O Psicodrama Na Universidade - Contribuicoes Morenianas

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    O PSICODRAMANA UNIVERSIDADE:

    CONTRIBUIESMORENIANAS

    PSICOTERAPIA EM UMACLNICA-ESCOLA

    RESUMODiante da visibilidade da polarizao do debate acadmico, marcada

    de um lado pelo paradigma behaviorista e, de outro, pelo psicanaltico,este texto tem como intuito trazer os resultados de uma reexo feita emuma clnica-escola de Psicologia sobre as contribuies de J. L. Moreno

    psicoterapia, nas suas consideraes sobre o tempo, o espao, a realidade eo cosmo, especialmente marcadas por psicodramatistas contemporneos.

    A anlise e a interpretao dos resultados de um atendimento realizadono decorrer dos Estgios I e II, na Pontifcia Universidade Catlica deGois, rearmam a riqueza da criao moreniana e apontam para o valorda construo de um debate, no espao de formao do psiclogo, emque se sustente a contribuio dos vrios saberes da cincia psicolgica,na tenso de suas contradies e similaridades.

    PALAVRAS-CHAVEClnica-escola, estgio em Psicologia, debate acadmico, psicoterapia,

    psicodrama.

    Psiclogo pela Pontifcia Universidade Catlica de Gois(PUC-GO); Ps-Graduando em Terapiade Casais e Famlias pelo Centro de Atendimento e Estudos em Psicodrama CAEP e PUC-GO;Psicoterapeuta do Centro de Atendimento e Estudos em Psicodrama (CAEP-GO).

    Ciro de Oliveira Gonalves

    Professora e pesquisadora da Pontifcia Universidade Catlica de Gois (PUC-GO) e Centrode Atendimento e Estudos em Psicodrama (CAEP-GO); ps-doutoranda pela Universidadede Braslia (UnB); Psicodramatista e terapeuta de casais e famlias pela Sociedade Goiana dePsicodrama (SOGEP).

    Vannzia Leal Andrade Peres

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    ABSTRACTFaced with the visibility of the polarization of academic debate, marked

    on one side by behaviorist paradigm, and another by psychoanalysis, thistext aims to bring the results of a reection done in a clinical schoolof Psychology on the contributions of J. L. Moreno psychotherapy, inits consideration of the time, space, reality and the cosmos, especiallymarked by contemporary psychodrama. The analysis and interpretationof results from a service performed in the course of Stages I and II, atthe Pontifcia Universidade Catlica of Gois, reafrm the richness ofMorenos creation and point to the value of building a debate in the area

    of education of the psychologist, where he maintains the contribution ofvarious types of psychological science, the tension of their contradictionsand similarities.

    KEYWORDSSchool clinic, stage in Psychology, academic debate, psychotherapy,

    psychodrama.

    INTRODUO

    O debate acadmico relacionado psicoterapia na clnica-escola dePsicologia v-se, por vezes, polarizado. De um lado, uma perspectivamais diretiva quanto congurao da relao teraputica, representada

    pelo paradigma behaviorista, atenta s demandas modernas de tempoe objetividade, colocando-se como legtima por se construir recoberta

    pelos desgnios positivistas de cincia. Em outro anco, em uma posiono diretiva est o paradigma psicanaltico e suas vrias correntes, emum espao e insero social at mesmo mticos, erigidos pelo impactoda antropologia freudiana, no incio do sculo XX. Entretanto, sero

    esses os nicos caminhos e descaminhos para proposio de uma clnicapsicolgica? E o humanismo? Por que no o Psicodrama?

    Este trabalho tem como objetivo trazer os resultados de uma reexoacerca das contribuies morenianas psicoterapia, em suas consideraessobre o tempo, o espao, a realidade e o cosmo, especialmente marcadas

    por psicodramatistas contemporneos (FOX, 2002; NAFFAH NETO,1997; MESQUITA, 2000; FONSECA, 2008), a partir dos quais se faz umdilogo com a prtica propiciada pelos Estgios I e II (2010) na PontifciaUniversidade Catlica de Gois, visando no pretensa congurao ou

    recongurao de mais um polo nesta disputa, mas, simplesmente pela

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    riqueza da criao de Moreno, o valor da construo de um debate, assim

    como exposto por Morin (2005), em que se sustente a contribuio dosvrios saberes da cincia psicolgica, na tenso de suas contradies esimilaridades.

    O Psicodrama a expresso da inquietude de J. L. Moreno (1892-1974),psiquiatra de fundamentao humanista, diante dos modelos cientcose das exigncias sociais de seu tempo, rigidamente estruturados, semliames para reviso e recriao (GUIMARES, 2002).

    Historicamente, seu nascimento deu-se a partir do Teatro Espontneoou Teatro de Improvisao, criado por Moreno, em Viena no ano de1921. Sua proposta rompia com os modelos teatrais da poca, pois aencclica moreniana era que tudo fosse improvisado e criado no momento.(NAFFAH NETO, 1997).

    Desde o incio, o objetivo do psicodrama a construo de umespao teraputico que utilize a vida como parmetro, integrando seusquatro elementos universais, o tempo, o espao, a realidade e o cosmo(FOX, 2002).

