoloacutegico (inclusive importados e produzidos fora do contexto local) satildeo os mais destacados e utilizados em detrimento ao saber local

Percebe-se ouvindo os agricultores da regiatildeo que apesar da instalaccedilatildeo das multinacionais em Ipanguaccedilu ter aumentado a quantidade de empregos a praacutetica do agronegoacutecio extinguiu a diversidade de plantio agriacutecola da regiatildeo Onde antes havia a diversidade cultivada atraveacutes da agricultura de subsistecircncia o cenaacuterio agora eacute o da monocultura com a fruticultura irrigada Um dos agricultores e morador local disse ldquoA agricultura aqui antes era em primeiro lugar Tinha tudo saiacutea muita carrada de pimentatildeo saiacutea muito tomate tinha bastante milho feijatildeo Hoje da agricultura o que tem bastante eacute soacute bananardquo (Entrevistado B)

Aleacutem disso os agricultores natildeo participam ativamente nas decisotildees das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e dos projetos voltados para a agricultura por parte da EMATER (Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural) cuja principal missatildeo eacute contribuir para a promoccedilatildeo do agronegoacutecio focando na agricultura familiar atraveacutes do serviccedilo de extensatildeo rural em prol do desenvolvimento sustentaacutevel tal como podemos observar na Tabela 2 a seguir

Tabela 2 - Projetos de agricultura irrigada implementados a partir de 1987 ateacute 1990 no Vale do Accedilu para pequenos irrigantes ndash EMATER

Fonte Pinheiro (1995 citado por Albano 2008 p 67)

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

256

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Pelos dados apresentados na tabela observa-se o baixo nuacutemero de projetos voltados para o pequeno agricultor na regiatildeo de Ipanguaccedilu Ainda falta uma poliacutetica puacuteblica que realmente integre o agricultor familiar no cenaacuterio da agricultura modernizada e que leve em conta a participaccedilatildeo popular de forma democraacutetica na sua formulaccedilatildeo Quando questionado sobre o papel da EMATER o mesmo agricultor afirma

A EMATER vem se arrastando a passos de tartaruga Eacute muito devagar Natildeo sei se eacute falta de incentivo dos governantes (que eu acredito que seja) porque tem os teacutecnicos que possuem vontade de colocar as coisas para funcionar mas por conta do recurso natildeo tem como eles colocarem para funcionar (Entrevistado B)

A regiatildeo de Ipanguaccedilu e a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas

Aleacutem do que jaacute observamos ateacute aqui que outros aspectos podemos extrair do contexto apresentado sobre a implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na regiatildeo de Ipanguaccedilu e a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da responsabilidade

Jaacute introduzimos este aspecto na parte anterior deste trabalho mas vale a pena aprofundar um pouco mais a criacutetica ao progresso tecida por Jonas (2006) ao que ele denomina de ideal baconiano e a relaccedilatildeo com o ideal de progresso presente na regiatildeo de Ipanguaccedilu Mais especificamente trata-se de evidenciar a relaccedilatildeo da dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica

Como visto anteriormente a tese principal defendida por Hans Jonas eacute que a teacutecnica moderna se converte em ameaccedila natildeo apenas fiacutesica mas tambeacutem ideoloacutegica na medida em que propaga o ideal de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico a qualquer custo o que segundo ele representa um perigo para toda a humanidade Sobre este perigo ele argumenta

O perigo decorre da dimensatildeo excessiva da civilizaccedilatildeo teacutecnico-industrial baseada nas ciecircncias naturais O que chamamos de programa baconiano ndash ou seja colocar o saber a serviccedilo da dominaccedilatildeo da natureza e utilizaacute-la para melhorar a sorte da humanidade ndash natildeo contou desde as origens na sua execuccedilatildeo capitalista com a racionalidade e a retidatildeo que lhe seriam adequadas poreacutem sua dinacircmica de ecircxito que conduz obrigatoriamente aos excessos de produccedilatildeo e consumo teria subjugado qualquer sociedade considerando-se a breve escala de tempo dos objetivos humanos e a imprevisibilidade real das dimensotildees do ecircxito (uma vez que nenhuma sociedade se compotildee de saacutebios) (JONAS 2006 p 235)

Jonas atenta aos perigos existentes na civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica e utilitaacuteria onde partimos do pressuposto de que a teacutecnica moderna eacute indispensaacutevel para a sociedade e que sobretudo eacute nela que encontraremos o triunfo (o que o filoacutesofo denomina de ecircxito) Nessa perspectiva ele afirma que ldquoa ameaccedila de cataacutestrofe do ideal baconiano de dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica reside portanto na magnitude do seu ecircxito Esse ecircxito tem dois aspectos econocircmico e bioloacutegicordquo (2006 p 235) O ecircxito econocircmico resultaria no esgotamento dos recursos naturais atraveacutes do aumento da produccedilatildeo de bens e diminuiccedilatildeo do dispecircndio do trabalho humano enquanto que o bioloacutegico consistiria em um aumento exponencial da populaccedilatildeo

Dito isso a partir da ambivalecircncia do ecircxito presente no ideal baconiano podemos fazer um contraponto com a implementaccedilatildeo das poliacuteticas voltadas para a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu Natildeo estariam inseridas nesta loacutegica as poliacuteticas puacuteblicas que surgiram para impulsionar a Revoluccedilatildeo Verde Nesse contexto percebemos um forte crescimento de produtividade na agricultura atraveacutes da utilizaccedilatildeo de novas tecnologias oriundas da ideia de modernizar o campo aumentando assim a visibilidade das empresas multinacionais e diminuindo as atividades de subsistecircncia (ldquoecircxito econocircmicordquo) Do mesmo modo constatamos o aumento populacional em certas comunidades como mostrado anteriormente onde antes

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

257

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

havia 50 moradores apoacutes a instalaccedilatildeo das multinacionais a populaccedilatildeo da comunidade aumentou para 500 moradores (ldquoecircxito bioloacutegicordquo) Isso posto e respondendo agrave pergunta anterior podemos afirmar que de certo modo essas poliacuteticas que surgem com vistas agrave modernizaccedilatildeo do campo estatildeo inseridas nesta ambiguidade do ecircxito colocada por Hans Jonas quando pensamos no ideal baconiano de um lado o econocircmico com a maior produtividade e menor dispecircndio do trabalho do outro o bioloacutegico com o aumento populacional

Outra relaccedilatildeo que podemos evidenciar levando em conta este cenaacuterio utilitaacuterio advindo da modernizaccedilatildeo da agricultura eacute a questatildeo da alimentaccedilatildeo Citando a utoacutepica ldquoreconstruccedilatildeo da naturezardquo pensada por Bloch Jonas afirma que

[] por causa do seu ecircxito bioloacutegico e do seu crescimento irresistiacutevel a humanidade se vecirc forccedilada a adicionar produtos quiacutemicos agrave camada produtiva da crosta terrestre [] As tecnologias agraacuterias de maximizaccedilatildeo tecircm impactos cumulativos sobre a natureza que mal comeccedilaram a revelar-se em acircmbito local por exemplo na poluiccedilatildeo quiacutemica dos recursos hiacutedricos e das aacuteguas costeiras (para o que contribuem tambeacutem as induacutestrias) com efeitos nocivos transmitidos pela cadeia alimentar A salinizaccedilatildeo dos solos pela irrigaccedilatildeo constante a erosatildeo provocada pela aragem dos campos [] (JONAS 2006 p 302)

Historicamente eacute sabido que a proposta da eacutetica jonasiana deu cabida a muitos movimentos ecologistas no final do seacuteculo passado inclusive orientando as diretrizes do Partido Verde na Alemanha a partir dos anos noventa Mas tambeacutem eacute fato que Jonas ao duvidar das apostas nas tecnologias modernas com o uso de fertilizantes agrotoacutexicos e o cultivo da monocultura para o crescimento a qualquer custo tambeacutem coloca em crise os ideais surgidos na Revoluccedilatildeo Verde Nesse mesmo sentido quando indagado sobre a questatildeo socioambiental e do progresso na agricultura familiar e no agronegoacutecio o entrevistado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu argumenta

Tanto os agricultores familiares precisam ainda lidar com a questatildeo socioambiental como tambeacutem as empresas que estatildeo no municiacutepio Haacute empresas que trabalhavam com a pulverizaccedilatildeo aeacuterea atraveacutes de aviotildees e envenenaram rios plantaccedilotildees houve mortandade de peixes e com isso foram feitas denuacutencias ao IDEMA ndash que eacute o oacutergatildeo de meio ambiente estadual ao IBAMA Tecircm empresas que foram multadas em vaacuterios milhotildees de reais e estatildeo procurando se adequar ao meio ambiente para prejudicar menos Tambeacutem podemos abordar a questatildeo do progresso cientiacutefico (Entrevistado A)

A visatildeo de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico aliada ao desenvolvimento presente na modernidade acaba mascarando os efeitos desastrosos da tecnificaccedilatildeo em escala planetaacuteria O discurso de um crescente bem-estar (tanto social quanto econocircmico) faz-nos acreditar que soacute existe uma uacutenica via a ser seguida que eacute a do desenvolvimento Poreacutem essa falsa sensaccedilatildeo eclipsa o pensar que questiona a teacutecnica e a sua relaccedilatildeo com a sociedade na atualidade

Ainda dentro da ameaccedila do ideal baconiano exposto por Jonas outro aspecto relevante e que merece destaque aqui eacute a questatildeo da dominaccedilatildeo da natureza a partir da teacutecnica moderna Jonas (2006 p 236) considera que na ldquodialeacutetica do poder sobre a natureza e a compulsatildeo de exercecirc-lardquo o poder tornou-se crucial nesta relaccedilatildeo Assim ele afirma

A foacutermula baconiana afirma que saber eacute poder Mas eacute o proacuteprio programa baconiano que no aacutepice do triunfo revela-se insuficiente com a sua contradiccedilatildeo intriacutenseca ou seja o descontrole sobre si mesmo mostrando-se incapaz de proteger o homem de si mesmo e a natureza do homem (2006 p 236)

A partir desta dialeacutetica estabelecida entre poder teacutecnica moderna e sua relaccedilatildeo com o homem e a proacutepria natureza Jonas afirma que tanto o homem quanto a natureza precisam de proteccedilatildeo quando se pensa na magnitude do poder que o progresso cientiacutefico alcanccedilou Pensamento semelhante jaacute havia sido

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

258

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

propagado tambeacutem por Marcuse (1982) quando nos anos sessenta do seacuteculo passado afirmava a unidimensionalidade da condiccedilatildeo humana advinda da teacutecnica moderna Esse poder eacute caracterizado pela necessidade do uso crescente da teacutecnica conduzindo o homem a uma incapacidade de frear o contiacutenuo progresso muito embora ele (o homem) insista em acreditar que a natureza eacute apenas um objeto de exploraccedilatildeo e estaacute disponiacutevel para atender meramente agrave sua vontade

Aleacutem desta problemaacutetica do progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico colocado por Jonas podemos tambeacutem fazer uma relaccedilatildeo entre as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade e o municiacutepio de Ipanguaccedilu Tal como jaacute salientamos anteriormente o primeiro aspecto a destacar desde a eacutetica jonasiana eacute o dever do homem perante a biosfera como dever responsaacutevel garantindo tanto a preservaccedilatildeo do presente quanto do futuro da humanidade e da natureza Portanto neste aspecto haveriacuteamos de indagar ateacute que ponto a agricultura familiar na regiatildeo de Ipanguaccedilu torna vaacutelido esse dever e se o mesmo procede com o agronegoacutecio Como dito anteriormente o agronegoacutecio visa agrave monocultura e agrave modernizaccedilatildeo da agricultura ou seja as atividades agriacutecolas satildeo baseadas no controle teacutecnico da terra gerando uma maior produccedilatildeo que garante a exportaccedilatildeo e o investimento no mercado interno visando ao lucro Do outro lado estaacute a agricultura familiar tendo como principal caracteriacutestica o cultivo de subsistecircncia Podemos observar que no primeiro exemplo a natureza eacute vista como um objeto de lucro enquanto que no segundo ela eacute vista como um ldquoobjetordquo de responsabilidade E eacute no contexto do segundo exemplo que se insere o sentido do ldquodever serrdquo tal como observa Jonas Poreacutem o que ocorre eacute que na atualidade as atividades desenvolvidas pelas multinacionais do agronegoacutecio em Ipanguaccedilu eacute que vecircm merecendo lugar de destaque no cenaacuterio das poliacuteticas puacuteblicas locais

Consideraccedilotildees Finais

Do exposto ateacute aqui fica expliacutecito que eacute necessaacuterio um olhar criacutetico sobre a problemaacutetica existente do paradigma cientiacutefico e tecnoloacutegico presente na modernidade que impele tudo ao progresso e ao desenvolvimento Do mesmo modo tambeacutem eacute preciso refletir sobre como tratamos a realidade e o contexto cultural local visto que natildeo podem ser marginalizados em prol do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico e econocircmico global Observando o sentido do desenvolvimento neste contexto Lisboa argumenta

O desenvolvimento comporta em si mesmo o subdesenvolvimento O padratildeo mimeacutetico do desenvolvimento fundado no estilo ocidental de vida com altos niacuteveis de consumo e desperdiacutecio tem cegado os povos do terceiro mundo os impedindo de se encontrar com sua identidade Ora um povo privado de sua identidade natildeo eacute capaz de se autodeterminar (LISBOA 1996 p 7)

Apesar de a instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo de Ipanguaccedilu ter reduzido a diversidade da regiatildeo atraveacutes do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico o pouco que haacute da praacutetica da agricultura familiar ainda insiste em preservar a relaccedilatildeo essencial com a terra e com tradiccedilotildees culturais Nela se vecirc refletido o princiacutepio eacutetico da responsabilidade de Hans Jonas onde haacute a preocupaccedilatildeo do cuidado com o lugar onde vivem para que as futuras geraccedilotildees possam viver de forma sustentaacutevel Na agricultura familiar tambeacutem se torna visiacutevel a temeridade e a relaccedilatildeo do ser teacutecnico com a prudecircncia onde os valores estatildeo na biosfera e natildeo na utilidade do fazer antropocecircntrico e egoiacutesta da condiccedilatildeo humana de estar no mundo

Insistir na permanecircncia desta praacutetica eacute insistir na participaccedilatildeo direta ativa e democraacutetica dos agricultores na formulaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e nos projetos voltados para a agricultura Pois se no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia tambeacutem estaacute inserida a dimensatildeo social entatildeo a implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia deve ser decidida pelos atores sociais nela implicados (MIRANDA 2012 p 181-182) Dessa forma eacute no espaccedilo puacuteblico de debate com a populaccedilatildeo diretamente afetada pelas implementaccedilotildees tecnocientiacuteficas que construiacutemos esta praacutetica democraacutetica e participativa frente agrave ciecircncia e agrave tecnologia eliminando assim a violecircncia contra a cultura local tal como situa Shiva

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

259

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

O primeiro plano da violecircncia desencadeada contra os sistemas locais de saber eacute natildeo consideraacute-los um saber A invisibilidade eacute a primeira razatildeo pela qual os sistemas locais entram em colapso antes de serem testados e comprovados pelo confronto com o saber dominante do Ocidente A proacutepria distacircncia elimina os sistemas locais da percepccedilatildeo Quando o saber local aparece de fato no campo da visatildeo globalizadora fazem com que desapareccedila negando-lhe o status de um saber sistemaacutetico e atribuindo-lhe os adjetivos de primitivo e anticientiacutefico (SHIVA 2003 p 22-23)

Portanto tal como ensina Shiva para que haja inclusatildeo e um processo democraacutetico na participaccedilatildeo puacuteblica voltada para a ciecircncia e para a tecnologia eacute preciso que a visatildeo globalizante da tecnificaccedilatildeo e da cientifizaccedilatildeo natildeo anule o conhecimento local com a justificativa de que eles natildeo satildeo cientiacuteficos O saber local e as praacuteticas culturais dos agricultores devem ser levados em consideraccedilatildeo nesses processos de implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de garantir o empoderamento dos atores sociais neles implicados

Ora que liccedilotildees podemos extrair destas constataccedilotildees se vincularmos ao agir eacutetico Agrave luz das teses apresentadas por Hans Jonas apontamos alguns caminhos (i) Que eacute necessaacuterio pensar numa eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica e instrumental abrangendo uma nova dimensatildeo a responsabilidade (ii) Que tal modelo de eacutetica seja capaz de resgatar o conceito de temeridade e a relaccedilatildeo da teacutecnica natildeo somente com a eficiecircncia mas tambeacutem com a prudecircncia (iii) Que eacute fundamental retomar o sentido originaacuterio da eacutetica como cuidado o cuidar do lugar onde se vive (BOFF 1999 MIRANDA 2012)

Em outros termos o questionamento diante da teacutecnica e da ciecircncia levando em consideraccedilatildeo o acircmbito da eacutetica e das poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode estar inserido meramente na dimensatildeo instrumental e antropoloacutegica Trata-se antes de tudo de uma fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da natureza e da condiccedilatildeo humana levando em conta o princiacutepio responsabilidade definido pela eacutetica jonasiana

A justificativa de uma tal eacutetica que natildeo mais se restringe ao terreno imediatamente intersubjetivo da contemporaneidade deve estender-se ateacute a metafiacutesica pois soacute ela permite que se pergunte por que afinal homens devem estar no mundo portanto por que o imperativo incondicional destina-se a assegurar-lhes a existecircncia no futuro A aventura da tecnologia impotildee com seus riscos extremos o risco da reflexatildeo extrema (JONAS 2006 p 22)

Desta forma e diante da insuficiecircncia constatada por Jonas da eacutetica tradicional em propor saiacutedas frente aos novos dilemas eacuteticos pautados pela sociedade tecnocientiacutefica eacute proposta deste estudo pensar um novo agir humano baseado na responsabilidade inclusive no acircmbito da implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de pensar saiacutedas que sejam capazes de ultrapassar as barreiras do discurso desenvolvimentista e por conseguinte determinista da tecnologia e da neutralidade cientiacutefica que ainda persistem e insistem em orientar as praacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na sociedade atual Afinal como diz Miranda com base nos estudos de Jasanoff (1995)

a ciecircncia deveria ter uma funccedilatildeo poliacutetica na medida em que tambeacutem avalia e revisa o estado do conhecimento cientiacutefico e sua aplicabilidade praacutetica Assim diante de programas de controle ambiental por exemplo mais que simplesmente aplicar certo tipo de conhecimento cientiacutefico aparentemente desinteressado neutro o papel da ciecircncia deveria ser tambeacutem eacutetico-poliacutetico no sentido de avaliar suas implicaccedilotildees sociais poliacuteticas culturais etc (MIRANDA 2012 p 181)

Em suma a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no municiacutepio de Ipanguaccedilu ensina-nos que no cenaacuterio da instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo impulsionadas por poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas supostamente de cunho desenvolvimentista e que correspondem ao ideal progressista cujo agir eacute meramente utilitaacuterio e de exploraccedilatildeo da natureza visando cada vez mais ao lucro a eacutetica da responsabilidade pode ser a criacutetica e o

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

260

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

norte de uma nova forma de agir Desde sua criacutetica tambeacutem eacute possiacutevel formular poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas que levem em conta os atores sociais nelas implicados tornando o processo democraacutetico e natildeo somente tecnocraacutetico Por outro lado e considerando o cenaacuterio da agricultura familiar e dos agricultores que ali vivem e lidam com a terra a eacutetica da responsabilidade surge como forma de corroborar com suas praacuteticas como a accedilatildeo eacutetica que visa ao cuidado com o lugar onde vivem pois eles (os agricultores) natildeo satildeo apenas ldquodonosrdquo da terra mas ocupam e essencializam a terra atraveacutes da relaccedilatildeo de cuidado e de prudecircncia no ato de cultivar a terra

Eacute a partir desta constataccedilatildeo que apresentamos a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas como uma eacutetica possiacutevel de ser aplicada nesse contexto de aparente dualidade entre a agricultura familiar e o agronegoacutecio Levando em conta as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade como o conceito da responsabilidade e do ideal utoacutepico do progresso cientiacutefico tecnoloacutegico a relaccedilatildeo com o meio ambiente e com a terra concluiacutemos que urge pensar sua aplicaccedilatildeo tambeacutem no campo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas A sua utilizaccedilatildeo no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia torna-se necessaacuteria no atual contexto da modernizaccedilatildeo em que estatildeo submetidos grupos sociais comunidades e povos inteiros E ainda que guardados seus devidos limites (MIRANDA 2012 p 143) a responsabilidade eacute um princiacutepio eacutetico que pode contribuir para nortear as accedilotildees tecnocientiacuteficas rumo agrave uma sociedade mais sustentaacutevel e equilibrada

Referecircncias

AGEcircNCIA Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba (AESA) Comitecircs Piranhas-Accedilu apresentaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwaesapbgovbrcomitespiranhasacu Acesso em 23 ago 2015

ALBANO Gleydson SAacute Alcindo Poliacuteticas puacuteblicas e globalizaccedilatildeo da agricultura no Vale do Accedilu-RN Revista de Geografia Recife UFPE ndash DCGNAPA v 25 n 2 maiago 2008

APEL Karl-Otto Estudos de moral moderna Petroacutepolis Vozes 2000

BECK Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Traduccedilatildeo original do alematildeo de Sebastiatildeo Nascimento Satildeo Paulo Editora 34 2010

BOFF Leonardo Saber cuidar eacutetica do humano Petroacutepolis Vozes 1999

HEIDEGGER Martin A questatildeo da teacutecnica Ensaios e conferecircncias I Traduzido por Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan Fode Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes Braganccedila Paulista Ed Universitaacuteria Satildeo Francisco 2012

HERRERA Amiacutelcar O Los determinantes sociales de la poliacutetica cientiacutefica en Ameacuterica Latina Poliacutetica cientiacutefica expliacutecita y poliacutetica cientiacutefica impliacutecita Argentina Redes v 2 1995

INSTITUTO Brasileiro de Geografia E Estatiacutestica (IBGE) Censo Demograacutefico 2000 sinopse ndash Rio Grande do Norte ndash Ipanguaccedilu Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtras temasphplang=ampcodmun=240470ampidtema=1ampsearch=rio-grande-do-norte|ipanguacu|censo-demografico-2010-sinopse- Acesso em 14 ago 2015

JASANOFF S Procedural choices in regulatory science Technology in Society 17 1995 httpsdoiorg1010160160-791x(95)00011-f

JONAS Hans O princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Rio de Janeiro Contraponto 2006

JONAS Hans Teacutecnica medicina y eacutetica Sobre la praacutectica del principio de la responsabilidad Barcelona Paidoacutes 1997

LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001

LISBOA Armando de Melo Desenvolvimento uma ideia subdesenvolvida Cadernos do CEAS Salvador n 161 1996

MARCUSE Herbert A ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional Rio de Janeiro Jorge Zahar 1982

MIRANDA A L iquestUna eacutetica para la civilizacioacuten tecnoloacutegica Posibilidades y liacutemites del principio de la responsabilidad de Hans Jonas AlemanhaEspanha Lap LambertEAE 2012

MORIN E Ciecircncia com consciecircncia Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005

SERRES Michel Le contrat natural Paris Flammarion 1992

SHIVA Vandana AZEVEDO Dinah de Abreu Monoculturas da mente perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia Satildeo Paulo Gaia 2003

SIQUEIRA JE Hans Jonas e a eacutetica da responsabilidade Mundo Sauacutede 1999

WEBCARTA Mapa do Rio Grande do Norte Disponiacutevel em webcartanetcartamapaphpid=244amplg=pt Acesso em 26 ago 2015

WOLIN Richard Heideggerrsquos children Hannah Arendt Karl Loumlwith Hans Jonas y Herbert Marcuse Princepton Princepton University Press 2001

ZANCANARO L O conceito de responsabilidade em Hans Jonas CampinasSP Ed UNICAMP 1998

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Page 6: O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail: angelamiranda@ect@ufrn.br. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

249

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

qualquer responsabilidade ativa o que pode acontecer a ele se eu natildeo assumir a responsabilidade por ele Quanto mais obscura a resposta maior se delineia a responsabilidade Quanto mais no futuro longiacutenquo situa-se aquilo que se teme quanto mais distante do nosso bem-estar ou mal-estar quanto menos familiar for o seu gecircnero mais necessitam ser diligentemente mobilizadas a lucidez da imaginaccedilatildeo e a sensibilidade dos sentidos Torna-se necessaacuteria uma heuriacutestica do medo capaz de investigar que natildeo soacute descubra e represente o novo objeto como tal mas que tome conhecimento do interesse moral particular ao ser interpelado pelo objeto (JONAS 2006 p 352 grifo nosso)

Portanto o conceito de responsabilidade para Jonas diz respeito ao cuidado com o outro ser que dada a ameaccedila de sua vulnerabilidade converte-se em pre-ocupaccedilatildeo diante da condiccedilatildeo humana de poder cuidar (MIRANDA 2012 p 82 e ss) A responsabilidade eacute o valor que deve reger a accedilatildeo praacutetica segundo Jonas Desse modo a accedilatildeo (como um agir moral) deve possuir como aspecto essencial o cuidado como obrigaccedilatildeo levando em conta a permanecircncia das futuras geraccedilotildees no planeta frente aos desafios enfrentados pela sociedade tecnocientiacutefica

Ainda na perspectiva da accedilatildeo eacutetica e levando em consideraccedilatildeo as futuras geraccedilotildees observa Jonas que a accedilatildeo humana potencialmente tecnificada pode prejudicar irreversivelmente a natureza e o proacuteprio homem A partir daiacute aparece um novo tipo de verdade como objeto do saber cientiacutefico a verdade que consiste nas condiccedilotildees futuras do homem e da natureza a verdade que deve natildeo somente diagnosticar mas tambeacutem prognosticar Neste sentido Jonas argumenta

Portanto esse saber real e eventual relativo agrave esfera dos fatos (que continua sendo teoacuterico) situa-se entre o saber ideal da doutrina eacutetica dos princiacutepios e o saber praacutetico relacionado agrave utilizaccedilatildeo poliacutetica o qual soacute pode operar com os seus diagnoacutesticos hipoteacuteticos relativos ao que se deve esperar ao que se deve incentivar ou ao que se deve evitar Haacute de se formar uma ciecircncia da previsatildeo hipoteacutetica uma ldquofuturologia comparativardquo (JONAS 2006 p 70)

Eacute nesse sentido que Jonas modifica o imperativo kantiano ateacute entatildeo predominante como modelo tradicional de eacutetica invertendo-o

Esse novo imperativo ldquoage de tal forma que os efeitos de suas accedilotildees sejam compatiacuteveis com a permanecircncia de uma vida humana autecircnticardquo ou formulando negativamente ldquonatildeo ponha em risco a continuidade indefinida da humanidade na Terrardquo vem substituir o imperativo kantiano ldquoage de tal forma que o princiacutepio da tua accedilatildeo se transforme numa lei universalrdquo (JONAS 2006 p 18)

Ao formular um novo imperativo eacutetico transformando-o em seu princiacutepio da responsabilidade Jonas atenta natildeo apenas para a destruiccedilatildeo fiacutesica da humanidade e da biosfera mas tambeacutem para o resgate essencial da relaccedilatildeo entre o ser teacutecnico e a natureza Segundo Miranda (2012 p 83) o imperativo eacutetico jonasiano da responsabilidade possui uma nova fundamentaccedilatildeo que eacute o sentido ontoloacutegico o que eacute levado em consideraccedilatildeo natildeo eacute apenas o fazer utilitarista mas essencialmente o ser Trata-se do caraacuteter metafiacutesico da eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas ou da fundamentaccedilatildeo metafiacutesica do agir eacutetico baseado na responsabilidade

Em siacutentese para Jonas os mandamentos da eacutetica tradicional estabelecidos por Kant Bentham Mill e outros filoacutesofos estatildeo direcionados agraves relaccedilotildees e agraves accedilotildees imediatas do ser humano e que natildeo se preocupam com o futuro ou a continuidade da vida no planeta de um modo geral (ZANCANARO 1998 p 09) Poreacutem para que haja responsabilidade eacute necessaacuterio existir uma consciecircncia criacutetica perante as consequecircncias advindas da aplicaccedilatildeo da ciecircncia e da tecnologia na sociedade

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

250

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

No entanto Jonas (2006 p 18) afirma que o imperativo tecnoloacutegico elimina a consciecircncia o sujeito e a liberdade em prol de um determinismo Ou seja o sujeito torna-se alienado agrave proacutepria ciecircncia e agrave tecnologia Do mesmo modo sobre o pensamento cientiacutefico Edgar Morin adverte

O pensamento cientiacutefico eacute ainda incapaz de se pensar de pensar sua proacutepria ambivalecircncia e sua proacutepria aventura A ciecircncia deve reatar com a reflexatildeo filosoacutefica como a filosofia cujos moinhos giram vazios por natildeo moer os gratildeos dos conhecimentos empiacutericos deve reatar com as ciecircncias A ciecircncia deve reatar com a consciecircncia poliacutetica e eacutetica (MORIN 2005 p 11)

Tambeacutem nesse sentido Ulrick Beck ao analisar o que ele denomina ldquoa sociedade do risco globalrdquo entende que a ciecircncia jaacute natildeo pode levar consigo a ideia de neutralidade mas sim a criticidade e a reflexatildeo quanto ao seu uso Assim ele argumenta

Na passagem para a praacutexis as ciecircncias satildeo agora confrontadas com a objetivaccedilatildeo de seu proacuteprio passado e presente consigo mesmas como produto e produtora da realidade e de problemas que cabe a elas analisar e superar Desse modo elas jaacute natildeo satildeo vistas apenas como manancial de soluccedilotildees para os problemas mas ao mesmo tempo tambeacutem como manancial de causas de problemas[] e por paradoxal que pareccedila num mundo jaacute loteado cientificamente e profissionalmente administrado as perspectivas de futuro e as oportunidades de expansatildeo da ciecircncia estatildeo vinculadas tambeacutem agrave criacutetica da ciecircncia (BECK 2010 p 236)

Esclarecido o conceito de responsabilidade dentro da eacutetica proposta por Hans Jonas e problematizada a accedilatildeo humana tecnificada no contexto da sociedade tecnocientiacutefica torna-se mister elencar as principais caracteriacutesticas que norteiam a eacutetica da responsabilidade tal como abordaremos a seguir

As principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade

Uma das caracteriacutesticas principais da eacutetica da responsabilidade proposta por Jonas eacute a questatildeo do dever para com a biosfera Mas em que consiste esse dever ldquoO dever do homem consiste em preservar este mundo fiacutesico de modo que as condiccedilotildees para tal presenccedila continuem ilesas ou intocadas ou seja proteger a vulnerabilidade do mundo que habitamos diante das ameaccedilasrdquo (JONAS 2006 p 45) Ou seja o dever estaacute incorporado ao conceito de responsabilidade e do cuidado com a biosfera levando em consideraccedilatildeo a previsibilidade da accedilatildeo teacutecnica

Para deixar mais expliacutecito em que consiste esse dever Jonas identifica-o a partir de distintos estaacutegios O primeiro dever ldquoconsiste em visualizar os efeitos a longo prazo estimar as consequecircncias dos atos natildeo soacute na sociedade mas tambeacutem no meio ambiente na naturezardquo (JONAS 2006 p 72) Ou seja aleacutem de precisar existir uma estimativa de consequecircncias dos atos humanos baseada no futuro esta previsatildeo natildeo pode vincular apenas o aspecto antropoloacutegico mas tambeacutem a natureza Jaacute o segundo dever ldquoconsiste em [] utilizar o medo dessas consequecircncias para estimular o respeito agrave vida humana e extra-humana Para isso basta lembrar o quatildeo as invenccedilotildees do homem podem ser imprevisiacuteveisrdquo (JONAS 2006 p 73) O medo aqui aparece como fator de prevenccedilatildeo principalmente para preservar as futuras geraccedilotildees A partir disso Jonas aponta para uma heuriacutestica do temor afirmando que se torna necessaacuterio o prognoacutestico e a temeridade em relaccedilatildeo agraves possiacuteveis consequecircncias catastroacuteficas do saber cientiacutefico e tecnoloacutegico aplicado perante a biosfera ou seja ldquoo saber origina-se daquilo contra o que devemos nos protegerrdquo (JONAS 2006 p 71)

Poreacutem Jonas conclui que esse temor que serve para que possamos refletir prever e prevenir as futuras consequecircncias catastroacuteficas natildeo eacute o mesmo medo que nos deixa paralisados

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

251

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Os homens experientes sabem que um dia podem desejar natildeo ter agido desta ou daquela forma O medo de que falo natildeo se refere a esse tipo de incerteza ou ele pode estar presente apenas como um efeito secundaacuterio Com efeito eacute uma das condiccedilotildees da accedilatildeo responsaacutevel natildeo se deixar deter por esse tipo de incerteza assumindo-se ao contraacuterio a responsabilidade pelo desconhecido dado o caraacuteter incerto da esperanccedila isso eacute o que chamamos de ldquocoragem para assumir a responsabilidaderdquo O medo que faz parte da responsabilidade natildeo eacute aquele que nos aconselha a natildeo agir mas aquele que nos convida a agir Trata-se de um medo que tem a ver com o objeto da responsabilidade (JONAS 2006 p 351)

Dessa forma a heuriacutestica do temor aponta para uma eacutetica baseada em antecipar os efeitos futuros e nos fazer agir de maneira mais prudente em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia Nesse sentido Miranda interpretando o sentido jonasiano de eacutetica afirma

[] podemos formular os deveres preliminares de uma eacutetica orientada para o futuro que satildeo buscar a representaccedilatildeo dos efeitos remotos pois somente o que eacute temido pode ser evitado por sua representaccedilatildeo e buscar o temor mediante a apelaccedilatildeo a um sentimento apropriado que o representa (MIRANDA 2012 p 81)

Podemos concluir portanto que a eacutetica da responsabilidade proposta por Hans Jonas eacute um modelo que pensado para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica leva em conta a biosfera a permanecircncia das futuras geraccedilotildees no planeta resgatando a ideia do cuidado do lugar onde se vive em meio aos desafios enfrentados pela sociedade tecnocientiacutefica E eacute a partir desses conceitos que a seguir abordaremos ilustrativamente a aplicaccedilatildeo (ou a ausecircncia) da responsabilidade na implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia dada uma situaccedilatildeo concreta que pertence ao local desde onde falamos e pensamos este trabalho

A aplicaccedilatildeo do princiacutepio responsabilidade de Hans Jonas numa situaccedilatildeo concreta o caso de

IpanguaccediluRN

Sobre a praacutetica do princiacutepio da responsabilidade Jonas escreveu uma obra muito interessante intitulada ldquoTeacutecnica medicina e eacuteticardquo (1997) Naquela oportunidade ele procurou estabelecer a relaccedilatildeo entre a teacutecnica a medicina e a eacutetica inserindo nesta relaccedilatildeo o princiacutepio da responsabilidade A partir daqui neste trabalho pretendemos percorrer uma trajetoacuteria semelhante considerando a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade no cenaacuterio das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas tendo como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no Municiacutepio de Ipanguaccedilu localizado no Estado do Rio Grande do Norte Agrave luz do princiacutepio da responsabilidade de Jonas analisamos as caracteriacutesticas locais da comunidade de agricultores de Ipanguaccedilu do ponto de vista econocircmico cultural e social e como se deu o processo de participaccedilatildeo dos agricultores locais nas poliacuteticas puacuteblicas voltadas para agricultura em especial o caso da fruticultura irrigada

O municiacutepio de IpanguaccediluRN

Ipanguaccedilu eacute um municiacutepio do Estado do Rio Grande do Norte que faz parte da microrregiatildeo do Vale do Accedilu Esta microrregiatildeo eacute formada por nove municiacutepios incluindo Ipanguaccedilu que estatildeo localizados na bacia do Rio PiranhasAccedilu e que possui cerca de 4368150 kmsup2 de extensatildeo segundo dados da AESA (Agecircncia Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba) Eacute importante ressaltar que o Rio PiranhasAccedilu desempenha um papel de extrema importacircncia pois possui o maior reservatoacuterio de aacutegua do Estado do RN a barragem Armando Ribeiro Gonccedilalves

Figura 1 - Mapa do Estado do Rio Grande do Norte Vale do Accedilu em destaque

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

252

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Fonte Webcarta (2015 destaque nosso)

Em Ipanguaccedilu o processo de produccedilatildeo e a base da economia satildeo marcados principalmente pela

agricultura pecuaacuteria e induacutestria da ceracircmica Na agricultura a accedilatildeo do cultivo era de subsistecircncia poreacutem atualmente com a instalaccedilatildeo de empresas na regiatildeo a praacutetica da agricultura eacute centrada na atividade da fruticultura irrigada voltada para exportaccedilatildeo Essa mudanccedila de cenaacuterio do cultivo de subsistecircncia para o cultivo voltado para a exportaccedilatildeo alterou drasticamente o modo de agir tanto na percepccedilatildeo dos agricultores sobre a terra e o que ela simboliza ou representa quanto na forma de lidar com a terra

A construccedilatildeo da Barragem Armando Ribeiro na regiatildeo evidenciou tais mudanccedilas pois segundo Albano (2008) a construccedilatildeo da Barragem configurou dois periacuteodos importantes no municiacutepio o primeiro (1972-1992) marcado pela chegada de empresas nacionais do ramo da agricultura o segundo (1993-2015) marcado pela entrada de multinacionais no municiacutepio como eacute o caso da Del Monte Fresh Produce Essas mudanccedilas representaram natildeo apenas a inserccedilatildeo de empresas do ramo da agricultura na regiatildeo mas tambeacutem uma mudanccedila no cenaacuterio do mercado e da relaccedilatildeo com a terra Pois num primeiro momento ocorreu a migraccedilatildeo da agricultura de subsistecircncia para a de mercado enquanto que num segundo foi adotada a visatildeo de exportaccedilatildeo tendo como base a fruticultura irrigada da monocultura da banana

Outro fato importante eacute que 612 da populaccedilatildeo estaacute situada e trabalha no meio rural segundo o Censo Demograacutefico de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) Dessa forma podemos observar que a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu-RN eacute extremamente importante natildeo soacute para os agricultores locais como tambeacutem e sobretudo para a dinacircmica econocircmica do municiacutepio Eacute em torno dela que se configura a relaccedilatildeo com a terra com a cultura e com a economia no contexto social da regiatildeo

Baseados no caraacuteter metodoloacutegico jaacute explicitado anteriormente e levando em conta a dinacircmica da (re)configuraccedilatildeo da terra ficou evidente a partir da nossa observaccedilatildeo in loco realizada no municiacutepio de Ipanguaccedilu (2014) que a maioria dos trabalhadores rurais natildeo trabalha em sua proacutepria terra mas na terra de terceiros (apenas 3 do total de 10 entrevistados possuem propriedade proacutepria) Segundo o Entrevistado A trabalhador do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu antes da instalaccedilatildeo das empresas multinacionais no municiacutepio havia comunidades que possuiacuteam 50 moradores Mas nos uacuteltimos 15 anos essas comunidades tiveram um aumento populacional vertiginoso chegando a ter 500 famiacutelias Isso segundo ele aconteceu pelo fato de as pessoas deixarem ou venderem suas pequenas propriedades para trabalhar de assalariado no agronegoacutecio Segue trecho do diaacutelogo

Tecircm comunidades no municiacutepio de Ipanguaccedilu que antes das empresas serem instaladas no municiacutepio tinham 50 moradores Essa comunidade de 15 anos pra caacute estaacute com aproximadamente 500 famiacutelias porque as pessoas deixaram ou venderam suas pequenas propriedades para vir trabalhar de assalariado no agronegoacutecio Portanto hoje grande parte dessas pessoas querem voltar para suas terras que muitas vezes foram adquiridas por essas empresas que se tornaram donas das terras do municiacutepio As pessoas estatildeo batalhando para tentar conseguir

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

253

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

outro pedaccedilo de terra para voltar agrave sua origem porque eles estatildeo vendo que com a matildeo-de-obra assalariada eles nunca iratildeo ter uma autonomia econocircmica eles ganham apenas para o sustento familiar (Entrevistado A)

Neste sentido Albano (2008 p 65) acrescenta que ldquoA agricultura de subsistecircncia tambeacutem diminuiu muito com a Barragem e depois dela com as compras de terras pelas grandes empresas rurais interessadas em produzir monoculturas para exportaccedilatildeo ou para o mercado internordquo Como exemplo para ilustrar essa (re)configuraccedilatildeo do espaccedilo e da relaccedilatildeo com a terra podemos citar a multinacional Del Monte Fresh Produce Albano assim explicita o contexto da instalaccedilatildeo da empresa na Regiatildeo de Ipanguaccedilu

O ano de 1993 foi o ano do estabelecimento da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio (OMC) e o ano em que foram concluiacutedas as negociaccedilotildees da Rodada Uruguai que incluiacutea a Agricultura nas suas negociaccedilotildees e que previa uma grande liberalizaccedilatildeo do comeacutercio agriacutecola a partir daquele ano nos paiacuteses associados da OMC inclusive o Brasil Aleacutem disso eacute nesse ano que se tem o iniacutecio da compra de terras em Ipanguaccedilu por uma empresa associada agrave Multinacional Del Monte Fresh Produce Posteriormente ela se insere no municiacutepio de Accedilu e Carnaubais ambos no Vale do Accedilu (ALBANO 2008 p 68)

Contudo quais as implicaccedilotildees da instalaccedilatildeo da multinacional para a comunidade e a agricultura da regiatildeo A Tabela 1 a seguir mostra a relaccedilatildeo e a diferenccedila entre a multinacional e as empresas locais quanto aos elementos da cadeia produtiva e jaacute antecipa os indicativos de resposta vejamos

Tabela 1 - A relaccedilatildeo entre fatores de produccedilatildeo e aquisiccedilatildeo dos insumos das empresas com os lugares de compra

Fonte Elaborado por Albano (2008 p 69) baseado em Carvalho (2001)

Analisando a tabela podemos perceber que a multinacional Del Monte Fresh Produce natildeo possui interaccedilatildeo e integraccedilatildeo com a regiatildeo de Ipanguaccedilu Praticamente quase todos os fatores de produccedilatildeo de insumos e de serviccedilos satildeo exteriores ao municiacutepio A Pesquisa e Desenvolvimento (PampD) na aacuterea da fruticultura irrigada por exemplo eacute concentrada em Israel e na Ameacuterica central enquanto que nas empresas locais ela eacute fruto da proacutepria regiatildeo Eacute interessante perceber que a multinacional faz uso de apenas duas modalidades que diz respeito ao local tal como elencadas na tabela a terra e parte da assistecircncia teacutecnica

Eacute aqui que surge outra indagaccedilatildeo natildeo menos intrigante a percepccedilatildeo e a relaccedilatildeo com a terra do agricultor local satildeo as mesmas que a dos empresaacuterios das multinacionais Seraacute que a responsabilidade e o cuidado (resgatando os conceitos de Jonas) estatildeo implicados do mesmo modo em ambas situaccedilotildees Mais adiante voltaremos a estes pontos

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

254

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

As poliacuteticas puacuteblicas de modernizaccedilatildeo da fruticultura irrigada e a relaccedilatildeo essencial com a terra

Levando em consideraccedilatildeo as poliacuteticas puacuteblicas voltadas para a agricultura na regiatildeo percebe-se que apoacutes a construccedilatildeo da Barragem de Accedilu essas poliacuteticas satildeo voltadas para impulsionar a ldquoRevoluccedilatildeo Verderdquo dando iniacutecio a um forte processo de modernizaccedilatildeo da agricultura Albano a define do seguinte modo

[] consiste num grande crescimento de produtividade e de quantidade na agricultura por meio do uso de tecnologias como os tratores agriacutecolas teacutecnicas de irrigaccedilatildeo defensivos quiacutemicos variedades de sementes aviaccedilatildeo agriacutecola computadores novos meacutetodos de gestatildeo etc De um lado da produccedilatildeo vai se ter a Induacutestria Produtora de Insumos com fertilizantes defensivos e corretivos e do outro vai se ter a Induacutestria de Bens de Capital com tratores colheitadeiras e equipamentos de irrigaccedilatildeo (ALBANO 2008 p 62)

