o Tempo de Um Cigarro: Uma Crítica de Processo Entre a Performance e o Teatro

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    INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAO, CINCIA E TECNOLOGIA DO CEAR

    DEPARTAMENTO DE ARTES

    LICENCIATURA EM TEATRO

    DYEGO STEFANN FREIRE DE CASTRO

    O TEMPO DE UM CIGARRO: UMA CRTICA DE PROCESSO ENTRE A

    PERFORMANCE E O TEATRO

    Fortaleza

    2014

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    DYEGO STEFANN FREIRE DE CASTRO

    O TEMPO DE UM CIGARRO: UMA CRTICA DE PROCESSO ENTRE A

    PERFORMANCE E O TEATRO

    Monografia apresentada ao Curso de Licenciatura em Teatro, doInstituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia do Cear, comorequisito parcial para a obteno do grau de licenciada em teatro.

    Orientador: Prof. Dr. Pablo Assumpo Barros Costa (UFC)

    Fortaleza

    2014

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    DYEGO STEFANN FREIRE DE CASTRO

    O TEMPO DE UM CIGARRO: UMA CRTICA DE PROCESSO ENTRE A

    PERFORMANCE E O TEATRO

    Monografia apresentada ao Curso de Licenciatura em Teatro, doInstituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia do Cear, comorequisito parcial para a obteno do grau de licenciada em teatro.

    Conceito: ______

    Data de Apresentao 14 de novembro de 2014

    BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Pablo Assumpo Barros Costa (UFC)

    (Orientador)

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Francimara Nogueira Teixeira (IFCE)

    _____________________________________________

    Ms. Edilberto da Silva Mendes (UFRN)

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo a todos os lugares e pessoas por onde eu passei e que passaram por mim.

    A todos os momentos afetivos que tive a possibilidade de viver e que me

    atravessaram.

    A todos que participaram do meu percurso.

    A todos os e as de mim, de ti, de tantos.

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    RESUMO

    Esse estudo reflete sobre alguns conceitos que surgem do encontro entre performance e teatro,

    enunciados por Eleonora Fabio e Josette Fral, e que foram geradores de um trabalho cnico

    experimental de minha autoria (com colaboradores), intitulado O Tempo de um Cigarro.Os

    conceitos e questes que elas levantam aparecem aqui atravs de uma exposio tambm

    experimental dos arquivos que compuseram o processo de trabalho ao longo de 10

    apresentaes do esquete, realizadas entre 2013 e 2014. Partindo da proposta metodolgica da

    crtica de processo (Ceclia Salles), exploro nesta escrita como O Tempo de um Cigarro

    efetua, a partir da influncia da arte de performance e do teatro performativo, um processo de

    criao horizontal de experimentao aonde meio, atuante e audincia tm seus lugares,tradicionalmente assegurados, desestabilizados e reagrupados em novas possibilidades

    dramatrgicas.

    Palavra Chave: O Tempo de um Cigarro, performance, teatro, crtica de processo.

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    ABSTRACT

    This study discusses some concepts that emerge from the encounter between performance and

    theater, listed by Eleonora Fabio and Josette Feral, and were generating an experimental

    theatrical work of my own (with collaborators), titled "O Tempo de um Cigarro". The

    concepts and issues appear here through an experimental archiving that made up the work

    process over 10 presentations performed between 2013 and 2014. Starting from the "process

    critique" methodological proposal (Cecilia Salles), I explore how "O Tempo de um Cigarro"

    effects, from the influence of performance art and performative theater, a process of

    horizontal experimentation where "space", "performer" and "audience" have their traditionally

    ensured place destabilized and reassembled in new dramaturgical possibilities.

    Palavra Chave: O Tempo de um Cigarro, performance, theater, process critique.

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    SUMRIO

    CARTILHA DE VIAGEM OU MANUAL DE INSTRUES ........................................... 8

    SOBRE O CAMINHO QUE (NO) PROCURO SABER O FIM | INCIO .................... 10

    INTRODUO ...................................................................................................................... 14

    CAPITULO 1 - ENTRE A PERFORMANCE E O TEATRO: ATRAVESSAMENTOS

    TERICO-PRTICOS ......................................................................................................... 18

    Outrar-se ............................................................................................................................................ 18

    Obra-Processo ................................................................................................................................... 20

    Teatro Performativo .......................................................................................................................... 23

    O que faz (ser) real? .......................................................................................................................... 25

    Dispositivos Mveis de Criao ........................................................................................................ 29

    CAPITULO 2CRITICAR-SE ............................................................................................ 35

    Arquivar ............................................................................................................................................ 35

    1 - Ator Performer ............................................................................................................................ 37

    2 - Mostra de Teatro IFCE ............................................................................................................... 40

    3 - Semana de Boas Vindas.............................................................................................................. 42

    4 - Mostra de Solos e Duos .............................................................................................................. 45

    5 - FESFORT 2013 .......................................................................................................................... 47

    6 - Cenas Curtas (Teatro Antonieta Noronha) ................................................................................. 51

    7 - 10 FECTA ................................................................................................................................. 53

    8 - IV ManiFesta .............................................................................................................................. 57

    9 - Tera SeDana ............................................................................................................................ 60

    10 - Piollin........................................................................................................................................ 61

    CONCLUSOE AGORA? ................................................................................................ 66

    REFERNCIA BIBLIOGRFICA ...................................................................................... 68

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    CARTILHA DE VIAGEM OU MANUAL DE INSTRUES

    Primeiro, antes de comear essa jornada, gostaria de explicar melhor alguns aspectos

    metodolgicos da forma desta pesquisa. Farei isso para que voc, leitor, no se perca ou sinta-se confuso durante a leitura. O que busco realizar aqui um mergulho nas minhas memrias,

    referncias e leituras do processo de criao do esquete/performance O Tempo de um

    Cigarro (2013) de minha autoria. Mas eu entendo que este mergulho s ser relevante na

    medida em que o processo de construo da obra aparea como possibilidade de uma

    abordagem crtica sobre a prpria obra. Portanto, na escrita, obra e processo constroem-se

    novamente a partir das relaes entre eles, apontando para os modos como teoria e prtica se

    retroalimentam continuamente.

    Devemos entender que a complexidade desta reconstruo de O Tempo de um

    Cigarro na escrita, demande ela prpria de uma abordagem experimental sobre a prpria

    escrita, que tambm vai refletir o carter processual da obra original. No busco com isso uma

    inovao simplesmente formal da escrita, mas sim uma perspectiva criativa para o ato de

    analisar uma dada obra, de modo a aproxim-lo ainda mais das descobertas que fizemos ao

    longo da trajetria de criao. Apoiando-se nos estudos de Cecilia Sales sobre crtica de

    processo e sobre o lugar do arquivo nos processo de criao contemporneos, irei comporuma teia de assuntos e abordagens tericas da relao entre performance e teatro que depois

    serviro para analisar meu arquivo de dez apresentao realizadas entre 2013 e 2014. Depois,

    finalizarei com um depoimento pessoal que aponte novas possibilidades de criao para o

    futuro.

    Acredito que nenhum formato j dado seja capaz de abarcar todos os aspectos desta

    obra, j que uma obra em movimento e em transformao constante. Ento, como gerar essa

    aproximao do leitor a obra que, talvez, ele nem tenha visto? Durante o processo de criao

    desta escrita me dei conta de algumas possibilidades que poderiam nos auxiliar nessa questo.

    Ento gostaria de lhe apresentar uma tentativa. A ideia lhe aproximar da sala de ensaio, do

    processo da obra e, posteriormente, do prprio processo desta escrita. Para isso, gostaria de

    sugerir um breve manual de leitura para apreciao e degustao dos captulos e subcaptulos

    a seguir:

    1. Nos cantos superiores das pginas de abertura dos captulos e subcaptulos, entrecolchetes, fao sugestes de msicas para acompanhar sua leitura. Estas msicasembalaram o processo e as vrias descobertas para a criao deste trabalho. Parafacilitar, criei um usurio na plataforma Youtube:

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    https://www.youtube.com/watch?v=PGrdGCcOJEg&list=PLgnujTpH9-V5kmIyauO84_6RJVqtOU5kW;2. Abra uma boa cerveja ou um bom vinho para influenciar sua conscincia de leitor;3. Busque assistir as sugestes de filmes abaixo:

    a.

    Os SonhadoresDir: Bernardo Bertoluccib. Pierrot Le FouDir: Jean-Luc Godardc. Cachorro!Dir: Jos Henrique Fonseca

    Boa viagem!

    https://www.youtube.com/watch?v=PGrdGCcOJEg&list=PLgnujTpH9-V5kmIyauO84_6RJVqtOU5kWhttps://www.youtube.com/watch?v=PGrdGCcOJEg&list=PLgnujTpH9-V5kmIyauO84_6RJVqtOU5kWhttps://www.youtube.com/watch?v=PGrdGCcOJEg&list=PLgnujTpH9-V5kmIyauO84_6RJVqtOU5kWhttps://www.youtube.com/watch?v=PGrdGCcOJEg&list=PLgnujTpH9-V5kmIyauO84_6RJVqtOU5kWhttps://www.youtube.com/watch?v=PGrdGCcOJEg&list=PLgnujTpH9-V5kmIyauO84_6RJVqtOU5kW
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    SOBRE O CAMINHO QUE (NO) PROCURO SABER O FIM | INCIO

    H vrias maneiras srias de no dizer nadamas s a poesia verdadeira.1

    [Raindrops Keep Falling On My Head,

    de B. J. Thomas.]

    Estou diante de um dos momentos mais difceis e complexos para mim. Pensar e

    escrever sobre algo que talvez no saiba o que ou para onde vai ou como pretende ir ouporque vai. O que acredito saber so apenas alguns pequenos lampejos de sobriedade que

    buscam significar essa nossa relao. Ento o que ofereo a voc a possibilidade de um

    dilogo to escorregadia quanto o meu casamento com a obra em questo. Pode ser

    interessante. Pode no ser. Pode inclusive ser e no ser.

