O PROJETO ARQUITETÔNICO EM LUNA CLARA E APOLO...
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LETRAS
MARICE FIUZA GELETKANICZ
O PROJETO ARQUITETÔNICO EM LUNA CLARA E APOLO ONZE:
uma organização criativa de vozes
Porto Alegre
2013
MARICE FIUZA GELETKANICZ
O PROJETO ARQUITETÔNICO EM LUNA CLARA E APOLO ONZE:
uma organização criativa de vozes
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras do UNIRITTER – Laureate
International Universities para obtenção de título de
Mestre em Letras, área de concentração:
Linguagem, Interação e Processos de
Aprendizagem.
Orientadora: Prof. Dr. Neiva M. Tebaldi Gomes.
Porto Alegre
2013
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
G316p Geletkanicz, Marice Fiuza
O projeto arquitetônico em Luna Clara e Apolo Onze:
Uma organização criativa de vozes / Marice Fiuza Geletkanicz.– 2013.
f.129; 30 cm.
Dissertação (mestrado) – Centro Universitário Ritter dos Reis, Faculdade de Letras, Porto Alegre, 2013.
Orientador: Prof. Dr. Neiva M. Tebaldi Gomes
1. Multiplicidade de Vozes. 2. Projeto Arquitetônico. I. Título.
CDU 81’38
Ficha catalográfica elaborada no Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Dr. Romeu Ritter dos Reis
MARICE FIUZA GELETKANICZ
O PROJETO ARQUITETÔNICO EM LUNA CLARA E APOLO ONZE:
uma organização criativa de vozes
Trabalho de conclusão defendido e aprovado como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras pela banca examinadora constituída por:
_____________________________________________ Prof. Dr. Neiva Maria Tebaldi Gomes
_____________________________________________ Prof. Dr. Vera Lúcia Pires
_____________________________________________ Prof. Dr. Adail Ubirajara Sobral
Porto Alegre 2013
Dedico esta Dissertação a: Clarice de Fátima Fiuza, por ser um exemplo, alguém presente em todos os grandes momentos da minha vida; Marcos Argeu Diogo Novais, por se revezar nas vozes de pai, irmão e de amigo; Rael Lopes Alves, por ser o “outro autorizado” que sempre me ajuda a enxergar, de modo especial, aquilo que da minha posição eu não consigo ver; pela cumplicidade nestes onze anos de união e pelo amor que me torna efetiva participante da vida e que me revigora a alma. Vocês me incentivam a ser uma pessoa melhor a cada dia. Neste momento, este trabalho é a maior representação disso.
À CAPES, por possibilitar as condições financeiras necessárias para a realização deste Mestrado, contribuindo, ao mesmo tempo, para a minha constituição como pesquisadora, maior riqueza do incentivo por ela concedido. Ao UniRitter/Laureate International Universities, por me proporcionar, desde a Graduação, uma formação profissional de qualidade. À professora orientadora Neiva Maria Tebaldi Gomes, pela confiança, por me permitir desenvolver uma pesquisa na qual acredito e pela qual sou apaixonada. Aos membros da banca examinadora, pela valiosa orientação através de críticas e de sugestões que certamente contribuíram para o desenvolvimento e para o aperfeiçoamento desta Dissertação. Ao professor Flávio Lunardi, por me apresentar Luna Clara e Apolo Onze, pelo incentivo à pesquisa, pelo diálogo constante, sempre atencioso. À escritora Adriana Falcão, por arquitetar o romance que fez ressoar tantas vozes em mim, pelo interesse demonstrado em colaborar com o estudo. À professora Rejane Pivetta de Oliveira, por me incentivar ao Mestrado e por instigar, muito antes de cursá-lo, o meu interesse pela Literatura. Aos colegas do Mestrado (turma de 2010), pelos debates interessantes, calorosos e pelo aprendizado que eles possibilitaram. A Helena Berenice Lopes Alves, por destacar as minhas potencialidades. Às colegas Elizete Marshall, Rosa Manchesski e Sílvia Letícia Santos, pelo companheirismo que torna mais leve e alegre a vida.
RESUMO
Esta Dissertação traz uma análise do romance Luna Clara e Apolo Onze, de Adriana Falcão, visando compreender a organização criativa expressa na multiplicidade de vozes que o constitui e que motiva o respectivo estudo. Parte-se da hipótese de que com essa organização o autor inaugura um fazer artístico diferenciado pelo tratamento incomum que dá às vozes participantes do todo romanesco. Essa forma particular de representação produz um efeito dialógico na relação de reciprocidade entre autor-personagem-leitor, o que inicialmente remete a elementos que poderiam sugerir um fenômeno literário polifônico. No intuito de solidificar tais percepções, a temática é investigada à luz das concepções estética e polifônica de Bakhtin, predominantemente ilustradas em Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance (e em outras produções especificamente afins com a temática nela abordada) e em Problemas da Poética de Dostoiévski. Porém, com o desenvolvimento do processo analítico, o foco da pesquisa recai justamente sobre a constituição dialógica de vozes que instauram um modelo de escrita interativa, capaz de tornar o leitor mais presente a cada enunciação, fator que concede à trama uma singularidade inquestionável no cenário literário atual. A fim de demonstrar a dialogicidade que Falcão explora criativamente na obra, o percurso metodológico norteia-se basicamente pelas seguintes questões: 1) como o autor representa as vozes na narrativa; 2) como o autor dialoga com o leitor e os “outros” no romance; 3) como o autor organiza as relações entre as personagens e o espaço da história. Para dar conta dessa análise, além dos esclarecimentos fundamentados pelo próprio filósofo da linguagem e pelos pesquisadores dedicados ao estudo das suas diretrizes, fez-se necessária uma contextualização das peculiaridades estruturais e estilísticas que caracterizam a literatura infantil/juvenil contemporânea, buscando-se subsídios em Coelho (2000), Costa (2007), Lajolo e Zilberman (2007). Por fim, o diferencial autoral é atribuído ao projeto arquitetônco em que se constata a organização criativa das vozes como elemento revelador do dialogismo à luz da polifonia bakhtiniana. Dessa forma, por intermédio de reflexões linguístico-literárias, busca-se contribuir com a divulgação de produções que destacam o caráter heterogêneo do fazer estético pela linguagem, levando em consideração o modo de atuação/representação das personagens e a forma peculiar com que o autor se relaciona com o ouvinte/leitor. Uma prática a partir da qual podem ser reveladas narrativas com potencial maior para atrair esse leitor pela interlocução que promovem. Este estudo destina-se igualmente a contribuir com o desenvolvimento de estudos dessa esfera literária.
PALAVRAS-CHAVE: Forma arquitetônica. Polifonia. Multiplicidade de vozes. Dialogismo.
Estética.
ABSTRACT
This dissertation delves into the novel Luna Clara e Apolo Onze, by Adriana Falcão, aiming at understanding the creative organization expressed in the multiple voices which it is constituted by and which also have motivated this study. We start from the hypothesis that with such organization the author opens a differentiated artistic skill due to its unusual treatment given to the voices which take place in the Romanesque whole. This particular form of representation produces a dialogical effect in the reciprocity relation between author-character-reader, which initially refers to elements which could suggest a polyphonic literary phenomenon. Intending to solidify such perceptions, the theme is investigated under the aesthetical and polyphonic conceptions proposed by Bakhtin, mainly illustrated in Questions of Literature and Aesthetics: the theory of the romance (and other related pieces approaching the same theme) and in Problems of Dostoevski’s Poetics. However, as the analytical process has developed, the scope of the research has fallen right into the dialogical constitution of the voices which establish an interactive writing model, enabling the reader to become more present at each enunciation, factor which gives the plot an undeniable singularity in the current literary scenario. In order to demonstrate the dialogicity which Falcão exploits creatively in her writing, the methodological drive is basically guided by the following questions: 1) how the author represents the voices in the narrative; 2) how the author dialogues with the reader and “the others” in the novel; 3) how the author organizes the relationships between character and the space in the story. So as to handle such analysis, besides the clarifications grounded by the philosopher of the language himself, and also by researchers who have dedicated their studies to his guidelines, it was necessary to contextualize the structural and stylistic peculiarities which characterize the modern literature for children and young adults, aided by the ideas of Coelho (2000), Costa (2007), Lajolo and Zilberman (2007). Finally, the authorial differential is attributed to the architectonical project in which the creative organization of the voices are constituted as a revealing element of the dialogism enlightened by the bakhtinian polyphony. Thus, by means of linguistic-literary reflections, we look for contributing with the broadcast of pieces which highlight the heterogeneous character of the aesthetic of the language, taking into account the way of acting/representing the characters and the peculiar form in which the writer relates to the listener/reader. It is a practical work from which narratives with a higher potential of attracting this reader can be revealed due to the interlocution which promotes. This study intends to equally contribute to the development of other studies inside this literary sphere.
KEYWORDS: Architectonic form. Polyphony. Multiplicity of voices. Dialogism. Aesthetics.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 10
2 POLIFONIA BAKHTINIANA: UMA OUTRA SÍNTESE 16
3 LITERATURA INFANTIL/JUVENIL CONTEMPORÂNEA:
CONTEXTO DE LUNA CLARA E APOLO ONZE 43
3.1 SINOPSE DE LUNA CLARA E APOLO ONZE 43
3.2 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA INFANTIL/JUVENIL
CONTEMPORÂNEA 44
4 A CONCEPÇÃO ESTÉTICA EM BAKHTIN: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES 58
5 A DIRETRIZ ESTÉTICA CONSTITUI O MÉTODO 66
5.1 EM RELAÇÃO À REPRESENTAÇÃO DOS HERÓIS – O CONTEÚDO: 68
5.2 EM RELAÇÃO AO DIÁLOGO VOLTADO PARA O LEITOR –
O MATERIAL: 69
5.3 EM RELAÇÃO À ORGANIZAÇÃO DAS RELAÇÕES NA OBRA –
A FORMA ARQUITETÔNICA: 70
6 A ARQUITETÔNICA EM LUNA CLARA E APOLO ONZE:
UMA ANÁLISE EM EXERCÍCIO 72
6.1 COMO O AUTOR REPRESENTA AS VOZES NA NARRATIVA 72
6.1.1 Os nomes e as marcas discursivas das personagens 72
6.1.2 A transformação resultante da interação refletida nas marcas discursivas
e nas ações das personagens 78
6.2 COMO O AUTOR DIALOGA COM O LEITOR E COM OS “OUTROS”
NO ROMANCE 83
6.2.1 A fragmentação dos capítulos e a reiteração como recurso
dialético-dialógico 83
6.2.2 “O bilhete” e a “utilização do verbo”: metáforas do lugar da palavra no
objeto estético 88
6.2.3 A expressão “minha Nossa Senhora” – “Ai Minha Nossa Senhora do
Que é Isso? Com a palavra, “a metalinguística” 91
6.2.4 A voz social do outro na voz do autor 94
6.2.5 A interdiscursividade: uma espécie de diálogo com o e no próprio diálogo
95
6.3 COMO O AUTOR ORGANIZA AS RELAÇÕES ENTRE AS PERSONAGENS
E O ESPAÇO DA HISTÓRIA 97
6.3.1 As relações dissonantes (de embate constitutivo)
entre as personagens 97
6.3.2 As relações antagônicas entre elementos que compõem o
espaço da narrativa 105
6.3.3 As influências carnavalizantes 106
6.3.4 As relações convergentes entre as personagens 111
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS 117
REFERÊNCIAS 126
10
1 INTRODUÇÃO
Não há quase nada mais necessário para o progresso do conhecimento, para comodidade da vida e exploração das coisas, do que poder dispor de suas próprias ideias; e não há talvez nada de mais difícil em toda conduta da inteligência, do que poder rejeitar completamente o mestre.
John Locke, 17141
Talvez, uma das observações mais intrigantes de Bakhtin2 a respeito de
Dostoiévski-artista3 seja o princípio da simultaneidade, isto é, o fato de o romancista
representar na literatura “transfiguração” da vida viva um mundo em que tudo o que
faz parte dele habita-o de maneira simultânea e coexistente. De certa forma, utilizou-
se tal concepção para instalar as bases do diálogo que norteia este trabalho, na
medida em que o tempo, a gênese, a causa – empregados apenas como categoria
formal para situar o “antes” – não se mostram atrativos.
Não serão aqui relacionados aspectos biográficos, releituras literárias ou
mesmo históricas do ilustre filósofo da enunciação, reflexões essas já expostas com
maestria na vasta produção de pesquisadores bakhtinianos, como Bezerra, Brait,
Faraco, Fiorin, Sobral, citando-se neste caso somente alguns autores brasileiros.
Para o pesquisador que começa a direcionar o seu olhar aos estudos linguísticos,
tão importante quanto conhecer teoricamente as reflexões dos pensadores que irão
servir-lhe de referência, talvez seja internalizá-las dialogicamente. Dito de outro
modo, talvez seja interessante ao pesquisador demonstrar que a teoria pode tornar-
se evidente, e, assim, acessível aos outros, porque combinada à pratica, isto é, à
palavra do estudo desenvolvido por ele.
Desse modo, até mesmo a escolha não arbitrária de uma epígrafe pode
configurar-se em exercício capaz de estimular a internalização de reflexões: a partir
da epígrafe presente nesta introdução torna-se possível, inclusive, ratificar que a
pesquisa encontra-se afinada com o pensamento bakhtiniano.
Implícita na observação de Locke residem uma ideologia e uma axiologia
ambas incapazes de emudecê-la. É possível interpretá-la monologicamente, por
certo. A utilização das expressões: “comodidade”, “exploração”, “poder”, “próprias
1 LOCKE, 1714 apud HESS, R.; WEIGAND, G. A escrita implicada. In: Revista Reflexões e Debates,
Universidade Metodista de São Paulo, abril 2006, S. 14-25. 2 Mikhail Mikhailovitch Bakhtin (1895-1975).
3 Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821- 1881).
11
ideias”, “rejeitar completamente”, “mestre”, vista isoladamente seria ilustração
perfeita, contudo armadilha ao olhar superficial. Por outro lado, também é plausível
atribuir teor dialógico à citação, ao refletir sobre esse mesmo campo semântico,
considerando o todo que une tais signos. Uma concepção de mundo já é uma
refração. Opta-se, por isso, pela via da interpretação dialógica. É sabido que não
existem “ideias, pensamentos e teses que não sejam de ninguém, que existam ‘em
si’”4 ou que não tenham absorvido algo de outras, sendo essa uma das diretrizes
primordiais bakhtinianas, traduzida pelo próprio simpósio universal ou grande
diálogo. Sabe-se também que os enunciados se ouvem mutuamente e reagem uns
aos outros de modo inevitável, constante, em tom volitivo, pois a “palavra supõe uma
escuta. Não se insulta nem se difama o vazio, precisamos do Outro (às vezes de si
próprio)”.5 O resultado dessas reações constitui a interação verbal em forma de
relação dialógica, integrante incontestável da proposta de Bakhtin. Assim, a
interpretação dialógica permite centrifugar a possível tendência centrípeta da
referida epígrafe. Sob esse ângulo, lê-se “rejeição”, termo suscitado na epígrafe,
como aquele embate de vozes a que corresponde o autêntico diálogo, o qual não
representa apenas um feixe de consonâncias, mas também de divergências. O
“mestre” também ganha outra acepção: não mais é tido como o centro, como o
detentor da palavra final, mas como alguém com quem se pode efetivamente
dialogar. Consequência da abertura ensejada pelo fenômeno do dialogismo, o
“mestre” “contrai relações de reciprocidade com outros indivíduos”.6 É essa, por sua
vez, a analogia que Bakhtin realiza a respeito da posição de Dostoiévski, como
autor-criador projetado/objetivado na narrativa, em relação às suas personagens,
critério que leva ao conceito de polifonia, à luz do qual se concebe este trabalho.
Diz-se “à luz da polifonia”, porque, em um primeiro momento, a obra Luna
Clara e Apolo Onze instigou a delimitação de uma temática que consistia em
analisar alguns elementos que sugeririam um fenômeno polifônico no romance. Em
decorrência disso, como introdução ao estudo e como tentativa de agregar outra
4 BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1997, p.32. 5 ZAVALA, Iris. O que estava presente desde a origem; trad. Fernando Légon e Diana Araujo Pereira.
In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.154. 6 BAKHTIN, op. cit., p.32.
12
perspectiva de análise7, efetivou-se a escrita de um artigo científico8. O estudo
desses e de outros elementos capazes de revelar a polifonia – o que implica
evidenciar não somente a diversidade de vozes em interação, mas a percepção das
personagens que as animam como essenciais na e para a trama, como vozes-
consciências “plenivalentes”.9 – poderá ser investigado, quem sabe, em projeto
futuro, pois há plena ciência de que para comprovar mesmo graus de polifonia no
romance de Adriana Falcão é necessário estudo aprofundado a respeito do tema.
É basicamente em Problemas da Poética de Dostoiévski (PPD) que se
percebe a complexidade do conceito de polifonia. É nele que Bakhtin proclama:
“estamos convencidos de que só Dostoiévski pode ser reconhecido como o criador
da autêntica polifonia”.10 Por isso, talvez, a polêmica acerca do termo tenha se
intensificado ainda mais. Quem sabe também em virtude da representatividade de
Dostoiévski no e para o cenário artístico-literário tal observação pudesse ter
simbolizado um empecilho a este trabalho. Não obstante, ela serviu de motivação,
justamente porque Bakhtin é visto como aquele “mestre”, porém não o da concepção
monológica, mas, como sugerido, alguém com quem se pode dialogar.
Assim, este trabalho pretende “dialogar”, não mais enfocando a hipótese
polifônica, mas, partindo dela – já que “não se pode falar de uma parte sem levar em
conta o todo de que ela é parte”.11 É por esta razão que a polifonia aqui permanece,
como forma dialética-dialógica, no sentido de apoiar e de conduzir a reflexão sobre
as bases da concepção estética proposta por Bakhtin, “resultante de um processo
7 Luna Clara e Apolo Onze, de Adriana Falcão, já despertou a atenção de outros pesquisadores. No
entanto, constatou-se, após averiguações no Portal CAPES, que os quatro estudos relativos à obra valeram-se principalmente dos aspectos literários riquíssimos que constituem o romance. Ver, dentre eles, duas monografias oriundas da Graduação e duas dissertações de Mestrado: SANTOS, Concísia Lopes dos. Luna Clara e Apolo Onze do arquivo ao repertório: o limiar de uma
transescritura em Adriana Falcão. Ano de Obtenção: 2010. BASILE, Viviane Rodrigues. A vida é um jogo em desatino: uma leitura de Luna Clara e Apolo
Onze. Ano de Obtenção: 2007. 8 GELETKANICZ, M. F. ; GOMES, N. M. T. A Multiplicidade de Vozes em Luna Clara e Apolo
Onze: estudo preliminar dos elementos que sugerem um fenômeno polifônico. In: VII SEPesq - Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação, 2011, Porto Alegre. VII SEPesq - Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação (Comunicação de Pós-Graduação). Porto Alegre: UniRitter, 2011. v. V.7. p. 01-13. 9 “Isto é, plenas de valor, que mantêm com as outras vozes do discurso uma relação de absoluta
igualdade como participantes do grande diálogo.” (N. do T. In: BAKHTIN, 1997, p. 4). 10
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p.30. 11
SOBRAL, Adail. A Estética em Bakhtin (Literatura, Poética e Estética). In: DE PAULA, Luciane;
STAFUZZA, Grenissa (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas: Mercado das
Letras, 2010. v.1. p.57.
13
que busca representar o mundo do ponto de vista da ação exotópica do autor, que
está fundada no social e no histórico, nas relações sociais de que participa o
autor”.12
A fim de presentificar tal noção, com embasamento nos princípios e reflexões
bakhtinianos fundamentados pelo próprio Círculo e por pensadores da atualidade
dedicados ao estudo de suas diretrizes, o romance Luna Clara e Apolo Onze será
analisado visando compreender a organização criativa expressa na multiplicidade de
vozes que o constitui e que motiva o respectivo estudo. Parte-se da hipótese de que
com essa organização o autor13 inaugura um fazer artístico diferenciado pelo
tratamento incomum que dá às vozes participantes do todo romanesco. Essa forma
particular (arquitetônica) de representação produz um dado efeito dialógico na
relação de reciprocidade entre autor-personagem-leitor, fazendo com que o foco da
pesquisa recaia justamente sobre a constituição dialógica de vozes que instauram
um modelo de escrita interativa, capaz de tornar também o leitor mais presente a
cada enunciação, fator que concede à trama uma singularidade no cenário literário
atual.
Portanto, a fim de demonstrar a modalidade de dialogismo que Adriana
Falcão explora criativamente na obra, o “vir-a-ser” deste diálogo encontra-se
estruturado em sete capítulos.
No segundo capítulo, seguinte ao introdutório, são destacados aspectos
relevantes sobre polifonia, concepção que parece incorporar, dialeticamente, todo o
pensamento bakhtiniano. Os aspectos elencados configuram-se necessários, pois
dialogam com os elementos presentes na abordagem estética e, portanto, com a
análise.
No terceiro capítulo, anexa-se uma sinopse de Luna Clara e Apolo Onze à
contextualização da literatura infantil/juvenil contemporânea. Com exemplificações
da obra, são pontuadas as peculiaridades estilísticas/estruturais que já fazem da
narrativa um objeto estético dialógico, pois evidencia-se que o romance transcende
os elementos próprios da teoria literária ali relacionados.
12
SOBRAL, Adail. Ético e estético – Na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas. In:
BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4.ed. São Paulo: Contexto, 2007. p.108. 13
Opta-se pela denominação impessoal “autor” em vez de “autora” em virtude da distinção bakhtiniana entre “autor-pessoa” e “autor-criador”.
14
No quarto capítulo, algumas considerações sobre a concepção bakhtiniana do
estético são ilustradas, pois essa concepção está, de modo significativo, incorporada
à análise e à interpretação que da obra se realiza. Nesse sentido, é como se a
estética constituísse o próprio método14 desta pesquisa.
No quinto capítulo, é apresentada a metodologia empregada no exame do
Corpus. O percurso analítico norteia-se, basicamente, pelas seguintes questões: a)
como o autor representa as vozes; b) como o autor dialoga com o leitor e com os
“outros” da narrativa; c) como o autor organiza as relações entre as personagens.
No sexto capítulo, é desenvolvida a análise da obra de Adriana Falcão.
Por fim, são tecidas as considerações finais da pesquisa a partir da análise
efetuada.
O princípio da simultaneidade é incorporado nesta introdução (e o será ao
longo desta dissertação) a fim de que seja utilizado como “critério para separar o
essencial do secundário”.15 Em outras palavras, dentre as relações históricas,
biográficas, literárias existentes, disseminadas em grandes obras e estudos
acadêmicos, importa a retomada de reflexões, como a contraposição entre
monologismo e dialogismo, a atuação de forças centrípetas e centrífugas, a noção
de diálogo, o significado das relações dialógicas, o princípio de reflexão e refração
do mundo, as cargas axiológicas, a natureza ideológica dos signos. Bakhtin, ao
esclarecer o princípio de simultaneidade, refere-se às personagens dostoievskianas
da seguinte maneira: “Do seu passado recordam apenas aquilo que para elas
continua sendo presente e é vivido como presente.”16
É a partir das reflexões suscitadas pela epígrafe que se revela o essencial a
ser mencionado nesta introdução. São as reflexões bakhtinianas que “do passado”
servem à palavra desta pesquisa, são elas que “continuam sendo presentes e
vividas como presentes”, porque necessárias para que se explore o texto
“interpretando sua forma arquitetônica, isto é, explicitando as inter-relações
axiológico-dialógicas que o constituem e dando a elas uma resposta [...]. E também
14
Sabe-se que a estética trata de uma diretriz bakhtiniana e não de uma metodologia. 15
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p.29. 16
Ibid., loc. cit.
15
descrevendo, na perspectiva da forma arquitetônica, a forma composicional”.17 – Eis
o exercício maior desta dissertação.
17
FARACO, Carlos Alberto. O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal. In:
BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.109.
16
2 POLIFONIA BAKHTININA: UMA OUTRA SÍNTESE
Em toda parte um determinado conjunto de ideias, pensamentos e palavras passa por várias vozes imiscíveis, soando em cada uma de modo diferente. O objeto das aspirações do autor não é, em hipótese nenhuma, esse conjunto de ideias em si mesmo, como algo neutro e idêntico a si mesmo. Não, o objeto é precisamente a passagem do tema por muitas e diferentes vozes, a polifonia de princípio e, por assim dizer, irrevogável, e a dissonância do tema. A própria distribuição das vozes e sua interação são importantes para Dostoiévski.
18
Mikhail Bakhtin (1895-1975)
Do encontro com o pensamento bakhtiniano em PPD, poder-se-ia inferir,
grosso modo, que para Bakhtin19 a história da literatura conta com um marco, como
se a vida literária pudesse ser vislumbrada sob dois prismas: “antes e depois de
Dostoiévski”. Segundo o filósofo, a prosa romanesca disseminada na sociedade,
anterior ao citado romancista, caracterizava-se como monológica ou homofônica,
isto é, representava uma espécie de literatura cujos traços estruturais e
composicionais das produções eram semelhantes no mundo inteiro. Conforme
sugerido por Bezerra, a atmosfera monológica comum a essas obras estava
impregnada de autocentrismo, autoritarismo, conclusibilidade, dependência,
restrição, elementos veiculados pelo autor: único detentor de voz e de ponto de vista
sobressalentes na trama que, consequentemente, somente por ele é profundamente
conhecida e conduzida.20
A atmosfera dialógica que, de acordo com Bakhtin, era característica própria
das obras de Dostoiévski diferenciava-se potencialmente da atmosfera monológica,
uma vez que priorizava o diálogo, a isonomia, a inconclusibilidade, a independência,
a interação. Esse conjunto de competências revelava a multiplicidade e a
diversidade de pontos de vista sem que uma única voz, ainda que salientada,
necessitasse dominar ou sufocar as demais. Acerca desse assunto, Bezerra reitera
as reflexões bakhtinianas da época, prestando um relevante esclarecimento:
18 BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.309-310. 19
Entenda-se o Círculo bakhtiniano. 20
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave/ Beth Brait, (org). 4.ed. São
Paulo: Contexto, 2007. p.191-200.
17
A inconclusibilidade e o não acabamento decorrem da condição do romance como um gênero em formação, sujeito a novas mudanças, cujas personagens são sempre representadas em um processo de evolução que nunca se conclui. O autoritarismo se associa à indiscutibilidade das verdades veiculadas por um tipo de discurso, ao dogmatismo; ao acabamento, ao apagamento dos universos individuais das personagens e sua sujeição ao horizonte do autor.
21
Antes, porém, de adentrar à complexidade inerente à polifonia como conceito,
interesse primordial deste capítulo, é possível, e quem sabe até recomendável, não
somente pela complexidade, mas pelo próprio encadeamento das ideias, vislumbrar
a temática sob uma perspectiva, diga-se, mais acessível, modesta, neste primeiro
momento. Afinal, de certa forma, o pronunciamento anterior, referente à monologia e
à dialogia, remete ao que Bakhtin já expõe quando menciona a existência de forças
centrípetas e centrífugas atuantes nos diálogos que permeiam as esferas de
atividade nas quais todos os sujeitos estão inseridos inevitavelmente.
Em quaisquer delas, sempre haverá o encontro entre indivíduos e, por
conseguinte, entre suas ideias. Trata-se da interação social que, no sentido
bakhtiniano, não diz respeito apenas à relação face a face (diálogo) tida como
evento isolado da comunicação à revelia entre seres independentes, mas
principalmente à relação considerada como evento singular do simpósio universal,
em que se dá a unicidade/subjetividade dos sujeitos. Assim, é por meio da
interdependência e capacidade de relacionamento entre eles na cadeia social e
cultural que as relações dialógicas se concretizam. Essas relações, para o Círculo
de Bakhtin, são “relações entre índices sociais de valor” 22, isto é, relações de
sentido surgidas do contato com o dizer do outro, ocasionando sentido responsivo
axiológico.
Com o que foi dito, é possível refletir sobre o modo de organização da
sociedade. Nela, cada sujeito pertence a grupos/comunidades com quem partilha
interesses, sendo capaz de posicionar-se avaliativamente em relação a algo. Aí
implicada encontra-se a noção de diálogo, não apenas como convergência, sentido
com que popular e usualmente é empregada, mas também como divergência. Em
ambos os casos, relações dialógicas sempre equivalem a espaços de tensão entre
21
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave/ Beth Brait, (org). 4.ed. São
Paulo: Contexto, 2007. p.191-200. 22
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as idéias linguísticas do Círculo de Bakhtin.
Curitiba: Criar Edições, 2003, p. 64.
18
enunciados, os quais, por sua vez, estão impregnados de ideologia. Nas palavras de
Faraco,
o diálogo, no sentido amplo do termo (“o simpósio universal”), deve ser entendido como um vasto espaço de luta entre as vozes sociais (uma espécie de guerra dos discursos), no qual atuam forças centrípetas (aquelas que buscam impor uma certa centralização verboaxiológica por sobre o plurilinguismo real) e forças centrífugas (aquelas que corroem continuamente as tendências centralizadoras, por meio de vários processos dialógicos tais como a paródia e o riso de qualquer natureza, a ironia, a polêmica explícita ou velada, a hibridização ou a reavaliação, a sobreposição de vozes etc).
23
Deduz-se, pois, dessas leituras que a concretude linguística, de cunho social
e ideológico, é heterogênea, atestando sua constituição não por voz una, mas por
inúmeras vozes que o sujeito presentifica/capta no e através do convívio com os
seus pares. No processo de interação social, essas vozes assumem nuanças
diversificadas, conforme a atuação das forças centrípetas e centrífugas dele
integrantes. Nesse sentido, tal tendência ambivalente, que se manifesta no interior
das relações sociais por intermédio de um grande diálogo contínuo, diz respeito ao
embate entre as vozes proclamadas autoritariamente e aquelas pronunciadas
persuasivamente.
As vozes autoritárias equivalem ao modo centrípeto de posicionar-se em
relação ao outro, através de um movimento autocentrado, pois há sempre uma
hierarquia, uma posição privilegiada de onde o “eu” encara o “outro”. Esse outro é
tido como ser inexistente, já que sua voz não é ouvida em favor da única que é
expressa no seu lugar. A voz desse “eu” autoritário intenciona justamente negar a
alteridade, impor a centralização enunciativa, estabelecer uma dada identidade,
exigindo que ela prevaleça na tentativa de fazer com que o diálogo cesse.
Por outro lado, as vozes persuasivas equivalem à maneira centrífuga de
colocar-se diante do outro e, por isso mesmo, através de um movimento interativo,
contrário ao de sentido centrípeto. Aqui há a valorização da alteridade em favor da
abertura e da heterogeneidade discursiva. A palavra que se revela autoritariamente,
23
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as idéias linguísticas do Círculo de Bakhtin.
Curitiba: Criar Edições, 2003. p. 67.
19
em seus variados tipos, é aquela que nos interpela, nos cobra reconhecimento e adesão incondicional. Trata-se de uma palavra que se apresenta como uma massa compacta, encapsulada, centrípeta, impermeável, resistente a bivocalizações [...]. Já a palavra que se apresenta como internamente persuasiva é aquela que aparece como uma entre outras muitas. Transita, portanto, nas fronteiras, é centrífuga, é permeável às bivocalizações e hibridizações, abre-se continuamente para a mudança [...].
24
A concepção bakhtiniana explanada por Faraco já remete, de certo modo, à
polifonia. Através do excerto, pode-se perceber como o ser humano é exposto ao
movimento dinâmico da vida, como é levado a posicionar-se em relação ao outro e,
ao mesmo tempo, interligar-se a esse outro pela teia sócio-ideológico-cultural que
envolve a todos. Logo, como produto dos movimentos centrípetos, tem-se o
monologismo; como produto dos movimentos centrífugos, o dialogismo. É, assim,
possível relacionar a palavra de Faraco à de Bezerra, pois
Na ótica da polifonia, as personagens que povoam o universo romanesco estão em permanente evolução. O dialogismo e a polifonia estão vinculadas à natureza ampla e multifacetada do universo romanesco, ao seu povoamento por um grande número de personagens, à capacidade do romancista para recriar a riqueza dos seres e caracteres humanos traduzida na multiplicidade de vozes da vida social, cultural e ideológica representada. Segundo Bakhtin, no monologismo o autor concentra em si mesmo todo o processo de criação, é o único centro irradiador da consciência, das vozes, imagens e pontos de vista no romance [...] O monólogo é algo concluído e surdo à resposta do outro, não reconhece nela força decisória [...].
25
Com isso, propõe-se uma reflexão sobre os aspectos-chave dessas duas
tendências enunciativas/discursivas, como forma de introduzir a temática desta
pesquisa, já que a visão bakhtiniana de polifonia perpassa tanto a de dialogismo
quanto a de monologismo. Afinal, “a atitude discursiva monológica é
intrinsecamente dialógica [porque constitui igualmente um ato responsivo] – como,
aliás, na concepção do Círculo, todas as manifestações verbais” [grifo nosso] 26.