Ainda sobre a Revoluccedilatildeo Verde Shiva afirma

Os sistemas agriacutecolas tradicionais baseiam-se em sistemas de rotaccedilatildeo de culturas e cereais legumes sementes oleaginosas com diversas variedades em cada safra enquanto o pacote da Revoluccedilatildeo Verde baseia-se em monoculturas geneticamente uniformes (SHIVA 2003 p 57)

Em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas no acircmbito da agricultura irrigada em Ipanguaccedilu haacute vaacuterios esforccedilos por parte do governo para impulsionar a modernizaccedilatildeo do campo Em vista disso citando os estudos de Souza (1997) Albano (2008) elenca que no comeccedilo da deacutecada de 1970 o Governo Autoritaacuterio efetivou o I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) Este plano teve como programas mais importantes o Programa de Redistribuiccedilatildeo de Terras (PROTERRA) e de estiacutemulo agrave agroinduacutestria do Norte e Nordeste cujo principal objetivo era ampliar a agroinduacutestria e o Programa de Integraccedilatildeo Nacional (PIN) atraveacutes de um plano de irrigaccedilatildeo no Nordeste

Diante desses esforccedilos para modernizar (tecnificar) a agricultura vale a pena refletirmos sobre o ideal do progresso tecnoloacutegico aliado ao conceito de desenvolvimento econocircmico tatildeo presente na modernidade Essa concepccedilatildeo progressista desconsidera as intencionalidades existentes no artefato tecnoloacutegico e nos indiviacuteduos no que tange agrave sua construccedilatildeo histoacuterica cultural e de valores A instrumentalizaccedilatildeo da ciecircncia e da tecnologia reduz os aparatos e a proacutepria cultura ao meramente teacutecnico e cientiacutefico tendo em vista que o progresso tecnocientiacutefico na maioria das vezes aparece desvinculado da realidade da sociedade local

Herrera (1995 p 117) mostra que isso se torna evidente a partir da Segunda Guerra Mundial com o esforccedilo internacional de implementar e melhorar as Poliacuteticas de Ciecircncia e Tecnologia (CampT) nos paiacuteses considerados ldquosubdesenvolvidosrdquo Poreacutem o que se percebe entre outros fatores eacute a desconexatildeo dos investimentos com a realidade dos paiacuteses da Ameacuterica Latina Tanto as concepccedilotildees de ciecircncia e de tecnologia quanto a ideia de progresso tecnocientiacutefico desvinculados do contexto regional acabam refletindo na construccedilatildeo dos indicadores e das poliacuteticas puacuteblicas em CampT e consequentemente na participaccedilatildeo puacuteblica e na avaliaccedilatildeo deles

Mostrando a desvinculaccedilatildeo das poliacuteticas desenvolvimentistas com o contexto regional Lisboa corrobora com as teses de Robert Kurz quando afirma

As poliacuteticas desenvolvimentistas arrancaram em poucas deacutecadas populaccedilotildees inteiras da sua economia de subsistecircncia tradicional mas natildeo as integraram plenamente (ou seja natildeo as transformaram em cidadatildes) Kurz ao desnudar o colapso da modernizaccedilatildeo do terceiro mundo afirma que ldquoa maior parte da sociedade foi apenas modernizada em sentido negativo isto eacute foram destruiacutedas as estruturas tradicionais sem que alguma coisa nova ocupasse o seu lugarrdquo (LISBOA 1996 p 4-5)

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

255

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Assim as poliacuteticas desenvolvimentistas acabam eliminando a cultura e a praacutetica tradicional dos agricultores locais Relacionando esse contexto com a eacutetica da responsabilidade de Jonas que eacute o propoacutesito deste trabalho podemos testemunhar a sua total exclusatildeo pois a terra passa a ser vista como mero produto mera utilidade que visa ao lucro da exportaccedilatildeo Ou seja haacute um profundo abandono da responsabilidade enquanto cuidado e prudecircncia em relaccedilatildeo agrave terra ao meio ambiente e agraves comunidades que vivem do cultivo da terra

Retomando o olhar sobre a Tabela 1 percebemos que eacute iacutenfima a interaccedilatildeo entre as relaccedilotildees locais que envolvem as praacuteticas da agricultura com a empresa multinacional Neste tipo de praacutetica descarta-se o conhecimento local Desse modo o pensamento transforma-se em monoculturado (SHIVA 2003 p 21) e a cultura torna-se cientificada e tecnificada tendo como justificativa e produto final o progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico Aleacutem disso o proacuteprio debate e a avaliaccedilatildeo puacuteblica que deveria existir para garantir a participaccedilatildeo dos cidadatildeos e a gestatildeo mais democraacutetica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia excluem aqueles que efetivamente satildeo os atores sociais envolvidos neste processo No caso em questatildeo trata-se dos agricultores de Ipanguaccedilu

Aqui recobra sentido a ideia do imperativo tecnoloacutegico abordado por Jonas que elimina a liberdade e a consciecircncia do sujeito em prol de um determinismo tecnoloacutegico Assim o saber local deixa de ter importacircncia e em seu lugar ganha destaque o saber cientiacutefico deixando em evidecircncia as relaccedilotildees estabelecidas entre as multinacionais e o mercado exterior Notadamente na Tabela 1 o saber cientiacutefico e tecnoloacutegico (inclusive importados e produzidos fora do contexto local) satildeo os mais destacados e utilizados em detrimento ao saber local

Percebe-se ouvindo os agricultores da regiatildeo que apesar da instalaccedilatildeo das multinacionais em Ipanguaccedilu ter aumentado a quantidade de empregos a praacutetica do agronegoacutecio extinguiu a diversidade de plantio agriacutecola da regiatildeo Onde antes havia a diversidade cultivada atraveacutes da agricultura de subsistecircncia o cenaacuterio agora eacute o da monocultura com a fruticultura irrigada Um dos agricultores e morador local disse ldquoA agricultura aqui antes era em primeiro lugar Tinha tudo saiacutea muita carrada de pimentatildeo saiacutea muito tomate tinha bastante milho feijatildeo Hoje da agricultura o que tem bastante eacute soacute bananardquo (Entrevistado B)

Aleacutem disso os agricultores natildeo participam ativamente nas decisotildees das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e dos projetos voltados para a agricultura por parte da EMATER (Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural) cuja principal missatildeo eacute contribuir para a promoccedilatildeo do agronegoacutecio focando na agricultura familiar atraveacutes do serviccedilo de extensatildeo rural em prol do desenvolvimento sustentaacutevel tal como podemos observar na Tabela 2 a seguir

Tabela 2 - Projetos de agricultura irrigada implementados a partir de 1987 ateacute 1990 no Vale do Accedilu para pequenos irrigantes ndash EMATER

Fonte Pinheiro (1995 citado por Albano 2008 p 67)

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

256

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Pelos dados apresentados na tabela observa-se o baixo nuacutemero de projetos voltados para o pequeno agricultor na regiatildeo de Ipanguaccedilu Ainda falta uma poliacutetica puacuteblica que realmente integre o agricultor familiar no cenaacuterio da agricultura modernizada e que leve em conta a participaccedilatildeo popular de forma democraacutetica na sua formulaccedilatildeo Quando questionado sobre o papel da EMATER o mesmo agricultor afirma

A EMATER vem se arrastando a passos de tartaruga Eacute muito devagar Natildeo sei se eacute falta de incentivo dos governantes (que eu acredito que seja) porque tem os teacutecnicos que possuem vontade de colocar as coisas para funcionar mas por conta do recurso natildeo tem como eles colocarem para funcionar (Entrevistado B)

A regiatildeo de Ipanguaccedilu e a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas

Aleacutem do que jaacute observamos ateacute aqui que outros aspectos podemos extrair do contexto apresentado sobre a implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na regiatildeo de Ipanguaccedilu e a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da responsabilidade

Jaacute introduzimos este aspecto na parte anterior deste trabalho mas vale a pena aprofundar um pouco mais a criacutetica ao progresso tecida por Jonas (2006) ao que ele denomina de ideal baconiano e a relaccedilatildeo com o ideal de progresso presente na regiatildeo de Ipanguaccedilu Mais especificamente trata-se de evidenciar a relaccedilatildeo da dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica

Como visto anteriormente a tese principal defendida por Hans Jonas eacute que a teacutecnica moderna se converte em ameaccedila natildeo apenas fiacutesica mas tambeacutem ideoloacutegica na medida em que propaga o ideal de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico a qualquer custo o que segundo ele representa um perigo para toda a humanidade Sobre este perigo ele argumenta

O perigo decorre da dimensatildeo excessiva da civilizaccedilatildeo teacutecnico-industrial baseada nas ciecircncias naturais O que chamamos de programa baconiano ndash ou seja colocar o saber a serviccedilo da dominaccedilatildeo da natureza e utilizaacute-la para melhorar a sorte da humanidade ndash natildeo contou desde as origens na sua execuccedilatildeo capitalista com a racionalidade e a retidatildeo que lhe seriam adequadas poreacutem sua dinacircmica de ecircxito que conduz obrigatoriamente aos excessos de produccedilatildeo e consumo teria subjugado qualquer sociedade considerando-se a breve escala de tempo dos objetivos humanos e a imprevisibilidade real das dimensotildees do ecircxito (uma vez que nenhuma sociedade se compotildee de saacutebios) (JONAS 2006 p 235)

Jonas atenta aos perigos existentes na civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica e utilitaacuteria onde partimos do pressuposto de que a teacutecnica moderna eacute indispensaacutevel para a sociedade e que sobretudo eacute nela que encontraremos o triunfo (o que o filoacutesofo denomina de ecircxito) Nessa perspectiva ele afirma que ldquoa ameaccedila de cataacutestrofe do ideal baconiano de dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica reside portanto na magnitude do seu ecircxito Esse ecircxito tem dois aspectos econocircmico e bioloacutegicordquo (2006 p 235) O ecircxito econocircmico resultaria no esgotamento dos recursos naturais atraveacutes do aumento da produccedilatildeo de bens e diminuiccedilatildeo do dispecircndio do trabalho humano enquanto que o bioloacutegico consistiria em um aumento exponencial da populaccedilatildeo

Dito isso a partir da ambivalecircncia do ecircxito presente no ideal baconiano podemos fazer um contraponto com a implementaccedilatildeo das poliacuteticas voltadas para a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu Natildeo estariam inseridas nesta loacutegica as poliacuteticas puacuteblicas que surgiram para impulsionar a Revoluccedilatildeo Verde Nesse contexto percebemos um forte crescimento de produtividade na agricultura atraveacutes da utilizaccedilatildeo de novas tecnologias oriundas da ideia de modernizar o campo aumentando assim a visibilidade das empresas multinacionais e diminuindo as atividades de subsistecircncia (ldquoecircxito econocircmicordquo) Do mesmo modo constatamos o aumento populacional em certas comunidades como mostrado anteriormente onde antes

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

257

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

havia 50 moradores apoacutes a instalaccedilatildeo das multinacionais a populaccedilatildeo da comunidade aumentou para 500 moradores (ldquoecircxito bioloacutegicordquo) Isso posto e respondendo agrave pergunta anterior podemos afirmar que de certo modo essas poliacuteticas que surgem com vistas agrave modernizaccedilatildeo do campo estatildeo inseridas nesta ambiguidade do ecircxito colocada por Hans Jonas quando pensamos no ideal baconiano de um lado o econocircmico com a maior produtividade e menor dispecircndio do trabalho do outro o bioloacutegico com o aumento populacional

Outra relaccedilatildeo que podemos evidenciar levando em conta este cenaacuterio utilitaacuterio advindo da modernizaccedilatildeo da agricultura eacute a questatildeo da alimentaccedilatildeo Citando a utoacutepica ldquoreconstruccedilatildeo da naturezardquo pensada por Bloch Jonas afirma que

[] por causa do seu ecircxito bioloacutegico e do seu crescimento irresistiacutevel a humanidade se vecirc forccedilada a adicionar produtos quiacutemicos agrave camada produtiva da crosta terrestre [] As tecnologias agraacuterias de maximizaccedilatildeo tecircm impactos cumulativos sobre a natureza que mal comeccedilaram a revelar-se em acircmbito local por exemplo na poluiccedilatildeo quiacutemica dos recursos hiacutedricos e das aacuteguas costeiras (para o que contribuem tambeacutem as induacutestrias) com efeitos nocivos transmitidos pela cadeia alimentar A salinizaccedilatildeo dos solos pela irrigaccedilatildeo constante a erosatildeo provocada pela aragem dos campos [] (JONAS 2006 p 302)

Historicamente eacute sabido que a proposta da eacutetica jonasiana deu cabida a muitos movimentos ecologistas no final do seacuteculo passado inclusive orientando as diretrizes do Partido Verde na Alemanha a partir dos anos noventa Mas tambeacutem eacute fato que Jonas ao duvidar das apostas nas tecnologias modernas com o uso de fertilizantes agrotoacutexicos e o cultivo da monocultura para o crescimento a qualquer custo tambeacutem coloca em crise os ideais surgidos na Revoluccedilatildeo Verde Nesse mesmo sentido quando indagado sobre a questatildeo socioambiental e do progresso na agricultura familiar e no agronegoacutecio o entrevistado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu argumenta

Tanto os agricultores familiares precisam ainda lidar com a questatildeo socioambiental como tambeacutem as empresas que estatildeo no municiacutepio Haacute empresas que trabalhavam com a pulverizaccedilatildeo aeacuterea atraveacutes de aviotildees e envenenaram rios plantaccedilotildees houve mortandade de peixes e com isso foram feitas denuacutencias ao IDEMA ndash que eacute o oacutergatildeo de meio ambiente estadual ao IBAMA Tecircm empresas que foram multadas em vaacuterios milhotildees de reais e estatildeo procurando se adequar ao meio ambiente para prejudicar menos Tambeacutem podemos abordar a questatildeo do progresso cientiacutefico (Entrevistado A)

A visatildeo de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico aliada ao desenvolvimento presente na modernidade acaba mascarando os efeitos desastrosos da tecnificaccedilatildeo em escala planetaacuteria O discurso de um crescente bem-estar (tanto social quanto econocircmico) faz-nos acreditar que soacute existe uma uacutenica via a ser seguida que eacute a do desenvolvimento Poreacutem essa falsa sensaccedilatildeo eclipsa o pensar que questiona a teacutecnica e a sua relaccedilatildeo com a sociedade na atualidade

Ainda dentro da ameaccedila do ideal baconiano exposto por Jonas outro aspecto relevante e que merece destaque aqui eacute a questatildeo da dominaccedilatildeo da natureza a partir da teacutecnica moderna Jonas (2006 p 236) considera que na ldquodialeacutetica do poder sobre a natureza e a compulsatildeo de exercecirc-lardquo o poder tornou-se crucial nesta relaccedilatildeo Assim ele afirma

A foacutermula baconiana afirma que saber eacute poder Mas eacute o proacuteprio programa baconiano que no aacutepice do triunfo revela-se insuficiente com a sua contradiccedilatildeo intriacutenseca ou seja o descontrole sobre si mesmo mostrando-se incapaz de proteger o homem de si mesmo e a natureza do homem (2006 p 236)

A partir desta dialeacutetica estabelecida entre poder teacutecnica moderna e sua relaccedilatildeo com o homem e a proacutepria natureza Jonas afirma que tanto o homem quanto a natureza precisam de proteccedilatildeo quando se pensa na magnitude do poder que o progresso cientiacutefico alcanccedilou Pensamento semelhante jaacute havia sido

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

258

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

propagado tambeacutem por Marcuse (1982) quando nos anos sessenta do seacuteculo passado afirmava a unidimensionalidade da condiccedilatildeo humana advinda da teacutecnica moderna Esse poder eacute caracterizado pela necessidade do uso crescente da teacutecnica conduzindo o homem a uma incapacidade de frear o contiacutenuo progresso muito embora ele (o homem) insista em acreditar que a natureza eacute apenas um objeto de exploraccedilatildeo e estaacute disponiacutevel para atender meramente agrave sua vontade

Aleacutem desta problemaacutetica do progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico colocado por Jonas podemos tambeacutem fazer uma relaccedilatildeo entre as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade e o municiacutepio de Ipanguaccedilu Tal como jaacute salientamos anteriormente o primeiro aspecto a destacar desde a eacutetica jonasiana eacute o dever do homem perante a biosfera como dever responsaacutevel garantindo tanto a preservaccedilatildeo do presente quanto do futuro da humanidade e da natureza Portanto neste aspecto haveriacuteamos de indagar ateacute que ponto a agricultura familiar na regiatildeo de Ipanguaccedilu torna vaacutelido esse dever e se o mesmo procede com o agronegoacutecio Como dito anteriormente o agronegoacutecio visa agrave monocultura e agrave modernizaccedilatildeo da agricultura ou seja as atividades agriacutecolas satildeo baseadas no controle teacutecnico da terra gerando uma maior produccedilatildeo que garante a exportaccedilatildeo e o investimento no mercado interno visando ao lucro Do outro lado estaacute a agricultura familiar tendo como principal caracteriacutestica o cultivo de subsistecircncia Podemos observar que no primeiro exemplo a natureza eacute vista como um objeto de lucro enquanto que no segundo ela eacute vista como um ldquoobjetordquo de responsabilidade E eacute no contexto do segundo exemplo que se insere o sentido do ldquodever serrdquo tal como observa Jonas Poreacutem o que ocorre eacute que na atualidade as atividades desenvolvidas pelas multinacionais do agronegoacutecio em Ipanguaccedilu eacute que vecircm merecendo lugar de destaque no cenaacuterio das poliacuteticas puacuteblicas locais

Consideraccedilotildees Finais

Do exposto ateacute aqui fica expliacutecito que eacute necessaacuterio um olhar criacutetico sobre a problemaacutetica existente do paradigma cientiacutefico e tecnoloacutegico presente na modernidade que impele tudo ao progresso e ao desenvolvimento Do mesmo modo tambeacutem eacute preciso refletir sobre como tratamos a realidade e o contexto cultural local visto que natildeo podem ser marginalizados em prol do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico e econocircmico global Observando o sentido do desenvolvimento neste contexto Lisboa argumenta

O desenvolvimento comporta em si mesmo o subdesenvolvimento O padratildeo mimeacutetico do desenvolvimento fundado no estilo ocidental de vida com altos niacuteveis de consumo e desperdiacutecio tem cegado os povos do terceiro mundo os impedindo de se encontrar com sua identidade Ora um povo privado de sua identidade natildeo eacute capaz de se autodeterminar (LISBOA 1996 p 7)

Apesar de a instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo de Ipanguaccedilu ter reduzido a diversidade da regiatildeo atraveacutes do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico o pouco que haacute da praacutetica da agricultura familiar ainda insiste em preservar a relaccedilatildeo essencial com a terra e com tradiccedilotildees culturais Nela se vecirc refletido o princiacutepio eacutetico da responsabilidade de Hans Jonas onde haacute a preocupaccedilatildeo do cuidado com o lugar onde vivem para que as futuras geraccedilotildees possam viver de forma sustentaacutevel Na agricultura familiar tambeacutem se torna visiacutevel a temeridade e a relaccedilatildeo do ser teacutecnico com a prudecircncia onde os valores estatildeo na biosfera e natildeo na utilidade do fazer antropocecircntrico e egoiacutesta da condiccedilatildeo humana de estar no mundo

Insistir na permanecircncia desta praacutetica eacute insistir na participaccedilatildeo direta ativa e democraacutetica dos agricultores na formulaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e nos projetos voltados para a agricultura Pois se no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia tambeacutem estaacute inserida a dimensatildeo social entatildeo a implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia deve ser decidida pelos atores sociais nela implicados (MIRANDA 2012 p 181-182) Dessa forma eacute no espaccedilo puacuteblico de debate com a populaccedilatildeo diretamente afetada pelas implementaccedilotildees tecnocientiacuteficas que construiacutemos esta praacutetica democraacutetica e participativa frente agrave ciecircncia e agrave tecnologia eliminando assim a violecircncia contra a cultura local tal como situa Shiva

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

259

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

O primeiro plano da violecircncia desencadeada contra os sistemas locais de saber eacute natildeo consideraacute-los um saber A invisibilidade eacute a primeira razatildeo pela qual os sistemas locais entram em colapso antes de serem testados e comprovados pelo confronto com o saber dominante do Ocidente A proacutepria distacircncia elimina os sistemas locais da percepccedilatildeo Quando o saber local aparece de fato no campo da visatildeo globalizadora fazem com que desapareccedila negando-lhe o status de um saber sistemaacutetico e atribuindo-lhe os adjetivos de primitivo e anticientiacutefico (SHIVA 2003 p 22-23)

Portanto tal como ensina Shiva para que haja inclusatildeo e um processo democraacutetico na participaccedilatildeo puacuteblica voltada para a ciecircncia e para a tecnologia eacute preciso que a visatildeo globalizante da tecnificaccedilatildeo e da cientifizaccedilatildeo natildeo anule o conhecimento local com a justificativa de que eles natildeo satildeo cientiacuteficos O saber local e as praacuteticas culturais dos agricultores devem ser levados em consideraccedilatildeo nesses processos de implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de garantir o empoderamento dos atores sociais neles implicados

Ora que liccedilotildees podemos extrair destas constataccedilotildees se vincularmos ao agir eacutetico Agrave luz das teses apresentadas por Hans Jonas apontamos alguns caminhos (i) Que eacute necessaacuterio pensar numa eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica e instrumental abrangendo uma nova dimensatildeo a responsabilidade (ii) Que tal modelo de eacutetica seja capaz de resgatar o conceito de temeridade e a relaccedilatildeo da teacutecnica natildeo somente com a eficiecircncia mas tambeacutem com a prudecircncia (iii) Que eacute fundamental retomar o sentido originaacuterio da eacutetica como cuidado o cuidar do lugar onde se vive (BOFF 1999 MIRANDA 2012)

Em outros termos o questionamento diante da teacutecnica e da ciecircncia levando em consideraccedilatildeo o acircmbito da eacutetica e das poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode estar inserido meramente na dimensatildeo instrumental e antropoloacutegica Trata-se antes de tudo de uma fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da natureza e da condiccedilatildeo humana levando em conta o princiacutepio responsabilidade definido pela eacutetica jonasiana

A justificativa de uma tal eacutetica que natildeo mais se restringe ao terreno imediatamente intersubjetivo da contemporaneidade deve estender-se ateacute a metafiacutesica pois soacute ela permite que se pergunte por que afinal homens devem estar no mundo portanto por que o imperativo incondicional destina-se a assegurar-lhes a existecircncia no futuro A aventura da tecnologia impotildee com seus riscos extremos o risco da reflexatildeo extrema (JONAS 2006 p 22)

Desta forma e diante da insuficiecircncia constatada por Jonas da eacutetica tradicional em propor saiacutedas frente aos novos dilemas eacuteticos pautados pela sociedade tecnocientiacutefica eacute proposta deste estudo pensar um novo agir humano baseado na responsabilidade inclusive no acircmbito da implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de pensar saiacutedas que sejam capazes de ultrapassar as barreiras do discurso desenvolvimentista e por conseguinte determinista da tecnologia e da neutralidade cientiacutefica que ainda persistem e insistem em orientar as praacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na sociedade atual Afinal como diz Miranda com base nos estudos de Jasanoff (1995)

a ciecircncia deveria ter uma funccedilatildeo poliacutetica na medida em que tambeacutem avalia e revisa o estado do conhecimento cientiacutefico e sua aplicabilidade praacutetica Assim diante de programas de controle ambiental por exemplo mais que simplesmente aplicar certo tipo de conhecimento cientiacutefico aparentemente desinteressado neutro o papel da ciecircncia deveria ser tambeacutem eacutetico-poliacutetico no sentido de avaliar suas implicaccedilotildees sociais poliacuteticas culturais etc (MIRANDA 2012 p 181)

Em suma a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no municiacutepio de Ipanguaccedilu ensina-nos que no cenaacuterio da instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo impulsionadas por poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas supostamente de cunho desenvolvimentista e que correspondem ao ideal progressista cujo agir eacute meramente utilitaacuterio e de exploraccedilatildeo da natureza visando cada vez mais ao lucro a eacutetica da responsabilidade pode ser a criacutetica e o

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

260

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

norte de uma nova forma de agir Desde sua criacutetica tambeacutem eacute possiacutevel formular poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas que levem em conta os atores sociais nelas implicados tornando o processo democraacutetico e natildeo somente tecnocraacutetico Por outro lado e considerando o cenaacuterio da agricultura familiar e dos agricultores que ali vivem e lidam com a terra a eacutetica da responsabilidade surge como forma de corroborar com suas praacuteticas como a accedilatildeo eacutetica que visa ao cuidado com o lugar onde vivem pois eles (os agricultores) natildeo satildeo apenas ldquodonosrdquo da terra mas ocupam e essencializam a terra atraveacutes da relaccedilatildeo de cuidado e de prudecircncia no ato de cultivar a terra

Eacute a partir desta constataccedilatildeo que apresentamos a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas como uma eacutetica possiacutevel de ser aplicada nesse contexto de aparente dualidade entre a agricultura familiar e o agronegoacutecio Levando em conta as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade como o conceito da responsabilidade e do ideal utoacutepico do progresso cientiacutefico tecnoloacutegico a relaccedilatildeo com o meio ambiente e com a terra concluiacutemos que urge pensar sua aplicaccedilatildeo tambeacutem no campo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas A sua utilizaccedilatildeo no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia torna-se necessaacuteria no atual contexto da modernizaccedilatildeo em que estatildeo submetidos grupos sociais comunidades e povos inteiros E ainda que guardados seus devidos limites (MIRANDA 2012 p 143) a responsabilidade eacute um princiacutepio eacutetico que pode contribuir para nortear as accedilotildees tecnocientiacuteficas rumo agrave uma sociedade mais sustentaacutevel e equilibrada

Referecircncias

AGEcircNCIA Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba (AESA) Comitecircs Piranhas-Accedilu apresentaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwaesapbgovbrcomitespiranhasacu Acesso em 23 ago 2015

ALBANO Gleydson SAacute Alcindo Poliacuteticas puacuteblicas e globalizaccedilatildeo da agricultura no Vale do Accedilu-RN Revista de Geografia Recife UFPE ndash DCGNAPA v 25 n 2 maiago 2008

APEL Karl-Otto Estudos de moral moderna Petroacutepolis Vozes 2000

BECK Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Traduccedilatildeo original do alematildeo de Sebastiatildeo Nascimento Satildeo Paulo Editora 34 2010

BOFF Leonardo Saber cuidar eacutetica do humano Petroacutepolis Vozes 1999

HEIDEGGER Martin A questatildeo da teacutecnica Ensaios e conferecircncias I Traduzido por Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan Fode Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes Braganccedila Paulista Ed Universitaacuteria Satildeo Francisco 2012

HERRERA Amiacutelcar O Los determinantes sociales de la poliacutetica cientiacutefica en Ameacuterica Latina Poliacutetica cientiacutefica expliacutecita y poliacutetica cientiacutefica impliacutecita Argentina Redes v 2 1995

INSTITUTO Brasileiro de Geografia E Estatiacutestica (IBGE) Censo Demograacutefico 2000 sinopse ndash Rio Grande do Norte ndash Ipanguaccedilu Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtras temasphplang=ampcodmun=240470ampidtema=1ampsearch=rio-grande-do-norte|ipanguacu|censo-demografico-2010-sinopse- Acesso em 14 ago 2015

JASANOFF S Procedural choices in regulatory science Technology in Society 17 1995 httpsdoiorg1010160160-791x(95)00011-f

JONAS Hans O princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Rio de Janeiro Contraponto 2006

JONAS Hans Teacutecnica medicina y eacutetica Sobre la praacutectica del principio de la responsabilidad Barcelona Paidoacutes 1997

LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001

LISBOA Armando de Melo Desenvolvimento uma ideia subdesenvolvida Cadernos do CEAS Salvador n 161 1996

MARCUSE Herbert A ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional Rio de Janeiro Jorge Zahar 1982

MIRANDA A L iquestUna eacutetica para la civilizacioacuten tecnoloacutegica Posibilidades y liacutemites del principio de la responsabilidad de Hans Jonas AlemanhaEspanha Lap LambertEAE 2012

MORIN E Ciecircncia com consciecircncia Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005

SERRES Michel Le contrat natural Paris Flammarion 1992

SHIVA Vandana AZEVEDO Dinah de Abreu Monoculturas da mente perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia Satildeo Paulo Gaia 2003

SIQUEIRA JE Hans Jonas e a eacutetica da responsabilidade Mundo Sauacutede 1999

WEBCARTA Mapa do Rio Grande do Norte Disponiacutevel em webcartanetcartamapaphpid=244amplg=pt Acesso em 26 ago 2015

WOLIN Richard Heideggerrsquos children Hannah Arendt Karl Loumlwith Hans Jonas y Herbert Marcuse Princepton Princepton University Press 2001

ZANCANARO L O conceito de responsabilidade em Hans Jonas CampinasSP Ed UNICAMP 1998

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Page 7: O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail: angelamiranda@ect@ufrn.br. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

250

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

No entanto Jonas (2006 p 18) afirma que o imperativo tecnoloacutegico elimina a consciecircncia o sujeito e a liberdade em prol de um determinismo Ou seja o sujeito torna-se alienado agrave proacutepria ciecircncia e agrave tecnologia Do mesmo modo sobre o pensamento cientiacutefico Edgar Morin adverte

O pensamento cientiacutefico eacute ainda incapaz de se pensar de pensar sua proacutepria ambivalecircncia e sua proacutepria aventura A ciecircncia deve reatar com a reflexatildeo filosoacutefica como a filosofia cujos moinhos giram vazios por natildeo moer os gratildeos dos conhecimentos empiacutericos deve reatar com as ciecircncias A ciecircncia deve reatar com a consciecircncia poliacutetica e eacutetica (MORIN 2005 p 11)

Tambeacutem nesse sentido Ulrick Beck ao analisar o que ele denomina ldquoa sociedade do risco globalrdquo entende que a ciecircncia jaacute natildeo pode levar consigo a ideia de neutralidade mas sim a criticidade e a reflexatildeo quanto ao seu uso Assim ele argumenta

Na passagem para a praacutexis as ciecircncias satildeo agora confrontadas com a objetivaccedilatildeo de seu proacuteprio passado e presente consigo mesmas como produto e produtora da realidade e de problemas que cabe a elas analisar e superar Desse modo elas jaacute natildeo satildeo vistas apenas como manancial de soluccedilotildees para os problemas mas ao mesmo tempo tambeacutem como manancial de causas de problemas[] e por paradoxal que pareccedila num mundo jaacute loteado cientificamente e profissionalmente administrado as perspectivas de futuro e as oportunidades de expansatildeo da ciecircncia estatildeo vinculadas tambeacutem agrave criacutetica da ciecircncia (BECK 2010 p 236)

Esclarecido o conceito de responsabilidade dentro da eacutetica proposta por Hans Jonas e problematizada a accedilatildeo humana tecnificada no contexto da sociedade tecnocientiacutefica torna-se mister elencar as principais caracteriacutesticas que norteiam a eacutetica da responsabilidade tal como abordaremos a seguir

As principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade

Uma das caracteriacutesticas principais da eacutetica da responsabilidade proposta por Jonas eacute a questatildeo do dever para com a biosfera Mas em que consiste esse dever ldquoO dever do homem consiste em preservar este mundo fiacutesico de modo que as condiccedilotildees para tal presenccedila continuem ilesas ou intocadas ou seja proteger a vulnerabilidade do mundo que habitamos diante das ameaccedilasrdquo (JONAS 2006 p 45) Ou seja o dever estaacute incorporado ao conceito de responsabilidade e do cuidado com a biosfera levando em consideraccedilatildeo a previsibilidade da accedilatildeo teacutecnica

Para deixar mais expliacutecito em que consiste esse dever Jonas identifica-o a partir de distintos estaacutegios O primeiro dever ldquoconsiste em visualizar os efeitos a longo prazo estimar as consequecircncias dos atos natildeo soacute na sociedade mas tambeacutem no meio ambiente na naturezardquo (JONAS 2006 p 72) Ou seja aleacutem de precisar existir uma estimativa de consequecircncias dos atos humanos baseada no futuro esta previsatildeo natildeo pode vincular apenas o aspecto antropoloacutegico mas tambeacutem a natureza Jaacute o segundo dever ldquoconsiste em [] utilizar o medo dessas consequecircncias para estimular o respeito agrave vida humana e extra-humana Para isso basta lembrar o quatildeo as invenccedilotildees do homem podem ser imprevisiacuteveisrdquo (JONAS 2006 p 73) O medo aqui aparece como fator de prevenccedilatildeo principalmente para preservar as futuras geraccedilotildees A partir disso Jonas aponta para uma heuriacutestica do temor afirmando que se torna necessaacuterio o prognoacutestico e a temeridade em relaccedilatildeo agraves possiacuteveis consequecircncias catastroacuteficas do saber cientiacutefico e tecnoloacutegico aplicado perante a biosfera ou seja ldquoo saber origina-se daquilo contra o que devemos nos protegerrdquo (JONAS 2006 p 71)

Poreacutem Jonas conclui que esse temor que serve para que possamos refletir prever e prevenir as futuras consequecircncias catastroacuteficas natildeo eacute o mesmo medo que nos deixa paralisados

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

251

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Os homens experientes sabem que um dia podem desejar natildeo ter agido desta ou daquela forma O medo de que falo natildeo se refere a esse tipo de incerteza ou ele pode estar presente apenas como um efeito secundaacuterio Com efeito eacute uma das condiccedilotildees da accedilatildeo responsaacutevel natildeo se deixar deter por esse tipo de incerteza assumindo-se ao contraacuterio a responsabilidade pelo desconhecido dado o caraacuteter incerto da esperanccedila isso eacute o que chamamos de ldquocoragem para assumir a responsabilidaderdquo O medo que faz parte da responsabilidade natildeo eacute aquele que nos aconselha a natildeo agir mas aquele que nos convida a agir Trata-se de um medo que tem a ver com o objeto da responsabilidade (JONAS 2006 p 351)

Dessa forma a heuriacutestica do temor aponta para uma eacutetica baseada em antecipar os efeitos futuros e nos fazer agir de maneira mais prudente em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia Nesse sentido Miranda interpretando o sentido jonasiano de eacutetica afirma

[] podemos formular os deveres preliminares de uma eacutetica orientada para o futuro que satildeo buscar a representaccedilatildeo dos efeitos remotos pois somente o que eacute temido pode ser evitado por sua representaccedilatildeo e buscar o temor mediante a apelaccedilatildeo a um sentimento apropriado que o representa (MIRANDA 2012 p 81)

Podemos concluir portanto que a eacutetica da responsabilidade proposta por Hans Jonas eacute um modelo que pensado para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica leva em conta a biosfera a permanecircncia das futuras geraccedilotildees no planeta resgatando a ideia do cuidado do lugar onde se vive em meio aos desafios enfrentados pela sociedade tecnocientiacutefica E eacute a partir desses conceitos que a seguir abordaremos ilustrativamente a aplicaccedilatildeo (ou a ausecircncia) da responsabilidade na implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia dada uma situaccedilatildeo concreta que pertence ao local desde onde falamos e pensamos este trabalho

A aplicaccedilatildeo do princiacutepio responsabilidade de Hans Jonas numa situaccedilatildeo concreta o caso de

IpanguaccediluRN

Sobre a praacutetica do princiacutepio da responsabilidade Jonas escreveu uma obra muito interessante intitulada ldquoTeacutecnica medicina e eacuteticardquo (1997) Naquela oportunidade ele procurou estabelecer a relaccedilatildeo entre a teacutecnica a medicina e a eacutetica inserindo nesta relaccedilatildeo o princiacutepio da responsabilidade A partir daqui neste trabalho pretendemos percorrer uma trajetoacuteria semelhante considerando a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade no cenaacuterio das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas tendo como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no Municiacutepio de Ipanguaccedilu localizado no Estado do Rio Grande do Norte Agrave luz do princiacutepio da responsabilidade de Jonas analisamos as caracteriacutesticas locais da comunidade de agricultores de Ipanguaccedilu do ponto de vista econocircmico cultural e social e como se deu o processo de participaccedilatildeo dos agricultores locais nas poliacuteticas puacuteblicas voltadas para agricultura em especial o caso da fruticultura irrigada

O municiacutepio de IpanguaccediluRN

Ipanguaccedilu eacute um municiacutepio do Estado do Rio Grande do Norte que faz parte da microrregiatildeo do Vale do Accedilu Esta microrregiatildeo eacute formada por nove municiacutepios incluindo Ipanguaccedilu que estatildeo localizados na bacia do Rio PiranhasAccedilu e que possui cerca de 4368150 kmsup2 de extensatildeo segundo dados da AESA (Agecircncia Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba) Eacute importante ressaltar que o Rio PiranhasAccedilu desempenha um papel de extrema importacircncia pois possui o maior reservatoacuterio de aacutegua do Estado do RN a barragem Armando Ribeiro Gonccedilalves

Figura 1 - Mapa do Estado do Rio Grande do Norte Vale do Accedilu em destaque

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

252

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Fonte Webcarta (2015 destaque nosso)

Em Ipanguaccedilu o processo de produccedilatildeo e a base da economia satildeo marcados principalmente pela

agricultura pecuaacuteria e induacutestria da ceracircmica Na agricultura a accedilatildeo do cultivo era de subsistecircncia poreacutem atualmente com a instalaccedilatildeo de empresas na regiatildeo a praacutetica da agricultura eacute centrada na atividade da fruticultura irrigada voltada para exportaccedilatildeo Essa mudanccedila de cenaacuterio do cultivo de subsistecircncia para o cultivo voltado para a exportaccedilatildeo alterou drasticamente o modo de agir tanto na percepccedilatildeo dos agricultores sobre a terra e o que ela simboliza ou representa quanto na forma de lidar com a terra

A construccedilatildeo da Barragem Armando Ribeiro na regiatildeo evidenciou tais mudanccedilas pois segundo Albano (2008) a construccedilatildeo da Barragem configurou dois periacuteodos importantes no municiacutepio o primeiro (1972-1992) marcado pela chegada de empresas nacionais do ramo da agricultura o segundo (1993-2015) marcado pela entrada de multinacionais no municiacutepio como eacute o caso da Del Monte Fresh Produce Essas mudanccedilas representaram natildeo apenas a inserccedilatildeo de empresas do ramo da agricultura na regiatildeo mas tambeacutem uma mudanccedila no cenaacuterio do mercado e da relaccedilatildeo com a terra Pois num primeiro momento ocorreu a migraccedilatildeo da agricultura de subsistecircncia para a de mercado enquanto que num segundo foi adotada a visatildeo de exportaccedilatildeo tendo como base a fruticultura irrigada da monocultura da banana

Outro fato importante eacute que 612 da populaccedilatildeo estaacute situada e trabalha no meio rural segundo o Censo Demograacutefico de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) Dessa forma podemos observar que a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu-RN eacute extremamente importante natildeo soacute para os agricultores locais como tambeacutem e sobretudo para a dinacircmica econocircmica do municiacutepio Eacute em torno dela que se configura a relaccedilatildeo com a terra com a cultura e com a economia no contexto social da regiatildeo

Baseados no caraacuteter metodoloacutegico jaacute explicitado anteriormente e levando em conta a dinacircmica da (re)configuraccedilatildeo da terra ficou evidente a partir da nossa observaccedilatildeo in loco realizada no municiacutepio de Ipanguaccedilu (2014) que a maioria dos trabalhadores rurais natildeo trabalha em sua proacutepria terra mas na terra de terceiros (apenas 3 do total de 10 entrevistados possuem propriedade proacutepria) Segundo o Entrevistado A trabalhador do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu antes da instalaccedilatildeo das empresas multinacionais no municiacutepio havia comunidades que possuiacuteam 50 moradores Mas nos uacuteltimos 15 anos essas comunidades tiveram um aumento populacional vertiginoso chegando a ter 500 famiacutelias Isso segundo ele aconteceu pelo fato de as pessoas deixarem ou venderem suas pequenas propriedades para trabalhar de assalariado no agronegoacutecio Segue trecho do diaacutelogo

Tecircm comunidades no municiacutepio de Ipanguaccedilu que antes das empresas serem instaladas no municiacutepio tinham 50 moradores Essa comunidade de 15 anos pra caacute estaacute com aproximadamente 500 famiacutelias porque as pessoas deixaram ou venderam suas pequenas propriedades para vir trabalhar de assalariado no agronegoacutecio Portanto hoje grande parte dessas pessoas querem voltar para suas terras que muitas vezes foram adquiridas por essas empresas que se tornaram donas das terras do municiacutepio As pessoas estatildeo batalhando para tentar conseguir

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

253

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

outro pedaccedilo de terra para voltar agrave sua origem porque eles estatildeo vendo que com a matildeo-de-obra assalariada eles nunca iratildeo ter uma autonomia econocircmica eles ganham apenas para o sustento familiar (Entrevistado A)

Neste sentido Albano (2008 p 65) acrescenta que ldquoA agricultura de subsistecircncia tambeacutem diminuiu muito com a Barragem e depois dela com as compras de terras pelas grandes empresas rurais interessadas em produzir monoculturas para exportaccedilatildeo ou para o mercado internordquo Como exemplo para ilustrar essa (re)configuraccedilatildeo do espaccedilo e da relaccedilatildeo com a terra podemos citar a multinacional Del Monte Fresh Produce Albano assim explicita o contexto da instalaccedilatildeo da empresa na Regiatildeo de Ipanguaccedilu

O ano de 1993 foi o ano do estabelecimento da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio (OMC) e o ano em que foram concluiacutedas as negociaccedilotildees da Rodada Uruguai que incluiacutea a Agricultura nas suas negociaccedilotildees e que previa uma grande liberalizaccedilatildeo do comeacutercio agriacutecola a partir daquele ano nos paiacuteses associados da OMC inclusive o Brasil Aleacutem disso eacute nesse ano que se tem o iniacutecio da compra de terras em Ipanguaccedilu por uma empresa associada agrave Multinacional Del Monte Fresh Produce Posteriormente ela se insere no municiacutepio de Accedilu e Carnaubais ambos no Vale do Accedilu (ALBANO 2008 p 68)

Contudo quais as implicaccedilotildees da instalaccedilatildeo da multinacional para a comunidade e a agricultura da regiatildeo A Tabela 1 a seguir mostra a relaccedilatildeo e a diferenccedila entre a multinacional e as empresas locais quanto aos elementos da cadeia produtiva e jaacute antecipa os indicativos de resposta vejamos

Tabela 1 - A relaccedilatildeo entre fatores de produccedilatildeo e aquisiccedilatildeo dos insumos das empresas com os lugares de compra

Fonte Elaborado por Albano (2008 p 69) baseado em Carvalho (2001)

Analisando a tabela podemos perceber que a multinacional Del Monte Fresh Produce natildeo possui interaccedilatildeo e integraccedilatildeo com a regiatildeo de Ipanguaccedilu Praticamente quase todos os fatores de produccedilatildeo de insumos e de serviccedilos satildeo exteriores ao municiacutepio A Pesquisa e Desenvolvimento (PampD) na aacuterea da fruticultura irrigada por exemplo eacute concentrada em Israel e na Ameacuterica central enquanto que nas empresas locais ela eacute fruto da proacutepria regiatildeo Eacute interessante perceber que a multinacional faz uso de apenas duas modalidades que diz respeito ao local tal como elencadas na tabela a terra e parte da assistecircncia teacutecnica

Eacute aqui que surge outra indagaccedilatildeo natildeo menos intrigante a percepccedilatildeo e a relaccedilatildeo com a terra do agricultor local satildeo as mesmas que a dos empresaacuterios das multinacionais Seraacute que a responsabilidade e o cuidado (resgatando os conceitos de Jonas) estatildeo implicados do mesmo modo em ambas situaccedilotildees Mais adiante voltaremos a estes pontos

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

254

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

As poliacuteticas puacuteblicas de modernizaccedilatildeo da fruticultura irrigada e a relaccedilatildeo essencial com a terra

Levando em consideraccedilatildeo as poliacuteticas puacuteblicas voltadas para a agricultura na regiatildeo percebe-se que apoacutes a construccedilatildeo da Barragem de Accedilu essas poliacuteticas satildeo voltadas para impulsionar a ldquoRevoluccedilatildeo Verderdquo dando iniacutecio a um forte processo de modernizaccedilatildeo da agricultura Albano a define do seguinte modo

