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1 O QUE NOS FOI PERMITIDO VER? A EXPERIÊNCIA FÍLMICA DO CLUBE DE CINEMA DE ASSIS E O CINEMA BRASILEIRO EM TEMPOS DE CENSURA Priscila Constantino Sales 1 RESUMO Este texto tem como objetivo elaborar uma análise acerca da experiência fílmica empreendida pelo Clube de Cinema de Assis no que diz respeito ao cinema brasileiro, por meio dos rastros encontrados nos arquivos preservados do próprio cineclube. Através dos textos preparados para os debates e a programação, pretende-se compreender como se efetivou um dos pilares do movimento cineclubista: fomentar público para o cinema brasileiro. Fundado em 1966 por professores, funcionários e alunos da FCL/Assis desenvolveu suas atividades até 1983. Inserido em um contexto conflituoso da história do Brasil decorrente do regime militar (1964- 1985), das crescentes manifestações populares, das mudanças ocorridas dentro do espaço universitário, da renovação do campo artístico, do engajamento político e da resistência cultural teve um papel de destaque aglutinando em seu entorno um público ávido a fazer valer o direito à liberdade de expressão, estreitando de forma peculiar a cultura, o cinema e a política. Com a finalidade de promover e estimular o gosto pela arte cinematográfica, promovia projeções, debates, mostras, cursos, ciclos de cinema, entre outras atividades dentro da faculdade e no cinema da cidade, sendo corriqueira a exibição de filmes ou ciclos de cinema brasileiro. Alinhado ao movimento cineclubista Federações, Conselhos e Jornadas participou tanto do projeto articulado em torno do desenvolvimento da cultura cinematográfica como sofreu as retaliações que o momento histórico lhe impunha. Trata-se de um esforço analítico que tem como finalidade contribuir para a compreensão da relação entre experiência fílmica, o cineclube e as problemáticas referentes à exibição do cinema brasileiro, que tanto envolve a censura como o seu precário mercado cinematográfico. PALAVRAS-CHAVE: Cineclubismo. Cinema Brasileiro. Resistência Cultural. Censura. Ditadura militar. A história do cineclubismo brasileiro vem ganhando contornos dentro da pesquisa histórica. Apesar da problemática da documentação dispersa e fragmentada, conforme relatada em 2008 na XXVII Jornada Nacional de Cineclubes, no grupo de trabalho de 1 Mestranda em História pela UNESP/Assis. E-mail: [email protected]. A pesquisa conta com o apoio financeiro processo 2013/27093-9, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). “As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP”.

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1

O QUE NOS FOI PERMITIDO VER? A EXPERIÊNCIA FÍLMICA DO CLUBE DE

CINEMA DE ASSIS E O CINEMA BRASILEIRO EM TEMPOS DE CENSURA

Priscila Constantino Sales1

RESUMO

Este texto tem como objetivo elaborar uma análise acerca da experiência fílmica empreendida

pelo Clube de Cinema de Assis no que diz respeito ao cinema brasileiro, por meio dos rastros

encontrados nos arquivos preservados do próprio cineclube. Através dos textos preparados

para os debates e a programação, pretende-se compreender como se efetivou um dos pilares

do movimento cineclubista: fomentar público para o cinema brasileiro. Fundado em 1966 por

professores, funcionários e alunos da FCL/Assis desenvolveu suas atividades até 1983.

Inserido em um contexto conflituoso da história do Brasil decorrente do regime militar (1964-

1985), das crescentes manifestações populares, das mudanças ocorridas dentro do espaço

universitário, da renovação do campo artístico, do engajamento político e da resistência

cultural teve um papel de destaque aglutinando em seu entorno um público ávido a fazer valer

o direito à liberdade de expressão, estreitando de forma peculiar a cultura, o cinema e a

política. Com a finalidade de promover e estimular o gosto pela arte cinematográfica,

promovia projeções, debates, mostras, cursos, ciclos de cinema, entre outras atividades dentro

da faculdade e no cinema da cidade, sendo corriqueira a exibição de filmes ou ciclos de

cinema brasileiro. Alinhado ao movimento cineclubista – Federações, Conselhos e Jornadas –

participou tanto do projeto articulado em torno do desenvolvimento da cultura

cinematográfica como sofreu as retaliações que o momento histórico lhe impunha. Trata-se de

um esforço analítico que tem como finalidade contribuir para a compreensão da relação entre

experiência fílmica, o cineclube e as problemáticas referentes à exibição do cinema brasileiro,

que tanto envolve a censura como o seu precário mercado cinematográfico.

PALAVRAS-CHAVE: Cineclubismo. Cinema Brasileiro. Resistência Cultural. Censura.

Ditadura militar.

A história do cineclubismo brasileiro vem ganhando contornos dentro da pesquisa

histórica. Apesar da problemática da documentação dispersa e fragmentada, conforme

relatada em 2008 na XXVII Jornada Nacional de Cineclubes, no grupo de trabalho de

1Mestranda em História pela UNESP/Assis. E-mail: [email protected]. A pesquisa conta com o apoio

financeiro processo 2013/27093-9, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). “As

opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s)

autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP”.

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Memória e Comunicação, há “restrita existência de uma memória documentada e

sistematizada do movimento cineclubista”2, o que prejudica um levantamento sistemático de

suas atividades cujo início data oficialmente no Brasil de 1928 (GATTI, 2000, p.128).

Contudo, o estudo desta memória traz contribuições importantíssimas para a compreensão de

fatores relacionada ao binômio cinema/sociedade, visto que em seu entorno foi criado um

amplo debate e inúmeras praticas culturais que cumpriram papel importante para o

desenvolvimento da cultura cinematográfica e do próprio cinema brasileiro.

Por cineclube, entendemos a entidade nascida nos começo do século XX, em meio à

luta em defesa do cinema enquanto arte contra a nascente indústria cinematográfica. Tendo

como principais atividades a divulgação, pesquisa e debate do cinema, em seu

desenvolvimento histórico, também abarcou de forma aberta as questões culturais e políticas

da sociedade em diferentes conjunturas. Através de variados perfis, assumem diferentes

práticas conforme as sociedades em que se instalam.

