o Segredo Da Piramide Cap II

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GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide ­ para uma teoria marxista do jornalismo. PortoAlegre, Tchê, 1987.

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  • Referncia:

    GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirmide - para uma teoria marxista dojornalismo. Porto Alegre, Tch, 1987. pp. 39-52. [Ref.: T196]

    CAPTULO IIDo pragmatismo jornalstico

    ao funcionalismo espontneo

    A mercadoria, ensina Marx, uma relao social mediatizada por coisas,as quais parecem conter essas relaes como se fossem suas prpriasqualidades naturais. A noo comum de mercadoria no distingue as relaeshumanas desiguais que esto por trs da sua identidade universal enquantovalor de troca. As mercadorias aparecem como coisas que possuem,intrinsecamente, certas qualidades humanas de se equipararem empropores diversas, dotadas, aparentemente, de um mesmo fluido objetivoque varia apenas quantitativamente.

    Quer dizer, relaes humanas historicamente determinadas aparecemcomo pura objetividade, como se constitussem uma realidade exterior aossujeitos, isto , reificadas. Jos Paulo Netto demonstra que essa noo deMarx, tratada sistematicamente por Lukcs, torna-se um conceitofundamental para a compreenso do fetichismo e da alienao nocapitalismo contemporneo.1

    Esse conceito nos permite compreender que o positivismo, base tericamais ampla do funcionalismo, o desenvolvimento sistematizado do "sensocomum" reificado, produzido espontaneamente pelo capitalismo. Lembremosque, para DrkheimDkheim, "os fatos sociais devem ser tratados comocoisas". Portanto, at certo ponto, inevitvel que a teorizao espontneados homens "prticos", quando refletem sobre questes sociais baseados nasua prpria experincia, adquira contornos funcionalistas. O esprito"pragmtico" da grande maioria dos jornalistas, em parte devido defasagem do acmulo terico em relao ao desenvolvimento das "tcnicasjornalsticas" e, em parte, devido ao carter insolente e prosaico que emananaturalmente da atividade (produzindo nos jornalistas uma conscinciacorrespondente), no poderia gerar uma outra forma de teorizao. Mesmoquando pretendem apenas relatar sua experincia pessoal como profissionaisou elaborar "manuais prticos" da disciplina. Vejamos alguns exemplos.Primeiramente dois "clssicos" norte-americanos que modelaram vrias

  • geraes de profissionais, tanto nos Estados Unidos como na Amrica Latina,seja diretamente com seus livros ou atravs de tantos outros feitos suaimagem e semelhana. claro que tais obras, medida que fornecemindicaes com alguma eficcia operacional, contm elementos e intuiesimportantes para um esforo terico que busque ultrapass-las. Tomaremos,agora, to somente alguns aspectos que denotam suas limitaes empiristase a perspectiva funcionalista que assumem, mesmo sem apresentarempretenses teorizantes.

    "Este livro se destina - diz Hohenberg a ttulo de prefcio - a servir deguia profissional aos princpios e prticas do jornalismo moderno, segundo aconcepo e o uso norte-americano. Ao escrev-lo baseei-me na experinciade 25 anos como jornalista ativo, nos Estados Unidos e no exterior, somada adez anos de professor da matria. O objetivo da obra, conseqentemente, mostrar o jornalismo na prtica e no na teoria ou fazer crtica social".2

    A primeira edio desse livro foi publicada h mais de vinte e cincoanos. No parece que o esprito da quase totalidade dos manuais elaboradosnesse perodo tenha mudado significativamente.

    Hohenberg afirma que impossvel conceituar a notcia porque oconceito varia em funo do veculo. "Para os matutinos o que aconteceuontem; para os vespertinos, o fato de hoje. Para as revistas, o acontecimentoda semana passada. Para as agncias noticiosas, emissoras de rdio eteleviso, o que acabou de ocorrer".3 Por isso, ele nos oferece apenas as"caractersticas" da notcia: "As caractersticas bsicas da notcia sopreciso, interesse e atualidade. A essas qualidades deve ser acrescentadauma quarta, a explicao. Qual a vantagem de um noticirio preciso,interessante e atual, se os leitores no o entendem?".4

    O livro de F. Fraser Bond, lntroduccin al periodismo, cuja primeiraedio foi publicada em 1954, defne o que considera os "deveres daimprensa": independncia, imparcialidade, exatido, honradez,responsabilidade e decncia.5 A complexidade tica e poltica que envolvecada um desses conceitos no parece ter abalado o professor emrito daEscola de Jornalismo da Universidade de Nova York.