[] consiste num grande crescimento de produtividade e de quantidade na agricultura por meio do uso de tecnologias como os tratores agriacutecolas teacutecnicas de irrigaccedilatildeo defensivos quiacutemicos variedades de sementes aviaccedilatildeo agriacutecola computadores novos meacutetodos de gestatildeo etc De um lado da produccedilatildeo vai se ter a Induacutestria Produtora de Insumos com fertilizantes defensivos e corretivos e do outro vai se ter a Induacutestria de Bens de Capital com tratores colheitadeiras e equipamentos de irrigaccedilatildeo (ALBANO 2008 p 62)

Ainda sobre a Revoluccedilatildeo Verde Shiva afirma

Os sistemas agriacutecolas tradicionais baseiam-se em sistemas de rotaccedilatildeo de culturas e cereais legumes sementes oleaginosas com diversas variedades em cada safra enquanto o pacote da Revoluccedilatildeo Verde baseia-se em monoculturas geneticamente uniformes (SHIVA 2003 p 57)

Em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas no acircmbito da agricultura irrigada em Ipanguaccedilu haacute vaacuterios esforccedilos por parte do governo para impulsionar a modernizaccedilatildeo do campo Em vista disso citando os estudos de Souza (1997) Albano (2008) elenca que no comeccedilo da deacutecada de 1970 o Governo Autoritaacuterio efetivou o I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) Este plano teve como programas mais importantes o Programa de Redistribuiccedilatildeo de Terras (PROTERRA) e de estiacutemulo agrave agroinduacutestria do Norte e Nordeste cujo principal objetivo era ampliar a agroinduacutestria e o Programa de Integraccedilatildeo Nacional (PIN) atraveacutes de um plano de irrigaccedilatildeo no Nordeste

Diante desses esforccedilos para modernizar (tecnificar) a agricultura vale a pena refletirmos sobre o ideal do progresso tecnoloacutegico aliado ao conceito de desenvolvimento econocircmico tatildeo presente na modernidade Essa concepccedilatildeo progressista desconsidera as intencionalidades existentes no artefato tecnoloacutegico e nos indiviacuteduos no que tange agrave sua construccedilatildeo histoacuterica cultural e de valores A instrumentalizaccedilatildeo da ciecircncia e da tecnologia reduz os aparatos e a proacutepria cultura ao meramente teacutecnico e cientiacutefico tendo em vista que o progresso tecnocientiacutefico na maioria das vezes aparece desvinculado da realidade da sociedade local

Herrera (1995 p 117) mostra que isso se torna evidente a partir da Segunda Guerra Mundial com o esforccedilo internacional de implementar e melhorar as Poliacuteticas de Ciecircncia e Tecnologia (CampT) nos paiacuteses considerados ldquosubdesenvolvidosrdquo Poreacutem o que se percebe entre outros fatores eacute a desconexatildeo dos investimentos com a realidade dos paiacuteses da Ameacuterica Latina Tanto as concepccedilotildees de ciecircncia e de tecnologia quanto a ideia de progresso tecnocientiacutefico desvinculados do contexto regional acabam refletindo na construccedilatildeo dos indicadores e das poliacuteticas puacuteblicas em CampT e consequentemente na participaccedilatildeo puacuteblica e na avaliaccedilatildeo deles

Mostrando a desvinculaccedilatildeo das poliacuteticas desenvolvimentistas com o contexto regional Lisboa corrobora com as teses de Robert Kurz quando afirma

As poliacuteticas desenvolvimentistas arrancaram em poucas deacutecadas populaccedilotildees inteiras da sua economia de subsistecircncia tradicional mas natildeo as integraram plenamente (ou seja natildeo as transformaram em cidadatildes) Kurz ao desnudar o colapso da modernizaccedilatildeo do terceiro mundo afirma que ldquoa maior parte da sociedade foi apenas modernizada em sentido negativo isto eacute foram destruiacutedas as estruturas tradicionais sem que alguma coisa nova ocupasse o seu lugarrdquo (LISBOA 1996 p 4-5)

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

255

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Assim as poliacuteticas desenvolvimentistas acabam eliminando a cultura e a praacutetica tradicional dos agricultores locais Relacionando esse contexto com a eacutetica da responsabilidade de Jonas que eacute o propoacutesito deste trabalho podemos testemunhar a sua total exclusatildeo pois a terra passa a ser vista como mero produto mera utilidade que visa ao lucro da exportaccedilatildeo Ou seja haacute um profundo abandono da responsabilidade enquanto cuidado e prudecircncia em relaccedilatildeo agrave terra ao meio ambiente e agraves comunidades que vivem do cultivo da terra

Retomando o olhar sobre a Tabela 1 percebemos que eacute iacutenfima a interaccedilatildeo entre as relaccedilotildees locais que envolvem as praacuteticas da agricultura com a empresa multinacional Neste tipo de praacutetica descarta-se o conhecimento local Desse modo o pensamento transforma-se em monoculturado (SHIVA 2003 p 21) e a cultura torna-se cientificada e tecnificada tendo como justificativa e produto final o progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico Aleacutem disso o proacuteprio debate e a avaliaccedilatildeo puacuteblica que deveria existir para garantir a participaccedilatildeo dos cidadatildeos e a gestatildeo mais democraacutetica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia excluem aqueles que efetivamente satildeo os atores sociais envolvidos neste processo No caso em questatildeo trata-se dos agricultores de Ipanguaccedilu

Aqui recobra sentido a ideia do imperativo tecnoloacutegico abordado por Jonas que elimina a liberdade e a consciecircncia do sujeito em prol de um determinismo tecnoloacutegico Assim o saber local deixa de ter importacircncia e em seu lugar ganha destaque o saber cientiacutefico deixando em evidecircncia as relaccedilotildees estabelecidas entre as multinacionais e o mercado exterior Notadamente na Tabela 1 o saber cientiacutefico e tecnoloacutegico (inclusive importados e produzidos fora do contexto local) satildeo os mais destacados e utilizados em detrimento ao saber local

Percebe-se ouvindo os agricultores da regiatildeo que apesar da instalaccedilatildeo das multinacionais em Ipanguaccedilu ter aumentado a quantidade de empregos a praacutetica do agronegoacutecio extinguiu a diversidade de plantio agriacutecola da regiatildeo Onde antes havia a diversidade cultivada atraveacutes da agricultura de subsistecircncia o cenaacuterio agora eacute o da monocultura com a fruticultura irrigada Um dos agricultores e morador local disse ldquoA agricultura aqui antes era em primeiro lugar Tinha tudo saiacutea muita carrada de pimentatildeo saiacutea muito tomate tinha bastante milho feijatildeo Hoje da agricultura o que tem bastante eacute soacute bananardquo (Entrevistado B)

Aleacutem disso os agricultores natildeo participam ativamente nas decisotildees das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e dos projetos voltados para a agricultura por parte da EMATER (Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural) cuja principal missatildeo eacute contribuir para a promoccedilatildeo do agronegoacutecio focando na agricultura familiar atraveacutes do serviccedilo de extensatildeo rural em prol do desenvolvimento sustentaacutevel tal como podemos observar na Tabela 2 a seguir

Tabela 2 - Projetos de agricultura irrigada implementados a partir de 1987 ateacute 1990 no Vale do Accedilu para pequenos irrigantes ndash EMATER

Fonte Pinheiro (1995 citado por Albano 2008 p 67)

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

256

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Pelos dados apresentados na tabela observa-se o baixo nuacutemero de projetos voltados para o pequeno agricultor na regiatildeo de Ipanguaccedilu Ainda falta uma poliacutetica puacuteblica que realmente integre o agricultor familiar no cenaacuterio da agricultura modernizada e que leve em conta a participaccedilatildeo popular de forma democraacutetica na sua formulaccedilatildeo Quando questionado sobre o papel da EMATER o mesmo agricultor afirma

A EMATER vem se arrastando a passos de tartaruga Eacute muito devagar Natildeo sei se eacute falta de incentivo dos governantes (que eu acredito que seja) porque tem os teacutecnicos que possuem vontade de colocar as coisas para funcionar mas por conta do recurso natildeo tem como eles colocarem para funcionar (Entrevistado B)

A regiatildeo de Ipanguaccedilu e a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas

Aleacutem do que jaacute observamos ateacute aqui que outros aspectos podemos extrair do contexto apresentado sobre a implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na regiatildeo de Ipanguaccedilu e a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da responsabilidade

Jaacute introduzimos este aspecto na parte anterior deste trabalho mas vale a pena aprofundar um pouco mais a criacutetica ao progresso tecida por Jonas (2006) ao que ele denomina de ideal baconiano e a relaccedilatildeo com o ideal de progresso presente na regiatildeo de Ipanguaccedilu Mais especificamente trata-se de evidenciar a relaccedilatildeo da dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica

Como visto anteriormente a tese principal defendida por Hans Jonas eacute que a teacutecnica moderna se converte em ameaccedila natildeo apenas fiacutesica mas tambeacutem ideoloacutegica na medida em que propaga o ideal de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico a qualquer custo o que segundo ele representa um perigo para toda a humanidade Sobre este perigo ele argumenta

O perigo decorre da dimensatildeo excessiva da civilizaccedilatildeo teacutecnico-industrial baseada nas ciecircncias naturais O que chamamos de programa baconiano ndash ou seja colocar o saber a serviccedilo da dominaccedilatildeo da natureza e utilizaacute-la para melhorar a sorte da humanidade ndash natildeo contou desde as origens na sua execuccedilatildeo capitalista com a racionalidade e a retidatildeo que lhe seriam adequadas poreacutem sua dinacircmica de ecircxito que conduz obrigatoriamente aos excessos de produccedilatildeo e consumo teria subjugado qualquer sociedade considerando-se a breve escala de tempo dos objetivos humanos e a imprevisibilidade real das dimensotildees do ecircxito (uma vez que nenhuma sociedade se compotildee de saacutebios) (JONAS 2006 p 235)

Jonas atenta aos perigos existentes na civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica e utilitaacuteria onde partimos do pressuposto de que a teacutecnica moderna eacute indispensaacutevel para a sociedade e que sobretudo eacute nela que encontraremos o triunfo (o que o filoacutesofo denomina de ecircxito) Nessa perspectiva ele afirma que ldquoa ameaccedila de cataacutestrofe do ideal baconiano de dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica reside portanto na magnitude do seu ecircxito Esse ecircxito tem dois aspectos econocircmico e bioloacutegicordquo (2006 p 235) O ecircxito econocircmico resultaria no esgotamento dos recursos naturais atraveacutes do aumento da produccedilatildeo de bens e diminuiccedilatildeo do dispecircndio do trabalho humano enquanto que o bioloacutegico consistiria em um aumento exponencial da populaccedilatildeo

Dito isso a partir da ambivalecircncia do ecircxito presente no ideal baconiano podemos fazer um contraponto com a implementaccedilatildeo das poliacuteticas voltadas para a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu Natildeo estariam inseridas nesta loacutegica as poliacuteticas puacuteblicas que surgiram para impulsionar a Revoluccedilatildeo Verde Nesse contexto percebemos um forte crescimento de produtividade na agricultura atraveacutes da utilizaccedilatildeo de novas tecnologias oriundas da ideia de modernizar o campo aumentando assim a visibilidade das empresas multinacionais e diminuindo as atividades de subsistecircncia (ldquoecircxito econocircmicordquo) Do mesmo modo constatamos o aumento populacional em certas comunidades como mostrado anteriormente onde antes

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

257

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

havia 50 moradores apoacutes a instalaccedilatildeo das multinacionais a populaccedilatildeo da comunidade aumentou para 500 moradores (ldquoecircxito bioloacutegicordquo) Isso posto e respondendo agrave pergunta anterior podemos afirmar que de certo modo essas poliacuteticas que surgem com vistas agrave modernizaccedilatildeo do campo estatildeo inseridas nesta ambiguidade do ecircxito colocada por Hans Jonas quando pensamos no ideal baconiano de um lado o econocircmico com a maior produtividade e menor dispecircndio do trabalho do outro o bioloacutegico com o aumento populacional

Outra relaccedilatildeo que podemos evidenciar levando em conta este cenaacuterio utilitaacuterio advindo da modernizaccedilatildeo da agricultura eacute a questatildeo da alimentaccedilatildeo Citando a utoacutepica ldquoreconstruccedilatildeo da naturezardquo pensada por Bloch Jonas afirma que

[] por causa do seu ecircxito bioloacutegico e do seu crescimento irresistiacutevel a humanidade se vecirc forccedilada a adicionar produtos quiacutemicos agrave camada produtiva da crosta terrestre [] As tecnologias agraacuterias de maximizaccedilatildeo tecircm impactos cumulativos sobre a natureza que mal comeccedilaram a revelar-se em acircmbito local por exemplo na poluiccedilatildeo quiacutemica dos recursos hiacutedricos e das aacuteguas costeiras (para o que contribuem tambeacutem as induacutestrias) com efeitos nocivos transmitidos pela cadeia alimentar A salinizaccedilatildeo dos solos pela irrigaccedilatildeo constante a erosatildeo provocada pela aragem dos campos [] (JONAS 2006 p 302)

Historicamente eacute sabido que a proposta da eacutetica jonasiana deu cabida a muitos movimentos ecologistas no final do seacuteculo passado inclusive orientando as diretrizes do Partido Verde na Alemanha a partir dos anos noventa Mas tambeacutem eacute fato que Jonas ao duvidar das apostas nas tecnologias modernas com o uso de fertilizantes agrotoacutexicos e o cultivo da monocultura para o crescimento a qualquer custo tambeacutem coloca em crise os ideais surgidos na Revoluccedilatildeo Verde Nesse mesmo sentido quando indagado sobre a questatildeo socioambiental e do progresso na agricultura familiar e no agronegoacutecio o entrevistado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu argumenta

Tanto os agricultores familiares precisam ainda lidar com a questatildeo socioambiental como tambeacutem as empresas que estatildeo no municiacutepio Haacute empresas que trabalhavam com a pulverizaccedilatildeo aeacuterea atraveacutes de aviotildees e envenenaram rios plantaccedilotildees houve mortandade de peixes e com isso foram feitas denuacutencias ao IDEMA ndash que eacute o oacutergatildeo de meio ambiente estadual ao IBAMA Tecircm empresas que foram multadas em vaacuterios milhotildees de reais e estatildeo procurando se adequar ao meio ambiente para prejudicar menos Tambeacutem podemos abordar a questatildeo do progresso cientiacutefico (Entrevistado A)

A visatildeo de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico aliada ao desenvolvimento presente na modernidade acaba mascarando os efeitos desastrosos da tecnificaccedilatildeo em escala planetaacuteria O discurso de um crescente bem-estar (tanto social quanto econocircmico) faz-nos acreditar que soacute existe uma uacutenica via a ser seguida que eacute a do desenvolvimento Poreacutem essa falsa sensaccedilatildeo eclipsa o pensar que questiona a teacutecnica e a sua relaccedilatildeo com a sociedade na atualidade

Ainda dentro da ameaccedila do ideal baconiano exposto por Jonas outro aspecto relevante e que merece destaque aqui eacute a questatildeo da dominaccedilatildeo da natureza a partir da teacutecnica moderna Jonas (2006 p 236) considera que na ldquodialeacutetica do poder sobre a natureza e a compulsatildeo de exercecirc-lardquo o poder tornou-se crucial nesta relaccedilatildeo Assim ele afirma

A foacutermula baconiana afirma que saber eacute poder Mas eacute o proacuteprio programa baconiano que no aacutepice do triunfo revela-se insuficiente com a sua contradiccedilatildeo intriacutenseca ou seja o descontrole sobre si mesmo mostrando-se incapaz de proteger o homem de si mesmo e a natureza do homem (2006 p 236)

A partir desta dialeacutetica estabelecida entre poder teacutecnica moderna e sua relaccedilatildeo com o homem e a proacutepria natureza Jonas afirma que tanto o homem quanto a natureza precisam de proteccedilatildeo quando se pensa na magnitude do poder que o progresso cientiacutefico alcanccedilou Pensamento semelhante jaacute havia sido

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

258

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

propagado tambeacutem por Marcuse (1982) quando nos anos sessenta do seacuteculo passado afirmava a unidimensionalidade da condiccedilatildeo humana advinda da teacutecnica moderna Esse poder eacute caracterizado pela necessidade do uso crescente da teacutecnica conduzindo o homem a uma incapacidade de frear o contiacutenuo progresso muito embora ele (o homem) insista em acreditar que a natureza eacute apenas um objeto de exploraccedilatildeo e estaacute disponiacutevel para atender meramente agrave sua vontade

Aleacutem desta problemaacutetica do progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico colocado por Jonas podemos tambeacutem fazer uma relaccedilatildeo entre as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade e o municiacutepio de Ipanguaccedilu Tal como jaacute salientamos anteriormente o primeiro aspecto a destacar desde a eacutetica jonasiana eacute o dever do homem perante a biosfera como dever responsaacutevel garantindo tanto a preservaccedilatildeo do presente quanto do futuro da humanidade e da natureza Portanto neste aspecto haveriacuteamos de indagar ateacute que ponto a agricultura familiar na regiatildeo de Ipanguaccedilu torna vaacutelido esse dever e se o mesmo procede com o agronegoacutecio Como dito anteriormente o agronegoacutecio visa agrave monocultura e agrave modernizaccedilatildeo da agricultura ou seja as atividades agriacutecolas satildeo baseadas no controle teacutecnico da terra gerando uma maior produccedilatildeo que garante a exportaccedilatildeo e o investimento no mercado interno visando ao lucro Do outro lado estaacute a agricultura familiar tendo como principal caracteriacutestica o cultivo de subsistecircncia Podemos observar que no primeiro exemplo a natureza eacute vista como um objeto de lucro enquanto que no segundo ela eacute vista como um ldquoobjetordquo de responsabilidade E eacute no contexto do segundo exemplo que se insere o sentido do ldquodever serrdquo tal como observa Jonas Poreacutem o que ocorre eacute que na atualidade as atividades desenvolvidas pelas multinacionais do agronegoacutecio em Ipanguaccedilu eacute que vecircm merecendo lugar de destaque no cenaacuterio das poliacuteticas puacuteblicas locais

Consideraccedilotildees Finais

Do exposto ateacute aqui fica expliacutecito que eacute necessaacuterio um olhar criacutetico sobre a problemaacutetica existente do paradigma cientiacutefico e tecnoloacutegico presente na modernidade que impele tudo ao progresso e ao desenvolvimento Do mesmo modo tambeacutem eacute preciso refletir sobre como tratamos a realidade e o contexto cultural local visto que natildeo podem ser marginalizados em prol do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico e econocircmico global Observando o sentido do desenvolvimento neste contexto Lisboa argumenta

O desenvolvimento comporta em si mesmo o subdesenvolvimento O padratildeo mimeacutetico do desenvolvimento fundado no estilo ocidental de vida com altos niacuteveis de consumo e desperdiacutecio tem cegado os povos do terceiro mundo os impedindo de se encontrar com sua identidade Ora um povo privado de sua identidade natildeo eacute capaz de se autodeterminar (LISBOA 1996 p 7)

Apesar de a instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo de Ipanguaccedilu ter reduzido a diversidade da regiatildeo atraveacutes do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico o pouco que haacute da praacutetica da agricultura familiar ainda insiste em preservar a relaccedilatildeo essencial com a terra e com tradiccedilotildees culturais Nela se vecirc refletido o princiacutepio eacutetico da responsabilidade de Hans Jonas onde haacute a preocupaccedilatildeo do cuidado com o lugar onde vivem para que as futuras geraccedilotildees possam viver de forma sustentaacutevel Na agricultura familiar tambeacutem se torna visiacutevel a temeridade e a relaccedilatildeo do ser teacutecnico com a prudecircncia onde os valores estatildeo na biosfera e natildeo na utilidade do fazer antropocecircntrico e egoiacutesta da condiccedilatildeo humana de estar no mundo

Insistir na permanecircncia desta praacutetica eacute insistir na participaccedilatildeo direta ativa e democraacutetica dos agricultores na formulaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e nos projetos voltados para a agricultura Pois se no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia tambeacutem estaacute inserida a dimensatildeo social entatildeo a implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia deve ser decidida pelos atores sociais nela implicados (MIRANDA 2012 p 181-182) Dessa forma eacute no espaccedilo puacuteblico de debate com a populaccedilatildeo diretamente afetada pelas implementaccedilotildees tecnocientiacuteficas que construiacutemos esta praacutetica democraacutetica e participativa frente agrave ciecircncia e agrave tecnologia eliminando assim a violecircncia contra a cultura local tal como situa Shiva

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

259

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

O primeiro plano da violecircncia desencadeada contra os sistemas locais de saber eacute natildeo consideraacute-los um saber A invisibilidade eacute a primeira razatildeo pela qual os sistemas locais entram em colapso antes de serem testados e comprovados pelo confronto com o saber dominante do Ocidente A proacutepria distacircncia elimina os sistemas locais da percepccedilatildeo Quando o saber local aparece de fato no campo da visatildeo globalizadora fazem com que desapareccedila negando-lhe o status de um saber sistemaacutetico e atribuindo-lhe os adjetivos de primitivo e anticientiacutefico (SHIVA 2003 p 22-23)

Portanto tal como ensina Shiva para que haja inclusatildeo e um processo democraacutetico na participaccedilatildeo puacuteblica voltada para a ciecircncia e para a tecnologia eacute preciso que a visatildeo globalizante da tecnificaccedilatildeo e da cientifizaccedilatildeo natildeo anule o conhecimento local com a justificativa de que eles natildeo satildeo cientiacuteficos O saber local e as praacuteticas culturais dos agricultores devem ser levados em consideraccedilatildeo nesses processos de implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de garantir o empoderamento dos atores sociais neles implicados

Ora que liccedilotildees podemos extrair destas constataccedilotildees se vincularmos ao agir eacutetico Agrave luz das teses apresentadas por Hans Jonas apontamos alguns caminhos (i) Que eacute necessaacuterio pensar numa eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica e instrumental abrangendo uma nova dimensatildeo a responsabilidade (ii) Que tal modelo de eacutetica seja capaz de resgatar o conceito de temeridade e a relaccedilatildeo da teacutecnica natildeo somente com a eficiecircncia mas tambeacutem com a prudecircncia (iii) Que eacute fundamental retomar o sentido originaacuterio da eacutetica como cuidado o cuidar do lugar onde se vive (BOFF 1999 MIRANDA 2012)

Em outros termos o questionamento diante da teacutecnica e da ciecircncia levando em consideraccedilatildeo o acircmbito da eacutetica e das poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode estar inserido meramente na dimensatildeo instrumental e antropoloacutegica Trata-se antes de tudo de uma fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da natureza e da condiccedilatildeo humana levando em conta o princiacutepio responsabilidade definido pela eacutetica jonasiana

A justificativa de uma tal eacutetica que natildeo mais se restringe ao terreno imediatamente intersubjetivo da contemporaneidade deve estender-se ateacute a metafiacutesica pois soacute ela permite que se pergunte por que afinal homens devem estar no mundo portanto por que o imperativo incondicional destina-se a assegurar-lhes a existecircncia no futuro A aventura da tecnologia impotildee com seus riscos extremos o risco da reflexatildeo extrema (JONAS 2006 p 22)

Desta forma e diante da insuficiecircncia constatada por Jonas da eacutetica tradicional em propor saiacutedas frente aos novos dilemas eacuteticos pautados pela sociedade tecnocientiacutefica eacute proposta deste estudo pensar um novo agir humano baseado na responsabilidade inclusive no acircmbito da implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de pensar saiacutedas que sejam capazes de ultrapassar as barreiras do discurso desenvolvimentista e por conseguinte determinista da tecnologia e da neutralidade cientiacutefica que ainda persistem e insistem em orientar as praacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na sociedade atual Afinal como diz Miranda com base nos estudos de Jasanoff (1995)

a ciecircncia deveria ter uma funccedilatildeo poliacutetica na medida em que tambeacutem avalia e revisa o estado do conhecimento cientiacutefico e sua aplicabilidade praacutetica Assim diante de programas de controle ambiental por exemplo mais que simplesmente aplicar certo tipo de conhecimento cientiacutefico aparentemente desinteressado neutro o papel da ciecircncia deveria ser tambeacutem eacutetico-poliacutetico no sentido de avaliar suas implicaccedilotildees sociais poliacuteticas culturais etc (MIRANDA 2012 p 181)

Em suma a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no municiacutepio de Ipanguaccedilu ensina-nos que no cenaacuterio da instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo impulsionadas por poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas supostamente de cunho desenvolvimentista e que correspondem ao ideal progressista cujo agir eacute meramente utilitaacuterio e de exploraccedilatildeo da natureza visando cada vez mais ao lucro a eacutetica da responsabilidade pode ser a criacutetica e o

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

260

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

norte de uma nova forma de agir Desde sua criacutetica tambeacutem eacute possiacutevel formular poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas que levem em conta os atores sociais nelas implicados tornando o processo democraacutetico e natildeo somente tecnocraacutetico Por outro lado e considerando o cenaacuterio da agricultura familiar e dos agricultores que ali vivem e lidam com a terra a eacutetica da responsabilidade surge como forma de corroborar com suas praacuteticas como a accedilatildeo eacutetica que visa ao cuidado com o lugar onde vivem pois eles (os agricultores) natildeo satildeo apenas ldquodonosrdquo da terra mas ocupam e essencializam a terra atraveacutes da relaccedilatildeo de cuidado e de prudecircncia no ato de cultivar a terra

Eacute a partir desta constataccedilatildeo que apresentamos a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas como uma eacutetica possiacutevel de ser aplicada nesse contexto de aparente dualidade entre a agricultura familiar e o agronegoacutecio Levando em conta as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade como o conceito da responsabilidade e do ideal utoacutepico do progresso cientiacutefico tecnoloacutegico a relaccedilatildeo com o meio ambiente e com a terra concluiacutemos que urge pensar sua aplicaccedilatildeo tambeacutem no campo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas A sua utilizaccedilatildeo no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia torna-se necessaacuteria no atual contexto da modernizaccedilatildeo em que estatildeo submetidos grupos sociais comunidades e povos inteiros E ainda que guardados seus devidos limites (MIRANDA 2012 p 143) a responsabilidade eacute um princiacutepio eacutetico que pode contribuir para nortear as accedilotildees tecnocientiacuteficas rumo agrave uma sociedade mais sustentaacutevel e equilibrada

Referecircncias

AGEcircNCIA Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba (AESA) Comitecircs Piranhas-Accedilu apresentaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwaesapbgovbrcomitespiranhasacu Acesso em 23 ago 2015

ALBANO Gleydson SAacute Alcindo Poliacuteticas puacuteblicas e globalizaccedilatildeo da agricultura no Vale do Accedilu-RN Revista de Geografia Recife UFPE ndash DCGNAPA v 25 n 2 maiago 2008

APEL Karl-Otto Estudos de moral moderna Petroacutepolis Vozes 2000

BECK Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Traduccedilatildeo original do alematildeo de Sebastiatildeo Nascimento Satildeo Paulo Editora 34 2010

BOFF Leonardo Saber cuidar eacutetica do humano Petroacutepolis Vozes 1999

HEIDEGGER Martin A questatildeo da teacutecnica Ensaios e conferecircncias I Traduzido por Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan Fode Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes Braganccedila Paulista Ed Universitaacuteria Satildeo Francisco 2012

HERRERA Amiacutelcar O Los determinantes sociales de la poliacutetica cientiacutefica en Ameacuterica Latina Poliacutetica cientiacutefica expliacutecita y poliacutetica cientiacutefica impliacutecita Argentina Redes v 2 1995

INSTITUTO Brasileiro de Geografia E Estatiacutestica (IBGE) Censo Demograacutefico 2000 sinopse ndash Rio Grande do Norte ndash Ipanguaccedilu Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtras temasphplang=ampcodmun=240470ampidtema=1ampsearch=rio-grande-do-norte|ipanguacu|censo-demografico-2010-sinopse- Acesso em 14 ago 2015

JASANOFF S Procedural choices in regulatory science Technology in Society 17 1995 httpsdoiorg1010160160-791x(95)00011-f

JONAS Hans O princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Rio de Janeiro Contraponto 2006

JONAS Hans Teacutecnica medicina y eacutetica Sobre la praacutectica del principio de la responsabilidad Barcelona Paidoacutes 1997

LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001

LISBOA Armando de Melo Desenvolvimento uma ideia subdesenvolvida Cadernos do CEAS Salvador n 161 1996

MARCUSE Herbert A ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional Rio de Janeiro Jorge Zahar 1982

MIRANDA A L iquestUna eacutetica para la civilizacioacuten tecnoloacutegica Posibilidades y liacutemites del principio de la responsabilidad de Hans Jonas AlemanhaEspanha Lap LambertEAE 2012

MORIN E Ciecircncia com consciecircncia Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005

SERRES Michel Le contrat natural Paris Flammarion 1992

SHIVA Vandana AZEVEDO Dinah de Abreu Monoculturas da mente perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia Satildeo Paulo Gaia 2003

SIQUEIRA JE Hans Jonas e a eacutetica da responsabilidade Mundo Sauacutede 1999

WEBCARTA Mapa do Rio Grande do Norte Disponiacutevel em webcartanetcartamapaphpid=244amplg=pt Acesso em 26 ago 2015

WOLIN Richard Heideggerrsquos children Hannah Arendt Karl Loumlwith Hans Jonas y Herbert Marcuse Princepton Princepton University Press 2001

ZANCANARO L O conceito de responsabilidade em Hans Jonas CampinasSP Ed UNICAMP 1998

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Page 8: O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail: angelamiranda@ect@ufrn.br. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

251

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Os homens experientes sabem que um dia podem desejar natildeo ter agido desta ou daquela forma O medo de que falo natildeo se refere a esse tipo de incerteza ou ele pode estar presente apenas como um efeito secundaacuterio Com efeito eacute uma das condiccedilotildees da accedilatildeo responsaacutevel natildeo se deixar deter por esse tipo de incerteza assumindo-se ao contraacuterio a responsabilidade pelo desconhecido dado o caraacuteter incerto da esperanccedila isso eacute o que chamamos de ldquocoragem para assumir a responsabilidaderdquo O medo que faz parte da responsabilidade natildeo eacute aquele que nos aconselha a natildeo agir mas aquele que nos convida a agir Trata-se de um medo que tem a ver com o objeto da responsabilidade (JONAS 2006 p 351)

Dessa forma a heuriacutestica do temor aponta para uma eacutetica baseada em antecipar os efeitos futuros e nos fazer agir de maneira mais prudente em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia Nesse sentido Miranda interpretando o sentido jonasiano de eacutetica afirma

[] podemos formular os deveres preliminares de uma eacutetica orientada para o futuro que satildeo buscar a representaccedilatildeo dos efeitos remotos pois somente o que eacute temido pode ser evitado por sua representaccedilatildeo e buscar o temor mediante a apelaccedilatildeo a um sentimento apropriado que o representa (MIRANDA 2012 p 81)

Podemos concluir portanto que a eacutetica da responsabilidade proposta por Hans Jonas eacute um modelo que pensado para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica leva em conta a biosfera a permanecircncia das futuras geraccedilotildees no planeta resgatando a ideia do cuidado do lugar onde se vive em meio aos desafios enfrentados pela sociedade tecnocientiacutefica E eacute a partir desses conceitos que a seguir abordaremos ilustrativamente a aplicaccedilatildeo (ou a ausecircncia) da responsabilidade na implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia dada uma situaccedilatildeo concreta que pertence ao local desde onde falamos e pensamos este trabalho

A aplicaccedilatildeo do princiacutepio responsabilidade de Hans Jonas numa situaccedilatildeo concreta o caso de

IpanguaccediluRN

Sobre a praacutetica do princiacutepio da responsabilidade Jonas escreveu uma obra muito interessante intitulada ldquoTeacutecnica medicina e eacuteticardquo (1997) Naquela oportunidade ele procurou estabelecer a relaccedilatildeo entre a teacutecnica a medicina e a eacutetica inserindo nesta relaccedilatildeo o princiacutepio da responsabilidade A partir daqui neste trabalho pretendemos percorrer uma trajetoacuteria semelhante considerando a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade no cenaacuterio das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas tendo como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no Municiacutepio de Ipanguaccedilu localizado no Estado do Rio Grande do Norte Agrave luz do princiacutepio da responsabilidade de Jonas analisamos as caracteriacutesticas locais da comunidade de agricultores de Ipanguaccedilu do ponto de vista econocircmico cultural e social e como se deu o processo de participaccedilatildeo dos agricultores locais nas poliacuteticas puacuteblicas voltadas para agricultura em especial o caso da fruticultura irrigada

O municiacutepio de IpanguaccediluRN

Ipanguaccedilu eacute um municiacutepio do Estado do Rio Grande do Norte que faz parte da microrregiatildeo do Vale do Accedilu Esta microrregiatildeo eacute formada por nove municiacutepios incluindo Ipanguaccedilu que estatildeo localizados na bacia do Rio PiranhasAccedilu e que possui cerca de 4368150 kmsup2 de extensatildeo segundo dados da AESA (Agecircncia Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba) Eacute importante ressaltar que o Rio PiranhasAccedilu desempenha um papel de extrema importacircncia pois possui o maior reservatoacuterio de aacutegua do Estado do RN a barragem Armando Ribeiro Gonccedilalves

Figura 1 - Mapa do Estado do Rio Grande do Norte Vale do Accedilu em destaque

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

252

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Fonte Webcarta (2015 destaque nosso)

Em Ipanguaccedilu o processo de produccedilatildeo e a base da economia satildeo marcados principalmente pela

agricultura pecuaacuteria e induacutestria da ceracircmica Na agricultura a accedilatildeo do cultivo era de subsistecircncia poreacutem atualmente com a instalaccedilatildeo de empresas na regiatildeo a praacutetica da agricultura eacute centrada na atividade da fruticultura irrigada voltada para exportaccedilatildeo Essa mudanccedila de cenaacuterio do cultivo de subsistecircncia para o cultivo voltado para a exportaccedilatildeo alterou drasticamente o modo de agir tanto na percepccedilatildeo dos agricultores sobre a terra e o que ela simboliza ou representa quanto na forma de lidar com a terra

A construccedilatildeo da Barragem Armando Ribeiro na regiatildeo evidenciou tais mudanccedilas pois segundo Albano (2008) a construccedilatildeo da Barragem configurou dois periacuteodos importantes no municiacutepio o primeiro (1972-1992) marcado pela chegada de empresas nacionais do ramo da agricultura o segundo (1993-2015) marcado pela entrada de multinacionais no municiacutepio como eacute o caso da Del Monte Fresh Produce Essas mudanccedilas representaram natildeo apenas a inserccedilatildeo de empresas do ramo da agricultura na regiatildeo mas tambeacutem uma mudanccedila no cenaacuterio do mercado e da relaccedilatildeo com a terra Pois num primeiro momento ocorreu a migraccedilatildeo da agricultura de subsistecircncia para a de mercado enquanto que num segundo foi adotada a visatildeo de exportaccedilatildeo tendo como base a fruticultura irrigada da monocultura da banana

Outro fato importante eacute que 612 da populaccedilatildeo estaacute situada e trabalha no meio rural segundo o Censo Demograacutefico de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) Dessa forma podemos observar que a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu-RN eacute extremamente importante natildeo soacute para os agricultores locais como tambeacutem e sobretudo para a dinacircmica econocircmica do municiacutepio Eacute em torno dela que se configura a relaccedilatildeo com a terra com a cultura e com a economia no contexto social da regiatildeo

Baseados no caraacuteter metodoloacutegico jaacute explicitado anteriormente e levando em conta a dinacircmica da (re)configuraccedilatildeo da terra ficou evidente a partir da nossa observaccedilatildeo in loco realizada no municiacutepio de Ipanguaccedilu (2014) que a maioria dos trabalhadores rurais natildeo trabalha em sua proacutepria terra mas na terra de terceiros (apenas 3 do total de 10 entrevistados possuem propriedade proacutepria) Segundo o Entrevistado A trabalhador do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu antes da instalaccedilatildeo das empresas multinacionais no municiacutepio havia comunidades que possuiacuteam 50 moradores Mas nos uacuteltimos 15 anos essas comunidades tiveram um aumento populacional vertiginoso chegando a ter 500 famiacutelias Isso segundo ele aconteceu pelo fato de as pessoas deixarem ou venderem suas pequenas propriedades para trabalhar de assalariado no agronegoacutecio Segue trecho do diaacutelogo

Tecircm comunidades no municiacutepio de Ipanguaccedilu que antes das empresas serem instaladas no municiacutepio tinham 50 moradores Essa comunidade de 15 anos pra caacute estaacute com aproximadamente 500 famiacutelias porque as pessoas deixaram ou venderam suas pequenas propriedades para vir trabalhar de assalariado no agronegoacutecio Portanto hoje grande parte dessas pessoas querem voltar para suas terras que muitas vezes foram adquiridas por essas empresas que se tornaram donas das terras do municiacutepio As pessoas estatildeo batalhando para tentar conseguir

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

253

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

outro pedaccedilo de terra para voltar agrave sua origem porque eles estatildeo vendo que com a matildeo-de-obra assalariada eles nunca iratildeo ter uma autonomia econocircmica eles ganham apenas para o sustento familiar (Entrevistado A)

Neste sentido Albano (2008 p 65) acrescenta que ldquoA agricultura de subsistecircncia tambeacutem diminuiu muito com a Barragem e depois dela com as compras de terras pelas grandes empresas rurais interessadas em produzir monoculturas para exportaccedilatildeo ou para o mercado internordquo Como exemplo para ilustrar essa (re)configuraccedilatildeo do espaccedilo e da relaccedilatildeo com a terra podemos citar a multinacional Del Monte Fresh Produce Albano assim explicita o contexto da instalaccedilatildeo da empresa na Regiatildeo de Ipanguaccedilu

O ano de 1993 foi o ano do estabelecimento da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio (OMC) e o ano em que foram concluiacutedas as negociaccedilotildees da Rodada Uruguai que incluiacutea a Agricultura nas suas negociaccedilotildees e que previa uma grande liberalizaccedilatildeo do comeacutercio agriacutecola a partir daquele ano nos paiacuteses associados da OMC inclusive o Brasil Aleacutem disso eacute nesse ano que se tem o iniacutecio da compra de terras em Ipanguaccedilu por uma empresa associada agrave Multinacional Del Monte Fresh Produce Posteriormente ela se insere no municiacutepio de Accedilu e Carnaubais ambos no Vale do Accedilu (ALBANO 2008 p 68)

Contudo quais as implicaccedilotildees da instalaccedilatildeo da multinacional para a comunidade e a agricultura da regiatildeo A Tabela 1 a seguir mostra a relaccedilatildeo e a diferenccedila entre a multinacional e as empresas locais quanto aos elementos da cadeia produtiva e jaacute antecipa os indicativos de resposta vejamos

Tabela 1 - A relaccedilatildeo entre fatores de produccedilatildeo e aquisiccedilatildeo dos insumos das empresas com os lugares de compra

Fonte Elaborado por Albano (2008 p 69) baseado em Carvalho (2001)

Analisando a tabela podemos perceber que a multinacional Del Monte Fresh Produce natildeo possui interaccedilatildeo e integraccedilatildeo com a regiatildeo de Ipanguaccedilu Praticamente quase todos os fatores de produccedilatildeo de insumos e de serviccedilos satildeo exteriores ao municiacutepio A Pesquisa e Desenvolvimento (PampD) na aacuterea da fruticultura irrigada por exemplo eacute concentrada em Israel e na Ameacuterica central enquanto que nas empresas locais ela eacute fruto da proacutepria regiatildeo Eacute interessante perceber que a multinacional faz uso de apenas duas modalidades que diz respeito ao local tal como elencadas na tabela a terra e parte da assistecircncia teacutecnica

Eacute aqui que surge outra indagaccedilatildeo natildeo menos intrigante a percepccedilatildeo e a relaccedilatildeo com a terra do agricultor local satildeo as mesmas que a dos empresaacuterios das multinacionais Seraacute que a responsabilidade e o cuidado (resgatando os conceitos de Jonas) estatildeo implicados do mesmo modo em ambas situaccedilotildees Mais adiante voltaremos a estes pontos

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

254

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

As poliacuteticas puacuteblicas de modernizaccedilatildeo da fruticultura irrigada e a relaccedilatildeo essencial com a terra

Levando em consideraccedilatildeo as poliacuteticas puacuteblicas voltadas para a agricultura na regiatildeo percebe-se que apoacutes a construccedilatildeo da Barragem de Accedilu essas poliacuteticas satildeo voltadas para impulsionar a ldquoRevoluccedilatildeo Verderdquo dando iniacutecio a um forte processo de modernizaccedilatildeo da agricultura Albano a define do seguinte modo

[] consiste num grande crescimento de produtividade e de quantidade na agricultura por meio do uso de tecnologias como os tratores agriacutecolas teacutecnicas de irrigaccedilatildeo defensivos quiacutemicos variedades de sementes aviaccedilatildeo agriacutecola computadores novos meacutetodos de gestatildeo etc De um lado da produccedilatildeo vai se ter a Induacutestria Produtora de Insumos com fertilizantes defensivos e corretivos e do outro vai se ter a Induacutestria de Bens de Capital com tratores colheitadeiras e equipamentos de irrigaccedilatildeo (ALBANO 2008 p 62)

Ainda sobre a Revoluccedilatildeo Verde Shiva afirma

Os sistemas agriacutecolas tradicionais baseiam-se em sistemas de rotaccedilatildeo de culturas e cereais legumes sementes oleaginosas com diversas variedades em cada safra enquanto o pacote da Revoluccedilatildeo Verde baseia-se em monoculturas geneticamente uniformes (SHIVA 2003 p 57)

Em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas no acircmbito da agricultura irrigada em Ipanguaccedilu haacute vaacuterios esforccedilos por parte do governo para impulsionar a modernizaccedilatildeo do campo Em vista disso citando os estudos de Souza (1997) Albano (2008) elenca que no comeccedilo da deacutecada de 1970 o Governo Autoritaacuterio efetivou o I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) Este plano teve como programas mais importantes o Programa de Redistribuiccedilatildeo de Terras (PROTERRA) e de estiacutemulo agrave agroinduacutestria do Norte e Nordeste cujo principal objetivo era ampliar a agroinduacutestria e o Programa de Integraccedilatildeo Nacional (PIN) atraveacutes de um plano de irrigaccedilatildeo no Nordeste

Diante desses esforccedilos para modernizar (tecnificar) a agricultura vale a pena refletirmos sobre o ideal do progresso tecnoloacutegico aliado ao conceito de desenvolvimento econocircmico tatildeo presente na modernidade Essa concepccedilatildeo progressista desconsidera as intencionalidades existentes no artefato tecnoloacutegico e nos indiviacuteduos no que tange agrave sua construccedilatildeo histoacuterica cultural e de valores A instrumentalizaccedilatildeo da ciecircncia e da tecnologia reduz os aparatos e a proacutepria cultura ao meramente teacutecnico e cientiacutefico tendo em vista que o progresso tecnocientiacutefico na maioria das vezes aparece desvinculado da realidade da sociedade local

Herrera (1995 p 117) mostra que isso se torna evidente a partir da Segunda Guerra Mundial com o esforccedilo internacional de implementar e melhorar as Poliacuteticas de Ciecircncia e Tecnologia (CampT) nos paiacuteses considerados ldquosubdesenvolvidosrdquo Poreacutem o que se percebe entre outros fatores eacute a desconexatildeo dos investimentos com a realidade dos paiacuteses da Ameacuterica Latina Tanto as concepccedilotildees de ciecircncia e de tecnologia quanto a ideia de progresso tecnocientiacutefico desvinculados do contexto regional acabam refletindo na construccedilatildeo dos indicadores e das poliacuteticas puacuteblicas em CampT e consequentemente na participaccedilatildeo puacuteblica e na avaliaccedilatildeo deles

Mostrando a desvinculaccedilatildeo das poliacuteticas desenvolvimentistas com o contexto regional Lisboa corrobora com as teses de Robert Kurz quando afirma

As poliacuteticas desenvolvimentistas arrancaram em poucas deacutecadas populaccedilotildees inteiras da sua economia de subsistecircncia tradicional mas natildeo as integraram plenamente (ou seja natildeo as transformaram em cidadatildes) Kurz ao desnudar o colapso da modernizaccedilatildeo do terceiro mundo afirma que ldquoa maior parte da sociedade foi apenas modernizada em sentido negativo isto eacute foram destruiacutedas as estruturas tradicionais sem que alguma coisa nova ocupasse o seu lugarrdquo (LISBOA 1996 p 4-5)