No Brasil, teve sua origem ligada à intelectualidade, passando pelas atividades da

Igreja católica e pelo debate político durante a ditadura militar. Na cidade de Assis, nasceu em

1965, da articulação entre professores, funcionários e alunos da FCL/Assis - na época ainda

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Assis (FAFIA)3 tendo suas atividades encerradas em

1983, e durante a sua existência manteve intenso diálogo entre a universidade e a comunidade

de Assis. Passou pelo debate cinematográfico, mas também se definiu como modelo

cineclubista que utiliza o cinema como veículo social.

Como podemos observar, o estudo do cineclube se pauta pelo estudo não apenas da

relação filme e história, mas também demanda uma análise das práticas em torno do cinema

como: circulação de idéias, sistemas visuais, lazer, mercado cinematográfico, censura,

produção, evolução técnica, linguagem cinematográfica, sociabilidade, a questão da

modernidade, circuitos de exibição, cineclubismo, etc. Tais questões pensam o filme para

2Documento disponível em: http://fernandospencer.com/wpcontent/uploads/2014/03/memoria_cineclube.pdf

3 Segundo Corrêa, os Institutos Isolados (Iiesesps) era o nome dado às escolas de ensino superior públicos

criados no Brasil a partir do início do século XX, que não estavam ligados a nenhuma universidade. Houve

posteriormente, a integração dos institutos Isolados em torno da Universidade Estadual Paulista "Júlio de

Mesquita Filho" – UNESP, em 1976. O Instituto Isolado de Assis integra a UNESP como Instituto de Letras,

História e Psicologia de Assis (ILHPA), posteriormente Faculdade de Ciências e Letras de Assis - FCL-Assis

(CORRÊA, 2006).

3

além da fonte, como parte de um campo visual e seus desdobramentos histórico, social e

cultural.

É dentro desta perspectiva que apontamos a importância dos Clubes de Cinema na

formação da cultura cinematográfica brasileira, pois para empreender suas atividades criaram

instituições, revistas, boletins, textos, práticas sociais ligadas à exibição e divulgação dos

filmes e rede de sociabilidade que permitiam as discussões e o desenvolvimento de projetos

culturais. Ou seja, um conjunto de práticas coletivas que permite entendermos o

desenvolvimento da percepção do cinema como manifestação cultural em oposição ao cinema

puramente comercial, “e passível de participação, influenciando as ações no meio político e

cultural em geral” (CORREA, JR. 2007, p. 52).

Dessa forma, este texto se escreve no estudo da memória do Clube de Cinema de

Assis4 por meio do acervo Fundo Clube de Cinema - FCL5, com referência entre 1965 e 1983,

constitui-se de catálogos, cartazes e sinopses de filmes, folhetins, recortes de jornais,

circulares, livros, revistas, textos para debate, estatuto, atas de reuniões, relatórios, recibos,

faturas, células de eleição, carta de repúdio à censura de exibição de filme. Como nos lembra

Leandro Karnal e Flavia Galli Tatsch “todo documento que chega ás mãos de uma analista é

um duplo milagre” (2013, p. 24), dessa forma, o encontro com este conjunto de documentos

nos permite vislumbrar a construção da história do Clube de Cinema de Assis mediante

diálogo entre o presente e o documento.

Para tanto, partimos da compreensão do cinema como parte viva da realidade social,

ou seja, como visualidade (MENESES, 2003). Trata-se de pensar o cinema dentro de um

campo de práticas que se relacionam em determinados contextos, elucidado como construção

simultânea na e pela sociedade. Tal abordagem nos permite compreender como foi possível a

formação, as atividades e as mudanças ocorridas em torno do cinema dentro do Clube de

Cinema de Assis, principalmente se levarmos em conta sua localização fora do centro de

produção e distribuição cinematográfica.

4Tratava-se de uma entidade da FCL de Assis. Era uma sociedade civil de caráter cultural – com sede e foro

jurídico na cidade de Assis – que se destinava a estimular o gosto pela arte cinematográfica entre seus associados

e o povo de Assis em geral (VOZ DA TERRA, 1966).

5 O acervo Fundo Clube de Cinema - FCL, constitui-se de onze caixas com atas e se encontram no Centro de

Documentação e Apoio a Pesquisa (CEDAP), localizado na UNESP de Assis, foi higienizado e teve sua

organização iniciada pelo projeto “Fragmentos da memória e rastro de uma identidade estudantil – UNESP

Assis/SP, 1958 - 2009”.

4

Dentro dos limites deste texto, buscaremos focar na experiência fílmica do Clube de

cinema de Assis em relação ao cinema brasileiro dentro do período de 1969 a 1974. Tendo em

vista que a defesa do cinema brasileiro foi e é uma das principais bandeiras do movimento

cineclubista buscaremos relacionar as principais conjunturas responsáveis pela

impedimento/efetivação deste programa: a censura e as ações do movimento para dinamizar a

distribuição e exibição dos filmes brasileiros. Tal periodização se justifica por se tratar tanto

do período de maior politização da censura quanto indicativo do desmantelamento das

entidades de cineclube no país.

O Clube de cinema de Assis e o movimento cineclubista

De acordo com André Gatti (GATTI, 2000, p.129), o pioneirismo do movimento no

Brasil se deu com o Cineclube Paredão, que em 1917 reunia um grupo de pessoas que

debatiam os filmes assistidos logo após as sessões dos cinemas Íris e Pátria do Rio de

Janeiro. Formalmente o surgimento do movimento cineclubistas brasileiro data de 13 de

junho de 1928, com a fundação do Chaplin Club no Rio de Janeiro. Ambas, de forma

particular, contribuíram para o nascimento do comprometimento com o cinema, em especial o

cinema brasileiro. É o início de um movimento que irá exercer papel importante para o

desenvolvimento da cultura cinematográfica brasileira.

As inovações tecnológicas e a renovação de signos de consumo operado pela indústria

cinematografia brasileira acabam por impor um cinema hegemonicamente importado.

Segundo Lisboa as atividades promovidas pelos cineclubistas na América Latina foram

responsáveis pela abertura de um intenso debate intelectual internacional sobre os impasses da

implantação de uma indústria cinematográfica com preocupações socioculturais, em países

com mercados onde a hegemonia da produção norte-americana já era preponderante

(LISBOA, 2007). Ou seja, discussão que destaca o cinema como produto cultural,

preocupados com a recepção no campo da cultura cinematográficos, e confiantes no projeto

de divulgação cinematográfica os cineclubes buscaram uma renovação no campo da recepção:

“Ao mesmo tempo em que propunha uma forma superior de recepção, o cineclube

reconhecia a condição coletiva do espetáculo cinematográfico ao tomar a forma

associativa como modelo de agrupamento. Considerando seus elevados ideais, os

cineclubes serão, invariavelmente, criados pelas elites intelectuais, desejosas de

constituir um espaço de recepção diferenciada”. (LUNARDELLI, 2000, p.28).