    Aqui. Fortaleza. Cear. Nordeste. Brasil. Amrica do Sul. Banhada pelo Atlntico que

    no tem nada de pacfico, incluindo seu tringulo vestido de bermudas logo ali. Abaixo da

    linha do Equador. Latitude: -3.71839; Longitude: -38.5434. H 3 436 Sul, 38 3236

    Oeste. Encontrou? Estou. Desde que nasci. Saindo brevemente para voltar. Preso talvez. Mas

    um dia fugirei para depois, talvez, voltar. Fortaleza que uma cidade de pessoas, muitas

    pessoas e poucas, pouqussimas rvores. rea metropolitana de 313,8 km e quase 3.6

    milhes de habitantes. Cidade do sol, cidade minha, cidade sua e muitas vezes cidade de

    ningum. Foi aqui que me disseram artista e foi aqui que me descobri gente que gente. Aqui

    tambm vivi tantos outros momentos e vidas que modificariam, inclusive, a minha forma de

    ver o outro e a mim. Aqui conheci os paneleiros2

    . Conheci Wldia Torres minha esposa eparceira de cena, Paulo Soares meu grande amigo e eterno provocador, Evan Teixeira parceiro

    de tantas outras, e outros parceiros de cena e de vida. Aqui morei, aqui estou. Aqui.

    Foi aqui onde me encontrei primeiramente poeta. Ao olhar, da minha janela, para as

    ondas no escuro da noite e ouvir o som meldico que vinha de l sempre bastante temperado

    de uma densa maresia, escrevia. Muitas vezes poemas ou frases de um jovem apaixonado pela

    paixo. Pieguismos juvenis que talvez cometa nessa escrita. Sim, cometerei! Ou j cometi.

    1Manoel de Barros;2Paneleiros so os membros do Grupo Panelinha de Teatro.

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    Depois, mas ainda aqui, me descobri ator. Ator? Em 2010, quando completei 20 anos,

    ingressei no curso de Licenciatura em Teatro no Instituto Federal de Educao, Cincia e

    Tecnologia IFCE. Logo que cheguei pedi para um professor3que me sugerisse uma lista

    com nomes importante do teatro para estudar. Appia, Craig, Stanislavski, Meyerhold,

    Decroux, Grotowski, Brecht e tantos outros. Estudei praticamente todos e buscava ler mais e

    mais sobre cada um. Sentia-me velho por ter comeado a fazer teatro com 20 anos enquanto

    alguns tinham nascido ali. O tempo! O mesmo tempo que andava ou anda comendo, fora, a

    filsofa Viviane Mos. O mesmo que ela diz ter encarado de frente, conquistado e remoado.

    Mas eu no sei se consegui encar-lo de frente, seduzi-lo, conquist-lo. No, mas sempre

    perto, a beira de.

    Por ultimo, sem fugir daqui, me descobri direto/criador. Um convite inusitado

    provocou a descoberta. Apresentar em uma mostra chamada Amostragem IV Exposio

    Livre de Artes que aconteceria no Mercado dos Pinhes. Convite recebido e aceito.

    Rapidamente estvamos eu e uma amiga4ensaiando uma proposta de interveno, inspirada

    em alguns movimentos do Teatro Fsico, chamada Caixa Preta (2010). Futuramente

    dirigiria outros experimentos, solos e em grupo, como o esquete Monlogo do Corpo

    (direo e atuao) em 2010, a performance O Nascimento do Homem (direo e atuao)

    em 2011, a performance/interveno Concretizando Toques com o Grupo Poticas do

    Corpo, o esquete/performance O Tempo de um Cigarro em 2013 (objeto de estudo principal

    aqui), Fluxos/Experimentos Criativos em 2014 e atualmente o esquete Palndromo

    (direo e atuao) com o Grupo Panelinha de Teatro. Todos esses trabalhos pareciam tudo,

    menos teatro! Bem, o que me diziam.

    E aqui, mais especificamente em uma mesa de bar, comea definitivamente a surgir os

    lampejos de sobriedade que havia mencionado. Aqui os lampejos ainda no buscavamsignificar nada ao certo, mas geravam inquietaes e provocaes tantas. Foi aqui que

    conhecemos Paulo Soares5 e desde ento no o largamos mais. Um encontro que geraria,

    meses depois, uma experincia nica para todos os envolvidos. Uma vivncia que costumo

    lembrar como uma espcie de anarquia teatral. Um pequeno embrio comeava a nascer. Algo

    mudou, mas continuava aqui! Trs atores. Um provocador. Vrios filmes, documentrios e

    textos escolhidos a dedo. Uma pequena sala de ensaio. Pouco dinheiro no bolso. Um tempo

    3

    Danilo Pinho, professor da disciplina de Conscincia Vocal e futuro amigo e famlia;4Iole Godinho;

    5Paulo Soares ator, nasceu em Fortaleza e formou-se no Rio de Janeiro. Atualmente ator do Piollin Grupode Teatro (Joo Pessoa - PB).

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    cada vez mais curto. Um tempo que at se sabia o fim. Mas o que poderia acontecer com

    esses ingredientes?

    Paulo nos trouxe a possibilidade de trabalhar com a tcnica dos Viewpoints

    6

    . Tudo eranovo. Como uma receita feita pela primeira vez, sabendo-se apenas que existia a vontade de

    provar algo que no se sabia o que poderia vir a ser. Entre queimaduras e sabores, nesse jogo

    de vivncias, surgiram textos, cenas, msicas e tantas outras que comeavam a aparecer. Na

    sala a experincia apenas ganhava forma, pois a criao vinha dos momentos que vivamos

    juntos em lugares quaisquer. O que se criava era a vontade de estar junto. E talvez a fora

    viesse exatamente desse espao movedio da criao compartilhada. Dessa forma sem forma.

    Do fazer no fazendo. Pois nada era criado pela necessidade de criar, mas pela vontade de

    estar. Aqui. Juntos!

    Quando ele voltou para o Rio de Janeiro, ainda tentamos continuar, mas parecia

    impossvel. No continuamos. Mas no queria deixar que aquelas mudanas em mim

    desaparecessem, no sem um encontro com o pblico. Pensei bastante como fazer. Sabendo

    ou achando saber que no seria prximo da intensidade do que vivemos no trabalho com

    Paulo Soares, adoraria ainda assim arriscar e correr o risco do fracasso. E entre conversas e

    cigarros algumas coisas comearam a ganhar forma. Entre cigarros e leituras alguns conceitossaltavam na minha face. Entre cigarros e cigarros, na minha solido, o tempo foi passando

    arrancando a coragem de continuar. Entre cigarros e cigarros o tempo foi crescendo e me

    devorando por partes.

    De quantos cigarros se fazem uma obra?

    Quanto tempo dura um cigarro? Tempo fsico ou potico?

    O que pode ser feito no tempo de um cigarro?

    Como transpirar essa realidade existida em uma performance to potente como a

    experincia vivida?

    Experincia-Obra-Processo?

    (...)

    6A proposta explora processos de criao por meio de improvisao e composio corporal e vocal envolvendo

    estados de percepo, ateno, escuta e memria. Viewpoints definido por Bogart e Landau (2005) como um

    processo aberto, e no tcnica rigidamente formatada. (NUNES, s.d., p. 1).

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    Do ponto de vista platnico, a cena do teatro, que simultaneamenteespao de uma atividade pblica e lugar de exibio dos "fantasmas",embaralha a partilha das identidades, atividades e espaos. O mesmoocorre com a escrita: circulando por toda parte, sem saber a quemdeve ou no falar, a escrita destri todo fundamento legtimo dacirculao da palavra, da relao entre os efeitos da palavra e as

    posies dos corpos no espao comum.(RANCIRE, 2005, p. 17)

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    INTRODUO

    Pensar numa Introduo a este projeto me leva a refletir sobre as diversas formas

    possveis que ele poderia ter tomado. Diante de tantas possibilidades, o que escolho apresentar

    a voc uma crtica de processo, numa escrita em deriva. Esse Trabalho de Concluso de

    Curso brota de um conjunto de apresentaes, questionamentos e leituras a respeito do

    esquete/performance O Tempo de um Cigarro (2013). Uma obra-processo que surge da

    possibilidade de troca e compartilhamento de afetos entre os participantes que compuseram a

    proposta da obra e entre o pblico que a constitui. Essa relao plstica, processual, de onde

    as noes de pblico e de ator-performer se constroem mutuamente no tempo real do

    acontecimento teatral, a base primeira desta escrita.

    A metodologia utilizada por mim durante o processo de escrita desta crtica de

    processo levar em considerao o prprio carter processual da escrita, que mesmo a

    posteriori capaz de transformar a obra. Ou seja, na minha escrita ps-obra, crio arquivos da

    obra que a sua maneira reencenam esta obra na escrita diferentemente, sempre. O Tempo

    de um Cigarro no uma obra fixa, como ficar claro. Para Ceclia Salles, h obras

    processuais na arte contempornea que, ao no se fixarem, demandam ateno crtica

    daqueles que a acompanham como criadores:

    H tambm obras processuais, que acontecem na continuidade, ou seja, na rede empermanente construo que fala de um processo, no mais particular e ntimo. (...)So obras que nos colocam, de algum modo, diante da esttica do inacabado; nosincitam seu conhecimento e consequente acompanhamento crtico dessas mutaes.(SALLES, 2005, p. 755)

    Se uma obra processual demanda um acompanhamento crtico, isto que me cabe

    aqui: escrever uma crtica do processo de O Tempo de um Cigarro. Entendendo que todos

    os processos, tanto da obra quanto da crtica do processo por escrito, partilham de uma basede reflexo e prtica comum, ambos aproximam-se do processo como construtor de

    possibilidades. Desta forma, a escrita replica caractersticas que so das artes cnicas: ela

    catalisa processos em tempo real. Esta uma discusso que tem ocupado a terica da

    performance Peggy Phelan. Como se apresenta performance na escrita? Seria possvel fixar

    um evento performativo sem alter-lo? Segundo Phelan os crticos e os tericos da

    performance, ao se dedicarem a registrar sempre s o lado psquico do evento [aquilo que

    acontece na experincia interior do performer] ou, ao contrrio, s o seu lado puramentematerial [aquilo que se d a ver], cometem uma boa dose de negligncia. (PHELAN apud

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    COSTA, 2006p. 11). Seria necessrio, para Phelan, que o crtico de performance ache um

    entre-lugar, e que faa de sua escrita uma oportunidade de reencenao da pea assistida.