    No entan to, qual a funo do tempo na ps icoterapia? O

    psicodrama, voltado para a ao ldica estabelecida pelo jogo depapis, pode abrigar uma discusso sobre o espao e a realidadeno setting? Quais so os benefcios de enfatizar um conceito comocosmo que perigosamente aproxima-se do misticismo to repudiado

    pelo modelo cientco de ento?

    O TEMPO PRESENTEAo problematizar o conceito de tempo em sua dimenso teraputica, o

    psicodrama procura superar o que Moreno considerou uma viso unilateral

    da psicanlise, que supervaloriza o passado. Sem desconsiderar suaimportncia, o passado uma faceta do tempo e interessa ao psicodramaa integrao do tempo ido, do presente e do futuro (FOX, 2002).

    O tempo presente comea a ser enfatizado o aqui-e-agora, omomento , contudo, no apenas como uma considerao fenomenolgicaou losca, mas do ponto de vista do processo teraputico, da relao,da conexo entre terapeuta e paciente e entre pacientes nas terapias degrupo: o encontro (FOX, 2002).

    Em oposio ao conceito de transferncia, uma maneira de relacionar-

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    se com o outro mediado por um prottipo, a ateno moreniana est

    sobre o fenmeno descrito como tele, expresso de um processo emque h uma abertura ao outro que dialeticamente se desdobra em umaabertura do outro, congurando uma relao em que ambos os sujeitos

    partilham de um conhecimento mtuo profundo. O encontro moreniano essencialmente tlico (NAFFAH NETO, 1997).

    ESPONTANEIDADE COMO FUNO DO TEMPOPRESENTE

    A espontaneidade, conceito-chave na proposta psicodramtica, pois,

    relacionada aos processos de sade e adoecimento, surge tambm comofuno do momento presente (NAFFAH NETO, 1997).

    Em sua definio operacional, Moreno (1975/2008) retrataa espontaneidade como a capacidade de responder de maneirasadequadas a situaes que se mostrem novas ou de dar novas respostass situaes antigas.

    Todavia, adequao na teoria moreniana no se refere a uma simplesobservao de aspectos exteriores e consequente acomodao em seus

    parmetros. Trata-se da capacidade de reconquistar, atravs da ao, arelao de interioridade e de sentido que caracteriza a relao sujeito-mundo, nas circunstncias em que ela cindida. A espontaneidadecongura-se como a capacidade de abrir-se perceptivamente, ampliandoas dimenses espaciais e temporais e resgatando pela ao criativa acontinuidade de sentido do mundo em movimento. fazer-se presena,resgatar-se como agente da situao. Portanto, a relao , acima de tudo,de compromisso e no de ajustamento (NAFFAH NETO, 1997).

    [...] se a espontaneidade existe em conformidade com o momento

    presente, se o corpo est sempre inserido no atual, formandouma continuidade indivisa de sentido com o mundo que ocerca, porque ele uma abertura, no s ao espao, mas temporalidade, durao. E se a ao espontnea no repeteo passado, no um produto de sua histria, por que ela um esforo para super-la, de recuper-la e de transform-laconforme a situao atual; ela um exerccio de liberdade. Nessesentido, viver no momento presente no signica no momentopuro o momento puro apenas uma abstrao mas ser capaz

    de recuperar o passado em funo do presente, reorganizar os

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    horizontes temporais em torno de um ncleo sempre presente

    [...]. (NAFFAH NETO, 1997, p. 60).As conservas culturais, caracterizadas pelas tradies de uma

    sociedade, como mitos, crenas, hbitos de linguagem, repetitivos emassicantes, que estruturam formas de ser, podem congurar-se comoum entrave continuidade de sentido sujeito-mundo, por negarem omovimento constante que marca essa relao (MESQUITA, 2000).

    Considerando a espontaneidade e a criatividade como elementosconstitutivos do humano, que possibilitam aos sujeitos se lanarem nesseuxo contnuo que marca seu existir, o psicodrama auxilia atravs daao ldica do jogo de papis a retomada da espontaneidade enquanto

    prontido para o ato e a criatividade, enquanto ao no mundo e em si,sob o olhar do outro, que proporciona a dimenso do social, do cultural,do compartilhamento, do contextualizado (MESQUITA, 2000).

    A catarse de integrao, pice desse processo, representa um momentono qual ocorre toda uma reorganizao no sentido de existir, oriunda daexpresso e da explicitao de uma estrutura oculta, desconhecida, mas

    presente [...] e cuja revelao produz uma nova sntese existencial

    (NAFFAH NETO, 1997, p. 98).SOBRE O TEMPO FUTURO

    O futuro outra dimenso do tempo teraputico destacada pelopsicodrama e negligenciada em outras formulaes (FOX, 2002).

    Possibilitar que o paciente imagine seu futuro, mobilizado por suasfantasias, desejos e esperanas ou faa uma representao dramtica deseus projetos mais importantes, levando-o, a valorizar o que pode ocorrer, dar-lhe poder (CRELIER, 1993).

    No cenrio psicodramtico, a nfase para o presente com apossibilidade de abertura para o novo. No importa somente revelaodo passado. Essa perspectiva um convite comunicao transformadora, uma tentativa de desintelectualizar e oportunizar um contato maisverdadeiro, afetivo (FONSECA, 2008).