5

A década de 1950 e início de 1960 foram marcadas pela maturidade do movimento e

conseqüentemente a expansão dos cineclubes pelo país, momento em que surgem importantes

críticos de cinema e segundo André Gatti “a tendência de os cineclubes agregarem-se em

torno de entidades, como museus, escolas, faculdades” (2000, p. 129). É criado o Centro dos

Cineclubes paulistas e Federações de Cineclubes, ocorre a primeira Jornada de Cineclubes

Brasileiros (1959-1989), congresso que se tornará tradição sempre realizada em diferentes

regiões do país. Surge também neste período o Conselho Nacional de Cineclubes (CNC)6,

entidade representante do movimento cineclubista, que desenvolverá o importante papel ao

reunir em seu entorno os diversos modelos de entidade, como por exemplo, os cineclubes

universitários, de bairros, sindicatos, igreja.

Em um momento de expansão das práticas cineclubistas, é instaurado no Brasil o

regime militar (1964-1985) que paulatinamente irá desarticular as atividades cineclubistas,

movimento o qual busca se reorganizar a partir de 1972. Contudo, é com a VIII Jornada em

1974 que o movimento se reorganiza e é lançada a Carta Curitiba, que delineou as ações dos

cineclubes até a volta da democracia. Este documento tinha como principais proposta o

combate a censura e o engajamento dos cineclubes em prol do cinema brasileiro (GATTI,

2000, p.129), como podemos observar no item quatro da carta:

“Os participantes da VIII Jornada Nacional de Cineclubes, cientes da importância de

seu trabalho decisivamente criativo no âmbito da cinematografia e decididos a

contribuir para o processo de afirmação de cultura brasileira, exortam todos os

cineclubes a participar ativamente da defesa do cinema nacional, através da

aplicação das recomendações formuladas neste encontro e que passam a integrar esta

Carta de Princípios7.”

Neste momento os cineclubes voltam a se espalhar pelo país, contudo, segundo André

Gatti vão além das escolas e faculdades sendo criados também em sindicatos e associações,

iniciando um novo momento para o cineclubismo, o dos cineclubes politicamente engajados

(GATTI, 2000). Como bem observou a historiadora Rose Clair Matela (2008), este período é

marcado pela formação de novos sujeitos coletivos ligados aos problemas do cotidiano e pela

demarcação dos cineclubes como espaço público e alternativo, o que a autora nomeou de

6 Informações retiradas do site: http://cineclube.utopia.com.br/ acessado em 18/09/2014.

7 Informações retiradas do site: http://cineclube.utopia.com.br/ acessado em 19/09/2014.

6

experiências “instituintes”8. Apesar da problemática deste período - os cineclubes não estarem

focados especificamente na cultura cinematográfica como nos anos 50 - foi efetivado ações

importante para a circulação dos filmes brasileiros.

Os cineclubes vivenciavam constantes problemas para a locação de filmes, seja pela

falta de dinheiro para o aluguel, a falta de filmes na bitola 16 mm, ou ainda pela falta de

projetor em 35 mm por parte das entidades. Como bem coloca Flávio Rogério Rocha, esse

fato colocava muito dos cineclubes, principalmente os localizados fora do eixo Rio/São Paulo,

frente a algumas alternativas - buscar acordos com exibidores comerciais locais ou emprestar

filmes em 16 mm de embaixadas e consulados. Se a primeira opção acabava por deixar os

cineclubes dependentes da sala comercial, a segunda tinha boas chances de transformar os

cineclubes em instrumento de propaganda estrangeira (ROCHA, 2011).

Devido a esta problemática, a Carta Curitiba também conjeturou a criação de uma

distribuidora alternativa e centralizada pelo movimento, que forneceria filmes em 16 mm em

escala nacional. O curta-metragem também seria incorporado dentro das preocupações da

Dinafilmes, “pois sendo este um produto cultural quase sempre independente e fora dos

círculos oficiais, encontraria nos cineclubes um circuito para sua divulgação” (ROCHA, 2011,

p.86). A criação da distribuidora se efetivou em 1976 com a criação da Distribuidora Nacional

de Filmes – DINAFILMES - dentro do CNC. A Dinafilmes teve uma trajetória problemática

devido às constantes invasões e apreensões9 dos filmes pela Polícia Federal, como problemas

para sustentar financeiramente o chamado “mercado alternativo”. Contudo, com todos os

problemas e polêmicas a Dinafilmes de certa forma abasteceu os cineclubes durante a década

de 1970 como, por exemplo, as experiências com a distribuição dos filmes Passe Livre de

Oswaldo Caldeira e O Homem que Virou Suco, de João Batista de Andrade entre outras.

O Clube de Cinema, de Assis é fruto desse momento histórico, tem as primeiras

iniciativas em 1965, ou seja, um ano após o golpe de 1964, e é oficialmente fundado no dia 28

de outubro de 1966, momento em que a conjuntura histórica do Brasil irá paulatinamente

desmembrar o movimento cineclubista. Desenvolveu suas atividades até 1983, pouco antes no

novo desmanche do movimento decorrente da crise que dividiu os cineclubes entre os que se

mantinham com o formato 16 mm e os que optavam pelo caminho profissional do filme em

8 Rose Clair Matela entende por experiências instituintes, aquelas que se constituem em movimentos que surgem

em diferentes tempos e espaços engendrados por sujeitos históricos, envolvidos em ações coletivas, capazes de

trazer mudanças significativas/éticas no processo político, social e cultural que estão vivendo. (MATELA, 2008,

p. 20)

9 Assunto abordado na página 13 deste trabalho.

7

35 mm. A partir de 1984 os cineclubes atuam de forma isolada e como aponta André Gatti “a

“profissionalização” dos cineclubes fez com que essas entidades se descaracterizassem

completamente, perdendo os ideais básicos do cineclubismo” (GATTI, 2000, p. 130).