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

255

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Assim as poliacuteticas desenvolvimentistas acabam eliminando a cultura e a praacutetica tradicional dos agricultores locais Relacionando esse contexto com a eacutetica da responsabilidade de Jonas que eacute o propoacutesito deste trabalho podemos testemunhar a sua total exclusatildeo pois a terra passa a ser vista como mero produto mera utilidade que visa ao lucro da exportaccedilatildeo Ou seja haacute um profundo abandono da responsabilidade enquanto cuidado e prudecircncia em relaccedilatildeo agrave terra ao meio ambiente e agraves comunidades que vivem do cultivo da terra

Retomando o olhar sobre a Tabela 1 percebemos que eacute iacutenfima a interaccedilatildeo entre as relaccedilotildees locais que envolvem as praacuteticas da agricultura com a empresa multinacional Neste tipo de praacutetica descarta-se o conhecimento local Desse modo o pensamento transforma-se em monoculturado (SHIVA 2003 p 21) e a cultura torna-se cientificada e tecnificada tendo como justificativa e produto final o progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico Aleacutem disso o proacuteprio debate e a avaliaccedilatildeo puacuteblica que deveria existir para garantir a participaccedilatildeo dos cidadatildeos e a gestatildeo mais democraacutetica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia excluem aqueles que efetivamente satildeo os atores sociais envolvidos neste processo No caso em questatildeo trata-se dos agricultores de Ipanguaccedilu

Aqui recobra sentido a ideia do imperativo tecnoloacutegico abordado por Jonas que elimina a liberdade e a consciecircncia do sujeito em prol de um determinismo tecnoloacutegico Assim o saber local deixa de ter importacircncia e em seu lugar ganha destaque o saber cientiacutefico deixando em evidecircncia as relaccedilotildees estabelecidas entre as multinacionais e o mercado exterior Notadamente na Tabela 1 o saber cientiacutefico e tecnoloacutegico (inclusive importados e produzidos fora do contexto local) satildeo os mais destacados e utilizados em detrimento ao saber local

Percebe-se ouvindo os agricultores da regiatildeo que apesar da instalaccedilatildeo das multinacionais em Ipanguaccedilu ter aumentado a quantidade de empregos a praacutetica do agronegoacutecio extinguiu a diversidade de plantio agriacutecola da regiatildeo Onde antes havia a diversidade cultivada atraveacutes da agricultura de subsistecircncia o cenaacuterio agora eacute o da monocultura com a fruticultura irrigada Um dos agricultores e morador local disse ldquoA agricultura aqui antes era em primeiro lugar Tinha tudo saiacutea muita carrada de pimentatildeo saiacutea muito tomate tinha bastante milho feijatildeo Hoje da agricultura o que tem bastante eacute soacute bananardquo (Entrevistado B)

Aleacutem disso os agricultores natildeo participam ativamente nas decisotildees das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e dos projetos voltados para a agricultura por parte da EMATER (Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural) cuja principal missatildeo eacute contribuir para a promoccedilatildeo do agronegoacutecio focando na agricultura familiar atraveacutes do serviccedilo de extensatildeo rural em prol do desenvolvimento sustentaacutevel tal como podemos observar na Tabela 2 a seguir

Tabela 2 - Projetos de agricultura irrigada implementados a partir de 1987 ateacute 1990 no Vale do Accedilu para pequenos irrigantes ndash EMATER

Fonte Pinheiro (1995 citado por Albano 2008 p 67)

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

256

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Pelos dados apresentados na tabela observa-se o baixo nuacutemero de projetos voltados para o pequeno agricultor na regiatildeo de Ipanguaccedilu Ainda falta uma poliacutetica puacuteblica que realmente integre o agricultor familiar no cenaacuterio da agricultura modernizada e que leve em conta a participaccedilatildeo popular de forma democraacutetica na sua formulaccedilatildeo Quando questionado sobre o papel da EMATER o mesmo agricultor afirma

A EMATER vem se arrastando a passos de tartaruga Eacute muito devagar Natildeo sei se eacute falta de incentivo dos governantes (que eu acredito que seja) porque tem os teacutecnicos que possuem vontade de colocar as coisas para funcionar mas por conta do recurso natildeo tem como eles colocarem para funcionar (Entrevistado B)

A regiatildeo de Ipanguaccedilu e a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas

Aleacutem do que jaacute observamos ateacute aqui que outros aspectos podemos extrair do contexto apresentado sobre a implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na regiatildeo de Ipanguaccedilu e a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da responsabilidade

Jaacute introduzimos este aspecto na parte anterior deste trabalho mas vale a pena aprofundar um pouco mais a criacutetica ao progresso tecida por Jonas (2006) ao que ele denomina de ideal baconiano e a relaccedilatildeo com o ideal de progresso presente na regiatildeo de Ipanguaccedilu Mais especificamente trata-se de evidenciar a relaccedilatildeo da dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica

Como visto anteriormente a tese principal defendida por Hans Jonas eacute que a teacutecnica moderna se converte em ameaccedila natildeo apenas fiacutesica mas tambeacutem ideoloacutegica na medida em que propaga o ideal de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico a qualquer custo o que segundo ele representa um perigo para toda a humanidade Sobre este perigo ele argumenta

O perigo decorre da dimensatildeo excessiva da civilizaccedilatildeo teacutecnico-industrial baseada nas ciecircncias naturais O que chamamos de programa baconiano ndash ou seja colocar o saber a serviccedilo da dominaccedilatildeo da natureza e utilizaacute-la para melhorar a sorte da humanidade ndash natildeo contou desde as origens na sua execuccedilatildeo capitalista com a racionalidade e a retidatildeo que lhe seriam adequadas poreacutem sua dinacircmica de ecircxito que conduz obrigatoriamente aos excessos de produccedilatildeo e consumo teria subjugado qualquer sociedade considerando-se a breve escala de tempo dos objetivos humanos e a imprevisibilidade real das dimensotildees do ecircxito (uma vez que nenhuma sociedade se compotildee de saacutebios) (JONAS 2006 p 235)

Jonas atenta aos perigos existentes na civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica e utilitaacuteria onde partimos do pressuposto de que a teacutecnica moderna eacute indispensaacutevel para a sociedade e que sobretudo eacute nela que encontraremos o triunfo (o que o filoacutesofo denomina de ecircxito) Nessa perspectiva ele afirma que ldquoa ameaccedila de cataacutestrofe do ideal baconiano de dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica reside portanto na magnitude do seu ecircxito Esse ecircxito tem dois aspectos econocircmico e bioloacutegicordquo (2006 p 235) O ecircxito econocircmico resultaria no esgotamento dos recursos naturais atraveacutes do aumento da produccedilatildeo de bens e diminuiccedilatildeo do dispecircndio do trabalho humano enquanto que o bioloacutegico consistiria em um aumento exponencial da populaccedilatildeo

Dito isso a partir da ambivalecircncia do ecircxito presente no ideal baconiano podemos fazer um contraponto com a implementaccedilatildeo das poliacuteticas voltadas para a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu Natildeo estariam inseridas nesta loacutegica as poliacuteticas puacuteblicas que surgiram para impulsionar a Revoluccedilatildeo Verde Nesse contexto percebemos um forte crescimento de produtividade na agricultura atraveacutes da utilizaccedilatildeo de novas tecnologias oriundas da ideia de modernizar o campo aumentando assim a visibilidade das empresas multinacionais e diminuindo as atividades de subsistecircncia (ldquoecircxito econocircmicordquo) Do mesmo modo constatamos o aumento populacional em certas comunidades como mostrado anteriormente onde antes

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

257

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

havia 50 moradores apoacutes a instalaccedilatildeo das multinacionais a populaccedilatildeo da comunidade aumentou para 500 moradores (ldquoecircxito bioloacutegicordquo) Isso posto e respondendo agrave pergunta anterior podemos afirmar que de certo modo essas poliacuteticas que surgem com vistas agrave modernizaccedilatildeo do campo estatildeo inseridas nesta ambiguidade do ecircxito colocada por Hans Jonas quando pensamos no ideal baconiano de um lado o econocircmico com a maior produtividade e menor dispecircndio do trabalho do outro o bioloacutegico com o aumento populacional

Outra relaccedilatildeo que podemos evidenciar levando em conta este cenaacuterio utilitaacuterio advindo da modernizaccedilatildeo da agricultura eacute a questatildeo da alimentaccedilatildeo Citando a utoacutepica ldquoreconstruccedilatildeo da naturezardquo pensada por Bloch Jonas afirma que

[] por causa do seu ecircxito bioloacutegico e do seu crescimento irresistiacutevel a humanidade se vecirc forccedilada a adicionar produtos quiacutemicos agrave camada produtiva da crosta terrestre [] As tecnologias agraacuterias de maximizaccedilatildeo tecircm impactos cumulativos sobre a natureza que mal comeccedilaram a revelar-se em acircmbito local por exemplo na poluiccedilatildeo quiacutemica dos recursos hiacutedricos e das aacuteguas costeiras (para o que contribuem tambeacutem as induacutestrias) com efeitos nocivos transmitidos pela cadeia alimentar A salinizaccedilatildeo dos solos pela irrigaccedilatildeo constante a erosatildeo provocada pela aragem dos campos [] (JONAS 2006 p 302)

Historicamente eacute sabido que a proposta da eacutetica jonasiana deu cabida a muitos movimentos ecologistas no final do seacuteculo passado inclusive orientando as diretrizes do Partido Verde na Alemanha a partir dos anos noventa Mas tambeacutem eacute fato que Jonas ao duvidar das apostas nas tecnologias modernas com o uso de fertilizantes agrotoacutexicos e o cultivo da monocultura para o crescimento a qualquer custo tambeacutem coloca em crise os ideais surgidos na Revoluccedilatildeo Verde Nesse mesmo sentido quando indagado sobre a questatildeo socioambiental e do progresso na agricultura familiar e no agronegoacutecio o entrevistado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu argumenta

Tanto os agricultores familiares precisam ainda lidar com a questatildeo socioambiental como tambeacutem as empresas que estatildeo no municiacutepio Haacute empresas que trabalhavam com a pulverizaccedilatildeo aeacuterea atraveacutes de aviotildees e envenenaram rios plantaccedilotildees houve mortandade de peixes e com isso foram feitas denuacutencias ao IDEMA ndash que eacute o oacutergatildeo de meio ambiente estadual ao IBAMA Tecircm empresas que foram multadas em vaacuterios milhotildees de reais e estatildeo procurando se adequar ao meio ambiente para prejudicar menos Tambeacutem podemos abordar a questatildeo do progresso cientiacutefico (Entrevistado A)

A visatildeo de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico aliada ao desenvolvimento presente na modernidade acaba mascarando os efeitos desastrosos da tecnificaccedilatildeo em escala planetaacuteria O discurso de um crescente bem-estar (tanto social quanto econocircmico) faz-nos acreditar que soacute existe uma uacutenica via a ser seguida que eacute a do desenvolvimento Poreacutem essa falsa sensaccedilatildeo eclipsa o pensar que questiona a teacutecnica e a sua relaccedilatildeo com a sociedade na atualidade

Ainda dentro da ameaccedila do ideal baconiano exposto por Jonas outro aspecto relevante e que merece destaque aqui eacute a questatildeo da dominaccedilatildeo da natureza a partir da teacutecnica moderna Jonas (2006 p 236) considera que na ldquodialeacutetica do poder sobre a natureza e a compulsatildeo de exercecirc-lardquo o poder tornou-se crucial nesta relaccedilatildeo Assim ele afirma

A foacutermula baconiana afirma que saber eacute poder Mas eacute o proacuteprio programa baconiano que no aacutepice do triunfo revela-se insuficiente com a sua contradiccedilatildeo intriacutenseca ou seja o descontrole sobre si mesmo mostrando-se incapaz de proteger o homem de si mesmo e a natureza do homem (2006 p 236)

A partir desta dialeacutetica estabelecida entre poder teacutecnica moderna e sua relaccedilatildeo com o homem e a proacutepria natureza Jonas afirma que tanto o homem quanto a natureza precisam de proteccedilatildeo quando se pensa na magnitude do poder que o progresso cientiacutefico alcanccedilou Pensamento semelhante jaacute havia sido

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

258

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

propagado tambeacutem por Marcuse (1982) quando nos anos sessenta do seacuteculo passado afirmava a unidimensionalidade da condiccedilatildeo humana advinda da teacutecnica moderna Esse poder eacute caracterizado pela necessidade do uso crescente da teacutecnica conduzindo o homem a uma incapacidade de frear o contiacutenuo progresso muito embora ele (o homem) insista em acreditar que a natureza eacute apenas um objeto de exploraccedilatildeo e estaacute disponiacutevel para atender meramente agrave sua vontade

Aleacutem desta problemaacutetica do progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico colocado por Jonas podemos tambeacutem fazer uma relaccedilatildeo entre as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade e o municiacutepio de Ipanguaccedilu Tal como jaacute salientamos anteriormente o primeiro aspecto a destacar desde a eacutetica jonasiana eacute o dever do homem perante a biosfera como dever responsaacutevel garantindo tanto a preservaccedilatildeo do presente quanto do futuro da humanidade e da natureza Portanto neste aspecto haveriacuteamos de indagar ateacute que ponto a agricultura familiar na regiatildeo de Ipanguaccedilu torna vaacutelido esse dever e se o mesmo procede com o agronegoacutecio Como dito anteriormente o agronegoacutecio visa agrave monocultura e agrave modernizaccedilatildeo da agricultura ou seja as atividades agriacutecolas satildeo baseadas no controle teacutecnico da terra gerando uma maior produccedilatildeo que garante a exportaccedilatildeo e o investimento no mercado interno visando ao lucro Do outro lado estaacute a agricultura familiar tendo como principal caracteriacutestica o cultivo de subsistecircncia Podemos observar que no primeiro exemplo a natureza eacute vista como um objeto de lucro enquanto que no segundo ela eacute vista como um ldquoobjetordquo de responsabilidade E eacute no contexto do segundo exemplo que se insere o sentido do ldquodever serrdquo tal como observa Jonas Poreacutem o que ocorre eacute que na atualidade as atividades desenvolvidas pelas multinacionais do agronegoacutecio em Ipanguaccedilu eacute que vecircm merecendo lugar de destaque no cenaacuterio das poliacuteticas puacuteblicas locais

Consideraccedilotildees Finais

Do exposto ateacute aqui fica expliacutecito que eacute necessaacuterio um olhar criacutetico sobre a problemaacutetica existente do paradigma cientiacutefico e tecnoloacutegico presente na modernidade que impele tudo ao progresso e ao desenvolvimento Do mesmo modo tambeacutem eacute preciso refletir sobre como tratamos a realidade e o contexto cultural local visto que natildeo podem ser marginalizados em prol do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico e econocircmico global Observando o sentido do desenvolvimento neste contexto Lisboa argumenta

O desenvolvimento comporta em si mesmo o subdesenvolvimento O padratildeo mimeacutetico do desenvolvimento fundado no estilo ocidental de vida com altos niacuteveis de consumo e desperdiacutecio tem cegado os povos do terceiro mundo os impedindo de se encontrar com sua identidade Ora um povo privado de sua identidade natildeo eacute capaz de se autodeterminar (LISBOA 1996 p 7)

Apesar de a instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo de Ipanguaccedilu ter reduzido a diversidade da regiatildeo atraveacutes do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico o pouco que haacute da praacutetica da agricultura familiar ainda insiste em preservar a relaccedilatildeo essencial com a terra e com tradiccedilotildees culturais Nela se vecirc refletido o princiacutepio eacutetico da responsabilidade de Hans Jonas onde haacute a preocupaccedilatildeo do cuidado com o lugar onde vivem para que as futuras geraccedilotildees possam viver de forma sustentaacutevel Na agricultura familiar tambeacutem se torna visiacutevel a temeridade e a relaccedilatildeo do ser teacutecnico com a prudecircncia onde os valores estatildeo na biosfera e natildeo na utilidade do fazer antropocecircntrico e egoiacutesta da condiccedilatildeo humana de estar no mundo

Insistir na permanecircncia desta praacutetica eacute insistir na participaccedilatildeo direta ativa e democraacutetica dos agricultores na formulaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e nos projetos voltados para a agricultura Pois se no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia tambeacutem estaacute inserida a dimensatildeo social entatildeo a implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia deve ser decidida pelos atores sociais nela implicados (MIRANDA 2012 p 181-182) Dessa forma eacute no espaccedilo puacuteblico de debate com a populaccedilatildeo diretamente afetada pelas implementaccedilotildees tecnocientiacuteficas que construiacutemos esta praacutetica democraacutetica e participativa frente agrave ciecircncia e agrave tecnologia eliminando assim a violecircncia contra a cultura local tal como situa Shiva

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

259

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

O primeiro plano da violecircncia desencadeada contra os sistemas locais de saber eacute natildeo consideraacute-los um saber A invisibilidade eacute a primeira razatildeo pela qual os sistemas locais entram em colapso antes de serem testados e comprovados pelo confronto com o saber dominante do Ocidente A proacutepria distacircncia elimina os sistemas locais da percepccedilatildeo Quando o saber local aparece de fato no campo da visatildeo globalizadora fazem com que desapareccedila negando-lhe o status de um saber sistemaacutetico e atribuindo-lhe os adjetivos de primitivo e anticientiacutefico (SHIVA 2003 p 22-23)

Portanto tal como ensina Shiva para que haja inclusatildeo e um processo democraacutetico na participaccedilatildeo puacuteblica voltada para a ciecircncia e para a tecnologia eacute preciso que a visatildeo globalizante da tecnificaccedilatildeo e da cientifizaccedilatildeo natildeo anule o conhecimento local com a justificativa de que eles natildeo satildeo cientiacuteficos O saber local e as praacuteticas culturais dos agricultores devem ser levados em consideraccedilatildeo nesses processos de implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de garantir o empoderamento dos atores sociais neles implicados

Ora que liccedilotildees podemos extrair destas constataccedilotildees se vincularmos ao agir eacutetico Agrave luz das teses apresentadas por Hans Jonas apontamos alguns caminhos (i) Que eacute necessaacuterio pensar numa eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica e instrumental abrangendo uma nova dimensatildeo a responsabilidade (ii) Que tal modelo de eacutetica seja capaz de resgatar o conceito de temeridade e a relaccedilatildeo da teacutecnica natildeo somente com a eficiecircncia mas tambeacutem com a prudecircncia (iii) Que eacute fundamental retomar o sentido originaacuterio da eacutetica como cuidado o cuidar do lugar onde se vive (BOFF 1999 MIRANDA 2012)

Em outros termos o questionamento diante da teacutecnica e da ciecircncia levando em consideraccedilatildeo o acircmbito da eacutetica e das poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode estar inserido meramente na dimensatildeo instrumental e antropoloacutegica Trata-se antes de tudo de uma fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da natureza e da condiccedilatildeo humana levando em conta o princiacutepio responsabilidade definido pela eacutetica jonasiana

A justificativa de uma tal eacutetica que natildeo mais se restringe ao terreno imediatamente intersubjetivo da contemporaneidade deve estender-se ateacute a metafiacutesica pois soacute ela permite que se pergunte por que afinal homens devem estar no mundo portanto por que o imperativo incondicional destina-se a assegurar-lhes a existecircncia no futuro A aventura da tecnologia impotildee com seus riscos extremos o risco da reflexatildeo extrema (JONAS 2006 p 22)

Desta forma e diante da insuficiecircncia constatada por Jonas da eacutetica tradicional em propor saiacutedas frente aos novos dilemas eacuteticos pautados pela sociedade tecnocientiacutefica eacute proposta deste estudo pensar um novo agir humano baseado na responsabilidade inclusive no acircmbito da implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de pensar saiacutedas que sejam capazes de ultrapassar as barreiras do discurso desenvolvimentista e por conseguinte determinista da tecnologia e da neutralidade cientiacutefica que ainda persistem e insistem em orientar as praacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na sociedade atual Afinal como diz Miranda com base nos estudos de Jasanoff (1995)

a ciecircncia deveria ter uma funccedilatildeo poliacutetica na medida em que tambeacutem avalia e revisa o estado do conhecimento cientiacutefico e sua aplicabilidade praacutetica Assim diante de programas de controle ambiental por exemplo mais que simplesmente aplicar certo tipo de conhecimento cientiacutefico aparentemente desinteressado neutro o papel da ciecircncia deveria ser tambeacutem eacutetico-poliacutetico no sentido de avaliar suas implicaccedilotildees sociais poliacuteticas culturais etc (MIRANDA 2012 p 181)

Em suma a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no municiacutepio de Ipanguaccedilu ensina-nos que no cenaacuterio da instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo impulsionadas por poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas supostamente de cunho desenvolvimentista e que correspondem ao ideal progressista cujo agir eacute meramente utilitaacuterio e de exploraccedilatildeo da natureza visando cada vez mais ao lucro a eacutetica da responsabilidade pode ser a criacutetica e o

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

260

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

norte de uma nova forma de agir Desde sua criacutetica tambeacutem eacute possiacutevel formular poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas que levem em conta os atores sociais nelas implicados tornando o processo democraacutetico e natildeo somente tecnocraacutetico Por outro lado e considerando o cenaacuterio da agricultura familiar e dos agricultores que ali vivem e lidam com a terra a eacutetica da responsabilidade surge como forma de corroborar com suas praacuteticas como a accedilatildeo eacutetica que visa ao cuidado com o lugar onde vivem pois eles (os agricultores) natildeo satildeo apenas ldquodonosrdquo da terra mas ocupam e essencializam a terra atraveacutes da relaccedilatildeo de cuidado e de prudecircncia no ato de cultivar a terra

Eacute a partir desta constataccedilatildeo que apresentamos a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas como uma eacutetica possiacutevel de ser aplicada nesse contexto de aparente dualidade entre a agricultura familiar e o agronegoacutecio Levando em conta as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade como o conceito da responsabilidade e do ideal utoacutepico do progresso cientiacutefico tecnoloacutegico a relaccedilatildeo com o meio ambiente e com a terra concluiacutemos que urge pensar sua aplicaccedilatildeo tambeacutem no campo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas A sua utilizaccedilatildeo no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia torna-se necessaacuteria no atual contexto da modernizaccedilatildeo em que estatildeo submetidos grupos sociais comunidades e povos inteiros E ainda que guardados seus devidos limites (MIRANDA 2012 p 143) a responsabilidade eacute um princiacutepio eacutetico que pode contribuir para nortear as accedilotildees tecnocientiacuteficas rumo agrave uma sociedade mais sustentaacutevel e equilibrada

Referecircncias

AGEcircNCIA Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba (AESA) Comitecircs Piranhas-Accedilu apresentaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwaesapbgovbrcomitespiranhasacu Acesso em 23 ago 2015

ALBANO Gleydson SAacute Alcindo Poliacuteticas puacuteblicas e globalizaccedilatildeo da agricultura no Vale do Accedilu-RN Revista de Geografia Recife UFPE ndash DCGNAPA v 25 n 2 maiago 2008

APEL Karl-Otto Estudos de moral moderna Petroacutepolis Vozes 2000

BECK Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Traduccedilatildeo original do alematildeo de Sebastiatildeo Nascimento Satildeo Paulo Editora 34 2010

BOFF Leonardo Saber cuidar eacutetica do humano Petroacutepolis Vozes 1999

HEIDEGGER Martin A questatildeo da teacutecnica Ensaios e conferecircncias I Traduzido por Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan Fode Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes Braganccedila Paulista Ed Universitaacuteria Satildeo Francisco 2012

HERRERA Amiacutelcar O Los determinantes sociales de la poliacutetica cientiacutefica en Ameacuterica Latina Poliacutetica cientiacutefica expliacutecita y poliacutetica cientiacutefica impliacutecita Argentina Redes v 2 1995

INSTITUTO Brasileiro de Geografia E Estatiacutestica (IBGE) Censo Demograacutefico 2000 sinopse ndash Rio Grande do Norte ndash Ipanguaccedilu Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtras temasphplang=ampcodmun=240470ampidtema=1ampsearch=rio-grande-do-norte|ipanguacu|censo-demografico-2010-sinopse- Acesso em 14 ago 2015

JASANOFF S Procedural choices in regulatory science Technology in Society 17 1995 httpsdoiorg1010160160-791x(95)00011-f

JONAS Hans O princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Rio de Janeiro Contraponto 2006

JONAS Hans Teacutecnica medicina y eacutetica Sobre la praacutectica del principio de la responsabilidad Barcelona Paidoacutes 1997

LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001

LISBOA Armando de Melo Desenvolvimento uma ideia subdesenvolvida Cadernos do CEAS Salvador n 161 1996

MARCUSE Herbert A ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional Rio de Janeiro Jorge Zahar 1982

MIRANDA A L iquestUna eacutetica para la civilizacioacuten tecnoloacutegica Posibilidades y liacutemites del principio de la responsabilidad de Hans Jonas AlemanhaEspanha Lap LambertEAE 2012

MORIN E Ciecircncia com consciecircncia Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005

SERRES Michel Le contrat natural Paris Flammarion 1992

SHIVA Vandana AZEVEDO Dinah de Abreu Monoculturas da mente perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia Satildeo Paulo Gaia 2003

SIQUEIRA JE Hans Jonas e a eacutetica da responsabilidade Mundo Sauacutede 1999

WEBCARTA Mapa do Rio Grande do Norte Disponiacutevel em webcartanetcartamapaphpid=244amplg=pt Acesso em 26 ago 2015

WOLIN Richard Heideggerrsquos children Hannah Arendt Karl Loumlwith Hans Jonas y Herbert Marcuse Princepton Princepton University Press 2001

ZANCANARO L O conceito de responsabilidade em Hans Jonas CampinasSP Ed UNICAMP 1998

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Page 9: O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail: angelamiranda@ect@ufrn.br. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

252

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Fonte Webcarta (2015 destaque nosso)

Em Ipanguaccedilu o processo de produccedilatildeo e a base da economia satildeo marcados principalmente pela

agricultura pecuaacuteria e induacutestria da ceracircmica Na agricultura a accedilatildeo do cultivo era de subsistecircncia poreacutem atualmente com a instalaccedilatildeo de empresas na regiatildeo a praacutetica da agricultura eacute centrada na atividade da fruticultura irrigada voltada para exportaccedilatildeo Essa mudanccedila de cenaacuterio do cultivo de subsistecircncia para o cultivo voltado para a exportaccedilatildeo alterou drasticamente o modo de agir tanto na percepccedilatildeo dos agricultores sobre a terra e o que ela simboliza ou representa quanto na forma de lidar com a terra

A construccedilatildeo da Barragem Armando Ribeiro na regiatildeo evidenciou tais mudanccedilas pois segundo Albano (2008) a construccedilatildeo da Barragem configurou dois periacuteodos importantes no municiacutepio o primeiro (1972-1992) marcado pela chegada de empresas nacionais do ramo da agricultura o segundo (1993-2015) marcado pela entrada de multinacionais no municiacutepio como eacute o caso da Del Monte Fresh Produce Essas mudanccedilas representaram natildeo apenas a inserccedilatildeo de empresas do ramo da agricultura na regiatildeo mas tambeacutem uma mudanccedila no cenaacuterio do mercado e da relaccedilatildeo com a terra Pois num primeiro momento ocorreu a migraccedilatildeo da agricultura de subsistecircncia para a de mercado enquanto que num segundo foi adotada a visatildeo de exportaccedilatildeo tendo como base a fruticultura irrigada da monocultura da banana

Outro fato importante eacute que 612 da populaccedilatildeo estaacute situada e trabalha no meio rural segundo o Censo Demograacutefico de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) Dessa forma podemos observar que a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu-RN eacute extremamente importante natildeo soacute para os agricultores locais como tambeacutem e sobretudo para a dinacircmica econocircmica do municiacutepio Eacute em torno dela que se configura a relaccedilatildeo com a terra com a cultura e com a economia no contexto social da regiatildeo

Baseados no caraacuteter metodoloacutegico jaacute explicitado anteriormente e levando em conta a dinacircmica da (re)configuraccedilatildeo da terra ficou evidente a partir da nossa observaccedilatildeo in loco realizada no municiacutepio de Ipanguaccedilu (2014) que a maioria dos trabalhadores rurais natildeo trabalha em sua proacutepria terra mas na terra de terceiros (apenas 3 do total de 10 entrevistados possuem propriedade proacutepria) Segundo o Entrevistado A trabalhador do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu antes da instalaccedilatildeo das empresas multinacionais no municiacutepio havia comunidades que possuiacuteam 50 moradores Mas nos uacuteltimos 15 anos essas comunidades tiveram um aumento populacional vertiginoso chegando a ter 500 famiacutelias Isso segundo ele aconteceu pelo fato de as pessoas deixarem ou venderem suas pequenas propriedades para trabalhar de assalariado no agronegoacutecio Segue trecho do diaacutelogo

Tecircm comunidades no municiacutepio de Ipanguaccedilu que antes das empresas serem instaladas no municiacutepio tinham 50 moradores Essa comunidade de 15 anos pra caacute estaacute com aproximadamente 500 famiacutelias porque as pessoas deixaram ou venderam suas pequenas propriedades para vir trabalhar de assalariado no agronegoacutecio Portanto hoje grande parte dessas pessoas querem voltar para suas terras que muitas vezes foram adquiridas por essas empresas que se tornaram donas das terras do municiacutepio As pessoas estatildeo batalhando para tentar conseguir

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

253

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

outro pedaccedilo de terra para voltar agrave sua origem porque eles estatildeo vendo que com a matildeo-de-obra assalariada eles nunca iratildeo ter uma autonomia econocircmica eles ganham apenas para o sustento familiar (Entrevistado A)

Neste sentido Albano (2008 p 65) acrescenta que ldquoA agricultura de subsistecircncia tambeacutem diminuiu muito com a Barragem e depois dela com as compras de terras pelas grandes empresas rurais interessadas em produzir monoculturas para exportaccedilatildeo ou para o mercado internordquo Como exemplo para ilustrar essa (re)configuraccedilatildeo do espaccedilo e da relaccedilatildeo com a terra podemos citar a multinacional Del Monte Fresh Produce Albano assim explicita o contexto da instalaccedilatildeo da empresa na Regiatildeo de Ipanguaccedilu

O ano de 1993 foi o ano do estabelecimento da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio (OMC) e o ano em que foram concluiacutedas as negociaccedilotildees da Rodada Uruguai que incluiacutea a Agricultura nas suas negociaccedilotildees e que previa uma grande liberalizaccedilatildeo do comeacutercio agriacutecola a partir daquele ano nos paiacuteses associados da OMC inclusive o Brasil Aleacutem disso eacute nesse ano que se tem o iniacutecio da compra de terras em Ipanguaccedilu por uma empresa associada agrave Multinacional Del Monte Fresh Produce Posteriormente ela se insere no municiacutepio de Accedilu e Carnaubais ambos no Vale do Accedilu (ALBANO 2008 p 68)

Contudo quais as implicaccedilotildees da instalaccedilatildeo da multinacional para a comunidade e a agricultura da regiatildeo A Tabela 1 a seguir mostra a relaccedilatildeo e a diferenccedila entre a multinacional e as empresas locais quanto aos elementos da cadeia produtiva e jaacute antecipa os indicativos de resposta vejamos

Tabela 1 - A relaccedilatildeo entre fatores de produccedilatildeo e aquisiccedilatildeo dos insumos das empresas com os lugares de compra

Fonte Elaborado por Albano (2008 p 69) baseado em Carvalho (2001)

Analisando a tabela podemos perceber que a multinacional Del Monte Fresh Produce natildeo possui interaccedilatildeo e integraccedilatildeo com a regiatildeo de Ipanguaccedilu Praticamente quase todos os fatores de produccedilatildeo de insumos e de serviccedilos satildeo exteriores ao municiacutepio A Pesquisa e Desenvolvimento (PampD) na aacuterea da fruticultura irrigada por exemplo eacute concentrada em Israel e na Ameacuterica central enquanto que nas empresas locais ela eacute fruto da proacutepria regiatildeo Eacute interessante perceber que a multinacional faz uso de apenas duas modalidades que diz respeito ao local tal como elencadas na tabela a terra e parte da assistecircncia teacutecnica

Eacute aqui que surge outra indagaccedilatildeo natildeo menos intrigante a percepccedilatildeo e a relaccedilatildeo com a terra do agricultor local satildeo as mesmas que a dos empresaacuterios das multinacionais Seraacute que a responsabilidade e o cuidado (resgatando os conceitos de Jonas) estatildeo implicados do mesmo modo em ambas situaccedilotildees Mais adiante voltaremos a estes pontos

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

254

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

As poliacuteticas puacuteblicas de modernizaccedilatildeo da fruticultura irrigada e a relaccedilatildeo essencial com a terra

Levando em consideraccedilatildeo as poliacuteticas puacuteblicas voltadas para a agricultura na regiatildeo percebe-se que apoacutes a construccedilatildeo da Barragem de Accedilu essas poliacuteticas satildeo voltadas para impulsionar a ldquoRevoluccedilatildeo Verderdquo dando iniacutecio a um forte processo de modernizaccedilatildeo da agricultura Albano a define do seguinte modo

[] consiste num grande crescimento de produtividade e de quantidade na agricultura por meio do uso de tecnologias como os tratores agriacutecolas teacutecnicas de irrigaccedilatildeo defensivos quiacutemicos variedades de sementes aviaccedilatildeo agriacutecola computadores novos meacutetodos de gestatildeo etc De um lado da produccedilatildeo vai se ter a Induacutestria Produtora de Insumos com fertilizantes defensivos e corretivos e do outro vai se ter a Induacutestria de Bens de Capital com tratores colheitadeiras e equipamentos de irrigaccedilatildeo (ALBANO 2008 p 62)

Ainda sobre a Revoluccedilatildeo Verde Shiva afirma

Os sistemas agriacutecolas tradicionais baseiam-se em sistemas de rotaccedilatildeo de culturas e cereais legumes sementes oleaginosas com diversas variedades em cada safra enquanto o pacote da Revoluccedilatildeo Verde baseia-se em monoculturas geneticamente uniformes (SHIVA 2003 p 57)

Em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas no acircmbito da agricultura irrigada em Ipanguaccedilu haacute vaacuterios esforccedilos por parte do governo para impulsionar a modernizaccedilatildeo do campo Em vista disso citando os estudos de Souza (1997) Albano (2008) elenca que no comeccedilo da deacutecada de 1970 o Governo Autoritaacuterio efetivou o I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) Este plano teve como programas mais importantes o Programa de Redistribuiccedilatildeo de Terras (PROTERRA) e de estiacutemulo agrave agroinduacutestria do Norte e Nordeste cujo principal objetivo era ampliar a agroinduacutestria e o Programa de Integraccedilatildeo Nacional (PIN) atraveacutes de um plano de irrigaccedilatildeo no Nordeste

Diante desses esforccedilos para modernizar (tecnificar) a agricultura vale a pena refletirmos sobre o ideal do progresso tecnoloacutegico aliado ao conceito de desenvolvimento econocircmico tatildeo presente na modernidade Essa concepccedilatildeo progressista desconsidera as intencionalidades existentes no artefato tecnoloacutegico e nos indiviacuteduos no que tange agrave sua construccedilatildeo histoacuterica cultural e de valores A instrumentalizaccedilatildeo da ciecircncia e da tecnologia reduz os aparatos e a proacutepria cultura ao meramente teacutecnico e cientiacutefico tendo em vista que o progresso tecnocientiacutefico na maioria das vezes aparece desvinculado da realidade da sociedade local

Herrera (1995 p 117) mostra que isso se torna evidente a partir da Segunda Guerra Mundial com o esforccedilo internacional de implementar e melhorar as Poliacuteticas de Ciecircncia e Tecnologia (CampT) nos paiacuteses considerados ldquosubdesenvolvidosrdquo Poreacutem o que se percebe entre outros fatores eacute a desconexatildeo dos investimentos com a realidade dos paiacuteses da Ameacuterica Latina Tanto as concepccedilotildees de ciecircncia e de tecnologia quanto a ideia de progresso tecnocientiacutefico desvinculados do contexto regional acabam refletindo na construccedilatildeo dos indicadores e das poliacuteticas puacuteblicas em CampT e consequentemente na participaccedilatildeo puacuteblica e na avaliaccedilatildeo deles

Mostrando a desvinculaccedilatildeo das poliacuteticas desenvolvimentistas com o contexto regional Lisboa corrobora com as teses de Robert Kurz quando afirma

As poliacuteticas desenvolvimentistas arrancaram em poucas deacutecadas populaccedilotildees inteiras da sua economia de subsistecircncia tradicional mas natildeo as integraram plenamente (ou seja natildeo as transformaram em cidadatildes) Kurz ao desnudar o colapso da modernizaccedilatildeo do terceiro mundo afirma que ldquoa maior parte da sociedade foi apenas modernizada em sentido negativo isto eacute foram destruiacutedas as estruturas tradicionais sem que alguma coisa nova ocupasse o seu lugarrdquo (LISBOA 1996 p 4-5)

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

255

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Assim as poliacuteticas desenvolvimentistas acabam eliminando a cultura e a praacutetica tradicional dos agricultores locais Relacionando esse contexto com a eacutetica da responsabilidade de Jonas que eacute o propoacutesito deste trabalho podemos testemunhar a sua total exclusatildeo pois a terra passa a ser vista como mero produto mera utilidade que visa ao lucro da exportaccedilatildeo Ou seja haacute um profundo abandono da responsabilidade enquanto cuidado e prudecircncia em relaccedilatildeo agrave terra ao meio ambiente e agraves comunidades que vivem do cultivo da terra

Retomando o olhar sobre a Tabela 1 percebemos que eacute iacutenfima a interaccedilatildeo entre as relaccedilotildees locais que envolvem as praacuteticas da agricultura com a empresa multinacional Neste tipo de praacutetica descarta-se o conhecimento local Desse modo o pensamento transforma-se em monoculturado (SHIVA 2003 p 21) e a cultura torna-se cientificada e tecnificada tendo como justificativa e produto final o progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico Aleacutem disso o proacuteprio debate e a avaliaccedilatildeo puacuteblica que deveria existir para garantir a participaccedilatildeo dos cidadatildeos e a gestatildeo mais democraacutetica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia excluem aqueles que efetivamente satildeo os atores sociais envolvidos neste processo No caso em questatildeo trata-se dos agricultores de Ipanguaccedilu

Aqui recobra sentido a ideia do imperativo tecnoloacutegico abordado por Jonas que elimina a liberdade e a consciecircncia do sujeito em prol de um determinismo tecnoloacutegico Assim o saber local deixa de ter importacircncia e em seu lugar ganha destaque o saber cientiacutefico deixando em evidecircncia as relaccedilotildees estabelecidas entre as multinacionais e o mercado exterior Notadamente na Tabela 1 o saber cientiacutefico e tecnoloacutegico (inclusive importados e produzidos fora do contexto local) satildeo os mais destacados e utilizados em detrimento ao saber local

Percebe-se ouvindo os agricultores da regiatildeo que apesar da instalaccedilatildeo das multinacionais em Ipanguaccedilu ter aumentado a quantidade de empregos a praacutetica do agronegoacutecio extinguiu a diversidade de plantio agriacutecola da regiatildeo Onde antes havia a diversidade cultivada atraveacutes da agricultura de subsistecircncia o cenaacuterio agora eacute o da monocultura com a fruticultura irrigada Um dos agricultores e morador local disse ldquoA agricultura aqui antes era em primeiro lugar Tinha tudo saiacutea muita carrada de pimentatildeo saiacutea muito tomate tinha bastante milho feijatildeo Hoje da agricultura o que tem bastante eacute soacute bananardquo (Entrevistado B)

Aleacutem disso os agricultores natildeo participam ativamente nas decisotildees das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e dos projetos voltados para a agricultura por parte da EMATER (Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural) cuja principal missatildeo eacute contribuir para a promoccedilatildeo do agronegoacutecio focando na agricultura familiar atraveacutes do serviccedilo de extensatildeo rural em prol do desenvolvimento sustentaacutevel tal como podemos observar na Tabela 2 a seguir

Tabela 2 - Projetos de agricultura irrigada implementados a partir de 1987 ateacute 1990 no Vale do Accedilu para pequenos irrigantes ndash EMATER

Fonte Pinheiro (1995 citado por Albano 2008 p 67)

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

256

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Pelos dados apresentados na tabela observa-se o baixo nuacutemero de projetos voltados para o pequeno agricultor na regiatildeo de Ipanguaccedilu Ainda falta uma poliacutetica puacuteblica que realmente integre o agricultor familiar no cenaacuterio da agricultura modernizada e que leve em conta a participaccedilatildeo popular de forma democraacutetica na sua formulaccedilatildeo Quando questionado sobre o papel da EMATER o mesmo agricultor afirma

A EMATER vem se arrastando a passos de tartaruga Eacute muito devagar Natildeo sei se eacute falta de incentivo dos governantes (que eu acredito que seja) porque tem os teacutecnicos que possuem vontade de colocar as coisas para funcionar mas por conta do recurso natildeo tem como eles colocarem para funcionar (Entrevistado B)

A regiatildeo de Ipanguaccedilu e a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas

Aleacutem do que jaacute observamos ateacute aqui que outros aspectos podemos extrair do contexto apresentado sobre a implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na regiatildeo de Ipanguaccedilu e a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da responsabilidade

Jaacute introduzimos este aspecto na parte anterior deste trabalho mas vale a pena aprofundar um pouco mais a criacutetica ao progresso tecida por Jonas (2006) ao que ele denomina de ideal baconiano e a relaccedilatildeo com o ideal de progresso presente na regiatildeo de Ipanguaccedilu Mais especificamente trata-se de evidenciar a relaccedilatildeo da dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica

Como visto anteriormente a tese principal defendida por Hans Jonas eacute que a teacutecnica moderna se converte em ameaccedila natildeo apenas fiacutesica mas tambeacutem ideoloacutegica na medida em que propaga o ideal de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico a qualquer custo o que segundo ele representa um perigo para toda a humanidade Sobre este perigo ele argumenta

O perigo decorre da dimensatildeo excessiva da civilizaccedilatildeo teacutecnico-industrial baseada nas ciecircncias naturais O que chamamos de programa baconiano ndash ou seja colocar o saber a serviccedilo da dominaccedilatildeo da natureza e utilizaacute-la para melhorar a sorte da humanidade ndash natildeo contou desde as origens na sua execuccedilatildeo capitalista com a racionalidade e a retidatildeo que lhe seriam adequadas poreacutem sua dinacircmica de ecircxito que conduz obrigatoriamente aos excessos de produccedilatildeo e consumo teria subjugado qualquer sociedade considerando-se a breve escala de tempo dos objetivos humanos e a imprevisibilidade real das dimensotildees do ecircxito (uma vez que nenhuma sociedade se compotildee de saacutebios) (JONAS 2006 p 235)

Jonas atenta aos perigos existentes na civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica e utilitaacuteria onde partimos do pressuposto de que a teacutecnica moderna eacute indispensaacutevel para a sociedade e que sobretudo eacute nela que encontraremos o triunfo (o que o filoacutesofo denomina de ecircxito) Nessa perspectiva ele afirma que ldquoa ameaccedila de cataacutestrofe do ideal baconiano de dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica reside portanto na magnitude do seu ecircxito Esse ecircxito tem dois aspectos econocircmico e bioloacutegicordquo (2006 p 235) O ecircxito econocircmico resultaria no esgotamento dos recursos naturais atraveacutes do aumento da produccedilatildeo de bens e diminuiccedilatildeo do dispecircndio do trabalho humano enquanto que o bioloacutegico consistiria em um aumento exponencial da populaccedilatildeo

Dito isso a partir da ambivalecircncia do ecircxito presente no ideal baconiano podemos fazer um contraponto com a implementaccedilatildeo das poliacuteticas voltadas para a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu Natildeo estariam inseridas nesta loacutegica as poliacuteticas puacuteblicas que surgiram para impulsionar a Revoluccedilatildeo Verde Nesse contexto percebemos um forte crescimento de produtividade na agricultura atraveacutes da utilizaccedilatildeo de novas tecnologias oriundas da ideia de modernizar o campo aumentando assim a visibilidade das empresas multinacionais e diminuindo as atividades de subsistecircncia (ldquoecircxito econocircmicordquo) Do mesmo modo constatamos o aumento populacional em certas comunidades como mostrado anteriormente onde antes