    O ESPAO TERAPUTICOO conceito de espao ganhou pouco destaque nas psicoterapias,

    novamente no semntica ou psicologicamente, mas como parte do

    processo teraputico. A centralizao na linguagem coaduna para tornar

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    secundria a rea do setting que no est diretamente ligada fala e

    escuta (FOX, 2002).Para Anzieu (1961), no psicodrama o homem est naquilo que faz e

    no no que oculta. Centralizado na ao, o psicodrama procura criar umaterapia do espao, h uma busca do espao concreto vivido, faz-se questode obter, quando no setting, uma descrio e uma delimitao do paciente,uma concretizao do espao no qual a cena deve ser representada,suas dimenses, os objetos que a conguram, suas distncias e seurelacionamento com esses elementos. Logo, com seu envolvimento, oespao descrito e suas conguraes tornam-se parmetro para todo o

    setting(FOX, 2002).

    A REALIDADEA terceira modalidade universal enfatizada pelo psicodrama, a

    realidade, uma tentativa de superar o abstrato, tomar a realidade da vidacotidiana em si mesma como possvel de concretizao direta nosetting.Possibilita na situao teraputica que a realidade possa ser experimentada,simulada, com a nalidade de desenvolver e expandir formas de ao etomar contato com suas possveis consequncias (FOX, 2002).

    Entretanto, Moreno vai alm. No psicodrama, o paciente convidadoa compartilhar seu mundo privado, a dar vida, a concretiz-lo, noimporta quanto seja idiossincrtico: validando assim sua forma deexpresso e relao com o mundo. Criticada por estimular as fantasiasdo paciente, a prtica moreniana respondia que no era negando o outroque abriramos caminho para o progresso teraputico, conrmando-o,daramos o primeiro passo para um encontro signicativo, sem o qualnenhum xito seria possvel (FOX, 2002).

    Inspirado no conceito de surplus value, utilizado por Marx (1979),indicando os ganhos adicionais do trabalho apropriados pelo capitalista,Moreno, segundo Fox (2002), criou um termo anlogo, o conceito derealidade suplementar. Em contexto teraputico, trata-se de lanar mo de

    procedimentos e tcnicas (instrumentos suplementares) que possibilitemao paciente explicitar e acessar determinadas dimenses ocultas ou nototalmente experimentadas ou expressas (surplus reality).

    A inverso de papis uma das tcnicas de realidade suplementarmais utilizada no psicodrama; nela, por exemplo, cnjuges podero

    assumir, a partir da inverso, o lugar do outro, o marido no papel da

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    esposa e a esposa no papel do companheiro, no uma inverso apenas

    nominal, mas uma experincia profunda do outro, capaz de possibilitaro conhecimento de sentimentos e padres de comportamento at entodesconhecidos (FOX, 2002).

    Assim, a noo de realidade no psicodrama traz o sujeito como seuconstrutor atravs da ao no mundo e signicada atravs do outro, em ummovimento que implica interao. A realidade construda por intermdiodo ldico, que se concretiza pela ao de representar, todavia, representarenquanto ao dramtica e no como epifenmeno, ou seja, algo que estno lugar de outra coisa. Nesse movimento, o sujeito estar implicado

    integralmente no seu fazer, seja pela palavra, pelo sentir, pelo gestual docorpo, pela expressividade plstica, assim como o olhar do outro atravsdo encontro, do compartilhar (MESQUITA, 2000, p. 37).

    O COSMOA conceituao sobre o cosmo uma tentativa, do ponto de vista

    epistemolgico, de superar a dicotomia nas formulaes psicolgicase loscas, que ora sublinham o indivduo e colocam o grupo comoepifenmeno, ora com holofotes para o homem social, desprezando a

    complexidade do sujeito (FOX, 2002).Suas formulaes sobre o cosmo, quais sejam, uma reexo sobre o

    lugar do sujeito no mundo diante de seu processo de nascimento, criao,desenvolvimento, sexo e morte, tm ligaes diretas com sua fase mstica.Crtico de concepes que apregoavam uma relao vertical, hierrquica,distante de Deus, Moreno concebia uma relao horizontal, prxima, queno acentua a fragilidade do ser humano, mas, pelo contrrio, lembra-o deseu poder, a criatividade, a ao transformadora (FONSECA, 2008).

    De certa maneira, essas concepes levam Moreno ao estudo dasmicrossociedades, destacando a dinmica dos pequenos grupos, poisneles os sujeitos no estariam diludos, sem rostos, como em um contextosocial amplo e, ao mesmo tempo, no estariam alheios a esse contexto,fora de sua dimenso maior (FONSECA, 2008).

    Em suas implicaes teraputicas, a cosmodinmica referendaos indivduos como sujeitos e no como objetos em suas relaes,marca um elemento comum ao mundo psicodramtico: a possibilidadetransformadora, a qual aliada ao ldico, espontaneidade, em um

    espao concreto que sublinha o tempo presente, em que sua fantasia

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    no rechaada, empodera os sujeitos, permite-lhes caminhar frente ao

    inexorvel (FOX, 2002).No h morte no psicodrama. O no nascido e o morto adquiremvida no palco [...] Uma mulher que gostaria de ter nascidohomem pode represent-lo [...] e assim corrigir as injustias douniverso, como ela as percebe. Em situao inversa, um homempode representar uma mulher. Um velho pode representar umacriana e corrigir dessa forma, a perda da infncia ou experimentara infncia que ele sente que nunca teve. Anatomia, siologia ebiologia no contam. O que importa a expanso do homem em

    relao s necessidades e s fantasias que ele tem a respeito de simesmo. Ele se torna o senhor de sua anatomia e siologia, em vezde servo (MORENO, 1966, citado por FOX, 2002, p.41).