Pode-se observar que a trajetória do Clube de Cinema de Assis (1966 – 1983) insere-

se por completo dentro da história do regime militar brasileiro (1964-1985). Trata-se,

portanto, de um momento de crescentes manifestações populares contra o regime, das

mudanças ocorridas dentro do espaço universitário, da renovação do campo artístico, do

engajamento político e da resistência cultural (NAPOLITANO, 2011). Amparado pelo

contexto nacional e local, podemos vislumbrar o Clube de Cinema, com exceção dos seus

primeiros anos, como movimento engajado. Segundo Napolitano, a questão da arte engajada

no período dos anos 1960 tem influência direta para o campo cultural, o autor a coloca em

relação direta com a renovação da arte e a formação de um novo público. Trata-se de um

público que se formava a partir de um espaço compartilhado que viria a atingir objetivos

políticos em termos amplos do engajamento, trazendo transformações importantes para a

produção e apropriação cultural:

Podemos considerar que houve uma mudança estrutural na linguagem, que operou

não só a renovação do fazer musical e cinematográfico, mas também acabou por

constituir uma nova estrutura de recepção - um novo público – “jovem,

universitário, de esquerda” (NAPOLITANO, 2001, p. 104).

Segundo seu estatuto, o Clube de Cinema de Assis, tinha como finalidades “promover

e estimular o gosto pela arte cinematográfica entre os associados”. Para tanto, promovia

projeções cinematográficas, debates, mostras, cursos, ciclos de cinema, e manteve intenso

diálogo com as entidades de todo Brasil. Estas atividades muitas vezes eram realizadas em

parceria com a empresa Peduti10, que disponibilizava uma sala de cinema na cidade, o que

acaba por construir um diálogo entre o Clube de Cinema e a Universidade com a comunidade

assisense. Mostrando o papel desempenhado pela universidade nesse período, o da circulação

da cultura alternativa e progressista proporcionando, e tornando-se, espaços de vivência social

e cultural (CARMO, 2003, p. 136).

Nos arquivos do CEDAP, encontramos algumas destas atividades, como por exemplo: Curso

“O moderno cinema brasileiro” e “O cangaço e a realidade no Norte” com o crítico Jean Claude

Bernardet em 1967; conferência de Maurice Copovilla em 1975; palestra sobre o romance São

10Empresa Teatral Peduti (1927 – 1979), atuante no segmento cinematográfico na época áurea do cinema, com

salas de exibição em todo o interior de São Paulo, Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Na cidade de

Assis funcionava no atual Cinema FAC - pertencente à Fundação Assisense de Cultura (FAC).

8

Bernardo e o filme de Leon Hirszman em 1977, Plano de Interiorização do Cinema Cultural em

1978 11 , entre outras. Diante da dificuldade dos cineclubes, principalmente para as entidades

localizadas fora dos centros de distribuições 12 , o Clube de Cinema de Assis utilizava múltiplas

possibilidades para o aluguel dos filmes. Seu acervo aponta para constantes recorrências as

embaixadas e consulados, a distribuidoras comerciais, a Cinemateca, e em 1972 firma acordo

com o exibidor comercial Peduti.

Apesar do risco apontado acima - de dependência da sala comercial e instrumento de

propaganda estrangeira – uma análise atenta nas circulares trocadas pela agremiação e os

locatários de filmes, permite balizarmos que a recorrência a variadas formas de locar os filmes

e a posição muitas vezes firme dos dirigentes do Clube de Cinema de Assis possibilitaram, em

grande parte, programações autônomas. Não estamos aqui amenizando os problemas relativos

à programação enfrentados por esta entidade, mas em seu arquivo encontramos diversos

enfrentamentos com distribuidoras, com a empresa Peduti e consulados, seja por envio de

filmes errados, seja por negociação de programações, ou mesmo por divisão de bilheteria e

atraso do envio dos filmes.

É nesse período de lutas e resistência, que se inscrevem as práticas cineclubistas de

Assis, dentro da trajetória do Clube de Cinema de Assis podemos encontrar diversos

movimentos ao longo do tempo relativos a diversas temáticas. No que tange a exibição do

cinema brasileiro, podemos destacar que foi preocupação constante dentro de suas atividades

e debates, contudo, com discursos e ações variadas. Em um primeiro momento visualizamos

uma programação voltada para a discussão estética e social sobre os filmes brasileiros - por

exemplo, o convênio firmado com a Cinemateca em 1978 possibilitou que se dedicasse o

2°semestre ao Cinema Brasileiro com 31 aulas e palestras proferidas por Jean Claude

Bernardet e 30 filmes brasileiros entre longas e curtas-metragens13.

Já a partir da década de 1970, encontramos documentos que inscrevem o cinema

brasileiro em um discurso que destaca o papel dos cineclubes como agentes democratizadores

11 O Clube de Assis teve um papel importante de representante do Plano de Interiorização do Cinema Cultural

organizando os cursos realizados no decorrer do ano de 1978 na região do Vale do Paranapanema. Tal iniciativa

foi empreendida pela Federação Paulista de cineclubes com verba pleiteada junto a Secretaria de Cultura, tinha

intuito de fortalecer os cineclubes no interior e criar cineclubes nas cidades que não contavam com esta entidade. 12 Assis encontra-se a 400 km da capital São Paulo, com o índice populacional, no período da existência do

Clube de Cinema, em crescimento – 1960: 42.666; 1970: 57.220 e 1980: 67.357.

13 Informações encontradas no acervo Fundo Clube de Cinema – FCL nas Caixas 2 e 10.

9

da cultura e/ou como intervenção cultural. Destacamos uma circular 14 que convoca os

cineclubes a incluir no calendário da Federação Paulista o mês do cinema brasileiro

objetivando uma programação unificada e que declara luta aberta contra a dominação do

mercado pelo cinema estrangeiro:

“luta essa que se corporifica na questão da obrigatoriedade de exibição de um curta

metragem nacional junto a cada longa estrangeiro e na manutenção das conquistas já

alcançadas e sua ampliação, como os 133 dias15, entre outras. Os cineclubes se

constituem em agentes democratizadores da cultura pelo caráter de sua organização

e pela relação que mantém com seu público, distantes das injunções próprias ao

circuito comercial”

Tal declaração nos mostra um cineclube que olha para o cinema brasileiro de forma

engajada, exemplificada na palavra luta e na tentativa de organização ampla com discussões

em Assembléia para definição do filme, temas e textos, programação esta proposta para o mês

de setembro de 1978. Identificamos assim, dois momentos distintos do clube de cinema de

Assis para com o cinema nacional que dialogam em partes com o movimento cineclubista,

visto que foi a partir da retomada, após o recrudescimento da censura, que se costuma apontar

para o surgimento dos cineclubes politicamente engajados, que se uniram contra a censura e

em prol do cinema brasileiro.