    Naturalmente, ao omitir essa discusso, ele adota as acepescorrentes que a ideologia dominante atribui a essas palavras. Independnciae imparcialidade significam, no fundo, ter como pressuposto que ocapitalismo desenvolvido norte-americano e sua hegemonia imperialista um tipo de sociedade "normal", e deve ser preservada contra todas as"patologias" polticas, sociais e econmicas. A exatido quer dizer, quasesempre, a submisso do jornalista s fontes oficiais, oficiosas ouinstitucionais. A honradez no outra coisa seno uma boa reputao entre

  • as instituies da "sociedade civil", no sentido atribudo por Gramsci a essaexpresso, isto , entre aquelas entidades que reproduzem a hegemoniaburguesa. A responsabilidade o respeito s leis e preceitos gerais da ordemestabelecida. A decncia significa, como diz o prprio autor, "la censura delbuen gusto"6 , ou seja, o reconhecimento da hipocrisia que fundamenta amoral burguesa como um valor digno de ser reverenciado e acatado. No por casualidade que ele define as funes principais do jornalismo nosseguintes termos: informar, interpretar, guiar e divertir.7

    Ora, o jornalismo deve ser "imparcial", mas deve "interpretar" os fatos e"guiar" seus leitores. Fica evidente que h uma interpretao e um sentidoque devem brotar naturalmente dos prprios fatos, com base, portanto, nospreconceitos e concepes dominantes na sociedade, que se manifestam nochamado "bom senso", expresso individual da ideologia hegemnica.

    Quanto s classificaes da notcia, so as mais arbitrrias possveis,embora certos temas se repitam constantemente. Para Fraser Bond os fatoresque determinam o valor da notcia so quatro: "a oportunidade", "aproximidade", "o tamanho" (o muito pequeno e o muito grande atraem aateno, diz ele) e "a importncia" (o autor adverte que a notcia trivial, serevestida de interesse, com freqncia ter mais valor que os annciosimportantes e significativos que so repetitivos). Como principais elementosde interesse da notcia ele aponta doze itens: "interesse prprio", "dinheiro","sexo", "conflito", "inslito", "culto do heri e da fama", "incerteza","interesse humano", "acontecimentos que afetam grandes gruposorganizados", "competncia", "descobrimento e inveno" e "delinqncia"8 .Quanto aos elementos "de valor" da notcia o autor alinha mais doze pontos.De qualquer modo, as listas de quaisquer dessas classicaes, pelo critrioempirista que preside sua elaborao, no s podem ser trocadas umas pelasoutras, como o nmero de itens arrolados pode ser aumentado ou diminudoindefinidamente.

    Seguindo outra sistematizao, com o mesmo contedo ideolgico, LuizAmaral indica as "funes do jornalismo": poltica, econmica, educativa e deentretenimento seriam as quatro principais. Vale a pena citar duas delas:

    "Por funo poltica, entendem-se os meios de informao, em sua aocrescente, como instrumento de direo dos negcios pblicos, e comorgos de expresso e de controle da opinio"9 . Sobre a "funo econmicae social" ele afirma:

    "No de agora que os meios de informao se tornaram instrumentosdo desenvolvimento econmico e social. Difundindo diariamente uma enormemassa de informaes sobre assuntos os mais variados e de interessepermanente da sociedade, o Jornalismo tem contribudo para o

  • desenvolvimento da indstria e do comrcio, como para melhorar as relaessociais, de um modo geral. (. . .) Com noticirio e interpretao dos fatoseconmico-financeiros, o Jornalismo oferece ao homem de negcios umpanorama dirio do mercado que lhe facilita a ao, abre perspectivas para odesenvolvimento de suas empresas e proporciona bases para melhorrelacionamento com a clientela".10

    O carter de classe das "funes" indicadas por Luiz Amaral to bvioquanto as classificaes de Hohenberg e Fraser Bond. Cabe ao jornalismouma tarefa orgnica, quer dizer, solidria com o modo de produocapitalista e suas instituies polticas e econmicas. Quanto aos "atributos"da notcia, Luiz Amaral apresenta tambm sua prpria classificao:atualidade, veracidade, interesse humano, raio de influncia, raridade,curiosidade e proximidade.