    Dessa forma, Moreno expressa sua crena no poder criador dafantasia e da imaginao, capaz de revelar, pelo prprio movimento arealidade da qual testemunha e transcend-la nesse mesmo movimento(NAFFAH NETO, 1997).

    Assim, o lado csmico do ser humano em Moreno no , portanto,

    sua coincidncia tanto mais perfeita ou tanto mais completa comouma Totalidade Divina, mas sua capacidade de se lanar nessemovimento de autossuperao innito, esse sem-m que o prprioDeus moreniano (p. 88), uma abertura, um vir a ser que no instauranenhuma positividade, movimento destitudo de atributos, pois emsi a superao contnua de qualquer um deles com que se tencionenomin-lo (NAFFAH NETO, 1997).

    BASES PSICODRAMTICAS: MATRIZ DE

    IDENTIDADE E TEORIA DE PAPISO espao simblico, fsico e afetivo formado pela inter-relao do bebe de seus cuidadores, que marca o incio do processo de desenvolvimentohumano, descrito por Moreno como matriz de identidade. caracterizada

    por trs momentos: duplo, espelho e inverso,no qual o sujeito vai deum universo indiferenciado, csmico, passando ao reconhecimento doEU-TU, a diferenciao entre fantasia e realidade com a formao da

    brecha, por m, vem a concretizar a capacidade de uma relao humanade reciprocidade e mutualidade com a inverso de papis, ponto alto do

    desenvolvimento do processo tlico (MORENO, 1975/2008).

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    na matriz de identidade que tambm acontece o incio do processo de

    desenvolvimento de papis. Trs tipos bsicos so enumerados por Moreno(1975/2008), os psicossomticos, os sociais e os psicodramticos.

    Os papis psicossomticos denem basicamente as funes biolgicasda espcie, contudo, no como mero automatismo siolgico, pois noso totalmente estruturados por modelos logenticos, mas exigem certadose de improvisao e espontaneidade em sua congurao de esquemasde ao (NAFFAH NETO, 1997).

    Os papis psicodramticos definidos em alguns textos como aexpresso do mundo da fantasia e da imaginao, contrapostos aos

    papis sociais, designativos dos papis da realidade, das relaes sociais,denem, segundo Naffah Neto (1997), exatamente a emergncia do

    potencial criativo do sujeito, e como tal a concretizao da imaginaocriadora possibilitada e catalisada pela espontaneidade (p. 211).

    Portanto, os papis psicodramticos, antes de uma oposio aos papissociais, seriam a expresso de uma nova sntese entre imaginao e ao,marcando o m da clivagem entre sujeito-mundo, a retomada do sujeitocomo existncia una (NAFFAH NETO, 1997, p. 212).

    PANORAMA DA CLNICA PSICODRAMTICAOriginalmente criado com uma perspectiva de trabalho em grupo, o

    psicodrama foi ganhando outras roupagens e se forticou na psicoterapiabipessoal, (terapeuta-paciente) e individual (terapeuta-ego auxiliar-paciente). Contudo, a falta de aval de Moreno para esse tipo de terapialeva o psicodramatista a uma espcie de angstia em seusettingindividual(FONSECA, 2000).

    Essa angstia , sobretudo, tcnica, uma vez que a riqueza da produo

    moreniana e seu manancial de manejos teraputicos so desenvolvidos comvistas ao trabalho grupal, e nele que a ao, caracterstica fundamentaldo psicodrama, se desenrola facilmente (CUKIER, 1992).

    Moreno estava demasiadamente comprometido com um enfrentamento psicanlise, a qual considerava um mtodo de trabalho avesso a sua

    proposta. Essa posio no o permitia cogitar, quanto mais avalizar umaproposta de psicodrama individual ou bipessoal (CUKIER, 1992).

    Mais ou menos confortveis em seu processo de criao no e sobre

    o enquadre de sua atuao nosetting, os psicodramatistas no se furtam

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    a agregar novas formas de atuao. So assim as propostas do prprio

    Fonseca (1973) e (2000) com o uso de plaquetas e anis para a construode imagens simblicas, a psicoterapia da relao e o psicodrama interno, utilizao de almofadas em Bustos (1975) e Cukier (1992), a propostade Kaufman (1978) com o psicodrama com brinquedos e a dramatizaoatravs de desenhos, apresentada por Altenfelder Silva Filho (1981).

    Todos, contudo, procuram guardar a diretriz moreniana de tomar avida como parmetro para o setting, em sua dimenso de tempo, espao,realidade e cosmo, da ao ldica, sob uma noo de desenvolvimentohumano prospectiva.

    MTODOTrabalhou-se com o mtodo psicodramtico de J. L. Moreno, isto

    , com a ao ldica do jogo de papis visando o desenvolvimento daespontaneidade e da criatividade, ou seja, de novos sentidos na relaosujeito-mundo (MESQUITA, 2000).