Por intermédio desse reconhecimento, também é possibilitado o contato com
o que Bakhtin descreve: as influências monologizantes a que os sujeitos encontram-
se submetidos nas mais diversas situações/fases da vida. Para ele, o “eu” e o “outro”
são investidos dos mesmos poderes, gozam dos mesmos direitos, respondem a
responsabilidades comuns. Isso é particularmente relevante aqui na medida em que
24
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as idéias linguísticas do Círculo de Bakhtin.
Curitiba: Criar Edições, 2003. p. 81. 25
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave/ Beth Brait, (org). 4.ed. – São Paulo: Contexto, 2007.p.191-192. 26
FARACO, op. cit., p. 68.
20
auxilia a compreender o pensamento do Círculo, atentando-se para a chamada
“utopia bakhtiniana”, ou seja, para “a ideia de que a vida humana é por sua própria
natureza dialógica”.27 Afinal, conforme Bakhtin, “ser significa se comunicar, significa
ser para um outro e, pelo outro, ser para si mesmo”.28 Dessa forma, tem-se ratificada
a marca da perspectiva de Bakhtin, favorável ao diálogo, como elemento que
preserva a liberdade dos sujeitos, respeitando os seus posicionamentos através de
“uma relação em que o outro nunca é reificado; em que os sujeitos não se fundem,
mas cada um preserva sua própria posição de extra-espacialidade e excesso de
visão e a compreensão daí advinda”.29
Note-se, agora, a utilização do termo “reificado” (presente aqui e em outras
obras da produção bakhtiniana). Esse signo carregou consigo uma identidade
semântica, numa dada época, durante a qual transmitiu algo a um determinado
grupo. Bezerra30 reitera que o conceito de reificação foi utilizado por Marx na análise
do vínculo entre a mercadoria e aquele que a produzia. Tratava-se, portanto, de uma
relação pejorativa para o homem, que se via e era visto não como sujeito ativo, mas
como dependente do processo de produção do qual se sentia escravo e, através do
qual, se transformava em “coisa”: em objeto pertencente a outro alguém e que,
justamente por isso, perdia a sua autenticidade cada vez que era impelido a
reproduzir comportamentos não condizentes com “a sua verdade”.
Bakhtin apropria-se do referido conceito, relacionando-o à atmosfera
romanesca monológica tradicional, em que o homem é reificado, reificação essa
que, segundo ele, foi intensificada a partir da divisão de classes e do surgimento do
capitalismo. Isso é um indicativo de que assim como “não tomamos nossas palavras
do dicionário, mas dos lábios dos outros” 31, Bakhtin não inventa concepções
ineditistas superficiais, isoladas, geradas de modo fragmentado. Primeiramente,
ressalte-se, ele não inventa – “o falante não é o Adão Bíblico que nomeia o mundo
pela primeira vez” 32–, mas cria outras possibilidades, refletindo sobre o que existe e
respondendo a isso dialogicamente, valendo-se desse expediente para chegar a
27
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as idéias linguísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2003. p.73. 28
FARACO, loc. cit. 29
Ibid., p.74. 30
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave/ Beth Brait, (org). 4.ed. – São Paulo: Contexto, 2007. p.192. 31
FARACO, op. cit., p.81. 32
SOUZA, S. J. Infância e Linguagem: Bakhtin, Vigotski e Benjamin. 6.ed. Campinas, São Paulo:
Papirus, 1994. p. 100.
21
novas teses. Essa “postura filosófica” evidencia-se, por exemplo, no seguinte
excerto:
As novas formas de visão artística são preparadas lentamente, pelos séculos; uma época cria apenas as condições ideais para o amadurecimento definitivo e a realização de uma nova forma. Descobrir esse processo de preparação artística do romance polifônico é tarefa da poética histórica. Não se pode, evidentemente, separar a poética das análises histórico-sociais assim como não se pode dissolvê-la nestas.
33
Assim, o contexto sócio-político russo correspondente a essa época propiciou
as condições necessárias ao desenvolvimento e à efetivação desse novo modo do
fazer artístico literário, que Bakhtin concebeu como autêntica polifonia, coroando,
assim, Dostoiévski o criador do romance polifônico. Para Bakhtin, o universo criado
pelo romancista é plural, pois ele foi capaz de perceber nas contrariedades
efervescentes daquele período não a mera discórdia, mas a riqueza oriunda
justamente da multiplicidade de vozes que manifestavam pontos de vista distintos,
capazes de sinalizar um reflexo social objetivo da realidade circundante e não níveis
hierarquizantes dessa mesma sociedade retratada.
De fato, o romance polifônico só pode realizar-se na época capitalista. Além do mais, ele encontrou o terreno mais propício justamente na Rússia, onde o capitalismo avançara de maneira quase desastrosa [...] Aqui, a essência contraditória da vida social em formação [...] devia manifestar-se de modo sobremaneira marcante, enquanto deveria ser especialmente plena e patente a individualidade dos mundos que haviam rompido o equilíbrio ideológico e se chocavam entre si. Criavam-se, com isto, as premissas objetivas da multiplicidade de vozes do romance polifônico.
34
Além disso, ao prever que “novas formas de visão artística são preparadas
lentamente”, PPD é exemplar. A impressão que se tem ao realizar a leitura é a de
que o conceito polifonia, tido como “novidade”, foi construído ao longo de toda a
tradição literária, representada, sob a perspectiva dessa obra, através da retomada
de posicionamentos, de ideias dos estudiosos com os quais Bakhtin dialoga: B.M.
Engelgardt, J. Meier-Grafe (1867-1935), V. V. Rozánov (1856-1919), A. Volinski
(1863-1926), Merejkovski (1866-1941), Lev Shestov (1866-1938), Askóldov, Ivanov,
33
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. p. 37. 34
Ibid., p. 19.
22
Leonid Grossman (1888-1965), Otto Kaus, V. Komaróvitch, Lunatcharsky, Kirpótin,
Chklovsky.
Ao lado da palavra desses e de tantos outros pensadores, Bakhtin expõe a
sua tese, destacando as peculiaridades fundamentais do romance dostoievskiano
sob a ótica desses críticos. Bakhtin dialoga com eles e conosco, no sentido mais
amplo do termo. Ele traz à tona o assunto, ora concordando, ora discordando de
determinados pontos de vista dos seus companheiros, sempre lançando sobre eles
um olhar extraposto, pois, como não poderia deixar de ser, a sua voz não objetiva
negar ou enfraquecer as demais, mas lançar-se como outra. Talvez, “de todas as
vozes que o crítico mesclou à sua, de Rabelais e Goethe a Volochínov e
Miedviédev, a mais congenial ao próprio Bakhtin foi a de Dostoiévski”.35 Nas
palavras do filósofo: “Importa-nos apenas orientar a nossa tese, o nosso ponto de
vista entre aqueles já existentes sobre a poética de Dostoiévski. No processo dessa
orientação, esclarecemos momentos isolados da nossa tese.” 36 Nesse sentido, ele
demonstra não ser partidário de formalismos metodológico-científicos, visto que o
que apresenta com a sua voz e absorve das demais, literalmente na obra (prática),
são considerados como diretrizes, “modos de pensar e não um simples momento
formal”37. Ao mesmo tempo, insere a própria polifonia mais no contexto de “uma
visão de mundo do que uma categoria técnica.”38
É sob essa atmosfera que Bakhtin revela a utopia referida anteriormente e
que consiste em não idealizar um mundo romantizado no sentido platônico – já que
“ignorar a natureza social e dialógica do enunciado é apagar a profunda ligação que
existe entre a linguagem e a vida” 39 –, mas percebê-lo, senti-lo pelo tato polifônico.
Isso significa reconhecer, além da multiplicidade de vozes não fundíveis
participantes dos diálogos ininterruptos travados pelos sujeitos em interação, a
plenivalência dessas mesmas vozes, sejam elas influenciadas por movimentos
centrípetos ou centrífugos, bem como a equipolência das consciências por elas
representada.
35
CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin; trad. J. Guinsburg. – São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 258. 36
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. p. 6. 37
TEZZA apud FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as idéias linguísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2003. p.76. 38
TEZZA apud FARACO, loc. cit. 39
SOUZA, S. J. Infância e Linguagem: Bakhtin, Vigotski e Benjamin. 6.ed. Campinas, São Paulo:
Papirus, 1994, p. 103.
23
Como se vive em um contexto capitalista, prossegue árdua a tarefa de, como
lembra Faraco, “viver num mundo pesadamente monológico”40 sem ser arrebatado
justamente pelas tendências monologizantes provenientes do modelo de vida
sugerido por esse mundo. Logo, sentir-se parte de um mundo diverso regido pela
polifonia exige um exercício hercúleo no sentido de perceber o discurso monológico
não como força inquestionável, verdade absoluta, nem como voz reclamante de uma
hierarquia. Faz-se necessário perceber o discurso monológico, na sua indiscutível
existência, como tendência centralizadora do diálogo que, justamente por seu
antagonismo discursivo, propicia a revelação de força contraditória a ele e, portanto,
a heterogeneidade comunicativa.
É preciso reiterar o alerta bakhtiniano, esclarecendo que a heterogeneidade
da linguagem é também conhecida sob o título de heteroglossia ou plurivocidade.
Segue, pois, o seguinte esclarecimento de Sobral:
Cabe mencionar, por exemplo, com referência a plurilinguismo, que outra designação sua é heteroglossia. Em ambos os casos, trata-se literalmente da ideia de “verbalidade múltipla”, designada pelo vocábulo russo raznorechie, ainda que, no Ocidente, “heteroglossia” seja mais usado para o contato interlinguístico, para a presença de várias línguas num dado Estado ou para a presença de várias linguagens numa mesma língua, ao passo que plurilinguismo comparece mais a referências à presença de vozes no romance.
41
Segundo Faraco42, “polifonia não é, para Bakhtin, um universo de muitas
vozes, mas um universo em que todas as vozes são equipolentes”. Portanto, a
heterogeneidade que caracteriza a polifonia é marcada por vozes que não
reivindicam umas às outras posição enunciativa privilegiada. É nesse elemento que
se descortina tanto a peculiaridade quanto a complexidade polifônica.
Realizada essa básica distinção, é importante enfatizar que o próprio termo
polifonia empregado por Bakhtin não foge à regra quanto ao método dialético-
dialógico de construção dos princípios por ele adotados e/ou formulados. Assim
como Bakhtin empregou o termo “reificado”, oriundo do marxismo, para referir-se a
uma condição do estar do sujeito no romance monológico, polifonia é palavra
40
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as idéias linguísticas do Círculo de Bakhtin.
Curitiba: Criar Edições, 2003. p.7. 41 SOBRAL, Adail. Filosofias (e filosofia) em Bakhtin. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave/ Beth
Brait, (Org.). 4.ed. – São Paulo: Contexto, 2007. p.124-125. 42
FARACO, op. cit., p.75.
24
tomada da área musical. Abaixo, definição constante no Dicionário de Termos e
Expressões da Música:
Polifonia (it. gr.: vários sons; ing. Polyphony, Fr., al. poliphonie): estilo musical no qual várias vozes ou partes instrumentais são combinadas de maneira contrapontística (mantendo a individualidade da linha) em oposição à homofonia (um único som ou melodia). Em termos históricos, a era polifônica foi definida entre os séculos XIII e XVI, sobrevivendo até o início do século XVII.
43
Em PPD, Leonid Grossman é mencionado por Bakhtin como “fundador do
estudo objetivo e coerente da poética na crítica literária”, preciso e sutil ao atentar ao
aspecto composicional da obra de Dostoiévski. Na visão desse crítico, “a base da
composição de cada romance de Dostoiévski é o ‘princípio das duas ou várias
novelas que se cruzam’, que completam pelo contraste umas às outras e estão
relacionadas pelo princípio musical da polifonia.” 44
Dessa forma, Bakhtin foi capaz de perceber no termo polifonia uma relação
análoga potencial em que transpõe “para o plano da composição literária a lei da
passagem musical de um tom a outro”.45 Além disso, por intermédio das
observações de Grossman, soube-se que o próprio Dostoiévski fez uso dessa
analogia. A propósito, apresenta-se trecho da declaração do romancista, constante
na carta endereçada ao irmão, atinente à publicação de Memórias do Subsolo:
[...] A novela divide-se em três capítulos... O primeiro terá cerca de 1 ½ folhas...Será preciso editá-los separado? Neste caso, provocará muitas zombarias, tanto mais que com os outros capítulos (os mais importantes) ele perde todo o seu suco. Você compreende o que é, em música, uma passagem. O mesmo ocorre no caso presente. No primeiro capítulo parece que há tagarelice; mas de repente essa tagarelice culmina numa inesperada catástrofe nos dois últimos capítulos.
46
Portanto, Dostoiévski corporifica o contraponto artístico como base para a
construção da sua novela que segue oferecendo respostas e, simultaneamente,
lançando oposições diversas, capazes de instigar outras tantas reações e posições
43 DOURADO, Henrique Autran. Dicionário de termos e expressões da música. 1.ed. São Paulo:
Ed.34, 2004. p.258.. 44
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p.43. 45
BAKHTIN, loc. cit. 46
GROSSMAN apud BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo
Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 43.
25
através das vozes e consciências animadas pelas personagens. Trata-se, pois, nas
palavras de Bakhtin:
[...] (do) ponto contra ponto (punctum contra punctum). São vozes diferentes cantando diversamente o mesmo tema. Isto constitui precisamente a polifonia, que desvenda o multifacetado da existência e a complexidade dos sofrimentos humanos.
47
Por meio da mesma fonte, também é possível tomar conhecimento de que
“tudo na vida é contraponto, isto é, contraposição” 48 é um princípio ressaltado por
M. I. Glinka, compositor apreciado por Dostoiévski. O método dialético-dialógico de
construção do saber está presente nesse princípio, já que Bakhtin utiliza a tese de
Glinka para esclarecer a sua própria: “para Dostoiévski, tudo na vida é diálogo, ou
seja, contraposição dialógica”.49 Na seguinte elucidação, é enfatizado o caráter
metafórico da polifonia bakhtiniana:
Cabe observar que também a comparação que fazemos do romance de Dostoiévski com a polifonia vale como analogia figurada. A imagem da polifonia e do contraponto indica apenas os novos problemas que se apresentam quando a construção do romance ultrapassa os limites da unidade monológica habitual, assim como na música os novos problemas surgiram ao serem ultrapassados os limites de uma voz. Mas as matérias da música e do romance são diferentes demais para que se possa falar de algo superior à analogia figurada, à simples metáfora. Mas é essa metáfora que transformamos no termo romance polifônico, pois não encontramos designação mais adequada. O que não se deve é esquecer a origem metafórica do nosso termo.
50
Assim sendo, para Bakhtin, do ponto de vista metafórico, Dostoiévski
inaugurou o contraponto romanesco na medida em que foi capaz de renovar as
formas de combinação estética entre os elementos da narrativa e da sua
composição integral. Portanto, segundo ele, ao contrário do romance monológico
(europeu e russo), com as tramas dostoievskianas, passou-se a conhecer não um
mundo definitivo, no qual imperava uma única consciência, geralmente a do autor,
mas a descobrir partes de vários mundos, aspectos multifacetados de realidades
diversas e concomitantes. Passou-se, assim, a reconhecer, de maneira diferenciada,
a entonação, o enredo, o estilo e o sentido como elementos interligados e
dependentes entre si. Isso implica afirmar que coube a Dostoiévski, segundo
47
BAKHTIN, op. cit., p.44. 48
Ibid., loc. cit. 49
Ibid., loc. cit. 50
Ibid., p.21.
26
Bakhtin, a “tarefa de construir um mundo polifônico e destruir as formas já
constituídas do romance europeu, principalmente do romance monológico
(homofônico).” 51
O romance polifônico é, então, aquele que reflete uma multiplicidade de
vozes. Porém, nenhuma delas, incluindo a do autor, destaca-se em relação às
demais. Dessa forma, não há uma concepção filosófica determinante, correta ou
equivocada. O autor não privilegia a sua visão em detrimento da que as
personagens apresentam do mundo e delas mesmas e, por isso, não as trata como
secundárias, como meros objetos da sua criação, interpretação e intenção artística.
Os heróis, independentes e ideologicamente competentes, são os próprios porta-
vozes das suas filosofias, embora eles sejam organizados pelo autor. “À semelhança
do Prometeu de Goethe, Dostoiévski não cria escravos mudos (como Zeus) mas
pessoas livres, capazes de colocar-se lado a lado com seu criador, de discordar dele
e até rebelar-se contra ele.”52 Isso já sinaliza que na narrativa polifônica torna-se
propícia a articulação do diálogo mais amplo e pleno. Por conseguinte, são
possibilitados a polêmica, o aprendizado, o desenvolvimento ideológico e o
(re)descobrimento identitário, sob a ótica tanto do autor quanto dos heróis, ambos,
ressalte-se, participantes da interação investidos de direitos. Embora extenso, foi
destacado o seguinte excerto, pois ele parece sintetizar, de modo evidente e
objetivo, o princípio da polifonia na própria “voz” de Bakhtin:
51
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. p.6. 52
Ibid., p.4.
27
A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. Não é a multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo uno, à luz da consciência una do autor, se desenvolve nos seus romances; é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade. Dentro do plano artístico de Dostoiévski, suas personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante. Por esse motivo, o discurso do herói não se esgota, em hipótese alguma, nas características habituais e funções do enredo e da pragmática, assim como não se constitui na expressão da posição propriamente ideológica do autor (como em Byron, por exemplo). A consciência do herói é dada como a outra, a consciência do outro mas ao mesmo tempo não se objetifica, não se fecha, não se torna mero objeto da consciência do autor. Neste sentido, a imagem do herói em Dostoiévski não é a imagem objetivada comum do herói no romance tradicional.
53
Por sua vez, essa nova posição do autor em relação às personagens no
romance polifônico requer uma mudança. Segundo Bakhtin, o modo de atuação do
narrador difere da maneira como se coloca o narrador do romance monológico, pois
o corpus de sua representação de seres objetificados passa a ser o de sujeitos
independentes dotados dos mesmos direitos.
O mundo “transfigurado” por Dostoiévski abriga um herói capaz de pronunciar
a sua voz, tal qual o faz o autor no romance tradicional. O herói não se diz, nem diz
o mundo pela voz do autor, porque não vive à sombra dele, de seu reconhecimento
ou de sua visão. O herói, ao contrário, passa a afirmar-se por intermédio da própria
palavra, também plena de valor, e a reconhecer-se como sujeito cuja ação não está
mais subordinada à mera reprodução da voz do autor ou do que esse possa
pensar/dizer a respeito dele, com base em uma imagem objetificada, cristalizada em
traço característico superficial. Assim, pela primeira vez, a voz do herói “possui
independência excepcional na estrutura da obra, é como se soasse ao lado da
palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes
plenivalentes de outros heróis.” 54
Quanto a essa independência interior das personagens, é importante salientar
que ela se refere ao processo de liberdade assumido pela personagem na estrutura
do romance, isto é, a personagem liberta-se do que o autor comum e
superficialmente define e conclui a partir de uma visão exterior, reduzida a respeito
dela. No entanto, o plano do autor, no sentido da construção artística, não é abalado
53
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. p.4 et sec. 54
Ibid., p.5.
28
por essa independência, pois ela mesma faz parte desse plano, “que determina de
antemão a personagem para a liberdade (relativa, evidentemente) e a introduz como
tal no plano rigoroso e calculado do todo.” 55
O que foi mencionado reforça a ideia de que no romance polifônico, conforme
reitera Bezerra56, o autor não é tido como um ser passivo por “deixar fluir” a
independência e a liberdade das personagens, mas é especialmente ativo por
desencadear esse processo dialógico, a partir do qual a própria polifonia pode
manifestar-se. Ele não se isenta de oferecer a sua própria visão de mundo
justamente, porque “uma coisa é ser ativo em relação a um ente inanimado [...]; é
coisa bem diversa ser ativo em relação a outra consciência viva, igualmente
privilegiada”.57 Além disso, se o romance polifônico brinda à multiplicidade de
consciências independentes, imiscíveis e equipolentes, da mesma forma, seria uma
contradição afirmar que ao autor cabe “papel secundário”. De acordo com o que é
sugerido por Bezerra, esse autor apenas não é o “dono” das personagens, não
atribui a concepção integral delas à sua criação artística, percebendo-as antes como
sujeitos tão vivos quanto ele.
Portanto, é a própria vida em interação vital o que esse autor capta da esfera
concreta e faz transparecer no romance. É como se o autor ciente de que é “igual”
às personagens – “voluntariamente ou não, somos todos da mesma maneira
comunicantes” 58 – somente conclamasse a companhia delas. A esse respeito,
segue uma metáfora ilustrativa:
O que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do grande coro de vozes que participam do processo dialógico. Mas esse regente é dotado de um ativismo especial, rege vozes que ele cria ou recria, mas deixa que se manifestem com autonomia e revelem no homem um outro “eu para si” infinito e inacabável. Trata-se de uma “mudança radical da posição do autor em relação às pessoas [grifo meu] representadas, que de pessoas coisificadas se transformam em individualidades.
59
55
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1997. p.11-12. 56
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave/ Beth Brait, (org). 4.ed. São
Paulo: Contexto, 2007. p.199. 57
BAKHTIN apud CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin; trad. J. Guinsburg. São
Paulo: Perspectiva, 1998. p.263. 58
EMERSON, Caryl. Os cem primeiros anos de Mikhail Bakhtin; trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de
Janeiro: DIFEL, 2003. p.162. 59
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave/ Beth Brait, (org). 4.ed.
São Paulo: Contexto, 2007. p.194.
29
Desse modo, no romance polifônico são transmitidas diversas problemáticas
existenciais, mas não como o são em um romance monológico, pois em Dostoiévski
as questões vitais são “avaliadas” também pelas próprias personagens que
constituem vozes autônomas, portanto, singulares e instigantes.
Quanto ao autor, é como se “apenas presenciasse essas discussões
convulsivas e observasse, curioso, para ver de que modo elas terminariam e que
rumo tomaria a questão”.60 Nesse sentido é que se descobre a natureza
efetivamente participante da autoria, pois a apreciação curiosa dos discursos-ações
fervorosos das personagens, por parte do autor, não lhe confere neutralidade, mas
uma voz tão independente quanto a delas. É a partir justamente daquilo que causa
impressão de passividade na postura do autor – observação/dúvida/distanciamento
– que se dá a liberdade das consciências expressas no todo novelístico. Nas
palavras de Clark e Holquist, “o romancista permanece em silêncio para que os
outros possam falar e, ao falar, decreta a liberdade deles”.61 Tal percepção é
sugerida também no seguinte excerto:
Os autores polifônicos, quando “descem à terra” para dar a suas criações um tratamento mais horizontal do que vertical, projetam seus personagens para saber, potencialmente, tanto quanto sabem eles próprios. Esses autores costumam dizer do herói que criaram: ele tem de fazer isto e aquilo, embora eu não saiba por quê. O que posso fazer para ajudá-lo a mostrar-me suas razões?
62
De acordo com Clark e Holquist63, faz parte da concepção monológica
convencional a noção de que cabe ao autor demonstrar seu posicionamento, suas
intencionalidades, tornando-as entonações explícitas ao leitor. No entanto, tal
postura é descartada do princípio polifônico, que não possibilita uma resposta
objetiva frente ao questionamento do que os autores pretendiam dizer. Nesse
contexto, não é mais possível concluir as personagens apenas com base nas suas
características físicas, por exemplo. Em termos de autoria, Bakhtin explicita o modo
dostoievskiano de representação das personagens:
60
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. p.33-34. 61
CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin; trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 267. 62
EMERSON, Caryl. Os cem primeiros anos de Mikhail Bakhtin; trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003. p.161. 63
CLARK; HOLQUIST, op. cit. p.262.
30
Dostoiévski [...] não trabalha com imagens objetivas de pessoas, não procura discursos objetivos para as personagens (características e típicas) [...] mas a sua posição ideativa (ideológica) definitiva no mundo, a cosmovisão, procurando para o autor e enquanto autor palavras e situações temáticas provocantes, excitantes, interrogativas e veiculadoras do diálogo. Nisto reside a profunda originalidade do processo artístico em Dostoiévski. Estudar sob essa ótica os rascunhos do romancista é tarefa importante e interessante.
64
Como aspecto complementar, torna-se pertinente salientar que pelo termo
bakhtiniano extralocalidade entende-se também a posição do autor do romance
polifônico em relação às personagens. Conforme Clark e Holquist65, trata-se muito
mais de um modo especial de envolvimento entre eles do que de uma localização no
sentido espacial/físico, como a composição lexical da palavra sugere inicialmente.
Assim sendo, os autores destacam que Dostoiévski não se posta nem ao lado nem
abaixo de suas personagens, tampouco acima delas, pois é ciente de que todos,
indistintamente, são dotados da linguagem que se intercambia através das palavras
próprias e alheias. Talvez, essa seja a razão pela qual
Bakhtin define a relação de Dostoiévski com as suas personagens como governada pelo mesmo conjunto de condições que prevalece em todo discurso. Por isso, as opiniões de Bakhtin sobre Dostoiévski não podem ser separadas de sua teoria geral do discurso, em que eu nunca estou livre para impor minha intenção desimpedida, mas devo sempre mediá-la através das intenções dos outros, a começar pela outridade da própria linguagem em que estou falando. Tenho que entrar em diálogo com outrem.
66
Além disso, Bakhtin realiza o tropo teológico, uma metáfora a partir da qual é
possível inferir que o relacionamento de Deus com os homens é semelhante ao dos
autores com as personagens por eles (re) criadas.67
No romance monológico, assim como “os autores são ‘sentidos em toda
parte, mas em parte alguma vistos’”, da mesma forma, “os deuses são pertencentes
a uma ordem de existência mais elevada do que a das criaturas feitas por ele”.68
Assim, os autores do romance monológico são tidos como transgredientes69,
64
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1997. p.41. 65
CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin; trad. J. Guinsburg. São Paulo:
Perspectiva, 1998. p.264. 66
Ibid., loc. cit. 67
Ibid., p. 266. 68
Ibid., p. 267. 69
No livro de Clark e Holquist, lê-se o termo “transgredientes” no sentido de “superiores”. Aqui é
mantido apenas a título de curiosidade/de advertência, já que o sentido de “transgrediente”,
comumente empregado nas versões mais disseminadas de Bakhtin para o português, é justamente
31
justamente por se posicionarem acima de suas personagens, conferindo-lhes as
palavras convenientes aos propósitos deles, roubando dessas personagens a
privacidade e, por isso, exercendo uma manipulação sobre elas. No romance
polifônico há uma mudança de concepção. Nele, o autor “renuncia ao privilegio de
uma existência distinta superior a fim de descer em seu texto, para ficar entre as
suas criaturas”.70
Bakhtin esclarece a peculiaridade da maneira dostoievskiana de apresentar
ideias sob o viés da filosofia cristã:
Este desconhece, não contempla nem representa a “ideia em si” no sentido platônico ou o “ser ideal” no sentido fenomenológico. Para Dostoiévski não há ideias, pensamentos e teses que não sejam de ninguém, que existam “em si”. A própria “verdade em si” ele concebe no espírito da ideologia cristã, como encarnação em Cristo, isto é, concebe-a como sendo um indivíduo que contrai relações de reciprocidade com outros indivíduos.
71
A esse propósito, leva-se em consideração a afirmação de Dostoiévski: “se
alguém me provasse que Cristo está do lado de fora da verdade e se a verdade
realmente excluísse Cristo, eu ficaria com Cristo e não com a verdade”.72
Tal como observam Clark e Holquist73, pode-se constatar que a essência
romanesca polifônica não está no valor do ideal, como posicionamento individualista
da personagem, mas na especificidade de interação do dizer dela com outros
dizeres, pois “a consciência nunca se basta por si mesma, mas está em tensa
relação com outra consciência74”.
É em relação a este aspecto que se fortifica a orientação dialógica do novo
gênero romanesco inaugurado por Dostoiévski: “o valor polifônico” da
individualidade. “Eu me projeto no outro que também se projeta em mim, nossa
oposto ao da tradução de J. Guinsburg, na medida em que transmite a relação de distanciamento
entre autor e herói: “’Transgrediente’, de fato, significa também dar um passo, um passo fora de
qualquer alinhamento, combinação, sincronia, semelhança, identificação. Este termo vem do latim
transgredo; e em inglês equivale a step across, step over, ‘passar através de’, ‘passar além de’”.
(BAKHTIN, 2010, p. 10). 70
CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin; trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1998. p.267. 71
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski; 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1997. p.32. 72
EMERSON, Caryl. Os cem primeiros anos de Mikhail Bakhtin; trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de
Janeiro: DIFEL, 2003. p.196. 73
CLARK; HOLQUIST, op. cit. p.259. 74
BAKHTIN, op. cit., p.32.
32
comunicação dialógica requer que meu reflexo se projete nele e o dele em mim
[...].”75 Logo, o retrato dessa “individualidade dialogizada” foi registrado pelo
romancista nos discursos da narrativa polifônica. Esse é elemento tradutor de outra
complexidade inerente ao pensamento bakhtiniano, o fato de o “eu” e de o “outro”
constituírem pólos axiológicos por excelência.
Há um conjunto de valores que eu aplico por mim mesmo a mim mesmo e o outro que eu aplico a todos os outros que não são eu. Eles, por sua vez, fazem a mesma distinção entre si próprios e os outros. E na brecha entre os dois sistemas de valores está o espaço onde o diálogo é buscado em seu nível mais profundo.
76
Especificamente em relação ao diálogo, segue uma observação análoga
sobremaneira interessante: o “diálogo é um risco precisamente porque é tão comum,
prosaico e não dramático. Corremos o risco do diálogo sempre que assumimos um
compromisso responsável, mas provisório – isto é, o tempo todo”.77
Por isso, metaforicamente, o romance polifônico “é um risco”. Ao incorporar
em si mesmo a noção do grande diálogo, rompe com a concepção convencional de
que uma obra artística necessita ser concluída, aliás, ideia criticada por Bakhtin de
acordo com Clark e Holquist78. Conforme sugerido por Emerson79, é o “outro”
externo/concreto apto a conhecer e a concluir o meu pensar, é ele quem me
desvincula disso, propiciando a minha avaliação coesa e, posteriormente, dotando-
me da capacidade, tanto de manter, quanto de transformar o que penso, reconheço
de mim ou do outro.
No romance polifônico, esclarece Bezerra, o autor vislumbra a essência do
indivíduo como um outro “eu”, ímpar, inconcluso; não se propõe a desvendar a si
próprio, mas a esse “outro” que constitui justamente o “eu” divergente,
desconhecido. Assim, o “eu” e o “outro” projetam-se mutuamente, ato esse que
75
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave/ Beth Brait, (Org.). 4.ed.
São Paulo: Contexto, 2007, p.194.. 76
CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin; trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1998. p.261. 77
EMERSON, Caryl. Os cem primeiros anos de Mikhail Bakhtin; trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de
Janeiro: DIFEL, 2003. p.191-192. 78
CLARK; HOLQUIST, op. cit., p.262. 79
EMERSON, Caryl. loc. cit.
33
instiga naturalmente a ratificação de que existem “duas multiplicidades de ‘eu’, [...]
duas multiplicidades de infinitos que convivem e dialogam em pé de igualdade”.80
Bakhtin ressalta que a originalidade de Dostoiévski está na sua capacidade
de perceber o valor da individualidade (a individualidade retratada no sentido
dialógico, objetivo-artístico), pois não fundiu com a sua nem reduziu à realidade
psíquica objetificada a voz do outro, respeitando a subjetividade e ressaltando as
intersubjetividades que se revelam a partir da interação entre autor e personagens.
A alta apreciação do indivíduo não aparece pela primeira vez na cosmovisão de Dostoiévski, mas a imagem artística da individualidade do outro (se adotarmos esse termo de Askóldov) e muitas indvidualidades imiscíveis, reunidas na unidade de um certo acontecimento espiritual, foram plenamente realizadas pela primeira vez em seus romances.
81
No entanto, esse e outros aspectos da originalidade artística de Dostoiévski
foram interpretados pela crítica literária sob enfoque filosófico monológico. Bakhtin
cita Rozanov, Volinski, Merejkovsky, Lev Shestov como exemplos de estudiosos que
em suas análises tiveram de apelar à antinomia ou dialética. Assim, nos limites de
uma cosmovisão una, eles procediam à sistematização e ao enquadramento dos
pontos de vista, das ideologias, tanto do autor quanto das personagens, dispostos
dialética e/ou antinomicamente; também soterravam a imiscibilidade dessas
ideologias com o entrecruzamento de ideias equivocadas, porque dirigidas a uma
unidade de consciência. Com isso, não conseguiram mais do que ignorar justamente
a principal riqueza dos romances dostoievskianos, a concretude e a integridade das
vozes-consciências manifestas na multiplicidade e na interação entre elas. Infere-se
que, talvez, o maior equivoco desses críticos tenha sido o de preocuparem-se em
eleger “uma das vozes conflitantes como a que ‘verdadeiramente representa’ o
ponto de vista do ‘próprio’ Dostoiévski, que é realmente o deles próprios”. 82
Bakhtin esclarece que a dialética e a antinomia integram o universo de
Dostoiévski e, por vezes, o pensamento das personagens. Porém, alerta para o fato
de que as relações lógicas associam-se a consciências isoladas sem dar conta da
rede de acontecimentos que as faz relacionarem-se. Acerca disso, Bakhtin elucida:
80 BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave/ Beth Brait, (org). 4.ed. São
Paulo: Contexto, 2007, p.194. 81
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1997. p.11. 82
CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin; trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1998. p.259.