    Uma das formas de no cometer negligncias, acredito, o escritor manter umapostura aberta em relao s pessoalidades presentes nos depoimentos, registros e arquivos

    guardados anteriormente, e tambm colocar-se na escrita com sinceridade, atravs de uma

    postura reflexiva sobre si mesmo. Esse processo de refletir sobre a prpria escrita durante o

    seu percurso me sugere a aceitao das possibilidades que se apresentam quando a memria

    deste artista-em-processo se mostra falha ou lacunar. A escrita, assim, pode se construir como

    uma performance de descoberta de si mesmo. Uma escrita performativa. Assim, vejo a

    possibilidade de criarmos outros sentidos de apreciao das reflexes a seguir.

    O trabalho ser apresentado a partir de dois captulos principais e uma breve

    concluso. O primeiro, nomeado Entre a performance e o teatro: atravessamentos terico-

    prticos, reflete sobre o aparato conceitual que me possibilitou dialogar mais profundamente

    com esta obra. A reviso bibliogrfica a contida delineia um campo de atrao entre o teatro

    e da performance levanta conceitos pertinentes para os dilogos e reflexes desta pesquisa,

    principalmente a partir das anlises de Eleonora Fabio sobre a performance e de Josette Fral

    sobre teatro performativo. Tambm me refiro a artistas de teatro cujas pesquisas tambm seaproximam dessa relao entre teatro e performance, como Jerzy Grotowski e Antonin

    Artaud. A segunda parte reflete sobre o lugar do arquivo na criao contempornea em teatro

    e especialmente no percurso da performance/esquete O Tempo de um Cigarro. Nesse

    segundo momento, ento, crio uma possibilidade de arquivar as 10 apresentaes desse

    esquete durante os anos de 2013 e 2014. Nesse arquivo, passo a entender essa obra como

    movedora do conhecimento e no o inverso. Em outras palavras, percebo ao memorializar

    estas apresentaes que o processo prtico e criativo de apresentar e adaptar esse esquete adiferentes pblicos e lugares proporcionou a mim uma experincia de pesquisa, j que o

    processo demandava contnua mudana a partir de coisas aprendidas fazendo a performance.

    Procurei disponibilizar o mximo de informaes testemunhais sobre a obra e seus processos

    de criao para possibilitar uma entrada mais profunda nesta obra que permanece em

    movimento. O terceiro e ltimo momento da monografia uma tentativa de reflexo sobre

    todo o percurso de escrita e sobre as possibilidades que se inauguraram para mim a partir

    dessa metodologia da crtica de processo e sobre o ato de arquivar nas obras contemporneas.

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    Eu poderia iniciar tranquilamente o processo de escrita formal de anlise dessa obra

    sem admitir que, mais frente, falharia em tentar dizer o indizvel desta experincia. 7Mas

    quero deixar claro que esta escrita um jogo labirntico e lacunar de derivas poticas. Assim

    construiremos um ponto de flexibilidade entre ns. Ser possvel outrar-se8. Assim teremos

    infinitas possibilidades de inveno. Logo, no pretendo lhe conduzir para algum lugar

    especifico onde a experincia de entrar em contato com essa obra se fixar, repousado

    embaixo de um guarda-sol multicorido que preto-e-branqueou com o tempo. O jogo entrar e

    experimentar sem negar esse labirinto de memrias incertas. Isso no morrer ao encontrar o

    minotauro que nos aguarda. E por que percorrer sozinho?

    Uma sucesso de perguntas: O que faz voc pensar que a lembrana de algo vivido

    realmente a memria/imagem real do acontecimento? O que se move ou pode mover atravs

    do teatro? O que se espera de uma obra teatral e o que se pode com ela? Existem limites para

    essa criao? Como proceder para analisar uma obra que nasce sem se saber nascer? O que

    poderia ser considerado real dentro de uma obra teatral? O que o elemento relacional nas artes

    pode nos proporcionar para pensar a possibilidade de criao de afetos? Qual ser o espao

    adequado para essas perguntas dentro desse contexto? H esse espao? Dizer sim necessrio

    para continuar.

    7O indizvel s me poder ser dado atravs do fracasso de minha linguagem. S quando falha a constru o,

    que obtenho o que ela no conseguiu. Clarise Lispector,A Paixo Segundo GH, 1998 ,p. 119.8Fernando Pessoa.

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    L#B#R#NT#9

    s vezes penso que sou um labirinto.

    Um labirinto pra mim mesmo.

    Olho meu reflexo no espelho e no o reconheo.

    No o reconheo por que essa imagem refletida representa o meu passado.

    Um passado nada distante, mas um passado que j no sou.

    Pode ser engraado pensar, mas a cada instante algo em mim se modifica.

    Tento entender o porqu, mas pra que?

    (...)

    Dizem que mais fcil entender certas coisas quando a olhamos de fora

    Mas penso que to igual para ambas as partes.

    Chego a esse ponto sem j no reconhecer minhas prprias palavras.

    Muito menos aquelas que foram pronunciadas.

    Cauteloso, penso que ao fim de tudo isso deveria jogar essas palavras fora.

    (...)

    No, no me desfao.

    Dou de presente para aquelas pessoas que se sentem encorajadas a andar e se despir em uma

    estrada que pensam enxergar o fim!

    Boa sorte.

    9 Eu poeta, poeta eu. Poema publicado em 29 de Julho de 2011(http://dyegostefann.blogspot.com.br/2011/07/lbrnt.html)

    http://dyegostefann.blogspot.com.br/2011/07/lbrnt.htmlhttp://dyegostefann.blogspot.com.br/2011/07/lbrnt.htmlhttp://dyegostefann.blogspot.com.br/2011/07/lbrnt.htmlhttp://dyegostefann.blogspot.com.br/2011/07/lbrnt.html
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    CAPITULO 1 - ENTRE A PERFORMANCE E O TEATRO: ATRAVESSAMENTOS

    TERICO-PRTICOS

    [Odds And Ends,de Dionne Warwick.]

    Outrar-se

    Quando iniciei esse processo me sentia mergulhado, voluntariamente, em uma poa de

    vazio10. Uma poa aparentemente rasa e que me fazia, antes de pular, ter a sensao de tocar o

    cho com os ps. Preparei um salto. Pulei sem medo. Como um Yves Klein11contemporneo,

    saltando no vazio. Aps pular, rapidamente fui levado para outro lugar. Um lugar onde as

    possibilidades eram tantas, infinitas. Inicialmente o meu corpo pareceu rejeitar a ideia de ter

    tantas possibilidades minha disposio. Por medo, parecia ser mais aceitvel a mediocridade

    da vida cotidiana do que viver com essa exploso de possibilidades que se apresentavam de

    tantas formas voc pode ser isso, voc pode ser aquilo, voc pode fazer assim, voc pode

    fazer assado. Logo o meu apurado sentido de auto-sabotagem gritou nos meus ouvidos

    pedindo para nadar para longe, fechar os olhos e ouvidos, tentar rapidamente preencher esse

    lugar (des)conhecido com todos os outros nadas que existiam dentro de mim, s para

    confortar meu corpo, aproximando-o do lugar mais familiar. Mas por que no experimentar a

    desafiadora possibilidade do vazio? Algo dentro de mim preferia no correr. Preferia ficar. E

    o vazio me preferia engolir e antropofagizar a mim mesmo. Precisaria eu me engolir por

    inteiro. Precisaria eu dizer sim.

    Sim! Agora estou dentro. E eis que o vazio tinha muito mais energia do que eu

    imaginava. Tinha eu que preparar o corpo para no explodir. Mas a energia parecia no ser

    sugada imediatamente para o meu corpo. Parecia querer ser seduzida ou me seduzir. Existia

    um jogo ali. Logo percebi que no se tratava apenas de esvaziamento ou exploso, mas sim de

    uma possibilidade de peregrinar por regies (des)conhecidas do prprio ser/saber. Aproximar-

    se de cada local pontualmente e perceber a grandeza de cada espao/tempo. Desafiar o desafio

    do novo e manter-se curioso e atento s pequenas descobertas. Descobrir esse vazio a partir da

    10 Quando proponho dialogar sobre o vazio no estou dialogando com um conceito fechado, estou apenas

    sugerindo uma imagem. Do vazio. Mas no estou me reportando a um lugar sem potncia, inspido ou frgido.Estou refletindo sobre um lugar repleto de possibilidades de ser/estar, um lugar de ocupao.11

    Yves Klein (1928-1962) foi um artista francs que causou grande polmica com suas obras. Enquanto algunsestudiosos de sua poca o classificam como neodadasta outros dizem que Klein foi o precursor da artecontempornea. Em uma de suas foto-montagens, ele aparece saltando de cima de uma casa, prestes amergulhar na calada.

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    relao com o(s) outro(s). Outrar-se12. Construir vagarosamente um espao de saberes

    coletivo. Preenchendo esse lugar inicial de provocaes at que transbordasse em formas de

    sensvel. Forava-me a um desnudamento. Um desnudar-se de si. Um ser intensamente

    escorregadio. Um ser coletivo.