    Contudo, o mtodo moreniano congura-se como um fundamentopara a construo psicoteraputica e no como elemento rigidamenteestruturado, uma vez que a expresso/ esttica/ dinmica da clnica se

    d, de fato, atravs da relao entre terapeuta e cliente.Cinco elementos compem o mtodo: o palco/tapete, que traz a

    marcao de realidade suplementar (como se); o protagonista/clienteconvidado a expressar livremente seu drama; o diretor/terapeuta,responsvel por transformar em ao dramtica a expresso do sujeito,acolhendo-o e/ou desaando-o, criando, refutando e recriando hipteses;os egos auxiliares, extenses do sujeito, que representam elementos reaisou imaginrios de seu drama vital, funo assumida pelo terapeuta na

    psicoterapia bipessoal; e a plateia/grupo que traz a dimenso do social

    (FOX, 2002).A construo das informaes e o entrelaamento/reexo teoria e

    prtica, ambos, presentes em todo o processo de superviso de estgio,foram feitos a partir de estudo de caso nico, de uma terapia bipessoal.

    A participante foi selecionada a partir dos pronturios de triagem daclnica-escola de Psicologia da PUC-GO (CEPSI), seguindo propostainicial de atendimento de adolescentes e adultos jovens.

    As sesses foram realizadas em uma sala de atendimento, que

    continha uma mesa com quatro cadeiras, um armrio, uma mesa pequena,

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    colchonetes, um tapete grande com almofadas de diferentes cores e

    tamanhos, no perodo de maro a dezembro de 2010, em um total de 26sesses, sendo uma sesso semanal, com durao de duas horas.

    CLIENTEClara (nome ctcio), sexo feminino, 21 anos, estudante universitria,

    classe mdia. Clara mora com os pais, o irmo mais velho e a av maternaem Goinia. Chegou ao CESPI com queixa de baixa autoestima,relacionando sua tosse e alergia constantes ao estresse no trabalho e sdvidas quanto a sua formao e carreira prossional.

    Ela est no ltimo perodo de seu curso. talentosa, e obtevepremiaes acadmicas e trabalhos selecionados para importantescongressos de sua rea.

    Tem interesse por arte, teatro, dana, msica e cinema, e participa deatividades como ioga, teatro, pilates e academia.

    PROCEDIMENTOSA sesso psicodramtica dividida em trs etapas: o aquecimento, a

    dramatizao e o compartilhar (MORENO, 1975/2008).No aquecimento (warming up) trabalha-se com a ideia de

    aleatoriedade, atravs de jogos que envolvem a linguagem verbal, docorpo e da imaginao (MESQUITA, 2000).

    Subdivide-se em dois momentos, o aquecimento inespecco: noqual se busca a temtica do encontro, a via objetiva de construo desentido da relao sujeito-mundo; e o aquecimento especco que marcaa transio dramatizao e explora atravs de processos tcnicos atemtica emergente, com a preparao do protagonista para o desempenho

    dos papis implicados nas cenas dramticas (NAFFAH NETO, 1997).

    Na dramatizao. alguma situao j adquiriu signicado para oprotagonista e o grupo. Sua funo reconstruir sentidos, recriando,atravs da ao espontnea, papis rigidamente desempenhados(NAFFAH NETO, 1997).

    O compartilhar, oushering, busca contextualizar a situao, trazer adimenso do social atravs da troca, as impresses e as reexes sobrea cena dramatizada. parte signicativa do processo de gerar novos

    sentidos (MESQUITA, 2000).

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    RESULTADOS E DISCUSSOCONTEXTUALIZANDO O PROCESSO PSICOTERAPUTICO

    No incio de seu processo psicoteraputico, as referncias de Claraao irmo surgiam sempre em expresses positivas como articulado,seguro, pra cima, bem humorado, caractersticas contrapostass que ela vinha apresentando, insegurana, estresse, irritao,indisposio. Se, por um lado, em algumas sesses o irmo representavaum exemplo a ser seguido, um smbolo de segurana, por outro, em outrassesses, Clara revivia cenas em que procurava sustentar suas diferenas

    perante seu irmo. Assim, em tomadas de papel, surgiam discusses,por exemplo, sobre estilo de msica, projetos de vida, escolha da rdio,do lugar para sair.

    Ele ocupava na dinmica familiar, segundo Clara, um espaoprivilegiado, com maior autonomia, como usar o carro, dormir fora eter menos responsabilidades com atividades de casa, como lavar loua,arrumar o quarto etc. Seu comportamento era de certa forma, exaltado

    pelos pais, enquanto o de Clara era contestado.

    No recorte seguinte, Clara chegou terapia se dizendo ansiosa para

    contar um sonho muito estranho tido na noite anterior. O terapeutaprocurou acolh-la, demonstrando interesse e props ento que em vezde cont-lo pudessem represent-lo no como se fosse, o que Claraconsentiu.

    Com a temtica j explicitada, a sesso transcorreu com a utilizaoda tcnica do onirodrama. O aquecimento inespecco foi realizadoatravs do caminhar e de consignas do terapeuta para que a clientedeixasse surgir imagens do dia que antecedeu o sonho, do acordar ato momento de dormir. O aquecimento especco se fez na montagemdo quarto, no deitar-se para dormir e fazer uma imagem do sonho, paraento levantar-se e iniciar a representao onrica...

    RECORTE DA SESSO

    Participantes:Terapeuta (T) e a cliente Clara (C).

    T:Onde voc est agora?