34
O universo dostoievskiano é profundamente personalista. Ele adota e interpreta todo o pensamento como posição do homem, razão pela qual, mesmo nos limites de consciências particulares, a série dialética ou antinômica é apenas um momento inseparavelmente entrelaçado com outros momentos de uma consciência concreta integral. Através dessa consciência concreta materializada, na voz viva do homem integral a série lógica se incorpora à unidade do acontecimento a ser representado. Incorporada ao acontecimento, a própria ideia se torna factual e assume o caráter de “ideia-sentimento”, “ideia-força”, que cria a originalidade ímpar da “ideia” no universo artístico de Dostoiévski.
83
Em relação ao gênero e à composição romanesca de Dostoiévski, neste
trabalho, alia-se ao processo de “descobrimento” da polifonia outra observação de
Grossman, tida por Bakhtin como “excelente caracterização descritiva”. Ela traduz,
de certa maneira, o esforço implícito na apreensão “polifônica” (ainda inexistente):
É esse – diz ele – o princípio fundamental da composição do seu romance: subordinar os elementos diametralmente opostos da narrativa à unidade do plano filosófico e ao movimento em turbilhão dos acontecimentos [...] Dostoiévski coaduna os contrários. Lança um desafio decidido ao cânon fundamental da teoria da arte. Sua meta é superar a maior dificuldade para o artista: criar de materiais heterogêneos, heterovalentes e profundamente estranhos uma obra de arte una e integral [...]. Lança ousadamente nos seus cadinhos elementos sempre novos, sabendo e crendo que no auge do seu trabalho criativo os fragmentos crus da realidade cotidiana, as sensações das narrativas vulgares e as páginas de inspiração divina dos livros sagrados irão fundir-se e corporificar-se numa nova composição e assumir a marca profunda dos seus estilo e tom pessoais”.
84
Ao mesmo tempo, a descrição de Grossman (citado por Bakhtin) demonstra a
insuficiência resultante dessa tentativa de apreensão, também sob o ponto de vista
bakhtiniano, pois o filósofo rebate a descrição com este pronunciamento:
Quanto ao movimento em turbilhão, qualquer romance cinematográfico vulgar pode competir com Dostoiévski. Em relação à unidade do plano filosófico, este por si só não pode servir de fundamento último da unidade artística [...] Já a unidade do romance de Dostoévski está acima do estilo pessoal e acima do tom pessoal nos termos em que estes são entendidos pelo romance anterior a Dostoiévski”. Do ponto de vista da concepção monológica da unidade do estilo (e por enquanto existe apenas essa concepção), o romance de Dostoiévski é poliestilistico ou sem estilo; do ponto de vista da concepção monológica do tom, é polienfático e contraditório em termos de valor; as ênfases contraditórias se cruzam em cada palavra de suas obras.
85
83
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. p.7-8. 84
GROSSMAN apud BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. p.13. 85
BAKHTIN, op. cit., p.14.
35
Essas contradições, diversidades em Dostoiévski, oriundas do tecido
heterogêneo que reveste os romances dele, parecem constituir por si só o “eu” e o
“outro” em um processo pautado pala infinita inter-relação dialogal. As próprias
ênfases contraditórias, diversas, são como seres participantes da narrativa. Elas se
mostram, se experimentam, se deslocam de um plano a outro pelo movimento
dinâmico de múltiplas cosmovisões plenivalentes que as ofertam mediante
perspectivas, “mundos”, consciências sempre variadas, plenas e equipolentes. São
esses elementos, por sua vez, que se entrelaçam no e integralizam o romance
polifônico, pois “graças a essa variedade de mundos, a matéria pode desenvolver
até o fim a sua originalidade e especificidade sem romper a unidade do todo nem
mecanizá-la”.86
Nesse sentido, o diálogo possui um papel fundamental. É isso o que
Grossman ressalta no ensaio publicado em Put Dostoievskovo (O Caminho de
Dostoiévski). Segue excerto interessante do ponto de vista da multiplicidade de
vozes:
A forma da conversa ou da discussão – diz ele –, onde diferentes pontos de vista podem dominar alternadamente e refletir matizes diversos de confissões opostas, aproxima-se sobremaneira da personificação dessa filosofia, que está em eterna formação e nunca chega à estagnação. Nos momentos em que um artista contemplador de imagens como Dostoiévski fazia suas reflexões profundas sobre o sentido dos fenômenos e os mistérios do mundo, diante dele devia apresentar-se essa forma de filosofar, na qual cada opinião é como se viesse a tornar-se um ser vivo e constituir-se da voz inquieta do homem.
87
Essa reflexão foi selecionada, porque, de acordo com Bakhtin, Grossman
soube captar a natureza personalista da ideia na poética dostoievskiana, isto é, o
fato de cada opinião representar um ser vivo e constituir-se inseparável da voz
materializada do homem. Essa, somada a outras observações do pensador,
instigou, inclusive, o categórico testemunho de Bakhtin:
86
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1997. p.15. 87
GROSSMAN apud BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo
Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. p.15.
36
Se Grossman relacionasse o princípio composicional de Dostoievski – a unificação das matérias mais heterogêneas e mais incompatíveis – à multiplicidade de centros-consciências não reduzidos a um denominador ideológico, chegaria bem perto da chave artística dos romances dostoievskianos – a polifonia.
88
O aspecto da interação no romance polifônico remete a outro igualmente
relevante neste contexto: a eventicidade do Ser. Trata-se do modo como Bakhtin
concebe o mundo e reconhece o sujeito dele integrante, isto é, um sujeito
participativo. Logo, dada essa condição participante, não há possibilidade de
representação de um ser indiferente na forma artística polifônica. Porém, o
que/quem seria esse indiferente? Talvez, possa refletir-se a respeito “visualizando”
as personagens típicas que o movimento monológico tenta classificar como
secundárias, aquelas personagens demonstradas unicamente como
produto/resultado da concepção estética do autor, aquelas personagens que, muitas
vezes, passam a impressão de que existem para enfeitar/preencher um determinado
cenário, mas não servem ao todo da obra, motivo pelo qual, ao longo dos capítulos,
vão sendo naturalmente “descartadas” pelo leitor.
Essa “imagem” parece falar da indiferença presente no modo de
representação do mundo e das personagens pelo romance tradicional. Trata-se de
uma concepção lírica, idealizada, pois a realidade concreta aponta para outra
direção, ou seja, para a do mundo da vida, no qual, “ao se perceber único (de dentro
da sua própria existência e não como um juízo teórico), este sujeito não pode ficar
indiferente a esta sua unicidade; ele é compelido a se posicionar [...]”.89 Dessa
forma, como os romances caracterizam-se por capturar a vida concreta e animá-la
na ficção, as personagens, o autor e o leitor realizam, nesse trânsito, as suas
unicidades, oriundas do ato individual e responsável (não indiferente), porque estão
constantemente se posicionando, se relacionando com tudo o que lhes é externo,
com o outro.
Essa concepção instaura a necessidade de uma distinção entre os termos
relatividade e relativismo quando se trata de diálogo, principalmente no “sentido
polifônico”. De acordo com Emerson, “justamente por vivermos num universo
governado pela relatividade é que o relativismo é tão indesejável e perigoso como
88 BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1997. p.16. 89 FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as idéias linguísticas do Círculo de Bakhtin.
Curitiba: Criar Edições, 2003. p.22.
37
princípio operativo da ética”.90 A autora explica que assim o é devido à inexistência
de uma fórmula única para julgamento de ações com vistas a equiparar a
(i)moralidade humana. Assim, cabe ao indivíduo avaliar/ponderar o que deve
restringir ou não, e é em virtude disso precisamente que “o ônus de uma decisão
pessoal discriminante pesa mais do que qualquer punição por desobediência a uma
lei conhecida”.91 Portanto, a autora esclarece que o relativismo/dogmatismo não são
férteis na estratégia artística polifônica. O pensamento bakhtiniano é avesso à ideia
de uma consciência isenta da responsabilidade de avaliação e de compromisso.
Nesse sentido, infere-se, todas as personagens são “principais”, pois não são
contempladoras passivas, “relativas”, mas participantes em potencial do grande
enredo. É como se em cada uma ecoasse uma voz, uma consciência poderosa
capaz de compartilhar os seus tons entre si, de combiná-los com os do autor e do
leitor, acrescentando às tonalidades já existentes sempre uma nova coloração
singular que nunca é desbotada. Bakhtin aborda a interação entre as consciências,
esclarecendo o “ser-indiferente” na polifonia:
Essa interação [...] faz dele (contemplador) um participante. O romance não só nega qualquer base sólida fora da ruptura dialogal a uma terceira consciência monologicamente abrangente, como, ao contrário, tudo nele se constrói de maneira a levar ao impasse a oposição dialógica. Da ótica de um terceiro indiferente, não se constrói nenhum elemento da obra. Esse terceiro indiferente não está representado de modo algum no próprio romance. Para ele não há lugar na composição nem na significação. Nisto não consiste a fraqueza do autor mas a sua força grandiosa. Com isto conquista-se uma nova posição do autor, que está acima da posição monológica.
92
É importante enfatizar que, no romance polifônico, o dialogismo não se revela
unicamente a partir da interação dialogal entre as personagens que o compõem –
talvez, isso fosse equivalente a afirmar que o que interessa é o diálogo face a face
entre elas –, mas se estende à novela integral, penetrando em tudo o que,
composicional e estruturalmente, faz parte dela interna e externamente, o que
corrobora a analogia com o simpósio universal reconhecido e valorizado tanto na
vida quanto na arte. De acordo com Bakhtin, para Dostoiévski,
90
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as idéias linguísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2003. p.192. 91
Ibid., loc. cit. 92
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1997, p.17.
38
onde começa a consciência começa o diálogo [...]. Por isso todas as relações entre as partes externas e internas e os elementos do romance têm nele caráter dialógico; ele construiu o todo romanesco como um grande diálogo. No interior desse grande diálogo ecoam, iluminando-o e condensando-o, os diálogos composicionalmente expressos das personagens; por último, o diálogo se adentra no interior, em cada palavra do romance, tornando-o bivocal, penetrando em cada gesto, em cada movimento mímico da face do herói, tornando-o intermitente e convulso; isto já é o microdiálogo, que determina as particularidades do estilo literário de Dostoievski.
93
Outro aspecto não somente relevante, mas revelador da visão artística de
Dostoiévski é a categoria fundamental de coexistência e da interação. Segundo
Bakhtin, Dostoiévski percebia o mundo espacial e não temporalmente, razão pela
qual o drama lhe era atraente. No entanto, o filósofo esclarece que o artista percebia
as etapas, os núcleos da narrativa de modo simultâneo, tornando dramaticamente
propício o embate e o contraponto entre esses elementos sem desenvolvê-los
através de uma série em formação, tendo em vista que, para Dostoiévski,
“interpretar o mundo implica pensar todos os seus conteúdos como simultâneos a
atinar-lhes as inter-relações em um corte temporal”.94
Assim sendo, a representação artística polifônica é permeada por espaço e
por tempo diferenciados em relação à monológica, pois tais elementos referem-se à
coexistência e à interação espiritual diversa e não unificada. “Pode-se dizer
francamente que Dostoiévski procura converter cada contradição interior de um
indivíduo em dois indivíduos para dramatizar essa contradição e desenvolvê-la
extensivamente.” 95
De acordo com Clark e Holquist, o romancista pôde ilustrar essa
peculiaridade, porque deu vida a personagens cujas consciências encontram-se
abertas umas às outras. Nesse sentido, rompem-se aquelas descrições típicas,
estereotipadas, reducionistas em relação à individuação delas e passa a vigorar, em
cada uma, aquilo que Dostoiévski concebe como vida viva ou o homem no homem.
Acerca dessa noção, Clark e Holquist esclarecem:
93
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1997, p.42. 94
Ibid., p.28. 95
Ibid., p.28-29.
39
Dostoiévski encontra-se entre as palavras de suas personagens. O traço característico de sua autoridade é menos temporal e menos ainda espacial do que cinético. É uma atividade, um ato constantemente executado, algo em movimento mais do que um estado ou uma localização. Quando Dostoiévski diz que deseja estudar o homem no homem, está referindo ao que mais usualmente é denominado “eu para si mesmo”. Ele está enfatizando o grau em que suas personagens são percebidas não como unidades biograficamente completas que experimentam nascimento, morte e todos os estádios intervenientes, mas, antes, como autoconsciências, que são cônscias dos outros a partir de quem elas se produzem a si mesmas.
96
Assim sendo, as personagens não estão fadadas a vivenciar acontecimentos
em sequência, o que as tornaria apenas meras transeuntes numéricas de uma
narrativa “calculada”, mas a conviver dialogicamente, na medida em que
corporificam ideias. São precisamente essas ideias que aproveitam “o herói como
veículo para a realização do seu potencial no mundo”.97 As personagens polifônicas
são convidadas, tanto quanto os leitores, a viver as surpresas da palavra dirigida a si
ou a outrem, sempre inusitada, “‘de final-aberto’, num contexto em que todos os
participantes estão projetados para responder98”. Por isso, as personagens são
reconhecidas como personagens-ideia, porque simplesmente nascem da vida
concreta regida por uma multiplicidade de cosmovisões contraditórias, simultâneas,
complexas, objetivas e não de uma força divina ou do que venha a impregnar o fazer
estritamente estético do autor. Em relação ao que aqui foi tratado sobre a categoria
de coexistência, há uma ilustrativa caracterização de Bakhtin:
O extraordinário dom artístico de ver tudo em coexistência e interação se constitui na maior força mas também na maior fraqueza de Dostoiévski. Ele o tornava cego e surdo a muitas coisas [...] Por outro lado [...] Onde outros viam apenas uma ideia ele conseguia sondar e encontrar duas ideias, um desdobramento; onde outros viam uma qualidade, ele descobria a existência de outra qualidade, oposta. Tudo o que parecia simples em seu mundo se tornava complexo, multicomposto. Em cada voz ele conseguia ouvir duas vozes em discussão, em cada expressão via uma fratura e a prontidão para se converter em outra expressão oposta; em cada gesto captava a segurança e a insegurança simultaneamente; percebia a profunda ambivalência e a plurivalência de cada fenômeno.
99
Para Bakhtin, as contradições são transmitidas como contíguas e opostas,
formando uma espécie de relação harmônica entre vozes-consciências imiscíveis ou
96
CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin; trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1998, p.264-265. 97
EMERSON, Caryl. Os cem primeiros anos de Mikhail Bakhtin; trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003, p.162. 98
EMERSON, loc. cit. 99
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1997. p.30-31.
40
de confronto ininterrupto entre elas. É isso que constitui o critério dostoievskiano de
análise do que é essencial ou não. Somente o que é essencial habita o espaço
polifônico e é compatível com a eternidade, locus da simultaneidade e da
coexistência. Igualmente, o que é dado meramente como momento anterior ou
posterior, no sentido de representação de passado ou de futuro, não faz parte do
universo peculiar a Dostoiévski.
Esse é o motivo pelo qual as personagens não possuem recordações nem
biografia, isto é, do que foi vivenciado, permanece nelas tão somente aquilo que
ainda lhes é presente e experimentado como tal, (situações mal resolvidas de toda
ordem podem configurar bons exemplos). De acordo com Bakhtin, é unicamente
isso que diz a personagem biograficamente, pois é precisamente esse o elemento
capaz de convergir com a cosmovisão dostoievskiana de simultaneidade. Dessa
forma, no romance polifônico não são evidenciadas causas, origens, nem
demonstradas explanações alheias ao plano atual e motivações oriundas do
ambiente em que se vive, por exemplo, pois “cada atitude da personagem está
inteiramente no presente e neste sentido não é predeterminada; o autor a concebe e
representa como livre”.100
Segundo Bakhtin, Lunatcharski foi o crítico que considerou Shakespeare e
Balzak como precursores da polifonia. Por outro lado, Bakhtin reconhece apenas
“elementos ou embriões de polifonia nos dramas shakespearianos”, enfatizando que
igualmente “em Balzac se pode falar de elementos de polifonia, mas só de
elementos”.101 O especialista em Dostoiévski apresenta, assim, as razões para
duvidar de uma polifonia plena na voz de Shakespeare e das respectivas
personagens que dão vida às obras dele:
100
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. p. 29. 101
Ibid., p.34-35.
41
Em primeiro lugar, o drama é por natureza estranho à autêntica polifonia; o drama pode ter uma multiplicidade de planos mas não pode ter uma multiplicidade de mundos [...]. Em segundo lugar, se é possível falar de multiplicidade de vozes plenivalentes, pode-se fazê-lo apenas em relação a toda a obra de Shakespeare e não a dramas isolados; [...] a polifonia pressupõe uma multiplicidade de vozes plenivalentes nos limites de uma obra, pois somente sob essa condição são possíveis os princípios polifônicos de construção do todo. Em terceiro lugar, as vozes em Shakespeare não são pontos de vista acerca do mundo no grau em que o são em Dostoiévski; os protagonistas de Shakespeare não são ideólogos no sentido completo do termo.
102
Embora se saiba que para Bakhtin apenas Dostoiévski “pode ser considerado
o criador da autêntica polifonia” 103, é, por isso mesmo, ainda mais curiosa a
seguinte observação:
Nos romances dostoievskianos realmente observamos um conflito singular entre a inconclusibilidade interna das personagens e do diálogo e a perfeição externa (do enredo e da composição na maioria dos casos) de cada romance particular [...]. Diremos apenas que quase todos os romances de Dostoiévski apresentam um fim literário-convencional, monológico-convencional (neste sentido é sobremaneira característico o fim de Crime e Castigo). Em essência, apenas Os Irmãos Karamázov têm um fim plenamente polifônico, mas foi justamente por isto que, do ponto de vista comum, ou seja, monológico, o romance ficou inacabado.
104
Eis aqui momento oportuno à busca de um diálogo mais aprofundado. A
própria consideração de Bakhtin instiga a pesquisadora a suspeitar que Luna Clara e
Apolo Onze poderia ser um romance polifônico autêntico. Diz-se que Bakhtin instiga,
pois ele mesmo admite que a maioria das novelas dostoievskianas transmitem
desfechos monológicos, exemplificando apenas Os Irmãos Karamázov como
narrativa detentora de final polifônico. Em face disso, se o próprio Bakhtin constatou
graus ou níveis de polifonia em Dostoiévski, perceber ao menos a presença de
elementos que indiciam polifonia na narrativa de Adriana Falcão não implica
reconhecê-la também como uma obra polifônica?
No entanto, esse questionamento poderá ser retomado em outro contexto. Ele
aqui foi mantido, nesta ordem, como marca do percurso metodológico, porque traduz
linhas de raciocínio, inquietações deste estudo, indagações que contribuíram para a
102
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1997. p.34-35. 103
Ibid., p.35. 104
Ibid., p.41.
42
descoberta da temática a ser explorada e da forma mais ampla de dialogar com ela
neste trabalho.
Ao pronunciar essa questão na voz deste estudo, a intenção é a de distanciá-
lo do modo como a crítica literária observou as peculiaridades dostoievskianas,
conforme sugerido por Bakhtin na seguinte descrição:
Parece que todo aquele que penetra no labirinto do romance polifônico não consegue encontrar a saída e, obstaculizado por vozes particulares, não consegue perceber o todo. Amiúde não percebe sequer os contornos confusos do todo; o ouvido não capta, de maneira nenhuma, os princípios artísticos da combinação de vozes. Cada um interpreta a seu modo a última palavra de Dostoiévski, mas todos a interpretam como uma palavra, uma voz, uma ênfase, e nisso reside justamente um erro fundamental. A unidade do romance polifônico, que transcende a palavra, a voz e a ênfase, permanece oculta.
105
Assim, dá-se continuidade à exposição das linhas de raciocínio. Para que não
sejam cometidos os mesmos “equívocos”, antes de dialogar com o novo gênero
romanesco criado por Dostoiévski, a partir de um romance infanto-juvenil
contemporâneo, o estudo enfoca a maneira peculiar com que é presentificada a
multiplicidade de vozes em interação no objeto estético – forma arquitetônica que
pode remeter, quem sabe, a uma proximidade polifônica em certo nível, mas que já
anuncia, principalmente, um modelo de narrativa inovador, capaz de tornar mais
próximos autor-leitor-personagem pelo grau de dialogicidade instaurado via projeto
enunciativo. Sob essa perspectiva, a temática é instigante, pois, certamente,
desvendar a especificidade dialógica de Luna Clara e Apolo Onze configura-se
tarefa desafiadora. Portanto, que a “avassaladora preferência de Bakhtin pela
Criação-em-processo tempere nossa leitura [não somente] de seu livro sobre
Dostoiévski”.106 [grifo nosso] e contagie os olhares e as vozes em interação nesta
pesquisa.
105
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.51. 106
EMERSON, Caryl. Os cem primeiros anos de Mikhail Bakhtin; trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de
Janeiro: DIFEL, 2003. p.197-198.
43
3 LITERATURA INFANTIL/JUVENIL CONTEMPORÂNEA: CONTEXTO DE LUNA
CLARA E APOLO ONZE
A sinopse da obra Luna Clara e Apolo Onze é aqui ilustrada, visando-se
apresentar uma breve orientação ao leitor que ainda não tenha conhecimento sobre
a respectiva produção literária, proporcionando a ele um contato, mesmo que
mínimo, com a narrativa da qual se entende que emergem as peculiaridades da
literatura contemporânea debatidas neste capítulo.
3.1 SINOPSE DE LUNA CLARA E APOLO ONZE107
Luna Clara é a personagem que dá abertura à trama na cidade de Desatino
do Norte. Ela é uma menina de doze anos, tímida, “aluada”, que nunca perdeu a
expectativa de conhecer seu pai, o sortudo e apressado Doravante. As únicas
informações que ela possui acerca dele são as que a sua mãe, Aventura, lhe
transmitia. Aventura e Doravante se conheceram na festa comemorativa ao
nascimento de Apolo Onze, treze anos antes, oferecida pelos pais do menino, Apolo
Dez e Madrugada, na animada cidade de Desatino do Sul. Animação essa que
contrariava o vizinho do casal, Noctâmbulo. No entanto, Seu Erudito, pai de
Aventura, desconfiado da pressa de Doravante, pediu-lhe, como a testar o amor do
rapaz pela filha, que seguisse a viagem de retorno a Desatino do Norte sozinho, ou
melhor, com seu grande companheiro, o cavalo Equinócio, para que ambos
abrissem os caminhos perigosos que levavam até a cidade. Para chegar lá, era
necessário passar pelo Vale da Perdição, onde residia “uma velha” tão misteriosa
quanto a própria localidade situada entre as cidades Desatino do Norte e Desatino
do Sul. No dia seguinte à partida de Doravante, a família Paixão, isto é, Seu Erudito,
as filhas Divina, Odisseia e Aventura, acompanhada do inseparável papagaio
Pilhério, deveria também partir a fim de encontrar Doravante em Desatino do Norte.
No entanto, o plano não se concretizou. Quando todos chegaram justamente ao
“meio do mundo”, descobriram que a ponte que interligava as duas cidades havia se
107 GELETKANICZ, M. F. ; GOMES, N. M. T. A Multiplicidade de Vozes em Luna Clara e Apolo
Onze: estudo preliminar dos elementos que sugerem um fenômeno polifônico. In: VII SEPesq - Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação, 2011, Porto Alegre. VII SEPesq - Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação (Comunicação de Pós-Graduação). Porto Alegre :UniRitter, 2011. v. V.7. p. 01-13.
44
partido, separando inevitavelmente os destinos de Aventura e Doravante. Ele havia
perdido a sorte, restando-lhe como companheira a chuva. À família Paixão coube
apenas a conformidade com a situação. Neste momento de angústia, os dois
empregados da velha, Imprevisto e Por Acaso, surgiram, oferecendo a reconstrução
da ponte a seu Erudito, porque estavam apaixonados pelas filhas dele, Divina e
Odisseia. Como as uniões não eram bem vistas pelo patriarca, Imprevisto e Por
Acaso retardavam a obra o máximo possível para não terem de separar-se de suas
amadas. Ao longo da constante procura de Doravante por Aventura, durante nove
meses em Desatino do Norte, ele conheceu o inventor Leuconíquio, responsável
pelo segundo e intrigante desencontro do casal. Por azar, Doravante partiu
justamente no dia e do local em que Luna Clara nasceu, disposto a dar a volta ao
mundo em busca da sua Aventura. Nos mais de doze anos de andanças com
Equinócio, Doravante retornou a Desatino do Sul, onde a festa prosseguia
ininterruptamente. Ali conheceu Apolo Onze, que tinha a mesma idade de Luna
Clara. O rapazinho, impulsivamente, decide abandonar a rotina festiva de seu lar
para acompanhar a dupla na grande empreitada, fato que deixou todos muito
apreensivos, principalmente os pais e as sete irmãs mais velhas dele, Ilha de Rodes,
Pirâmides, Muralha da China, Artemísia, Diana, Alexandria e Babilônia. A partir
disso, ainda muitas confusões, encontros, desencontros, idas e vindas:
simultaneamente, dá-se o entrecruzamento de muitas histórias repletas de
surpresas.
3.2 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA INFANTIL/JUVENIL
CONTEMPORÂNEA
Que coisa é o livro? Que contém na sua frágil arquitetura aparente? São palavras, apenas, ou é a nua exposição de uma alma confidente? De que lenho brotou? Que nobre instinto da prensa fez surgir esta obra de arte que vive junto a nós, sente o que sinto e vai clareando o mundo em toda parte?
Carlos Drummond de Andrade,1973.108
108 LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil Brasileira: história & histórias. Série
Fundamentos. 6.ed. Ática, 2007. p.120.
45
Nelly Novaes Coelho afirma que as obras criativas de hoje, isto é, aquelas
imbuídas de valor literário original podem pertencer à área do questionamento ou da
representação, dependendo da sua intencionalidade.109 As obras denominadas
inovadoras enquadram-se na primeira categoria e as continuadoras, na segunda.
Aquelas são assim chamadas, porque intencionam questionar o mundo a fim de
instigar a mudança dele pelos leitores; estas, porque pretendem representar o
mundo com o intuito de demonstrar, positiva ou negativamente, os possíveis
caminhos e comportamentos dos quais os leitores podem aproximar-se ou afastar-
se em busca de realização, felicidade, justiça. Em ambos os casos, enfatiza a
autora, impera, implicitamente, a meta de proporcionar momentos de prazer, de
descontração, capazes de incitar, no leitor, sensibilidade e envolvimento através das
peripécias dinâmicas, provocantes das obras.
Embora seja possível “classificar” Luna Clara e Apolo Onze como integrante
da última categoria citada, cabe lembrar que a autora adverte que o nível de literário
autêntico das narrativas não é alcançado mediante o enquadramento das obras em
uma ou em outra categoria, mas por intermédio da “coerência orgânica (que deve
existir em toda obra literária) entre a visão de mundo que o alimenta e as soluções
estilísticas/estruturais escolhidas pelo autor, tendo em vista o momento em que
escreve”.110
Marta Morais da Costa destaca a assimetria como aspecto que diferencia a
literatura infantil das demais produções artísticas, pois o adulto é quem a produz
para as crianças.111 Em decorrência disso, o autor pode cometer inadequações,
entre as quais criar mundos, situações desconectados do que o seu público percebe
à sua volta, ou considerar a criança um adulto justamente por ignorar o que integra o
universo dela, a sua cosmovisão infantil. Segundo a autora, essas “distorções”
causadas pela assimetria induzem ao afastamento entre a literatura e o leitor.
No entanto, Adriana Falcão, ao invés de cometer tais equívocos, parece levar
em consideração, na sua obra, os elementos sugeridos por Coelho112: a romancista
não seleciona motivos isolados/superficiais do mundo tecnológico em que se vive,
109
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. 1.ed. São Paulo: Moderna:
2000. p.50. 110
Ibid., p.150-151. 111
COSTA, Marta Morais da. Metodologia do ensino da literatura infantil. Curitiba: Ibpex, 2007. p.96. 112
COELHO, op. cit. p.151.
46
por exemplo, para imbuir o seu romance de natureza rica e inovadora, mas
conquista tais atributos, porque é capaz de situar-se no “momento em que escreve e
para o qual escreve”, isto é, reconhece que a sua composição estética deve estar
atrelada à realidade de uma época, marcada pelo questionamento e pela
dinamicidade dialógica transformadora, sendo capaz de refletir e refratar o mundo
através de uma linguagem peculiar e condizente com o universo contemporâneo
onde habitam tanto seus conterrâneos “reais” quanto as personagens cuja
representação deles deriva. Portanto, Luna Clara e Apolo Onze, em vista disso, é
considerada uma legítima obra infanto-juvenil contemporânea na medida em que
oferece aos leitores as potencialidades objetivamente elencadas na seguinte
caracterização:
Enfim, o que hoje define a contemporaneidade de uma literatura é sua intenção de estimular a consciência crítica do leitor; levá-lo a desenvolver sua própria expressividade verbal ou sua criatividade latente; dinamizar sua capacidade de observação e reflexão em face do mundo que o rodeia; e torná-lo consciente da complexa realidade em transformação que é a sociedade, em que ele deve atuar quando chegar a sua vez de participar ativamente do processo em curso.
113
O poeta Carlos Drummond de Andrade, conforme mencionado por Costa,
questiona: “[...] Qual o bom livro para criança que não seja lido com interesse pelo
homem feito? [...]”.114 Esse questionamento foi aqui introduzido, pois sugere, de
certa forma, que a abordagem de assuntos densos e que a revelação de identidades
complexas não são atributos exclusivos à literatura destinada aos adultos, mas
igualmente inerentes à literatura infantil, já que ela “reflete, como toda literatura, a
história, a ideologia, os costumes, as atitudes, as crenças, o inconsciente coletivo e
a cosmovisão da cultura de um povo”.115
Nesse sentido, inaugura-se, naturalmente, a identificação leitor-personagem-
situação, pois, de acordo com a autora, em todo texto existe “um poderoso imã
ligado à identidade”, fator que possibilita ao leitor encontrar “a paridade, a igualdade,
a vivência virtual nos caminhos e atalhos da linguagem”.116
113
COSTA, Marta Morais da. Metodologia do ensino da literatura infantil. Curitiba: Ibpex, 2007. p.151. 114
Ibid., loc. cit. 115
Ibid., op. cit., p.96. 116
Ibid., loc. cit.
47
Coelho faz um levantamento das características estilísticas e estruturais de
obras literárias infantis/juvenis da atualidade, a partir do qual é possível constatar a
presença de traços narrativos ou problemáticas da literatura clássica, porém,
fundidos a novas estratégias, capazes de renovar os recursos do passado. Mais
uma vez, percebe-se o método dialético-dialógico implicado nessa proposta, já que
“sempre que assumimos uma nova posição, que adotamos um novo paradigma, é
impossível deixar de lado ou pelo menos deixar de dialogar com o que veio
antes”.117
É, assim, considerando a heterogeneidade que caracteriza o fazer estético da
literatura contemporânea voltada ao público infantil/juvenil que Coelho expõe a sua
tese a qual este estudo procura “renovar” com a palavra do objeto deste estudo:
Luna Clara e Apolo Onze.
A primeira peculiaridade literária apontada por Coelho é a efabulação,
processo narrativo essencial através do qual se dá o encadeamento dos fatos na
trama. É a partir dele que se tem a impressão de ritmo na história. A autora
esclarece que, na literatura infantil, a estrutura dá-se linearmente, com início, meio e
fim bem delineados. Porém, na literatura infanto-juvenil e juvenil contemporânea, o
que se pode evidenciar é uma estrutura pontuada de fragmentação, elemento pelo
qual os leitores fluente e crítico já se sentem atraídos a desvendar e capacitados a
compreender. “Mais do que a história a ser contada, preocupa o autor a maneira
pela qual ele pode apresentá-la ao leitor.” 118
Por conseguinte, a sequência narrativa, segunda característica citada por
Coelho, também não segue, geralmente, o padrão de linearidade, mas alterna fatos
do passado e do presente, gerando no tempo narrativo uma espécie de “retrospecto”
ou “flashback”, como ela denomina. Assim, desenvolvimento e fechamento
convergem à proposição de “problemas ou situações a serem solucionadas de
vários modos, do que oferecer respostas ou soluções ‘fechadas’ ou absolutas”.119
Segue exemplo da efabulação e da sequência narrativa em Luna Clara e Apolo
Onze: “Naquela sexta-feira dos ventos, 7 de julho, logo que a tarde caiu, os
acontecimentos começaram a acontecer feito loucos na vida de Luna Clara, justo na
117
BRAIT, Beth. Língua e Literatura: uma falsa dicotomia. In: Rev. ANPOLL, n.8, p. 187-206, jan./jun. 2000. 118
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. 1.ed. São Paulo: Moderna: 2000. p.152. 119
Ibid., loc. cit.