    A expresso outrar-sede Fernando Pessoa traduz esse primeiro procedimento do qual

    fui obrigado a lanar mo. Esse jogo potico que Pessoa faz com a palavra, que se refere ao si

    diante das possibilidades de coletivizar esse si:

    Em Fernando Pessoa temos o devir do eu como um outro que pode ser enunciadonuma verso radical como as formas eu poder ser tu sem deixar de ser eu porque,de sada, o eu que enuncia vrio; o significante eu e o fato de ser um eu de eus (eu

    deus) constitui o prprio dilogo da heteronmia. [] O eu pretensamente centro dapersonalidade uma iluso ficcional, para ele, adquirimos uma personalidade, porhbito ou defeito existencial, pois, na verdade, o eu feito de eus, isto , eumltiplo, s por conveno e economia lingstica, concebido como eu unitrio ecoeso. (GOMES, 2005, p. 95)

    Precisei despir-me e outrar-me para comear a criar. Habitar diferentes verses de

    mim mesmo. Isso me despertava para uma crtica da ideia de real. Um estudante de teatro

    outrado que passa a se perguntar o que o real? Posso compor com o real? Poderia eu

    manipular alguma dimenso um pouco mais distante da ideia ou ideal de teatralizao no

    teatro? Buscar uma forma de mostrar que a prpria vida capaz de virar arte medida quefao dela esse lugar de outrar-se? Talvez essa postura experimental diante de si mesmo seja a

    tal intencionalidade que Kaprow dizia diferenciar o praticante da no -arte, que ele vai

    chamar de a-artista, do artista praticante da [mais tradicional e comercializvel] arte-arte

    (COHEN, 2002, p. 46).

    Essa tentativa de desartificializao das artes, buscando a diluio de toda e qualquer

    artificialidade que se coloca nesse espao como as oposies entre atuante e platia, vida e

    arteme interessava. Mas o que poderia ser considerado esse real em uma obra teatral? Sua

    qualidade de se fazer e se construir no presente, impossibilitando a diferena de tempo entre o

    visto e o vivido? Entre a cena e o pblico?Quem comanda essa cena? Como fazer? Ou, como

    refazer?

    A cena da vida se faz, se executa: necessria, implacvel, livre de qualquer saber

    prvio tanto dos atores como dos espectadores13. Um risco, assumidamente, duplo. Mas como

    colocar o performer nessa situao de risco real sem prejudicar a continuidade da obra?

    12Fernando Pessoa13Helga Finter: A Teatralidade e o Teatro. 2007, Revista Camarim.

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    Como segurar o interesse do pblico ou como seduzi-los para esse lugar de criao onde todos

    so responsveis pela obra? Como sustentar a qualidade de real dentro de uma obra teatral

    sem a utilizao de estratagemas que excluiriam a possibilidade desse duplo? Seria preciso o

    uso de estratgias de manuteno desse lugar medida que o risco do esvaziamento da

    encenao se mostrasse com dentes pontudos.

    Pela necessidade de desbravamento desse lugar do real no teatro, a obra se fez

    processo. Obra-processo. Digo obra-processo, com hfen, por entender a no dissociao de

    ambos como potncias criadoras e por tambm acreditar nesse procedimento como germe que

    possibilita novas perspectivas para os performers envolvidos e sua audincia, formando um

    conjunto de consonncias reais de experimentaes e experincias. Esse eterno lugar de

    descoberta era o que me instigava a continuar.

    Obra-Processo

    As Lies de R.Q.

    [...]Arte no tem pensa:

    O olho v, a lembrana rev, e a imaginao transv. preciso transver o mundo.Isto seja:Deus deu a forma. Os artistas desformam.[...] (BARROS, 2010, p. 350)

    [Cest la quate,

    de Caroline Loeb.]

    Quando decidi sugerir essa imagem de obra-processo com hfen a ideia era a de

    reforar a proximidade entre ambos, numa co-existncia. A questo no a de fazer uma obra

    do seu processo, sendo a obra uma transferncia direta da sala de ensaio para o espao cnico,

    mas sim uma obra cuja dramaturgia se estrutura como processo, medida em que a

    experincia do encontro com o pblico transforma o fazer durante o prprio fazer. A questo

    da obra aberta, com pluralidade de significados, uma perspectiva muito refletida pelos

    idealizadores de um teatro que se diz experimental medida que cria, como prope Tania

    Alice, uma resistncia ao mundo globalitarista, s estticas dominantes, ao teatro de

    consumo, evoluo ps-moderna (ALICE, 2010, p. 21). Resiste tambm, em alguma

    medida, s normas, regras e convenes teatrais que buscam produzir uma espcie de

    cardpio de pratos certos. O lugar do processo nessa obra diz respeito arte que se coloca em

    um lugar de des-utilidade para produzir uma possibilidade de afetar e recriar percepes. Uma

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    obra-processo, assim, cria possibilidades de Manoel de Barriar-se junto sua audincia.

    Deus deu a forma. Os artistas deformam. (BARROS, 2010, p. 350)

    Como ento fazer uma obra aberta ou obra-processo no teatro? Em O Tempo de umCigarro, procuramos por exemplo afirmar o espectador como parte constitutiva da cena,

    possibilitando um lugar movedio de criao, horizontalizando o estar diante da obra. O

    espectador tambm move a cena, no s o ator-performer. Ele tambm a cena. Essa

    interveno do espectador na cena na realidade revela um procedimento formal muito forte na

    cena contemporna, uma abertura fundamental que aparece em muitas experincias estticas

    do sculo XX. De alguma forma, o procedimento da participao do espectador tambm se

    enquadra no que Renato Cohen chamou de work in progress. Segundo Cohen:

    Como trabalho, tanto no termo original quanto na traduo acumulam-se doismomentos: um, de obra acabada, como resultado, produtor; e, outro, do percurso,

    processo, obra em feitura. Como processo implica interatividade, permeao; risco,este ultimo prprio de o processo no se fechar enquanto produto final. (COHEN,2006, p. 20)

    O inacabado e o imprevisvel parecem qualidades que atualizam aquele estado de

    iminncia que eu sentia antes de saltar e mergulhar no vazio. Atravs das ideias de obra-

    processo e de work-in-process, novos processos e possibilidades se inauguram, j que os

    artistas rompem com as convenes em prol de uma atitude de experimentao. O vazio que

    sugeri pensar no inicio desse processo se relaciona com essa atitude: um vazio como um

    lugar de criao, transformao, um lugar onde se precisa mergulhar para descobrir novas

    possibilidadesinclusive novas verses de mim mesmo, implicada no que Pessoa chamou de

    outrar-se.

    Pensando nessa abertura/permisso de estar em processo, e visivelmente em estado de

    desconforto, criamos uma estrutura teatral com O Tempo de um Cigarro em que o fator

    processo vem de fora para dentro, isto , tendo a audincia como inauguradora de mudanas

    na prpria obra. O pblico, portanto, como ncleo gerador de movimento; movimento como

    possibilidade de trnsito; e trnsito como imitao do caos. Sendo assim, o espectador seria

    um movedor/criador da cena e tambm se caracterizaria como gerador de caos, entendendo o

    caos como fluxos desordenados de momentos imprevisveis:

    A insero do elemento caos na cena contempornea elege o campo "irracionalista"como campo de trfego desses procedimentos que operam narrativas subliminares e

    outros nveis de captao de realidade. O territrio "irracionalista", normalmenteassociado a esquerdas, assimetrias, loucura, estabelece um campo antpoda aos toposlogocntrico. (COHEN, 2013, p. 23)

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    O irracionalismo em questo no estabeleceria uma cena improvisasional, no entanto.

    Acredito que a questo principal dessa obra seja o que se inaugura como cena a partir da

    participao ativa da audincia como elemento constituinte do jogo cnico. A qualidade deperformar programas (FABIO, 2009), diante de uma audincia, ativa essas zonas que

    Cohen chama de campos irracionalistas, que por sua vez afloram, em todos que esto diante

    da obra, um refluxo que corri as convenes de interpretao medida que destri, atravs

    de atos instintivos, as mscaras sociais.

    Esse tipo teatro-em-processo est, claro, sempre na iminncia de falhar. Segundo

    Schechner em todos os tipos de performance uma certa fronteira definida cruzada. E se no

    , a performance falha. (SCHECHNER, 2011, p. 217). Mas nessa proposta de processo,

    falhar ruim? Se existe a possibilidade de falhar, qual o objetivo do performer diante da

    cena? Em se referindo ao que chamou de teatro performativo, Josette Fral escreveu que o

    objetivo do performer no absolutamente o de construir ali signos cujo sentido definido de

    uma vez por todas, mas de instalar a ambiguidade das significaes, o deslocamento dos

    cdigos, o deslizamento de sentido (FRAL, 2009, p. 205). Mas nO Tempo de um Cigarro

    a falha no era uma possibilidade restrita ao sentido semitico. Na nossa experincia, cuja

    forma dependia do envolvimento do pblico, a falha se deu em vrios lugares. Alis, nsnunca paramos de falhar. Porm, a performance continuou funcionando. Mesmo em

    momentos em que o pblico no respondia e institua uma falha forma, o objetivo geral da

    cena se mantinha ntegro. Com o tempo, percebemos que exaltar a falha durante a mesma,

    revelando-a como falha, como erro, era uma possibilidade de exerccio nova, aonde um pacto

    se estabelecia entre todos numa busca por outras possibilidades de estar/continuar juntos.

    Na perspectiva do nosso trabalho, a dramaturgia processual da obra se estabeleceu

    como uma espcie de ritual de palavras e fumaa. Os atores entravam em cena conduzidos

    pelo programa que conduzia o objetivo central: provocar o pblico a compor a cena conosco.

    O cigarro o primeiro dispositivo gerador de provocaes: algum quer fumar comigo?

    Seduzidos pela cena os espectadores so conduzidos ao palco onde so bombardeados com

    estmulos. Ao reagirem, continuamente deslocam a cena para um lugar novo e cheio de

    possibilidades. Uma tima imagem seria a de um circo, s que s avessasos domadores de

    lees geralmente conduzem-nos a saltarem, rodarem e fazerem truques j certos, mas no

    nosso caso os lees so cutucados com vara curta e so extremamente desobedientes e

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    podem a todo o momento devorar os domadores. Dessa tenso nasce o trabalho, que hoje eu

    associo ao teatro performativo.

    Teatro Performativo

    [Mic Check,

    de Cornelius.]

    O teatro uma arte em trnsito, uma eterna descoberta de novas poticas e de formas

    de criaes que possibilitam novos modos de sensibilizao da audincia e do prprio artista.