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

257

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

havia 50 moradores apoacutes a instalaccedilatildeo das multinacionais a populaccedilatildeo da comunidade aumentou para 500 moradores (ldquoecircxito bioloacutegicordquo) Isso posto e respondendo agrave pergunta anterior podemos afirmar que de certo modo essas poliacuteticas que surgem com vistas agrave modernizaccedilatildeo do campo estatildeo inseridas nesta ambiguidade do ecircxito colocada por Hans Jonas quando pensamos no ideal baconiano de um lado o econocircmico com a maior produtividade e menor dispecircndio do trabalho do outro o bioloacutegico com o aumento populacional

Outra relaccedilatildeo que podemos evidenciar levando em conta este cenaacuterio utilitaacuterio advindo da modernizaccedilatildeo da agricultura eacute a questatildeo da alimentaccedilatildeo Citando a utoacutepica ldquoreconstruccedilatildeo da naturezardquo pensada por Bloch Jonas afirma que

[] por causa do seu ecircxito bioloacutegico e do seu crescimento irresistiacutevel a humanidade se vecirc forccedilada a adicionar produtos quiacutemicos agrave camada produtiva da crosta terrestre [] As tecnologias agraacuterias de maximizaccedilatildeo tecircm impactos cumulativos sobre a natureza que mal comeccedilaram a revelar-se em acircmbito local por exemplo na poluiccedilatildeo quiacutemica dos recursos hiacutedricos e das aacuteguas costeiras (para o que contribuem tambeacutem as induacutestrias) com efeitos nocivos transmitidos pela cadeia alimentar A salinizaccedilatildeo dos solos pela irrigaccedilatildeo constante a erosatildeo provocada pela aragem dos campos [] (JONAS 2006 p 302)

Historicamente eacute sabido que a proposta da eacutetica jonasiana deu cabida a muitos movimentos ecologistas no final do seacuteculo passado inclusive orientando as diretrizes do Partido Verde na Alemanha a partir dos anos noventa Mas tambeacutem eacute fato que Jonas ao duvidar das apostas nas tecnologias modernas com o uso de fertilizantes agrotoacutexicos e o cultivo da monocultura para o crescimento a qualquer custo tambeacutem coloca em crise os ideais surgidos na Revoluccedilatildeo Verde Nesse mesmo sentido quando indagado sobre a questatildeo socioambiental e do progresso na agricultura familiar e no agronegoacutecio o entrevistado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu argumenta

Tanto os agricultores familiares precisam ainda lidar com a questatildeo socioambiental como tambeacutem as empresas que estatildeo no municiacutepio Haacute empresas que trabalhavam com a pulverizaccedilatildeo aeacuterea atraveacutes de aviotildees e envenenaram rios plantaccedilotildees houve mortandade de peixes e com isso foram feitas denuacutencias ao IDEMA ndash que eacute o oacutergatildeo de meio ambiente estadual ao IBAMA Tecircm empresas que foram multadas em vaacuterios milhotildees de reais e estatildeo procurando se adequar ao meio ambiente para prejudicar menos Tambeacutem podemos abordar a questatildeo do progresso cientiacutefico (Entrevistado A)

A visatildeo de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico aliada ao desenvolvimento presente na modernidade acaba mascarando os efeitos desastrosos da tecnificaccedilatildeo em escala planetaacuteria O discurso de um crescente bem-estar (tanto social quanto econocircmico) faz-nos acreditar que soacute existe uma uacutenica via a ser seguida que eacute a do desenvolvimento Poreacutem essa falsa sensaccedilatildeo eclipsa o pensar que questiona a teacutecnica e a sua relaccedilatildeo com a sociedade na atualidade

Ainda dentro da ameaccedila do ideal baconiano exposto por Jonas outro aspecto relevante e que merece destaque aqui eacute a questatildeo da dominaccedilatildeo da natureza a partir da teacutecnica moderna Jonas (2006 p 236) considera que na ldquodialeacutetica do poder sobre a natureza e a compulsatildeo de exercecirc-lardquo o poder tornou-se crucial nesta relaccedilatildeo Assim ele afirma

A foacutermula baconiana afirma que saber eacute poder Mas eacute o proacuteprio programa baconiano que no aacutepice do triunfo revela-se insuficiente com a sua contradiccedilatildeo intriacutenseca ou seja o descontrole sobre si mesmo mostrando-se incapaz de proteger o homem de si mesmo e a natureza do homem (2006 p 236)

A partir desta dialeacutetica estabelecida entre poder teacutecnica moderna e sua relaccedilatildeo com o homem e a proacutepria natureza Jonas afirma que tanto o homem quanto a natureza precisam de proteccedilatildeo quando se pensa na magnitude do poder que o progresso cientiacutefico alcanccedilou Pensamento semelhante jaacute havia sido

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

258

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

propagado tambeacutem por Marcuse (1982) quando nos anos sessenta do seacuteculo passado afirmava a unidimensionalidade da condiccedilatildeo humana advinda da teacutecnica moderna Esse poder eacute caracterizado pela necessidade do uso crescente da teacutecnica conduzindo o homem a uma incapacidade de frear o contiacutenuo progresso muito embora ele (o homem) insista em acreditar que a natureza eacute apenas um objeto de exploraccedilatildeo e estaacute disponiacutevel para atender meramente agrave sua vontade

Aleacutem desta problemaacutetica do progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico colocado por Jonas podemos tambeacutem fazer uma relaccedilatildeo entre as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade e o municiacutepio de Ipanguaccedilu Tal como jaacute salientamos anteriormente o primeiro aspecto a destacar desde a eacutetica jonasiana eacute o dever do homem perante a biosfera como dever responsaacutevel garantindo tanto a preservaccedilatildeo do presente quanto do futuro da humanidade e da natureza Portanto neste aspecto haveriacuteamos de indagar ateacute que ponto a agricultura familiar na regiatildeo de Ipanguaccedilu torna vaacutelido esse dever e se o mesmo procede com o agronegoacutecio Como dito anteriormente o agronegoacutecio visa agrave monocultura e agrave modernizaccedilatildeo da agricultura ou seja as atividades agriacutecolas satildeo baseadas no controle teacutecnico da terra gerando uma maior produccedilatildeo que garante a exportaccedilatildeo e o investimento no mercado interno visando ao lucro Do outro lado estaacute a agricultura familiar tendo como principal caracteriacutestica o cultivo de subsistecircncia Podemos observar que no primeiro exemplo a natureza eacute vista como um objeto de lucro enquanto que no segundo ela eacute vista como um ldquoobjetordquo de responsabilidade E eacute no contexto do segundo exemplo que se insere o sentido do ldquodever serrdquo tal como observa Jonas Poreacutem o que ocorre eacute que na atualidade as atividades desenvolvidas pelas multinacionais do agronegoacutecio em Ipanguaccedilu eacute que vecircm merecendo lugar de destaque no cenaacuterio das poliacuteticas puacuteblicas locais

Consideraccedilotildees Finais

Do exposto ateacute aqui fica expliacutecito que eacute necessaacuterio um olhar criacutetico sobre a problemaacutetica existente do paradigma cientiacutefico e tecnoloacutegico presente na modernidade que impele tudo ao progresso e ao desenvolvimento Do mesmo modo tambeacutem eacute preciso refletir sobre como tratamos a realidade e o contexto cultural local visto que natildeo podem ser marginalizados em prol do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico e econocircmico global Observando o sentido do desenvolvimento neste contexto Lisboa argumenta

O desenvolvimento comporta em si mesmo o subdesenvolvimento O padratildeo mimeacutetico do desenvolvimento fundado no estilo ocidental de vida com altos niacuteveis de consumo e desperdiacutecio tem cegado os povos do terceiro mundo os impedindo de se encontrar com sua identidade Ora um povo privado de sua identidade natildeo eacute capaz de se autodeterminar (LISBOA 1996 p 7)

Apesar de a instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo de Ipanguaccedilu ter reduzido a diversidade da regiatildeo atraveacutes do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico o pouco que haacute da praacutetica da agricultura familiar ainda insiste em preservar a relaccedilatildeo essencial com a terra e com tradiccedilotildees culturais Nela se vecirc refletido o princiacutepio eacutetico da responsabilidade de Hans Jonas onde haacute a preocupaccedilatildeo do cuidado com o lugar onde vivem para que as futuras geraccedilotildees possam viver de forma sustentaacutevel Na agricultura familiar tambeacutem se torna visiacutevel a temeridade e a relaccedilatildeo do ser teacutecnico com a prudecircncia onde os valores estatildeo na biosfera e natildeo na utilidade do fazer antropocecircntrico e egoiacutesta da condiccedilatildeo humana de estar no mundo

Insistir na permanecircncia desta praacutetica eacute insistir na participaccedilatildeo direta ativa e democraacutetica dos agricultores na formulaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e nos projetos voltados para a agricultura Pois se no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia tambeacutem estaacute inserida a dimensatildeo social entatildeo a implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia deve ser decidida pelos atores sociais nela implicados (MIRANDA 2012 p 181-182) Dessa forma eacute no espaccedilo puacuteblico de debate com a populaccedilatildeo diretamente afetada pelas implementaccedilotildees tecnocientiacuteficas que construiacutemos esta praacutetica democraacutetica e participativa frente agrave ciecircncia e agrave tecnologia eliminando assim a violecircncia contra a cultura local tal como situa Shiva

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

259

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

O primeiro plano da violecircncia desencadeada contra os sistemas locais de saber eacute natildeo consideraacute-los um saber A invisibilidade eacute a primeira razatildeo pela qual os sistemas locais entram em colapso antes de serem testados e comprovados pelo confronto com o saber dominante do Ocidente A proacutepria distacircncia elimina os sistemas locais da percepccedilatildeo Quando o saber local aparece de fato no campo da visatildeo globalizadora fazem com que desapareccedila negando-lhe o status de um saber sistemaacutetico e atribuindo-lhe os adjetivos de primitivo e anticientiacutefico (SHIVA 2003 p 22-23)

Portanto tal como ensina Shiva para que haja inclusatildeo e um processo democraacutetico na participaccedilatildeo puacuteblica voltada para a ciecircncia e para a tecnologia eacute preciso que a visatildeo globalizante da tecnificaccedilatildeo e da cientifizaccedilatildeo natildeo anule o conhecimento local com a justificativa de que eles natildeo satildeo cientiacuteficos O saber local e as praacuteticas culturais dos agricultores devem ser levados em consideraccedilatildeo nesses processos de implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de garantir o empoderamento dos atores sociais neles implicados

Ora que liccedilotildees podemos extrair destas constataccedilotildees se vincularmos ao agir eacutetico Agrave luz das teses apresentadas por Hans Jonas apontamos alguns caminhos (i) Que eacute necessaacuterio pensar numa eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica e instrumental abrangendo uma nova dimensatildeo a responsabilidade (ii) Que tal modelo de eacutetica seja capaz de resgatar o conceito de temeridade e a relaccedilatildeo da teacutecnica natildeo somente com a eficiecircncia mas tambeacutem com a prudecircncia (iii) Que eacute fundamental retomar o sentido originaacuterio da eacutetica como cuidado o cuidar do lugar onde se vive (BOFF 1999 MIRANDA 2012)

Em outros termos o questionamento diante da teacutecnica e da ciecircncia levando em consideraccedilatildeo o acircmbito da eacutetica e das poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode estar inserido meramente na dimensatildeo instrumental e antropoloacutegica Trata-se antes de tudo de uma fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da natureza e da condiccedilatildeo humana levando em conta o princiacutepio responsabilidade definido pela eacutetica jonasiana

A justificativa de uma tal eacutetica que natildeo mais se restringe ao terreno imediatamente intersubjetivo da contemporaneidade deve estender-se ateacute a metafiacutesica pois soacute ela permite que se pergunte por que afinal homens devem estar no mundo portanto por que o imperativo incondicional destina-se a assegurar-lhes a existecircncia no futuro A aventura da tecnologia impotildee com seus riscos extremos o risco da reflexatildeo extrema (JONAS 2006 p 22)

Desta forma e diante da insuficiecircncia constatada por Jonas da eacutetica tradicional em propor saiacutedas frente aos novos dilemas eacuteticos pautados pela sociedade tecnocientiacutefica eacute proposta deste estudo pensar um novo agir humano baseado na responsabilidade inclusive no acircmbito da implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de pensar saiacutedas que sejam capazes de ultrapassar as barreiras do discurso desenvolvimentista e por conseguinte determinista da tecnologia e da neutralidade cientiacutefica que ainda persistem e insistem em orientar as praacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na sociedade atual Afinal como diz Miranda com base nos estudos de Jasanoff (1995)

a ciecircncia deveria ter uma funccedilatildeo poliacutetica na medida em que tambeacutem avalia e revisa o estado do conhecimento cientiacutefico e sua aplicabilidade praacutetica Assim diante de programas de controle ambiental por exemplo mais que simplesmente aplicar certo tipo de conhecimento cientiacutefico aparentemente desinteressado neutro o papel da ciecircncia deveria ser tambeacutem eacutetico-poliacutetico no sentido de avaliar suas implicaccedilotildees sociais poliacuteticas culturais etc (MIRANDA 2012 p 181)

Em suma a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no municiacutepio de Ipanguaccedilu ensina-nos que no cenaacuterio da instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo impulsionadas por poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas supostamente de cunho desenvolvimentista e que correspondem ao ideal progressista cujo agir eacute meramente utilitaacuterio e de exploraccedilatildeo da natureza visando cada vez mais ao lucro a eacutetica da responsabilidade pode ser a criacutetica e o

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

260

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

norte de uma nova forma de agir Desde sua criacutetica tambeacutem eacute possiacutevel formular poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas que levem em conta os atores sociais nelas implicados tornando o processo democraacutetico e natildeo somente tecnocraacutetico Por outro lado e considerando o cenaacuterio da agricultura familiar e dos agricultores que ali vivem e lidam com a terra a eacutetica da responsabilidade surge como forma de corroborar com suas praacuteticas como a accedilatildeo eacutetica que visa ao cuidado com o lugar onde vivem pois eles (os agricultores) natildeo satildeo apenas ldquodonosrdquo da terra mas ocupam e essencializam a terra atraveacutes da relaccedilatildeo de cuidado e de prudecircncia no ato de cultivar a terra

Eacute a partir desta constataccedilatildeo que apresentamos a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas como uma eacutetica possiacutevel de ser aplicada nesse contexto de aparente dualidade entre a agricultura familiar e o agronegoacutecio Levando em conta as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade como o conceito da responsabilidade e do ideal utoacutepico do progresso cientiacutefico tecnoloacutegico a relaccedilatildeo com o meio ambiente e com a terra concluiacutemos que urge pensar sua aplicaccedilatildeo tambeacutem no campo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas A sua utilizaccedilatildeo no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia torna-se necessaacuteria no atual contexto da modernizaccedilatildeo em que estatildeo submetidos grupos sociais comunidades e povos inteiros E ainda que guardados seus devidos limites (MIRANDA 2012 p 143) a responsabilidade eacute um princiacutepio eacutetico que pode contribuir para nortear as accedilotildees tecnocientiacuteficas rumo agrave uma sociedade mais sustentaacutevel e equilibrada

Referecircncias

AGEcircNCIA Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba (AESA) Comitecircs Piranhas-Accedilu apresentaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwaesapbgovbrcomitespiranhasacu Acesso em 23 ago 2015

ALBANO Gleydson SAacute Alcindo Poliacuteticas puacuteblicas e globalizaccedilatildeo da agricultura no Vale do Accedilu-RN Revista de Geografia Recife UFPE ndash DCGNAPA v 25 n 2 maiago 2008

APEL Karl-Otto Estudos de moral moderna Petroacutepolis Vozes 2000

BECK Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Traduccedilatildeo original do alematildeo de Sebastiatildeo Nascimento Satildeo Paulo Editora 34 2010

BOFF Leonardo Saber cuidar eacutetica do humano Petroacutepolis Vozes 1999

HEIDEGGER Martin A questatildeo da teacutecnica Ensaios e conferecircncias I Traduzido por Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan Fode Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes Braganccedila Paulista Ed Universitaacuteria Satildeo Francisco 2012

HERRERA Amiacutelcar O Los determinantes sociales de la poliacutetica cientiacutefica en Ameacuterica Latina Poliacutetica cientiacutefica expliacutecita y poliacutetica cientiacutefica impliacutecita Argentina Redes v 2 1995

INSTITUTO Brasileiro de Geografia E Estatiacutestica (IBGE) Censo Demograacutefico 2000 sinopse ndash Rio Grande do Norte ndash Ipanguaccedilu Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtras temasphplang=ampcodmun=240470ampidtema=1ampsearch=rio-grande-do-norte|ipanguacu|censo-demografico-2010-sinopse- Acesso em 14 ago 2015

JASANOFF S Procedural choices in regulatory science Technology in Society 17 1995 httpsdoiorg1010160160-791x(95)00011-f

JONAS Hans O princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Rio de Janeiro Contraponto 2006

JONAS Hans Teacutecnica medicina y eacutetica Sobre la praacutectica del principio de la responsabilidad Barcelona Paidoacutes 1997

LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001

LISBOA Armando de Melo Desenvolvimento uma ideia subdesenvolvida Cadernos do CEAS Salvador n 161 1996

MARCUSE Herbert A ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional Rio de Janeiro Jorge Zahar 1982

MIRANDA A L iquestUna eacutetica para la civilizacioacuten tecnoloacutegica Posibilidades y liacutemites del principio de la responsabilidad de Hans Jonas AlemanhaEspanha Lap LambertEAE 2012

MORIN E Ciecircncia com consciecircncia Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005

SERRES Michel Le contrat natural Paris Flammarion 1992

SHIVA Vandana AZEVEDO Dinah de Abreu Monoculturas da mente perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia Satildeo Paulo Gaia 2003

SIQUEIRA JE Hans Jonas e a eacutetica da responsabilidade Mundo Sauacutede 1999

WEBCARTA Mapa do Rio Grande do Norte Disponiacutevel em webcartanetcartamapaphpid=244amplg=pt Acesso em 26 ago 2015

WOLIN Richard Heideggerrsquos children Hannah Arendt Karl Loumlwith Hans Jonas y Herbert Marcuse Princepton Princepton University Press 2001

ZANCANARO L O conceito de responsabilidade em Hans Jonas CampinasSP Ed UNICAMP 1998

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Page 10: O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail: angelamiranda@ect@ufrn.br. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

253

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

outro pedaccedilo de terra para voltar agrave sua origem porque eles estatildeo vendo que com a matildeo-de-obra assalariada eles nunca iratildeo ter uma autonomia econocircmica eles ganham apenas para o sustento familiar (Entrevistado A)

Neste sentido Albano (2008 p 65) acrescenta que ldquoA agricultura de subsistecircncia tambeacutem diminuiu muito com a Barragem e depois dela com as compras de terras pelas grandes empresas rurais interessadas em produzir monoculturas para exportaccedilatildeo ou para o mercado internordquo Como exemplo para ilustrar essa (re)configuraccedilatildeo do espaccedilo e da relaccedilatildeo com a terra podemos citar a multinacional Del Monte Fresh Produce Albano assim explicita o contexto da instalaccedilatildeo da empresa na Regiatildeo de Ipanguaccedilu

O ano de 1993 foi o ano do estabelecimento da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio (OMC) e o ano em que foram concluiacutedas as negociaccedilotildees da Rodada Uruguai que incluiacutea a Agricultura nas suas negociaccedilotildees e que previa uma grande liberalizaccedilatildeo do comeacutercio agriacutecola a partir daquele ano nos paiacuteses associados da OMC inclusive o Brasil Aleacutem disso eacute nesse ano que se tem o iniacutecio da compra de terras em Ipanguaccedilu por uma empresa associada agrave Multinacional Del Monte Fresh Produce Posteriormente ela se insere no municiacutepio de Accedilu e Carnaubais ambos no Vale do Accedilu (ALBANO 2008 p 68)

Contudo quais as implicaccedilotildees da instalaccedilatildeo da multinacional para a comunidade e a agricultura da regiatildeo A Tabela 1 a seguir mostra a relaccedilatildeo e a diferenccedila entre a multinacional e as empresas locais quanto aos elementos da cadeia produtiva e jaacute antecipa os indicativos de resposta vejamos

Tabela 1 - A relaccedilatildeo entre fatores de produccedilatildeo e aquisiccedilatildeo dos insumos das empresas com os lugares de compra

Fonte Elaborado por Albano (2008 p 69) baseado em Carvalho (2001)

Analisando a tabela podemos perceber que a multinacional Del Monte Fresh Produce natildeo possui interaccedilatildeo e integraccedilatildeo com a regiatildeo de Ipanguaccedilu Praticamente quase todos os fatores de produccedilatildeo de insumos e de serviccedilos satildeo exteriores ao municiacutepio A Pesquisa e Desenvolvimento (PampD) na aacuterea da fruticultura irrigada por exemplo eacute concentrada em Israel e na Ameacuterica central enquanto que nas empresas locais ela eacute fruto da proacutepria regiatildeo Eacute interessante perceber que a multinacional faz uso de apenas duas modalidades que diz respeito ao local tal como elencadas na tabela a terra e parte da assistecircncia teacutecnica

Eacute aqui que surge outra indagaccedilatildeo natildeo menos intrigante a percepccedilatildeo e a relaccedilatildeo com a terra do agricultor local satildeo as mesmas que a dos empresaacuterios das multinacionais Seraacute que a responsabilidade e o cuidado (resgatando os conceitos de Jonas) estatildeo implicados do mesmo modo em ambas situaccedilotildees Mais adiante voltaremos a estes pontos

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

254

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

As poliacuteticas puacuteblicas de modernizaccedilatildeo da fruticultura irrigada e a relaccedilatildeo essencial com a terra

Levando em consideraccedilatildeo as poliacuteticas puacuteblicas voltadas para a agricultura na regiatildeo percebe-se que apoacutes a construccedilatildeo da Barragem de Accedilu essas poliacuteticas satildeo voltadas para impulsionar a ldquoRevoluccedilatildeo Verderdquo dando iniacutecio a um forte processo de modernizaccedilatildeo da agricultura Albano a define do seguinte modo

[] consiste num grande crescimento de produtividade e de quantidade na agricultura por meio do uso de tecnologias como os tratores agriacutecolas teacutecnicas de irrigaccedilatildeo defensivos quiacutemicos variedades de sementes aviaccedilatildeo agriacutecola computadores novos meacutetodos de gestatildeo etc De um lado da produccedilatildeo vai se ter a Induacutestria Produtora de Insumos com fertilizantes defensivos e corretivos e do outro vai se ter a Induacutestria de Bens de Capital com tratores colheitadeiras e equipamentos de irrigaccedilatildeo (ALBANO 2008 p 62)

Ainda sobre a Revoluccedilatildeo Verde Shiva afirma

Os sistemas agriacutecolas tradicionais baseiam-se em sistemas de rotaccedilatildeo de culturas e cereais legumes sementes oleaginosas com diversas variedades em cada safra enquanto o pacote da Revoluccedilatildeo Verde baseia-se em monoculturas geneticamente uniformes (SHIVA 2003 p 57)

Em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas no acircmbito da agricultura irrigada em Ipanguaccedilu haacute vaacuterios esforccedilos por parte do governo para impulsionar a modernizaccedilatildeo do campo Em vista disso citando os estudos de Souza (1997) Albano (2008) elenca que no comeccedilo da deacutecada de 1970 o Governo Autoritaacuterio efetivou o I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) Este plano teve como programas mais importantes o Programa de Redistribuiccedilatildeo de Terras (PROTERRA) e de estiacutemulo agrave agroinduacutestria do Norte e Nordeste cujo principal objetivo era ampliar a agroinduacutestria e o Programa de Integraccedilatildeo Nacional (PIN) atraveacutes de um plano de irrigaccedilatildeo no Nordeste

Diante desses esforccedilos para modernizar (tecnificar) a agricultura vale a pena refletirmos sobre o ideal do progresso tecnoloacutegico aliado ao conceito de desenvolvimento econocircmico tatildeo presente na modernidade Essa concepccedilatildeo progressista desconsidera as intencionalidades existentes no artefato tecnoloacutegico e nos indiviacuteduos no que tange agrave sua construccedilatildeo histoacuterica cultural e de valores A instrumentalizaccedilatildeo da ciecircncia e da tecnologia reduz os aparatos e a proacutepria cultura ao meramente teacutecnico e cientiacutefico tendo em vista que o progresso tecnocientiacutefico na maioria das vezes aparece desvinculado da realidade da sociedade local

Herrera (1995 p 117) mostra que isso se torna evidente a partir da Segunda Guerra Mundial com o esforccedilo internacional de implementar e melhorar as Poliacuteticas de Ciecircncia e Tecnologia (CampT) nos paiacuteses considerados ldquosubdesenvolvidosrdquo Poreacutem o que se percebe entre outros fatores eacute a desconexatildeo dos investimentos com a realidade dos paiacuteses da Ameacuterica Latina Tanto as concepccedilotildees de ciecircncia e de tecnologia quanto a ideia de progresso tecnocientiacutefico desvinculados do contexto regional acabam refletindo na construccedilatildeo dos indicadores e das poliacuteticas puacuteblicas em CampT e consequentemente na participaccedilatildeo puacuteblica e na avaliaccedilatildeo deles

Mostrando a desvinculaccedilatildeo das poliacuteticas desenvolvimentistas com o contexto regional Lisboa corrobora com as teses de Robert Kurz quando afirma

As poliacuteticas desenvolvimentistas arrancaram em poucas deacutecadas populaccedilotildees inteiras da sua economia de subsistecircncia tradicional mas natildeo as integraram plenamente (ou seja natildeo as transformaram em cidadatildes) Kurz ao desnudar o colapso da modernizaccedilatildeo do terceiro mundo afirma que ldquoa maior parte da sociedade foi apenas modernizada em sentido negativo isto eacute foram destruiacutedas as estruturas tradicionais sem que alguma coisa nova ocupasse o seu lugarrdquo (LISBOA 1996 p 4-5)

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

255

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Assim as poliacuteticas desenvolvimentistas acabam eliminando a cultura e a praacutetica tradicional dos agricultores locais Relacionando esse contexto com a eacutetica da responsabilidade de Jonas que eacute o propoacutesito deste trabalho podemos testemunhar a sua total exclusatildeo pois a terra passa a ser vista como mero produto mera utilidade que visa ao lucro da exportaccedilatildeo Ou seja haacute um profundo abandono da responsabilidade enquanto cuidado e prudecircncia em relaccedilatildeo agrave terra ao meio ambiente e agraves comunidades que vivem do cultivo da terra

Retomando o olhar sobre a Tabela 1 percebemos que eacute iacutenfima a interaccedilatildeo entre as relaccedilotildees locais que envolvem as praacuteticas da agricultura com a empresa multinacional Neste tipo de praacutetica descarta-se o conhecimento local Desse modo o pensamento transforma-se em monoculturado (SHIVA 2003 p 21) e a cultura torna-se cientificada e tecnificada tendo como justificativa e produto final o progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico Aleacutem disso o proacuteprio debate e a avaliaccedilatildeo puacuteblica que deveria existir para garantir a participaccedilatildeo dos cidadatildeos e a gestatildeo mais democraacutetica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia excluem aqueles que efetivamente satildeo os atores sociais envolvidos neste processo No caso em questatildeo trata-se dos agricultores de Ipanguaccedilu

Aqui recobra sentido a ideia do imperativo tecnoloacutegico abordado por Jonas que elimina a liberdade e a consciecircncia do sujeito em prol de um determinismo tecnoloacutegico Assim o saber local deixa de ter importacircncia e em seu lugar ganha destaque o saber cientiacutefico deixando em evidecircncia as relaccedilotildees estabelecidas entre as multinacionais e o mercado exterior Notadamente na Tabela 1 o saber cientiacutefico e tecnoloacutegico (inclusive importados e produzidos fora do contexto local) satildeo os mais destacados e utilizados em detrimento ao saber local

Percebe-se ouvindo os agricultores da regiatildeo que apesar da instalaccedilatildeo das multinacionais em Ipanguaccedilu ter aumentado a quantidade de empregos a praacutetica do agronegoacutecio extinguiu a diversidade de plantio agriacutecola da regiatildeo Onde antes havia a diversidade cultivada atraveacutes da agricultura de subsistecircncia o cenaacuterio agora eacute o da monocultura com a fruticultura irrigada Um dos agricultores e morador local disse ldquoA agricultura aqui antes era em primeiro lugar Tinha tudo saiacutea muita carrada de pimentatildeo saiacutea muito tomate tinha bastante milho feijatildeo Hoje da agricultura o que tem bastante eacute soacute bananardquo (Entrevistado B)

Aleacutem disso os agricultores natildeo participam ativamente nas decisotildees das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e dos projetos voltados para a agricultura por parte da EMATER (Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural) cuja principal missatildeo eacute contribuir para a promoccedilatildeo do agronegoacutecio focando na agricultura familiar atraveacutes do serviccedilo de extensatildeo rural em prol do desenvolvimento sustentaacutevel tal como podemos observar na Tabela 2 a seguir

Tabela 2 - Projetos de agricultura irrigada implementados a partir de 1987 ateacute 1990 no Vale do Accedilu para pequenos irrigantes ndash EMATER

Fonte Pinheiro (1995 citado por Albano 2008 p 67)

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

256

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Pelos dados apresentados na tabela observa-se o baixo nuacutemero de projetos voltados para o pequeno agricultor na regiatildeo de Ipanguaccedilu Ainda falta uma poliacutetica puacuteblica que realmente integre o agricultor familiar no cenaacuterio da agricultura modernizada e que leve em conta a participaccedilatildeo popular de forma democraacutetica na sua formulaccedilatildeo Quando questionado sobre o papel da EMATER o mesmo agricultor afirma

A EMATER vem se arrastando a passos de tartaruga Eacute muito devagar Natildeo sei se eacute falta de incentivo dos governantes (que eu acredito que seja) porque tem os teacutecnicos que possuem vontade de colocar as coisas para funcionar mas por conta do recurso natildeo tem como eles colocarem para funcionar (Entrevistado B)

A regiatildeo de Ipanguaccedilu e a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas

Aleacutem do que jaacute observamos ateacute aqui que outros aspectos podemos extrair do contexto apresentado sobre a implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na regiatildeo de Ipanguaccedilu e a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da responsabilidade

Jaacute introduzimos este aspecto na parte anterior deste trabalho mas vale a pena aprofundar um pouco mais a criacutetica ao progresso tecida por Jonas (2006) ao que ele denomina de ideal baconiano e a relaccedilatildeo com o ideal de progresso presente na regiatildeo de Ipanguaccedilu Mais especificamente trata-se de evidenciar a relaccedilatildeo da dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica

Como visto anteriormente a tese principal defendida por Hans Jonas eacute que a teacutecnica moderna se converte em ameaccedila natildeo apenas fiacutesica mas tambeacutem ideoloacutegica na medida em que propaga o ideal de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico a qualquer custo o que segundo ele representa um perigo para toda a humanidade Sobre este perigo ele argumenta

O perigo decorre da dimensatildeo excessiva da civilizaccedilatildeo teacutecnico-industrial baseada nas ciecircncias naturais O que chamamos de programa baconiano ndash ou seja colocar o saber a serviccedilo da dominaccedilatildeo da natureza e utilizaacute-la para melhorar a sorte da humanidade ndash natildeo contou desde as origens na sua execuccedilatildeo capitalista com a racionalidade e a retidatildeo que lhe seriam adequadas poreacutem sua dinacircmica de ecircxito que conduz obrigatoriamente aos excessos de produccedilatildeo e consumo teria subjugado qualquer sociedade considerando-se a breve escala de tempo dos objetivos humanos e a imprevisibilidade real das dimensotildees do ecircxito (uma vez que nenhuma sociedade se compotildee de saacutebios) (JONAS 2006 p 235)

Jonas atenta aos perigos existentes na civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica e utilitaacuteria onde partimos do pressuposto de que a teacutecnica moderna eacute indispensaacutevel para a sociedade e que sobretudo eacute nela que encontraremos o triunfo (o que o filoacutesofo denomina de ecircxito) Nessa perspectiva ele afirma que ldquoa ameaccedila de cataacutestrofe do ideal baconiano de dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica reside portanto na magnitude do seu ecircxito Esse ecircxito tem dois aspectos econocircmico e bioloacutegicordquo (2006 p 235) O ecircxito econocircmico resultaria no esgotamento dos recursos naturais atraveacutes do aumento da produccedilatildeo de bens e diminuiccedilatildeo do dispecircndio do trabalho humano enquanto que o bioloacutegico consistiria em um aumento exponencial da populaccedilatildeo

Dito isso a partir da ambivalecircncia do ecircxito presente no ideal baconiano podemos fazer um contraponto com a implementaccedilatildeo das poliacuteticas voltadas para a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu Natildeo estariam inseridas nesta loacutegica as poliacuteticas puacuteblicas que surgiram para impulsionar a Revoluccedilatildeo Verde Nesse contexto percebemos um forte crescimento de produtividade na agricultura atraveacutes da utilizaccedilatildeo de novas tecnologias oriundas da ideia de modernizar o campo aumentando assim a visibilidade das empresas multinacionais e diminuindo as atividades de subsistecircncia (ldquoecircxito econocircmicordquo) Do mesmo modo constatamos o aumento populacional em certas comunidades como mostrado anteriormente onde antes

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

257

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

havia 50 moradores apoacutes a instalaccedilatildeo das multinacionais a populaccedilatildeo da comunidade aumentou para 500 moradores (ldquoecircxito bioloacutegicordquo) Isso posto e respondendo agrave pergunta anterior podemos afirmar que de certo modo essas poliacuteticas que surgem com vistas agrave modernizaccedilatildeo do campo estatildeo inseridas nesta ambiguidade do ecircxito colocada por Hans Jonas quando pensamos no ideal baconiano de um lado o econocircmico com a maior produtividade e menor dispecircndio do trabalho do outro o bioloacutegico com o aumento populacional

Outra relaccedilatildeo que podemos evidenciar levando em conta este cenaacuterio utilitaacuterio advindo da modernizaccedilatildeo da agricultura eacute a questatildeo da alimentaccedilatildeo Citando a utoacutepica ldquoreconstruccedilatildeo da naturezardquo pensada por Bloch Jonas afirma que

[] por causa do seu ecircxito bioloacutegico e do seu crescimento irresistiacutevel a humanidade se vecirc forccedilada a adicionar produtos quiacutemicos agrave camada produtiva da crosta terrestre [] As tecnologias agraacuterias de maximizaccedilatildeo tecircm impactos cumulativos sobre a natureza que mal comeccedilaram a revelar-se em acircmbito local por exemplo na poluiccedilatildeo quiacutemica dos recursos hiacutedricos e das aacuteguas costeiras (para o que contribuem tambeacutem as induacutestrias) com efeitos nocivos transmitidos pela cadeia alimentar A salinizaccedilatildeo dos solos pela irrigaccedilatildeo constante a erosatildeo provocada pela aragem dos campos [] (JONAS 2006 p 302)

Historicamente eacute sabido que a proposta da eacutetica jonasiana deu cabida a muitos movimentos ecologistas no final do seacuteculo passado inclusive orientando as diretrizes do Partido Verde na Alemanha a partir dos anos noventa Mas tambeacutem eacute fato que Jonas ao duvidar das apostas nas tecnologias modernas com o uso de fertilizantes agrotoacutexicos e o cultivo da monocultura para o crescimento a qualquer custo tambeacutem coloca em crise os ideais surgidos na Revoluccedilatildeo Verde Nesse mesmo sentido quando indagado sobre a questatildeo socioambiental e do progresso na agricultura familiar e no agronegoacutecio o entrevistado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu argumenta

Tanto os agricultores familiares precisam ainda lidar com a questatildeo socioambiental como tambeacutem as empresas que estatildeo no municiacutepio Haacute empresas que trabalhavam com a pulverizaccedilatildeo aeacuterea atraveacutes de aviotildees e envenenaram rios plantaccedilotildees houve mortandade de peixes e com isso foram feitas denuacutencias ao IDEMA ndash que eacute o oacutergatildeo de meio ambiente estadual ao IBAMA Tecircm empresas que foram multadas em vaacuterios milhotildees de reais e estatildeo procurando se adequar ao meio ambiente para prejudicar menos Tambeacutem podemos abordar a questatildeo do progresso cientiacutefico (Entrevistado A)

A visatildeo de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico aliada ao desenvolvimento presente na modernidade acaba mascarando os efeitos desastrosos da tecnificaccedilatildeo em escala planetaacuteria O discurso de um crescente bem-estar (tanto social quanto econocircmico) faz-nos acreditar que soacute existe uma uacutenica via a ser seguida que eacute a do desenvolvimento Poreacutem essa falsa sensaccedilatildeo eclipsa o pensar que questiona a teacutecnica e a sua relaccedilatildeo com a sociedade na atualidade

Ainda dentro da ameaccedila do ideal baconiano exposto por Jonas outro aspecto relevante e que merece destaque aqui eacute a questatildeo da dominaccedilatildeo da natureza a partir da teacutecnica moderna Jonas (2006 p 236) considera que na ldquodialeacutetica do poder sobre a natureza e a compulsatildeo de exercecirc-lardquo o poder tornou-se crucial nesta relaccedilatildeo Assim ele afirma

A foacutermula baconiana afirma que saber eacute poder Mas eacute o proacuteprio programa baconiano que no aacutepice do triunfo revela-se insuficiente com a sua contradiccedilatildeo intriacutenseca ou seja o descontrole sobre si mesmo mostrando-se incapaz de proteger o homem de si mesmo e a natureza do homem (2006 p 236)

A partir desta dialeacutetica estabelecida entre poder teacutecnica moderna e sua relaccedilatildeo com o homem e a proacutepria natureza Jonas afirma que tanto o homem quanto a natureza precisam de proteccedilatildeo quando se pensa na magnitude do poder que o progresso cientiacutefico alcanccedilou Pensamento semelhante jaacute havia sido

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

258

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

propagado tambeacutem por Marcuse (1982) quando nos anos sessenta do seacuteculo passado afirmava a unidimensionalidade da condiccedilatildeo humana advinda da teacutecnica moderna Esse poder eacute caracterizado pela necessidade do uso crescente da teacutecnica conduzindo o homem a uma incapacidade de frear o contiacutenuo progresso muito embora ele (o homem) insista em acreditar que a natureza eacute apenas um objeto de exploraccedilatildeo e estaacute disponiacutevel para atender meramente agrave sua vontade

Aleacutem desta problemaacutetica do progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico colocado por Jonas podemos tambeacutem fazer uma relaccedilatildeo entre as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade e o municiacutepio de Ipanguaccedilu Tal como jaacute salientamos anteriormente o primeiro aspecto a destacar desde a eacutetica jonasiana eacute o dever do homem perante a biosfera como dever responsaacutevel garantindo tanto a preservaccedilatildeo do presente quanto do futuro da humanidade e da natureza Portanto neste aspecto haveriacuteamos de indagar ateacute que ponto a agricultura familiar na regiatildeo de Ipanguaccedilu torna vaacutelido esse dever e se o mesmo procede com o agronegoacutecio Como dito anteriormente o agronegoacutecio visa agrave monocultura e agrave modernizaccedilatildeo da agricultura ou seja as atividades agriacutecolas satildeo baseadas no controle teacutecnico da terra gerando uma maior produccedilatildeo que garante a exportaccedilatildeo e o investimento no mercado interno visando ao lucro Do outro lado estaacute a agricultura familiar tendo como principal caracteriacutestica o cultivo de subsistecircncia Podemos observar que no primeiro exemplo a natureza eacute vista como um objeto de lucro enquanto que no segundo ela eacute vista como um ldquoobjetordquo de responsabilidade E eacute no contexto do segundo exemplo que se insere o sentido do ldquodever serrdquo tal como observa Jonas Poreacutem o que ocorre eacute que na atualidade as atividades desenvolvidas pelas multinacionais do agronegoacutecio em Ipanguaccedilu eacute que vecircm merecendo lugar de destaque no cenaacuterio das poliacuteticas puacuteblicas locais

Consideraccedilotildees Finais

Do exposto ateacute aqui fica expliacutecito que eacute necessaacuterio um olhar criacutetico sobre a problemaacutetica existente do paradigma cientiacutefico e tecnoloacutegico presente na modernidade que impele tudo ao progresso e ao desenvolvimento Do mesmo modo tambeacutem eacute preciso refletir sobre como tratamos a realidade e o contexto cultural local visto que natildeo podem ser marginalizados em prol do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico e econocircmico global Observando o sentido do desenvolvimento neste contexto Lisboa argumenta

O desenvolvimento comporta em si mesmo o subdesenvolvimento O padratildeo mimeacutetico do desenvolvimento fundado no estilo ocidental de vida com altos niacuteveis de consumo e desperdiacutecio tem cegado os povos do terceiro mundo os impedindo de se encontrar com sua identidade Ora um povo privado de sua identidade natildeo eacute capaz de se autodeterminar (LISBOA 1996 p 7)

Apesar de a instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo de Ipanguaccedilu ter reduzido a diversidade da regiatildeo atraveacutes do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico o pouco que haacute da praacutetica da agricultura familiar ainda insiste em preservar a relaccedilatildeo essencial com a terra e com tradiccedilotildees culturais Nela se vecirc refletido o princiacutepio eacutetico da responsabilidade de Hans Jonas onde haacute a preocupaccedilatildeo do cuidado com o lugar onde vivem para que as futuras geraccedilotildees possam viver de forma sustentaacutevel Na agricultura familiar tambeacutem se torna visiacutevel a temeridade e a relaccedilatildeo do ser teacutecnico com a prudecircncia onde os valores estatildeo na biosfera e natildeo na utilidade do fazer antropocecircntrico e egoiacutesta da condiccedilatildeo humana de estar no mundo

Insistir na permanecircncia desta praacutetica eacute insistir na participaccedilatildeo direta ativa e democraacutetica dos agricultores na formulaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e nos projetos voltados para a agricultura Pois se no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia tambeacutem estaacute inserida a dimensatildeo social entatildeo a implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia deve ser decidida pelos atores sociais nela implicados (MIRANDA 2012 p 181-182) Dessa forma eacute no espaccedilo puacuteblico de debate com a populaccedilatildeo diretamente afetada pelas implementaccedilotildees tecnocientiacuteficas que construiacutemos esta praacutetica democraacutetica e participativa frente agrave ciecircncia e agrave tecnologia eliminando assim a violecircncia contra a cultura local tal como situa Shiva

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

259

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

O primeiro plano da violecircncia desencadeada contra os sistemas locais de saber eacute natildeo consideraacute-los um saber A invisibilidade eacute a primeira razatildeo pela qual os sistemas locais entram em colapso antes de serem testados e comprovados pelo confronto com o saber dominante do Ocidente A proacutepria distacircncia elimina os sistemas locais da percepccedilatildeo Quando o saber local aparece de fato no campo da visatildeo globalizadora fazem com que desapareccedila negando-lhe o status de um saber sistemaacutetico e atribuindo-lhe os adjetivos de primitivo e anticientiacutefico (SHIVA 2003 p 22-23)

Portanto tal como ensina Shiva para que haja inclusatildeo e um processo democraacutetico na participaccedilatildeo puacuteblica voltada para a ciecircncia e para a tecnologia eacute preciso que a visatildeo globalizante da tecnificaccedilatildeo e da cientifizaccedilatildeo natildeo anule o conhecimento local com a justificativa de que eles natildeo satildeo cientiacuteficos O saber local e as praacuteticas culturais dos agricultores devem ser levados em consideraccedilatildeo nesses processos de implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de garantir o empoderamento dos atores sociais neles implicados

Ora que liccedilotildees podemos extrair destas constataccedilotildees se vincularmos ao agir eacutetico Agrave luz das teses apresentadas por Hans Jonas apontamos alguns caminhos (i) Que eacute necessaacuterio pensar numa eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica e instrumental abrangendo uma nova dimensatildeo a responsabilidade (ii) Que tal modelo de eacutetica seja capaz de resgatar o conceito de temeridade e a relaccedilatildeo da teacutecnica natildeo somente com a eficiecircncia mas tambeacutem com a prudecircncia (iii) Que eacute fundamental retomar o sentido originaacuterio da eacutetica como cuidado o cuidar do lugar onde se vive (BOFF 1999 MIRANDA 2012)