48
vida dela, uma menina que tinha uma vida meio besta.”120 Excerto esse que
complementa o seguinte: “Naquela sexta-feira dos ventos, 7 de julho, de manhã
ainda, Apolo Onze acordou com o barulho da chuva e pressentiu “vai acontecer uma
tragédia.”121
A seguinte peculiaridade indicada por Coelho diz respeito às personagens-
tipo que, na literatura contemporânea, continuam a existir, porém sob o invólucro
sarcástico, crítico. Essas personagens diferem das personagens-caráter que, de
acordo com a autora, geralmente, são substituídas por individualidades opostas
entre si, sem que incorporem uma postura superior, mas integrem o grupo-
personagem, elemento que valoriza a personagem-coletiva. Nesse sentido, Coelho
acrescenta que até mesmo “as soluções para os problemas que precisam ser
enfrentados [...] não são dadas [...] por uma só personagem, mas resultam da
colaboração de todas”.122 Desse modo, a personagem-coletiva (simbolizada nos
grupos) rivaliza com a personagem-individualidade (encarnada na pele do herói/anti-
herói) que, por ser incapaz de integrar a comunidade, representa a personagem-
questionadora, tornando-se dessa forma também colaboradora. É o que em Luna
Clara e Apolo Onze evidencia-se na relação entre Noctâmbulo e os moradores de
Desatino do Sul:
Noctâmbulo (esse era o seu nome) tinha um pedação de terra e se achava muito importante por isso. Mas, enquanto o terreno de Apolo Dez e Madrugada vivia feliz, o dele, que era dez vezes maior, vivia triste [...]. Antes de Apolo Onze nascer e de começar a festa que tomou conta da cidade, Noctâmbulo contava com a população toda só para ele, não sei quantas mãos para servir de mão-de-obra. Depois que a festa começou, o povo descobriu que podia trabalhar por conta própria e se divertir, além de tudo. Foi assim que ele perdeu, de uma vez só, todos os funcionários disponíveis no mercado. Deixou de ser o dono do pedaço e passou a ser “o vizinho” somente. Sentiu-se desimportante. Só. Abandonado. Lógico que ele foi convidado para a festa várias vezes, mas sempre mandava dizer que não ia não, muito obrigado. Dava como desculpa sua ojeriza a comemorações. Argumentava que aquela alegria toda incomodava o silêncio das suas noites vazias.
123
120
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.7. 121
Ibid., p.17. 122
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. 1.ed. São Paulo: Moderna: 2000. p.152.. 123
FALCÃO, op. cit., p.23.
49
Outra característica destacada por Coelho124 é a voz do narrador. Na
literatura infanto-juvenil e juvenil contemporânea, em que imperam as múltiplas
facetas do romance e da novela como forma narrativa, o narrador denota atenção ao
leitor, independente da forma em que se revele (primeira ou terceira pessoa), não
somente como forma de interação com esse destinatário, mas como maneira de
reconhecer nesse mesmo leitor o instrumento de mediação de “mensagens”.
Conforme ressalta Costa, ser capaz de compreender, interpretar textos é
fundamental para que a produção literária não perca a sua carga significativa, pois a
“interpretação da obra (sua recepção, portanto) é que indica a importância do texto
para a história da literatura, e não a experiência de vida do autor.” 125
Segue excerto
ilustrativo da aproximação do narrador com o seu leitor.
Precisava apenas saber dos dois homens se eles estavam molhados de chuva e, se assim fosse, descobrir onde é que a chuva estava. Como é que se sabe alguma coisa? Perguntando. Então era só perguntar para eles. “Posso saber o motivo dessa molhação toda?” Não. Não é assim que se aborda os outros. “Lá de onde vocês vêm tem uma chuva chovendo por acaso?” Também não. Isso é jeito de se falar com dois desconhecidos? Ainda não. – De onde vocês vêm? – perguntou então. – De lá de onde está chovendo – os dois responderam juntos, e apontaram para o Sul seus quatro braços, suas quatro mãos e seus vinte dedos – a gente teve que fugir correndo. Tem gente que foge da chuva, tem gente que procura por ela Olha só que negócio complicado.
126
Lajolo e Zilberman afirmam que, a partir da década de 60, a oralidade passou
a ser um recurso predominante utilizado pelos escritores tanto na prosa quanto na
poesia. Para as autoras, a linguagem coloquial dos discursos é condizente com a
proposta de retratar a própria heterogeneidade do universo da criança nas narrativas
voltadas a ela. Assim, do mesmo modo
124
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. 1.ed. São Paulo: Moderna: 2000. p.153. 125
COSTA, Marta Morais da. Metodologia do ensino da literatura infantil. Curitiba: Ibpex, 2007. p.66. 126
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.14.
50
[...] que suas personagens e enredos deixaram de ser exemplares do ponto de vista dos valores dominantes, também a linguagem distanciou-se do padrão formal culto, indo buscar na gíria de rua, em falares regionais e em dialetos sociais a dicção adequada aos novos conteúdos.
127
De acordo com Coelho, o ato de narrar tem sido especialmente valorizado
nas obras contemporâneas, tendo em vista a consciência atual de que a linguagem
é elemento primordial à formação de sujeitos (crianças e jovens) críticos frente à
vida e aos acontecimentos que a regem. Trata-se, pois, do processo de criação por
intermédio da palavra, por isso a tendência ao uso da metalinguagem. “Esse novo
aspecto da literatura infantil/juvenil visa levar os leitores a descobrirem que a
invenção literária é um processo de construção verbal, inteiramente dependente da
decisão do escritor.” 128 Lajolo e Zilberman alertam para o fato de que nem todos os
traços peculiares à literatura infantil são evidentes. Um deles, segundo as autoras,
[...] é o considerável espessamento que o texto infantil sofreu enquanto discurso literário, o que lhe abre a possibilidade de autoreferenciar-se, quer incluindo procedimentos metalinguísticos, quer recorrendo à intertextualidade, ou seja: às vezes o texto tematiza seu próprio processo de escrita e produção, às vezes faz referência a outras obras, instaurando uma espécie de diálogo entre textos.
129
Costa também prevê a forte ligação da literatura infantil com a metalinguagem
e com a intertextualidade. A autora afirma que enunciado algum “é totalmente
original, pois nasce e reproduz outros textos conhecidos e lidos pelo escritor.” 130
Isso, no entanto, não representa demérito ao processo criativo, mas significa, como
ela sugere, reconhecer que não existe uma fórmula exata para abordar temáticas
afins. Dessa forma, cada escritor imprime no seu texto ideias sempre únicas, pois a
“impossibilidade de repetição deve-se ao fato de que a arte literária, como toda arte,
existe porque há liberdade de criação formal.”131
Em Luna Clara e Apolo Onze, esse “diálogo entre textos”, sob forma de
interdiscursividade, é recorrente:
127
LAJOLO, Marisa.; ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil Brasileira: história & histórias. Série
Fundamentos. 6.ed. Ática, 2007. p.151. 128
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. 1.ed. São Paulo: Moderna:
2000. p.153. 129
LAJOLO, op. cit., p.152. 130
COSTA, Marta Morais da. Metodologia do ensino da literatura infantil. Curitiba: Ibpex, 2007. p.66. 131
Ibid., p.67.
51
Depois do almoço, Seu Erudito brincava de “o que é o que é” com Sherlock Holmes. Tinha que admitir, porém, perdia sempre. Odiava o Coelho Maluco e aquela sua mania de apressar os outros. Gostava muito de palestrar com Romeu, mas discordava radicalmente das idéias de Julieta, é evidente que aquela história de se fingir de morta não havia de dar certo. Então consolava Frei João, o pobre rapaz que foi levar uma mensagem de Julieta para Romeu, mas não executou o seu serviço por uma dessas coincidências do destino [...].
132
Nas narrativas contemporâneas, explica Coelho, o tempo é variável, podendo
revelar-se histórica, indeterminada ou miticamente. O espaço também pode ser
ilustrado como simples cenário ou participante da narrativa. Isso porque “a literatura
inovadora, em geral, procura mostrar compreender ou sugerir as relações que
existem ou podem existir entre [os seres e as coisas no mundo]”. 133 [grifo nosso].
Em relação ao tempo, pode-se dizer que se somam os dois tipos
mencionados neste segmento: “Naquela sexta-feira dos ventos, 7 de julho [...].”134
Se por um lado “Sexta-feira” e “7 de julho” pertencem à cronologia natural, por outro,
associadas às expressões “Naquela” e “dos ventos”, tentam criar uma especificidade
temporal indeterminada à trama.
Quanto ao espaço, pode-se identificá-lo como partícipe, ou mais do que isso,
como elemento organizador da história:
No começo do caminho, tudo ia bem, tudo tranquilo. Faltava bem pouquinho para chegar, ai meu Deus que coisa boa. O problema se deu ali, bem no meio do mundo, e era um problema intransponível. A ponte tinha caído. Não era a toa que aquele lugar se chamava Vale da Perdição. [...] A tristeza que o coração de Aventura sentiu quando viu aquele buraco com um rio embaixo e sem ponte em cima, essa nem nome tem, só dá para saber sentindo. – E agora, Minha Nossa Senhora Do Meu Amor Está Lá Longe, como é que eu vou atravessar para o outro lado? Impossível, Aventura. Com a ponte derrubada não havia como seguir viagem. E ela sentiu um negócio que só podia se chamar desespero, dentro dela, apenas de cogitar a hipótese de se desencontrar de Doravante.
135
Além disso, Coelho ressalta que, embora a exemplaridade seja extinta como
moral ou intento pedagógico, podem ser encontradas, direta ou indiretamente,
132
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.124. 133
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. 1.ed. São Paulo: Moderna:
2000. p.153-154. 134 FALCÃO, op. cit. p.7. 135
Ibid., p. 79-80.
52
valiosas lições de vida na literatura contemporânea. É o que também se torna
explícito nas palavras de Lajolo e Zilberman ao afirmarem que:
[...] a literatura infantil mais contemporânea fez da inversão de valores ideológicos seu compromisso com a modernidade. Assim, se aparentemente desapareceu desses livros infantis o compromisso com a história oficial, com os heróis pátrios e com os conteúdos escolares mais ortodoxos, um exame mais atento da produção infantil contemporânea revela a permanência da preocupação educativa, comprometida agora com outros valores, menos tradicionais e acredita-se — libertadores.
136
No que diz respeito à ética comportamental, passa a vigorar a força interna
(positiva e negativa, por isso complexa) das personagens ao invés do maniqueísmo
comum às das obras tradicionais. “A intenção maior é dotar as personagens de
ficção da ambiguidade natural dos homens e, através dela, revelar as forças polares
ou contraditórias, inerentes à condição humana.”137 Costa destaca, inclusive, que a
própria natureza psíquica do leitor é multifacetada, pois ele cria máscaras, diversas
identidades a cada nova leitura que representa o processo contínuo de sua busca à
realização. Logo, simplificar esse “processo reduz o texto literário a um encontro
superficial e linear, que desmente o jogo de máscaras existente na realidade e na
ficção e que converte as personagens e sua ação ficcional a estereótipos”. 138
Em Luna Clara e Apolo Onze, no entanto, essa natureza “mascarada” do ser
humano pode ser constatada, por exemplo, na postura da personagem Leuconíquio,
mais especificamente refletida na seguinte passagem:
Realmente, Leuconíquio estava com a nobre intenção de consertar a besteira que fez, quando saiu de Desatino do Norte. Afinal, estava se sentindo muito culpado. O problema (e esse é um problema que todo mundo enfrenta) é que pelo caminho sempre existem as dificuldades. E as dúvidas, e os medos, e os empecilhos, e os perigos. [...] Ele pensava na pobre Aventura sem o marido, na pobre Luna Clara sem o pai, no pobre Doravante sem a mulher e a filha. Mas depois começou a pensar também no pobre ele próprio [...].
139
136
LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil Brasileira: história & histórias. Série Fundamentos. 6.ed. Ática, 2007. p.159. 137
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. 1.ed. São Paulo: Moderna: 2000. p.154. 138
COSTA, Marta Morais da. Metodologia do ensino da literatura infantil. Curitiba: Ibpex, 2007. p.99. 139
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.135.
53
É claro que Leuconíquio fracassa no seu intento inicial, já que ele “começou a
pensar no pobre ele próprio”. Por isso, prefere-se utilizar a expressão “natureza
mascarada” em vez de “natureza ambígua”. Porém, mesmo no sentido dual o
exemplo tem valia, pois a ambiguidade também pode residir na tentativa de alguém
ser diferente e não conseguir sê-lo. Leuconíquio, quando se sente culpado,
confronta, em algum grau, a sua posição. Por um segundo, ele quis ser (foi) “outra
pessoa” e o fato de não ter conseguido opor-se a si mesmo (em definitivo) não pode
desconsiderar isso.
Coelho também destaca o humor como estratégia recorrente na produção
literária contemporânea. Trata-se de uma particularidade presente em Luna Clara e
Apolo Onze, como se evidencia neste exemplo em que o gênero “convite” é
parodiado:
CONVOCAÇÃO GERAL Madrugada e Apolo Dez Convidam para a festa de nascimento de Apolo Onze. Data: hoje Hora: Daqui a pouco Local: Desatino do Sul Traje: Bonito Obs.: Como a festa não tem data pra acabar é bom trazer escova de dentes.
140
A intenção de realismo e verdade alternada com a atração pela fantasia, pelo
imaginário ou maravilhoso, prevista por Coelho, representa na narrativa
contemporânea o universo metafísico, ou seja, reproduz o desejo de desvendar os
mistérios da existência humana, incluindo a vida e a morte. Por isso, o objetivo dos
“mediadores mágicos já não é [...] propiciar fortuna aos seus protegidos, mas sim
estimulá-los a agir, a desenvolverem suas próprias forças ou, em síntese, ajudá-los
a transformarem em ato o que neles existe em essência”.141 Essa característica é
sugerida no seguinte excerto de Luna Clara e Apolo Onze:
140
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.58. 141 Ibid.. p.155.
54
A roleta ia e voltava. [...] E parou bem no meio dos dois quadradinhos, entre um e outro. Dessa vez, Luna Clara e Apolo Onze se desesperaram. Será que aquele jogo era só um jogo? Será que o que aquele jogo dizia correspondia à verdade? Será que, por coincidência, o que o jogo dizia acontecia? Será que eles deveriam continuar jogando? E se tudo desse errado? Pelo sim, pelo não, resolveram não arriscar. Era chegada a hora de parar de brincar e fazer alguma coisa. Inclusive porque as duas velhas – a que foi para o Norte e a que foi para o Sul – já deviam estar chegando nas duas cidades, com seus seis cães ferozes e metade da chuva, cada uma.
142
O apelo à visualidade é referido por Coelho. A obra Luna Clara e Apolo Onze,
ao trazer desenhos, mapas, ilustrações que dialogam com a verbalidade da
narrativa, complementando a sua linguagem e atribuindo a ela outros tantos
sentidos, faz da literatura “espaço de convergência das multilinguagens”.143
Figura 1 – Mapa da Região de Desatino.
Fonte: FALCÃO, 2002. p.27.
142
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p. 234. 143
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. 1.ed. São Paulo: Moderna:
2000. p.155.
55
Costa afirma que, muitas vezes, existe uma espécie de redução no trabalho
com a literatura desenvolvido nas escolas. Nesse processo de “simplificação”,
buscam-se, como a autora mesmo sinaliza, “as respostas únicas, as definições [...],
a segurança da unificação e das conclusões [...]”144 –, elementos que podem remeter
ao discurso monológico. Ao mesmo tempo em que reconhecem a perspectiva
conservadora transmitida por Costa, Lajolo e Zilberman anunciam e ressaltam uma
mudança de paradigma – que se poderia relacionar ao discurso dialógico –,
viabilizada pelos atributos da literatura infantil contemporânea, com os quais Luna
Clara e Apolo Onze dialoga:
São, assim, muitas as formas pelas quais o texto infantil contemporâneo busca romper com a esclerose a que o percurso escolar e o compromisso com uma pedagogia conservadora parece ter confinado o gênero. A ruptura acarreta ainda a produção de textos autoconscientes, isto é, de textos que explicitam e assumem sua natureza de produto verbal, cultural e ideológico. Reside aí o ponto de radicalidade mais extrema a que chega o texto infantil das duas últimas décadas.
145
As particularidades oriundas da contextualização da literatura infantil/juvenil
contemporânea não se esgotam no que aqui foi descrito obviamente, aliás, elas são
consideradas tão somente suficientes. Primordial é retratar aquelas que ressoam no
romance de Adriana Falcão, deixando transparecer o seu caráter dialógico
específico. Elemento esse que faz que Luna Clara e Apolo Onze ganhe destaque
dentre outras produções literárias atuais, transcendendo a tais peculiaridades
justamente pelo estilo que, conforme Sobral146, está ligado aos “modos de dizer dos
autores”. Pode-se remeter isso à seguinte consideração do pesquisador:
144
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. 1.ed. São Paulo: Moderna: 2000. p.99. 145
LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil Brasileira: história & histórias. Série Fundamentos. 6.ed. Ática, 2007, p.160. 146
SOBRAL, Adail. A Estética em Bakhtin (Literatura, Poética e Estética). In: DE PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas: Mercado das
Letras, 2010. v.1. p.72.
56
Fica bem claro que a construção artística vai além da junção de artifícios “literários”: essa construção une a materialidade da obra e suas possibilidades sociohistóricas de sentido (conteúdo), combinados (forma) numa unidade (arquitetônica) por meio do agir avaliativo do autor, que, como sabemos, liga-se à resposta ativa do ouvinte. A “avaliação social” da obra estética advém de um projeto, ou “desígnio”, estético que mobiliza o material, a partir do conteúdo (a “tensão ético-cognitiva” que o herói provoca no autor), para dar à obra uma forma arquitetônica que realiza determinadas possibilidades de seu “sentido ideológico”.
147
É o que se pode relacionar à advertência de Bakhtin:
Realmente, o estético, de certo modo, encontra-se na própria obra de arte, o filósofo não o inventa, mas para compreender cientificamente a sua singularidade, a sua relação com o ético e o cognitivo, seu lugar no todo da cultura humana, e, enfim, os limites de sua aplicação, necessita-se da filosofia sistemática com os seus métodos. O conceito de estético não pode ser extraído da obra de arte pela via intuitiva ou empírica: ele será ingênuo, subjetivo e instável; para se definir de forma segura e precisa esse conceito, há necessidade de uma definição recíproca com os outros domínios, na unidade da cultura humana.
148
Nessa observação se anteveem as bases da concepção estética em Bakhtin,
“mergulhada no dialogismo – que, [...], não é apenas uma teoria linguística ou do
discurso, mas uma teoria filosófica sobre o ser e agir do ser humano no mundo”. 149
Assim, o contexto literário apresentado neste capítulo cumpre um papel
relevante, pois através dele é possível refletir, primeiramente, sobre as
peculiaridades de Luna Clara e Apolo Onze, como: o público a que se destina, os
contextos que dinamizam a tessitura romanesca, a linguagem que caracteriza a
interação entre narrador e personagens e, por conseguinte, revela a posição do
autor em relação à sua criação artística inteiramente. Dito de outro modo:
Por isso é importante conhecer as possíveis fontes do gênero de um determinado autor, o clima do gênero literário em que se desenvolveu a sua criação. Quanto mais pleno e concreto for o nosso conhecimento das relações de gênero em um artista, tanto mais a fundo poderemos penetrar nas particularidades de sua forma do gênero e compreender mais corretamente a relação de reciprocidade entre a tradição e a novidade nessa forma.
150
147
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin. Campinas: Mercado de Letras, 2009. p.110-111. 148
BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4.ed. São Paulo: Ed. UNESP: Hucitec, 1998. p.16. 149
SOBRAL, Adail. A Estética em Bakhtin (Literatura, Poética e Estética). In: DE PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas: Mercado das
Letras, 2010. v.1. p.72. 150
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.181.
57
Nesse sentido, pode-se pensar as especificidades literárias como “ponte”,
modo mais consciente de dialogar com a obra de arte. Além disso, como forma mais
espontânea, quem sabe, de interagir com ideias de Bakhtin e com os “eus-outros”
daqui para frente, momento em que se enfoca a proposta estética bakhtiniana, na
qual é fundamentada a análise de Luna Clara e Apolo Onze.
58
4 A CONCEPÇÃO ESTÉTICA EM BAKHTIN: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
É preciso lembrar de uma vez por todas que não se pode opor à arte nenhuma realidade em si, nenhuma realidade neutra: pelo próprio fato de que falamos dela e a opomos a algo, nós, como que a definimos e lhe damos um valor; é preciso apenas sermos claros com nós mesmos e compreender o verdadeiro sentido da nossa apreciação. Tudo isso pode ser expresso sinteticamente da seguinte forma: pode-se opor a realidade à arte somente como algo bom e verdadeiro pode ser oposto ao belo.
151
Mikhail Bakhtin (1895-1975)
A partir do que se trouxe do pensamento bakhtiniano e das peculiaridades
estilísticas/estruturais concernentes à literatura infantil/juvenil contemporânea, no
capítulo anterior, é que se investe no potencial dialógico de Luna Clara e Apolo
Onze. Deduz-se que o romance pode ser analisado sob a ótica da concepção
estética, razão pela qual ela é aqui sinteticamente abordada.
A atividade estética é recorrente no pensamento bakhtiniano. De acordo com
Faraco152, ao propor novas diretrizes que colocam na centralidade dessa discussão,
ou melhor, que levam em consideração o social, o histórico e o cultural, o Círculo
distancia-se da perspectiva estética tradicional que apregoa uma dicotomia entre o
estudo imanente da arte e o estudo de sua história e de sua inserção social e
cultural. Também para Sobral153, trata-se especificamente de duas críticas
basilares: ao formalismo russo, que percebia a obra em sua instância factual
(artefato), pois, nela, vida/ética (ligada ao cotidiano) e arte/estética (ligada ao
artístico) não se relacionam/refletem mutuamente; e ao marxismo vulgar, que via o
discurso como mera representação ou reflexo imediato dos contextos em que
circulam e de onde provém. Eis, portanto, os dois pontos de vista que, na concepção
de Voloshinov154, devem ser rejeitados ao tomar-se a esfera da arte como objeto de
análise: a fetichização da obra artística enquanto artefato e a restrição ao estudo da 151
BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4.ed. São Paulo:
Ed. UNESP: Hucitec, 1998. p.31. 152
FARACO, Carlos Alberto. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares. Letras de Hoje, Porto Alegre, v.46. n.1, jan./mar. 2011. p.21. 153
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin.
Campinas: Mercado de Letras, 2009. p.105. 154
VOLOSHINOV, V. N. Discurso na Vida e Discurso na Arte (sobre a poética sociológica) [1926].
Tradução para o português por Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, para uso didático, com base na tradução inglesa de I. R. Titunik. Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics. In: V. N. Voloshinov, Freudism. New York: Academic Press, 1976. p.3.
59
psique do criador ou do contemplador. Acerca desses aspectos, é complementado
enfaticamente:
Ao final das contas, ambos os pontos de vista pecam pela mesma falta: eles tentam descobrir o todo na parte, isto é, eles pegam a estrutura de uma parte, abstratamente divorciada do todo, apresentando-a como a estrutura do todo. Entretanto, o artístico na sua total integridade não se localiza nem no artefato nem nas psiques do criador e contemplador consideradas separadamente; ele contém todos esses três fatores. O artístico é uma forma especial de inter-relação entre criador e contemplador fixada em uma
obra de arte.155
Dessa forma, o Círculo propõe “as coordenadas básicas de uma estética
geral sistemática (filosófica) [...] – projeto que, infelizmente, nunca se concluiu”156 –
em contraposição à estética material derivada do formalismo, considerada
reducionista, ineficiente. Na abordagem bakhtiniana, Faraco destaca que o estético-
formal, isto é, “o social, o histórico, o cultural [...] é imanente ao objeto estético” 157, o
que se revela no relacionamento autor-herói da forma peculiar como é concebido por
Bakhtin. Nas palavras do pesquisador:
Bakhtin acredita que separar poética e estética é uma pretensão irrealizável: só uma estética geral será, segundo ele, capaz de sustentar uma abordagem adequada da especificidade do estético, de suas correlações com o ético e o cognitivo, no seu lugar no todo da cultura humana e dos limites de sua aplicação.
158
Conforme Sobral159, em relação a essa proposta de síntese, existe uma
atitude geral e uma específica. A primeira atitude percebe o que é simbolicamente
manifestado pelos indivíduos como processos localizados social e historicamente,
via interação dialógica. Nesse sentido, revela-se o caráter dinâmico, ativo dos
discursos que passam a mobilizar os contextos nos quais os sujeitos se constituem
155
VOLOSHINOV, V. N. Discurso na Vida e Discurso na Arte (sobre a poética sociológica) [1926]. Tradução para o português por Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, para uso didático, com base na tradução inglesa de I. R. Titunik. Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics. In: V. N. Voloshinov, Freudism. New York: Academic Press, 1976. p.3-4. 156
FARACO, Carlos Alberto. O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal. In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.96. 157
Idem. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares. Letras de Hoje, Porto Alegre, v.46. n.1, jan./mar. 2011. p.22. 158
FARACO, Carlos Alberto. O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal. In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.98. 159
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin. Campinas: Mercado de Letras, 2009. p.106.
60
intersubjetivamente. A segunda atitude, na esfera literária, reconhece a obra de arte
como entidade transfiguradora de um determinado conteúdo, a depender da sua
forma de representação estética, o que ocorre por intermédio do material semiótico.
Sobral160, ainda, destaca que o autor trabalha com um conteúdo, um material
e uma forma, elementos constitutivos de toda atividade discursiva. Esclarece que ao
conteúdo estão relacionadas as ações humanas, “o mundo humano em sua
apropriação avaliativa pelos sujeitos no ambiente social e histórico”.161 Nas palavras
de Bakhtin:
Nós, de pleno acordo com o uso tradicional da palavra, chamamos de conteúdo da obra de arte (mais precisamente, do objeto estético) à realidade do conhecimento e do ato estético, que entra com sua identificação e avaliação no objeto estético e é submetida a uma unificação concreta, intuitiva, a uma individualização, a uma concretização, a um isolamento e a um acabamento, ou seja, a uma formalização multiforme com a ajuda de um material determinado. O conteúdo representa o momento constitutivo indispensável do objeto estético, ao qual é correlativa a forma estética que, fora dessa relação, em geral, não tem nenhum significado.
162
Ao material, relaciona-se a linguagem ou linguagens. Bakhtin diz:
O enorme trabalho do artista com a palavra tem por objetivo final a sua superação, pois o objeto estético cresce nas fronteiras das palavras, nas fronteiras da língua enquanto tal; mas essa superação do material assume um caráter puramente imanente: o artista libera-se da língua na sua determinação linguística não ao negá-la, mas graças ao seu aperfeiçoamento imanente: o artista como que vence a língua graças ao próprio instrumento linguístico, aperfeiçoando-a linguisticamente, obriga-a a superar a si própria [...]. A superação imanente é a definição formal da relação com o material não só na poesia, mas em todas as artes.
163
À forma, relaciona-se o modo de organização dos discursos, que integra o
conteúdo e interliga-se ao material, “a concepção e a realização específicas,
baseadas nas formas de interlocução”.164 Sobral reitera que há aqui implicadas, no
entanto, duas dimensões. Uma corresponde à forma composicional, caracterizada
pela “materialidade do texto” e que Bakhtin assim sintetiza:
160
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin. Campinas: Mercado de Letras, 2009. p.68. 161
Ibid., p.106. 162
BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4.ed. São Paulo:
Ed. UNESP: Hucitec, 1998. p.35. 163
Ibid., p.50. 164
SOBRAL, op. cit., p.106.
61
As formas composicionais que organizam o material têm um caráter teleológico, utilitário, como que inquieto, e estão sujeitas a uma avaliação puramente técnica, para determinar quão adequadamente elas realizam a tarefa arquitetônica. A forma arquitetônica determina a escolha da forma composicional [...]. Naturalmente, não é por isso que se deva concluir que a forma arquitetônica existe em algum lugar sob um aspecto acabado e que pode ser realizada independente da forma composicional.
165
A outra dimensão corresponde à forma arquitetônica, caracterizada pela
“superfície discursiva, organização do conteúdo, expresso por meio da matéria
verbal, em termos das relações entre o autor, o tópico (herói), e o ouvinte” 166. Ela é,
assim, ilustrada em Bakhtin:
As formas arquitetônicas são as formas dos valores morais e físicos do homem estético, as formas da natureza enquanto seu ambiente, as formas do acontecimento no seu aspecto de vida particular, social, histórica etc.; todas elas são aquisições, realizações, não servem a nada, mas se autosatisfazem tranquilamente; são as formas da existência estética na sua singularidade.
167
Portanto, “forma composicional é o modo específico de estruturação da obra
externa a partir de sua concepção arquitetônica” 168, que implica perceber a obra de
arte como revelação das múltiplas possibilidades de intercâmbio axiológico entre os
sujeitos, como um objeto estético, portanto, que se distingue da concepção de obra
de arte como uma “coisa”, um dado, por isso um artefato169, que, de acordo com
Voloshinov170, desconsidera a relevância e a participação do criador e dos
contempladores.
Além dessa distinção, Bakhtin propõe uma nova concepção de autoria (que
não se encerra no autor, mas envolve igualmente as suas personagens e os seus
leitores): a diferenciação entre o autor-pessoa, e aqui não resta dúvida de que se
165
BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4.ed. São Paulo:
Ed. UNESP: Hucitec, 1998. p.25 166
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin.
Campinas: Mercado de Letras, 2009. p.68. 167
BAKHTIN, loc. cit 168
SOBRAL, Adail. Ético e estético – Na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas. In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4.ed. São Paulo: Contexto, 2007. v.1. p.112. 169
FARACO, Carlos Alberto. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares. Letras de Hoje, Porto Alegre, v.46. n.1, jan./mar. 2011. p.21. 170
VOLOSHINOV, V. N. Discurso na Vida e Discurso na Arte (sobre a poética sociológica) [1926]. Tradução para o português por Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, para uso didático, com base na tradução inglesa de I. R. Titunik. Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics. In: V. N. Voloshinov, Freudism. New York: Academic Press, 1976. p.3.
62
refere ao próprio escritor, como artista, pessoa física, e o autor-criador, aquele sobre
o qual se faz necessário elucidar:
O autor-criador é entendido basicamente como uma posição estético-formal cuja característica central está em materializar uma certa relação axiológica com o herói e seu mundo. E essa relação axiológica é uma possível dentre as muitas avaliações sociais que circulam numa determinada época e numa determinada cultura. É por meio do autor-criador (do posicionamento axiológico desse pivô estético-formal) que o social, o histórico, o cultural se tornam elementos intrínsecos do objeto estético [...]. É a partir dele que se construirá o herói e o seu mundo, isto é, se enformará o conteúdo do objeto estético [...].
171
O autor-criador é o responsável por “transfigurar” 172 esteticamente o mundo
concreto, ou seja, por efetivar uma “representação (o vir-a-ser/objetivado) da
representação (o dado/fenomenológico) – tendo em vista que também o “mundo da
vida” já é perpassado de valorações. Esse autor, conforme Sobral, uma
“personagem de si mesmo”, distancia-se em relação ao herói, “objeto da atividade
de organização, quase outra pessoa”.173. Em outras palavras,
ato estético envolve, assim, um complexo processo de transposições refratadas da vida para a arte: primeiro, porque é um autor-criador e não um autor-pessoa que compõe o objeto estético [...]; e, segundo, porque a transposição de planos da vida para a arte se dá não por meio de uma isenta estenografia [...], mas a partir de um certo viés valorativo. [...] O complexo entrecruzamento de redes axiológicas que enformam o objeto estético arquitetônica, composicional e materialmente é que enraíza a arte na totalidade da cultura. E é isolar, reformatar e dar acabamento em uma nova unidade axiológica que constitui, segundo Bakhtin, o específico do estético [...].
174
Dessa forma, a mencionada posição de distanciamento do autor-criador é
essencial sob o ponto de vista estético. Além de tratada como exotopia, ela também
é conhecida como transgrediência, extraposição, como excedente de visão, termos
que “descrevem o fato de o autor, para ser autor, dever saber tudo sobre o herói,
sobre sua ‘personalidade’, sua ‘condição’ etc., que o herói não pode saber”.175 Trata-
se, pois, de um deslocamento necessário por parte de quem vê o mundo, para que
171
FARACO, Carlos Alberto. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares. Letras de Hoje, Porto Alegre, v.46. n.1, jan./mar. 2011. p.22. 172
SOBRAL, Adail. A Estética em Bakhtin (Literatura, Poética e Estética). In: DE PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas: Mercado das
Letras, 2010. v.1. p. 58-59 173
Idem, Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin. Campinas:
Mercado de Letras, 2009.p. 107 174
FARACO, op. cit., p.24. 175
SOBRAL, op. cit., p.111.
63
esse mundo seja vislumbrado a partir de outras perspectivas, irrealizáveis sem o
distanciamento do lugar que o sujeito ocupa em tal cenário (discursivo). Faraco
enfatiza, ainda, que é “no excedente de visão – em seu sentido, pressupostos e
consequências – que vamos encontrar o chão comum para a estética e a ética em
Bakhtin”.176 Como o “autor/locutor situa-se numa fronteira entre o mundo concreto e
o discurso que cria” 177, esse relevante elemento constitutivo da filosofia geral
bakhtiniana se reflete na esfera artística, no campo da autoria, também da seguinte
maneira:
Na vida, cada um de nós ocupa um lugar único, isto é, um lugar irredutível ao ocupado por qualquer outra pessoa. Desse modo, quando contemplo alguém situado fora e adiante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis jamais coincidem. Porque em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver: [...] Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos olhos.