    Esse trnsito reflete a forma como a arte est em dialogo constante com seu meio medida

    que a sociedade transforma-se e recria-se. Na contemporaneidade, o gnero artstico das artes

    cnicas que vai radicalizar o elemento de transitoriedade e efemeridade presente no teatro a

    arte da performance. Peggy Phelan j anunciava que a nica vida da performanced-se no

    presente (PHELAN, 1998, p. 171), portanto esse gnero ou forma artstica pura

    transitoriedade.

    Hoje em dia se fala muito de uma aproximao entre teatro e performance. O que se

    inaugura a partir dessa possibilidade de hibridizao? Segundo Fral, a expanso da noodeperformancesublinha [...] (ou quer sublinhar) o fim de um certo teatro, do teatro dramtico

    particularmente e, com ele, o fim do prprio conceito de teatro tal como praticado h algumas

    dcadas. (FRAL, 2009, p. 199). Essa aproximao com a arte de performance inaugura um

    novo olhar sobre a criao teatral a partir de novas possibilidades de composio. Mas o que

    podemos esperar dessa imbricao e o que se deseja com essa aproximao? Para Eleonora

    Fabio (2009) essa aproximao favorece de forma prtica e terica, mutuamente, as duas

    linguagens, como por exemplo:

    [...] a ampliao de pesquisas corporais e o investimento em pesquisa especficasobre dramaturgia do corpo; ampliao do repertrio de mtodos composicionais eo investimento em pesquisas especficas sobre dramaturgia do ator; investigaosobre dilogo entre gneros artsticos e sobre gneros hbridos; discurso deconceitos atravs de mais outro vis alm da teoria do drama e das histrias deidentidade e polticas de produo de recepo; valorizao de uma investigaoespecfica sobre dramaturgia do espectador. (FABIO, 2009, p. 241)

    Assim emerge um novo campo de pesquisa: o teatro performativo. E com ele novas

    possibilidades de inveno da cena teatral contempornea. Mas o que se entende como

    performance? Definies no so fceis. Acredito at que sejam impossveis, pois esse gnero

    escapa pelos dedos ao passo que se tenta enquadra-lo em definies fechadas. Geralmente

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    quando se pretende refletir um pouco mais sobre esse gnero buscamos aproximaes,

    traamos tendncias a partir do que se pode visualiza nas obras j executadas. Alguns tericos

    apresentam questes bastante interessantes. Segundo Fral, se h uma arte que se beneficiou

    das aquisies da performance, certamente o teatro, dado que ele adotou alguns dos

    elementos fundadores que abalaram o gnero (FRAL, 2009, p. 198). Esse abalo provocado

    pela performance talvez tenha sido gerado pela sua caracterstica de fronteira (COHEN,

    2002, p. 27). Para Cohen, esse estar entre linguagens possibilita uma nova percepo da

    cena. Novos elementos passam a despertar provocaes sobre a cena como, por exemplo, o

    ator que se transforma em performer, no interpretando um personagem, mas emprestando

    seu corpo como um danante ou um sacerdote da cena, para o acontecimento teatral.

    Grotowski clarifica: "o performer, com maisculo, o homem de ao. No ohomem que faz o papel do outro. o danante, o sacerdote, o guerreiro: est forados gneros estticos (...) O performer no deve desenvolver um organismo-massa,organismo de msculos, atltico, mas um organismo canal atravs do qual as forascirculam (FRAL, 2009, p. 241)

    Alm dos novos regimes de atuao para quem est em cena, reflexes sobre a

    importncia do espectador tambm se tornam um dos focos da cena performativa. V-se nas

    relaes com o espectador uma possibilidade de reinveno. Ele ganha mais notoriedade

    dentro de algumas criaes performativas ao passo que intervm diretamente sobre ela,recriando-a durante sua execuo. Ele fala, toca, modifica, intervm nos programas, na

    dramaturgia. um novo performer. Segundo Fral, a negao da mmese tambm se torna

    uma questo marcante do teatro performativo. H um deslocamento da dramaturgia, que antes

    era focada no texto e que agora diluda em todos os elementos. Para Fral, todas essas

    mudanas sugerem um jogo de desconstruo que busca outras possibilidades de criao:

    Essa desconstruo passa por um jogo com os signos que se tornam instveis,

    fluidos forando o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar deuma referncia outra, de um sistema de representao a outro, inscrevendo semprea cena no ldico e tentando por a escapar da representao mimtica. O performerinstala a ambigidade de significaes, o deslocamento dos cdigos, os deslizes desentido. Trata-se, portanto, de desconstruir. (FRAL, 2009, p. 203)

    Nesse tipo de teatro o performer geralmente busca um engajamento total com a obra.

    Por exemplo, com a diminuio do artifcio na cena o performer busca causar uma distoro

    na percepo de sua audincia buscando estabelecer um jogo entre o que est sendo

    representado e o que realidade. Para isso ele precisa mais do que uma pulso de energia, ou

    de um bom preparo fsico e vocal, ou de um bom desenho de cena. Ele precisa se preparar

    para doar-se por inteiro e encenar a sua prpria subjetividade. Fral fala que essa entrega:

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    consiste no engajamento total do artista colocando em cena o desgaste quecaracteriza suas aes (Nadj, Fabre). No se trata necessariamente de umaintensidade energtica do corpo no modelo grotowskiano, mas de um investimento

    de si mesmo pelo artista. Os textos evocam a vivacidade (liveness) dosperformers, de uma presena fortemente afirmada que pode ir at uma situao derisco real e implica em um gosto pelo risco (FRAL, 2009, p. 207)

    Percebo claramente alguns desses aspectos em composies contemporneas de

    grupos brasileiros e estrangeiros. Eleonora Fabio por exemplo cita o Teatro da Vertigemde

    So Paulo, que traz como marcas:

    a criao de uma cena hbrida onde elementos fictcios e no-fictcios sojustapostos e um curto-circuito representacional ativado; a fora polticadeslanchada por tal operao; a ocupao de espaos extracnicos (para que

    possam circular outras dinmicas relacionais); a ampliao de caractersticasparticulares (em busca de uma dramaturgia pessoal); a valorizao da experincia eda experimentao psicofsica atravs dos mtodos criativos utilizados; avalorizao do ator-dramaturgo e do artista-etngrafo. (FABIO, 2009, p. 242)

    Mas ao longo da minha experincia na graduao e trabalhando em Fortaleza, poderia

    tambm citar outros grupos de teatro que adotam procedimentos similares: a Cia P, o

    EnFoco, o C.E.M., o No Barraco da Constncia Tm!, o Coletivo Soul, entre outros.

    inegvel que esse campo de pesquisa cnica vem ganhando espao nas discurses atuais.

    Acredito que esse espao vem sendo conquistado pela presena de vrios grupos produzindo edesenvolvendo pesquisas aprofundadas sobre questes relacionadas com a

    expanso/hibridizao das possibilidades de criao, todos fortemente estimulados pelos

    movimentos artsticos inaugurados na segunda metade do sc. XX, com os happenings, a

    body art, a performance art. Hoje, os artistas de teatro passam a experienciar suas obras de

    outras maneiras e tambm a questionarem modelos que parecem, para alguns, no fazer mais

    sentido diante da sociedade que os circunda. De modo geral, percebo que h nessas pesuisas

    um investimento na des-ficcionalizao, isto , um investimento numa dramaturgia do real. Oatravessamento do real na cena teatral uma marca tambm da gnese de O Tempo de um

    Cigarro.

    O que faz (ser) real?

    [Count Five or Six,

    de Cornelius.]

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    Durante as apresentaes de O Tempo de um Cigarromencionava alguns depoimentos

    que habitaram a cena. Abaixo citarei alguns, mas apenas um deles REAL. Qual?

    1. Roubei dinheiro, mais de uma vez, de um amigo prximo;

    2. J bati em uma mulher, por dio e amor;

    3. Quando criana eu fui assediado por um professor;

    4. Relacionei-me com uma mulher casada por curiosidade;

    5. Cheguei a segurar uma faca para matar algum;

    6. S consigo me masturbar vendo filmes porns bem diferentes na internet.

    (O leitor gostaria de arriscar algum?)

    Para mim, todos de alguma forma so possveis. Por que no? Quem nunca roubou algo?

    Chocolate, por exemplo?! Um beijo. Quem nunca agrediu algum por amor? Curiosidade,

    quem nunca teve? Ou vontade de matar por vingana, raiva ou at amor? Existem tantasformas de sentir prazer, por que a minha no poderia ser essa? Caso todos fossem reais eu

    seria apenas um criminoso e/ou mau carter? E se todos fossem irreais seria eu apenas um

    mentiroso? E se de fato apenas um fosse real, qual seria? E se caso todos tivessem um pouco

    de real e irreal?

    Essa questo sobre o que real me intriga bastante. Fico tentando elaborar essa

    questo o tempo inteiro e pareo no chegar a lugar algum. Sim, essa questo demandaria, a

    meu ver, uma base filosfica recheada de questes profundas e densas. O que no quero nemposso fazer aqui. O que quero apenas levantar ideias sobre o real no teatro que informam

    a dramaturgia dessa obra e, tambm, gerar um possvel dialogo entre a questo do real e

    esta escrita.

    Assim, o que a terica da performance Peggy Phelan afirma que A performance

    aproxima-se do Real ao resistir reduo metafrica de dois em um. Mas, ao distanciar-se dos

    objetivos da metfora, reproduo e prazer, para se aproximar daqueles da metonmia,

    deslocamento e dor, aperformancemarca o corpo em si mesmo como perda. (1998, p.179).