Em outros termos o questionamento diante da teacutecnica e da ciecircncia levando em consideraccedilatildeo o acircmbito da eacutetica e das poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode estar inserido meramente na dimensatildeo instrumental e antropoloacutegica Trata-se antes de tudo de uma fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da natureza e da condiccedilatildeo humana levando em conta o princiacutepio responsabilidade definido pela eacutetica jonasiana

A justificativa de uma tal eacutetica que natildeo mais se restringe ao terreno imediatamente intersubjetivo da contemporaneidade deve estender-se ateacute a metafiacutesica pois soacute ela permite que se pergunte por que afinal homens devem estar no mundo portanto por que o imperativo incondicional destina-se a assegurar-lhes a existecircncia no futuro A aventura da tecnologia impotildee com seus riscos extremos o risco da reflexatildeo extrema (JONAS 2006 p 22)

Desta forma e diante da insuficiecircncia constatada por Jonas da eacutetica tradicional em propor saiacutedas frente aos novos dilemas eacuteticos pautados pela sociedade tecnocientiacutefica eacute proposta deste estudo pensar um novo agir humano baseado na responsabilidade inclusive no acircmbito da implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de pensar saiacutedas que sejam capazes de ultrapassar as barreiras do discurso desenvolvimentista e por conseguinte determinista da tecnologia e da neutralidade cientiacutefica que ainda persistem e insistem em orientar as praacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na sociedade atual Afinal como diz Miranda com base nos estudos de Jasanoff (1995)

a ciecircncia deveria ter uma funccedilatildeo poliacutetica na medida em que tambeacutem avalia e revisa o estado do conhecimento cientiacutefico e sua aplicabilidade praacutetica Assim diante de programas de controle ambiental por exemplo mais que simplesmente aplicar certo tipo de conhecimento cientiacutefico aparentemente desinteressado neutro o papel da ciecircncia deveria ser tambeacutem eacutetico-poliacutetico no sentido de avaliar suas implicaccedilotildees sociais poliacuteticas culturais etc (MIRANDA 2012 p 181)

Em suma a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no municiacutepio de Ipanguaccedilu ensina-nos que no cenaacuterio da instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo impulsionadas por poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas supostamente de cunho desenvolvimentista e que correspondem ao ideal progressista cujo agir eacute meramente utilitaacuterio e de exploraccedilatildeo da natureza visando cada vez mais ao lucro a eacutetica da responsabilidade pode ser a criacutetica e o

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

260

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

norte de uma nova forma de agir Desde sua criacutetica tambeacutem eacute possiacutevel formular poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas que levem em conta os atores sociais nelas implicados tornando o processo democraacutetico e natildeo somente tecnocraacutetico Por outro lado e considerando o cenaacuterio da agricultura familiar e dos agricultores que ali vivem e lidam com a terra a eacutetica da responsabilidade surge como forma de corroborar com suas praacuteticas como a accedilatildeo eacutetica que visa ao cuidado com o lugar onde vivem pois eles (os agricultores) natildeo satildeo apenas ldquodonosrdquo da terra mas ocupam e essencializam a terra atraveacutes da relaccedilatildeo de cuidado e de prudecircncia no ato de cultivar a terra

Eacute a partir desta constataccedilatildeo que apresentamos a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas como uma eacutetica possiacutevel de ser aplicada nesse contexto de aparente dualidade entre a agricultura familiar e o agronegoacutecio Levando em conta as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade como o conceito da responsabilidade e do ideal utoacutepico do progresso cientiacutefico tecnoloacutegico a relaccedilatildeo com o meio ambiente e com a terra concluiacutemos que urge pensar sua aplicaccedilatildeo tambeacutem no campo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas A sua utilizaccedilatildeo no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia torna-se necessaacuteria no atual contexto da modernizaccedilatildeo em que estatildeo submetidos grupos sociais comunidades e povos inteiros E ainda que guardados seus devidos limites (MIRANDA 2012 p 143) a responsabilidade eacute um princiacutepio eacutetico que pode contribuir para nortear as accedilotildees tecnocientiacuteficas rumo agrave uma sociedade mais sustentaacutevel e equilibrada

Referecircncias

AGEcircNCIA Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba (AESA) Comitecircs Piranhas-Accedilu apresentaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwaesapbgovbrcomitespiranhasacu Acesso em 23 ago 2015

ALBANO Gleydson SAacute Alcindo Poliacuteticas puacuteblicas e globalizaccedilatildeo da agricultura no Vale do Accedilu-RN Revista de Geografia Recife UFPE ndash DCGNAPA v 25 n 2 maiago 2008

APEL Karl-Otto Estudos de moral moderna Petroacutepolis Vozes 2000

BECK Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Traduccedilatildeo original do alematildeo de Sebastiatildeo Nascimento Satildeo Paulo Editora 34 2010

BOFF Leonardo Saber cuidar eacutetica do humano Petroacutepolis Vozes 1999

HEIDEGGER Martin A questatildeo da teacutecnica Ensaios e conferecircncias I Traduzido por Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan Fode Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes Braganccedila Paulista Ed Universitaacuteria Satildeo Francisco 2012

HERRERA Amiacutelcar O Los determinantes sociales de la poliacutetica cientiacutefica en Ameacuterica Latina Poliacutetica cientiacutefica expliacutecita y poliacutetica cientiacutefica impliacutecita Argentina Redes v 2 1995

INSTITUTO Brasileiro de Geografia E Estatiacutestica (IBGE) Censo Demograacutefico 2000 sinopse ndash Rio Grande do Norte ndash Ipanguaccedilu Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtras temasphplang=ampcodmun=240470ampidtema=1ampsearch=rio-grande-do-norte|ipanguacu|censo-demografico-2010-sinopse- Acesso em 14 ago 2015

JASANOFF S Procedural choices in regulatory science Technology in Society 17 1995 httpsdoiorg1010160160-791x(95)00011-f

JONAS Hans O princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Rio de Janeiro Contraponto 2006

JONAS Hans Teacutecnica medicina y eacutetica Sobre la praacutectica del principio de la responsabilidad Barcelona Paidoacutes 1997

LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001

LISBOA Armando de Melo Desenvolvimento uma ideia subdesenvolvida Cadernos do CEAS Salvador n 161 1996

MARCUSE Herbert A ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional Rio de Janeiro Jorge Zahar 1982

MIRANDA A L iquestUna eacutetica para la civilizacioacuten tecnoloacutegica Posibilidades y liacutemites del principio de la responsabilidad de Hans Jonas AlemanhaEspanha Lap LambertEAE 2012

MORIN E Ciecircncia com consciecircncia Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005

SERRES Michel Le contrat natural Paris Flammarion 1992

SHIVA Vandana AZEVEDO Dinah de Abreu Monoculturas da mente perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia Satildeo Paulo Gaia 2003

SIQUEIRA JE Hans Jonas e a eacutetica da responsabilidade Mundo Sauacutede 1999

WEBCARTA Mapa do Rio Grande do Norte Disponiacutevel em webcartanetcartamapaphpid=244amplg=pt Acesso em 26 ago 2015

WOLIN Richard Heideggerrsquos children Hannah Arendt Karl Loumlwith Hans Jonas y Herbert Marcuse Princepton Princepton University Press 2001

ZANCANARO L O conceito de responsabilidade em Hans Jonas CampinasSP Ed UNICAMP 1998

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Page 11: O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail: angelamiranda@ect@ufrn.br. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

254

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

As poliacuteticas puacuteblicas de modernizaccedilatildeo da fruticultura irrigada e a relaccedilatildeo essencial com a terra

Levando em consideraccedilatildeo as poliacuteticas puacuteblicas voltadas para a agricultura na regiatildeo percebe-se que apoacutes a construccedilatildeo da Barragem de Accedilu essas poliacuteticas satildeo voltadas para impulsionar a ldquoRevoluccedilatildeo Verderdquo dando iniacutecio a um forte processo de modernizaccedilatildeo da agricultura Albano a define do seguinte modo

[] consiste num grande crescimento de produtividade e de quantidade na agricultura por meio do uso de tecnologias como os tratores agriacutecolas teacutecnicas de irrigaccedilatildeo defensivos quiacutemicos variedades de sementes aviaccedilatildeo agriacutecola computadores novos meacutetodos de gestatildeo etc De um lado da produccedilatildeo vai se ter a Induacutestria Produtora de Insumos com fertilizantes defensivos e corretivos e do outro vai se ter a Induacutestria de Bens de Capital com tratores colheitadeiras e equipamentos de irrigaccedilatildeo (ALBANO 2008 p 62)

Ainda sobre a Revoluccedilatildeo Verde Shiva afirma

Os sistemas agriacutecolas tradicionais baseiam-se em sistemas de rotaccedilatildeo de culturas e cereais legumes sementes oleaginosas com diversas variedades em cada safra enquanto o pacote da Revoluccedilatildeo Verde baseia-se em monoculturas geneticamente uniformes (SHIVA 2003 p 57)

Em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas no acircmbito da agricultura irrigada em Ipanguaccedilu haacute vaacuterios esforccedilos por parte do governo para impulsionar a modernizaccedilatildeo do campo Em vista disso citando os estudos de Souza (1997) Albano (2008) elenca que no comeccedilo da deacutecada de 1970 o Governo Autoritaacuterio efetivou o I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) Este plano teve como programas mais importantes o Programa de Redistribuiccedilatildeo de Terras (PROTERRA) e de estiacutemulo agrave agroinduacutestria do Norte e Nordeste cujo principal objetivo era ampliar a agroinduacutestria e o Programa de Integraccedilatildeo Nacional (PIN) atraveacutes de um plano de irrigaccedilatildeo no Nordeste

Diante desses esforccedilos para modernizar (tecnificar) a agricultura vale a pena refletirmos sobre o ideal do progresso tecnoloacutegico aliado ao conceito de desenvolvimento econocircmico tatildeo presente na modernidade Essa concepccedilatildeo progressista desconsidera as intencionalidades existentes no artefato tecnoloacutegico e nos indiviacuteduos no que tange agrave sua construccedilatildeo histoacuterica cultural e de valores A instrumentalizaccedilatildeo da ciecircncia e da tecnologia reduz os aparatos e a proacutepria cultura ao meramente teacutecnico e cientiacutefico tendo em vista que o progresso tecnocientiacutefico na maioria das vezes aparece desvinculado da realidade da sociedade local

Herrera (1995 p 117) mostra que isso se torna evidente a partir da Segunda Guerra Mundial com o esforccedilo internacional de implementar e melhorar as Poliacuteticas de Ciecircncia e Tecnologia (CampT) nos paiacuteses considerados ldquosubdesenvolvidosrdquo Poreacutem o que se percebe entre outros fatores eacute a desconexatildeo dos investimentos com a realidade dos paiacuteses da Ameacuterica Latina Tanto as concepccedilotildees de ciecircncia e de tecnologia quanto a ideia de progresso tecnocientiacutefico desvinculados do contexto regional acabam refletindo na construccedilatildeo dos indicadores e das poliacuteticas puacuteblicas em CampT e consequentemente na participaccedilatildeo puacuteblica e na avaliaccedilatildeo deles

Mostrando a desvinculaccedilatildeo das poliacuteticas desenvolvimentistas com o contexto regional Lisboa corrobora com as teses de Robert Kurz quando afirma

As poliacuteticas desenvolvimentistas arrancaram em poucas deacutecadas populaccedilotildees inteiras da sua economia de subsistecircncia tradicional mas natildeo as integraram plenamente (ou seja natildeo as transformaram em cidadatildes) Kurz ao desnudar o colapso da modernizaccedilatildeo do terceiro mundo afirma que ldquoa maior parte da sociedade foi apenas modernizada em sentido negativo isto eacute foram destruiacutedas as estruturas tradicionais sem que alguma coisa nova ocupasse o seu lugarrdquo (LISBOA 1996 p 4-5)

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

255

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Assim as poliacuteticas desenvolvimentistas acabam eliminando a cultura e a praacutetica tradicional dos agricultores locais Relacionando esse contexto com a eacutetica da responsabilidade de Jonas que eacute o propoacutesito deste trabalho podemos testemunhar a sua total exclusatildeo pois a terra passa a ser vista como mero produto mera utilidade que visa ao lucro da exportaccedilatildeo Ou seja haacute um profundo abandono da responsabilidade enquanto cuidado e prudecircncia em relaccedilatildeo agrave terra ao meio ambiente e agraves comunidades que vivem do cultivo da terra

Retomando o olhar sobre a Tabela 1 percebemos que eacute iacutenfima a interaccedilatildeo entre as relaccedilotildees locais que envolvem as praacuteticas da agricultura com a empresa multinacional Neste tipo de praacutetica descarta-se o conhecimento local Desse modo o pensamento transforma-se em monoculturado (SHIVA 2003 p 21) e a cultura torna-se cientificada e tecnificada tendo como justificativa e produto final o progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico Aleacutem disso o proacuteprio debate e a avaliaccedilatildeo puacuteblica que deveria existir para garantir a participaccedilatildeo dos cidadatildeos e a gestatildeo mais democraacutetica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia excluem aqueles que efetivamente satildeo os atores sociais envolvidos neste processo No caso em questatildeo trata-se dos agricultores de Ipanguaccedilu

Aqui recobra sentido a ideia do imperativo tecnoloacutegico abordado por Jonas que elimina a liberdade e a consciecircncia do sujeito em prol de um determinismo tecnoloacutegico Assim o saber local deixa de ter importacircncia e em seu lugar ganha destaque o saber cientiacutefico deixando em evidecircncia as relaccedilotildees estabelecidas entre as multinacionais e o mercado exterior Notadamente na Tabela 1 o saber cientiacutefico e tecnoloacutegico (inclusive importados e produzidos fora do contexto local) satildeo os mais destacados e utilizados em detrimento ao saber local

Percebe-se ouvindo os agricultores da regiatildeo que apesar da instalaccedilatildeo das multinacionais em Ipanguaccedilu ter aumentado a quantidade de empregos a praacutetica do agronegoacutecio extinguiu a diversidade de plantio agriacutecola da regiatildeo Onde antes havia a diversidade cultivada atraveacutes da agricultura de subsistecircncia o cenaacuterio agora eacute o da monocultura com a fruticultura irrigada Um dos agricultores e morador local disse ldquoA agricultura aqui antes era em primeiro lugar Tinha tudo saiacutea muita carrada de pimentatildeo saiacutea muito tomate tinha bastante milho feijatildeo Hoje da agricultura o que tem bastante eacute soacute bananardquo (Entrevistado B)

Aleacutem disso os agricultores natildeo participam ativamente nas decisotildees das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e dos projetos voltados para a agricultura por parte da EMATER (Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural) cuja principal missatildeo eacute contribuir para a promoccedilatildeo do agronegoacutecio focando na agricultura familiar atraveacutes do serviccedilo de extensatildeo rural em prol do desenvolvimento sustentaacutevel tal como podemos observar na Tabela 2 a seguir

Tabela 2 - Projetos de agricultura irrigada implementados a partir de 1987 ateacute 1990 no Vale do Accedilu para pequenos irrigantes ndash EMATER

Fonte Pinheiro (1995 citado por Albano 2008 p 67)

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

256

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Pelos dados apresentados na tabela observa-se o baixo nuacutemero de projetos voltados para o pequeno agricultor na regiatildeo de Ipanguaccedilu Ainda falta uma poliacutetica puacuteblica que realmente integre o agricultor familiar no cenaacuterio da agricultura modernizada e que leve em conta a participaccedilatildeo popular de forma democraacutetica na sua formulaccedilatildeo Quando questionado sobre o papel da EMATER o mesmo agricultor afirma

A EMATER vem se arrastando a passos de tartaruga Eacute muito devagar Natildeo sei se eacute falta de incentivo dos governantes (que eu acredito que seja) porque tem os teacutecnicos que possuem vontade de colocar as coisas para funcionar mas por conta do recurso natildeo tem como eles colocarem para funcionar (Entrevistado B)

A regiatildeo de Ipanguaccedilu e a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas

Aleacutem do que jaacute observamos ateacute aqui que outros aspectos podemos extrair do contexto apresentado sobre a implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na regiatildeo de Ipanguaccedilu e a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da responsabilidade

Jaacute introduzimos este aspecto na parte anterior deste trabalho mas vale a pena aprofundar um pouco mais a criacutetica ao progresso tecida por Jonas (2006) ao que ele denomina de ideal baconiano e a relaccedilatildeo com o ideal de progresso presente na regiatildeo de Ipanguaccedilu Mais especificamente trata-se de evidenciar a relaccedilatildeo da dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica

Como visto anteriormente a tese principal defendida por Hans Jonas eacute que a teacutecnica moderna se converte em ameaccedila natildeo apenas fiacutesica mas tambeacutem ideoloacutegica na medida em que propaga o ideal de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico a qualquer custo o que segundo ele representa um perigo para toda a humanidade Sobre este perigo ele argumenta

O perigo decorre da dimensatildeo excessiva da civilizaccedilatildeo teacutecnico-industrial baseada nas ciecircncias naturais O que chamamos de programa baconiano ndash ou seja colocar o saber a serviccedilo da dominaccedilatildeo da natureza e utilizaacute-la para melhorar a sorte da humanidade ndash natildeo contou desde as origens na sua execuccedilatildeo capitalista com a racionalidade e a retidatildeo que lhe seriam adequadas poreacutem sua dinacircmica de ecircxito que conduz obrigatoriamente aos excessos de produccedilatildeo e consumo teria subjugado qualquer sociedade considerando-se a breve escala de tempo dos objetivos humanos e a imprevisibilidade real das dimensotildees do ecircxito (uma vez que nenhuma sociedade se compotildee de saacutebios) (JONAS 2006 p 235)

Jonas atenta aos perigos existentes na civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica e utilitaacuteria onde partimos do pressuposto de que a teacutecnica moderna eacute indispensaacutevel para a sociedade e que sobretudo eacute nela que encontraremos o triunfo (o que o filoacutesofo denomina de ecircxito) Nessa perspectiva ele afirma que ldquoa ameaccedila de cataacutestrofe do ideal baconiano de dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica reside portanto na magnitude do seu ecircxito Esse ecircxito tem dois aspectos econocircmico e bioloacutegicordquo (2006 p 235) O ecircxito econocircmico resultaria no esgotamento dos recursos naturais atraveacutes do aumento da produccedilatildeo de bens e diminuiccedilatildeo do dispecircndio do trabalho humano enquanto que o bioloacutegico consistiria em um aumento exponencial da populaccedilatildeo

Dito isso a partir da ambivalecircncia do ecircxito presente no ideal baconiano podemos fazer um contraponto com a implementaccedilatildeo das poliacuteticas voltadas para a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu Natildeo estariam inseridas nesta loacutegica as poliacuteticas puacuteblicas que surgiram para impulsionar a Revoluccedilatildeo Verde Nesse contexto percebemos um forte crescimento de produtividade na agricultura atraveacutes da utilizaccedilatildeo de novas tecnologias oriundas da ideia de modernizar o campo aumentando assim a visibilidade das empresas multinacionais e diminuindo as atividades de subsistecircncia (ldquoecircxito econocircmicordquo) Do mesmo modo constatamos o aumento populacional em certas comunidades como mostrado anteriormente onde antes

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

257

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

havia 50 moradores apoacutes a instalaccedilatildeo das multinacionais a populaccedilatildeo da comunidade aumentou para 500 moradores (ldquoecircxito bioloacutegicordquo) Isso posto e respondendo agrave pergunta anterior podemos afirmar que de certo modo essas poliacuteticas que surgem com vistas agrave modernizaccedilatildeo do campo estatildeo inseridas nesta ambiguidade do ecircxito colocada por Hans Jonas quando pensamos no ideal baconiano de um lado o econocircmico com a maior produtividade e menor dispecircndio do trabalho do outro o bioloacutegico com o aumento populacional

Outra relaccedilatildeo que podemos evidenciar levando em conta este cenaacuterio utilitaacuterio advindo da modernizaccedilatildeo da agricultura eacute a questatildeo da alimentaccedilatildeo Citando a utoacutepica ldquoreconstruccedilatildeo da naturezardquo pensada por Bloch Jonas afirma que

[] por causa do seu ecircxito bioloacutegico e do seu crescimento irresistiacutevel a humanidade se vecirc forccedilada a adicionar produtos quiacutemicos agrave camada produtiva da crosta terrestre [] As tecnologias agraacuterias de maximizaccedilatildeo tecircm impactos cumulativos sobre a natureza que mal comeccedilaram a revelar-se em acircmbito local por exemplo na poluiccedilatildeo quiacutemica dos recursos hiacutedricos e das aacuteguas costeiras (para o que contribuem tambeacutem as induacutestrias) com efeitos nocivos transmitidos pela cadeia alimentar A salinizaccedilatildeo dos solos pela irrigaccedilatildeo constante a erosatildeo provocada pela aragem dos campos [] (JONAS 2006 p 302)

Historicamente eacute sabido que a proposta da eacutetica jonasiana deu cabida a muitos movimentos ecologistas no final do seacuteculo passado inclusive orientando as diretrizes do Partido Verde na Alemanha a partir dos anos noventa Mas tambeacutem eacute fato que Jonas ao duvidar das apostas nas tecnologias modernas com o uso de fertilizantes agrotoacutexicos e o cultivo da monocultura para o crescimento a qualquer custo tambeacutem coloca em crise os ideais surgidos na Revoluccedilatildeo Verde Nesse mesmo sentido quando indagado sobre a questatildeo socioambiental e do progresso na agricultura familiar e no agronegoacutecio o entrevistado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu argumenta

Tanto os agricultores familiares precisam ainda lidar com a questatildeo socioambiental como tambeacutem as empresas que estatildeo no municiacutepio Haacute empresas que trabalhavam com a pulverizaccedilatildeo aeacuterea atraveacutes de aviotildees e envenenaram rios plantaccedilotildees houve mortandade de peixes e com isso foram feitas denuacutencias ao IDEMA ndash que eacute o oacutergatildeo de meio ambiente estadual ao IBAMA Tecircm empresas que foram multadas em vaacuterios milhotildees de reais e estatildeo procurando se adequar ao meio ambiente para prejudicar menos Tambeacutem podemos abordar a questatildeo do progresso cientiacutefico (Entrevistado A)

A visatildeo de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico aliada ao desenvolvimento presente na modernidade acaba mascarando os efeitos desastrosos da tecnificaccedilatildeo em escala planetaacuteria O discurso de um crescente bem-estar (tanto social quanto econocircmico) faz-nos acreditar que soacute existe uma uacutenica via a ser seguida que eacute a do desenvolvimento Poreacutem essa falsa sensaccedilatildeo eclipsa o pensar que questiona a teacutecnica e a sua relaccedilatildeo com a sociedade na atualidade

Ainda dentro da ameaccedila do ideal baconiano exposto por Jonas outro aspecto relevante e que merece destaque aqui eacute a questatildeo da dominaccedilatildeo da natureza a partir da teacutecnica moderna Jonas (2006 p 236) considera que na ldquodialeacutetica do poder sobre a natureza e a compulsatildeo de exercecirc-lardquo o poder tornou-se crucial nesta relaccedilatildeo Assim ele afirma

A foacutermula baconiana afirma que saber eacute poder Mas eacute o proacuteprio programa baconiano que no aacutepice do triunfo revela-se insuficiente com a sua contradiccedilatildeo intriacutenseca ou seja o descontrole sobre si mesmo mostrando-se incapaz de proteger o homem de si mesmo e a natureza do homem (2006 p 236)

A partir desta dialeacutetica estabelecida entre poder teacutecnica moderna e sua relaccedilatildeo com o homem e a proacutepria natureza Jonas afirma que tanto o homem quanto a natureza precisam de proteccedilatildeo quando se pensa na magnitude do poder que o progresso cientiacutefico alcanccedilou Pensamento semelhante jaacute havia sido

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

258

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

propagado tambeacutem por Marcuse (1982) quando nos anos sessenta do seacuteculo passado afirmava a unidimensionalidade da condiccedilatildeo humana advinda da teacutecnica moderna Esse poder eacute caracterizado pela necessidade do uso crescente da teacutecnica conduzindo o homem a uma incapacidade de frear o contiacutenuo progresso muito embora ele (o homem) insista em acreditar que a natureza eacute apenas um objeto de exploraccedilatildeo e estaacute disponiacutevel para atender meramente agrave sua vontade

Aleacutem desta problemaacutetica do progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico colocado por Jonas podemos tambeacutem fazer uma relaccedilatildeo entre as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade e o municiacutepio de Ipanguaccedilu Tal como jaacute salientamos anteriormente o primeiro aspecto a destacar desde a eacutetica jonasiana eacute o dever do homem perante a biosfera como dever responsaacutevel garantindo tanto a preservaccedilatildeo do presente quanto do futuro da humanidade e da natureza Portanto neste aspecto haveriacuteamos de indagar ateacute que ponto a agricultura familiar na regiatildeo de Ipanguaccedilu torna vaacutelido esse dever e se o mesmo procede com o agronegoacutecio Como dito anteriormente o agronegoacutecio visa agrave monocultura e agrave modernizaccedilatildeo da agricultura ou seja as atividades agriacutecolas satildeo baseadas no controle teacutecnico da terra gerando uma maior produccedilatildeo que garante a exportaccedilatildeo e o investimento no mercado interno visando ao lucro Do outro lado estaacute a agricultura familiar tendo como principal caracteriacutestica o cultivo de subsistecircncia Podemos observar que no primeiro exemplo a natureza eacute vista como um objeto de lucro enquanto que no segundo ela eacute vista como um ldquoobjetordquo de responsabilidade E eacute no contexto do segundo exemplo que se insere o sentido do ldquodever serrdquo tal como observa Jonas Poreacutem o que ocorre eacute que na atualidade as atividades desenvolvidas pelas multinacionais do agronegoacutecio em Ipanguaccedilu eacute que vecircm merecendo lugar de destaque no cenaacuterio das poliacuteticas puacuteblicas locais

Consideraccedilotildees Finais

Do exposto ateacute aqui fica expliacutecito que eacute necessaacuterio um olhar criacutetico sobre a problemaacutetica existente do paradigma cientiacutefico e tecnoloacutegico presente na modernidade que impele tudo ao progresso e ao desenvolvimento Do mesmo modo tambeacutem eacute preciso refletir sobre como tratamos a realidade e o contexto cultural local visto que natildeo podem ser marginalizados em prol do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico e econocircmico global Observando o sentido do desenvolvimento neste contexto Lisboa argumenta

O desenvolvimento comporta em si mesmo o subdesenvolvimento O padratildeo mimeacutetico do desenvolvimento fundado no estilo ocidental de vida com altos niacuteveis de consumo e desperdiacutecio tem cegado os povos do terceiro mundo os impedindo de se encontrar com sua identidade Ora um povo privado de sua identidade natildeo eacute capaz de se autodeterminar (LISBOA 1996 p 7)

Apesar de a instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo de Ipanguaccedilu ter reduzido a diversidade da regiatildeo atraveacutes do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico o pouco que haacute da praacutetica da agricultura familiar ainda insiste em preservar a relaccedilatildeo essencial com a terra e com tradiccedilotildees culturais Nela se vecirc refletido o princiacutepio eacutetico da responsabilidade de Hans Jonas onde haacute a preocupaccedilatildeo do cuidado com o lugar onde vivem para que as futuras geraccedilotildees possam viver de forma sustentaacutevel Na agricultura familiar tambeacutem se torna visiacutevel a temeridade e a relaccedilatildeo do ser teacutecnico com a prudecircncia onde os valores estatildeo na biosfera e natildeo na utilidade do fazer antropocecircntrico e egoiacutesta da condiccedilatildeo humana de estar no mundo

Insistir na permanecircncia desta praacutetica eacute insistir na participaccedilatildeo direta ativa e democraacutetica dos agricultores na formulaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e nos projetos voltados para a agricultura Pois se no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia tambeacutem estaacute inserida a dimensatildeo social entatildeo a implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia deve ser decidida pelos atores sociais nela implicados (MIRANDA 2012 p 181-182) Dessa forma eacute no espaccedilo puacuteblico de debate com a populaccedilatildeo diretamente afetada pelas implementaccedilotildees tecnocientiacuteficas que construiacutemos esta praacutetica democraacutetica e participativa frente agrave ciecircncia e agrave tecnologia eliminando assim a violecircncia contra a cultura local tal como situa Shiva

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

259

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

O primeiro plano da violecircncia desencadeada contra os sistemas locais de saber eacute natildeo consideraacute-los um saber A invisibilidade eacute a primeira razatildeo pela qual os sistemas locais entram em colapso antes de serem testados e comprovados pelo confronto com o saber dominante do Ocidente A proacutepria distacircncia elimina os sistemas locais da percepccedilatildeo Quando o saber local aparece de fato no campo da visatildeo globalizadora fazem com que desapareccedila negando-lhe o status de um saber sistemaacutetico e atribuindo-lhe os adjetivos de primitivo e anticientiacutefico (SHIVA 2003 p 22-23)

Portanto tal como ensina Shiva para que haja inclusatildeo e um processo democraacutetico na participaccedilatildeo puacuteblica voltada para a ciecircncia e para a tecnologia eacute preciso que a visatildeo globalizante da tecnificaccedilatildeo e da cientifizaccedilatildeo natildeo anule o conhecimento local com a justificativa de que eles natildeo satildeo cientiacuteficos O saber local e as praacuteticas culturais dos agricultores devem ser levados em consideraccedilatildeo nesses processos de implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de garantir o empoderamento dos atores sociais neles implicados

Ora que liccedilotildees podemos extrair destas constataccedilotildees se vincularmos ao agir eacutetico Agrave luz das teses apresentadas por Hans Jonas apontamos alguns caminhos (i) Que eacute necessaacuterio pensar numa eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica e instrumental abrangendo uma nova dimensatildeo a responsabilidade (ii) Que tal modelo de eacutetica seja capaz de resgatar o conceito de temeridade e a relaccedilatildeo da teacutecnica natildeo somente com a eficiecircncia mas tambeacutem com a prudecircncia (iii) Que eacute fundamental retomar o sentido originaacuterio da eacutetica como cuidado o cuidar do lugar onde se vive (BOFF 1999 MIRANDA 2012)

Em outros termos o questionamento diante da teacutecnica e da ciecircncia levando em consideraccedilatildeo o acircmbito da eacutetica e das poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode estar inserido meramente na dimensatildeo instrumental e antropoloacutegica Trata-se antes de tudo de uma fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da natureza e da condiccedilatildeo humana levando em conta o princiacutepio responsabilidade definido pela eacutetica jonasiana

A justificativa de uma tal eacutetica que natildeo mais se restringe ao terreno imediatamente intersubjetivo da contemporaneidade deve estender-se ateacute a metafiacutesica pois soacute ela permite que se pergunte por que afinal homens devem estar no mundo portanto por que o imperativo incondicional destina-se a assegurar-lhes a existecircncia no futuro A aventura da tecnologia impotildee com seus riscos extremos o risco da reflexatildeo extrema (JONAS 2006 p 22)

Desta forma e diante da insuficiecircncia constatada por Jonas da eacutetica tradicional em propor saiacutedas frente aos novos dilemas eacuteticos pautados pela sociedade tecnocientiacutefica eacute proposta deste estudo pensar um novo agir humano baseado na responsabilidade inclusive no acircmbito da implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de pensar saiacutedas que sejam capazes de ultrapassar as barreiras do discurso desenvolvimentista e por conseguinte determinista da tecnologia e da neutralidade cientiacutefica que ainda persistem e insistem em orientar as praacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na sociedade atual Afinal como diz Miranda com base nos estudos de Jasanoff (1995)

a ciecircncia deveria ter uma funccedilatildeo poliacutetica na medida em que tambeacutem avalia e revisa o estado do conhecimento cientiacutefico e sua aplicabilidade praacutetica Assim diante de programas de controle ambiental por exemplo mais que simplesmente aplicar certo tipo de conhecimento cientiacutefico aparentemente desinteressado neutro o papel da ciecircncia deveria ser tambeacutem eacutetico-poliacutetico no sentido de avaliar suas implicaccedilotildees sociais poliacuteticas culturais etc (MIRANDA 2012 p 181)

Em suma a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no municiacutepio de Ipanguaccedilu ensina-nos que no cenaacuterio da instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo impulsionadas por poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas supostamente de cunho desenvolvimentista e que correspondem ao ideal progressista cujo agir eacute meramente utilitaacuterio e de exploraccedilatildeo da natureza visando cada vez mais ao lucro a eacutetica da responsabilidade pode ser a criacutetica e o

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

260

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

norte de uma nova forma de agir Desde sua criacutetica tambeacutem eacute possiacutevel formular poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas que levem em conta os atores sociais nelas implicados tornando o processo democraacutetico e natildeo somente tecnocraacutetico Por outro lado e considerando o cenaacuterio da agricultura familiar e dos agricultores que ali vivem e lidam com a terra a eacutetica da responsabilidade surge como forma de corroborar com suas praacuteticas como a accedilatildeo eacutetica que visa ao cuidado com o lugar onde vivem pois eles (os agricultores) natildeo satildeo apenas ldquodonosrdquo da terra mas ocupam e essencializam a terra atraveacutes da relaccedilatildeo de cuidado e de prudecircncia no ato de cultivar a terra

Eacute a partir desta constataccedilatildeo que apresentamos a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas como uma eacutetica possiacutevel de ser aplicada nesse contexto de aparente dualidade entre a agricultura familiar e o agronegoacutecio Levando em conta as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade como o conceito da responsabilidade e do ideal utoacutepico do progresso cientiacutefico tecnoloacutegico a relaccedilatildeo com o meio ambiente e com a terra concluiacutemos que urge pensar sua aplicaccedilatildeo tambeacutem no campo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas A sua utilizaccedilatildeo no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia torna-se necessaacuteria no atual contexto da modernizaccedilatildeo em que estatildeo submetidos grupos sociais comunidades e povos inteiros E ainda que guardados seus devidos limites (MIRANDA 2012 p 143) a responsabilidade eacute um princiacutepio eacutetico que pode contribuir para nortear as accedilotildees tecnocientiacuteficas rumo agrave uma sociedade mais sustentaacutevel e equilibrada

Referecircncias

AGEcircNCIA Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba (AESA) Comitecircs Piranhas-Accedilu apresentaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwaesapbgovbrcomitespiranhasacu Acesso em 23 ago 2015

ALBANO Gleydson SAacute Alcindo Poliacuteticas puacuteblicas e globalizaccedilatildeo da agricultura no Vale do Accedilu-RN Revista de Geografia Recife UFPE ndash DCGNAPA v 25 n 2 maiago 2008

APEL Karl-Otto Estudos de moral moderna Petroacutepolis Vozes 2000

BECK Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Traduccedilatildeo original do alematildeo de Sebastiatildeo Nascimento Satildeo Paulo Editora 34 2010

BOFF Leonardo Saber cuidar eacutetica do humano Petroacutepolis Vozes 1999

HEIDEGGER Martin A questatildeo da teacutecnica Ensaios e conferecircncias I Traduzido por Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan Fode Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes Braganccedila Paulista Ed Universitaacuteria Satildeo Francisco 2012

HERRERA Amiacutelcar O Los determinantes sociales de la poliacutetica cientiacutefica en Ameacuterica Latina Poliacutetica cientiacutefica expliacutecita y poliacutetica cientiacutefica impliacutecita Argentina Redes v 2 1995

INSTITUTO Brasileiro de Geografia E Estatiacutestica (IBGE) Censo Demograacutefico 2000 sinopse ndash Rio Grande do Norte ndash Ipanguaccedilu Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtras temasphplang=ampcodmun=240470ampidtema=1ampsearch=rio-grande-do-norte|ipanguacu|censo-demografico-2010-sinopse- Acesso em 14 ago 2015

JASANOFF S Procedural choices in regulatory science Technology in Society 17 1995 httpsdoiorg1010160160-791x(95)00011-f

JONAS Hans O princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Rio de Janeiro Contraponto 2006

JONAS Hans Teacutecnica medicina y eacutetica Sobre la praacutectica del principio de la responsabilidad Barcelona Paidoacutes 1997

LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001

LISBOA Armando de Melo Desenvolvimento uma ideia subdesenvolvida Cadernos do CEAS Salvador n 161 1996

MARCUSE Herbert A ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional Rio de Janeiro Jorge Zahar 1982

MIRANDA A L iquestUna eacutetica para la civilizacioacuten tecnoloacutegica Posibilidades y liacutemites del principio de la responsabilidad de Hans Jonas AlemanhaEspanha Lap LambertEAE 2012

MORIN E Ciecircncia com consciecircncia Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005

SERRES Michel Le contrat natural Paris Flammarion 1992

SHIVA Vandana AZEVEDO Dinah de Abreu Monoculturas da mente perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia Satildeo Paulo Gaia 2003

SIQUEIRA JE Hans Jonas e a eacutetica da responsabilidade Mundo Sauacutede 1999

WEBCARTA Mapa do Rio Grande do Norte Disponiacutevel em webcartanetcartamapaphpid=244amplg=pt Acesso em 26 ago 2015

WOLIN Richard Heideggerrsquos children Hannah Arendt Karl Loumlwith Hans Jonas y Herbert Marcuse Princepton Princepton University Press 2001

ZANCANARO L O conceito de responsabilidade em Hans Jonas CampinasSP Ed UNICAMP 1998

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Page 12: O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail: angelamiranda@ect@ufrn.br. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

255

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Assim as poliacuteticas desenvolvimentistas acabam eliminando a cultura e a praacutetica tradicional dos agricultores locais Relacionando esse contexto com a eacutetica da responsabilidade de Jonas que eacute o propoacutesito deste trabalho podemos testemunhar a sua total exclusatildeo pois a terra passa a ser vista como mero produto mera utilidade que visa ao lucro da exportaccedilatildeo Ou seja haacute um profundo abandono da responsabilidade enquanto cuidado e prudecircncia em relaccedilatildeo agrave terra ao meio ambiente e agraves comunidades que vivem do cultivo da terra

Retomando o olhar sobre a Tabela 1 percebemos que eacute iacutenfima a interaccedilatildeo entre as relaccedilotildees locais que envolvem as praacuteticas da agricultura com a empresa multinacional Neste tipo de praacutetica descarta-se o conhecimento local Desse modo o pensamento transforma-se em monoculturado (SHIVA 2003 p 21) e a cultura torna-se cientificada e tecnificada tendo como justificativa e produto final o progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico Aleacutem disso o proacuteprio debate e a avaliaccedilatildeo puacuteblica que deveria existir para garantir a participaccedilatildeo dos cidadatildeos e a gestatildeo mais democraacutetica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e agrave tecnologia excluem aqueles que efetivamente satildeo os atores sociais envolvidos neste processo No caso em questatildeo trata-se dos agricultores de Ipanguaccedilu

Aqui recobra sentido a ideia do imperativo tecnoloacutegico abordado por Jonas que elimina a liberdade e a consciecircncia do sujeito em prol de um determinismo tecnoloacutegico Assim o saber local deixa de ter importacircncia e em seu lugar ganha destaque o saber cientiacutefico deixando em evidecircncia as relaccedilotildees estabelecidas entre as multinacionais e o mercado exterior Notadamente na Tabela 1 o saber cientiacutefico e tecnoloacutegico (inclusive importados e produzidos fora do contexto local) satildeo os mais destacados e utilizados em detrimento ao saber local

Percebe-se ouvindo os agricultores da regiatildeo que apesar da instalaccedilatildeo das multinacionais em Ipanguaccedilu ter aumentado a quantidade de empregos a praacutetica do agronegoacutecio extinguiu a diversidade de plantio agriacutecola da regiatildeo Onde antes havia a diversidade cultivada atraveacutes da agricultura de subsistecircncia o cenaacuterio agora eacute o da monocultura com a fruticultura irrigada Um dos agricultores e morador local disse ldquoA agricultura aqui antes era em primeiro lugar Tinha tudo saiacutea muita carrada de pimentatildeo saiacutea muito tomate tinha bastante milho feijatildeo Hoje da agricultura o que tem bastante eacute soacute bananardquo (Entrevistado B)

Aleacutem disso os agricultores natildeo participam ativamente nas decisotildees das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e dos projetos voltados para a agricultura por parte da EMATER (Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural) cuja principal missatildeo eacute contribuir para a promoccedilatildeo do agronegoacutecio focando na agricultura familiar atraveacutes do serviccedilo de extensatildeo rural em prol do desenvolvimento sustentaacutevel tal como podemos observar na Tabela 2 a seguir

Tabela 2 - Projetos de agricultura irrigada implementados a partir de 1987 ateacute 1990 no Vale do Accedilu para pequenos irrigantes ndash EMATER

Fonte Pinheiro (1995 citado por Albano 2008 p 67)

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

256

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Pelos dados apresentados na tabela observa-se o baixo nuacutemero de projetos voltados para o pequeno agricultor na regiatildeo de Ipanguaccedilu Ainda falta uma poliacutetica puacuteblica que realmente integre o agricultor familiar no cenaacuterio da agricultura modernizada e que leve em conta a participaccedilatildeo popular de forma democraacutetica na sua formulaccedilatildeo Quando questionado sobre o papel da EMATER o mesmo agricultor afirma

A EMATER vem se arrastando a passos de tartaruga Eacute muito devagar Natildeo sei se eacute falta de incentivo dos governantes (que eu acredito que seja) porque tem os teacutecnicos que possuem vontade de colocar as coisas para funcionar mas por conta do recurso natildeo tem como eles colocarem para funcionar (Entrevistado B)

A regiatildeo de Ipanguaccedilu e a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas

Aleacutem do que jaacute observamos ateacute aqui que outros aspectos podemos extrair do contexto apresentado sobre a implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na regiatildeo de Ipanguaccedilu e a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da responsabilidade

Jaacute introduzimos este aspecto na parte anterior deste trabalho mas vale a pena aprofundar um pouco mais a criacutetica ao progresso tecida por Jonas (2006) ao que ele denomina de ideal baconiano e a relaccedilatildeo com o ideal de progresso presente na regiatildeo de Ipanguaccedilu Mais especificamente trata-se de evidenciar a relaccedilatildeo da dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica

Como visto anteriormente a tese principal defendida por Hans Jonas eacute que a teacutecnica moderna se converte em ameaccedila natildeo apenas fiacutesica mas tambeacutem ideoloacutegica na medida em que propaga o ideal de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico a qualquer custo o que segundo ele representa um perigo para toda a humanidade Sobre este perigo ele argumenta

O perigo decorre da dimensatildeo excessiva da civilizaccedilatildeo teacutecnico-industrial baseada nas ciecircncias naturais O que chamamos de programa baconiano ndash ou seja colocar o saber a serviccedilo da dominaccedilatildeo da natureza e utilizaacute-la para melhorar a sorte da humanidade ndash natildeo contou desde as origens na sua execuccedilatildeo capitalista com a racionalidade e a retidatildeo que lhe seriam adequadas poreacutem sua dinacircmica de ecircxito que conduz obrigatoriamente aos excessos de produccedilatildeo e consumo teria subjugado qualquer sociedade considerando-se a breve escala de tempo dos objetivos humanos e a imprevisibilidade real das dimensotildees do ecircxito (uma vez que nenhuma sociedade se compotildee de saacutebios) (JONAS 2006 p 235)

Jonas atenta aos perigos existentes na civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica e utilitaacuteria onde partimos do pressuposto de que a teacutecnica moderna eacute indispensaacutevel para a sociedade e que sobretudo eacute nela que encontraremos o triunfo (o que o filoacutesofo denomina de ecircxito) Nessa perspectiva ele afirma que ldquoa ameaccedila de cataacutestrofe do ideal baconiano de dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica reside portanto na magnitude do seu ecircxito Esse ecircxito tem dois aspectos econocircmico e bioloacutegicordquo (2006 p 235) O ecircxito econocircmico resultaria no esgotamento dos recursos naturais atraveacutes do aumento da produccedilatildeo de bens e diminuiccedilatildeo do dispecircndio do trabalho humano enquanto que o bioloacutegico consistiria em um aumento exponencial da populaccedilatildeo