Os mecanismos de censura no campo cinematográfico

Os estudos sobre a censura na Ditadura Militar brasileira ainda se encontram em

construção. Como aponta Carlos Fico (2002), as primeiras contribuições vieram, em sua

maioria dos estudos memorialísticos, dos textos produzidos pela imprensa, da falta de

documentação oficial e da problemática heurística da pesquisa histórica sobre a censura.

Longe de um “fetiche historicista pelo documento” a liberação de documentos inédita sobre a

Ditadura Militar tem trazido descobertas e revisão para estes estudos. Importante contribuição

tem sido “o esclarecimento das especificidades (e, muitas vezes, dos conflitos) dos diversos

“setores repressivos” do regime militar” (FICO, 2002, p. 2), que por vezes foram entendidos

numa relação homogênea.

14 Informações encontradas no acervo Fundo Clube de Cinema – FCL na Caixa 2. 15 Em 1978, a Concine edita a resolução número 23, que regulariza a exibição de 133 dias de filmes brasileiros

por ano nas salas de cinema (RAMOS & MIRANDA, 2000, p.223).

10

Segundo Leonor Souza Pinto, coordenadora do projeto Memória da Censura no

cinema Brasileiro 1964-198816, “a censura praticada no Brasil, de 1964 a 1988, não foi

apenas repressão localizada, mas mecanismo essencial para a estruturação e a sustentação do

regime militar” (PINTO, 2006, p.3). Neste momento a censura é reorganizada e centralizada

para atender o projeto políticos da Ditadura Militar.

Como bem nos mostra Miliandre Garcia em sua tese Ou vocês mudam ou acabam:

teatro e censura na Ditadura Militar (1964-1985), a existência de censura no Brasil não se

localiza apenas nos regimes de exceção, tendo uma longa trajetória que data do período

colonial “até chegar ao período republicano com a criação de órgãos especializados”

(GARCIA, 2008, p.12).

Para o assunto tratado neste trabalho, nos interessa mencionar a criação em 1945 do

órgão Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) com atuação até 1988. Justificada

pelo seu papel de controle moral dos meios de comunicação, a partir do golpe militar este

órgão passará por uma re-significação acrescida da censura política e subordinando o órgão à

Polícia Federal. Em sua trajetória “respondeu aos imperativos políticos dos governantes e

transitou de uma ação mais rigorosa e centralizada desde 1967/68, passando por uma fase de

instabilidade no final da década de 1970 até transformar-se numa atividade burocrática e

inexpressiva no fim da ditadura” (GARCIA, 2008, p13).

No período de recrudescimento político no Brasil com o golpe de 1964 o campo

cinematográfico brasileiro vivia um momento de efervescência com o surgimento do Cinema

Novo e todas as discussões, produções e polêmica em seu entorno. O movimento cineclubista,

como já assinalado, também vivia um momento de expansão com 6 Federações regionais que

incorporavam cerca de 300 cineclubes filiados ao Conselho Nacional de Cineclubes17. As

ações empreendidas pela censura que passaram por momentos distintos irão, se não abortar

por completo os projetos, silenciar algumas ações, interferir nas produções, mudar os

caminhos no campo do cinema.

As ações da censura no cinema se mostraram contraditória. Na busca por uma

produção cinematográfica que representasse o projeto político do regime militar, a censura

acaba por proibir filmes para exibição interna ou com cortes, ao passo que os liberavam para

festivais e mostras internacionais. Tal contradição se justifica no esforço do regime em

16 O projeto disponibilizou gratuitamente documentos relativos a filmes brasileiros, processos de censura,

documentos do DEOPS-SP e material de imprensa. Disponível no site:

http://www.memoriacinebr.com.br/projeto.asp 17 Informações retiradas do site: http://cineclube.utopia.com.br/ acessado em 18/09/2014.

11

“montar” uma imagem democrática do país no exterior; para tanto, eram escolhidos filmes

com notória qualidade que recebiam o carimbo de Boa Qualidade (BQ) e de Livre para

Exportação, como o caso de Terra em transe, de Glauber Rocha (PINTO, 2006, p.4).

Os estudos de Leonor Souza Pinto (2006; 2005) nos apontam para uma periodização

da censura no cinema pós-golpe. A primeira fase que se concentra em 1964 e 1966 da

continuidade a censura moral, ainda localizada nos órgãos estatais, representando os setores

da sociedade que colaboraram para legitimar o golpe. Segundo a autora a novidade é a franca

utilização de cortes. Miliandre Garcia, cautelosa, concorda que neste período prevaleceu a

censura moral, contudo lembra que este fato “não desvincula a censura moral e dos bons

costumes de fenômeno localizado no campo da política nem tampouco despolitiza a censura

de diversões públicas” (GRACIA, 2008, p. 37). E acrescenta que esta conclusão não abranda

as ações censórias que interferiram tanto para as produções artísticas quanto ao

desenvolvimento da cultura brasileira.

Os problemas decorrentes da censura moral no cinema brasileiro podem ser melhor

compreendidos quando atentamos para o fato de que filmes como Vidas secas, de Nelson

Pereira dos Santos, Deus e o diabo na terra do sol de Glauber Rocha, Ganga Zumba, de

Carlos Diegues e Os Fuzis de Ruy Guerra, participaram de festivais e mostras internacionais;

ao passo que A falecida de Leon Hirszman recebeu parecer negativo para exportação como

demonstra o parecer censório no qual conclui que o filme: “não deve receber BQ e nem

mesmo ser liberado para exportação porque irá depor quanto à indústria cinematográfica

brasileira que já sofre das deficiências permanentes tanto técnica como artística [assinatura

ilegível]” (PINTO, 2006, p.6). Ou ainda o filme O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de

Andrade, vetado em 1966, que segundo Miliandre Garcia foi um caso, onde “a censura moral

correspondeu à reivindicação política de setores conservadores” (GRACIA, 2008, p. 45).

Estes dados colaboram para a indicação de que a censura moral não deixou de

interferir, muitas vezes prejudicar, seriamente a produção cultural e artística brasileira.