    No toa, grande parte das obras de performance que trabalham com a operao da

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    metonmia, implicam em aes fisicamente dolorosas para o performer. Quando Phelan trs

    essa reflexo sobre a metonmia contestando o lugar da metfora, me parece sugerir uma

    questo que dialoga diretamente com o contexto das encenaes contemporneas: realidade

    (metonmia) e/ou teatralidade (metfora) presentes na cena produzindo diferentes nuances e

    qualidades de presena. Estas presenas no teatro performativo nem sempre so prazerosas,

    mas sim dotadas de dor e de risco. Isto me faz lembrar a oposio entre o ator corteso e

    ator santo anunciado pelo teatro laboratrio de Jerzy Grotowski:

    A diferena entre o ator corteso e o ator santo a mesma que h entre a perciade uma cortes e a atitude de dar e receber que existe no verdadeiro amor: em outras

    palavras, auto-sacrifcio. O fato essencial no segundo caso a possibilidade deeliminar qualquer elemento perturbador, a fim de poder superar todo limite

    convencional. No primeiro caso, trata-se do problema da existncia do corpo, nooutro. A tcnica do ator santo uma tcnica indutiva (isto , uma tcnica deeliminao), enquanto a do ator corteso uma tcnica dedutiva (isto , umacmulo de habilidades). (GROTOWSKI, 1992, p. 30)

    A metfora14parece faz parte do exerccio prtico do ator corteso, enquanto a

    metonmia15parece definir o ator santo. Na classificao de Grotowski, o ator santo, ao

    eliminar as convenes de representao mimtica entre ele o a personagem, elimina tambm

    as fronteiras entre arte e vida, ou seja, entre representao e real. Logo, a operao

    metonmica nos faz pensar na possibilidade de cena-no-cena ou de teatro-no-

    representacional16 vislumbrado pelo francs e visionrio Antonin Artaud. Para Artaud, o

    teatro, a exemplo da peste, deveria provocar no corpo reaes instantneas, fortes e

    verdadeiras. O ator opera um ato de crueldade medida que ele se aproxima da peste e a

    expe como parte fundante dele prprio.

    Ento j que o teatro como a peste, no por ser contagioso, mas porque, como a

    peste, ele a revelao, a afirmao, a exteriorizao de um fundo de crueldade latente

    atravs do qual se localizam num indivduo ou num povo todas as possibilidades perversas doesprito (ARTAUD, 2006, p. 27), ento ele revelaria a potncia da vida como provocadora de

    tenses reais, imediatassem deixar de ser teatro. Diferente da mediao teatral que causaria

    essa tenso atravs da metfora da vida, ou seja, da representao do real, tanto o ator

    santo de Grotowski quanto o ator empesteado de Artaud oferecem possibilidades muito

    valiosas de se pensar uma dramaturgia do real na cena teatral.

    14Entendendo-a como uma ao de emprstimo do corpo, e este como ferramenta do ser, para apropriao

    de outro (personagem) diante de uma audincia que dialoga com o reconhecimento daquela ao.15 Entendendo-a como uma co-extenso da singularidade do eu na personagem em prol de uma obra que

    busque trocar qualidades de afetos.16Termos propostos por Eleonora Fabio, 2009.

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    Mas quando afirmamos a presena do real dentro de uma obra teatral o que estamos

    realmente apontando? Algo que foge das regras da teatralizao (questo formal)? uma

    tentativa de representar o real ou de criar outras realidades (questo conceitual)? Mas o real

    continua real dentro de uma obra teatral? Existem possibilidades de controle? O teatro do

    real seria uma esttica/conceito teatral que busca um choque e/ou uma tenso entre as

    normas/cnones teatrais e os atos experimentais da arte enquanto ritual?

    Esses questionamentos me levaram a pesquisar a live art, que nada mais que a arte

    ao vivo e tambm a arte viva. uma forma de fazer arte numa aproximao direta com a vida,

    em que se estimula o espontneo, o natural, em detrimento do elaborado, do ensaiado

    (COHEN, Renato. 2002 p. 38). Pode aperformancenos ajudar a entender essa invaso do real

    na cena teatral contempornea?

    Durante o processo de criao de O Tempo de um Cigarro, eu e a atriz Wldia

    Torres17 passvamos por um grande problema fsico e financeiro: parar ou no parar de

    fumar? Conseguiramos? Essa era nossa grande questo. Fsica por ser algo que influenciava

    diretamente nossa sade e financeira por conta do preo de cada carteira multiplicada pela

    quantidade delas por semana/ms. Decidimos parar. Antes da primeira apresentao eu j

    estava h semanas sem fumar. Estava extremamente ansioso e mal humorado. Em casa, natentativa de finalizar a apresentao de logo mais, me veio uma questo: como reagiria o

    corpo de um ex-fumante ao se deparar com a possibilidade de fumar? Qual a sensao do

    primeiro trago? O corpo reagiria a favor ou contra? Como ficaria a voz? Seria a necessidade

    de colocar o real em cena apenas uma estratgia do corpo de me induzir a voltar a fumar?

    Logo, estava eu no posto comprando uma carteira de cigarros. Pensei em vrias estratgias de

    cenas para justificar a presena dessas questes. Todas, de alguma forma, se chocavam com

    convenes de um teatro que dizia: no pode! Mas por que no pode? J que eu estou mecolocando em risco, por que tambm no arriscar no fazer teatral?

    Lembrei-me de vrios momentos em que o cigarro se fez um grande companheiro para

    preencher a solido. E, para mim, estar s perceber a grandeza do tempo18. O tempo tem que

    estar presente. O no visto tem que ser visto, vivido. O cotidiano tambm uma potica.

    Deve-se perceber o belo do cotidiano para degustar a vida. Estava agora com um cigarro

    17Atriz, performer e pesquisadora do Grupo Panelinha de Teatro.18http://dyegostefann.blogspot.com.br/2010/10/futil.htmlLeia para entender um pouco mais.

    http://dyegostefann.blogspot.com.br/2010/10/futil.htmlhttp://dyegostefann.blogspot.com.br/2010/10/futil.htmlhttp://dyegostefann.blogspot.com.br/2010/10/futil.htmlhttp://dyegostefann.blogspot.com.br/2010/10/futil.html
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    aceso na mo. Apago antes do primeiro trago! Ser o cigarro a droga que me desperta para ver

    a vida? Ser que apenas eu sou assim? Devo contar esse segredo?

    Pesquisar uma forma teatral de abordar essas questes banais ou pessoaisimpulsionou o processo de criao. Essa obra parecia ser to eu, ns, que passava a nos

    assustar.19. Mas justamente aqui que justifico meu interesse pelo real nesse processo,

    como estratgia difcil de criao, que inclui o risco da pieguice e do narcisismo, mas tambm

    o risco de uma nova relao afetiva com o pblico. Uma tentativa de expor o que de real no

    ator sem esconder-se atrs de uma forma forjada, teatralizada ou representacional. Assim

    surgiram as primeira ideias que vinham a se transformar na performance O Tempo de um

    Cigarro: numa crise de ex-fumante que voltou a fumar.

    O processo de criao comeou com um problema pessoal, mas aos poucos fui

    percebendo que falar de mim no era suficiente. Era preciso estender esse espao da fabulao

    de si tambm ao pblico. Essa exposio da intimidade causava sempre uma mistura de

    sensaes e desconfortos que, penso eu, potencializaria a obra medida que permitisse

    plateia uma possibilidade de tambm experimentar esse lugar a partir de um convite feito por

    mim: quem quiser acender o seu cigarro fique a vontade. isso. Dizer sim para o cigarro

    dizer sim para possibilidade de ser o que se quer ser dentro dessa obra. A partir danegociao e da criao de corpo aqui e agora (FABIO, 2009, p. 245). Essa seria a

    potncia presente nessa cena: a possibilidade do pblico de experimentar o seu real atravs

    do dialogo com o teatro.

    Dispositivos Mveis de Criao

    [Magoo Opening,de Cornelius.]

    Quando iniciamos as primeiras investidas desta pesquisa encontramos algo

    interessante no que Eleonora Fabio chama de programas ou programas performativos. Na

    perspectiva de Fabio, performar programas fundamentalmente diferente de lanar-se em

    jogos improvisacionais (FABIO, 2009, p. 237). Eu j comentei acima que O Tempo de

    19

    Algo que me fazia lembrar o movimento de Dana Desabafo, da coregrafa Silvia Moura. Percebo na DanaDesabafo de Silvia Moura a questo do real. Ela dana sua histri a, suas inquietaes, suas propostas e seupensamento. Pessoalmente, quando a vejo danando, sinto conhece-la um pouco mais. como se, nessadana, existisse a fora do corpo como meio de conexo com suas pessoalidades.

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    sustento cena. Como j mencionei antes, o objetivo deste esquete era possibilitar uma

    experimentao em fluxo de si, do outro, num regime mais assentado na realidade dos atores e

    espectadores que ali estavam do que na mmese de uma histria previamente escrita. O

    programa de ao que servia de base teria de ser um programa composto de alguns

    dispositivos catalisadores de ao, portanto.

    Ento, como fazer do trabalho algo que contemple essa ideia de real, buscando cria-lo

    a partir de um local movedio de partilha entre ns e o pblico? Seria possvel fazer isso sem

    forar uma imagem teatralizada? Afinal chegamos a um mtodo que seria composto de

    dispositivos de aes decididos previamente, mas que sofreriam uma alterao a partir da

    influncia do pblico sobre a cena. Chamamos esses dispositivos de dispositivos mveis de

    criao. A imagem que tnhamos era a de um aparelho ou um boto de disparo contendouma espcie de dimmerpara controlar o fluxo de ampliao do dispositivo sobre a cena a

    partir do que seria movido pelos atores, porm eles seriam mveis durante o espetculo para

    se adaptarem s necessidades das cenas, possibilitando assim essa liberdade de criao que

    seria compartilhado por todos. Tentarei dar um exemplo para facilitar o entendimento.