    C:Estou prxima da minha famlia, aqui (aponta com o dedo) esto elese um amigo de escola, gordinho, no sei o que faz aqui. Logo ali passa

    o rio, meu irmo est l no meio em cima de uma pedra dizendo alguma

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    coisa, uma palestra. Ao lado dele h um buraco negro, no sei explicar ao

    certo, um redemoinho na gua... Minha me parece um pouco apreensiva,acho que pelo lugar onde o Jlio (irmo) est, meu pai presta ateno eo gordinho, no consigo lembrar o nome dele, tambm.

    T:O que diz seu irmo?

    C:Eu no entendo......eu no ligo para o que ele esta dizendo. Talheia.Meus pais esto ouvindo, esto olhando para ele.

    T:Escolha algum na margem do rio para assumir a posio.

    C:Minha me (indo para posio da me).

    T:Ol, Dona Sara. Como vai?

    C:(no papel da me, Sara): Estou preocupada com o Jlio ali naquelelugar.

    T:Quer falar alguma coisa para ele?

    C (no papel da me): Toma cuidado meu lho!...

    T:O que ele est fazendo, por que est ali?

    C(no papel da me): Ele esta no lugar dele mesmo. Fico preocupada,mas o Jlio assim, ele enfrenta as coisas.

    T:E a Clara, como ?

    C(no papel da me): A Clara diferente.

    T:Sim, so pessoas diferentes. Como a senhora os percebe?

    C(no papel da me): O Jlio chega num lugar conversa com todo mundo,cheio de brincadeiras, piadinhas, gosta de sair. A Clara j passa muitotempo no quarto estudando, mas agora ela est fazendo terapia.

    T:. O que a senhora espera que ela consiga na terapia?

    C(no papel da me): Ficar mais calma com as coisas...

    T:Ok. Sobre o que o Jlio est falando?

    C(no papel da me): Acho que deve ser alguma coisa sobre poltica,ele faz parte, sabe.

    T:Certo. Gostaria de dizer mais alguma coisa?

    C(no papel da me): No, carei aqui atenta a ele.

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    T: Volte para sua posio Clara.

    C:(voltando para sua posio).T:Agora poderia trocar de posio com seu irmo?

    C:(faz que sim com a cabea e assume a posio do irmo).

    T:O que voc faz a?

    C (no papel do irmo): Estou discursando para eles. Sabe, eu sempretive facilidade para falar, articular, motivar as pessoas.

    T:Deve ser bom ter essas caractersticas. Sobre o que voc fala?

    C(no papel do irmo): Falo sobre muitas coisas, mas o importante como falar sabe.

    T:Bem, como voc chegou at a? Parece difcil, e sua famlia est dooutro lado.

    C(no papel do irmo): No sei bem, mas no tenho muito medo, achoque no seria problema chegar aqui.

    T:Ah, continue falando ento.

    C (no papel do irmo): (gesticula, como se discursasse, mas apenasbalbucia, abrindo e fechando a boca).

    T:Ok. Volte para seu lugar, Clara.

    C:(voltando para seu lugar).

    Seguiram-se outras tomadas de papis, como o do pai, o do gordinhoe o do buraco negro, para explorar outros aspectos da cena, contudo,suprimidos nessa exposio por no se mostrarem relevantes.

    T:O que acontece agora?C:(olhando para a posio do irmo).

    T:Pense alto.

    C: por que... meu irmo no tem a idade de hoje... ele ali apenas ummenino... agora que estou percebendo.

    T:Um menino? Quantos anos ele tem?

    C:Ele deve ter uns oito anos, mais ou menos. Ham?! O Jlio pulou

    no buraco negro e desapareceu. Minha me e meu pai esto muito

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    preocupados, o gordinho est tentando ajudar. Acho que por isso que

    ele est aqui, na escola ele sempre ajudava, era forte.T:O que voc faz?

    C:No fao nada, estranho, mas...

    T: estranho voc no estar ajudando?

    C:, mas, foi ele quem pulou, deve saber o que est fazendo. Temos derespeitar a escolha dele.

    T:Voc est respeitando a escolha dele?

    C:. Isso mesmo!T:Gostaria de mudar alguma coisa, fazer de maneira diferente? Aquivoc pode modicar.

    C:... no, no. isso mesmo.

    T:Como continua?

    C:Agora estou em outro lugar. No sof da minha casa.

    T: Vamos tentar representar aqui. Tente reconstituir e v dizendo,

    pensando alto.C:Pode usar isso? (aponta para o colchonete no canto da sala).

    T:Sim, o que voc quiser.

    Clara vai montando a cena e comentando sobre cada objeto e pessoae, rapidamente os contornos tomam forma. A sala de sua casa, no sofela e o pai conversam e assistem TV, sua me faz algo na cozinha.

    T:Ok. Que horas so?

    C: tarde, por volta de 23 horas. Estamos assistindo a algum programaidiota, conversando e, volta e meia, minha me participa da conversa,l da cozinha mesmo.

    T:O que se segue?

    C:O telefone est tocando. Vou atender (caminhando em direo representao da mesinha de telefone, ao lado do sof). Minha me jveio da cozinha e cou olhando, um pouco tensa. Al. Como? algum dizendo que tem uma notcia sria.

    T:Fale com ele.

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    C (ao telefone): Touvindo, pode falar. O qu? (faz expresso de

    susto e tristeza, desliga o telefone, olha para representao do pai e dame). Me,... pai,... o Pedrinho (primo de Clara) morreu... T: O queacontece?