    Segundo Mrio L. Erbolato, no livro Tcnicas de codificao emjornalismo, h necessidade de separarmos os trs aspectos da divulgao deum fato: "informao, interpretao e opinio". E cita Lester Markel, editordominical de The New York Times, para sustentar seu argumento em defesadessa tese curiosa:

    "1 notcia, informar que o kremlim est lanando uma ofensiva depaz. 2 interpretao, explicar por que o kremlim tomou essa atitude. 3 opinio, dizer que qualquer proposta russa deve ser rechaada sem maioresconsideraes. A interpretao - acentuou Lester Markel - parte essencialdas colunas de notcias. Porm, a opinio deve ficar confinada, quasereligiosamente, nas colunas editoriais".11

    Erbolato admite que difcil "interpretar objetivamente", mas no vnisso o menor paradoxo. Sem dvida, explicar nos Estados Unidos por que okremlim lanou uma ofensiva de paz nos limites da "objetividade", semintromisso opinativa do jornalista, significa relacionar os fatos evitandojulgamentos explcitos de valor, apenas reforando o preconceito do norte-americano mdio sobre a Unio Sovitica.

    Relato ou opinio: um falso problema

    Certamente que h um "gro de verdade" na idia de que a notcia nodeve emitir juzos de valor explcitos, medida que isso contraria a naturezada informao jornalstica tal como se configurou modernamente. Mas igualmente pacfico que esse juzo vai inevitavelmente embutido na prpriaforma de apreenso, hierarquizao e seleo dos fatos, bem como naconstituio da linguagem (seja ela escrita, oral ou visual) e norelacionamento espacial e temporal dos fenmenos atravs de sua difuso.

  • Portanto, quando Mrio Erbolato afirma que "a evoluo e a adoo denovas tcnicas no jornalismo, elevado profisso e no mais praticado porsimples diletantismo, levaram a uma conquista autntica: a separao entre,de um lado, o relato e a descrio de um fato, dentro dos limites permitidospela natureza humana e, de outro, a anlise e o comentrio da mesmaocorrncia"12 , ele est, por linhas tortas, percebendo uma evidncia que ascrticas meramente ideolgicas do jornalismo burgus no reconhecem.

    claro que no se trata do simples "relato" e "descrio" de um fato,dentro de supostos "limites permitidos pela natureza humana", separado daanlise e do comentrio. Trata-se, sim, de uma nova modalidade deapreenso do real, condicionada pelo advento do capitalismo, mas,sobretudo, pela universalizao das relaes humanas que ele produziu, naqual os fatos so percebidos e analisados subjetivamente (normalmente demaneira espontnea e automtica) e, logo aps, reconstruidos no seuaspecto fenomnico.

    O discurso analtico sobre os acontecimentos que so objeto dojornalismo dirio, que tomamos como referncia tpica, se ultrapassar certoslimites estreitos impertinente atividade jornalstica sob vrios aspectos. Oprincipal problema que, se a anlise se pretender exaustiva e sistemtica,desembocar, no caso limite, nas diversas cincias sociais e naturais, o quej outra coisa bem diferente do jornalismo. Da mesma forma, umaabordagem moralista ou grosseiramente propagandstica sob o aspectoideolgico acaba desarmando o jornalismo de sua eficcia especfica e, quasesempre, tornando-se intolervel para os leitores, sejam quais forem.

    preciso asseverar, no entanto, que o exposto no exclui o fato de quejornais analticos e polmicos ou abertamente ideolgicos possam cumprirpapis relevantes na luta poltica e sejam, at, indispensveis nesse sentido.A tese de Lnin sobre a necessidade do jornal partidrio enquanto"organizador coletivo", com funes de anlise crtica, luta ideolgica,propaganda e agitao , ainda presentemente, insuperada em seusfundamentos.