    Decidimos iniciar o esquete com um monlogo teatral, no sentido tradicional, e intervir nesse

    monlogo com alguns dispositivos dentro da cena. O performer se apresenta:

    Boa noite! Meu nome Dyego. Dyego Stefann. Dyego com Y e Stefann: S-T-E-F-A-N-N. Com 2 ns no final. por que nome de pobre assim mesmo, tem que terum Y ou um H onde no existe. Duas letras juntas: NN, TT... Um W. Eu tenho tudoisso ai... Bem tenho X anos. Nasci no dia 22 do 4 de 1990. Sou Taurino. Tem algumTaurino na plateia hoje? (dilogo direto com o pblico) Bem, por ser Taurino eu soucabea dura, mas sou super p no cho. Sou ciumento, possessivo... Mas cozinhosuper bem! Tenho uma namorada que odeia quando a carne fica entre os dentes e elano consegue tirar com a lngua e tenho um amigo que odeia janelas pequenas. Semmais delongas (repete todo o texto o mais rpido que puder tentando lembrar cada

    pausa) Bem, na verdade nada disso tem a ver com o trabalho, mas eu preferi meapresentar agora para vocs saberem um pouco mais de mim. Na verdade eu fiz essetrabalho por que eu sempre tive uma vontade muito grande de fumar em cena, mas

    eu nunca consegui. Hoje eu vou. (tirando um mao de cigarros do bolso) Mas no apenas pelo motivo de fumar em cena. Existe tambm o fator esttico da obra, porque afinal fumar em cena sempre muito elegante. E quem quiser fumar tambmfique a vontade, mas eu s penso uma coisa: FUME CNICAMENTE!.

    Durante o texto a atriz Wldia Torres escolheria onde acionar os seguintes dispositivos

    iniciais:

    1. Entrar em cena com um par de patins. Solt-los no cho (fazendo barulho).Coloc-los. Andar com eles pelo palco;2. Dar massagem em algum;

    3.

    Surpreender o parceiro de cena com um programa novo;4. Oferecer caf para o pblico. (deixar no palco para que eles viessem at olocal se servir);5. Arremessar carteiras de cigarro em cima do outro ator;

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    6. Falar uma frase aleatria das coxias.

    A partir da escolha em tempo real dos dispositivos, tudo se modifica. O pblico que

    convidado para o palco se mobiliza para responder a esses dispositivos fazendo com que toda

    a cena se transforme e gere novas possibilidades de materializao. como um jogo de

    tabuleiro onde os jogadores percorrem um caminho certo, mas podem voltar duas casas ou

    ganhar o jogo a depender de cada movimento. Dessa forma tornam-se parte do jogo e da cena,

    induzindo muitas vezes, o momento de ligar novamente as turbinas de energia e tambm de

    lanar em cena novos dispositivos e novas provocaes. Como proposto por Gusmo (2007),

    o espectador torna-se o elo que possibilita que as vrias funes da obra se articulem e se

    realizem. (GUSMO, 2007, p. 140). Ento, sem a participao ativa dele sobre a cena nada

    se desenvolveria.

    Para a criao de cada ao mencionada anteriormente a ideia inicial era a de

    contrapor formas e cnones estabelecidos do fazer teatral para evidenciar possibilidades de

    criaes que escapam das regras gramaticais da cena. Buscvamos correr pelas lacunas, gerar

    fagulhas desconhecidas e provocar a criao de um espao coletivo onde todos fossem parte

    desse mesmo fenmeno tentando excluir essa dicotomia entre atuante e audincia. Esse era

    nosso objetivo inicial.

    Levando em considerao essa pequena reviso bibliogrfica que apresentei sobre a

    relao entre teatro e performance, da ideia de obra-processo e de teatro performativo, hoje

    entendo que a criao dos dispositivos mveis de criao como base dramatrgica do

    esquete O Tempo de um Cigarro sintetiza um pouco uma juno dos interesses tericos que

    me acompanhavam. Eram esses dispositivos a forma ou mtodo que achamos para investigar

    essa aproximao do real com a representao, e da performance com o teatro. Logo mais, a

    seguir, vou apresentar um memorial das diferentes apresentaes desse esquete, e comentarcomo esse mtodo ou dramaturgia se desenrolou no encontro com a plateia.

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    FUTIL (um poema a der iva)20

    Sinto que poderia escrever todo um livro.

    Um livro onde dissertaria sobre tudo ao meu redor.Provavelmente falaria sobre solido, olhares, momentos, energias, incertezas, medos, amores e

    desejos...

    No!

    No, mesmo!

    No vou escrever um livro.

    (...)

    At por que, uma pessoa que no esteja na mesma sintonia no entender nada.

    (...)

    Hoje o cu est lindo.

    Celestemente Azulado.

    Apenas uma nuvem.

    Nossa! Ela tem formato de corao.

    (...)

    Eu admirando o cu e pessoas conversando do meu lado sobre sapatos e calas.

    (O vento parece abraar-me)

    Amaciante. Alvejante. Sabo...

    Bota s as velhas pra lavar na mquina.

    Mags

    (...)

    H um vazio por perto.

    To vazio que se torna translcido.

    Dois vazios.

    No, so trs. Esqueci de contar com os meus bolsos.

    (...)

    20http://dyegostefann.blogspot.com.br/2010/10/futil.html

    http://dyegostefann.blogspot.com.br/2010/10/futil.htmlhttp://dyegostefann.blogspot.com.br/2010/10/futil.htmlhttp://dyegostefann.blogspot.com.br/2010/10/futil.htmlhttp://dyegostefann.blogspot.com.br/2010/10/futil.html
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    Deu uma vontade de mandar algum se fuder.

    Acho que por que est no final da folha...* Acabou a folha *

    No gosto de fins de folhas.

    (...)

    Quero falar agora sobre olhares.

    Um olhar que eu no queria mais ver...

    Quero. Gosto dessa perdio, tentao, teso. Opa. Acabaram os cedilhas.

    No, agora parei.

    (...)

    Um, dois, trs....

    Gotas caem. Gotas caem. Gotas caem.

    Que cho glido.

    Paraleleppedos verticais e horizontais.

    De dois em dois.

    (...)

    Aquele poste parece uma chamin.

    Que bizarro.

    (...)

    Celular tocando. o meu.

    Uma amiga liga para contar as novidades. Dar notcias.

    Deus vai lhe ajudar.

    (...)

    Fim de tarde...

    J j eu volto e continuo.

    NO VOLTEI.

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    CAPITULO 2CRITICAR-SE

    Arquivar

    [Teach me tonight,

    de Dinah Washington.]

    Segundo Cecilia Salles, a crtica precisa, permanentemente, criar novas ferramentas

    capazes de compreender as provocaes artsticas contemporneas que se reinventam

    medida que os processo e pesquisas se aprofundam, e que a arte contempornea coloca

    desafios mutantes para a crtica de arte que podem, em muitos casos, representar a falncia de

    seus modelos de anlise (SALLES, 2005, p. 750). Nesse captulo, o objetivo apresentar

    uma crtica do processo de criao do Tempo de um Cigarro. Acredito ou espero que essa

    escolha ajude a aumentar o debate sobre as obras de artes cnicas contemporneas, para alm

    dos modelos de anlise usados para refletir sobre outros modelos de teatro, como o moderno,

    por exemplo. Penso ser saudvel assumir novas posturas diante das produes

    contemporneas por se tratarem de experincias que buscam deslocar conceitos e modelos na

    produo e na anlise de criao e apresentao das obras.

    O que se segue uma espcie de arquivo das nossas apresentaes. O debate sobre os

    arquivos de obras se faz necessrio no contexto contemporneo pela importncia que se

    passou a dar para o percurso de criao de uma obra. Ao pensar nesses documentos, que

    armazenam informaes sobre as transformaes de uma obra que est em processo de

    experimentao, se entende a importncia desse rastro de erros e acertos do percurso. O

    artista est (sempre) em processo e buscando algo que ainda no alcanou. Um processo de

    pesquisa(o).

    Essa questo me faz refletir sobre a aproximao do conceito de arquivo com o

    conceito de memria, sendo esta um conceito pessoal e subjetivo do artista que tenta arquivar

    em si mesmo momentos efmeros de sua criatividade. O arquivo parece ser o oposto do

    efmero, aquilo que criado para fazer permanecer. Mas ao mesmo tempo, a concretude da

    memria em forma de escrita/arquivo possibilita a anlise do prprio percurso do artista e das

    obras que cria. No que tange essa escrita, eu mergulhei em mim mesmo para entender como

    alguns processos se deram na minha forma de criar e depois apresentar para uma audincia.

    Essa escrita-arquivo assemelha-se ao caderno de anotaes do artista contemporneo,

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    conformo o define Ceclia Salles. Os cadernos de anotao guardam, muitas vezes, as

    selees feitas pela percepo, ou seja, o modo como o artista apreende e apropria-se da

    realidade que o envolve. (SALLES, 2005, p. 757). Muitas vezes esse retorno ao caderno de

    processos to intenso que o prprio se torna obra.

    (...) experimentao, deixando transparecer a natureza indutiva da criao. Nessemomento de concretizao da obra, hipteses de naturezas diversas so levantadas etestadas. So documentos privados responsveis pelo desenvolvimento da obra. So

    possibilidades de obras. (...) Mais uma vez, a experimentao comum, assingularidades surgem nos princpios que direcionam as opes. (SALLES, 2005, p.751)

    Ser que meu arquivo ser bem sucedido ao ponto de virar uma outra obra? Bem, o

    leitor poder tirar suas prprias concluses. Olhando para trs, percebo que j tentamos

    concretizar essa ideia de arquivo numa ocasio antes do processo de criao que estou

    analisando aqui, quando criamos uma cena experimental chamada Fluxos/Experimentos

    Criativos. O mote inicial dessa cena era o de produzir um quadro a partir de impulsos de

    criao. A audincia foi convidada a participar dessa criao e o resultado foi um objeto

    visual que demonstrava o ato criativo.

    (Foto/Arquivo de apresentao)

    Entendo uma pea de teatro acabada como um objeto visual desses: um conjunto de

    escolhas que so remodeladas para produzirem um desenho/grfico do que surgiu no

    processo. Muitas vezes essas decises/escolhas so usadas para adequao da obra em funo

    do espao de apresentao e outras vezes sofrem por serem dependentes de presses de

    dinheiro, espao e/ou tempo. (LOPES & BERNARDINO, 2011, p. 101). Ento o que vira

    obra nem sempre o desejo ideal do artista. Alguns processos se mantm no ambiente

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    marcado pelo inacabamento e interaes, aparecem como um sistema aberto que exibe

    tendncias, como a construo e satisfao de um projeto potico (SALLES, 2007, p. 127).