Dentro do projeto de centralização conflituoso das próprias estruturas administrativas

da censura, temos a segunda fase entre 1967 e 1968, a de militarização dos órgãos de censura

e “início de uma preocupação com o conteúdo político das obras, presente nos pareceres”

(PINTO, 2006, p.8). Nesse momento a esfera federal assume o domínio sobre as diversões

públicas, os cargos de chefia são transferidos para militares, o Serviço de Censura de

diversões Pública é subordinado a Polícia Federal e observamos a ascensão da censura

política. Como explica Carlos Fico sobre as disputas internas do regime e nas estruturas

12

censórias: “quando a linha dura definitivamente assumiu o poder, com o AI-5, a censura

moral das diversões públicas também passou a se preocupar, de maneira mais enfática, com a

política” (FICO, 2004, p. 45). Data desse período o recolhimento das cópias e proibição do

filme Terra em Transe de Glauber Rocha, a interdição do filme Jardim de Guerra, de Neville

D’Almeida, entre outros. O parecer de filme Jardim de Guerra subscreve: “É um filme, como

já disse, que explora, do princípio ao fim, temas políticos, procurando conscientizar o público

para problemas ideológicos que não são aqueles que enquadram dentro do atual sistema de

governo”18.

Neste período também é baixada a lei nº 5.536, de 21 de novembro de 1968 que

dispões sobre a censura de obras teatrais e cinematográficas e cria o conselho Superior de

Censura. Esta lei abarcará os cineclubes e cinematecas definindo sua organização:

“Parágrafo único. As cinematecas e cineclubes referidos neste artigo deverão

constituir-se sob a forma de sociedade civil, nos têrmos da legislação em vigor, e

aplicar seus recursos, exclusivamente, na manutenção e desenvolvimento de seus

objetivos sendo-lhes vedada a distribuição de lucros, bonificações ou quaisquer

vantagens pecuniárias a dirigentes, mantenedores ou associados”19.

E, quanto à exibição de filme, liberando os filmes em versão integral para atividades

culturais:

Art. 5º A obra cinematográfica poderá ser exibida em versão integral, apenas com

censura classificatória de idade, nas cinematecas e nos cineclubes, de finalidades

culturais.

Art. 6º A sala de exibição que haja sido registrada no Instituto Nacional do Cinema

para explorar, exclusivamente, filmes de reconhecido valor artístico, educativo ou

cultural, poderá exibi-los, em versão integral com censura apenas classificatória de

idade, observada a proporcionalidade de filmes nacionais, de acôrdo com as normas

legais em vigor.

Art. 7º Para a exibição de que tratam os artigos 5º e 6º será concedido Certificado

Especial à obra cinematográfica20.

Com a implantação do Ato Institucional nº. 5 (AI-5) em 13 de dezembro de 1968, a

censura prévia entra na ordem do dia. De 1969 a 1974, dá-se a terceira fase classificada por

18 Informações retiradas do site http://www.memoriacinebr.com.br/filme.asp: acessado em 15/09/2014.

19 Informação encontrada no acervo Funda Clube de Cinema – FCL nas Caixas 6, e confirmada no site

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L5536.htm: acessado em 15/09/2014. 20 Idem op. Cit.

13

Leonor Souza Pinto de Censura político-ideológica, momento em que assume abertamente

seu caráter de sustentação do regime e caracterizado pelo enfrentamento e pela repressão

direta. Para tanto, os censores se profissionalizam21, entram em cena campanhas ufanistas por

parte dos militares. “No cinema, a resistência inaugura a fase da metáfora e da alegoria”

(PINTO, 2006, p. 6).

Para driblar os censores os cineastas lançam mão de algumas estratégias que, em

última instância, também significa uma interferência direta na linguagem e roteiros do campo

do cinema. Trata-se da tática de trabalhar com linguagem figurativa, releituras de personagens

históricos e montar cenas que atraiam o olhar do censor por meio de excessos de palavrões ou

cenas de nudez. Eram essas cenas oferecidas aos censores nas negociações em Brasília. No

teatro também podemos observar tais estratégias que se valiam de “episódios/personagens

históricos e de obras/autores clássicos para discutir a situação atual e a realidade brasileira ou

utilizar-se de linguagem figurativa, títulos dissuasivos ou palavrões em excesso para desviar a

análise da censura” (GRACIA, 2008, p. 306). Ainda que no teatro tanto o texto quanto a

montagem sofriam com censura, no cinema a censura era feita diretamente nas cópias, o que

garantiu a preservação dos roteiros e negativos (PINTO, 2006, p. 13).

Sobre a complexa relação entre alegoria e política, vale lembrar, o recurso às alegorias

não advém apenas da questão política, mas também apresenta motivações estéticas; nas

palavras de Ismail Xavier, as alegorias:

“não podem ser reduzido a um programa imediato de denúncia programada e velada

do regime autoritário, pois compreende uma gama de motivações e estratégias de

linguagem, bem como efeitos de sentido conforme a postura estética do cineasta, sua

forma de organizar o espaço e tempo, e sua relação específica com o espectador”

(XAVIER, 2003, p 31)

Para o movimento cineclubista, este período se caracteriza com o ápice das ações

autoritárias que paulatinamente vinham criando entraves para suas atividades; concretiza-se o

desmanche de sua organização e o fechamento das entidades. Os documentos mostram que as

notas de repúdio, denúncias de prisão de filmes e invasões na Dinafilmes tornam-se

corriqueiros. A apreensão de filmes é costumeira inclusive quando amparados pela lei nº

5.536, anteriormente citada. Elucidativa é a circular Nota Oficial expedida pelo Conselho

21 Como, por exemplo, o curso ocorrido em 1972, o primeiro curso que se tem data : Curso de Mensagens

Justapostas nos Filmes (de teor subversivo), ministrado por Waldemar de Souza, diretor da Editora Abril.

(PINTO, 2006, p. 11).

14

Nacional de Cineclubes que denuncia a apreensão em 1978 de 76 filmes pela Policia Federal,

segue trecho com alguns títulos:

“Entre as obras objeto da repressão da Censura, encontram-se vários clássicos da

cinematografia mundial, como "A Paixão de Joana D’Arc” (considerado como uma

das dez maiores obras- primas da História do Cinema), a comédia "A General" de

Buster Keaton, "O Homem Môsca" de Marold Lloyd, um curta-metragem de "O

Gordo e o Magro" "Ouro e Maldição" de Stroheins "Outubro" de Eisenstein e

diversos curtas de Mclaren. Não se perdoou, sequer, os autores Mèliès, Boireau e

Emile Cohn, todos da primeira década deste século e pioneiros da História do

Cinema. Foram atingidos até filmes didáticos e instrutivos como "Conserve seus

Dentes", "Os Olhos de suas crianças", "Férias na França" e documentários sobre

Molière, Gaugin, Rubens. Também documentários realizados pelo exército inglês,

na segunda Guerra Mundial, como :"A Vitória da Birmânia" e "A Vitória no

Deserto" não conseguiram escapar do sequestro da Censura brasileira”22.