178
Isso remete à concepção de “dialogismo”, que difere da noção de “diálogo”
(da esfera composicional), pois este é “um fenômeno textual e um procedimento
discursivo englobado pelo dialogismo, sendo apenas um de seus níveis mais
evidentes no nível da materialidade discursiva”.179 O dialogismo (da esfera
arquitetônica), vinculado consequentemente à interação, é “conceito amplo, de
cunho filosófico, discursivo e textual” 180 e se reflete:
a) como princípio geral do agir – só se age em relação de contraste com relação a outros atos de outros sujeitos: o vir-a-ser, do indivíduo e do sentido, está fundado na diferença; b) como princípio da produção dos enunciados/discursos, que advêm de “diálogos” retrospectivos e prospectivos com outros enunciados/discursos; c) como forma específica de composição de enunciados/discursos, opondo-se nesse caso à forma de composição monológica, embora nenhum enunciado/discurso seja constitutivamente monológico nas duas outras acepções do conceito.
181
No objeto estético, esses planos se evidenciam da seguinte forma:
176
FARACO, Carlos Alberto. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares. Letras de Hoje, Porto Alegre, v.46. n.1, jan./mar. 2011. p.24. 177
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin. Campinas: Mercado de Letras, 2009. p.112. 178
FARACO, op. cit., p.24. 179
SOBRAL, op. cit., p.34. 180
Ibid., p.35. 181
Idem. Ético e estético – Na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas. In: BRAIT, Beth.
(Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4.ed. São Paulo: Contexto, 2007. v.1. p.106.
64
o locutor e o interlocutor têm o mesmo peso, porque toda enunciação é uma “resposta”, uma réplica, a enunciações passadas e a possíveis enunciações futuras, e ao mesmo tempo uma “pergunta”, uma “interpelação” a outras enunciações: o sujeito que fala o faz levando o outro em conta não como parte passiva mas como parceiro – colaborativo ou hostil – ativo.
182
Por conseguinte, eis aquele “não indiferente”, que participa da ética
bakhtiniana e “dá voz” ao “primado do sujeito moral sobre as normas – um sujeito
moral pleno de sua consciência, de sua liberdade e de sua responsabilidade
absoluta (sem álibis) por seus atos.” 183 Faraco alerta que não se trata de uma ética
solipsista, pois o sujeito bakhtiniano vive em comunhão, é uma espécie de “solitário
ético” no sentido de que somente ele tem o poder de decisão. A esse respeito, o
autor esclarece: “o outro (que não é simplesmente outra pessoa, mas uma pessoa
diferente, um outro centro axiológico e, portanto, irredutível a mim da mesma forma
que eu sou irredutível a ele) baliza o meu agir responsável”.184
Oportunamente, Sobral, ao enfatizar a complexidade do “outro” bakhtiniano,
reitera a percepção de que nos discursos há o que ele propõe denominar como
“tendência ao monológico” e “tendência ao dialógico”, tendências essas
sinalizadoras dos “graus de dialogismo ‘mostrado’ a partir de seus dois extremos,
naturalmente possíveis apenas em termos teóricos, mas não concretamente
verificáveis – os discursos monológicos e dialógicos ‘puros’”.185 Nesse sentido, os
graus de dialogismo denunciam as diferentes redes de relações estabelecidas na
tríade autor-leitor-personagem, o que, segundo o autor186, adquire sua forma
máxima no discurso estético, dado que nele o mundo é transfigurado. O autor
reafirma a impossibilidade de não haver discurso sem dialogismo, sem exotopia,
esclarecendo que a posição extraposta, ao invés de conferir uma imagem
hierarquizante, monológica ao autor, incide sobre a sua ação constituída, refletindo a
sua participação na forma artística, como arquiteto/organizador dos discursos ali
presentes. Sob esta ótica,
182
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin.
Campinas: Mercado de Letras, 2009. p.33. 183
FARACO, Carlos Alberto. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares. Letras de Hoje, Porto Alegre, v.46. n.1, jan./mar. 2011. p.25. 184
Ibid., loc. cit. 185
SOBRAL, Adail. A Estética em Bakhtin (Literatura, Poética e Estética). In: DE PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas: Mercado das
Letras, 2010. v.1. p. 68-69. 186
Idem. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin. Campinas:
Mercado de Letras, 2009. p.112.
65
os discursos podem ser estruturados composicionalmente de modo a apresentar ou não as marcas do dialogismo. O discurso tendencialmente monológico se mostra, em termos composicionais e de projeto enunciativo, voltado assimilativa e/ou refutativamente para a ‘neutralização’, na superfície discursiva, das vozes que o constituem, e para a instauração de uma só voz como a voz dominante, de maneira explícita ou velada. Em contrapartida, o discurso tendencialmente dialógico se mostra, nesses mesmos termos, voltado para tornar presentes, assimilativa e/ou refutativamente, as vozes que o constituem, para a instauração mais ou menos explícita, de um concerto de vozes, que naturalmente podem ser dissonantes.
187
Com isso, Sobral, ao considerar que os discursos são sempre permeados
pela transposição/transfiguração do mundo concreto em alguma instância, alerta que
podem existir discursos composicionalmente dialógicos que tendem ao monológico
tanto quanto os monológicos tendem ao dialógico, o que se dá em diferentes graus,
tendo em vista que só há “formas puras”, reitera, como “artifício metodológico”.188
E são essas as diretrizes e reflexões consideradas na análise desta pesquisa.
187
SOBRAL, Adail. A Estética em Bakhtin (Literatura, Poética e Estética). In: DE PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas: Mercado das Letras, 2010. v.1. p.69. 188
Ibid., loc. cit.
66
5 A DIRETRIZ ESTÉTICA CONSTITUI O MÉTODO
O dever de pensar e a impossibilidade de não pensar são dados pela posição que ocupo em um dado contexto da vida real e concreta. Desse lugar, que somente eu ocupo, o que vejo e o que penso são da minha responsabilidade. Ninguém mais pode pensar aquilo que penso. Ninguém mais pode prestar contas da minha posição e realizá-la, por isso não existe nenhum álibi para que eu não pense e não assuma o que penso.
189
Dada a natureza do estudo, a análise caracteriza-se como essencialmente
qualitativa. Schwandt entende esse modelo de investigação mais “como um terreno
ou uma arena para a crítica científica social, do que como um tipo específico de
teoria social, metodologia ou filosofia [...]”.190 Para ele, essa prática investigativa,
diferenciada por dinamizar tanto a teoria quanto as metas do estudo, não pode ser
coerentemente definida “como uma criação ateórica que necessita apenas de perícia
metodológica”.191 Dessa forma,
[...] a partir do momento que o indivíduo envolve-se em “práticas” de geração e de interpretação de dados para solucionar dúvidas quanto ao significado daquilo que os outros estão fazendo e dizendo, para, então, transformar esse entendimento para o conhecimento público, ele inevitavelmente estará assumindo inquietações “teóricas” sobre o que constitui o conhecimento e como este justifica-se, sobre a natureza e o objetivo da teorização social, e assim por diante. Em suma, a ação e o pensamento, a prática e a teoria, estão ligadas em um processo contínuo de reflexão crítica e de transformação.
192
Associa-se também à natureza deste trabalho, que traz teses em discussão
interativa, a convicção de que é o próprio objeto da pesquisa que determina a
metodologia a orientar o estudo e não o contrário.
189
AMORIM, Marilia. Para uma filosofia do ato: “valido e inserido no contexto” In: BRAIT, Beth. (Org.).
Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.23-24. 190
SCHWANDT, Thomas A. Três posturas epistemológicas para a investigação qualitativa: interpretativismo, hermenêutica e construcionismo social. In: DENZIN, Norman K.; LINCOLN. Yvonna S. (Coord.).O Planejamento da Pesquisa Qualitativa: Teorias e Abordagens. 2.ed. Porto Alegre:
Artmed Bookman, 2006. p.194. 191
Ibid., p.195. 192
Ibid., loc. cit.
67
É na verdade a natureza do objeto assim descrito que convoca técnicas, em vez de ser a técnica aquilo que busca enquadrá-lo num círculo vicioso em que só se procura o que já se sabe que se vai achar ou só se acha o que já se estava procurando desde o início [...]. Não se trata naturalmente de propor uma técnica para cada objeto, mas de reconhecer que a especificidade de cada objeto requer a ênfase em uma ou em outra técnica.
193
Luna Clara e Apolo Onze, uma obra que, reitera-se avaliando, deve ser
considerada como “objeto estético” e não como “artefato”. Ela própria “pede” que
assim o seja, pois traz a “assinatura” que revela a sua “responsibilidade” 194. “O autor
ocupa uma posição responsável no acontecimento do existir, opera com elementos
desse acontecimento e por isso a sua obra é também um momento desse
acontecimento.” 195 Nesse sentido, poder-se-ia inferir que essa é a enunciação
primeira da “natureza do objeto”. Dentre as inúmeras possibilidades em pesquisa
que o romance oferece, destaca-se a singularidade do projeto enunciativo do autor,
no qual ele é capaz de concretizar arquitetonicamente uma multiplicidade de vozes
com potencial para interação dialógica. Esse é o elemento ímpar da narrativa, que
traz um matiz diferenciado à literatura contemporânea, no que tange ao “modo de
dizer” do autor que, ao conseguir distanciar-se, via posição exotópica, consegue
estabelecer um novo estatuto, de maior proximidade e atração com o interlocutor, a
partir do conteúdo, do material e da forma com que trabalha e através da qual se
relaciona com os outros “interagentes” 196 da obra.
Logo, para atender ao propósito de desvendar o dialogismo (graus de
dialogicidade) na multiplicidade de vozes que constitui Luna Clara e Apolo Onze, a
“técnica convocada” pelo objeto passa basicamente pelo diálogo com as seguintes
questões:
1. como o autor representa as vozes na narrativa;
2. como o autor dialoga com o leitor e com os “outros” no romance;
193
SOBRAL, Adail. Filosofias (e filosofia) em Bakhtin. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave/
Beth Brait, (Org.). 4ª. ed. – São Paulo: Contexto, 2007. p.133. 194
Foi adotado o neologismo proposto por Sobral, “como uma tentativa de unir numa só palavra [estes] dois aspectos, o de responder pelos próprios atos, e o de responder a alguém ou alguma coisa. (SOBRAL, 2009, p. 58). Ou “[...] responsabilidade pelo ato e responsividade aos outros sujeitos”. (SOBRAL, 2010, p.64.) 195
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 6.ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. WMF
Martins Fontes, 2011. p.176. 196
Variação inspirada no termo “interagente”, adotado por Sobral para indicar que o autor não age em isolamento. (SOBRAL, 2009, p. 71).
68
3. como o autor organiza as relações entre as personagens e o espaço da
história.
Consequentemente, os objetivos específicos são:
1. identificar o modo de representação discursiva das personagens;
2. evidenciar as estratégias empregadas pelo autor para instaurar o diálogo com
o leitor;
3. investigar o modo de organização das relações entre as personagens e o
espaço da narrativa.
Com isso, tem-se o “o quê” da estratégia metodológica de pesquisa, as
temáticas enfocadas; pendente ainda resta o “como” dela, a partir de que se chega a
elas. A fim de dar conta dos objetivos específicos elencados, são analisados
respectivamente:
5.1 EM RELAÇÃO À REPRESENTAÇÃO DOS HERÓIS – O CONTEÚDO:
a) Os nomes e as marcas discursivas das personagens;
Cada personagem representa um ponto de vista/uma visão de mundo, uma
ideologia. Afinal, “a maneira de falar do outro é usada pelo autor como ponto de
vista, como posição de que este necessita para conduzir sua narração”.197 Embora
não haja motivo para “transformar a classificação em camisa-de-força”198, responder
conclusivamente a isso não é possível nem é o objetivo da pesquisa. Apenas lança-
se o mínimo de inferência necessário para a sequência do estudo sob o ponto de
vista estético, a fim de que se possa sinalizar os aspectos reveladores do dialogismo
e da interação. Essa inferência pode ser associada à dúvida. De qualquer modo, ela
“é o que confere ainda mais peso à minha assinatura, significando que eu poderia
197
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.218. 198
SOBRAL, Adail. A Estética em Bakhtin (Literatura, Poética e Estética). In: DE PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas: Mercado das
Letras, 2010. v.1. p.56.
69
não reconhecer um determinado pensamento como válido. Eu poderia duvidar
dele”.199
Ressalta-se que a “leitura da personagem” pelo interlocutor já é uma
avaliação da avaliação. Por isso, a interpretação da voz dessa personagem não
pode ser arbitrária, mas inferida, neste caso, pela nomeação e pela discursividade
que a identificam como singular na obra. São esses elementos que materializam,
reitera-se, “uma certa relação axiológica com o herói e o seu mundo. E essa relação
axiológica é uma possível dentre as muitas avaliações sociais que circulam numa
determinada época”.200 Logo, a inferência das vozes, que já se mostram nos nomes
das personagens, não será realizada com o intuito de problematizar o aspecto típico,
objetivo, determinante da personagem, nem sugerir uma consciência una, estável,
mas como meio de descobrir, quem sabe, a “posição racional e valorativa do homem
em relação a si mesmo e à realidade circundante [...], o que o mundo é para a
personagem e o que ela é para si mesma”.201 Eis a ligação da obra de arte com o
ideologico, o social, o cultural, pois o “discurso do sujeito falante no romance não é
apenas transmitido ou reproduzido, mas representado pelo próprio discurso (do
autor)”.202
b) a transformação resultante da interação refletida nas marcas
discursivas e nas ações das personagens;
Leva-se em consideração que Bakhtin propõe:
um mundo de sentido em constante vir-a-ser, de estabilidade e instabilidade relativas, em que há regularidades suficientes para que se identifiquem atividades-tipo mas em que há margem para o reconhecimento de que nada se repete literalmente: a simples escolha daquilo que se repete é já uma transfiguração do repetido.
203
5.2 EM RELAÇÃO AO DIÁLOGO VOLTADO PARA O LEITOR – O MATERIAL:
199
AMORIM, Marilia. Para uma filosofia do ato: “valido e inserido no contexto” In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.37. 200
FARACO, Carlos Alberto. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares. Letras de Hoje, Porto Alegre, v.46. n.1, jan./mar. 2011. p.22. 201
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p.52. 202
Idem. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4.ed. São Paulo: Ed. UNESP: Hucitec, 1998. p.135. 203
(SOBRAL, Adail. A Estética em Bakhtin (Literatura, Poética e Estética). In: DE PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas: Mercado das
Letras, 2010. v.1. p.83.
70
a) a fragmentação dos capítulos e a reiteração como recurso dialético-
dialógico;
b) “o bilhete” e a “utilização do verbo”: metáforas do lugar da palavra no
objeto estético;
c) a expressão “minha Nossa Senhora” – Ai Minha Nossa Senhora do
Que é Isso? Com a palavra, “a metalinguística”;
d) a voz social do outro na voz do autor;
e) a interdiscursividade: uma espécie de diálogo com o e no próprio
diálogo.
5.3 EM RELAÇÃO À ORGANIZAÇÃO DAS RELAÇÕES NA OBRA – A FORMA
ARQUITETÔNICA:
a) as relações dissonantes (de embate constitutivo) entre as
personagens;
b) as relações antagônicas entre elementos que compõem o espaço da
narrativa;
c) as influências carnavalizantes;
d) as relações convergentes entre as personagens.
É claro que a concepção arquitetônica envolve “dialeticamente forma,
conteúdo e material, em sua interdependência, [o que faz com que] uns não ‘vivam’
sem os outros na obra [...]”.204 [grifo nosso] Os três fatores apenas foram
apresentados em separado na subdivisão dos capítulos como modo de organização
metodológica, como estratégia para apresentar sob qual das óticas mais
especificamente a análise está sendo enfocada.
Nesse processo dialético-dialógico de descobertas, nem se poderia esquecer
o “à luz da polifonia”. Oportunamente, Faraco destaca, como curiosidade, que “a
categoria estética ‘polifonia’ desaparece completamente do discurso bakhtiniano [...].
Quando [Bakhtin] elabora sua teoria do romance, nos anos 30, não faz qualquer
204
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin.
Campinas: Mercado de Letras, 2009. p.107-108.
71
referência a ela” 205 [grifo nosso], sendo a “heteroglossia dialogizada” o que aparece
na teoria do romance:
Não abandona, portanto, o conceito de multidão de vozes, nem de seu contraponto dialógico (categorias, aliás, constitutivas do discurso romanesco). O que desaparece é a equipolência e a plenivalência. Na teoria do romance, parece que Bakhtin abaixa alguns tons o seu extravasamento polifônico e segura um pouco seus impulsos utópicos. Não abandona, porém, uma concepção de irredutibilidade do outro. Essa irredutibilidade é certamente o fundamento inexorável para uma ética [...]
206
Nesta pesquisa, segue-se, de certa forma, o mesmo movimento. Reconhece-
se que Luna Clara e Apolo Onze faz emergir uma multiplicidade de vozes peculiar, o
que encontra ressonâncias na heteroglossia já referida: “conjunto múltiplo e
heterogêneo de vozes ou línguas sociais, isto é, um conjunto de formações verbo-
axiológicas”.207 Equipolência e plenivalência “desaparecem”, aqui, como aquilo que
não se deve enfatizar pela via analítica.
Assim, o percurso metodológico descrito, que pretende viabilizar a
comprovação da multiplicidade de vozes e do dialogismo aí envolvido, configura-se
uma possibilidade dentre os muitos caminhos possíveis a desbravar. Eis,
novamente, o essencial ou, como foi referido anteriormente, o suficiente para
estabelecer um diálogo, a fim de que se possa, simultaneamente, fazer desta
experiência de leitura e de escrita um peculiar “instrumento de ver e mostrar o
mundo”.208
205
FARACO, Carlos Alberto. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares. Letras de Hoje, Porto Alegre, v.46. n.1, jan./mar. 2011. p. 25. 206
Ibid., p.25-26. 207
Ibid., p.23. 208
BRAIT, Beth. Língua e Literatura: uma falsa dicotomia. In: Rev. ANPOLL, n.8, p. 187-206,
jan./jun. 2000. p.197.
72
6 A ARQUITETÔNICA EM LUNA CLARA E APOLO ONZE: UMA ANÁLISE EM
EXERCÍCIO
Em relação à representação dos heróis, são analisados: a) o nome e as
marcas discursivas das personagens; b) a transformação resultante da interação
refletida nas marcas discursivas e nas ações das personagens.
6.1 COMO O AUTOR REPRESENTA AS VOZES NA NARRATIVA
O mundo no qual o ato se orienta fundado na sua participação singular no existir: este é o objeto da filosofia moral. Mas o ato não o conhece como algo de conteúdo determinado; ele tem a ver somente com uma pessoa única e com um objeto único, que, além do mais, lhe são dados em tons emotivos-volitivos individuais. É um mundo de nomes próprios, destes objetos singulares e de certos dados cronológicos da vida.
209
Mikhail Bakhtin (1895-1975).
6.1.1 O nome e as marcas discursivas das personagens
Certamente, um dos elementos mais instigantes em Luna Clara e Apolo Onze
está relacionado ao nome com que o autor presenteou as personagens da narrativa.
Ao mesmo tempo em que o leitor adentra na atmosfera literária evocada pela trama,
é, a cada nova apresentação das personagens, acometido pelo forte componente
valorativo instituído em seus nomes.
O próprio nome das personagens e as marcas discursivas expressas nos
diálogos entre elas e o autor sugerem a presença de vozes distintas no romance.
Esses elementos, por sua vez, viabilizam a percepção das vozes sociais, da forma
como cada personagem pode sentir a si mesma e o mundo, a partir da interação
com outras vozes. Tal aspecto ressalta o que Bakhtin anuncia sobre “a pessoa que
fala no romance”:
209
BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do Ato Responsável. Trad. Valdemir Miotello & Carlos
Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010. p.114.
73
O sujeito que fala no romance é sempre, em certo grau, um ideólogo e suas palavras são sempre um ideologema. Uma linguagem particular no romance representa sempre um ponto de vista particular sobre o mundo, que aspira a uma significação social. Precisamente enquanto ideologema, o discurso se torna objeto de representação no romance e, por isso, este não corre o risco de se tornar um jogo verbal abstrato.
210
Nesse sentido, confirma-se que o “principal objeto do gênero romanesco,
aquele que o caracteriza, que cria sua originalidade estilística é o homem que fala e
sua palavra”.211 O nome da personagem e as marcas discursivas delas revelam
aspectos fundamentais do ponto de vista estético. Há, implicitamente, um processo
de metalinguagem instaurado no próprio nome das personagens e que se propaga
nos discursos delas. É o autor, tido “como uma posição axiológica estruturante do
objeto estético” 212, responsável por isso. É ele quem nomeia e, ao nomear da forma
especial como o faz em Luna Clara e Apolo Onze, transfere a sua obra para além do
artefato. Através da composição dos nomes, percebe-se o projeto arquitetônico do
autor, já que a seleção dos nomes efetivada por ele revela pistas. Isso “ocorre a
partir do senso de estar envolvido [...] na atividade de selecionar, determinar,
construir, dar acabamento a um novo enunciado concreto que materializa um
determinado objeto estético.” 213 Especificamente neste objeto estético, é como se o
nome fosse o locus da valoração do autor-criador, enfatiza-se, a partir do qual “se
construirá o herói e o seu mundo, isto é, se enformará o conteúdo do objeto estético”
214, pois o nome já expressa algo do modo de ser/pensar/agir da personagem.
Através da palavra, isso se transforma em “expressão do mundo dos outros e
expressão da relação do autor com esse mundo”.215
No entanto, como se chega à conclusão de que determinada personagem
expressa uma visão? Por intermédio das suas ações, das suas falas, nas quais “já
estão embutidas as bases, as potencialidades da forma artística”.216 E, se é possível
210
BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4.ed. São Paulo:
Ed. UNESP: Hucitec, 1998. p.135. 211
Idem, Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4.ed. São Paulo: Ed. UNESP:
Hucitec, 1998. p.135. 212
FARACO, Carlos Alberto. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares. Letras de Hoje, Porto Alegre, v.46. n.1, jan./mar. 2011. p.23. 213
FARACO, loc. cit. 214
Ibid., p.22. 215
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 6.ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. WMF
Martins Fontes, 2011. p.180. 216
VOLOSHINOV, V. N. Discurso na Vida e Discurso na Arte (sobre a poética sociológica) [1926].
Tradução para o português por Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, para uso didático, com base na tradução inglesa de I. R. Titunik. Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics. In: V. N. Voloshinov, Freudism. New York: Academic Press, 1976. p.4.
74
chegar a essas potencialidades, isso se deve ao fato de que cada personagem tem
a sua voz, marcas discursivas próprias, comportamentos e ações típicos, como se
passa a exemplificar a seguir, pois a “ação, o comportamento do personagem no
romance são indispensáveis tanto para a revelação como para a experimentação de
sua posição ideológica, de sua palavra”.217
Doravante, como o próprio nome sugere, é aquele que possui a força de
avançar. Ele bem pode representar a voz da “pressa”. Ele sempre esteve
acostumado à sorte como companheira de vida, sendo presenteado com o sucesso
em todos os aspectos dela. Aliás, uma segurança que a sua própria visão do mundo
lhe garante, porque a “visão de mundo constrói atitudes [...].” 218
Determinado,
corajoso, não gostava de esperar por nada:
Realmente, Doravante foi um sujeito muito sortudo. Isso foi há muito tempo. Tinha sorte na vida, nas provas, nas cartas, nas pedras, nos dados, nos búzios, nos dias, nas noites, nos sonhos, até no azar ele tinha sorte. Se algo dava errado, no final ia dar certo, quer ver? Sempre dava [...] Tinha a certeza absoluta que o amor ia aparecer, assim, na sua frente. – Eusóqueroquesejalogo. Doravante tinha pressa.
219
Se Doravante é apressado, é natural que esse traço da subjetividade dele
manifeste-se na linguagem, a qual traduz a sua maneira de ver e de enfrentar o
mundo ao seu redor. Juntar as palavras trata-se de uma marca discursiva, porque
sinaliza a maneira como o autor caracteriza a personagem em suas relações com as
demais, conferindo-lhe uma voz. Assim, Doravante “vive e age em seu próprio
mundo ideológico [...], ele tem sua própria concepção do mundo, personificada em
sua ação e em sua palavra”.220 Por isso junta as palavras: para ganhar tempo e não
estacionar nele. É essa a sua convicção, impressa na discursividade própria que o
217 BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4.ed. São Paulo:
Ed. UNESP: Hucitec, 1998. p.136. 218
Idem, Estética da criação verbal. 6.ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2011. p. 189. 219
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.57. 220
BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4.ed. São Paulo:
Ed. UNESP: Hucitec, 1998. p.137.
75
identifica. Dessa maneira, é possível saber sem muitas dificuldades a quem o
discurso permeado pela aglutinação das palavras pertence.
Outro bom exemplo para confirmar a forte ligação entre o nome e a voz social
é Seu Erudito. Pode-se relacionar a ele a voz do patrimônio (cultural), pois é quem
preserva e transmite o conhecimento aos demais. Considera que a maior riqueza de
um homem é estar em contato com as narrativas, ser capaz de transmiti-las para
outrem. É importante salientar que “não é a imagem do homem em si que é
característica, mas justamente a imagem de sua linguagem”.221 Logo, em virtude do
apreço às histórias, quando se vislumbram referências a obras literárias, sabe-se de
quem é o discurso:
– Um dia encontro Pilhério e minhas histórias. Vou contar todas pra minha neta, duvidam? Pelo sim, pelo não, resolveu ir comprando todos os livros que estavam à venda para colecionar histórias novas. Não era avô de deixar a neta sem histórias para dormir. Na falta de livros infantis, ia comprando melodramas, tragédias, histórias de terror, o que conseguisse estava bom. – Você não pretende contar essa história de vampiro para Luna Clara, eu espero – Aventura reclamava. – Nada de Luna Clara. Ela vai se chamar Tutameia e tenho dito e pronto.
222
Como se pode inferir, Seu Erudito também traz a voz do patriarca, com uma
dose de conservadorismo, inflexibilidade, características que se revelam em outra
marca discursiva repetida em inúmeros enunciados seus: “E tenho dito. E pronto”.
Assim, além de preservar o conhecimento e transmiti-lo aonde quer que vá, ele se
sente responsável por zelar pela família, manter a moral, os princípios.
Odisseia, Divina e Aventura recusaram pelo caminho muitas alianças de noivado, pedidos de casamento e promessas ardentes. Não tinham cruzado com o amor ainda. O pai ficava aliviadíssimo. Imagina se ia deixar as filhas no caminho com algum aventureiro. – Deus me livre. E tenho dito. E pronto.
223
Pilhério também configura uma exemplificação pertinente. Ele é o intelectual.
É um papagaio, mas, por ser culto, considera-se uma pessoa. Gosta de exibir
221
BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4.ed. São Paulo: Ed. UNESP: Hucitec, 1998. p.137. 222 FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.113. 223
Ibid., p.36.
76
(insistentemente, como a semântica do nome sugere) a sua inteligência aos demais,
que ficam impressionados com a sua cultura.
Pilhério era o papagaio mais apapagaiado que já existiu [...] e sua cultura geral era realmente impressionante [...]. Se alguém de repente precisasse muito de qualquer informação, era só pedir: [...] – Gênio, acento circunflexo, pois se acentuam as paroxítonas que terminam em ditongo crescente, as oxítonas terminadas em O, E, A, as paroxítonas terminadas em R, L, N, X, todas as proparoxítonas e ditongos abertos... – Fecha o bico, desgraçado – a pessoa precisava interromper, se não quisesse aguentar aquela lengalenga durante toda a viagem. Quando não estava repetindo regras de acentuação e se metendo na vida alheia, Pilhério demonstrava sua cultura derramando explicações, informações e todo tipo de coisas complicadas para quem se dispusesse a ouvir. Adorava se exibir e contar vantagem.
224
Em Odisseia da Paixão tem-se igualmente uma boa ilustração do nome e da
marca discursiva que anima a sua voz. Ela denuncia o negativismo, a dramaticidade,
pois percebe em tudo uma tragédia, exagerando dentro de si a proporção dos
acontecimentos. Para ela, tudo no mundo é muito grandioso, importante:
Odisseia da Paixão sofria, chorava, se lamentava, se preocupava e se
descabelava por qualquer banalidade. Um dia derramou mais de meio litro
de lágrimas por causa de um tatu-bola entrevado. Imaginava que havia uma
tragédia esperando por ela em cada esquina. “Que desgraça, que desgraça,
que desgraça, que desgraça!”, dizia de tudo, inclusive das piadas mais
engraçadas que Divina lhe contava.225
Divina Comédia da Paixão, por outro lado, revela a voz do positivismo, do
bom-humor, denotando alegria de viver. O mundo é maravilhoso e ela o encara com
leveza, pois consegue enxergar desde sempre o aspecto positivo dos
acontecimentos:
Divina Comédia da Paixão foi o único bebê que riu, em vez de chorar, quando nasceu. Ela achava a vida tão engraçada que ria, ria, ria, ria, ria, ria, ria, ria o tempo todo, principalmente quando alguém tropeçava.
226
Cabe reiterar que uma consciência não pode ser tomada isoladamente. É
somente no contato com um outro que ela pode ser revelada, uma vez que o
224
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.35. 225
Ibid., p.34. 226
Ibid., loc. cit.
77
“homem nunca encontrará sua plenitude apenas em si mesmo”.227 Esse “outro”,
como foi mencionado nos capítulos anteriores, revela sempre um aspecto
diferenciado de um “eu”. O outro se manifesta, inclusive, na própria voz do autor
que, distante da neutralidade, “deve atingir o herói em cheio, provocá-lo, interrogá-lo,
até polemizar com ele e zombar dele”.228 Dito de outro modo, na “representação do
autor, se ela for fundamental e adequada, inevitavelmente ressoará junto com o
discurso do autor também o discurso de outrem, o discurso do próprio
personagem”.229 Portanto, até mesmo a própria “descrição” da personagem pelo
autor já instaura a interação entre as vozes no romance.
Divina e Odisseia, além de anteciparem uma das relações dialógicas
“antagônicas” da trama, denunciam que “o autor-criador poderá ordenar o conteúdo
por diversas perspectivas: por um olhar trágico, cômico, lírico, satírico, heroicizante,
etc. E buscará a forma composicional [...] mais adequada à respectiva forma
arquitetônica”. 230 Segue outro exemplo pertinente:
Canção de amor para Divina e Odisseia Oisséi, sem “d” e “a” Sem “ss” nem “ia”, Oié Isseia, sem “Od” Ai dó de mim, sem Odisseia Tirando o “Divin” e botando “mor” fica amor Tirando o “ivina” e botando “esejo”, desejo Tirando o “Dina” e botando “da”, fica vida Tirando tudo, como é que eu fico?
231
Ao pensar no dialogismo, cabe lembrar que qualquer “fator da forma é um
produto da interação social”.232 Logo, nomes e marcas discursivas estão aí
implicadas. Neles, se fazem presentes posições valorativas do mundo concreto que,
ao serem transpostas para a esfera da obra, originam avaliações e sentidos outros,
considerando que “o ato estético opera sobre sistemas de valores e cria novos
227
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.205. 228
Ibid., p.73. 229
Idem, Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4.ed. São Paulo: Ed. UNESP: Hucitec, 1998. p.137. 230
FARACO, Carlos Alberto. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares. Letras de Hoje, Porto Alegre, v.46. n.1, jan./mar. 2011. p.22. 231
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.93 232
VOLOSHINOV, V. N. Discurso na Vida e Discurso na Arte (sobre a poética sociológica) [1926].
Tradução para o português por Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, para uso didático, com base na tradução inglesa de I. R. Titunik. Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics. In: V. N. Voloshinov, Freudism. New York: Academic Press, 1976. p.17.
78
sistemas de valores”.233 Nome e marcas discursivas, portanto, integram o plano de
seleção do autor e a avaliação decorrente dela constitui o seu fazer artístico ativo
orientado tanto para o ouvinte quanto para o herói, pois eles “são participantes
constantes do evento criativo, o qual não deixa de ser nem por um instante um
evento de comunicação viva envolvendo todos os três”.234
6.1.2 A transformação resultante da interação refletida nas marcas discursivas
e nas ações das personagens
Este é outro aspecto relevante: a “literatura, o fato literário, se insere na
prática social, e a alteridade é sempre material e instável”.235 No romance de
Adriana Falcão, essa instabilidade está sendo sugerida pela modificação das
personagens, que se dá ao longo de toda a narrativa. Isso não contraria o fato de
que “a dimensão ética da vida, por natureza inacabada, pode alcançar acabamento
quando elaborada esteticamente”.236 Cabe recordar que “transformações da vida de
um personagem em elaboração estética por um autor são, sobretudo, resposta”.237
Com isso, percebe-se a subjetividade/a personagem como um processo
inquestionavelmente dinâmico, uma vez que se constitui via diálogo e interação, e
não em isolamento, razão pela qual se deve “interpretar pessoa não só como
identidade, mas como alteridade [...]”. 238 Nesse sentido, o “outro representa a
intersubjetividade – outro sujeito, o outro da linguagem”.239
É o que se pode
evidenciar no diálogo estabelecido entre Doravante e Aventura:
233
FARACO, Carlos Alberto. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares. Letras de Hoje, Porto Alegre, v.46. n.1, jan./mar. 2011. p.23. 234
VOLOSHINOV, V. N. Discurso na Vida e Discurso na Arte (sobre a poética sociológica) [1926].