    C:Minha me est transtornada, eu tambm choro muito, meu pai vaiao telefone ligar para meu tio, termina assim...

    T:Clara, vem pra c.

    C:(saindo do espao dramtico).

    T:Consegue visualizar a cena?

    C:(olhando para a disposio dos objetos como representao, faz quesim com a cabea).

    T:Quer mudar alguma coisa, terminar de outra forma?

    C:... no. Acho que no seria eu quem atenderia ao telefone, acho queseria meu pai. No sei se conseguiria dar essa notcia.

    T:Gostaria de mudar?

    C:No, o que estou pensando que t estranho. O Pedro meu primo,

    tm 11 anos, eu acho (fala olhando para a representao da cena), quasea mesma idade do meu irmo, no meio do rio... ele passou uns dias com agente, mas no isso. esquisito... parece que no foi ele quem morreu...acho que no foi ele quem morreu...

    T:Quem morreu?

    C:Quem morreu foi meu irmo!... nossa! Foi o Jlio quem morreu! Noera a famlia do meu tio que deveria receber essa notcia, era a nossafamlia, a notcia era para nossa famlia, para avisar meus pais que meu

    irmo morreu...A sesso segue com o compartilhar, as impresses de Clara sobre a

    representao onrica e os sentimentos advindos.

    UMA RELEITURA SOB OS CONCEITOS DE TEMPO,ESPAO, REALIDADE E COSMO

    Tempo Presente

    T:Onde voc est agora?

    Da proposta inicial de Clara, de uma narrativa do sonho ocorrido na noite

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    anterior, foi sugerida a dramatizao, no aqui agora, enfatizando o tempo

    presente, como se o sonho fosse vivido nesse instante. Contudo, o que issorepresenta? No seria mero jogar de verbos com pouco signicado?

    A nfase no tempo presente com abertura para o novo relacionada noo moreniana dos processos de sade e adoecimento. Valorizaro presente/futuro est intimamente ligado proposta teraputica

    psicodramtica de aliana com a sade, pois implica uma consideraodo sujeito, suas possibilidades, sem se prender decifrao de um nexocausal pretrito e linear ligado queixa e ao sintoma.

    Assim o cliente/protagonista v-se com recursos para caminharda condio de narrador distante/objeto condio de autor/sujeitoimplicado no processo de criao e recriao de si, com a possibilidadede construo de novas narrativas, ampliando os processos perceptivose gerando novos sentidos na relao sujeito-mundo.

    A ao tem parte fundamental nesse processo. Com ela, o sujeitoprecisa se posicionar em seu espao, inserir-se corporalmente, organizar erecriar as cenas, alm disso, a ao deixa implcita a ideia de movimentoe transformao constantes.

    O ESPAO TERAPUTICO

    C: Estou prxima da minha famlia, aqui (aponta com o dedo) estoeles e um amigo de escola, gordinho, no sei o que faz aqui. Logo ali

    passa o rio, meu irmo est l no meio em cima de uma pedra dizendoalguma coisa, uma palestra.

    Com o processo de aquecimento, o sujeito tende a abrir-se prpriasituao e deixa-se penetrar por ela, em uma tentativa de apreenderseu movimento e posicionar-se em relao a ele. Entre seu corpo e a

    situao forma-se uma rede de signicaes, todos os seus sentidos,cada segmento do seu corpo passam a se articular e rearticular em umatotalidade expressiva (NAFFAH NETO, 1997).

    Aquecido, o sujeito constitui osetting, marca suas dimenses e seuselementos, suas cores, seu clima, refazendo o espao concreto vivido.

    Com essa perspectiva, o psicodrama promove uma espcie dedemocratizao do espao teraputico, pois sua prtica no requeradornos e moblias especiais, seu lugar, lembrando Moreno, pode ser

    um jardim, uma praa, um campo de refugiados, o salo da comunidade,

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    seu lugar, mais uma vez sublinhando o empoderamento dos indivduos,

    denido pelos sujeitos.A REALIDADE

    C(ao telefone): Touvindo, pode falar. O qu? (faz expresso de sustoe tristeza, desliga o telefone, olha para representao do pai e da me).Me... pai... o Pedrinho (primo de Clara) morreu...

    O psicodrama contrape-se a uma concepo de realidade objetiva,como verdade essencial e universal, estruturadas em uma lgica nalistade causalidade. No bojo dessa noo, a realidade independe do sujeito e

    da linguagem. O conhecimento uma representao correta, uma espciede cpia da realidade (MESQUITA, 2000).

    Nessa perspectiva, quanto maior o nmero de dados, maispossibilidades de universaliz-los, instaurando assim, um predomniode anlise quantitativa. Trata-se de uma concepo ahistrica,descontextualizada, pois funda uma dualidade sujeito/mundo objetivo,verdade universal/verdade singular (MESQUITA, 2000).

    Na proposta psicodramtica, ao contrrio, h uma particularizao,

    uma valorizao da forma como o sujeito constitui sua realidade, poisno supe uma realidade em si, destituda da participao do sujeito(MESQUITA, 2000).

    O sujeito encorajado a vivenciar seu sonho, sua fantasia e seu delrio,pois estes no se conguram como uma anttese da realidade, eles so,antes, uma faceta de sua forma de relao com o mundo.