A documentação também nos dá pista sobre algumas ações efetivadas e planejadas

pelo movimento cineclubista relativo ao mesmo episódio acima citado, como também

demonstra o engajamento político na luta contra a censura. Em circular de 20 de março de

1978 remetida pelo Conselho Nacional de Cineclubes, se posiciona:

“O CNC abriu nova fase na sua luta pela recuperação dos 76 filmes apreendidos

pelo Departamento de Censura da Polícia federal, e pertencentes ao acervo da

Dinafilme. Esgotadas todas as possibilidades legais e normais de encaminhamento

da questão, a diretoria do CNC enviou nota de denúncia da apreensão dos filmes a

todas as Federações. Temos conhecimento de sua divulgação em “O Estado de São

Paulo", "folha de São Paulo", “O Globo" e "Jornal do Brasil”, "TV Cultura" e “TV

Tupi”. No entanto, a repercussão à denúncia foi apenas relativa, aquém da esperada.

O Sr. Rogério Nunes, chefe da censura, quando inquirido pessoalmente pelo "O

Estado de São Paulo", alegou desconhecer o caso. Esta afirmação motivou uma

segunda nota do Conselho, onde manifestávamos nossa estranheza pelo fato do Sr.

Nunes estar desinformado em relação a atitudes tomadas pelo próprio órgão que

chefia. Neste momento, o CNC (...) prepara um mandado de segurança contra o ato

da censura. Igualmente, estão sendo articuladas denúncias no Congresso Nacional e

no exterior. O Conselho ainda recomenda a todos os cineclubes a divulgação da nota

(em anexo) junto a seu público, como uma forma de dinamização da luta pela

recuperação dos filmes, e também como uma forma de luta contra a própria censura.

A apreensão dos filmes não atinge "simplesmente” a Dinafilme, mas todo o

movimento cineclubista (...) que não deve, neste momento abdicar de seus

princípios, mas sim confirmar a sua condição de agente democratizador da cultura

brasileira.”23

Por fim, temos a quarta fase de distensão, de 1975 a 1988, que segundo Leonor Souza

Pinto não encerra as ações da censura, mas opera uma mudança de foco para proibições de

filmes exibidos na televisão, visto que nesse momento o grande público começa a esvaziar as

salas de cinema e se concentrar em torno da televisão. Dessa forma, os filmes são liberados

22 Informações encontradas no acervo Fundo Clube de Cinema – FCL nas Caixas 2.

23 Informações encontradas no acervo Fundo Clube de Cinema – FCL nas Caixas 2.

15

para as salas de cinema com cortes mais moderados. Segundo a autora, o cinema também irá

gradativamente abandonar a metáfora, e num movimento de resistência passará a recorrer

mais intensamente ao Conselho Superior de Censura e com o fim a censura previa em 1978 a

imprensa, esta passa a apoiar as campanhas para liberação dos filmes (PINTO, 2006).

Contudo, esse abrandamento é irregular, como podemos ver na gestão de Solange

Maria Teixeira Hernandes na direção da DCDP entre 1981 e 1984; nesta, será restaurado o

“controle político das diversões públicas, dos meios de comunicação e das expressões

artísticas” (GRACIA, 2008, p. 306). Em desacordo, portanto, com a referida abertura política.

Torna-se importante também enunciar as constantes apreensões de filmes do circuito de

exibição cineclubista como também a emblemática apreensão do filme Pra frente Brasil de

Roberto Farias, de 1982 que liberado para exibição no Festival de Gramados foi apreendido

no próprio evento por meio de um mandado de busca e apreensão, apesar de liberado

posteriormente sem cortes.

O que nos foi permitido ver?

Com o levantamento das informações acima apresentadas, voltamos agora para a

experiência fílmica do clube de Cinema de Assis em relação ao cinema brasileiro. Tendo

atuado, segundo as documentações consultadas, de 1965 a 1983, esta agremiação apresenta

seu próprio movimento dentro da história do movimento cineclubista. Pode-se observar um

momento de iniciação das atividades com a nomeação de uma comissão para a escrita do

“anteprojeto estatutário”. A oficialização acontece em 28 de outubro de 1966, seguindo-se

constante exibição de filmes, cursos e palestras. Dá-se a primeira participação na VI Jornada

de cineclubes, os primeiros contatos com outros cineclubes – o Cineclube de Marília tem

presença marcante nas trocas de circulares - e as filiações. Este período que se estende até

1968 apresenta relação estreita com a Cinemateca brasileira, uma programação marcada por

títulos brasileiros e preocupações estéticas.

Nos anos de 1969 e 1970 os documentos são quase inexistentes e não apresentam

pistas sobre a realização de atividades. Posteriormente é iniciada a reorganização dos quadros

associativos e a volta das ações de forma mais engajada contra a censura e as políticas que

afetavam as Universidades, pelo convênio com a sala comercial Peduti, elaboração de

projetos conjunto com instituições do movimento e a conquista por alguns anos consecutivos

16

de subvenções sociais24 do Ministério da Educação e Cultura (MEC). A partir de 1982 vemos

as atividades se extinguir, finalizando em 1983.

Em toda a existência do Clube de cinema de Assis, o cinema brasileiro recebeu

atenção especial e calorosas discussões. Contudo, a exibição cinematográfica nunca foi uma

atividade fácil. Se no contexto nacional o cinema brasileiro sofria com as regras do mercado

cinematográfico e com a censura, no contexto local a distância dos grandes centros trazia

inúmeros problemas. O movimento cineclubista apresentava constante inquietação com os

cineclubes do interior; a organização do Plano de Interiorização do Cinema Cultural é a

concretização de uma série de esforços para fomentar as entidades interioranas, e em seu

projeto esclarece que a intenção é “fortalecer as entidades já existentes e criar cineclubes nas

cidades em que eles não existem”.25

Elegemos aqui o período de 1969 a 1974 para observar detalhadamente quais filmes

brasileiros puderam ser vistos no Clube de Cinema de Assis: tal recorte se deve ao fato de ser

um momento de recrudescimento da censura e desmantelamento dos cineclubes. Neste caso, a

ausência também se torna importante, visto que nos anos de 1969 e 1970 os documentos se

“silenciam”, ou seja, não há qualquer menção sobre atividades realizadas. Contudo, não

podemos afirmar a inexistência de ações apenas pelos documentos, pois sabemos das

intempéries e lacunas que a sobrevivência de um acervo trás. Ainda que não possamos

precisar ao certo, acreditamos que o avivamento da censura neste período influenciou a falta

de atividades, ou mesmo de registros, do Clube de Cinema.