Tradução para o português por Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, para uso didático, com base na tradução inglesa de I. R. Titunik. Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics. In: V. N. Voloshinov, Freudism. New York: Academic Press, 1976. p.11. 235
ZAVALA, Iris. O que estava presente desde a origem; trad. Fernando Légon e Diana Araujo Pereira. In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p. 157. 236
MACHADO, Irene. O discurso como reflexo e refração e suas forças centrífugas e centrípetas. In: DE PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas: Mercado das Letras, 2010. v.1. p.225. 237
Ibid., loc. cit. 238
ZAVALA, op. cit., p.163. 239
Ibid., p.156.
79
– Como Luna Clara está bonita. – O que foi que você disse, Doravante? – Que Luna Clara está bonita. – De novo. – Bonita. – Diga palavra por palavra. – Como Luna Clara está bonita. – Você não fala mais palavras juntas? – Não? – Tenta outra frase. – Qual? – Qualquer uma com pelo menos duas palavras. – Eu te amo serve? Não falava mais palavras juntas, Doravante. – Eu acho que perdi a pressa – ele concluiu, depois de pensar um pouco.
240
Observou-se anteriormente que Doravante tinha o hábito de juntar as
palavras, em virtude da sua inquietante pressa. Antes mesmo do final da história,
essa característica é modificada. Quem sabe nisso possa vislumbrar-se a “criação
de um personagem acabado por um autor inacabado”.241
O fato de ele se dar conta de que não comete mais tal junção, por intermédio
de Aventura, – mas mais do que isso, com a colaboração dela – indica que a
personagem “articula relações interativas capazes de enunciar respostas a partir das
quais constrói conhecimentos”.242 Houve uma espécie de questionamento sobre si
mesmo (eu-para-mim), porém, na voz do outro (eu-para-os-outros), pois é Aventura
quem mostra a transformação ao amado, e esse “conhecimento construído” reflete-
se na modificação discursiva, na enunciação que agora passa a refletir um
Doravante descompromissado com a mania de apressar os acontecimentos. Não
poderia deixar de ser assim se for considerado que “a palavra persuasiva interior é
comumente metade nossa metade de outrem. Sua produtividade criativa consiste
em que ela [...] organiza do interior as massas de nossas palavras, em vez de
permanecer numa situação de isolamento e imobilidade.243
Destaca-se que o “sujeito que enuncia não tem nem pode ter total consciência
de todas as vozes que atravessam o seu discurso”. 244 Dessa forma, Doravante
240
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.316-317. 241
MACHADO, Irene. O discurso como reflexo e refração e suas forças centrífugas e centrípetas. In: DE PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável.
Campinas: Mercado das Letras, 2010. v.1. p. 225. 242
Ibid., p.204. 243
BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4.ed. São Paulo: Ed. UNESP: Hucitec, 1998. p.145-146. 244
SOBRAL, Adail. A Estética em Bakhtin (Literatura, Poética e Estética). In: DE PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas: Mercado das
Letras, 2010. v.1. p.69.
80
também traz como marca de suas ações a determinação, o otimismo, vozes essas
que dialogam com a pressa dele. No entanto, a partir das experiências vividas, é a
insegurança que passa a também enunciar-se através do discurso:
[...] – Se você já procurou a Terra inteira, não encontrou Aventura em nenhum outro lugar, e ela não está aqui, só pode estar em Desatino do Norte com certeza – concluiu. Lamentavelmente, àquela altura Doravante não tinha mais certeza de nada. Depois de mais de treze anos de chuva, a pessoa vai ficando meio duvidosa, além de completamente ensopada. – Tomaraquesim. E se despediu. – DesatinodoNorteaquivoueu. – Espere que eu vou também.
245
Apolo Onze, neste ponto da história mais entusiasmado do que apático, é
capaz de levantar uma hipótese com um grau de confiança que Doravante já não
consegue emitir. Esse excerto revela que “o campo visual, ele próprio, está inserido
na arquitetônica de um espaço de relações. Consequentemente, aquilo que pode ser
visto por um, não é acessível ao outro e vice-versa. O inacessível, não é, contudo,
inexistente [...]”.246 Assim, ao mesmo tempo em que Apolo Onze e Doravante
dialogam nas semelhanças o fazem nas dissonâncias entre eles, o que pode ser
constatado pela transformação das vozes de ambos. Logo, na proximidade e no
distanciamento de visões em dinamismo, mantém-se “a noção de movimento, valor
maior da categoria bakhtiniana que tanto une quanto separa (aliás, como tudo que
acontece no espaço semiótico)”.247
No seguinte diálogo, também fica expressa a transformação de Seu Erudito:
245
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.51. 246
MACHADO, Irene. O discurso como reflexo e refração e suas forças centrífugas e centrípetas. In: DE PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas: Mercado das Letras, 2010. v.1. p.227. 247
Ibid., p.232.
81
Depois que Aventura, Doravante, Luna Clara e Equinócio voltaram, deu-se por iniciada a apuração. – Contando com o Frei Lourenço, são cinco votos a favor contra apenas um de papai! – Mais um a favor! – Pilhério chegou gritando. – Não sei nem do que se trata mas se é contra o cabeça-dura tem o meu voto. [...] Como perdeu de seis a um, o futuro sogro de Imprevisto e Poracaso teve que se conformar com o resultado. Sendo assim, começaram os preparativos para o casamento.
248
Antes, Seu Erudito mostrava-se uma personagem extremamente
conservadora, desconfiada, teimosa. Ao longo dos anos, o rigoroso “E tenho dito e
pronto” é substituído por uma postura flexível, como sugere o diálogo anterior. “O
homem ocupa um lugar posicionado no espaço, porém, indefinido de uma vez por
todas, o que cria, evidentemente, um paradoxo.249 Pode-se identificar esse conflito
tanto na própria transformação (interna), pelo fato de Seu Erudito deixar-se
submeter a uma votação e, apesar de contrariado com o resultado, dar-se por
vencido concordando com o casamento das filhas, quanto na interação com ou
outros (externa), pela “variedade e simultaneidade de pontos de vista [...] como
variedade de respostas simultâneas e não coincidentes, portanto, inacabadas.250
Igualmente, Pilhério é um bom exemplo da transformação aqui referida:
Pela primeira vez Pilhério não ouviu o clássico “você não é pessoa é papagaio”, o que mostrava como era gentil aquele garoto cheio de esperanças e tranças desgrenhadas. – Você leva um bilhete para Luna Clara? – Luna Clara? Quem é essa? Durante a explicação, o papagaio quase caiu duro para trás e pela primeira vez ficou calado mais do que um minuto e meio. Realmente aconteceram muitas novidades naqueles anos em que ele esteve preso. – Sou um fracasso em levar bilhetes de amor – Pilhério confessou. – Mas dessa vez vai ser diferente.
251
Na conversa com Apolo Onze, evidenciam-se duas modificações
consideráveis. A primeira pelo fato de Pilhério, sujeito falante, exibicionista de sua
intelectualidade, calar-se por tanto tempo pelo impacto das notícias de que tomava
248
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.297. 249
MACHADO, Irene. O discurso como reflexo e refração e suas forças centrífugas e centrípetas. In: DE PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável.
Campinas: Mercado das Letras, 2010. v.1. p.207. 250
Ibid., p.208. 251
FALCÃO, op. cit., p.295.
82
conhecimento. A segunda, em virtude do bilhete que o menino confia ao papagaio. A
própria aceitação da incumbência por parte de Pilhério demonstra a sua
modificação: antes, porque ele se sentia contrariado em relação à tarefa: “[...] –
Como é que eu, pessoa tão letrada, virei portador de bilhete mal escrito pra
marmanjo? [...]” 252, e, “agora”, pois aceitou a “missão”, inclusive não se deixando
influenciar pela experiência fracassada com o bilhete de Aventura para Doravante.
Além disso, a expressão “você não é pessoa é papagaio”, repetidamente
dirigida a Pilhério, reflete que ele tinha uma imagem de si não condizente com a
imagem que os demais tinham dele. Embora se considerasse uma pessoa, por ser
culto, os outros não o reconheciam como tal, reconhecimento esse que penetra na
voz de Apolo Onze (variação dos outros). Um processo natural, já que a “relação
axiológica comigo mesmo é absolutamente improdutiva em termos estéticos, eu
para mim sou esteticamente irreal.” 253 Eis a relevância do outro e da interação com
ele para a intersubjetividade do sujeito, certamente incluído aí qualquer fenômeno de
transformação possível.
Infere-se que as personagens aqui mencionadas foram submetidas a um
processo intenso de mudança percebido por meio dos contatos interativos. Nas
relações entre as personagens, as marcas discursivas, as ações que dão vida a elas
também acompanham essa modificação, tornando-se elementos sinalizadores da
instabilidade, da subjetividade que se revela em um fluxo contínuo, centrífugo.
Equivale a dizer que “o domínio das interações arquitetônicas mostra-se um espaço
de construção, de movimento em que tudo se implica mutuamente e os elementos
em ação interferem uns sobre os outros”.254
Como o autor não inventa pessoas, o mesmo critério vale para retratar a
transformação delas na obra artística. A transformação pode não representar em
todos os casos uma ambivalência, dualidade, tal qual se vê em Dostoiévski, por
exemplo, mas denuncia, de certo modo, que o sujeito não é “uniforme” do início ao
fim, denuncia ainda, quem sabe, uma “imperfeição” – própria do ser humano. Nisso
também reside a verossimilhança axiológica que se exige do autor, a
252
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.8. 253
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 6.ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2011. p.174. 254
MACHADO, Irene. O discurso como reflexo e refração e suas forças centrífugas e centrípetas. In: DE PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável.
Campinas: Mercado das Letras, 2010. v.1. p. 204.
83
“ponderabilidade de valor-acontecimento das suas imagens, uma realidade de
acontecimento (um movimento possível não em termos físicos mas em termos de
acontecimento) [...]” 255
6.2 COMO O AUTOR DIALOGA COM O LEITOR E COM OS “OUTROS” NO
ROMANCE
“A palavra é metade de quem a pronuncia e metade de quem a ouve.”
256
Michel Montaigne (1533-1592).
Em relação ao diálogo voltado para o leitor, são analisados: a) a
fragmentação dos capítulos e a reiteração como recurso dialético-dialógico; b) “o
bilhete” e a “utilização do verbo”: metáforas do lugar da palavra no objeto estético; c)
a expressão “minha Nossa Senhora” – “Ai minha Nossa Senhora do Que é Isso”?
Com a palavra, “a metalinguística”; d) a voz social do outro na voz do autor; e d) a
interdiscursividade: uma espécie de diálogo com o e no próprio diálogo.
6.2.1 A fragmentação dos capítulos e a reiteração como recurso dialético-
dialógico
A fragmentação dos capítulos em Luna Clara e Apolo Onze é um recurso
composicional que o autor utiliza recorrente e criativamente para atrair o leitor.
Porém, trata-se de uma atração ética/estética, responsável, porque o impele a
participar ativamente da obra, construindo a “sua própria linearidade”, já que o leitor
é também esse outro que precisa articular as informações recebidas, construindo
sentidos possíveis, inclusive e talvez principalmente, na “(des)ordem” dos fatos
narrativos. Por isso, “naturalmente, todas as ligações e inter-relações verbais de
ordem linguística e composicional transformam-se em relações arquitetônicas
extraverbais”. 257 A seguir, um exemplo dessa fragmentação:
255
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 6.ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. WMF
Martins Fontes, 2011. p.184. 256
MONTAIGNE, Michel. Disponível em: <http://pensador.uol.com.br/frase/ODIwMDgz/>. Acesso em: 12 de dez. 2012. 257
BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4.ed. São Paulo:
Ed. UNESP: Hucitec, 1998. p.51.
84
Foi logo depois do primeiro sopro da ventania que Luna Clara viu os dois [...]. O extraordinário, o imprevisto, o maluco, o inusitado, o inesperado mesmo é que eles estavam molhados dos pés à cabeça. Dois homens completamente encharcados. E antes que você se pergunte “ora, mas o que é que tem de estranho com dois homens encharcados andando pela estrada?”, é melhor deixar tudo explicado.
258
Adiante, tem-se:
Então. Foi um vento de repente, e aqueles dois completamente encharcados, e Luna Clara teve certeza: Doravante devia estar ali por perto.
259
É possível perceber que o autor interrompe a narração a fim de proporcionar
um esclarecimento. É através dessa ação que o autor também estabelece um
contato direto não somente com a personagem, mas com o leitor, o outro
participante a quem “o próprio autor leva em conta, aquele a quem a obra é
orientada e que, por consequência, intrinsecamente determina a estrutura da obra”.
260 Eis outro exemplo da fragmentação:
[...] E Apolo Onze se sentiu na obrigação de fazer alguma coisa. Ia sair por aí, sem capa nem galocha, para encontrar uma lógica para aquela chuva toda. Ali não chovia há muito tempo. O que é que estava acontecendo? Quando chegou na frente do portão da sua casa, viu um sujeito indeterminado que acabava de pular o muro para dentro, montado em seu cavalo. Só faltava essa. Uma chuva e um ladrão juntos, às dez da manhã, e ainda por cima aquele vento?
261
Exemplo esse relacionado ao seguinte:
258
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.8. 259
Ibid., p.13. 260
VOLOSHINOV, V. N. Discurso na Vida e Discurso na Arte (sobre a poética sociológica) [1926]. Tradução para o português por Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, para uso didático, com base na tradução inglesa de I. R. Titunik. Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics. In: V. N. Voloshinov, Freudism. New York: Academic Press, 1976. p.15. 261
FALCÃO, op. cit., p.26.
85
Eram dez e pouco da manhã Que sexta-feira esquisita. Um vento e uma chuva juntos, e um ladrão ainda por cima? Não podia ser. Em Desatino do Sul não existiam nem tempestades nem ladrões. Quem era aquele que pulou o muro então? Como é que alguém entra na casa dos outros chovendo tudo, estragando a festa, sem nem pedir licença? E o ladrão foi logo se desculpando: – Desculpaoestragoaculpéminha.
262
Ainda, algumas páginas adiante:
[...] Quando pulou o muro para dentro da casa, Doravante deu de cara com o salão todo inundado e um garoto indignado com aquilo: “que sexta-feira esquisita!” Foi logo se desculpando: – Desculpaoestragoaculpaéminha. E daí para frente a gente já sabe.
263
O interessante é que o próximo capítulo é intitulado: “DAÍ PARA FRENTE”. 264
Dessa forma, vê-se a potencialidade interativa de comunicar, “uma resposta que
engendra resposta: o ouvinte torna-se falante. Não há palavra sem resposta, de tal
modo que as relações entre [...] escritor e leitor [...] se modificam no próprio
processo de comunicação”.265 Assim, em cada fragmentação é possível constatar
espaços dialógicos, nos quais perguntas e respostas são capazes de suscitar outras
ininterruptamente, na voz do leitor.
Após enunciar uma pausa para esclarecimento, uma provocação, uma
indagação, um comentário – já sinais interativos específicos explorados
sistematicamente – percebe-se que o autor retoma o diálogo de onde parou, como
pôde ser evidenciado nos segmentos ilustrados. Na própria fragmentação está
implicada a reiteração como estratégia dialética-dialógica, talvez como marca
discursiva do autor, pois a impressão é a de que ele, ao longo da narrativa, “avança
por repetições”266, instaurando, de certo modo, uma “escrita construtora do próprio
pensar em que, a cada passo, [...] descobre junto com o eventual leitor aonde quer
chegar ou aonde pode chegar seu pensamento”.267
262
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.49. 263
Ibid. loc. cit., 264
Ibid., p.151. 265
ZAVALA, Iris. O que estava presente desde a origem; trad. Fernando Légon e Diana Araujo Pereira. In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.154. 266
AMORIM, Marilia. Para uma filosofia do ato: “valido e inserido no contexto” In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.21. 267
Ibid., loc. cit.
86
Cabe lembrar que ao reiterar um enunciado, sempre algo inédito participa da
enunciação, pois aquilo que “repete não é a mesma coisa, a repetição é dinâmica: o
que retorna ou repete é sempre diferente”.268 Logo, ao retomar um fato, por
exemplo, o autor não somente situa o leitor no tempo da obra, mas antecipa-lhe
informações outras, gera um efeito de simultaneidade, instigando-o a articular-se
também espacialmente. Dessa ótica, o mapa a seguir é sugestivo:
Figura 2 – Mapa da Situação Atual.
Fonte: FALCÃO, 2002, p. 191.
268
ZAVALA, Iris. O que estava presente desde a origem; trad. Fernando Légon e Diana Araujo Pereira. In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.162.
87
Por isso, infere-se que algum grau do princípio da simultaneidade de
Dostoiévski é visível na composição da obra, mais precisamente na divisão dos
capítulos. Adriana Falcão parece incorporar esse princípio na apresentação dos
fatos da narrativa. No modelo do romance, são priorizados não somente os aspectos
de interatividade, mas os de coexistência. Julga-se pertinente enfatizar tal
característica, pois ela é marcante do início ao fim da narrativa. Lança-se como
amostra apenas alguns títulos de capítulos em que se percebe, por exemplo, uma
espécie de “simultaneidade e/ou coexistência de oposições” em flashbacks: “Luna
Clara, sexta-feira, no finalzinho da tarde” 269
e “Apolo Onze na manhã daquele
mesmo dia” 270; “Mais de treze anos antes” 271 e “Luna Clara e os cães na mesma
estrada, mais de treze anos depois, em sentido contrário” 272; “Em Desatino do Sul”
273 e “Em Desatino do Norte” 274. Além disso, a autora também utiliza uma linguagem
cinematográfica em: “Corta para Leuconíquio, alguns quilômetros atrás” 275; “Corta
para Doravante pelo mundo, mais na frente” 276 e “Volta para Leuconíquio e Pilhério,
atrás um pouco” 277. Em Luna Clara e Apolo Onze, esses recursos, além de situar a
trama ao interlocutor, fazem-no desvendar o mesmo acontecimento sob
perspectivas diversas.
Também aí se descortina que no discurso do autor e da personagem o leitor é
a todo o momento levado em consideração, como se vê explicitamente neste título:
“Desculpem, Doravante e Aventura, mas esse beijo terá que ser interrompido ou a
história não acaba”. 278 O autor fala com as personagens e, ao mesmo tempo, com o
leitor, privilegiando-o, pois há uma “preocupação” com a ansiedade dele. Isso
demonstra que a “inter-relação de autor e herói, afinal, nunca é realmente uma
relação íntima de dois; todo o tempo a forma leva em conta o terceiro participante –
o ouvinte – que exerce influência crucial em todos os outros fatores da obra”. 279
269
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002., p.7. 270
Ibid., p.17. 271
Ibid., p.33. 272
Ibid., p.45. 273
Ibid., p.313. 274
Ibid., p.315. 275
Ibid., p.135. 276
Ibid., p.139. 277
Ibid., p.145 278
Ibid., p.293. 279
VOLOSHINOV, V. N. Discurso na Vida e Discurso na Arte (sobre a poética sociológica) [1926].
Tradução para o português por Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, para uso didático, com base
88
6.2.2 “O bilhete” e a “utilização do verbo”: metáforas do lugar da palavra no
objeto estético
Como foi mencionado, o material é fator relevante para o contato com o leitor.
Nesse sentido, a estética de Luna Clara e Apolo Onze parece facilitar ao analista o
“uso de todo o trabalho da linguística para compreender a técnica da criação
[literária] a partir de uma compreensão correta do lugar do material na obra de arte,
por um lado, e da especificidade do objeto estético, por outro”.280 [grifo nosso]
Observe-se este primeiro excerto:
Aventura escreveu um bilhete explicando o atraso e chamou Pilhério. – Vá voando a Desatino do Norte e entregue isso pra Doravante. O intrometido fez questão de ler o bilhete antes. – Você sabia que existe uma coisa chamada pontuação, sua burra? – Doravante não liga pra essas coisas. – Pelo contrário – observou Divina. – Como é que eu, pessoa tão letrada, virei portador de bilhete mal escrito pra marmanjo? – Você não é pessoa, é papagaio, e vá logo. E lá se foi Pilhério, voando, com o objetivo de encontrar Doravante. – Dê um milhão de beijos nele por mim! – Aventura gritou lá de longe. E lá se foi Pilhério, voando, com o objetivo de encontrar Doravante e a obrigação de lhe dar um milhão de beijos.
281
Aqui, vê-se a reiteração presente não somente entre um capítulo e outro, mas
no nível de um mesmo enunciado. Tem-se a repetição em “[...] E lá se foi Pilhério,
voando, com o objetivo de encontrar Doravante.” 282 e a “novidade discursiva” na
complementação “e a obrigação de lhe dar um milhão de beijos”.283 Agora, passa-se
a analisar o bilhete de Aventura endereçado a Doravante, sob a ótica da utilização
do material no romance:
na tradução inglesa de I. R. Titunik. Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics. In: V. N. Voloshinov, Freudism. New York: Academic Press, 1976. p.14. 280
BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4.ed. São Paulo: Ed. UNESP: Hucitec, 1998. p.50-51 281
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.81. 282
Ibid., loc. cit. 283 Ibid., loc. cit.
89
“ALGO TERRÍVEL ACONTECEU ME OBRIGANDO A FICAR LONGE DE VOCÊ. A PONTE ENTRE NÓS DOIS SE PARTIU. MEU AMOR TORNOU-SE IMPOSSÍVEL. ENCONTRAR VOCÊ COMO COMBINAMOS NÃO VAI DAR. PRA SEGUIR AGORA, SÓ SEM VOCÊ. TUDO É MUITO TRISTE, MAS SIGO CAMINHO. QUANDO DER, A GENTE SE VÊ. LOGO, BOA SORTE PRA VOCÊ. ESPERE POR MIM NÃO. ME ESQUEÇA DORAVANTE.” Apolo onze leu. Releu. Quebrou a cabeça. Teve uma inspiração. Então sugeriu: – E se a gente mudasse a pontuação? [...] E, devagarzinho, Apolo Onze leu alto para Doravante, frase por frase, de outro jeito. – Algo terrível aconteceu me obrigando a ficar longe de você. – Quemais. A ponte entre nós dois se partiu, meu amor. – Apontequeelafalavaeraapontedeverdade! – Tornou-se impossível encontrar você, como combinamos. – Continuaporfavor! – Não vai dar para seguir agora. Só, sem você, tudo é muito triste. – Agoratudofazsentido. – Mas sigo caminho quando der. A gente se vê logo. Boa sorte pra você. Espere por mim. Não me esqueça, Doravante. – Essamulhermeama.
284
O autor parte do linguístico (e já começa a fazê-lo antes na voz de Pilhério:
[...] “– Você sabia que existe uma coisa chamada pontuação, sua burra? [...]” 285,
mas vai além dele quando cria uma linguagem outra, a partir do seu brincar com o
sistema da língua e com o seu próprio fazer artístico, revelados no uso da pontuação
pelas diferentes personagens que leem o bilhete. Esteticamente falando, “o artista
como que vence a língua graças ao próprio instrumento linguístico e, aperfeiçoando-
a linguisticamente, obriga-a a superar a si própria”.286 Em Luna Clara e Apolo Onze
lê-se essa superação no exercício do autor do discurso, mais precisamente na
capacidade de ele moldar o material textual à forma arquitetônica.
Naturalmente, o “artista só lida com palavras, pois apenas elas são algo
definido e indiscutivelmente presente na obra”.287 No entanto, “não é a forma
linguística que penetra, mas a sua significação axiológica [...]”.288 Selecionou-se o
bilhete para amostra neste capítulo como uma analogia disso, porque reflete, talvez
284
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.163. 285
Ibid., p.81. 286
BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4.ed. São Paulo:
Ed. UNESP: Hucitec, 1998. p.50. 287
Ibid., p.52. 288
Ibid., p.53.
90
mais explicitamente, esse “enformar” o material ao aspecto arquitetônico,
peculiaridade marcante no todo da obra de Adriana Falcão.
A forma “está fixada no material: mas, em virtude de sua significação, ela
ultrapassa o material. O significado, a significação da forma tem relação não com o
material, mas com o conteúdo”.289 Exemplo complementar para demonstrar isso (o
que se deduz ser, nas palavras de Bakhtin, aquela "compreensão correta do lugar
do material na obra de arte”) é o seguinte excerto:
Para que esse menino havia de querer acompanhar um sujeito tão azarado? – Para usar o verbo querer – explicou Apolo Onze. – Issoéfácileuquerotuquereselequer... – Se eu quisesse conjugar o verbo querer podia ficar aqui mesmo. Eu quero usar ele por aí. – Porquevocênãousaoverboficar? – Esse eu já usei demais. Agora eu vou com você.
290
Por isso, a partir da pontuação do texto no bilhete e das concepções
envolvendo a utilização do verbo querer não se “vê apenas palavras e as inter-
relações de seus fatores abstratos [...]” 291, mas “relações entre pessoas, relações
meramente refletidas e fixadas no material verbal” 292. Logo, na medida em que a
pontuação no bilhete e as palavras remetem a outros sentidos, propiciam os
encontros e desencontros entre as personagens, constata-se que a forma está
ligada ao conteúdo. Eis também a razão pela qual se atribui ao bilhete (e ao desejo
de Apolo Onze usar o verbo querer) uma função análoga/metafórica: mais do que
brincar, o autor joga com as personagens e o leitor, fazendo com que o enunciado
reflita “a interação social do falante, do ouvinte e do herói como o produto e a
fixação, no material verbal, de um ato de comunicação viva entre eles”.293
É importante enfatizar que, na concepção de Bakhtin, deve-se sempre
considerar a autonomia do ouvinte, tendo em vista que ele “deve ocupar uma
289
VOLOSHINOV, V. N. Discurso na Vida e Discurso na Arte (sobre a poética sociológica) [1926].
Tradução para o português por Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, para uso didático, com base na tradução inglesa de I. R. Titunik. Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics. In: V. N. Voloshinov, Freudism. New York: Academic Press, 1976. p.11. 290
FALCÃO, 2002, p. 51. 291
VOLOSHINOV, op. cit., p.12. 292
Ibid., loc. cit. 293
Ibid., p.10.
91
posição especial, e, mais ainda, uma posição bilateral com respeito ao autor e com
respeito ao herói [...]”.294 Também nesse sentido, ouvinte e autor não se fundem.
No caso do bilhete, a intenção de Aventura, a “real” situação entre ela e
Doravante já é conhecida pelo ouvinte, graças à forma com que o autor expõe os
fatos da narrativa, “como participante dela, como orientador autorizado do leitor” 295,
aquele que arquiteta, organiza, estrutura o objeto estético. Aqui, infere-se que o
ouvinte apenas “fica lado a lado com o autor como seu aliado”.296 Ao mesmo tempo,
Aventura, do ponto de vista linguístico, comete equívocos ao pontuar o seu texto.
Doravante responde a isso. Posteriormente, Apolo Onze também o faz, porém de
maneira distinta. Em ambos os casos, o ouvinte passa a acompanhar ora as
inadequações cometidas por Aventura, ora o raciocínio efetuado por Apolo Onze e,
com isso, talvez, “começa a se inclinar pelo herói do enunciado” 297 Assim, a “nova”
interpretação do bilhete ilustrada no diálogo entre Apolo Onze e Doravante pode ser
um exemplo da resposta ativa/autônoma do ouvinte, induzida pelo autor, pois, ao ser
colocado ao lado do herói, ele igualmente se posiciona em relação ao autor.
6.2.3 A expressão “minha Nossa Senhora” – Ai minha Nossa Senhora do Que é
Isso? Com a palavra, “a metalinguística”
Outro elemento curioso da narrativa, associado à maneira do autor dialogar
com o leitor, é a expressão “minha Nossa Senhora”, sempre complementada por
outras que traduzem determinado sentimento e/ou intenção em um dado contexto.
Trata-se de uma marca discursiva utilizada do início ao fim da história por várias
personagens, inclusive pelo autor. Seguem exemplificações.
A expressão “Obrigado Minha Nossa Senhora da Comida Gostosa Pra Quem
Tem Muita Fome!” 298 é pensada por Equinócio, em uma situação na qual estava
com o amigo Doravante, ambos exaustos pela construção de um abrigo para
294
VOLOSHINOV, V. N. Discurso na Vida e Discurso na Arte (sobre a poética sociológica) [1926]. Tradução para o português por Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, para uso didático, com base na tradução inglesa de I. R. Titunik. Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics. In: V. N. Voloshinov, Freudism. New York: Academic Press, 1976. p.14. 295
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 6.ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2011. p.191. 296
VOLOSHINOV, op. cit., p.14. 297
Ibid., loc. cit. 298
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.64.
92
pernoitarem, quando, finalmente, o cavalo encontrou capim-santo para saciar a sua
fome.
Da mesma forma, “EntãofoiissominhaNossaSenhoraDosVentos!” 299 é
pronunciada por Doravante no momento em que ele descobre a verdadeira causa do
seu desencontro com Aventura.
Além disso, Seu Erudito balbucia: “Obrigado minha Nossa Senhora do
Lembrei!” 300, ao recordar, enfim, das suas 45.578 histórias.
Apolo Onze ainda apela: “Muito Obrigado minha Nossa Senhora do Não
Aguento Mais!” 301, quando Pilhério finalmente encerra o pronunciamento do
significado das palavras dicionarizadas.
“Minha Nossa Senhora do Cadê Minha Filha! Minha Nossa Senhora de Como
É Que Vai Terminar Esta História?” 302 exclama Aventura, em virtude do desespero
pelo sumiço de Luna Clara e da incerteza dos acontecimentos futuros.
Já com uma função discursiva distinta, o autor também repete a expressão,
como a torcer pela proximidade entre Luna Clara e Apolo Onze:
[...] E Nossa Senhora do Só Mais Um Bocadinho deve ajudar todo mundo de vez em quando, ou Luna Clara não teria ficado ali, só mais um bocadinho, olhando para ele: “nossa!” Agora era apelar para Nossa Senhora das Coisas Ditas No Momento Exato.
303
De acordo com a Gramática Houaiss da Língua Portuguesa, “isolados em
frases exclamativas, alguns vocativos cristalizaram-se como locuções interjetivas
(Minha Nossa Senhora!, Deus do Céu!)”.304 Nesta análise, acredita-se que a
expressão “minha Nossa Senhora” pode indicar uma interjeição, porque empregada
“exclusivamente como frase de situação, realizando típicos atos de fala diretivos ou
expressivos [...]. De acordo com a intenção de quem as enuncia [...] traduzem
estados emocionais como admiração, surpresa, desalento etc.” 305
No entanto, reitera-se, o “discurso verbal em si, tomado isoladamente como
um fenômeno puramente linguístico, não pode, naturalmente, ser verdadeiro ou
299
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.159. 300
Ibid., p.307. 301
Ibid., p.295. 302
Ibid., p.245. 303
Ibid., p.213. 304
AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. 2.ed. São Paulo: Publifolha, 2008. p.76. 305
Ibid., p.77.
93
falso, ousado ou tímido”.306 Logo, afirmar que a expressão “minha Nossa Senhora”
cumpre basicamente uma finalidade vocativa ou interjetiva parece reduzir a análise
que se pode realizar. Além de cada personagem constituir na trama um papel social
único, uma voz singular, torna-se possível verificar que o grupo compartilha, nos
mais diversificados momentos, situados no passado ou no presente da história, uma
mesma “identidade expressiva”. Isso está sendo simbolizado no uso
“arquitetônico”/”metalinguístico” de “minha Nossa Senhora”, que permite a
interpretação da língua não “em sua determinidade linguística [...], mas apenas na
medida em que ela venha a tornar-se meio de expressão artística (a palavra deve
deixar de ser sentida como palavra)”.307
Brait diz que “acentos de outrem na consciência e no discurso do herói,
refratadas linguisticamente em ressalvas, repetições, [...] e interjeições, estão,
segundo Bakhtin, necessariamente ligadas a mundos sociais específicos [...]”. 308
Dessa forma, essa “interjeição” remete a algo importante sobre o grupo, traduzindo a
maneira que ele tem de demonstrar, por exemplo, um sentimento através do
discurso. “Emoções individuais podem surgir apenas como sobretons
acompanhando o tom básico da avaliação social. O ‘eu’ pode realizar-se
verbalmente apenas sobre a base do ‘nós’.” 309 Enquanto o sentimento pode variar
conforme o contexto e a intenção de cada enunciador, como indício da sua
singularidade, implícita na marca discursiva “minha Nossa Senhora” está essa “base
do nós”, a crença que une, assemelha e distingue o autor, as personagens e o leitor.
Oportunamente, atenta-se para a noção de que a dualidade subjetiva, isto é, “ser ele
mesmo e simultaneamente ter algo em comum com os ‘outros’, fornece a base para
a própria percepção das diferenças, e para a sua valorização, o respeito à
contribuição que cada sujeito traz para os contatos entre sujeitos”.310
306
VOLOSHINOV, V. N. Discurso na Vida e Discurso na Arte (sobre a poética sociológica) [1926]. Tradução para o português por Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, para uso didático, com base na tradução inglesa de I. R. Titunik. Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics. In: V. N. Voloshinov, Freudism. New York: Academic Press, 1976. p.5. 307
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 6.ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2011. p.178. 308
BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.65. 309
VOLOSHINOV, op. cit., p.6. 310
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin. Campinas: Mercado de Letras, 2009. p.57.