Dito isso a partir da ambivalecircncia do ecircxito presente no ideal baconiano podemos fazer um contraponto com a implementaccedilatildeo das poliacuteticas voltadas para a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu Natildeo estariam inseridas nesta loacutegica as poliacuteticas puacuteblicas que surgiram para impulsionar a Revoluccedilatildeo Verde Nesse contexto percebemos um forte crescimento de produtividade na agricultura atraveacutes da utilizaccedilatildeo de novas tecnologias oriundas da ideia de modernizar o campo aumentando assim a visibilidade das empresas multinacionais e diminuindo as atividades de subsistecircncia (ldquoecircxito econocircmicordquo) Do mesmo modo constatamos o aumento populacional em certas comunidades como mostrado anteriormente onde antes

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

257

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

havia 50 moradores apoacutes a instalaccedilatildeo das multinacionais a populaccedilatildeo da comunidade aumentou para 500 moradores (ldquoecircxito bioloacutegicordquo) Isso posto e respondendo agrave pergunta anterior podemos afirmar que de certo modo essas poliacuteticas que surgem com vistas agrave modernizaccedilatildeo do campo estatildeo inseridas nesta ambiguidade do ecircxito colocada por Hans Jonas quando pensamos no ideal baconiano de um lado o econocircmico com a maior produtividade e menor dispecircndio do trabalho do outro o bioloacutegico com o aumento populacional

Outra relaccedilatildeo que podemos evidenciar levando em conta este cenaacuterio utilitaacuterio advindo da modernizaccedilatildeo da agricultura eacute a questatildeo da alimentaccedilatildeo Citando a utoacutepica ldquoreconstruccedilatildeo da naturezardquo pensada por Bloch Jonas afirma que

[] por causa do seu ecircxito bioloacutegico e do seu crescimento irresistiacutevel a humanidade se vecirc forccedilada a adicionar produtos quiacutemicos agrave camada produtiva da crosta terrestre [] As tecnologias agraacuterias de maximizaccedilatildeo tecircm impactos cumulativos sobre a natureza que mal comeccedilaram a revelar-se em acircmbito local por exemplo na poluiccedilatildeo quiacutemica dos recursos hiacutedricos e das aacuteguas costeiras (para o que contribuem tambeacutem as induacutestrias) com efeitos nocivos transmitidos pela cadeia alimentar A salinizaccedilatildeo dos solos pela irrigaccedilatildeo constante a erosatildeo provocada pela aragem dos campos [] (JONAS 2006 p 302)

Historicamente eacute sabido que a proposta da eacutetica jonasiana deu cabida a muitos movimentos ecologistas no final do seacuteculo passado inclusive orientando as diretrizes do Partido Verde na Alemanha a partir dos anos noventa Mas tambeacutem eacute fato que Jonas ao duvidar das apostas nas tecnologias modernas com o uso de fertilizantes agrotoacutexicos e o cultivo da monocultura para o crescimento a qualquer custo tambeacutem coloca em crise os ideais surgidos na Revoluccedilatildeo Verde Nesse mesmo sentido quando indagado sobre a questatildeo socioambiental e do progresso na agricultura familiar e no agronegoacutecio o entrevistado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu argumenta

Tanto os agricultores familiares precisam ainda lidar com a questatildeo socioambiental como tambeacutem as empresas que estatildeo no municiacutepio Haacute empresas que trabalhavam com a pulverizaccedilatildeo aeacuterea atraveacutes de aviotildees e envenenaram rios plantaccedilotildees houve mortandade de peixes e com isso foram feitas denuacutencias ao IDEMA ndash que eacute o oacutergatildeo de meio ambiente estadual ao IBAMA Tecircm empresas que foram multadas em vaacuterios milhotildees de reais e estatildeo procurando se adequar ao meio ambiente para prejudicar menos Tambeacutem podemos abordar a questatildeo do progresso cientiacutefico (Entrevistado A)

A visatildeo de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico aliada ao desenvolvimento presente na modernidade acaba mascarando os efeitos desastrosos da tecnificaccedilatildeo em escala planetaacuteria O discurso de um crescente bem-estar (tanto social quanto econocircmico) faz-nos acreditar que soacute existe uma uacutenica via a ser seguida que eacute a do desenvolvimento Poreacutem essa falsa sensaccedilatildeo eclipsa o pensar que questiona a teacutecnica e a sua relaccedilatildeo com a sociedade na atualidade

Ainda dentro da ameaccedila do ideal baconiano exposto por Jonas outro aspecto relevante e que merece destaque aqui eacute a questatildeo da dominaccedilatildeo da natureza a partir da teacutecnica moderna Jonas (2006 p 236) considera que na ldquodialeacutetica do poder sobre a natureza e a compulsatildeo de exercecirc-lardquo o poder tornou-se crucial nesta relaccedilatildeo Assim ele afirma

A foacutermula baconiana afirma que saber eacute poder Mas eacute o proacuteprio programa baconiano que no aacutepice do triunfo revela-se insuficiente com a sua contradiccedilatildeo intriacutenseca ou seja o descontrole sobre si mesmo mostrando-se incapaz de proteger o homem de si mesmo e a natureza do homem (2006 p 236)

A partir desta dialeacutetica estabelecida entre poder teacutecnica moderna e sua relaccedilatildeo com o homem e a proacutepria natureza Jonas afirma que tanto o homem quanto a natureza precisam de proteccedilatildeo quando se pensa na magnitude do poder que o progresso cientiacutefico alcanccedilou Pensamento semelhante jaacute havia sido

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

258

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

propagado tambeacutem por Marcuse (1982) quando nos anos sessenta do seacuteculo passado afirmava a unidimensionalidade da condiccedilatildeo humana advinda da teacutecnica moderna Esse poder eacute caracterizado pela necessidade do uso crescente da teacutecnica conduzindo o homem a uma incapacidade de frear o contiacutenuo progresso muito embora ele (o homem) insista em acreditar que a natureza eacute apenas um objeto de exploraccedilatildeo e estaacute disponiacutevel para atender meramente agrave sua vontade

Aleacutem desta problemaacutetica do progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico colocado por Jonas podemos tambeacutem fazer uma relaccedilatildeo entre as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade e o municiacutepio de Ipanguaccedilu Tal como jaacute salientamos anteriormente o primeiro aspecto a destacar desde a eacutetica jonasiana eacute o dever do homem perante a biosfera como dever responsaacutevel garantindo tanto a preservaccedilatildeo do presente quanto do futuro da humanidade e da natureza Portanto neste aspecto haveriacuteamos de indagar ateacute que ponto a agricultura familiar na regiatildeo de Ipanguaccedilu torna vaacutelido esse dever e se o mesmo procede com o agronegoacutecio Como dito anteriormente o agronegoacutecio visa agrave monocultura e agrave modernizaccedilatildeo da agricultura ou seja as atividades agriacutecolas satildeo baseadas no controle teacutecnico da terra gerando uma maior produccedilatildeo que garante a exportaccedilatildeo e o investimento no mercado interno visando ao lucro Do outro lado estaacute a agricultura familiar tendo como principal caracteriacutestica o cultivo de subsistecircncia Podemos observar que no primeiro exemplo a natureza eacute vista como um objeto de lucro enquanto que no segundo ela eacute vista como um ldquoobjetordquo de responsabilidade E eacute no contexto do segundo exemplo que se insere o sentido do ldquodever serrdquo tal como observa Jonas Poreacutem o que ocorre eacute que na atualidade as atividades desenvolvidas pelas multinacionais do agronegoacutecio em Ipanguaccedilu eacute que vecircm merecendo lugar de destaque no cenaacuterio das poliacuteticas puacuteblicas locais

Consideraccedilotildees Finais

Do exposto ateacute aqui fica expliacutecito que eacute necessaacuterio um olhar criacutetico sobre a problemaacutetica existente do paradigma cientiacutefico e tecnoloacutegico presente na modernidade que impele tudo ao progresso e ao desenvolvimento Do mesmo modo tambeacutem eacute preciso refletir sobre como tratamos a realidade e o contexto cultural local visto que natildeo podem ser marginalizados em prol do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico e econocircmico global Observando o sentido do desenvolvimento neste contexto Lisboa argumenta

O desenvolvimento comporta em si mesmo o subdesenvolvimento O padratildeo mimeacutetico do desenvolvimento fundado no estilo ocidental de vida com altos niacuteveis de consumo e desperdiacutecio tem cegado os povos do terceiro mundo os impedindo de se encontrar com sua identidade Ora um povo privado de sua identidade natildeo eacute capaz de se autodeterminar (LISBOA 1996 p 7)

Apesar de a instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo de Ipanguaccedilu ter reduzido a diversidade da regiatildeo atraveacutes do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico o pouco que haacute da praacutetica da agricultura familiar ainda insiste em preservar a relaccedilatildeo essencial com a terra e com tradiccedilotildees culturais Nela se vecirc refletido o princiacutepio eacutetico da responsabilidade de Hans Jonas onde haacute a preocupaccedilatildeo do cuidado com o lugar onde vivem para que as futuras geraccedilotildees possam viver de forma sustentaacutevel Na agricultura familiar tambeacutem se torna visiacutevel a temeridade e a relaccedilatildeo do ser teacutecnico com a prudecircncia onde os valores estatildeo na biosfera e natildeo na utilidade do fazer antropocecircntrico e egoiacutesta da condiccedilatildeo humana de estar no mundo

Insistir na permanecircncia desta praacutetica eacute insistir na participaccedilatildeo direta ativa e democraacutetica dos agricultores na formulaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e nos projetos voltados para a agricultura Pois se no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia tambeacutem estaacute inserida a dimensatildeo social entatildeo a implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia deve ser decidida pelos atores sociais nela implicados (MIRANDA 2012 p 181-182) Dessa forma eacute no espaccedilo puacuteblico de debate com a populaccedilatildeo diretamente afetada pelas implementaccedilotildees tecnocientiacuteficas que construiacutemos esta praacutetica democraacutetica e participativa frente agrave ciecircncia e agrave tecnologia eliminando assim a violecircncia contra a cultura local tal como situa Shiva

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

259

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

O primeiro plano da violecircncia desencadeada contra os sistemas locais de saber eacute natildeo consideraacute-los um saber A invisibilidade eacute a primeira razatildeo pela qual os sistemas locais entram em colapso antes de serem testados e comprovados pelo confronto com o saber dominante do Ocidente A proacutepria distacircncia elimina os sistemas locais da percepccedilatildeo Quando o saber local aparece de fato no campo da visatildeo globalizadora fazem com que desapareccedila negando-lhe o status de um saber sistemaacutetico e atribuindo-lhe os adjetivos de primitivo e anticientiacutefico (SHIVA 2003 p 22-23)

Portanto tal como ensina Shiva para que haja inclusatildeo e um processo democraacutetico na participaccedilatildeo puacuteblica voltada para a ciecircncia e para a tecnologia eacute preciso que a visatildeo globalizante da tecnificaccedilatildeo e da cientifizaccedilatildeo natildeo anule o conhecimento local com a justificativa de que eles natildeo satildeo cientiacuteficos O saber local e as praacuteticas culturais dos agricultores devem ser levados em consideraccedilatildeo nesses processos de implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de garantir o empoderamento dos atores sociais neles implicados

Ora que liccedilotildees podemos extrair destas constataccedilotildees se vincularmos ao agir eacutetico Agrave luz das teses apresentadas por Hans Jonas apontamos alguns caminhos (i) Que eacute necessaacuterio pensar numa eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica e instrumental abrangendo uma nova dimensatildeo a responsabilidade (ii) Que tal modelo de eacutetica seja capaz de resgatar o conceito de temeridade e a relaccedilatildeo da teacutecnica natildeo somente com a eficiecircncia mas tambeacutem com a prudecircncia (iii) Que eacute fundamental retomar o sentido originaacuterio da eacutetica como cuidado o cuidar do lugar onde se vive (BOFF 1999 MIRANDA 2012)

Em outros termos o questionamento diante da teacutecnica e da ciecircncia levando em consideraccedilatildeo o acircmbito da eacutetica e das poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode estar inserido meramente na dimensatildeo instrumental e antropoloacutegica Trata-se antes de tudo de uma fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da natureza e da condiccedilatildeo humana levando em conta o princiacutepio responsabilidade definido pela eacutetica jonasiana

A justificativa de uma tal eacutetica que natildeo mais se restringe ao terreno imediatamente intersubjetivo da contemporaneidade deve estender-se ateacute a metafiacutesica pois soacute ela permite que se pergunte por que afinal homens devem estar no mundo portanto por que o imperativo incondicional destina-se a assegurar-lhes a existecircncia no futuro A aventura da tecnologia impotildee com seus riscos extremos o risco da reflexatildeo extrema (JONAS 2006 p 22)

Desta forma e diante da insuficiecircncia constatada por Jonas da eacutetica tradicional em propor saiacutedas frente aos novos dilemas eacuteticos pautados pela sociedade tecnocientiacutefica eacute proposta deste estudo pensar um novo agir humano baseado na responsabilidade inclusive no acircmbito da implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de pensar saiacutedas que sejam capazes de ultrapassar as barreiras do discurso desenvolvimentista e por conseguinte determinista da tecnologia e da neutralidade cientiacutefica que ainda persistem e insistem em orientar as praacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na sociedade atual Afinal como diz Miranda com base nos estudos de Jasanoff (1995)

a ciecircncia deveria ter uma funccedilatildeo poliacutetica na medida em que tambeacutem avalia e revisa o estado do conhecimento cientiacutefico e sua aplicabilidade praacutetica Assim diante de programas de controle ambiental por exemplo mais que simplesmente aplicar certo tipo de conhecimento cientiacutefico aparentemente desinteressado neutro o papel da ciecircncia deveria ser tambeacutem eacutetico-poliacutetico no sentido de avaliar suas implicaccedilotildees sociais poliacuteticas culturais etc (MIRANDA 2012 p 181)

Em suma a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no municiacutepio de Ipanguaccedilu ensina-nos que no cenaacuterio da instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo impulsionadas por poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas supostamente de cunho desenvolvimentista e que correspondem ao ideal progressista cujo agir eacute meramente utilitaacuterio e de exploraccedilatildeo da natureza visando cada vez mais ao lucro a eacutetica da responsabilidade pode ser a criacutetica e o

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

260

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

norte de uma nova forma de agir Desde sua criacutetica tambeacutem eacute possiacutevel formular poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas que levem em conta os atores sociais nelas implicados tornando o processo democraacutetico e natildeo somente tecnocraacutetico Por outro lado e considerando o cenaacuterio da agricultura familiar e dos agricultores que ali vivem e lidam com a terra a eacutetica da responsabilidade surge como forma de corroborar com suas praacuteticas como a accedilatildeo eacutetica que visa ao cuidado com o lugar onde vivem pois eles (os agricultores) natildeo satildeo apenas ldquodonosrdquo da terra mas ocupam e essencializam a terra atraveacutes da relaccedilatildeo de cuidado e de prudecircncia no ato de cultivar a terra

Eacute a partir desta constataccedilatildeo que apresentamos a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas como uma eacutetica possiacutevel de ser aplicada nesse contexto de aparente dualidade entre a agricultura familiar e o agronegoacutecio Levando em conta as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade como o conceito da responsabilidade e do ideal utoacutepico do progresso cientiacutefico tecnoloacutegico a relaccedilatildeo com o meio ambiente e com a terra concluiacutemos que urge pensar sua aplicaccedilatildeo tambeacutem no campo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas A sua utilizaccedilatildeo no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia torna-se necessaacuteria no atual contexto da modernizaccedilatildeo em que estatildeo submetidos grupos sociais comunidades e povos inteiros E ainda que guardados seus devidos limites (MIRANDA 2012 p 143) a responsabilidade eacute um princiacutepio eacutetico que pode contribuir para nortear as accedilotildees tecnocientiacuteficas rumo agrave uma sociedade mais sustentaacutevel e equilibrada

Referecircncias

AGEcircNCIA Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba (AESA) Comitecircs Piranhas-Accedilu apresentaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwaesapbgovbrcomitespiranhasacu Acesso em 23 ago 2015

ALBANO Gleydson SAacute Alcindo Poliacuteticas puacuteblicas e globalizaccedilatildeo da agricultura no Vale do Accedilu-RN Revista de Geografia Recife UFPE ndash DCGNAPA v 25 n 2 maiago 2008

APEL Karl-Otto Estudos de moral moderna Petroacutepolis Vozes 2000

BECK Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Traduccedilatildeo original do alematildeo de Sebastiatildeo Nascimento Satildeo Paulo Editora 34 2010

BOFF Leonardo Saber cuidar eacutetica do humano Petroacutepolis Vozes 1999

HEIDEGGER Martin A questatildeo da teacutecnica Ensaios e conferecircncias I Traduzido por Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan Fode Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes Braganccedila Paulista Ed Universitaacuteria Satildeo Francisco 2012

HERRERA Amiacutelcar O Los determinantes sociales de la poliacutetica cientiacutefica en Ameacuterica Latina Poliacutetica cientiacutefica expliacutecita y poliacutetica cientiacutefica impliacutecita Argentina Redes v 2 1995

INSTITUTO Brasileiro de Geografia E Estatiacutestica (IBGE) Censo Demograacutefico 2000 sinopse ndash Rio Grande do Norte ndash Ipanguaccedilu Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtras temasphplang=ampcodmun=240470ampidtema=1ampsearch=rio-grande-do-norte|ipanguacu|censo-demografico-2010-sinopse- Acesso em 14 ago 2015

JASANOFF S Procedural choices in regulatory science Technology in Society 17 1995 httpsdoiorg1010160160-791x(95)00011-f

JONAS Hans O princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Rio de Janeiro Contraponto 2006

JONAS Hans Teacutecnica medicina y eacutetica Sobre la praacutectica del principio de la responsabilidad Barcelona Paidoacutes 1997

LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001

LISBOA Armando de Melo Desenvolvimento uma ideia subdesenvolvida Cadernos do CEAS Salvador n 161 1996

MARCUSE Herbert A ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional Rio de Janeiro Jorge Zahar 1982

MIRANDA A L iquestUna eacutetica para la civilizacioacuten tecnoloacutegica Posibilidades y liacutemites del principio de la responsabilidad de Hans Jonas AlemanhaEspanha Lap LambertEAE 2012

MORIN E Ciecircncia com consciecircncia Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005

SERRES Michel Le contrat natural Paris Flammarion 1992

SHIVA Vandana AZEVEDO Dinah de Abreu Monoculturas da mente perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia Satildeo Paulo Gaia 2003

SIQUEIRA JE Hans Jonas e a eacutetica da responsabilidade Mundo Sauacutede 1999

WEBCARTA Mapa do Rio Grande do Norte Disponiacutevel em webcartanetcartamapaphpid=244amplg=pt Acesso em 26 ago 2015

WOLIN Richard Heideggerrsquos children Hannah Arendt Karl Loumlwith Hans Jonas y Herbert Marcuse Princepton Princepton University Press 2001

ZANCANARO L O conceito de responsabilidade em Hans Jonas CampinasSP Ed UNICAMP 1998

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Page 13: O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail: angelamiranda@ect@ufrn.br. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

256

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

Pelos dados apresentados na tabela observa-se o baixo nuacutemero de projetos voltados para o pequeno agricultor na regiatildeo de Ipanguaccedilu Ainda falta uma poliacutetica puacuteblica que realmente integre o agricultor familiar no cenaacuterio da agricultura modernizada e que leve em conta a participaccedilatildeo popular de forma democraacutetica na sua formulaccedilatildeo Quando questionado sobre o papel da EMATER o mesmo agricultor afirma

A EMATER vem se arrastando a passos de tartaruga Eacute muito devagar Natildeo sei se eacute falta de incentivo dos governantes (que eu acredito que seja) porque tem os teacutecnicos que possuem vontade de colocar as coisas para funcionar mas por conta do recurso natildeo tem como eles colocarem para funcionar (Entrevistado B)

A regiatildeo de Ipanguaccedilu e a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas

Aleacutem do que jaacute observamos ateacute aqui que outros aspectos podemos extrair do contexto apresentado sobre a implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na regiatildeo de Ipanguaccedilu e a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da responsabilidade

Jaacute introduzimos este aspecto na parte anterior deste trabalho mas vale a pena aprofundar um pouco mais a criacutetica ao progresso tecida por Jonas (2006) ao que ele denomina de ideal baconiano e a relaccedilatildeo com o ideal de progresso presente na regiatildeo de Ipanguaccedilu Mais especificamente trata-se de evidenciar a relaccedilatildeo da dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica

Como visto anteriormente a tese principal defendida por Hans Jonas eacute que a teacutecnica moderna se converte em ameaccedila natildeo apenas fiacutesica mas tambeacutem ideoloacutegica na medida em que propaga o ideal de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico a qualquer custo o que segundo ele representa um perigo para toda a humanidade Sobre este perigo ele argumenta

O perigo decorre da dimensatildeo excessiva da civilizaccedilatildeo teacutecnico-industrial baseada nas ciecircncias naturais O que chamamos de programa baconiano ndash ou seja colocar o saber a serviccedilo da dominaccedilatildeo da natureza e utilizaacute-la para melhorar a sorte da humanidade ndash natildeo contou desde as origens na sua execuccedilatildeo capitalista com a racionalidade e a retidatildeo que lhe seriam adequadas poreacutem sua dinacircmica de ecircxito que conduz obrigatoriamente aos excessos de produccedilatildeo e consumo teria subjugado qualquer sociedade considerando-se a breve escala de tempo dos objetivos humanos e a imprevisibilidade real das dimensotildees do ecircxito (uma vez que nenhuma sociedade se compotildee de saacutebios) (JONAS 2006 p 235)

Jonas atenta aos perigos existentes na civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica e utilitaacuteria onde partimos do pressuposto de que a teacutecnica moderna eacute indispensaacutevel para a sociedade e que sobretudo eacute nela que encontraremos o triunfo (o que o filoacutesofo denomina de ecircxito) Nessa perspectiva ele afirma que ldquoa ameaccedila de cataacutestrofe do ideal baconiano de dominaccedilatildeo da natureza por meio da teacutecnica reside portanto na magnitude do seu ecircxito Esse ecircxito tem dois aspectos econocircmico e bioloacutegicordquo (2006 p 235) O ecircxito econocircmico resultaria no esgotamento dos recursos naturais atraveacutes do aumento da produccedilatildeo de bens e diminuiccedilatildeo do dispecircndio do trabalho humano enquanto que o bioloacutegico consistiria em um aumento exponencial da populaccedilatildeo

Dito isso a partir da ambivalecircncia do ecircxito presente no ideal baconiano podemos fazer um contraponto com a implementaccedilatildeo das poliacuteticas voltadas para a agricultura na regiatildeo de Ipanguaccedilu Natildeo estariam inseridas nesta loacutegica as poliacuteticas puacuteblicas que surgiram para impulsionar a Revoluccedilatildeo Verde Nesse contexto percebemos um forte crescimento de produtividade na agricultura atraveacutes da utilizaccedilatildeo de novas tecnologias oriundas da ideia de modernizar o campo aumentando assim a visibilidade das empresas multinacionais e diminuindo as atividades de subsistecircncia (ldquoecircxito econocircmicordquo) Do mesmo modo constatamos o aumento populacional em certas comunidades como mostrado anteriormente onde antes

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

257

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

havia 50 moradores apoacutes a instalaccedilatildeo das multinacionais a populaccedilatildeo da comunidade aumentou para 500 moradores (ldquoecircxito bioloacutegicordquo) Isso posto e respondendo agrave pergunta anterior podemos afirmar que de certo modo essas poliacuteticas que surgem com vistas agrave modernizaccedilatildeo do campo estatildeo inseridas nesta ambiguidade do ecircxito colocada por Hans Jonas quando pensamos no ideal baconiano de um lado o econocircmico com a maior produtividade e menor dispecircndio do trabalho do outro o bioloacutegico com o aumento populacional

Outra relaccedilatildeo que podemos evidenciar levando em conta este cenaacuterio utilitaacuterio advindo da modernizaccedilatildeo da agricultura eacute a questatildeo da alimentaccedilatildeo Citando a utoacutepica ldquoreconstruccedilatildeo da naturezardquo pensada por Bloch Jonas afirma que

[] por causa do seu ecircxito bioloacutegico e do seu crescimento irresistiacutevel a humanidade se vecirc forccedilada a adicionar produtos quiacutemicos agrave camada produtiva da crosta terrestre [] As tecnologias agraacuterias de maximizaccedilatildeo tecircm impactos cumulativos sobre a natureza que mal comeccedilaram a revelar-se em acircmbito local por exemplo na poluiccedilatildeo quiacutemica dos recursos hiacutedricos e das aacuteguas costeiras (para o que contribuem tambeacutem as induacutestrias) com efeitos nocivos transmitidos pela cadeia alimentar A salinizaccedilatildeo dos solos pela irrigaccedilatildeo constante a erosatildeo provocada pela aragem dos campos [] (JONAS 2006 p 302)

Historicamente eacute sabido que a proposta da eacutetica jonasiana deu cabida a muitos movimentos ecologistas no final do seacuteculo passado inclusive orientando as diretrizes do Partido Verde na Alemanha a partir dos anos noventa Mas tambeacutem eacute fato que Jonas ao duvidar das apostas nas tecnologias modernas com o uso de fertilizantes agrotoacutexicos e o cultivo da monocultura para o crescimento a qualquer custo tambeacutem coloca em crise os ideais surgidos na Revoluccedilatildeo Verde Nesse mesmo sentido quando indagado sobre a questatildeo socioambiental e do progresso na agricultura familiar e no agronegoacutecio o entrevistado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu argumenta

Tanto os agricultores familiares precisam ainda lidar com a questatildeo socioambiental como tambeacutem as empresas que estatildeo no municiacutepio Haacute empresas que trabalhavam com a pulverizaccedilatildeo aeacuterea atraveacutes de aviotildees e envenenaram rios plantaccedilotildees houve mortandade de peixes e com isso foram feitas denuacutencias ao IDEMA ndash que eacute o oacutergatildeo de meio ambiente estadual ao IBAMA Tecircm empresas que foram multadas em vaacuterios milhotildees de reais e estatildeo procurando se adequar ao meio ambiente para prejudicar menos Tambeacutem podemos abordar a questatildeo do progresso cientiacutefico (Entrevistado A)

A visatildeo de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico aliada ao desenvolvimento presente na modernidade acaba mascarando os efeitos desastrosos da tecnificaccedilatildeo em escala planetaacuteria O discurso de um crescente bem-estar (tanto social quanto econocircmico) faz-nos acreditar que soacute existe uma uacutenica via a ser seguida que eacute a do desenvolvimento Poreacutem essa falsa sensaccedilatildeo eclipsa o pensar que questiona a teacutecnica e a sua relaccedilatildeo com a sociedade na atualidade

Ainda dentro da ameaccedila do ideal baconiano exposto por Jonas outro aspecto relevante e que merece destaque aqui eacute a questatildeo da dominaccedilatildeo da natureza a partir da teacutecnica moderna Jonas (2006 p 236) considera que na ldquodialeacutetica do poder sobre a natureza e a compulsatildeo de exercecirc-lardquo o poder tornou-se crucial nesta relaccedilatildeo Assim ele afirma

A foacutermula baconiana afirma que saber eacute poder Mas eacute o proacuteprio programa baconiano que no aacutepice do triunfo revela-se insuficiente com a sua contradiccedilatildeo intriacutenseca ou seja o descontrole sobre si mesmo mostrando-se incapaz de proteger o homem de si mesmo e a natureza do homem (2006 p 236)

A partir desta dialeacutetica estabelecida entre poder teacutecnica moderna e sua relaccedilatildeo com o homem e a proacutepria natureza Jonas afirma que tanto o homem quanto a natureza precisam de proteccedilatildeo quando se pensa na magnitude do poder que o progresso cientiacutefico alcanccedilou Pensamento semelhante jaacute havia sido

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

258

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

propagado tambeacutem por Marcuse (1982) quando nos anos sessenta do seacuteculo passado afirmava a unidimensionalidade da condiccedilatildeo humana advinda da teacutecnica moderna Esse poder eacute caracterizado pela necessidade do uso crescente da teacutecnica conduzindo o homem a uma incapacidade de frear o contiacutenuo progresso muito embora ele (o homem) insista em acreditar que a natureza eacute apenas um objeto de exploraccedilatildeo e estaacute disponiacutevel para atender meramente agrave sua vontade

Aleacutem desta problemaacutetica do progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico colocado por Jonas podemos tambeacutem fazer uma relaccedilatildeo entre as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade e o municiacutepio de Ipanguaccedilu Tal como jaacute salientamos anteriormente o primeiro aspecto a destacar desde a eacutetica jonasiana eacute o dever do homem perante a biosfera como dever responsaacutevel garantindo tanto a preservaccedilatildeo do presente quanto do futuro da humanidade e da natureza Portanto neste aspecto haveriacuteamos de indagar ateacute que ponto a agricultura familiar na regiatildeo de Ipanguaccedilu torna vaacutelido esse dever e se o mesmo procede com o agronegoacutecio Como dito anteriormente o agronegoacutecio visa agrave monocultura e agrave modernizaccedilatildeo da agricultura ou seja as atividades agriacutecolas satildeo baseadas no controle teacutecnico da terra gerando uma maior produccedilatildeo que garante a exportaccedilatildeo e o investimento no mercado interno visando ao lucro Do outro lado estaacute a agricultura familiar tendo como principal caracteriacutestica o cultivo de subsistecircncia Podemos observar que no primeiro exemplo a natureza eacute vista como um objeto de lucro enquanto que no segundo ela eacute vista como um ldquoobjetordquo de responsabilidade E eacute no contexto do segundo exemplo que se insere o sentido do ldquodever serrdquo tal como observa Jonas Poreacutem o que ocorre eacute que na atualidade as atividades desenvolvidas pelas multinacionais do agronegoacutecio em Ipanguaccedilu eacute que vecircm merecendo lugar de destaque no cenaacuterio das poliacuteticas puacuteblicas locais

Consideraccedilotildees Finais

Do exposto ateacute aqui fica expliacutecito que eacute necessaacuterio um olhar criacutetico sobre a problemaacutetica existente do paradigma cientiacutefico e tecnoloacutegico presente na modernidade que impele tudo ao progresso e ao desenvolvimento Do mesmo modo tambeacutem eacute preciso refletir sobre como tratamos a realidade e o contexto cultural local visto que natildeo podem ser marginalizados em prol do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico e econocircmico global Observando o sentido do desenvolvimento neste contexto Lisboa argumenta

O desenvolvimento comporta em si mesmo o subdesenvolvimento O padratildeo mimeacutetico do desenvolvimento fundado no estilo ocidental de vida com altos niacuteveis de consumo e desperdiacutecio tem cegado os povos do terceiro mundo os impedindo de se encontrar com sua identidade Ora um povo privado de sua identidade natildeo eacute capaz de se autodeterminar (LISBOA 1996 p 7)

Apesar de a instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo de Ipanguaccedilu ter reduzido a diversidade da regiatildeo atraveacutes do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico o pouco que haacute da praacutetica da agricultura familiar ainda insiste em preservar a relaccedilatildeo essencial com a terra e com tradiccedilotildees culturais Nela se vecirc refletido o princiacutepio eacutetico da responsabilidade de Hans Jonas onde haacute a preocupaccedilatildeo do cuidado com o lugar onde vivem para que as futuras geraccedilotildees possam viver de forma sustentaacutevel Na agricultura familiar tambeacutem se torna visiacutevel a temeridade e a relaccedilatildeo do ser teacutecnico com a prudecircncia onde os valores estatildeo na biosfera e natildeo na utilidade do fazer antropocecircntrico e egoiacutesta da condiccedilatildeo humana de estar no mundo

Insistir na permanecircncia desta praacutetica eacute insistir na participaccedilatildeo direta ativa e democraacutetica dos agricultores na formulaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e nos projetos voltados para a agricultura Pois se no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia tambeacutem estaacute inserida a dimensatildeo social entatildeo a implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia deve ser decidida pelos atores sociais nela implicados (MIRANDA 2012 p 181-182) Dessa forma eacute no espaccedilo puacuteblico de debate com a populaccedilatildeo diretamente afetada pelas implementaccedilotildees tecnocientiacuteficas que construiacutemos esta praacutetica democraacutetica e participativa frente agrave ciecircncia e agrave tecnologia eliminando assim a violecircncia contra a cultura local tal como situa Shiva

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

259

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

O primeiro plano da violecircncia desencadeada contra os sistemas locais de saber eacute natildeo consideraacute-los um saber A invisibilidade eacute a primeira razatildeo pela qual os sistemas locais entram em colapso antes de serem testados e comprovados pelo confronto com o saber dominante do Ocidente A proacutepria distacircncia elimina os sistemas locais da percepccedilatildeo Quando o saber local aparece de fato no campo da visatildeo globalizadora fazem com que desapareccedila negando-lhe o status de um saber sistemaacutetico e atribuindo-lhe os adjetivos de primitivo e anticientiacutefico (SHIVA 2003 p 22-23)

Portanto tal como ensina Shiva para que haja inclusatildeo e um processo democraacutetico na participaccedilatildeo puacuteblica voltada para a ciecircncia e para a tecnologia eacute preciso que a visatildeo globalizante da tecnificaccedilatildeo e da cientifizaccedilatildeo natildeo anule o conhecimento local com a justificativa de que eles natildeo satildeo cientiacuteficos O saber local e as praacuteticas culturais dos agricultores devem ser levados em consideraccedilatildeo nesses processos de implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de garantir o empoderamento dos atores sociais neles implicados

Ora que liccedilotildees podemos extrair destas constataccedilotildees se vincularmos ao agir eacutetico Agrave luz das teses apresentadas por Hans Jonas apontamos alguns caminhos (i) Que eacute necessaacuterio pensar numa eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica e instrumental abrangendo uma nova dimensatildeo a responsabilidade (ii) Que tal modelo de eacutetica seja capaz de resgatar o conceito de temeridade e a relaccedilatildeo da teacutecnica natildeo somente com a eficiecircncia mas tambeacutem com a prudecircncia (iii) Que eacute fundamental retomar o sentido originaacuterio da eacutetica como cuidado o cuidar do lugar onde se vive (BOFF 1999 MIRANDA 2012)

Em outros termos o questionamento diante da teacutecnica e da ciecircncia levando em consideraccedilatildeo o acircmbito da eacutetica e das poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode estar inserido meramente na dimensatildeo instrumental e antropoloacutegica Trata-se antes de tudo de uma fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da natureza e da condiccedilatildeo humana levando em conta o princiacutepio responsabilidade definido pela eacutetica jonasiana

A justificativa de uma tal eacutetica que natildeo mais se restringe ao terreno imediatamente intersubjetivo da contemporaneidade deve estender-se ateacute a metafiacutesica pois soacute ela permite que se pergunte por que afinal homens devem estar no mundo portanto por que o imperativo incondicional destina-se a assegurar-lhes a existecircncia no futuro A aventura da tecnologia impotildee com seus riscos extremos o risco da reflexatildeo extrema (JONAS 2006 p 22)

Desta forma e diante da insuficiecircncia constatada por Jonas da eacutetica tradicional em propor saiacutedas frente aos novos dilemas eacuteticos pautados pela sociedade tecnocientiacutefica eacute proposta deste estudo pensar um novo agir humano baseado na responsabilidade inclusive no acircmbito da implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de pensar saiacutedas que sejam capazes de ultrapassar as barreiras do discurso desenvolvimentista e por conseguinte determinista da tecnologia e da neutralidade cientiacutefica que ainda persistem e insistem em orientar as praacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na sociedade atual Afinal como diz Miranda com base nos estudos de Jasanoff (1995)

a ciecircncia deveria ter uma funccedilatildeo poliacutetica na medida em que tambeacutem avalia e revisa o estado do conhecimento cientiacutefico e sua aplicabilidade praacutetica Assim diante de programas de controle ambiental por exemplo mais que simplesmente aplicar certo tipo de conhecimento cientiacutefico aparentemente desinteressado neutro o papel da ciecircncia deveria ser tambeacutem eacutetico-poliacutetico no sentido de avaliar suas implicaccedilotildees sociais poliacuteticas culturais etc (MIRANDA 2012 p 181)

Em suma a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no municiacutepio de Ipanguaccedilu ensina-nos que no cenaacuterio da instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo impulsionadas por poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas supostamente de cunho desenvolvimentista e que correspondem ao ideal progressista cujo agir eacute meramente utilitaacuterio e de exploraccedilatildeo da natureza visando cada vez mais ao lucro a eacutetica da responsabilidade pode ser a criacutetica e o

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

260

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

norte de uma nova forma de agir Desde sua criacutetica tambeacutem eacute possiacutevel formular poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas que levem em conta os atores sociais nelas implicados tornando o processo democraacutetico e natildeo somente tecnocraacutetico Por outro lado e considerando o cenaacuterio da agricultura familiar e dos agricultores que ali vivem e lidam com a terra a eacutetica da responsabilidade surge como forma de corroborar com suas praacuteticas como a accedilatildeo eacutetica que visa ao cuidado com o lugar onde vivem pois eles (os agricultores) natildeo satildeo apenas ldquodonosrdquo da terra mas ocupam e essencializam a terra atraveacutes da relaccedilatildeo de cuidado e de prudecircncia no ato de cultivar a terra

Eacute a partir desta constataccedilatildeo que apresentamos a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas como uma eacutetica possiacutevel de ser aplicada nesse contexto de aparente dualidade entre a agricultura familiar e o agronegoacutecio Levando em conta as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade como o conceito da responsabilidade e do ideal utoacutepico do progresso cientiacutefico tecnoloacutegico a relaccedilatildeo com o meio ambiente e com a terra concluiacutemos que urge pensar sua aplicaccedilatildeo tambeacutem no campo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas A sua utilizaccedilatildeo no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia torna-se necessaacuteria no atual contexto da modernizaccedilatildeo em que estatildeo submetidos grupos sociais comunidades e povos inteiros E ainda que guardados seus devidos limites (MIRANDA 2012 p 143) a responsabilidade eacute um princiacutepio eacutetico que pode contribuir para nortear as accedilotildees tecnocientiacuteficas rumo agrave uma sociedade mais sustentaacutevel e equilibrada

Referecircncias

AGEcircNCIA Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba (AESA) Comitecircs Piranhas-Accedilu apresentaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwaesapbgovbrcomitespiranhasacu Acesso em 23 ago 2015

ALBANO Gleydson SAacute Alcindo Poliacuteticas puacuteblicas e globalizaccedilatildeo da agricultura no Vale do Accedilu-RN Revista de Geografia Recife UFPE ndash DCGNAPA v 25 n 2 maiago 2008

APEL Karl-Otto Estudos de moral moderna Petroacutepolis Vozes 2000

BECK Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Traduccedilatildeo original do alematildeo de Sebastiatildeo Nascimento Satildeo Paulo Editora 34 2010

BOFF Leonardo Saber cuidar eacutetica do humano Petroacutepolis Vozes 1999

HEIDEGGER Martin A questatildeo da teacutecnica Ensaios e conferecircncias I Traduzido por Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan Fode Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes Braganccedila Paulista Ed Universitaacuteria Satildeo Francisco 2012

HERRERA Amiacutelcar O Los determinantes sociales de la poliacutetica cientiacutefica en Ameacuterica Latina Poliacutetica cientiacutefica expliacutecita y poliacutetica cientiacutefica impliacutecita Argentina Redes v 2 1995

INSTITUTO Brasileiro de Geografia E Estatiacutestica (IBGE) Censo Demograacutefico 2000 sinopse ndash Rio Grande do Norte ndash Ipanguaccedilu Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtras temasphplang=ampcodmun=240470ampidtema=1ampsearch=rio-grande-do-norte|ipanguacu|censo-demografico-2010-sinopse- Acesso em 14 ago 2015

JASANOFF S Procedural choices in regulatory science Technology in Society 17 1995 httpsdoiorg1010160160-791x(95)00011-f

JONAS Hans O princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Rio de Janeiro Contraponto 2006

JONAS Hans Teacutecnica medicina y eacutetica Sobre la praacutectica del principio de la responsabilidad Barcelona Paidoacutes 1997

LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001

LISBOA Armando de Melo Desenvolvimento uma ideia subdesenvolvida Cadernos do CEAS Salvador n 161 1996

MARCUSE Herbert A ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional Rio de Janeiro Jorge Zahar 1982

MIRANDA A L iquestUna eacutetica para la civilizacioacuten tecnoloacutegica Posibilidades y liacutemites del principio de la responsabilidad de Hans Jonas AlemanhaEspanha Lap LambertEAE 2012

MORIN E Ciecircncia com consciecircncia Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005

SERRES Michel Le contrat natural Paris Flammarion 1992

SHIVA Vandana AZEVEDO Dinah de Abreu Monoculturas da mente perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia Satildeo Paulo Gaia 2003

SIQUEIRA JE Hans Jonas e a eacutetica da responsabilidade Mundo Sauacutede 1999

WEBCARTA Mapa do Rio Grande do Norte Disponiacutevel em webcartanetcartamapaphpid=244amplg=pt Acesso em 26 ago 2015

WOLIN Richard Heideggerrsquos children Hannah Arendt Karl Loumlwith Hans Jonas y Herbert Marcuse Princepton Princepton University Press 2001

ZANCANARO L O conceito de responsabilidade em Hans Jonas CampinasSP Ed UNICAMP 1998

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Page 14: O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail: angelamiranda@ect@ufrn.br. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

257

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

havia 50 moradores apoacutes a instalaccedilatildeo das multinacionais a populaccedilatildeo da comunidade aumentou para 500 moradores (ldquoecircxito bioloacutegicordquo) Isso posto e respondendo agrave pergunta anterior podemos afirmar que de certo modo essas poliacuteticas que surgem com vistas agrave modernizaccedilatildeo do campo estatildeo inseridas nesta ambiguidade do ecircxito colocada por Hans Jonas quando pensamos no ideal baconiano de um lado o econocircmico com a maior produtividade e menor dispecircndio do trabalho do outro o bioloacutegico com o aumento populacional

Outra relaccedilatildeo que podemos evidenciar levando em conta este cenaacuterio utilitaacuterio advindo da modernizaccedilatildeo da agricultura eacute a questatildeo da alimentaccedilatildeo Citando a utoacutepica ldquoreconstruccedilatildeo da naturezardquo pensada por Bloch Jonas afirma que

[] por causa do seu ecircxito bioloacutegico e do seu crescimento irresistiacutevel a humanidade se vecirc forccedilada a adicionar produtos quiacutemicos agrave camada produtiva da crosta terrestre [] As tecnologias agraacuterias de maximizaccedilatildeo tecircm impactos cumulativos sobre a natureza que mal comeccedilaram a revelar-se em acircmbito local por exemplo na poluiccedilatildeo quiacutemica dos recursos hiacutedricos e das aacuteguas costeiras (para o que contribuem tambeacutem as induacutestrias) com efeitos nocivos transmitidos pela cadeia alimentar A salinizaccedilatildeo dos solos pela irrigaccedilatildeo constante a erosatildeo provocada pela aragem dos campos [] (JONAS 2006 p 302)

Historicamente eacute sabido que a proposta da eacutetica jonasiana deu cabida a muitos movimentos ecologistas no final do seacuteculo passado inclusive orientando as diretrizes do Partido Verde na Alemanha a partir dos anos noventa Mas tambeacutem eacute fato que Jonas ao duvidar das apostas nas tecnologias modernas com o uso de fertilizantes agrotoacutexicos e o cultivo da monocultura para o crescimento a qualquer custo tambeacutem coloca em crise os ideais surgidos na Revoluccedilatildeo Verde Nesse mesmo sentido quando indagado sobre a questatildeo socioambiental e do progresso na agricultura familiar e no agronegoacutecio o entrevistado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipanguaccedilu argumenta

Tanto os agricultores familiares precisam ainda lidar com a questatildeo socioambiental como tambeacutem as empresas que estatildeo no municiacutepio Haacute empresas que trabalhavam com a pulverizaccedilatildeo aeacuterea atraveacutes de aviotildees e envenenaram rios plantaccedilotildees houve mortandade de peixes e com isso foram feitas denuacutencias ao IDEMA ndash que eacute o oacutergatildeo de meio ambiente estadual ao IBAMA Tecircm empresas que foram multadas em vaacuterios milhotildees de reais e estatildeo procurando se adequar ao meio ambiente para prejudicar menos Tambeacutem podemos abordar a questatildeo do progresso cientiacutefico (Entrevistado A)