A partir de 1971 o Clube de Cinema de Assis tem uma tímida volta de suas atividades,

com algumas iniciativas importantes quanto ao cinema brasileiro. Com o total de vinte e cinco

exibições, dentre elas as curtas metragem brasileiro Folia do divino e Bahia de pedra e de

ouro, a organização do Ciclo de estudos do cinema Brasileiro com palestras de Jean Claude

Bernadet, e ainda a discussão do texto “Caminho e Descaminho do cinema brasileiro” de Alex

Vianny. Com o convênio da empresa Peduti, pode-se notar um aumento das exibições, visto

que a locação muitas vezes é intercambiada pela empresa, levando assim à apresentações

tanto na faculdade quanto no cinema localizado no centro da cidade de Assis. Temos como

destaques do cinema Brasileiro o filme O profeta da fome de Maurice Capovilla, Macunaíma

24 Encontramos no acervo Fundo Clube de Cinema – FCL referências do recebimento da subvenção social nos

anos de 1976 a 1980.

25 Informações encontradas no acervo Fundo Clube de Cinema – FCL nas Caixas 2.

17

de Joaquim Pedro de Andrade, em comemoração ao aniversário de 50 anos da Semana de arte

Moderna, e Ganga Bruta de Humberto Mauro.

O ano de 1973 conta com o ciclo Candeias, com exibições e estudos da produção do

cineasta Ozualdo Candeias. O ano subseqüente coincide com a reorganização do movimento e

a futura criação da Dinafilmes, contudo esse esforço coletivo em prol do cinema brasileiro só

se fará perceber no Clube de Cinema de Assis nos próximos anos. Sendo assim, o ano de

1974 fecha com a apresentação de apenas um filme brasileiro, A rainha diaba de Antonio

Carlos Fontoura, produção do mesmo ano. Apesar de o número ser desanimador, vale

ressaltar o esforço do cineclube para conseguir a cópia; em circular à empresa Peduti,

argumenta:

“A propósito da exibição de filmes nacionais, cujo elenco não podemos nos furtar a

exibir pelo menos uns dois. Mas sabemos perfeitamente das dificuldades

decorrentes, motivo pelo qual, estudamos uma fórmula para superá-las. (...)

soubemos em São Paulo que a empresa adquiriu o filme “A rainha diaba”, produção

nacional que temos interesse em apresentar, independente da programação já

estabelecida. (...) caso êle seja incluída na programação normal da emprêsa, abrimos

mão da nossa participação financeira, mas garantimos assim mesmo ampla cobertura

e maciço comparecimento”26

Em outra circular se posicionando enquanto interventor cultural mediando a relação

entre cinema e público:

“Salientamos que é importante para nós a fidelidade de uma certa linha de filmes,

fundamental para a consolidação de vez da volta da juventude universitária aos

cinemas, o que vem sendo confirmado com a crescente presença às nossas sessões

no cine Peduti”.27

Estes trechos destacados apontam para a volta do público ao cinema e para um

posicionamento firme do clube de cinema de Assis nas negociações com as distribuidoras e

empresas de exibição; mostra também a militância em prol do cinema brasileiro, que diante

das dificuldades não se rendeu, mas buscou saídas para os impasses do momento. Se os

números apresentado nos arquivos assustam – cerca de sessenta exibições espalhadas em três

anos – o engajamento político se mostra não apenas político, mas também preocupado com a

estética do cinema brasileiro.

26 Informações encontradas no acervo Fundo Clube de Cinema – FCL nas Caixas 10.

27 Idem op. Cit.

18

Por fim, não podemos deixar de mencionar que a presença do cinema brasileiro terá

um aumento significativo nos anos seguintes, o que indica que os esforços coletivos a nível

nacional deram resultados, ainda que não o esperado.

Conclusão

Buscamos neste artigo balizar as exibições de filmes brasileiros dentro do clube de

cinema de Assis no momento de recrudescimento da censura no Brasil. Se ações autoritárias

trouxeram dificuldades para a entidade neste momento, o fato de estar localizada fora do eixo

de distribuição cinematográfica sempre prejudicou os cineclubes interioranos. Considerando o

papel importante desempenhado por estas agremiações em locais onde as produções do

cinema pouco tocam o cotidiano dos cidadãos, e ainda, o singular papel que o movimento

cineclubista brasileiro teve na formação da cultura cinematográfica nacional, tentamos avaliar

o real impacto da censura nas exibições de filmes brasileiros.

Para tanto, tivemos como personagem principal o Clube de Cinema de Assis no

período de 1969 a 1974. Escolhemos olhar as fontes por meio do mapeamento das relações e

as práticas sociais no contexto do movimento cineclubista e da censura empreendida na

ditadura Militar. Ao tratar o cinema como visualidade, buscamos inverter a pergunta “o que

foi?” para “como foi possível?” a experiência fílmica do Clube de Cinema de Assis com um

de seus pilares: o cinema brasileiro.

Devido ao limite do texto e ao fato da pesquisa estar em andamento, admitimos que as

conclusões aqui levantadas sejam preliminares28. Contudo, o arquivo nos deu pistas para

algumas assertivas. Podemos constatar o desmanche dos cineclubes empreendido pela

censura, que apesar de sua forma acidentada, foi organizada e centralizada procurando moldar

o cinema dentro do projeto ideológico do poder então vigente. Se tais ações mudaram o rumo

do cinema e do cineclubismo, não paralisaram suas atividades, como visto pelo viés do Clube

de Cinema.

Referencias Bibliográficas

Arquivo

Acervo Fundo Clube de Cinema – FCL/CEDAP, Assis, SP.

Bibliografia

28 A pesquisadora ainda desenvolverá entrevistas com alguns dos principais participantes e dirigentes do Clube

de Cinema de Assis.

19

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