94
O fato de essa linguagem ser comum a todos, de as personagens
comunicarem-se da mesma forma, sugere que elas estão inseridas em um mesmo
campo discursivo. Isso reflete que “cada enunciado nas atividades da vida é um
entinema social objetivo. Ele é como uma ‘senha’ conhecida apenas por aqueles que
pertencem ao mesmo campo social”.311 Nesse sentido, infere-se que aqui “minha
Nossa Senhora” “constitui a tela sobre a qual a fala humana viva desenha os
contornos da entoação”.312 Deduz-se isso na medida em que a expressão parece
presentificar uma “valoração coletiva”, presumida por aqueles que interagem na
obra, conservando, ao mesmo tempo, uma “valoração particular”, sugerida pelo que
cada sujeito enuncia do seu lugar único, no aqui e agora do seu discurso.
6.2.4 A voz social do outro na voz do autor
Em Luna Clara e Apolo Onze chama atenção o pronunciamento de alguns
enunciados na voz do autor. Eis alguns deles313:
Quadro 1 – Enunciados do Outro na Voz do Autor.
“um amor que dura até o outro lado”, ele dizia, “esse sim é um amor que vale a
pena”.
“Para que serve um dia que só serve para esperar pelo próximo?”
“Nada melhor do que uma conclusão concluída pela própria pessoa.”
“Os avisos só servem atrasados. Quando servem, não servem mais, infelizmente.”
“Despedidas de perto têm a enorme desvantagem de uns verem os olhos tristes dos
outros.”
“Uma tarde sem sim geralmente é muito triste.”
“Não queriam ficar presos naquele pedacinho de mundo com tanto mundo ali em
volta. Ambição bastante compreensível e bem peculiar aos seres humanos.”
“E todas as palavras do mundo então se vingaram em milhões de palavras de
alegria.”
Fonte: Enunciados compilados neste quadro pela autora da Dissertação.
Infere-se que esses enunciados podem envolver o leitor justamente pelo
componente dialógico específico instituído neles. Não é difícil perceber a voz do
outro nas falas trazidas a exemplo. A impressão é a de que o autor consegue captar,
311
VOLOSHINOV, V. N. Discurso na Vida e Discurso na Arte (sobre a poética sociológica) [1926]. Tradução para o português por Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, para uso didático, com base na tradução inglesa de I. R. Titunik. Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics. In: V. N. Voloshinov, Freudism. New York: Academic Press, 1976. p.6. 312
Ibid., p.8. 313 FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. passim.
95
no que diz, a própria voz desse outro concreto, que existe socialmente. Com suas
palavras, o autor precisa agregar “um caráter misto, reproduzir nos lugares
necessários o estilo e as expressões do texto transmitido”.314 Portanto, Falcão se
articula bem na medida em que confere aos enunciados uma entoação peculiar, um
“acabamento poético”. Isso compõe o estilo, que “também é interativo, também é
dialógico, vem da relação entre o autor e o grupo social de que faz parte, em seu
representante autorizado, ou típico, a imagem social do ouvinte, que também é um
fator intrínseco vital da obra” 315, como dito anteriormente.
6.2.5 A interdiscursividade: uma espécie de diálogo com o e no próprio diálogo
No romance estudado, a interdiscursividade se faz presente, como nos
exemplos seguintes. O primeiro deles refere-se à ação de Imprevisto e Poracaso:
Novena disso, novena daquilo, novena daquilo outro e a ponte não ficava pronta nunca. A razão disso é que a gentileza de Imprevisto e Poracaso foi desvirando amizade e foi virando interesse, que virou exagero, que virou paixão mesmo. Eles então resolveram desconstruir à noite o que tinham construído de dia, só para Divina e Odisseia não irem mais embora. Estava ótimo daquele jeito. [...] Até que Seu Erudito começou a achar aquilo meio estranho. – Tudo que vocês fazem de dia, desfazem à noite!
316
Esse núcleo da história pode ser associado a Penélope,
personagem da mitologia grega, filha de Icário, mulher de Ulisses* e mãe de Telêmaco. Manteve-se fiel durante a longa ausência do marido, afastando seus pretendentes, com o argumento de que não se casaria antes de terminar de tecer a mortalha de Laerte, seu sogro. Porém, desmanchava à noite o que havia tecido durante o dia. É considerada o símbolo da fidelidade conjugal. Costuma-se chamar trabalho de Penélope a uma obra que não termina nunca.
317
No caso de Luna Clara e Apolo Onze, essa obra que nunca termina é a ponte
que deveria ser reconstruída por Imprevisto e Poracaso.
O segundo exemplo refere-se à convicção de Seu Erudito:
314
BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4.ed. São Paulo:
Ed. UNESP: Hucitec, 1998. p.142. 315
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin.
Campinas: Mercado de Letras, 2009. p.64. 316
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.89. 317
PENÉLOPE. In: Grande Enciclopédia Larousse Cultural. Nova Cultural, 1999. v.18, p.4528.
96
Luna Clara crescia, Odisseia chorava, Divina ria, Aventura esperava, Seu Erudito comprava livros, mais livros e colecionava novas histórias. Até que resolveu arranjar uma biblioteca para ter onde guardá-las. Ele estava mais do que convencido de que as histórias ficam em maior segurança nos livros do que na cabeça da gente, por mais dura que ela seja.
318
O excerto remete, de certo modo, à invenção da escrita mencionada em
Fedro, no diálogo entre Thoth e Tamuz (Ámon): “[...] exclamou Thoth: eis, oh Rei,
uma arte que tornará os egípcios mais sábios e os ajudará a fortalecer a memória,
pois com a escrita descobri o remédio para a memória”.319 Diz-se poder relacionar a
convicção da personagem a esse diálogo, pois o registro escrito (na forma dos
livros) é o elemento que faz Seu Erudito recordar das histórias que, para ele, são
ricas, já que não pôde mais contar com a sua memória para acessá-las e/ou
transmiti-las.
“A todo instante se encontra nas conversas ‘uma citação’ ou uma ‘referência’
àquilo que disse uma determinada pessoa, ao que ‘se diz’ ou àquilo que ‘todos
dizem’ [...].” 320 Dessa forma, a interdiscursividade também faz parte do estilo
autoral, da maneira como se estabelece contato com o leitor. Além disso, o autor, ao
inserir outras referências na sua enunciação, dialoga tanto com a sua própria obra,
quanto com outros discursos e outros gêneros, “dado que não há discursos nem
gêneros puros”.321
Enfim, esses são apenas alguns recursos que o autor utiliza para atrair o
leitor, motivo pelo qual são destacados neste espaço. Logo, a atração do leitor
vincula-se ao fato de que o autor consegue, de modo efetivo, comunicar-se e
dialogar com o ouvinte, lançando para ele e obtendo dele respostas. Eis a
participação ativa e, por isso mesmo, a interação de ambos. “Qualquer coisa no
material de uma obra de arte que não pode participar da comunicação entre criador
318
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.123. 319
PLATÃO, Fedro ou da Beleza, 6.ed. Trad. Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editora, 2000.
p.121. 320
BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4.ed. São Paulo:
Ed. UNESP: Hucitec, 1998. p.139-140. 321
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin.
Campinas: Mercado de Letras, 2009. p.71.
97
e contemplador, que não pode se tornar o ‘médium’, o meio de sua comunicação,
não pode igualmente ser o recipiente de valor artístico.”322
6.3 COMO O AUTOR ORGANIZA AS RELAÇÕES ENTRE AS PERSONAGENS E O
ESPAÇO DA HISTÓRIA
Somente na comunicação, na interação do homem com o homem revela-se o “homem no homem” para outros ou para si mesmo.
323
Mikhail Bakhtin (1895-1975)
Em relação à organização das relações na obra, são analisadas: a) as
relações dissonantes (de embate constitutivo) entre as personagens; b) as relações
antagônicas entre elementos que compõem o espaço da narrativa; c) as influências
carnavalizantes; e d) as relações convergentes entre as personagens.
6.3.1 As relações dissonantes (de embate constitutivo) entre as personagens
Um aspecto particular a ser considerado sobre a interação dialógica na obra é
o da “duplicidade” na relação entre as personagens. De certo modo, percebe-se uma
oposição, ou melhor, uma distinção até mesmo entre as vozes que se relacionam
diretamente na trama. Isso aqui é deveras propício, já que “não há sentido fora da
diferença, da arena, do confronto, da interação dialógica, e assim como não há um
discurso sem outros discursos, não há eu sem outro, nem outro sem eu”.324 Por
conseguinte, tanto na vida quanto na arte, as relações eu-outro necessitam refletir-
se, “personificar-se na linguagem, tornar-se enunciados, converter-se em posições
de diferentes sujeitos expressas na linguagem para que entre eles possam surgir
relações dialógicas”.325 Para exemplificar isso em Luna Clara e Apolo Onze,
privilegiam-se menos os excertos da narração e mais os próprios diálogos
322
VOLOSHINOV, V. N. Discurso na Vida e Discurso na Arte (sobre a poética sociológica) [1926]. Tradução para o português por Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, para uso didático, com base na tradução inglesa de I. R. Titunik. Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics. In: V. N. Voloshinov, Freudism. New York: Academic Press, 1976. p.4. 323
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.292. 324
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin. Campinas: Mercado de Letras, 2009. p.39. 325
BAKHTIN, op. cit., p.209.
98
(fala/pensamento) da personagem dirigidos a outra personagem. A seguir, amostras
da interação entre Doravante e Equinócio:
“Queazaréesse?” [...] Se cavalo falasse, Equinócio teria uma lista de coisas para dizer para Doravante. – Que ele se acalmasse. – Que as pessoas se atrasam, às vezes. – Acontece. – É natural. – Que Aventura nunca iria faltar àquele encontro. – Que Doravante já estava ficando neurótico. [...] É que quando Equinócio via o dono sofrer se emocionava bastante.
326
No diálogo entre esses amigos inseparáveis, é possível constatar mais do que
a marca de duas vozes distintas, a marca de dois discursos em constante tensão:
Doravante posiciona-se precipitadamente, pois, sendo apressado, antecipa o tom de
sua preocupação. Equinócio, em contraste com o seu companheiro, coloca-se
moderadamente. O comportamento tranquilo lhe permite ponderar sobre os
acontecimentos, conforme ressaltado no próximo exemplo:
“Oqueseráqueaconteceu?” “Umadesgraça?” “Ummalentendido?” “Umaameaça?” “Umempecilho?” “Devetersidoalgomuitosério.” “Senãoelanãoteriaseguidosemmimassimàspressas.” Se cavalo falasse, Equinócio diria que aquilo tudo era um grande absurdo. Aventura jamais iria continuar sua andança sem a presença do marido. Se a família tivesse realmente passado pela estrada, eles teriam ouvido da cabana. Aquela história estava meio mal contada.
327
É interessante salientar que o autor, ao escrever “Se cavalo falasse [...]” está
justamente atribuindo uma voz a Equinócio. Portanto, cria uma comunicação direta
através dos discursos dele e de Doravante. Um processo semelhante ocorre entre
Apolo Onze e Doravante:
326
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.67. 327
Ibid., p.75.
99
[...] O que aquele sujeito falava parecia até um enigma. Apolo Onze precisava decifrar a frase. Des culpeos tra goacul paémi nha? Não fazia nenhum sentido. Descul peo estra goac ulp aém inha? Pior ainda. De SC ul pe Oe st Ra Go ac ul pa ém in ha? Nada. Desculpeo estra goacul paéminha? Espera. Desculpe o estrago a culpa é minha! Seestragueiafestanãofoiminhavontadeoproblemaéessachuvaquechoveemcimademim... – Doravante continuou, mas Apolo Onze pediu calma. Não era fácil entender aquelas “palavrasjuntas” para quem não estava acostumado. Tinha que decifrar frase por frase. [...]
328
Novamente, Doravante demonstra a sua peculiaridade discursiva diante de
outra personagem. Pressa de um lado, calma de outro, “enquanto ambos os sujeitos
mantiverem suas posições, haverá uma discrepância entre suas visões do mundo
[...]”.329 Nessa diferença, Doravante e Apolo Onze materializam suas “assinaturas”, o
que implica não “se furtar, não se subtrair daquilo que seu lugar único permite ver e
pensar. Assinatura é também inscrição na relação de alteridade: é confronto e
conflito com os outros sujeitos”.330 Apolo Onze, assim, vê de Doravante aquilo que
ele não tem capacidade para perceber e vice-versa.
Do ponto de vista da diferenciação entre as personagens, outra relação
exemplar é a de Apolo Dez e Madrugada:
As sete meninas estavam tão brilhantes de felicidade naquela noite que até arranjaram sete namorados. Enciumadíssimo, Apolo Dez ameaçou reclamar. Filha minha não... Madrugada discordou radicalmente. Não o quê? As filhas são minhas também e filha minha sim. – Claro, meu bem, se você prefere assim. Se tinha uma coisa que ele já sabia era que, para resolver discordância de mulher, o único jeito é concordar com ela. E agora por que você não me tira para dançar?
331
Madrugada é a matriarca da história. Através dos discursos e das ações dela,
pode-se perceber a voz da mulher, do feminino, na “sociedade transfigurada”, o que
difere, obviamente, da posição ocupada por Apolo Dez nesse mesmo contexto. Isso
remete ao fato de “que, antes mesmo de falar, o locutor altera, ‘modula’, sua fala,
seu modo de dizer, de acordo com a ‘imagem presumida’ que cria de interlocutores
328
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.49-50. 329
ZAVALA, Iris. O que estava presente desde a origem; trad. Fernando Légon e Diana Araujo Pereira. In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.155. 330
AMORIM, Marilia. Para uma filosofia do ato: “valido e inserido no contexto” In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.25. 331
FALCÃO, op. cit., p.285.
100
típicos, ou seja, representativos, do grupo a que se dirige”.332 Em: “[...] Se tinha uma
coisa que ele já sabia era que, para resolver discordância de mulher, o único jeito é
concordar com ela. [...]” 333 ou em outro contexto envolvendo personagens distintas:
“[...] Às vezes, quando mulher bota uma coisa na cabeça vira um negócio
impossível. [...]” 334, evidencia-se “uma refração da ideia do autor na fala do
narrador; aqui o discurso é bivocal”. 335
Se se for pensar nos graus de dialogismo propostos por Sobral336, infere-se
que há um discurso monológico que tende ao dialógico, pois é inconcebível “um
discurso monológico no sentido de discurso que neutralize todas as vozes que não a
daquele que enuncia, assim como não se pode julgar idealista a relação eu-tu aí
envolvida [...]”.337 Dito de outro modo, monológico que tende ao dialógico, porque
Apolo Dez, embora invista na tentativa de fazer valer o seu posicionamento
(“machista”), aquele que contrasta com o da mulher (“feminista”), sucumbe à
convicção de que a ideia dela deve ser respeitada. Quando se diz que ele
“sucumbe” à vontade da mulher, diz-se, na verdade, que através disso ele mantém
mascarado o seu posicionamento machista. Afinal, “a resposta” dele, o silêncio,
reforça essa imagem: ao não se pronunciar, ele o faz, desdenha a esposa, assume
que não vale a pena debater com ela. Embora as posições distintas continuem a
existir, eles conseguem entrar em um “acordo”. A importância de a última palavra ser
da mulher passa a ser, de certo modo, a convicção dos dois. Essa “concordância”,
por sua vez, é o elemento que sustenta a relação dialógica do casal, impedindo a
instauração do monologismo também na voz de Madrugada (mascarado na vontade
feminina que prevalece). Afinal, ambos, “diferentes por definição, nem por isso são
opostos entre si, pois se assim fosse também não poderia haver relação entre
eles”.338 Nesse sentido, Leuconíquio e Pilhério também travam um diálogo
interessante:
332
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin.
Campinas: Mercado de Letras, 2009. p.39. 333
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.285. 334
Ibid., p.39. 335
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.219. 336 SOBRAL, Adail. A Estética em Bakhtin (Literatura, Poética e Estética). In: DE PAULA, Luciane;
STAFUZZA, Grenissa (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas: Mercado das Letras, 2010. v.1. p.69. 337
Idem. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin. Campinas: Mercado de Letras, 2009. p.45. 338
Ibid., op. cit., p.57.
101
[...] O camarada ficou bastante interessado naquele papagaio tão apapagaiado e se apresentou com uma reverência: Leuconíquio Lucrécio de Luxor. Inventor e Importante. – Desculpe a sinceridade, mas eu acho que sou mais importante do que o senhor. – Você é parente da baronesa de Luxor? – Não. Mas em compensação sei todas as regras de acentuação, filosofia, o dicionário de trás pra frente, leis de física, teoremas, a tabela periódica... – Isso faz de você um papagaio culto. Importante pra mim é quem tem dinheiro. – Isso faz de você uma pessoa tola. O que atesta a minha teoria de que todo o rico que só pensa em dinheiro é propenso à tolice. – Então está provado que eu não sou tolo. Eu não sou rico. – O cavalheiro agora está se contradizendo. Se importante é quem tem dinheiro, e isso o senhor não tem, então o senhor não é importante nem para si próprio. – Mas eu vou ter dinheiro ainda. E muito. Quer apostar? – Agradeço, mas tenho mais o que fazer. Sou pessoa ocupada e importante. – Você não é pessoa, é papagaio! – o maluco já estava se irritando. – O único papagaio desse mundo que sabe onde está escondido o tesouro do pirata Arcaico, o Antigo. Nessa hora, Pilhério é quem foi tolo. Precisava ser exibido? [...] – Aceita ser meu parceiro? – Leuconíquio perguntou, mas não esperou pela resposta. [...]
339
Pode-se inferir, a partir do discurso, que Leuconíquio traz na sua voz marcas
do pensamento capitalista. Ele é o “charlatão”, pois sempre tira proveito das
situações adversas alheias a fim de obter lucro. Além disso, considera-se um grande
inventor e uma personalidade muito importante. Na concepção dele, o mundo é um
grande negócio. Pilhério, reitera-se a inferência, pode representar o pensamento
intelectual. Ele gosta de exibir a inteligência que a todos impressiona. Na sua
concepção, o maior valor que existe é a cultura, razão pela qual se considera uma
pessoa. Tem-se, assim, duas posições bem radicais refletidas no diálogo entre as
personagens, no qual cada uma delas materializa “uma posição valorativa frente a
outras posições valorativas”.340 Logo, ambos são capazes de pronunciar argumentos
fortíssimos em sua defesa, porque “viver significa ocupar uma posição axiológica em
cada momento da vida, significa firmar-se axiologicamente”.341 Embora eles tenham
pontos de vista diferentes, constituam vozes dissonantes, o que se reflete até na
339
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.83. 340
FARACO, Carlos Alberto. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares. Letras de Hoje, Porto Alegre, v.46. n.1, jan./mar. 2011. p.23. 341
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 6.ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. WMF
Martins Fontes, 2011. p.173-174.
102
imagem que cada um faz do “tesouro”, tanto Leuconíquio quanto Pilhério mostram-
se semelhantes de alguma forma. Este, porque se exibe como inteligente, aquele,
porque se exibe pela suposta pompa. Isso torna as duas personagens ingênuas no
mesmo grau, pois “toda coisa que difere de outra coisa tem alguma semelhança com
ela. Os incompatíveis simplesmente não têm relação entre si e, assim, não
dialogam, enquanto os diferentes dialogam entre si e, ao fazê-lo, definem seus
próprios contornos”.342
Da mesma ótica, destaca-se o diálogo entre Aventura, Divina e Odisseia:
Quando Pilhério não voltou de Desatino do Norte no dia seguinte, Odisseia ficou preocupadíssima. – E se alguma desgraça aconteceu com ele? – Divina até riu. – O descarado está namorando por aí. Lembra quando ele ficou uma semana desaparecido, em plena Floresta Amazônica, namorando todas as papagaias que existem na fauna? Mas Aventura se sentia culpada. – Eu mandei um milhão de beijos para Doravante, e essas coisas demoram. Foi isso.
343
A partir dessa interação, mais uma vez vê-se que: “a grande força que move
o universo das práticas culturais são precisamente as posições socioavaliativas
postas numa dinâmica de múltiplas inter-relações responsivas”.344 Como não
poderia deixar de ser, uma vez que se conhecem as marcas discursivas e o que o
nome de cada uma das irmãs sugere, Odisseia só poderia imaginar o
desenvolvimento mais trágico para a situação; Divina só poderia levar o caso com
bom-humor e uma boa dose de tranquilidade; e Aventura só poderia mesmo culpar-
se por se “aventurar” com os beijos que remeteu a Doravante por intermédio de
Pilhério, o que sinaliza a forma romantizada de se mostrar e encarar os
acontecimentos. Esses são todos reflexos da entoação do pensamento das três
irmãs, como “marca de um valor que se contrapõe a outros valores que se afirmam
em um dado contexto”.345 Divina e Odisseia representam dissonâncias em seus
posicionamentos (e isso, como foi visto anteriormente, não significa inexistência de
pontos em comum: elas são diferentes, não incompatíveis), mas a fala de Aventura
342
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin. Campinas: Mercado de Letras, 2009. p.58. 343
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.87. 344
FARACO, Carlos Alberto. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares. Letras de Hoje, Porto Alegre, v.46. n.1, jan./mar. 2011. p.23. 345
AMORIM, Marilia. Para uma filosofia do ato: “valido e inserido no contexto” In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.36.
103
está sendo complementada aqui como representação mais explicita não da
“oposição”, mas da multiplicidade de pontos de vista em interação, pois se “cada
sujeito é um centro de valores, os centros são múltiplos e é face a eles que devo
responder com meus atos”.346
Ainda em relação à multiplicidade de pontos de vista diferentes, passa-se a
enfocar o diálogo entre Seu Erudito e as filhas:
Depois que se findaram todas as maneiras possíveis de fazer com que o pai falasse de novo com elas, as filhas finalmente se acostumaram àquela relação escrita. Esquisita. Mas divertida. Porque no fundo, lógico, bem que ele queria levar uma conversa. Trocar algumas palavras. Só não recuava em sua posição por ser um cabeça-dura do tipo consistente. Era muito engraçado, às vezes, quando ele se distraía e quase ia falando: – Odi... Ou: – Divi... Ou: – Aven... Então interrompia e disfarçava. – Falou? – elas perguntavam cinicamente. Ele balançava que não com a cabeça, fingindo-se de sério, morrendo de vontade de rir. A rixa “falou X não falei” durou anos e gerou todo tipo de implicância, Sempre que Seu Erudito espirrava, por exemplo, Tia Divina gritava, aos pulos: – Falou! Ele então escrevia num papel: “não falei, espirrei apenas”. E ela respondia: – Falou sim. Atchim, pra mim, é palavra.
347
Esse excerto revela algo instigante sobre a interação entre pai e filhas na
medida em que alterna, na história, as modalidades verbal e não-verbal, brincando,
ainda, com a concepção do que é comunicar-se de fato para cada uma das
personagens. A palavra “atchim” e mesmo o pronunciamento incompleto dos nomes
das filhas “Divi...”, “Odi...”, “Aven...” por parte de Seu Erudito são responsáveis pela
rixa entre eles. Isso ratifica que “o enfoque dialógico é possível a qualquer parte
significante do enunciado, inclusive a uma palavra isolada, caso esta [...] seja
interpretada como [...] representante do enunciado de um outro, ou seja, se ouvimos
nela a voz do outro”.348
346
AMORIM, Marilia. Para uma filosofia do ato: “valido e inserido no contexto” In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.39. 347
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.126. 348
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.210.
104
Agora, atenta-se para este segmento:
Aquele homem devia estar muito apressado por algum motivo importante, ou não teria saído em disparada. Lá de longe, gritou alguma coisa pra ela, mas Luna Clara só ouviu o final da frase: – ... perigosa! “perigosa, perigosa, perigosa”, ela foi repetindo no pensamento. O dia já tinha escurecido. Deviam ser bem umas sete da noite. Que sexta-feira esquisita.
349
Segmento esse interligado ao seguinte:
[...] E saiu em disparada para se encontrar com Aventura, mais de treze anos atrasado. Antes, achou bom avisar: – Vaicomcuidadomeninaessaestradaéperigosa!
350
Esses excertos dizem sobre o modo como o autor dialoga com o leitor, no que
tange ao recurso de fragmentação/reiteração mencionado no capítulo anterior. Eles
são ilustrados aqui, pois revelam ainda outro aspecto relevante do ponto de vista
das relações dialógicas, já que em Luna Clara e Apolo Onze também se pode “ouvir
a voz do outro” por intermédio da narração de um mesmo fato sob a perspectiva de
personagens diferentes. No primeiro exemplo, presencia-se a ótica de Luna Clara e,
no segundo, a ótica de Doravante. Isso pode ser associado à “existência de ‘lados’,
isto é, à ocupação dos vários participantes de posições diferentes” 351, cabendo
reiterar que não existe fusão indiferente entre as vozes do autor, herói e ouvinte,
pois “eles são na verdade ‘lados’, lados não de um processo judicial, mas de um
evento artístico com estrutura social específica cujo ‘protocolo’ é a obra de arte”.352
349
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.47. 350
Ibid., p.171. 351
VOLOSHINOV, V. N. Discurso na Vida e Discurso na Arte (sobre a poética sociológica) [1926].
Tradução para o português por Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, para uso didático, com base na tradução inglesa de I. R. Titunik. Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics. In: V. N. Voloshinov, Freudism. New York: Academic Press, 1976. p.15. 352
VOLOSHINOV. loc. cit.
105
6.3.2 As relações antagônicas entre elementos que compõem o espaço da
narrativa
No romance, constata-se que os nomes e as características atribuídos a
elementos do espaço são muito sugestivos em termos arquitetônicos, porque
expostos também em contraposição marcante. Obviamente, tudo o que foi
embasado teoricamente quanto às relações antagônicas entre as personagens tem
validade no tocante às dissonâncias aqui apresentadas.
O exemplo que se quer mostrar é o mapeamento da
aproximação/distanciamento entre Aventura e Doravante:
MAPA DO MUNDO O ponto de cima é Desatino do Norte. O ponto de baixo é Desatino do Sul. Em cima do ponto de cima é o Norte. Embaixo do ponto de baixo é o Sul. Doravante foi para cima. Aventura veio de baixo. Foi assim que eles se desencontraram pelo mundo.
353
Figura 3 – Mapa do Mundo.
Fonte: FALCÃO, 2002, p.77.
353 FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.76.
106
Assim, tem-se relações dialógicas referenciais estabelecidas sob um efeito de
oposição: “ponto de cima”/”ponto de baixo”; “Desatino do Norte”/”Desatino do Sul”;
“Em cima”/”Embaixo; “Norte”/”Sul”; “Doravante foi”/”Aventura veio”; “para cima”/”de
baixo”.
Outro exemplo significativo de oposição composicional é a capa e a
contracapa do livro. Na frente, está ilustrada Luna Clara e, no verso, a ilustração é a
de Apolo Onze, que, se vista do mesmo ângulo da capa, está opostamente virada,
como se pode comprovar:
Figura 4 – Capa/Contracapa do Livro.
Fonte: FALCÃO, 2002.
6.3.3 As influências carnavalizantes
Ainda em relação aos antagonismos, destaca-se o envolvimento entre “as
velhas”:
107
– Imprevisto e Poracaso – as duas velhas gritavam, a de rosa e a de azul. [...] – Eu procuro pra lá e você procura pra cá – a velha de rosa disse para a de azul. – Nada disso. Você procura pra cá e eu procuro pra lá – a de azul respondeu. – Foi isso mesmo que eu disse. – Não foi não senhora. [...] – Eu vou pra lá. – Você vai pra lá. – Foi isso mesmo o que eu disse. [...] – O seu lá é pra lá ou é pra cá? – Pra lá – a de rosa apontou para o Norte. – Pois então eu vou pra lá – a de azul apontou para o Sul. – Foi isso mesmo o que eu disse. Até que as duas finalmente se entenderam. Ou se desentenderam, quem sabe, e cada uma foi para um lado. E o outro acontecimento estranho e inesperado aconteceu naquela sexta-feira dos ventos nesse instante: a nuvem preta se partiu em duas e cada pedaço de nuvem acompanhou uma velha, numa proporção de uma velha por pedaço.
354
Aqui também se vê o espaço em diálogo antagônico nas falas das velhas:
“lá”/”cá”, “Norte”/”Sul”. Além disso, em “[...] – O seu lá é pra lá ou é pra cá? [...]” 355
indica que os campos de visão são distintos. O “lá” de uma pode ser o “cá” de outra
e vice-versa, tudo depende da posição de onde se vê algo. Portanto, como se
demonstra, a “transmissão da afirmação do outro em forma de pergunta já leva a um
atrito entre duas interpretações numa só palavra, tendo em vista que não apenas
perguntamos como problematizamos a afirmação do outro”.356
Há outro aspecto curioso na relação entre “as velhas”. Inicialmente, na
história, a hipótese das demais personagens é a de que há apenas uma velha
morando na casa situada no Vale da Perdição. Com o passar da trama, é revelado
que existem mais velhas e, na maior parte da narrativa, são representadas por duas
delas, como exemplificado. Isso também se torna um elemento interessante do
ponto de vista dialógico, pois são próprias “do pensamento carnavalesco as imagens
pares, escolhidas de acordo com o contraste (alto-baixo, gordo-magro, etc.) e pela
semelhança (sósias-gêmeos)”.357 Imagens pares contrastantes já foram abordadas
na análise de outras personagens. No que diz respeito às velhas, o contraste pode
354
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.187-188. 355
FALCÃO, loc. cit. 356
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.144. 357
BAKHTIN, loc. cit.
108
ser associado às cores das vestimentas delas (azul e rosa) e/ou à aparência idêntica
de ambas. Vide figura:
Figura 4 – As Velhas do Vale da Perdição.
Fonte: FALCÃO, 2002, p.180-181.
“É típico ainda o emprego de objetos ao contrário [...]. Trata-se de uma manifestação
específica da categoria carnavalesca de excentricidade, da violação do que é
comum e geralmente aceito; é a vida deslocada de seu curso habitual.” 358 Embora
não se enquadre propriamente no caso de objetos ao contrário descritos em PPD,
infere-se que a chuva que chove em cima da cabeça das personagens é um
elemento capaz de expressar uma excentricidade na medida em que se desvincula
da sua imagem padrão. A chuva faz parte do jogo da interação dialógica até mesmo
porque varia “de cabeça para cabeça”: “[...] a nuvem preta se partiu em duas e cada
pedaço de nuvem acompanhou uma velha, numa proporção de uma velha por
pedaço”.359
Na trama, há o jogo-da-velha, mais um aspecto curioso:
358
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.144. 359
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.188.
109
[...] Quatro linhas. Nove espaços. Era o jogo-da-velha? É claro que era. – Eu sou bola. – Eu sou cruz. [...] – Você começa. Talvez porque tenha começado, foi ela quem ganhou a partida. E aí? Nada aconteceu. – Esse jogo devia servir pra alguma coisa. – Vamos outra? [...] – A última? – Luna Clara sugeriu. – Você começa. [...]
360
E, mais significativo talvez, o jogo-da-roleta:
– Giro? – Não gira. Agora estava nas mãos deles. Precisavam resolver vários problemas pendentes. Mas como é que se jogava aquele jogo? E a roleta: “me gira”. – Não giro? – Gira. E Apolo Onze girou. Com toda a força que tinha. Então começaram os desencontros. A roleta, bonita e redonda, amarela, rodou. Rodou. Rodou. Rodou. Foi parando. Parando. Parando. Parou. O que possibilitou a Luna Clara e Apolo Onze ficarem sabendo o resultado da jogada. Estava escrito em letras maiúsculas, bem grande: “DORAVANTE AVANÇA TRÊS CASAS.”
361
Ambos os excertos foram inseridos aqui, pois a “natureza do jogo (de dados,
baralho, roleta, etc.) é uma natureza carnavalesca. [...] Os símbolos do jogo sempre
foram parte do sistema metafórico dos símbolos carnavalescos”.362 Infere-se que em
Luna Clara e Apolo Onze as personagens, de suas posições sociais distintas, em
volta da roleta, equiparam-se “quer pelas condições do jogo, quer diante da fortuna e
360
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.203-204. 361
Ibid., p.218. 362
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.197-198.
110
do acaso”.363 E por que não dizer que o mesmo se dá na relação entre autor e leitor
– já que este é levado em conta por aquele? Além disso, o “clima do jogo é um clima
de mudanças bruscas e rápidas do destino, de ascensões e quedas
instantâneas”.364 Esse clima dinâmico é um dos mais presentes na história, razão
pela qual se pode inferir também que a “roleta estende sua influência carnavalizante
a toda vida contígua” 365, nas cidades Desatino do Norte e Desatino do Sul e no Vale
da Perdição, que interliga uma à outra.