    O que se pretende afirmar que h uma tarefa mais ampla dojornalismo tipificado nos dirios, que deve ser pensada em suaespecificidade.

    Embora o jornalismo expresse e reproduza a viso burguesa do mundo,ele possui caractersticas prprias enquanto forma de conhecimento social eultrapassa, por sua potencialidade histrica concretamente colocada, a merafuncionalidade ao sistema capitalista.

    De outra parte, tanto os jornais dirios como os demais meios veiculam,ao lado de notcias e reportagens caractersticas do jornalismo propriamente

  • dito, anlises sociolgicas, polticas, econmicas, interpretao deespecialistas, artigos, ensaios, colunas, editoriais, cartas de leitores, poemas,crnicas, opinio de jornalistas ou pessoas proeminentes, enfim, uma sriede abordagens e de discursos que podem ter um grau maior ou menor deaproximao do discurso jornalstico que estamos tratando.

    H, evidentemente, uma graduao que parte do jornalismo tpico emdireo s diversas formas de representao simblica da realidade. As duasreferncias fundamentais dessa graduao podem ser indicadas como sendoa cincia e a arte, sem, contudo, excluir outras. O "novo jornalismo", quesurgiu na dcada de 60 nos Estados Unidos, trabalha nas fronteiras com aliteratura. As propostas de jornalismo rotuladas normalmente como"opinativo", "interpretativo" ou "crtico" atuam, em algum grau, nas reaslimtrofes com as diversas cincias sociais.

    Mas voltemos discusso da viso "pragmtica" dos jornalistas sobresua atividade e as incipientes tentativas de sistematizao. Publicado maisrecentemente e contando j com edies sucessivas, o livro de Clvis Rossi Oque o jornalismo13 , escrito com a percia de um profissionalexperimentado, apresenta algumas pretenses tericas que merecemconsiderao.

    " realmente invivel - explica o autor - exigir dos jornalistas quedeixem em casa todos esses condicionamentos e se comportem, diante danotcia, como profissionais asspticos, ou como a objetiva de uma mquinafotogrfica, registrando o que acontece sem imprimir, ao fazer seu relato, asemoes e as impresses puramente pessoais que o fato neles provocou".

    Ora, as impresses puramente pessoais, o modo singular do jornalistaperceber um fato e reagir diante dele, as idiossincrasias, constituemprecisamente aquilo que no interessa discutir na questo da objetividade.Se fosse possvel o relato estritamente objetivo de um fato somado apenass impresses puramente pessoais, a tese da objetividade estaria, nofundamental, correta. No haveria nenhum problema poltico ou ideolgicona manifestao desse tipo de subjetividade. Seria possvel, ento, umjornalismo "imparcial" em relao s questes fundamentais da luta declasses, desde que a subjetividade (individual) ficasse confinada a certosparmetros, que no impedissem o pblico de distinguir o diamante brutoque seriam os fatos objetivos por baixo das sobreposies emocionais doredator. O prprio autor confirma essa possibilidade terica: "A objetividade possvel, por exemplo, na narrao de um acidente de trnsito e, assimmesmo, se nele no estiver envolvido o reprter, pessoalmente, ou algumamigo ou parente".15

    Nota-se que o quadro terico no qual Rossi situa seu enfoque das

  • relaes de poder no o das contradies ideolgicas, do antagonismo dasclasses, ou mesmo da oposio de "grandes grupos" de interesses polticos eeconmicos, mas algo bem mais ingnuo: os parentes e amigos. Rossi admiteque o exerccio da objetividade com relao aos fatos de grande "incidnciapoltica e/ou social" no mais do que "um mito".16 E nessa busca, a rigorimpossvel de ser plenamente concretizada, no sentido de relatar os fatos demaneira imparcial, ele aponta a "lei dos dois lados": "Em tese, a justia dessa'lei' inquestionvel".17