    Nesse sentido, o como se e o carpete ou tablado, que marcam autilizao de procedimentos e tcnicas de realidade suplementar com o

    jogo de papis e a ao ldica, antes de uma oposio entre fantasia erealidade, so uma suplica liberdade do sujeito, para que seus medos,as exigncias sociais, possam, ao menos em parte, ser postos de lado eque, desse modo, ele procure pela ao criativa e espontnea, atravs doolhar do outro, recriar-se, abrir-se a novas possibilidades de ao.

    A fantasia e a imaginao, aliadas ao poder criador e ao espontnea,uma vez que o sujeito desaado a todo o momento a responder prpriacriao, em sua constituio de cenrio e papis, revelam a trama daconstruo de sua realidade, a qual poder transcend-la pelo prprio

    movimento.

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    COSMO

    T:Agora poderia trocar de posio com seu irmo?C (no papel do irmo): Estou discursando para eles. Sabe, eu sempretive facilidade para falar, articular, motivar as pessoas.

    [...]

    T:Consegue visualizar a cena?

    C: (olhando para a disposio dos objetos como representao, faz quesim com a cabea).

    T:Quer mudar alguma coisa, terminar de outra forma?

    Herana de sua fase mstica, a antropologia moreniana marcadafundamentalmente por sua reexo expressa na cosmodinmica. Nela, oque salta, o que transcende o contexto, micro e macro histrico, individuo/sociedade, ou seja, a dimenso csmica, o movimento contnuo, e deledepreende-se a criao e a transformao constantes.

    Sua concepo no se pauta na construo de um constructo

    internalista, de onde induz uma energia criadora, to pouco exime ouofusca o sujeito em uma pesquisa sobre o contexto, ela se faz em umaanlise e prtica da relao sujeito-mundo diante dos processos denascimento, desenvolvimento, adoecimento, sexo e morte, ou seja, dosmarcos de mudana no ciclo vital.

    A clnica psicodramtica marcada por essa concepo de mudana,movimento e criao. Acolhe o sujeito, mas procura gerar uma tensofsica e conceitual que o leve a no negar esse uxo contnuo de

    transformao, tomando parte neste processo, ressignificando-se,construindo e desconstruindo-se em atos, em uma expresso de suarelao com o mundo.

    Mais uma vez, a proposta moreniana posicionar o indivduo comosujeito de seu processo de sade e, com auxlio das tcnicas de realidadesuplementar, na ao ldica, no ter pudor em desaar o sujeito a assumira posio/papel do outro implicado em sua constituio, ou conceder-lhe,no espao ldico, o poder de modicar/refazer sua histria, possibilitando

    ampliar sua dimenso perceptiva.

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    CONSIDERAES FINAISO paciente, designado em psicodrama de protagonista, surge

    como representante de um drama, no qual as mscaras j no mais sesustentam e a decadncia de toda uma forma de existir escancarada(NAFFAH NETO, 1997).

    Assim se apresenta Clara, clivada entre as exigncias sociais, nesteprimeiro momento da terapia representada pelo modelo de papel a elaoferecido (mscara), baseado no comportamento do irmo, e sua prpriamaneira de ser, que ainda se desenha em contornos pouco denidos.

    O processo de constituio, dialeticamente de si e do outro, nadiferenciao do EU e do TU, ocorre de maneira sofrida, pois tolhida emsua espontaneidade, ousa pouco, e ainda encontra pouca conrmao,em sua famlia, daquilo que consegue mostrar de si.

    Na ao dramtica que congrega em seu espao simblico asociedade, o grupo e o indivduo , assim como o verbal, o corporal, ocultural e o jogo, h possibilidade de o sujeito, antes eclipsado, emergire posicionar-se como ao transformadora.

    Na sesso de fechamento do primeiro semestre de 2010, ao assinar ocontrole de presena, Clara fez a seguinte pontuao:

    C:Nossa. Hum! Que tanto de sesses (contando).

    T:Acha que so muitas? (Eram 15 sesses).

    C:, porque aqui, olhando pra cha, parece que vejo o tempo concreto,sabe (deixa a cha sobre a mesa). Mas tudo bem, meu conceito de terapiamudou do comeo pra c.

    T:Ah ? O que mudou?

    C:Hum... antes, eu pensava que vinha aqui pra chorar, que seria pesado,falaramos de doena sabe e que voc tiraria os meus problemas. Agora,acho que meio um processo.

    T:E como ser meio um processo?

    C: bom. Porque posso chorar, posso rir, eu gosto das dinmicas (olhandopara o carpete)... eu nem sei bem por que, mas eu estou melhor.

    A proposta moreniana guarda formulaes sobre o tempo, o espao,

    a realidade e o cosmo na psicoterapia pouco exploradas em outras

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    formulaes. So contribuies que tm em seu bojo uma concepo

    de desenvolvimento humano prospectivo, reveladas em sua crenano poder criador e a ao transformadora, que provm de uma prticacomprometida com a emancipao do sujeito, atravs do jogo de papise do ldico.

    Retomando a reexo do incio deste texto, o Psicodrama, por queno? um exemplo de como o debate acadmico ganhar, deixando a

    polarizao e organizando-se em uma multidimensionalidade diante dosprocessos humanos, da formao em psicologia e da construo de suas

    propostas teraputicas.

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