A visatildeo de progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico aliada ao desenvolvimento presente na modernidade acaba mascarando os efeitos desastrosos da tecnificaccedilatildeo em escala planetaacuteria O discurso de um crescente bem-estar (tanto social quanto econocircmico) faz-nos acreditar que soacute existe uma uacutenica via a ser seguida que eacute a do desenvolvimento Poreacutem essa falsa sensaccedilatildeo eclipsa o pensar que questiona a teacutecnica e a sua relaccedilatildeo com a sociedade na atualidade

Ainda dentro da ameaccedila do ideal baconiano exposto por Jonas outro aspecto relevante e que merece destaque aqui eacute a questatildeo da dominaccedilatildeo da natureza a partir da teacutecnica moderna Jonas (2006 p 236) considera que na ldquodialeacutetica do poder sobre a natureza e a compulsatildeo de exercecirc-lardquo o poder tornou-se crucial nesta relaccedilatildeo Assim ele afirma

A foacutermula baconiana afirma que saber eacute poder Mas eacute o proacuteprio programa baconiano que no aacutepice do triunfo revela-se insuficiente com a sua contradiccedilatildeo intriacutenseca ou seja o descontrole sobre si mesmo mostrando-se incapaz de proteger o homem de si mesmo e a natureza do homem (2006 p 236)

A partir desta dialeacutetica estabelecida entre poder teacutecnica moderna e sua relaccedilatildeo com o homem e a proacutepria natureza Jonas afirma que tanto o homem quanto a natureza precisam de proteccedilatildeo quando se pensa na magnitude do poder que o progresso cientiacutefico alcanccedilou Pensamento semelhante jaacute havia sido

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

258

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

propagado tambeacutem por Marcuse (1982) quando nos anos sessenta do seacuteculo passado afirmava a unidimensionalidade da condiccedilatildeo humana advinda da teacutecnica moderna Esse poder eacute caracterizado pela necessidade do uso crescente da teacutecnica conduzindo o homem a uma incapacidade de frear o contiacutenuo progresso muito embora ele (o homem) insista em acreditar que a natureza eacute apenas um objeto de exploraccedilatildeo e estaacute disponiacutevel para atender meramente agrave sua vontade

Aleacutem desta problemaacutetica do progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico colocado por Jonas podemos tambeacutem fazer uma relaccedilatildeo entre as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade e o municiacutepio de Ipanguaccedilu Tal como jaacute salientamos anteriormente o primeiro aspecto a destacar desde a eacutetica jonasiana eacute o dever do homem perante a biosfera como dever responsaacutevel garantindo tanto a preservaccedilatildeo do presente quanto do futuro da humanidade e da natureza Portanto neste aspecto haveriacuteamos de indagar ateacute que ponto a agricultura familiar na regiatildeo de Ipanguaccedilu torna vaacutelido esse dever e se o mesmo procede com o agronegoacutecio Como dito anteriormente o agronegoacutecio visa agrave monocultura e agrave modernizaccedilatildeo da agricultura ou seja as atividades agriacutecolas satildeo baseadas no controle teacutecnico da terra gerando uma maior produccedilatildeo que garante a exportaccedilatildeo e o investimento no mercado interno visando ao lucro Do outro lado estaacute a agricultura familiar tendo como principal caracteriacutestica o cultivo de subsistecircncia Podemos observar que no primeiro exemplo a natureza eacute vista como um objeto de lucro enquanto que no segundo ela eacute vista como um ldquoobjetordquo de responsabilidade E eacute no contexto do segundo exemplo que se insere o sentido do ldquodever serrdquo tal como observa Jonas Poreacutem o que ocorre eacute que na atualidade as atividades desenvolvidas pelas multinacionais do agronegoacutecio em Ipanguaccedilu eacute que vecircm merecendo lugar de destaque no cenaacuterio das poliacuteticas puacuteblicas locais

Consideraccedilotildees Finais

Do exposto ateacute aqui fica expliacutecito que eacute necessaacuterio um olhar criacutetico sobre a problemaacutetica existente do paradigma cientiacutefico e tecnoloacutegico presente na modernidade que impele tudo ao progresso e ao desenvolvimento Do mesmo modo tambeacutem eacute preciso refletir sobre como tratamos a realidade e o contexto cultural local visto que natildeo podem ser marginalizados em prol do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico e econocircmico global Observando o sentido do desenvolvimento neste contexto Lisboa argumenta

O desenvolvimento comporta em si mesmo o subdesenvolvimento O padratildeo mimeacutetico do desenvolvimento fundado no estilo ocidental de vida com altos niacuteveis de consumo e desperdiacutecio tem cegado os povos do terceiro mundo os impedindo de se encontrar com sua identidade Ora um povo privado de sua identidade natildeo eacute capaz de se autodeterminar (LISBOA 1996 p 7)

Apesar de a instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo de Ipanguaccedilu ter reduzido a diversidade da regiatildeo atraveacutes do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico o pouco que haacute da praacutetica da agricultura familiar ainda insiste em preservar a relaccedilatildeo essencial com a terra e com tradiccedilotildees culturais Nela se vecirc refletido o princiacutepio eacutetico da responsabilidade de Hans Jonas onde haacute a preocupaccedilatildeo do cuidado com o lugar onde vivem para que as futuras geraccedilotildees possam viver de forma sustentaacutevel Na agricultura familiar tambeacutem se torna visiacutevel a temeridade e a relaccedilatildeo do ser teacutecnico com a prudecircncia onde os valores estatildeo na biosfera e natildeo na utilidade do fazer antropocecircntrico e egoiacutesta da condiccedilatildeo humana de estar no mundo

Insistir na permanecircncia desta praacutetica eacute insistir na participaccedilatildeo direta ativa e democraacutetica dos agricultores na formulaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e nos projetos voltados para a agricultura Pois se no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia tambeacutem estaacute inserida a dimensatildeo social entatildeo a implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia deve ser decidida pelos atores sociais nela implicados (MIRANDA 2012 p 181-182) Dessa forma eacute no espaccedilo puacuteblico de debate com a populaccedilatildeo diretamente afetada pelas implementaccedilotildees tecnocientiacuteficas que construiacutemos esta praacutetica democraacutetica e participativa frente agrave ciecircncia e agrave tecnologia eliminando assim a violecircncia contra a cultura local tal como situa Shiva

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

259

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

O primeiro plano da violecircncia desencadeada contra os sistemas locais de saber eacute natildeo consideraacute-los um saber A invisibilidade eacute a primeira razatildeo pela qual os sistemas locais entram em colapso antes de serem testados e comprovados pelo confronto com o saber dominante do Ocidente A proacutepria distacircncia elimina os sistemas locais da percepccedilatildeo Quando o saber local aparece de fato no campo da visatildeo globalizadora fazem com que desapareccedila negando-lhe o status de um saber sistemaacutetico e atribuindo-lhe os adjetivos de primitivo e anticientiacutefico (SHIVA 2003 p 22-23)

Portanto tal como ensina Shiva para que haja inclusatildeo e um processo democraacutetico na participaccedilatildeo puacuteblica voltada para a ciecircncia e para a tecnologia eacute preciso que a visatildeo globalizante da tecnificaccedilatildeo e da cientifizaccedilatildeo natildeo anule o conhecimento local com a justificativa de que eles natildeo satildeo cientiacuteficos O saber local e as praacuteticas culturais dos agricultores devem ser levados em consideraccedilatildeo nesses processos de implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de garantir o empoderamento dos atores sociais neles implicados

Ora que liccedilotildees podemos extrair destas constataccedilotildees se vincularmos ao agir eacutetico Agrave luz das teses apresentadas por Hans Jonas apontamos alguns caminhos (i) Que eacute necessaacuterio pensar numa eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica e instrumental abrangendo uma nova dimensatildeo a responsabilidade (ii) Que tal modelo de eacutetica seja capaz de resgatar o conceito de temeridade e a relaccedilatildeo da teacutecnica natildeo somente com a eficiecircncia mas tambeacutem com a prudecircncia (iii) Que eacute fundamental retomar o sentido originaacuterio da eacutetica como cuidado o cuidar do lugar onde se vive (BOFF 1999 MIRANDA 2012)

Em outros termos o questionamento diante da teacutecnica e da ciecircncia levando em consideraccedilatildeo o acircmbito da eacutetica e das poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode estar inserido meramente na dimensatildeo instrumental e antropoloacutegica Trata-se antes de tudo de uma fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da natureza e da condiccedilatildeo humana levando em conta o princiacutepio responsabilidade definido pela eacutetica jonasiana

A justificativa de uma tal eacutetica que natildeo mais se restringe ao terreno imediatamente intersubjetivo da contemporaneidade deve estender-se ateacute a metafiacutesica pois soacute ela permite que se pergunte por que afinal homens devem estar no mundo portanto por que o imperativo incondicional destina-se a assegurar-lhes a existecircncia no futuro A aventura da tecnologia impotildee com seus riscos extremos o risco da reflexatildeo extrema (JONAS 2006 p 22)

Desta forma e diante da insuficiecircncia constatada por Jonas da eacutetica tradicional em propor saiacutedas frente aos novos dilemas eacuteticos pautados pela sociedade tecnocientiacutefica eacute proposta deste estudo pensar um novo agir humano baseado na responsabilidade inclusive no acircmbito da implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de pensar saiacutedas que sejam capazes de ultrapassar as barreiras do discurso desenvolvimentista e por conseguinte determinista da tecnologia e da neutralidade cientiacutefica que ainda persistem e insistem em orientar as praacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na sociedade atual Afinal como diz Miranda com base nos estudos de Jasanoff (1995)

a ciecircncia deveria ter uma funccedilatildeo poliacutetica na medida em que tambeacutem avalia e revisa o estado do conhecimento cientiacutefico e sua aplicabilidade praacutetica Assim diante de programas de controle ambiental por exemplo mais que simplesmente aplicar certo tipo de conhecimento cientiacutefico aparentemente desinteressado neutro o papel da ciecircncia deveria ser tambeacutem eacutetico-poliacutetico no sentido de avaliar suas implicaccedilotildees sociais poliacuteticas culturais etc (MIRANDA 2012 p 181)

Em suma a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no municiacutepio de Ipanguaccedilu ensina-nos que no cenaacuterio da instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo impulsionadas por poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas supostamente de cunho desenvolvimentista e que correspondem ao ideal progressista cujo agir eacute meramente utilitaacuterio e de exploraccedilatildeo da natureza visando cada vez mais ao lucro a eacutetica da responsabilidade pode ser a criacutetica e o

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

260

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

norte de uma nova forma de agir Desde sua criacutetica tambeacutem eacute possiacutevel formular poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas que levem em conta os atores sociais nelas implicados tornando o processo democraacutetico e natildeo somente tecnocraacutetico Por outro lado e considerando o cenaacuterio da agricultura familiar e dos agricultores que ali vivem e lidam com a terra a eacutetica da responsabilidade surge como forma de corroborar com suas praacuteticas como a accedilatildeo eacutetica que visa ao cuidado com o lugar onde vivem pois eles (os agricultores) natildeo satildeo apenas ldquodonosrdquo da terra mas ocupam e essencializam a terra atraveacutes da relaccedilatildeo de cuidado e de prudecircncia no ato de cultivar a terra

Eacute a partir desta constataccedilatildeo que apresentamos a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas como uma eacutetica possiacutevel de ser aplicada nesse contexto de aparente dualidade entre a agricultura familiar e o agronegoacutecio Levando em conta as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade como o conceito da responsabilidade e do ideal utoacutepico do progresso cientiacutefico tecnoloacutegico a relaccedilatildeo com o meio ambiente e com a terra concluiacutemos que urge pensar sua aplicaccedilatildeo tambeacutem no campo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas A sua utilizaccedilatildeo no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia torna-se necessaacuteria no atual contexto da modernizaccedilatildeo em que estatildeo submetidos grupos sociais comunidades e povos inteiros E ainda que guardados seus devidos limites (MIRANDA 2012 p 143) a responsabilidade eacute um princiacutepio eacutetico que pode contribuir para nortear as accedilotildees tecnocientiacuteficas rumo agrave uma sociedade mais sustentaacutevel e equilibrada

Referecircncias

AGEcircNCIA Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba (AESA) Comitecircs Piranhas-Accedilu apresentaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwaesapbgovbrcomitespiranhasacu Acesso em 23 ago 2015

ALBANO Gleydson SAacute Alcindo Poliacuteticas puacuteblicas e globalizaccedilatildeo da agricultura no Vale do Accedilu-RN Revista de Geografia Recife UFPE ndash DCGNAPA v 25 n 2 maiago 2008

APEL Karl-Otto Estudos de moral moderna Petroacutepolis Vozes 2000

BECK Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Traduccedilatildeo original do alematildeo de Sebastiatildeo Nascimento Satildeo Paulo Editora 34 2010

BOFF Leonardo Saber cuidar eacutetica do humano Petroacutepolis Vozes 1999

HEIDEGGER Martin A questatildeo da teacutecnica Ensaios e conferecircncias I Traduzido por Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan Fode Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes Braganccedila Paulista Ed Universitaacuteria Satildeo Francisco 2012

HERRERA Amiacutelcar O Los determinantes sociales de la poliacutetica cientiacutefica en Ameacuterica Latina Poliacutetica cientiacutefica expliacutecita y poliacutetica cientiacutefica impliacutecita Argentina Redes v 2 1995

INSTITUTO Brasileiro de Geografia E Estatiacutestica (IBGE) Censo Demograacutefico 2000 sinopse ndash Rio Grande do Norte ndash Ipanguaccedilu Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtras temasphplang=ampcodmun=240470ampidtema=1ampsearch=rio-grande-do-norte|ipanguacu|censo-demografico-2010-sinopse- Acesso em 14 ago 2015

JASANOFF S Procedural choices in regulatory science Technology in Society 17 1995 httpsdoiorg1010160160-791x(95)00011-f

JONAS Hans O princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Rio de Janeiro Contraponto 2006

JONAS Hans Teacutecnica medicina y eacutetica Sobre la praacutectica del principio de la responsabilidad Barcelona Paidoacutes 1997

LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001

LISBOA Armando de Melo Desenvolvimento uma ideia subdesenvolvida Cadernos do CEAS Salvador n 161 1996

MARCUSE Herbert A ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional Rio de Janeiro Jorge Zahar 1982

MIRANDA A L iquestUna eacutetica para la civilizacioacuten tecnoloacutegica Posibilidades y liacutemites del principio de la responsabilidad de Hans Jonas AlemanhaEspanha Lap LambertEAE 2012

MORIN E Ciecircncia com consciecircncia Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005

SERRES Michel Le contrat natural Paris Flammarion 1992

SHIVA Vandana AZEVEDO Dinah de Abreu Monoculturas da mente perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia Satildeo Paulo Gaia 2003

SIQUEIRA JE Hans Jonas e a eacutetica da responsabilidade Mundo Sauacutede 1999

WEBCARTA Mapa do Rio Grande do Norte Disponiacutevel em webcartanetcartamapaphpid=244amplg=pt Acesso em 26 ago 2015

WOLIN Richard Heideggerrsquos children Hannah Arendt Karl Loumlwith Hans Jonas y Herbert Marcuse Princepton Princepton University Press 2001

ZANCANARO L O conceito de responsabilidade em Hans Jonas CampinasSP Ed UNICAMP 1998

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Page 15: O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail: angelamiranda@ect@ufrn.br. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

258

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

propagado tambeacutem por Marcuse (1982) quando nos anos sessenta do seacuteculo passado afirmava a unidimensionalidade da condiccedilatildeo humana advinda da teacutecnica moderna Esse poder eacute caracterizado pela necessidade do uso crescente da teacutecnica conduzindo o homem a uma incapacidade de frear o contiacutenuo progresso muito embora ele (o homem) insista em acreditar que a natureza eacute apenas um objeto de exploraccedilatildeo e estaacute disponiacutevel para atender meramente agrave sua vontade

Aleacutem desta problemaacutetica do progresso cientiacutefico e tecnoloacutegico colocado por Jonas podemos tambeacutem fazer uma relaccedilatildeo entre as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade e o municiacutepio de Ipanguaccedilu Tal como jaacute salientamos anteriormente o primeiro aspecto a destacar desde a eacutetica jonasiana eacute o dever do homem perante a biosfera como dever responsaacutevel garantindo tanto a preservaccedilatildeo do presente quanto do futuro da humanidade e da natureza Portanto neste aspecto haveriacuteamos de indagar ateacute que ponto a agricultura familiar na regiatildeo de Ipanguaccedilu torna vaacutelido esse dever e se o mesmo procede com o agronegoacutecio Como dito anteriormente o agronegoacutecio visa agrave monocultura e agrave modernizaccedilatildeo da agricultura ou seja as atividades agriacutecolas satildeo baseadas no controle teacutecnico da terra gerando uma maior produccedilatildeo que garante a exportaccedilatildeo e o investimento no mercado interno visando ao lucro Do outro lado estaacute a agricultura familiar tendo como principal caracteriacutestica o cultivo de subsistecircncia Podemos observar que no primeiro exemplo a natureza eacute vista como um objeto de lucro enquanto que no segundo ela eacute vista como um ldquoobjetordquo de responsabilidade E eacute no contexto do segundo exemplo que se insere o sentido do ldquodever serrdquo tal como observa Jonas Poreacutem o que ocorre eacute que na atualidade as atividades desenvolvidas pelas multinacionais do agronegoacutecio em Ipanguaccedilu eacute que vecircm merecendo lugar de destaque no cenaacuterio das poliacuteticas puacuteblicas locais

Consideraccedilotildees Finais

Do exposto ateacute aqui fica expliacutecito que eacute necessaacuterio um olhar criacutetico sobre a problemaacutetica existente do paradigma cientiacutefico e tecnoloacutegico presente na modernidade que impele tudo ao progresso e ao desenvolvimento Do mesmo modo tambeacutem eacute preciso refletir sobre como tratamos a realidade e o contexto cultural local visto que natildeo podem ser marginalizados em prol do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico e econocircmico global Observando o sentido do desenvolvimento neste contexto Lisboa argumenta

O desenvolvimento comporta em si mesmo o subdesenvolvimento O padratildeo mimeacutetico do desenvolvimento fundado no estilo ocidental de vida com altos niacuteveis de consumo e desperdiacutecio tem cegado os povos do terceiro mundo os impedindo de se encontrar com sua identidade Ora um povo privado de sua identidade natildeo eacute capaz de se autodeterminar (LISBOA 1996 p 7)

Apesar de a instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo de Ipanguaccedilu ter reduzido a diversidade da regiatildeo atraveacutes do progresso e do desenvolvimento tecnoloacutegico o pouco que haacute da praacutetica da agricultura familiar ainda insiste em preservar a relaccedilatildeo essencial com a terra e com tradiccedilotildees culturais Nela se vecirc refletido o princiacutepio eacutetico da responsabilidade de Hans Jonas onde haacute a preocupaccedilatildeo do cuidado com o lugar onde vivem para que as futuras geraccedilotildees possam viver de forma sustentaacutevel Na agricultura familiar tambeacutem se torna visiacutevel a temeridade e a relaccedilatildeo do ser teacutecnico com a prudecircncia onde os valores estatildeo na biosfera e natildeo na utilidade do fazer antropocecircntrico e egoiacutesta da condiccedilatildeo humana de estar no mundo

Insistir na permanecircncia desta praacutetica eacute insistir na participaccedilatildeo direta ativa e democraacutetica dos agricultores na formulaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas e nos projetos voltados para a agricultura Pois se no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia tambeacutem estaacute inserida a dimensatildeo social entatildeo a implementaccedilatildeo das poliacuteticas em ciecircncia e tecnologia deve ser decidida pelos atores sociais nela implicados (MIRANDA 2012 p 181-182) Dessa forma eacute no espaccedilo puacuteblico de debate com a populaccedilatildeo diretamente afetada pelas implementaccedilotildees tecnocientiacuteficas que construiacutemos esta praacutetica democraacutetica e participativa frente agrave ciecircncia e agrave tecnologia eliminando assim a violecircncia contra a cultura local tal como situa Shiva

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

259

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

O primeiro plano da violecircncia desencadeada contra os sistemas locais de saber eacute natildeo consideraacute-los um saber A invisibilidade eacute a primeira razatildeo pela qual os sistemas locais entram em colapso antes de serem testados e comprovados pelo confronto com o saber dominante do Ocidente A proacutepria distacircncia elimina os sistemas locais da percepccedilatildeo Quando o saber local aparece de fato no campo da visatildeo globalizadora fazem com que desapareccedila negando-lhe o status de um saber sistemaacutetico e atribuindo-lhe os adjetivos de primitivo e anticientiacutefico (SHIVA 2003 p 22-23)

Portanto tal como ensina Shiva para que haja inclusatildeo e um processo democraacutetico na participaccedilatildeo puacuteblica voltada para a ciecircncia e para a tecnologia eacute preciso que a visatildeo globalizante da tecnificaccedilatildeo e da cientifizaccedilatildeo natildeo anule o conhecimento local com a justificativa de que eles natildeo satildeo cientiacuteficos O saber local e as praacuteticas culturais dos agricultores devem ser levados em consideraccedilatildeo nesses processos de implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de garantir o empoderamento dos atores sociais neles implicados

Ora que liccedilotildees podemos extrair destas constataccedilotildees se vincularmos ao agir eacutetico Agrave luz das teses apresentadas por Hans Jonas apontamos alguns caminhos (i) Que eacute necessaacuterio pensar numa eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica e instrumental abrangendo uma nova dimensatildeo a responsabilidade (ii) Que tal modelo de eacutetica seja capaz de resgatar o conceito de temeridade e a relaccedilatildeo da teacutecnica natildeo somente com a eficiecircncia mas tambeacutem com a prudecircncia (iii) Que eacute fundamental retomar o sentido originaacuterio da eacutetica como cuidado o cuidar do lugar onde se vive (BOFF 1999 MIRANDA 2012)

Em outros termos o questionamento diante da teacutecnica e da ciecircncia levando em consideraccedilatildeo o acircmbito da eacutetica e das poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode estar inserido meramente na dimensatildeo instrumental e antropoloacutegica Trata-se antes de tudo de uma fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da natureza e da condiccedilatildeo humana levando em conta o princiacutepio responsabilidade definido pela eacutetica jonasiana

A justificativa de uma tal eacutetica que natildeo mais se restringe ao terreno imediatamente intersubjetivo da contemporaneidade deve estender-se ateacute a metafiacutesica pois soacute ela permite que se pergunte por que afinal homens devem estar no mundo portanto por que o imperativo incondicional destina-se a assegurar-lhes a existecircncia no futuro A aventura da tecnologia impotildee com seus riscos extremos o risco da reflexatildeo extrema (JONAS 2006 p 22)

Desta forma e diante da insuficiecircncia constatada por Jonas da eacutetica tradicional em propor saiacutedas frente aos novos dilemas eacuteticos pautados pela sociedade tecnocientiacutefica eacute proposta deste estudo pensar um novo agir humano baseado na responsabilidade inclusive no acircmbito da implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de pensar saiacutedas que sejam capazes de ultrapassar as barreiras do discurso desenvolvimentista e por conseguinte determinista da tecnologia e da neutralidade cientiacutefica que ainda persistem e insistem em orientar as praacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na sociedade atual Afinal como diz Miranda com base nos estudos de Jasanoff (1995)

a ciecircncia deveria ter uma funccedilatildeo poliacutetica na medida em que tambeacutem avalia e revisa o estado do conhecimento cientiacutefico e sua aplicabilidade praacutetica Assim diante de programas de controle ambiental por exemplo mais que simplesmente aplicar certo tipo de conhecimento cientiacutefico aparentemente desinteressado neutro o papel da ciecircncia deveria ser tambeacutem eacutetico-poliacutetico no sentido de avaliar suas implicaccedilotildees sociais poliacuteticas culturais etc (MIRANDA 2012 p 181)

Em suma a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no municiacutepio de Ipanguaccedilu ensina-nos que no cenaacuterio da instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo impulsionadas por poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas supostamente de cunho desenvolvimentista e que correspondem ao ideal progressista cujo agir eacute meramente utilitaacuterio e de exploraccedilatildeo da natureza visando cada vez mais ao lucro a eacutetica da responsabilidade pode ser a criacutetica e o

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

260

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

norte de uma nova forma de agir Desde sua criacutetica tambeacutem eacute possiacutevel formular poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas que levem em conta os atores sociais nelas implicados tornando o processo democraacutetico e natildeo somente tecnocraacutetico Por outro lado e considerando o cenaacuterio da agricultura familiar e dos agricultores que ali vivem e lidam com a terra a eacutetica da responsabilidade surge como forma de corroborar com suas praacuteticas como a accedilatildeo eacutetica que visa ao cuidado com o lugar onde vivem pois eles (os agricultores) natildeo satildeo apenas ldquodonosrdquo da terra mas ocupam e essencializam a terra atraveacutes da relaccedilatildeo de cuidado e de prudecircncia no ato de cultivar a terra

Eacute a partir desta constataccedilatildeo que apresentamos a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas como uma eacutetica possiacutevel de ser aplicada nesse contexto de aparente dualidade entre a agricultura familiar e o agronegoacutecio Levando em conta as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade como o conceito da responsabilidade e do ideal utoacutepico do progresso cientiacutefico tecnoloacutegico a relaccedilatildeo com o meio ambiente e com a terra concluiacutemos que urge pensar sua aplicaccedilatildeo tambeacutem no campo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas A sua utilizaccedilatildeo no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia torna-se necessaacuteria no atual contexto da modernizaccedilatildeo em que estatildeo submetidos grupos sociais comunidades e povos inteiros E ainda que guardados seus devidos limites (MIRANDA 2012 p 143) a responsabilidade eacute um princiacutepio eacutetico que pode contribuir para nortear as accedilotildees tecnocientiacuteficas rumo agrave uma sociedade mais sustentaacutevel e equilibrada

Referecircncias

AGEcircNCIA Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba (AESA) Comitecircs Piranhas-Accedilu apresentaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwaesapbgovbrcomitespiranhasacu Acesso em 23 ago 2015

ALBANO Gleydson SAacute Alcindo Poliacuteticas puacuteblicas e globalizaccedilatildeo da agricultura no Vale do Accedilu-RN Revista de Geografia Recife UFPE ndash DCGNAPA v 25 n 2 maiago 2008

APEL Karl-Otto Estudos de moral moderna Petroacutepolis Vozes 2000

BECK Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Traduccedilatildeo original do alematildeo de Sebastiatildeo Nascimento Satildeo Paulo Editora 34 2010

BOFF Leonardo Saber cuidar eacutetica do humano Petroacutepolis Vozes 1999

HEIDEGGER Martin A questatildeo da teacutecnica Ensaios e conferecircncias I Traduzido por Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan Fode Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes Braganccedila Paulista Ed Universitaacuteria Satildeo Francisco 2012

HERRERA Amiacutelcar O Los determinantes sociales de la poliacutetica cientiacutefica en Ameacuterica Latina Poliacutetica cientiacutefica expliacutecita y poliacutetica cientiacutefica impliacutecita Argentina Redes v 2 1995

INSTITUTO Brasileiro de Geografia E Estatiacutestica (IBGE) Censo Demograacutefico 2000 sinopse ndash Rio Grande do Norte ndash Ipanguaccedilu Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtras temasphplang=ampcodmun=240470ampidtema=1ampsearch=rio-grande-do-norte|ipanguacu|censo-demografico-2010-sinopse- Acesso em 14 ago 2015

JASANOFF S Procedural choices in regulatory science Technology in Society 17 1995 httpsdoiorg1010160160-791x(95)00011-f

JONAS Hans O princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Rio de Janeiro Contraponto 2006

JONAS Hans Teacutecnica medicina y eacutetica Sobre la praacutectica del principio de la responsabilidad Barcelona Paidoacutes 1997

LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001

LISBOA Armando de Melo Desenvolvimento uma ideia subdesenvolvida Cadernos do CEAS Salvador n 161 1996

MARCUSE Herbert A ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional Rio de Janeiro Jorge Zahar 1982

MIRANDA A L iquestUna eacutetica para la civilizacioacuten tecnoloacutegica Posibilidades y liacutemites del principio de la responsabilidad de Hans Jonas AlemanhaEspanha Lap LambertEAE 2012

MORIN E Ciecircncia com consciecircncia Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005

SERRES Michel Le contrat natural Paris Flammarion 1992

SHIVA Vandana AZEVEDO Dinah de Abreu Monoculturas da mente perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia Satildeo Paulo Gaia 2003

SIQUEIRA JE Hans Jonas e a eacutetica da responsabilidade Mundo Sauacutede 1999

WEBCARTA Mapa do Rio Grande do Norte Disponiacutevel em webcartanetcartamapaphpid=244amplg=pt Acesso em 26 ago 2015

WOLIN Richard Heideggerrsquos children Hannah Arendt Karl Loumlwith Hans Jonas y Herbert Marcuse Princepton Princepton University Press 2001

ZANCANARO L O conceito de responsabilidade em Hans Jonas CampinasSP Ed UNICAMP 1998

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Page 16: O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail: angelamiranda@ect@ufrn.br. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do

O Princiacutepio Responsabilidade como Avaliaccedilatildeo das Poliacuteticas em Ciecircncia e Tecnologia

259

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

O primeiro plano da violecircncia desencadeada contra os sistemas locais de saber eacute natildeo consideraacute-los um saber A invisibilidade eacute a primeira razatildeo pela qual os sistemas locais entram em colapso antes de serem testados e comprovados pelo confronto com o saber dominante do Ocidente A proacutepria distacircncia elimina os sistemas locais da percepccedilatildeo Quando o saber local aparece de fato no campo da visatildeo globalizadora fazem com que desapareccedila negando-lhe o status de um saber sistemaacutetico e atribuindo-lhe os adjetivos de primitivo e anticientiacutefico (SHIVA 2003 p 22-23)

Portanto tal como ensina Shiva para que haja inclusatildeo e um processo democraacutetico na participaccedilatildeo puacuteblica voltada para a ciecircncia e para a tecnologia eacute preciso que a visatildeo globalizante da tecnificaccedilatildeo e da cientifizaccedilatildeo natildeo anule o conhecimento local com a justificativa de que eles natildeo satildeo cientiacuteficos O saber local e as praacuteticas culturais dos agricultores devem ser levados em consideraccedilatildeo nesses processos de implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de garantir o empoderamento dos atores sociais neles implicados

Ora que liccedilotildees podemos extrair destas constataccedilotildees se vincularmos ao agir eacutetico Agrave luz das teses apresentadas por Hans Jonas apontamos alguns caminhos (i) Que eacute necessaacuterio pensar numa eacutetica que seja capaz de sair da esfera meramente antropoloacutegica e instrumental abrangendo uma nova dimensatildeo a responsabilidade (ii) Que tal modelo de eacutetica seja capaz de resgatar o conceito de temeridade e a relaccedilatildeo da teacutecnica natildeo somente com a eficiecircncia mas tambeacutem com a prudecircncia (iii) Que eacute fundamental retomar o sentido originaacuterio da eacutetica como cuidado o cuidar do lugar onde se vive (BOFF 1999 MIRANDA 2012)

Em outros termos o questionamento diante da teacutecnica e da ciecircncia levando em consideraccedilatildeo o acircmbito da eacutetica e das poliacuteticas puacuteblicas natildeo pode estar inserido meramente na dimensatildeo instrumental e antropoloacutegica Trata-se antes de tudo de uma fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da natureza e da condiccedilatildeo humana levando em conta o princiacutepio responsabilidade definido pela eacutetica jonasiana

A justificativa de uma tal eacutetica que natildeo mais se restringe ao terreno imediatamente intersubjetivo da contemporaneidade deve estender-se ateacute a metafiacutesica pois soacute ela permite que se pergunte por que afinal homens devem estar no mundo portanto por que o imperativo incondicional destina-se a assegurar-lhes a existecircncia no futuro A aventura da tecnologia impotildee com seus riscos extremos o risco da reflexatildeo extrema (JONAS 2006 p 22)

Desta forma e diante da insuficiecircncia constatada por Jonas da eacutetica tradicional em propor saiacutedas frente aos novos dilemas eacuteticos pautados pela sociedade tecnocientiacutefica eacute proposta deste estudo pensar um novo agir humano baseado na responsabilidade inclusive no acircmbito da implementaccedilatildeo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas Trata-se de pensar saiacutedas que sejam capazes de ultrapassar as barreiras do discurso desenvolvimentista e por conseguinte determinista da tecnologia e da neutralidade cientiacutefica que ainda persistem e insistem em orientar as praacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas na sociedade atual Afinal como diz Miranda com base nos estudos de Jasanoff (1995)

a ciecircncia deveria ter uma funccedilatildeo poliacutetica na medida em que tambeacutem avalia e revisa o estado do conhecimento cientiacutefico e sua aplicabilidade praacutetica Assim diante de programas de controle ambiental por exemplo mais que simplesmente aplicar certo tipo de conhecimento cientiacutefico aparentemente desinteressado neutro o papel da ciecircncia deveria ser tambeacutem eacutetico-poliacutetico no sentido de avaliar suas implicaccedilotildees sociais poliacuteticas culturais etc (MIRANDA 2012 p 181)

Em suma a aplicaccedilatildeo da eacutetica da responsabilidade tomando como ilustraccedilatildeo a implementaccedilatildeo da fruticultura irrigada no municiacutepio de Ipanguaccedilu ensina-nos que no cenaacuterio da instalaccedilatildeo das multinacionais na regiatildeo impulsionadas por poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas supostamente de cunho desenvolvimentista e que correspondem ao ideal progressista cujo agir eacute meramente utilitaacuterio e de exploraccedilatildeo da natureza visando cada vez mais ao lucro a eacutetica da responsabilidade pode ser a criacutetica e o

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

260

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

norte de uma nova forma de agir Desde sua criacutetica tambeacutem eacute possiacutevel formular poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas que levem em conta os atores sociais nelas implicados tornando o processo democraacutetico e natildeo somente tecnocraacutetico Por outro lado e considerando o cenaacuterio da agricultura familiar e dos agricultores que ali vivem e lidam com a terra a eacutetica da responsabilidade surge como forma de corroborar com suas praacuteticas como a accedilatildeo eacutetica que visa ao cuidado com o lugar onde vivem pois eles (os agricultores) natildeo satildeo apenas ldquodonosrdquo da terra mas ocupam e essencializam a terra atraveacutes da relaccedilatildeo de cuidado e de prudecircncia no ato de cultivar a terra

Eacute a partir desta constataccedilatildeo que apresentamos a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas como uma eacutetica possiacutevel de ser aplicada nesse contexto de aparente dualidade entre a agricultura familiar e o agronegoacutecio Levando em conta as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade como o conceito da responsabilidade e do ideal utoacutepico do progresso cientiacutefico tecnoloacutegico a relaccedilatildeo com o meio ambiente e com a terra concluiacutemos que urge pensar sua aplicaccedilatildeo tambeacutem no campo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas A sua utilizaccedilatildeo no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia torna-se necessaacuteria no atual contexto da modernizaccedilatildeo em que estatildeo submetidos grupos sociais comunidades e povos inteiros E ainda que guardados seus devidos limites (MIRANDA 2012 p 143) a responsabilidade eacute um princiacutepio eacutetico que pode contribuir para nortear as accedilotildees tecnocientiacuteficas rumo agrave uma sociedade mais sustentaacutevel e equilibrada

Referecircncias

AGEcircNCIA Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba (AESA) Comitecircs Piranhas-Accedilu apresentaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwaesapbgovbrcomitespiranhasacu Acesso em 23 ago 2015

ALBANO Gleydson SAacute Alcindo Poliacuteticas puacuteblicas e globalizaccedilatildeo da agricultura no Vale do Accedilu-RN Revista de Geografia Recife UFPE ndash DCGNAPA v 25 n 2 maiago 2008

APEL Karl-Otto Estudos de moral moderna Petroacutepolis Vozes 2000

BECK Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Traduccedilatildeo original do alematildeo de Sebastiatildeo Nascimento Satildeo Paulo Editora 34 2010

BOFF Leonardo Saber cuidar eacutetica do humano Petroacutepolis Vozes 1999

HEIDEGGER Martin A questatildeo da teacutecnica Ensaios e conferecircncias I Traduzido por Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan Fode Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes Braganccedila Paulista Ed Universitaacuteria Satildeo Francisco 2012

HERRERA Amiacutelcar O Los determinantes sociales de la poliacutetica cientiacutefica en Ameacuterica Latina Poliacutetica cientiacutefica expliacutecita y poliacutetica cientiacutefica impliacutecita Argentina Redes v 2 1995

INSTITUTO Brasileiro de Geografia E Estatiacutestica (IBGE) Censo Demograacutefico 2000 sinopse ndash Rio Grande do Norte ndash Ipanguaccedilu Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtras temasphplang=ampcodmun=240470ampidtema=1ampsearch=rio-grande-do-norte|ipanguacu|censo-demografico-2010-sinopse- Acesso em 14 ago 2015

JASANOFF S Procedural choices in regulatory science Technology in Society 17 1995 httpsdoiorg1010160160-791x(95)00011-f

JONAS Hans O princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Rio de Janeiro Contraponto 2006

JONAS Hans Teacutecnica medicina y eacutetica Sobre la praacutectica del principio de la responsabilidad Barcelona Paidoacutes 1997

LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001

LISBOA Armando de Melo Desenvolvimento uma ideia subdesenvolvida Cadernos do CEAS Salvador n 161 1996

MARCUSE Herbert A ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional Rio de Janeiro Jorge Zahar 1982

MIRANDA A L iquestUna eacutetica para la civilizacioacuten tecnoloacutegica Posibilidades y liacutemites del principio de la responsabilidad de Hans Jonas AlemanhaEspanha Lap LambertEAE 2012

MORIN E Ciecircncia com consciecircncia Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005

SERRES Michel Le contrat natural Paris Flammarion 1992

SHIVA Vandana AZEVEDO Dinah de Abreu Monoculturas da mente perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia Satildeo Paulo Gaia 2003

SIQUEIRA JE Hans Jonas e a eacutetica da responsabilidade Mundo Sauacutede 1999

WEBCARTA Mapa do Rio Grande do Norte Disponiacutevel em webcartanetcartamapaphpid=244amplg=pt Acesso em 26 ago 2015

WOLIN Richard Heideggerrsquos children Hannah Arendt Karl Loumlwith Hans Jonas y Herbert Marcuse Princepton Princepton University Press 2001

ZANCANARO L O conceito de responsabilidade em Hans Jonas CampinasSP Ed UNICAMP 1998

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Page 17: O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail: angelamiranda@ect@ufrn.br. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do

Angela Luzia Miranda Maria Renata de Castro Sulino

260

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 -261 janjul 2017 |

norte de uma nova forma de agir Desde sua criacutetica tambeacutem eacute possiacutevel formular poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas que levem em conta os atores sociais nelas implicados tornando o processo democraacutetico e natildeo somente tecnocraacutetico Por outro lado e considerando o cenaacuterio da agricultura familiar e dos agricultores que ali vivem e lidam com a terra a eacutetica da responsabilidade surge como forma de corroborar com suas praacuteticas como a accedilatildeo eacutetica que visa ao cuidado com o lugar onde vivem pois eles (os agricultores) natildeo satildeo apenas ldquodonosrdquo da terra mas ocupam e essencializam a terra atraveacutes da relaccedilatildeo de cuidado e de prudecircncia no ato de cultivar a terra

Eacute a partir desta constataccedilatildeo que apresentamos a eacutetica da responsabilidade de Hans Jonas como uma eacutetica possiacutevel de ser aplicada nesse contexto de aparente dualidade entre a agricultura familiar e o agronegoacutecio Levando em conta as principais caracteriacutesticas da eacutetica da responsabilidade como o conceito da responsabilidade e do ideal utoacutepico do progresso cientiacutefico tecnoloacutegico a relaccedilatildeo com o meio ambiente e com a terra concluiacutemos que urge pensar sua aplicaccedilatildeo tambeacutem no campo das poliacuteticas cientiacuteficas e tecnoloacutegicas A sua utilizaccedilatildeo no acircmbito da ciecircncia e da tecnologia torna-se necessaacuteria no atual contexto da modernizaccedilatildeo em que estatildeo submetidos grupos sociais comunidades e povos inteiros E ainda que guardados seus devidos limites (MIRANDA 2012 p 143) a responsabilidade eacute um princiacutepio eacutetico que pode contribuir para nortear as accedilotildees tecnocientiacuteficas rumo agrave uma sociedade mais sustentaacutevel e equilibrada

Referecircncias

AGEcircNCIA Executiva de Gestatildeo das Aacuteguas do Estado da Paraiacuteba (AESA) Comitecircs Piranhas-Accedilu apresentaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwaesapbgovbrcomitespiranhasacu Acesso em 23 ago 2015

ALBANO Gleydson SAacute Alcindo Poliacuteticas puacuteblicas e globalizaccedilatildeo da agricultura no Vale do Accedilu-RN Revista de Geografia Recife UFPE ndash DCGNAPA v 25 n 2 maiago 2008

APEL Karl-Otto Estudos de moral moderna Petroacutepolis Vozes 2000

BECK Ulrich Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade Traduccedilatildeo original do alematildeo de Sebastiatildeo Nascimento Satildeo Paulo Editora 34 2010

BOFF Leonardo Saber cuidar eacutetica do humano Petroacutepolis Vozes 1999

HEIDEGGER Martin A questatildeo da teacutecnica Ensaios e conferecircncias I Traduzido por Emmanuel Carneiro Leatildeo Gilvan Fode Marcia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes Braganccedila Paulista Ed Universitaacuteria Satildeo Francisco 2012

HERRERA Amiacutelcar O Los determinantes sociales de la poliacutetica cientiacutefica en Ameacuterica Latina Poliacutetica cientiacutefica expliacutecita y poliacutetica cientiacutefica impliacutecita Argentina Redes v 2 1995

INSTITUTO Brasileiro de Geografia E Estatiacutestica (IBGE) Censo Demograacutefico 2000 sinopse ndash Rio Grande do Norte ndash Ipanguaccedilu Disponiacutevel em httpwwwcidadesibgegovbrxtras temasphplang=ampcodmun=240470ampidtema=1ampsearch=rio-grande-do-norte|ipanguacu|censo-demografico-2010-sinopse- Acesso em 14 ago 2015

JASANOFF S Procedural choices in regulatory science Technology in Society 17 1995 httpsdoiorg1010160160-791x(95)00011-f

JONAS Hans O princiacutepio responsabilidade ensaio de uma eacutetica para a civilizaccedilatildeo tecnoloacutegica Rio de Janeiro Contraponto 2006

JONAS Hans Teacutecnica medicina y eacutetica Sobre la praacutectica del principio de la responsabilidad Barcelona Paidoacutes 1997

LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001

LISBOA Armando de Melo Desenvolvimento uma ideia subdesenvolvida Cadernos do CEAS Salvador n 161 1996

MARCUSE Herbert A ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional Rio de Janeiro Jorge Zahar 1982

MIRANDA A L iquestUna eacutetica para la civilizacioacuten tecnoloacutegica Posibilidades y liacutemites del principio de la responsabilidad de Hans Jonas AlemanhaEspanha Lap LambertEAE 2012

MORIN E Ciecircncia com consciecircncia Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005

SERRES Michel Le contrat natural Paris Flammarion 1992

SHIVA Vandana AZEVEDO Dinah de Abreu Monoculturas da mente perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia Satildeo Paulo Gaia 2003

SIQUEIRA JE Hans Jonas e a eacutetica da responsabilidade Mundo Sauacutede 1999

WEBCARTA Mapa do Rio Grande do Norte Disponiacutevel em webcartanetcartamapaphpid=244amplg=pt Acesso em 26 ago 2015

WOLIN Richard Heideggerrsquos children Hannah Arendt Karl Loumlwith Hans Jonas y Herbert Marcuse Princepton Princepton University Press 2001

ZANCANARO L O conceito de responsabilidade em Hans Jonas CampinasSP Ed UNICAMP 1998

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |

Page 18: O Princípio Responsabilidade como Avaliação das Políticas ... · E-mail: angelamiranda@ect@ufrn.br. Graduanda em Química do Petróleo, Bolsista de Iniciação Científica do

Textos amp Contextos (Porto Alegre) v 16 n 1 p 244 - 261 janjul 2017 |