    O problema central da concepo de Clvis Rossi sobre a objetividadejornalstica est alicerada em dois pressupostos de natureza"espontaneamente funcionalista". O primeiro, que ele considera asnecessidades de informao do organismo social do ponto de vista de umademocracia liberal, isto , parece tomar o capitalismo como modo "normal" eaceitvel de sociedade. Isso vai implcito em toda sua argumentao: "Parececlaro que a questo da liberdade de informao, entendida em seu sentidolato, s poder ser resolvido no quadro das liberdades democrticas emgeral. Isto , s haver realmente liberdade de informao quando houverampla prtica das liberdades democrticas, coisa que, no Brasil, temacontecido apenas rara e episodicamente".18

    O segundo pressuposto falso, decorrente do primeiro, que os fatosjornalsticos so, em si mesmos, objetivos. Por isso, como foi assinalado,dependendo da relevncia do assunto, a objetividade at possvel.Enquanto que a "imparcialidade", mesmo difcil, emana como a prpria razode existir do jornalismo. Assim, o "mito da objetividade" criticado sob ongulo puramente psicolgico, como se a subjetividade do jornalista fosseuma espcie de resduo que se interpe entre o fato, tal como aconteceu, eseu relato neutro. Portanto, segue logicamente que a tarefa do jornalista buscar o mximo de objetividade e iseno possveis.

    O que Rossi no percebe - porque, teoriza a partir do "senso comum" daideologia burguesa e da sua relao pragmtica com as tcnicas jornalsticas- que os prprios fatos, por pertencerem dimenso histrico-social, noso puramente objetivos.

    No se trata, ento, da simples interferncia das emoes no relato - oque constituiria uma espcie de "desvio" produzido pela subjetividade -, masda dimenso ontolgica dos fatos sociais antes mesmo de seremapresentados sob a forma de notcias ou reportagens. Existe uma abertura designificado na margem de liberdade intrnseca manifestao de qualquerfenmeno enquanto fato social. Portanto, h um componente subjetivoinevitvel na composio mesma do fato, por mais elementar que ele seja.

    Assim, o julgamento tico, a postura ideolgica, a interpretao e a

  • opinio no formam um discurso que se agrega aos fenmenos somentedepois da percepo, mas so sua pr-condio, o pressuposto mesmo dasua existncia como fato social. No h um fato e vrias opinies ejulgamentos, mas um mesmo fenmeno (manifestao indeterminada quantoao seu significado) e uma pluralidade de fatos, conforme a opinio e ojulgamento. Isso quer dizer que os fenmenos so objetivos, mas a essncias pode ser apreendida no relacionamento com a totalidade. E como estamosfalando de fatos sociais, a totalidade a histria como autoproduohumana, totalidade que se abre em possibilidades cuja concretizaodepende dos sujeitos.

    Por isso, captar a essncia implica, necessariamente, um grau deadeso ou solidariedade em relao a uma possibilidade determinada, tantoda totalidade histrica quanto do fenmeno que inserido nela vai adquirir seusentido e significado. Mesmo nos fatos mais simples como num acidente detrnsito em que no h parentes ou amigos envolvidos, conforme o exemplocitado por Rossi, o relato exige uma forma de conhecimento que, em algumamedida, implica a revelao de sua essncia. Ou seja, do significado queemana das suas relaes com a totalidade do complexo econmico, social epoltico onde est situado. Para evitar mal-entendidos, vale prevenir que nose trata de propor que o jornalista faa um ensaio sociolgico para noticiarum atropelamento. O que estamos afirmando que existem diferentesformas, igualmente jornalsticas, de se tratar assuntos dessa natureza, desdea coleta dos dados, o enfoque a ser escolhido at a linguagem e a edio, eque tais formas no so inocentes ou neutras em termos poltico-ideolgicos.

    Assim, o complemento lgico dessa viso ingnua e empirista daobjetividade, para dar vazo ao liberalismo, no poderia ser muito diferente:"a teoria dos filtros". Depois da "lei dos dois lados" como critrio justo, pelomenos "teoricamente", temos ento outros elementos que dificultam ahonorvel postura da imparcialidade jornalstica:

    "o copidesque no o nico e talvez sequer seja o mais importantefiltro entre o fato, tal como o viu o reprter, e a verso que finalmenteaparece publicada no jornal ou revista ou difundida na TV ou rdio. H outrosfiltros sucessivos: inicialmente, o editor, que o chefe de seo (Editoria)para o qual trabalha o reprter".19