Para concluir este plano de análise, segue:
– Vocês sabiam que, nesse exato instante, uma certa moça que está lendo um livro precisa urgentemente encontrar um certo rapaz? – a velha de rosa revelou. – E vocês sabiam que, nesse exato instante, esse tal rapaz está lendo o mesmo livro e também precisa urgentemente encontrar a tal da moça? – informou a velha de azul. – Que coincidência! – achou lindo a de abóbora. – Quer dizer que assim que a história de Luna Clara e Apolo Onze estiver resolvida, nós já temos outro trabalho pela frente! – a de dourado já ficou toda animada. - Oba! Adoro encontros – gritaram todas ao mesmo tempo. Você já percebeu como são intrometidas as coincidências do destino? E criativas. Ativas. Muito românticas. Então vá se preparando. Porque mais cedo ou mais tarde, muito provavelmente, elas ainda vão se meter na sua vida.
366
Constata-se que as velhas são as “arquitetas” do destino que rege tudo e
todos na historia. De uma extralocalidade, elas “orientam” as personagens, suas
ações. Pode-se dizer, com isso, que as velhas ocupam uma posição análoga a do
autor-criador, essa “personagem de si mesma”367 que se consagra como arquiteta
de uma obra de arte. Elas são ainda assim um alterego autoral.
363
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.198. 364
Ibid., loc. cit. 365
Ibid., loc. cit 366
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.324. 367 SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin.
Campinas: Mercado de Letras, 2009. p.107.
111
6.3.4 As relações convergentes entre as personagens
Bakhtin afirma: “A vida é boa.” “A vida não é boa.” [...] se esses dois juízos
forem divididos entre dois diferentes enunciados de dois sujeitos diferentes, então
surgirão entre eles relações dialógicas.” 368 De certo modo, é essa natureza
dialógica que até aqui se quis representar através das “relações
antagônicas/dissonantes, assim denominadas, porque concentradas em enunciados
diferentes pronunciados por personagens distintos. Porém, enfatiza-se que relações
dialógicas são possíveis igualmente entre enunciados idênticos emitidos por sujeitos
diferentes, uma vez que “não importa que um confirme o outro ou se complementem
mutuamente, ou, ao contrário, estejam em contradição ou em quaisquer outras
relações dialógicas (por exemplo na relação entre pergunta e resposta) [...]”.369
Portanto, a análise toma como centro agora “relações convergentes”,
chamadas assim apenas como modo de remeter àquelas interações nas quais se
pode evidenciar a comunhão de vozes atrativas umas às outras, convergindo para o
reflexo do outro não em caráter opositivo, mas como esse alguém que reafirma,
complementa a subjetividade de um eu e, sob esse novo prisma (de ênfases,
similaridades, complementaridades), revela também a intersubjetividade aí
implicada.
O primeiro diálogo selecionado para amostra é o de Leuconíquio e de
Noctâmbulo:
368
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.210. 369
Ibid., p.216.
112
[...] Noctâmbulo ouviu atentamente a explanação. A ideia era lotear aquele pedação de terra, fazer de lá uma grande festa e inventar um nome bonito tipo “Condomínio da Festa Mais Divertida do Pedaço dos Bosques das Matas das Águas dos Jardins Floridos da Manhã Ensolarada da Tarde e da Brisa da Madrugada Enluarada da Felicidade Eterna.” – Até aí só não gostei do Madrugada. Esse nome me faz sofrer – Noctâmbulo confessou. – Tudo bem. Então tiramos também o “enluarada” pra não ficar sobrando. – E daí? O que é que se faz com isso? – Vende-se, ora. – Esta terra não está à venda. – Nem por isso deixa de valer um dinheirão. – Ninguém vai querer comprar. Esses estúpidos só querem saber de festa. – E se a festa daqui for melhor que a de lá? – Leuconíquio não desistia. – Não adianta. Esse povo aqui de Desatino do Sul não faz economia. Gastam tudo na vida. – Nós podemos emprestar dinheiro a juros para eles. – E ainda podemos aumentar os juros de modo que ninguém nunca consiga terminar de pagar o seu pedaço – Noctâmbulo se empolgou. – Agora você começou a entender. E Leuconíquio explicou o “plano dois” detalhe por detalhe. – Primeiro eu vou acabar com aquela festa de lá. Em seguida, começamos a nossa festa aqui.
370
Na história, através dos discursos de Noctâmbulo, não se torna difícil inferir
que ele representa, de certa forma, o pensamento burguês. Por ter sido um grande
latifundiário, demonstra insatisfação com a perda dos empregados e com o
divertimento dos outros. Para ele, o mundo e as pessoas existem para servi-lo.
Diferentemente de Pilhério, que fora raptado, Noctâmbulo segue espontaneamente
Leuconíquio. Através do diálogo ilustrado, percebe-se a atração entre eles motivada
por desejos convenientes a ambos. Noctâmbulo considera-se importante por possuir
muitas terras e agrada-lhe a sensação de poder subjugar os outros, o que combina
perfeitamente com a índole “trambiqueira” de Leuconíquio sempre voltada para a
obtenção de lucro financeiro à custa da ingenuidade dos outros. O resultado são
discursos que, nesse âmbito, se reforçam mutuamente via interação, pois o
“discurso da vida prática está cheio de palavras de outros. Com algumas delas [...]
reforçamos as nossas próprias palavras, aceitando aquelas como autorizadas para
nós [...]”.371
Observe-se também a conversa entre Apolo Onze e Luna Clara:
370
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002 p.241-242. 371
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.223.
113
– Eu levo você a Desatino do Norte pra gente ver que perigo é esse e depois volto pra Desatino do Sul, pra tentar resolver o tal problema na festa. [...] Ela levantou, ponto por ponto, os direitos dos homens e das mulheres, mencionou palavras como “equiparação”, “justiça”, e “igualdade” e arrematou dizendo que em momentos como aquele era preciso esquecer as teorias e partir para a prática. – Era só o que me faltava você me levar em casa enquanto a sua festa está em perigo. – Existe um perigo rondando a sua casa, um outro rondando a minha, os dois acontecendo ao mesmo tempo. Eu vou pra minha, você vai pra sua, e tenho dito e pronto. [...] Apolo Onze também sabia discursar. E discursou. Em vez de “direitos dos homens e das mulheres” foi sobre gentileza, a sua palestra. Carinho. Cuidado. Zelo. Desvelo. Proteção. Am... – Eu não preciso de protetor nenhum e posso muito bem ir sozinha – ela interrompeu. E nós ficamos sem saber se o Am... a que Apolo Onze ia se referir era amor ou amizade. [...] – Boa sorte pra você, Apolo Onze.
372
Na fala de Luna Clara acontece algo curioso: ela enuncia para Apolo Onze “e
tenho dito e pronto“, como se sabe, uma marca discursiva de Seu Erudito. Isso, na
trama, indica que “palavras do outro, introduzidas na nossa fala, são revestidas
inevitavelmente de algo novo, da nossa compreensão e da nossa avaliação, isto é,
tornam-se bivocais” 373, pois, como referido anteriormente, palavras de outros são
absorvidas a todo momento. Infere-se que Luna Clara ao pronunciar “e tenho e dito
e pronto” funde sua voz com a de seu avô. Ao mesmo tempo, a marca discursiva
dele reforça a própria dela, tendo em vista que ela aceita essas palavras como
autorizadas. A personagem revela também as suas próprias intenções nessa
discursividade.374 Efeito similar dá-se no breve diálogo entre Imprevisto e Poracaso:
É. Parece que o destino daqueles dois era só servir a velha. Não serviam para mais nada. Nem para viver suas próprias vidas. – Cada qual tem sua sina, Seu Erudito teria dito – observou Imprevisto. – E pronto – Completou Poracaso.
375
372
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.234-235. 373
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.223. 374
Ibid., loc. cit. 375
FALCÃO, op. cit., p.94.
114
Analise-se, agora, a interação entre Madrugada e Apolo Dez, porém, com
foco nas sete irmãs de Apolo Onze:
[...] Apesar da distância e da miopia, reconheceram Doravante. – É aquele rapaz apaixonado que esteve aqui na noite em que começou a festa, lembra? – O sortudo? É claro que lembro. [...] – Sortudo – Como – Se não – Para – De chover – Em cima – Dele, ora? Duvidaram as sete irmãs. – Isso eu não sei responder – Madrugada respondeu. – Mas que ele era sortudo antes, era – completou Apolo Dez. Elas ficaram olhando o irmão se afastar com o homem e a chuva. – Isso – Deve –Ter – Sido – Há – Muito – Tempo.
376
Com tantos elementos dialogando entre si em Luna Clara e Apolo Onze, a
participação das irmãs pode correr o risco de ser relegada a segundo plano, mas ela
é fundamental aqui. Relevante porque se percebem sete vozes distintas
desmembradas em um mesmo enunciado constituído/formado graças à atuação
especial de cada uma delas. Talvez, na obra, seja possível fazer uma leitura
metafórica dessa maneira peculiar de as irmãs se enunciarem, já que, para se
desvendar algum sentido, os próprios discursos não podem ser tomados em
isolamento. Implicitamente, assim, as sete irmãs remetem a aspectos como inter-
relação e interdependência tanto em relação aos discursos verbais e não-verbais
quanto na relação eu-outro sempre neles presente.
Encerram-se as exemplificações do capítulo com o seguinte excerto:
376
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.55.
115
Foi um encontro enfeitado de coincidências. O que ela tinha, ele queria. O que ela queria, ele tinha. “Passei a vida inteira atrás de uma chuva e quando encontro ela, encontro ele.” Ela pensou. “Passei a vida inteira atrás de um motivo para querer e quando encontro ele, encontro ela.” Pensou ele.
377
O leitor presencia não somente histórias de amor, mas principalmente “o
querer” das personagens. Foi para elas (e o é também nas tramas reais) o desejo a
grande motivação de vida dos sujeitos. Isso se imprime nos seus discursos
povoados de realização ou marcados pela busca constante dela. Seja como for, a
plenitude, até mesmo por ser sempre provisória, só pode ser alcançada via interação
dialógica.
Luna Clara quer encontrar o pai; Apolo Onze quer o que ainda desconhece;
Divina e Odisseia querem casar-se com Imprevisto e Poracaso; as velhas, prendê-
los; Doravante almeja reencontrar Aventura; Noctâmbulo acabar com a festa em
Desatino do Sul; Seu Erudito ter de volta o amigo Pilhério. Cabe lembrar que “a
vontade artística da polifonia é a vontade de combinação de muitas vontades, a
vontade do acontecimento”.378 Embora não haja uma ligação direta com a polifonia,
faz-se menção a essa afirmativa, porque os diversos acontecimentos ao longo da
trama determinaram os desencontros, reencontros e, principalmente, o encontro de
Luna Clara e Apolo Onze.
Encontros, desencontros, entretanto, sucedem nas narrativas de modo geral,
como traço típico. O que se destaca na obra é a maneira como Adriana Falcão
consegue “enredar arquiteto-dialogicamente” episódios capazes de fazer
transparecer as vozes presentes das personagens, o que inclui as do autor-criador
obviamente, e as do leitor no que elas têm a dizer acerca de si, do mundo. Essas
percepções são constitutivas de subjetividades sempre outras. Abordar a
personagem de modo a destacar simultaneamente as relações advindas dos “eus” e
dos “outros” que nela ressoam e se revezam nessas mesmas posições, fazendo-se
ora fala ora escuta em contextos diversos, de forma significativa para o interlocutor,
é um traço específico. Tal especificidade aqui se exemplifica com o encontro entre
Luna Clara e Apolo Onze, reportado no diálogo anterior, revelador de que “a
377
FALCÃO, Adriana. Luna Clara e Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002. p.179. 378
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 2.ed. trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1997. p.21.
116
realização da minha singularidade é também algo que completa o ser do outro. A
não coincidência com o outro, com o seu lugar, é também lugar produtor de sentido
que, mais uma vez, se dá na articulação de diferenças”.379
Ainda no âmbito da especificidade dialógica em Luna Clara e Apolo Onze, é
importante ressaltar que todas as relações elencadas, mesmo as “dissonantes”, são
tomadas não como contradição, mas como multiplicidade de pontos de vista em
interação. “Se o que é próprio do ato é ser singular, se o que ele traz é o não
repetível e único, não pode haver contradição no fato de ele ser plural. A contradição
diz respeito ao uno e a multiplicidade diz respeito ao único.” 380
Nesse sentido, relações dissonantes e convergentes, por exemplo, são assim
denominadas como organização metodológica viável para transmitir a identificação
de diferentes nuances de dialogismo envolvendo as personagens. Nuances essas
materializadas nas vozes delas e nas relações diversas que se consolidam através
do intercâmbio dialógico impulsionado por marcas discursivas “estético-potenciais”.
A partir disso, pode-se afirmar que “tudo se reduz ao diálogo, à contraposição
dialógica como centro. Tudo é meio, o diálogo é o fim. Uma só voz nada termina e
nada resolve. Duas vozes são o mínimo de vida, o mínimo de existência” 381 –
inclusive na arte!
379
AMORIM, Marilia. Para uma filosofia do ato: “valido e inserido no contexto” In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.35. 380
AMORIM, Marilia. op. cit., p.37. 381
BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.293.
117
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
“[...] ser frio como o gelo foi difícil para mim, homem que ama com muito calor aquilo de que gosta. Isso eu consegui”.
382
N.G. TCHERNICHEVSKI (1829-1889)
Identificação, talvez uma das palavras que melhor defina o meu
relacionamento com a fala desse romancista. Assim que a li, já sabia qual seria o
destino dela neste trabalho: nas considerações finais, locus que me atrevo a
denominar “coração da pesquisa”.
A Academia exige “etiqueta” do pesquisador. Menos adjetivos e tantos outros
indicadores de subjetividade de que a língua dispõe. Ao mesmo tempo, essa mesma
cientificidade exige a enunciação peculiar do sujeito. Um paradoxo transponível,
uma vez que esse “eu”, de fato, consegue fazer-se presente. Aí implicada uma
camada de dificuldade refletida pela busca de “marcas discursivas” outras, quem
sabe não tão espontâneas, que ele tem de aprender a articular no segundo entre o
pensamento e a escrita.
Constitui-se, assim, o “pesquisador-pessoa” e o “pesquisador-criador”. Na
base da produção deste, lê-se “etiqueta” como “exotopia”, e, na base da produção
daquele, como “singularidade”, selo anexado justamente pela capacidade de
distanciamento entre um e outro em relação ao objeto de pesquisa (ou seria de
desejo?). Eis o conflito, eis a intersubjetividade dada por vozes diferentes, não
incompatíveis, porque se comunicam mutuamente. O pesquisador-pessoa cede
espaço discursivo para o criador enunciar e vice-versa.
Logo, “etiqueta científica”, no sentido das reservas próprias dos gêneros
acadêmicos, ganha outra acepção. A “etiqueta científica” pode ser encarada como
“discurso composicionalmente monológico” que só pode tender ao dialógico sem
neutralizar voz alguma, pois o objetivo maior de enunciar é sempre dirigir-se ao
outro. Aqui, “no coração da pesquisa”, portanto, me enuncio, talvez apenas mais
explicitamente, com a licença do gênero dissertação de Mestrado.
382
TCHERNICHEVSKI, N.G. apud BAKHTIN, M. M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5.ed.
Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.75.
118
Nesta pesquisa, também me aventuro como “arquiteta discursiva”, pois, no
meu ato (“responsível”) de enunciar, levo em conta a interlocução entre quem irá ler
esta dissertação e as próprias ideias que (re) animo nela, novas personagens do
meu criar. Essas ideias são produto, claro, da interação direta com as ideias de
outros: com as do Círculo bakhtiniano, com as de pesquisadores-professores, com
as de colegas. Às vezes, torna-se difícil discernir entre o que “sou eu” e o que “são
eles”, o que “vem de mim” ou “vem deles”. Porém, se por um lado essa reflexão
assume um tom de questionamento, a dialética, por outro, assume um tom de
réplica a ele. Se na vida e na arte é assim, na Academia não seria diferente: a todo
tempo “eu” absorvo ideias, palavras de “outros”. Por isso, tudo o que aqui enuncio
parece rodar à minha volta, dando-me a impressão de que não falo nada em meu
nome, de que não dou nada ou ofereço muito pouco, de que só faço ressoar nas
minhas as palavras alheias. Vejo-me repetir discursos constantemente. Ao final,
oscilo, torno-me uma espécie de “duplo de mim” e o que me desagradava passa a
encantar-me, porque me percebo também “avançando por repetições”. Na
indiscutível reiteração, progrido, me desenvolvo, me re (analiso), “retorno a mim
mesma” sob outro prisma atualizado/renovado, na forma e contornos que meu
trabalho adquire.
Em certa medida, depreendo que a obra Luna Clara e Apolo Onze chegou até
mim antes mesmo de eu realizar a minuciosa leitura sob o viés que me instigava em
pesquisa. Aprecio muito estas palavras: “Não me lembro mais qual foi nosso
começo. Sei que não começamos pelo começo. Já era amor antes de ser.”383 Eu,
desse modo, doto de um sentido outro essa observação, eu a valoro ao utilizá-la
como meio para transmitir mais do que a minha ligação com o romance, mas com a
literatura. Histórias clássicas, contos de fadas, contos maravilhosos e afins. A paixão
infante pelas narrativas acompanhou o meu crescimento. Já no Mestrado, em um
espaço proporcional ao da literatura, coube no meu interesse o desejo, cada vez
mais latente, de entrelaçá-la com algum estudo linguístico que, à época, sequer
imaginava qual seria. Estava, assim, em natural busca do objeto de estudo (ou de
desejo?) quando compartilhei “em voz alta” o meu querer. Tão logo a pronúncia,
escutei, qual eco, uma voz em retorno. Ela me contava a existência da história que
viria a maravilhar-me tanto ou mais do que aquelas da tradição. Dois dias foram
383
NOLASCO, Edgar C.; MACHADO, L. Claricianas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006. p.31.
119
suficientes para o primeiro contato com o romance de Adriana Falcão e para que ele
deixasse em mim impressões singulares, às quais devolvi àquela voz já capaz de
dar nome às minhas deduções. Assim nascia a “nossa” hipótese polifônica. Ao
compartilhar isso, como “arquiteta”, localizo dialeticamente o processo de “seleção”
autoral envolvendo o tema deste estudo, reiterando, ao mesmo tempo, a importância
de outra(s) voz(es) para a constituição da própria pesquisa.
Assim como, de acordo com Emerson, “Bakhtin não faz, em geral, começos
nem finais. Faz apenas meios” 384, talvez seja possível inferir que também não serão
produzidos inícios nem desfechos em sentido estrito. Desde o início, há um diálogo
entre este estudo e outros; a cada consideração “final”, questionamentos, buscas e
resoluções outras diferentes daquelas que instigaram a pesquisa originalmente.
Cada gênero clama por seu desfecho, e esse desfecho não representa o término do
diálogo travado. Portanto, em vez de “conclusão”, termo que causa uma sensação
um tanto monológica, prefere-se adotar, dentre os planos habitados, este como o
meio da palavra deste estudo, do dizer dele, talvez porque “meio” pareça mais
condizente com a percepção de que adentrar na complexidade do pensamento
bakhtiniano requer um processo contínuo, ininterrupto.
O enfoque polifônico inicial me levou a descobrir aspectos fundamentais das
diretrizes bakhtinianas. Enfatizo, agora, que aquelas indagações provenientes do
estudo expresso no capítulo segundo (e mantidas ao final dele) revelaram não
somente os limites do que se poderia abordar nesta dissertação de Mestrado, mas
propiciaram, posteriormente, a reflexão sobre a relevância da hipótese polifônica da
forma como se pensava orientá-la. No entanto, nem a polifonia desaparece nem eu
mudo de opinião em relação a ela propriamente. Reconheço a necessidade de
maturação da proposta polifônica e, com isso, parece-me que o que na verdade
também faço é reafirmar “a ética do compromisso com a descoberta das coisas
abordadas e não do encontro daquilo que já se procurava desde o início”.385
Assim, foi através daquilo que parecia representar uma fragilidade na
pesquisa – a polifonia que eu buscava desde o princípio – que pude chegar à
exploração dos graus/níveis de dialogicidade em Luna Clara e Apolo Onze. A
384
EMERSON, Caryl. Os cem primeiros anos de Mikhail Bakhtin; trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003. p.195. 385
SOBRAL, Adail. A Estética em Bakhtin (Literatura, Poética e Estética). In: DE PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas: Mercado das
Letras, 2010. p.85.
120
estética bakhtiniana proporcionou a fundamentação teórica necessária para
estimular uma análise crítico-reflexiva da obra artística como um autêntico projeto
enunciativo arquitetônico – eis a potencialidade que se converte na ética do meu
compromisso com as “coisas” abordadas. A seguir, a síntese de alguns elementos
dessa abordagem.
Em relação à representação dos heróis, foi evidenciado o forte componente
valorativo instituído no nome e nas marcas discursivas das personagens, que
indicava serem elas representantes de vozes sociais capazes de expressar visões
de mundo, ideologias distintas. Além disso, a transformação resultante da interação
refletida nas marcas discursivas e nas ações dessas personagens revelou, ainda,
que elas são apresentadas em um processo de intersubjetivação dinâmico, uma vez
que se constituem via diálogo e interação.
Em relação ao diálogo voltado para o leitor, a fragmentação dos capítulos
sinalizou a reiteração como estratégia dialética-dialógica, uma marca discursiva do
autor que tanto situa o leitor no tempo da obra quanto o instiga a articular-se
também espacialmente na simultaneidade arquitetada. A narrativa também valorizou
o “lugar da palavra no objeto estético” na medida em que o autor transcende o
linguístico, criando linguagens outras a partir do seu brincar com o sistema da língua
e com o seu próprio fazer artístico. É o que ocorreu também com o uso
metalinguístico de algumas expressões, como “minha Nossa Senhora”, que
personificou, ao mesmo tempo, valorações coletivas e particulares das personagens.
Foi possível perceber igualmente o caráter dialógico do estilo em alguns enunciados
do autor nos quais ele conseguiu captar a própria voz de um outro concreto, que
existe socialmente, conferindo a esses enunciados uma entoação peculiar. A
interdiscursividade, que também compõe esse estilo dialógico autoral, propiciou o
diálogo da obra com ela mesma, com outros discursos e gêneros.
Quanto à organização das relações na obra, foram identificadas relações
dissonantes entre as personagens através das quais se pôde analisar a marca de
discursos em constante tensão. Os nomes e as características atribuídos a
elementos do espaço revelaram-se muito sugestivos em termos arquitetônicos,
porque expostos também em contraposição marcante. Além disso, foram detectadas
influências carnavalizantes representadas pela atuação das “velhas” e pela
referência a jogos que movimentam a trama. Por fim, foram analisadas as relações
121
convergentes, assim denominadas, pois convergem para o reflexo do outro não em
caráter opositivo, mas como alguém que reafirma, complementa a subjetividade de
um eu e, sob esse novo prisma, revela também a intersubjetividade aí implicada.
Dessa forma, essa síntese de elementos revela que é possível, a partir do
estudo do corpus e do arcabouço teórico, mobilizar estratégias de análise próprias
que atendam à especificidade do objeto de pesquisa, fator que garante fidedignidade
à concepção dialógica da linguagem. Nesse sentido, cabe destacar que foi a obra
que primeiramente instigou, conduziu à percepção das suas peculiaridades
artísticas, motivando-me, em seguida, à busca das complexas concepções estética
e polifônica bakhtinianas, primordiais para a efetivação das considerações
apresentadas na análise e para as constatações realizadas a partir dela.
Em um primeiro plano, as dinâmicas metodológicas possibilitaram a
construção de uma maneira específica de perceber, mapear e descrever o
fenômeno arquitetônico de Luna Clara e Apolo Onze. Em um segundo plano, elas
viabilizaram a constatação da multiplicidade de vozes interativas e da especificidade
dialógica potencial reveladas na arquitetônica do objeto estético, diferencial de
autoria e tese a que esta pesquisa responde. Ao levar em consideração o contexto
integral do estudo, a comprovação dessa tese ratifica que “não é a teoria que me
obriga a ser verdadeiro quando a penso ou quando a formulo, mas é o meu ato
singular de responsabilidade em face do pensar que me coloca o dever de
verdade”.386
O meu pensar/dizer/olhar sobre o romance, porém, não se encerra com esta
análise. Em Luna Clara e Apolo Onze não há apenas uma multiplicidade de pontos
de vista animados nas personagens em interação, dentro da obra. Ela instiga uma
multiplicidade de alternativas em pesquisa, ampliando pontos de vista, para fora
dela. Afinal, “a leitura é um fenômeno complexo que não se esgota em um só modo
de olhar”.387 Tomo essa afirmação “como autorizada para mim” por acreditar que ela
traduz muito do que foi dito até o momento, do que agora passo a enunciar e, até
mesmo, daquilo que ainda está por ser pronunciado. Ela conclama a multiplicidade
heterogênea seja de olhares, de vozes, de consciências, como determinante para o
386
AMORIM, Marilia. Para uma filosofia do ato: “valido e inserido no contexto” In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.29. 387
TEIXEIRA, Marlene. É Possível a Leitura? Nonada: Letras em Revista, Porto Alegre, n.8,
nov.2005. p.196.
122
e constituinte do processo de leitura, o que engloba, por sua vez, todo o fazer ético e
estético da experiência humana.
A fragmentação Língua/Literatura, dois campos do saber, pode ser percebida
como realidade nas escolas e nas universidades, por exemplo, através de um ensino
que se dê de maneira desarticulada. De um lado, o estudo da língua apenas como
sistema operacional isolado de quaisquer contextos e, de outro, a transmissão da
literatura como fundamento único da própria análise literária. O resultado dessa
relação inadequada, seja a longo ou a curto prazo, pode ser observado na divisão
bem delineada entre grupos de alunos/professores que (quase sem perceber,
atraídos por suas afinidades) acabam fragmentando o seu olhar para uma espécie
de “estritamente linguístico ou literário”, como se essa divisão fosse possível em
alguma instância, claro que sem amalgamar sua especificidade em um todo
indistinto.
Língua e Literatura: uma falsa dicotomia foi a temática da IV Semana de
Letras da Universidade Mackenzie, para a qual Brait (2000) expôs o seu ponto de
vista. Ela enfatiza a fragilidade da relação paradoxal entre língua e literatura, cada
vez mais nítida na área de Letras, esclarecendo que essa dicotomia justamente
foi tomada como tema, imagino, porque teima em reaparecer, sob diferentes máscaras, como uma realidade dos cursos de Letras, aparentemente refletida e consignada na escolha que as pessoas fazem, voltando-se mais para o estudo da língua que para o da literatura e vice-versa.
388
Eu poderia inferir aqui duas interpretações: de um lado, a fatalidade de uma
fragmentação recorrente, pois, do contrário, a respectiva proposta não culminaria em
demanda passível de um debate dessa magnitude; de outro, a “incredulidade” na
própria existência dicotômica. Para ambas as possibilidades interpretativas, existem
observações que parecem alertar ironicamente: se há uma dicotomia sendo
disseminada, é pelo profissional sensível e atento que ela pode (e deve) ser
definitivamente expurgada.
388
BRAIT, Beth. Língua e Literatura: uma falsa dicotomia. In: Rev. ANPOLL, n.8, jan./jun. 2000.
p.189-190.
123
O profissional de Letras, hoje, que tem na linguagem seu instrumento, seu objeto, sua matéria-prima, terá necessariamente de estar apto, enquanto escuta e enquanto olhar, para essa multiplicidade de formas de mobilização da língua, impedido, pela própria natureza do objeto que caracteriza o seu fazer, de assumir uma possível dicotomia entre língua e literatura, uso e criatividade, especialmente no que diz respeito ao ensino e à pesquisa.
389
Dessa forma, o profissional que denomino sensível e atento é aquele,
segundo a concepção de Brait, capaz de reconhecer que todas as formas do
expressar humano – Inclusive a literária, tida muitas vezes, como gênero privilegiado
em relação aos demais, caso das manifestações não-verbais e midiáticas – são
traduzidas pela língua. A língua é, por sua vez, passível de estimulação e revelação
da sua dinamicidade por intermédio da multiplicidade de gêneros discursivos que
ganham vida nas esferas de atividade onde todos nos inserimos e nos relacionamos
uns com os outros.
Embora a resposta de Brait a esse debate tenha ocorrido há mais de uma
década, ainda percebo uma tendência dicotômica marcante, infelizmente. Essa é a
razão pela qual sinto a necessidade de posicionar-me quanto à crença, friso,
delineada pelas minhas experiências: a fusão entre os estudos linguísticos e
literários ainda deve ser muito incentivada nas instituições de ensino.
O próprio Bakhtin percebeu na língua em uso (retratada nos romances) a
transcendentalidade dela (capacidade de refletir e refratar o mundo) e, ao mesmo
tempo, sua importância como sistema. Da mesma forma, acredito no potencial do
texto literário para uma percepção linguística mais aguçada e na abordagem
linguística/metalinguística para uma melhor compreensão dos sentidos criados no
interior do texto literário.
Se por um lado a polifonia bakhtiniana e a concepção estética nasceram de
reflexões filosóficas/linguísticas, por outro, fizeram morada na literatura. Logo, esta
pesquisa, já pela temática, distancia-se de uma possível relação dicotômica, pois
traz ao debate a mesma polifonia, a mesma estética, tendo, agora, como objeto de
análise um romance contemporâneo da literatura infanto-juvenil. Afinal, “quem
aprende com a literatura, quem trabalha com a literatura, quem ensina literatura e
quem desfruta o prazer e o conhecimento que ela pode trazer, naturalmente está
389
BRAIT, Beth. Língua e Literatura: uma falsa dicotomia. In: Rev. ANPOLL, n.8, jan./jun. 2000.
p.188-189.
124
constitutivamente ligado à língua”.390 Nesse sentido, Luna Clara e Apolo Onze
também oferece inúmeras possibilidades temáticas para exploração no ensino. A
especificidade dialógica da obra, nas diferentes ênfases em que foi retratada na
análise deste trabalho, mostra-se bastante profícua para esse fim. No entanto, seria
interessante aprofundar a questão em pesquisa voltada exclusivamente para o
desenvolvimento de estratégias docentes que permitissem a transposição/adaptação
das temáticas suscitadas pelo romance para a sala de aula, oferecendo subsídios
metodológicos para abordagens linguísticas e literárias simultaneamente.
Além disso, a soma das teses fundamentadas em Bakhtin às desenvolvidas
no capítulo da contextualização da literatura infantil/juvenil contemporânea
possibilitaram a reflexão sobre língua e literatura sob outra ótica. A teoria literária
aponta para o rompimento do maniqueísmo das personagens, os estudos
discursivos orientam para a ambivalência/duplicidade delas; a teoria literária prevê
uma estrutura fragmentada, que dá ritmo ao romance; os estudos linguísticos
indicam a simultaneidade e a coexistência refletidas no tempo-espaço da narrativa; a
teoria literária menciona a coloquialidade enunciativa, como elemento que aproxima
autor-leitor, os estudos linguísticos destacam a posição exotópica, como elemento
que, da mesma forma, interliga esses “interagentes”. A análise de Luna Clara e
Apolo Onze, do ponto de vista de suas peculiaridades estilísticas e estruturais,
possibilitou o diálogo entre a teoria literária aqui considerada e a teoria de Bakhtin,
que também envolve, como se viu, uma estética. A análise deu, em alguma
instância, na prática, voz às possíveis consonâncias e divergências aí implicadas ou,
pelo menos, instigou a reflexão sobre a viabilidade de empreender uma relação
nesses termos.
O romance de Adriana Falcão instigou, ainda, a curiosidade sobre as
possíveis influências carnavalizantes na obra, já que ela é integralmente pontuada
pelos “duplos que se comunicam”. Igualmente, suscitou o interesse de dar
continuidade ao presente estudo, aprofundando, na análise, os graus/tipos de
dialogismo, conforme proposição de Sobral391, mais acentuadamente no nível do
diálogo entre as personagens.
390
BRAIT, Beth. Língua e Literatura: uma falsa dicotomia. In: Rev. ANPOLL, n.8, jan./jun. 2000. p.189. 391
SOBRAL, Adail. A Estética em Bakhtin (Literatura, Poética e Estética). In: DE PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas: Mercado das
Letras, 2010. v.1. p.69.
125
Tudo o que foi realizado e ainda o pode ser na voz desta pesquisa se torna,
aqui, “conhecimento real”392. Esse conhecimento é o meu ato, isto é, ato que se
materializa no meu trabalho. “Reconheço-o e me reconheço nele. [...]. Ao assiná-lo,
imprimo minha marca, minha singularidade, minha participação no ser. Dou de mim,
do meu lugar único e intransferível. Ilumino-o com o valor que lhe imprimo”.393 Sinto-
me gratificada por isso. Sinto-me honrada por “assinar” a minha dissertação, pela
primeira vez, ciente do peso axiológico dessa palavra, tradutora da minha
participação neste evento e do reconhecimento do que é válido para mim. E já que
aqui é o “coração da pesquisa”, por que não acrescentar da minha paixão entoada?
Afinal, naturalmente, descobri que “ser fria como o gelo” nunca foi, de fato, uma
intenção. Descobri, felizmente, que essa frieza era apenas a única meta fadada ao
insucesso desde o princípio.
392
AMORIM, Marilia. Para uma filosofia do ato: “valido e inserido no contexto” In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.24. 393
Ibid., loc. cit.
126
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