    O problema, neste caso, apenas de uma possvel disfuno entreliberdades individuais que se entrechocam. Assim, a liberdade do jornalista,enquanto indivduo, de expressar suas prprias idias ou relatar o fatoobjetivo tal como ele presenciou encontra obstculos nas individualidadessituadas hierarquicamente acima dele na empresa jornalstica. Mas a questofica no ar, pois Rossi admite, com iluso pueril, que as decises tomadas poreditores e pelos chefes de Redao, "na maior parte dos casos" esto

  • embasadas pelo "critrio jornalstico".20 Ressalvando apenas que, "quando oassunto de grande relevncia, entra em ao um segundo critrio, que sesobrepe ao primeiro: o julgamento poltico, em funo das posies quecada jornal adota".21

    Em sntese, o "funcionalismo espontneo" dos chamados "jornalistascompetentes" que se pem a teorizar com base no pragmatismo daprofisso, embora com doses variveis de liberalismo, no vai muito longeem qualquer sentido. Clvis Rossi, por exemplo, no questiona a propriedadeprivada dos meios de comunicao. Considera isso, implicitamente, umasituao "normal". Tanto que no v maiores conseqncias em relao aocontedo do jornalismo, exceto "quando o assunto de grande relevncia" ea empresa impe, ento, seu julgamento poltico. Mas esse acontecimento circunstancial, talvez um "acidente de percurso" como dizem os delicadoscomentaristas polticos das grandes redes privadas de comunicao emnosso pas.

    No obstante, a alegao dos empresrios de que os comits deredao seriam, na prtica, "sovietes" de jornalistas, que se apossariam, aospoucos, do jornal, revista ou TV em que se instalassem, mudando as posieseditoriais que seus donos defendem, Rossi acha que "at certo ponto" temfundamento.22 Embora considere essa possibilidade um risco "mnimo",Rossi teme as suas conseqncias: "sempre h o risco de que, em redaesnas quais h grande nmero de elementos de uma mesma correntepartidria ou ideolgica, esse grupo monopolizasse os comits de redao epassasse a impor seus pontos de vista, frustrando os objetivosdemocratizantes da proposta original".23 Quer dizer, a propriedade privadados jornais, emissoras de rdio, TV, seu carter comercial, no comprometenecessariamente a imparcialidade. Mas os comits de redao, estes sim,segundo Rossi, trazem o risco da imposio ideolgica.

    Porm, basta um pouco de reflexo para se perceber que Rossi no estsendo desonesto. Para grande parte dos jornalistas, hoje a maioria, a colisocom os interesses fundamentais da empresa , efetivamente, um "acidentede percurso". Eles colocam seu talento, honestidade e ingenuidade a serviodo capital com a mesma naturalidade com que compram cigarros no bar daesquina.

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    Notas de Rodap

    1) NETTO, Jos Paulo.Capitalismo e reificao. So Paulo, Cincias Humanas,1981.

  • 2) HOHENBERG, John. Manual de jornalismo. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura,1962. p.11.

    3) _______. O Jornalista profissional. Rio de Janeiro, Interamericana, 1981.p.68.

    4) Idem, p.69.

    5) Bond, F. Fraser. Introduccin al periodismo. Mxico, Limusa, 1978. p.19-21.

    6) Id., p.21.

    7) Id., ib.

    8) Id., p.99-102.

    9) AMARAL, Luiz. Tcnica de jornal e peridico. Rio de Janeiro, TempoBrasileiro, 1969. p.17.

    10) Id., p.19.

    11) ERBOLATO, Mrio L. Tcnicas de codificao em jornalismo. Petrpolis,Vozes, 1978. p.34.

    12) Id., p.33-4.

    13) ROSSI, Clvis. O que jornalismo. 4.ed. So Paulo, Brasiliense, 1984.(Primeiros Passos; 15)

    14) Id., p.10.

    15 Id., ib.

    16 Id., p.10-1.

    17) Id., p.12.

    18) Id., p.63.

    19) Id., p.42.

    20) Ib., p.45.

    21) Id., ib.

    22) Id., p.65.

    23) Id., ib.