    Como venho escrevendo, na busca por esse projeto potico de um teatro do real,interativo, performativo, cuja autoria partilhada com o espectador, surgiu O Tempo de um

    Cigarro. Nas pginas a seguir realizarei, durante o processo de escrita e anlise das 10

    apresentaes, uma ponte entre os conceitos apresentados no captulo anterior e os arquivos

    da obra. Conceitos que surgem das necessidades e dos desafios que se manifestaram a cada

    apresentao e que aqui sero comentados.

    1 - Ator Performer

    Ator o que?

    Foi como exerccio de concluso da disciplina Ator Performer no curso de

    Licenciatura em Teatro do Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia do Cear

    IFCE, que O Tempo de um Cigarro foi apresentado para o pblico pela primeira vez. Esse

    pblico era formado por alunos desta e outras disciplinas do IFCE. Esse trabalho no nasce

    exatamente a partir dessa disciplina, mas apropria-se de algumas questes que me

    desagradavam bastante enquanto aluno que estuda em um curso de graduao em teatro. Para

    comear, no tnhamos professor nessa disciplina. Onde estava nosso professor? Onde

    estavam as condies para a execuo de uma aula de corpo?

    Dentro dessa disciplina, dada falta do professor, tivemos alguns instrutores, que

    eram ex-alunos, que vieram nos auxiliar na tentativa de criarmos o nosso prprio plano

    pedaggico. Todas as aulas foram muito bem recebidas e apreciadas por todos, mas em mim

    criava-se um desconforto em ter que produzir as condies para o nosso prprio ensino. Fora

    o espao fsico que era inadequado para nossa prtica dos exerccios propostos. Tnhamos que

    falar baixo, por exemplo, para no atrapalhar a aula que acontecia no espao de cima por

    conta de um erro arquitetnico um vo que unia acusticamente as duas salas e que servia,

    tambm, para o envio de papis com frases como Silncio!!!, Vocs esto nos

    atrapalhando!, Queremos ter aula, pode?!. Mas ns tambm queramos ter aula. E a?!

    Como fazer?! Como tudo estava muito complicado propomos que as aulas parassem para

    possibilitar a criao de alguns trabalhos de finalizao daquela disciplina. Dividimos a turma

    em 3 trabalhos. Eu preferi ficar s.

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    Tentei pensar em alguma coisa legal para apresentar, mas nada vinha. Nesse mesmo

    perodo eu estava trabalhando em conjunto com Evan Teixeira, Paulo Soares e Wldia Torres

    em um processo nosso. Muitos textos, filmes e msicas serviam de referncia para aquela

    criao. Foi ento que me deparei com Provocaes! Sim. O ator e diretor Antnio

    Abujamra interpretando um texto do grande Mrio de Andrade.

    Contei meus anos e descobri que tenho menos tempo para viver daqui para frente doque j vivi at agora. Tenho muito mais passado do que futuro. Ento, j no tenhotempo para lidar com mediocridades. No quero reunies em que desfilam egosinflamados. Inquieto- me com invejosos cobiando o lugar de quem eles admiram.J no tenho tempo para conversas inteis sobre vidas alheias que nem fazem parteda minha. J no tenho tempo para administrar melindres de pessoas idosas, masainda imaturas. Detesto pessoas que no debatem contedos, mas apenas rtulos!...Quero viver ao lado de gente que sabe rir de seus tropeos, no se encanta com

    triunfos, no se considera eleita antes da hora, no foge de sua mortalidade. Querocaminhar perto de coisas e pessoas de verdade. Apenas o essencial faz a vida valer a

    pena. E para mim, basta o essencial!21

    Diante desse texto a minha cabea comeou a criar imagens. Desenvolvi uma pequena

    cena experimental e chamei, dias antes da apresentao, Wldia Torres para a sala de ensaio e

    mostrei o que havia preparado. Um homem sentado em uma cadeira fumando. A cena duraria

    o exato tempo de um cigarro. E quanto tempo dura um cigarro? Esse tempo sempre o

    mesmo? Esse era o mote inicial para a cena. Durante a combusto desse cigarro outras vrias

    coisas aconteciam, mas nada ligado diretamente ao cigarro. O cigarro era apenas um marcador

    de tempo, um relgio, um cronometro. Em cena existia um cabide, uma cadeira e alguns

    brinquedos luminosos. E tambm confetes. O texto era dito enquanto o cigarro queimava.

    Partituras corporais eram danadas entre cada trago. Existia uma relao direta com o tempo,

    mas no com o ato de fumar. Depois que apresentei para ela o que havia preparado

    conversamos um pouco e percebemos que talvez no fosse por a. A conversa sempre voltava

    para o ponto inicial: o desconforto como a disciplina foi realidade. Ser que a questo seria

    essa? Se fosse apresentada daquela forma, certamente demostraria toda a fragilidade de umadisciplina cursada sem professor, sem orientador. Mas o que fazer?

    Somou-se a isso o fim/pausa do projeto piloto que estvamos trabalhando. Com essa

    pausa do projeto inicial, pensei em beber um pouco mais das descobertas desse processo.

    Vrias imagens que estavam na minha cabea, inquietaes e vontades foram, como um grito,

    expurgadas de mim. Algo feito de forma rpida, sem muita conscincia. Quase que de um dia

    para o outro, mas com a consistncia de vrios meses de ensaios, reflexes e referncias que

    transbordavam do meu corpo e queria ganhar forma.

    21Programa Provocaes n 582:https://www.youtube.com/watch?v=62PBhLFTcuM#t=54

    https://www.youtube.com/watch?v=62PBhLFTcuM#t=54https://www.youtube.com/watch?v=62PBhLFTcuM#t=54https://www.youtube.com/watch?v=62PBhLFTcuM#t=54https://www.youtube.com/watch?v=62PBhLFTcuM#t=54
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    Esse foi, de fato, o primeiro momento que senti, no corpo, uma sensao de estar

    diante da potncia do vazio com a qual iniciei essa monografia. Essa sensao era latente em

    mim e foi ela que induziu todo o novo processo de criao. Ali comeou de fato o trabalho:

    descobrindo-me no vazio. Assim o mote do trabalho se transformou. Agora a ideia era causar

    desconforto. Desconforto que eu senti ao fazer aquela disciplina sem professor, naquela sala

    com ar condicionado sem controle de temperatura, daquele cho sujo, dos erros

    arquitetnicos. Desconforto pelo que julgava um desrespeito aos alunos desta instituio,

    deste curso. As faltas que empobreciam as possibilidades de ensino. A ideia era dar tudo isso

    de volta. Devolver para as pessoas aquele desconforto ocultado por um grande sorriso.

    Hipocrisia total! Talvez colocar tudo isso em uma lente de aumento e perguntar: Ento, vocs

    esto tranquilos com tudo isso?

    Ento nos lanamos dentro dessa atmosfera de desconfortos com a proposta de gerar

    outros. Nos preparamos para executar um programa de aes, j elaboradas anteriormente, e

    nos moldar aos acontecimentos daquele momento, sabendo que toda ao possui uma reao

    de mesma fora em sentido oposto. fsica. Indo ao encontro desse lugar de desconforto, mas

    querendo experimentar, mais do que isto, o que s aquele momento poderia nos proporcionar.

    A primeira apresentao portanto foi pura provocao: manifestando-me insatisfeito,

    provoquei o pblico. A busca de interao foi moldada pelo ataque.

    Porm, durante a apresentao, as pessoas riam, colocavam panos no nariz, abanavam-

    se, mas no saam da sala. Aquilo me provocou de volta: por qu ningum se sentiu atacado?

    Parecia existir algo mais interessante do que o desconforto na apresentao. Sentindo isso,

    essa receptividade, empurrei mais o p no acelerador. Ali, sem muito planejar, o pblico virou

    obra, a obra processo e o espao lugar de jogo. Com isso percebemos o quanto poderamos ir

    mais e mais fundo nesse dispositivo de agregar o pblico. E fomos. Experimentando.Vivemos e criamos algo que s depois iramos entender um pouco melhor.

    Essa apresentao foi uma surpresa para ns. Esse lugar de vazio e de desconforto nos

    aproximou do que queramos fazer enquanto arte. No sei bem se teatro, dana, performance

    ou o que . Mas com certeza para mim era interessante.

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    Foto/Arquivo de apresentao (Sala de aula no IFCE)

    2 - Mostra de Teatro IFCE

    Ento natal...

    Nessa segunda apresentao, o corpo tremia. Uma sensao de medo surgia em mim.

    Medo de que? Talvez de que no aparecesse ningum ou de que aparecessem pouqussimas

    pessoas. De dar tudo errado. No sei. Medo de ter pessoas ali que, por algum motivo,

    quisessem prejudicar o trabalho por j saberem do que se tratava a proposta. Ser quefuncionaria novamente para o mesmo pblico? Ser que eu conseguiria repetir? Fiquei um

    pouco nervoso com isso e tambm pela presena do Paulo Soares na plateia. Esse desconforto

    nos impulsionou a pensar em mudanas para a obra. No por desacreditar no que fizemos,

    mas para tentar surpreend-los, principalmente aqueles que j tinham visto. Para isso

    buscamos pensar em modificaes que tivessem relaes diretas com o que acontecia dentro

    da instituio, em Fortaleza e no Brasil. Buscar outros desconfortos reais, do dia a dia, da vida

    fora dos palcos. Trazer para a cena, novamente, o risco do incerto, do novo, da

    experimentao. Tanto para ns quanto para o pblico. Mas para que gastar mais energia?

    No seria melhor fugir dos problemas? Quando se pensa emperformance, talvez no! Talvez

    a questo seja exatamente o contrrio ou apenas outra. Talvez seja necessrio pr-se

    eternamente em risco para dar vida a algo sem regras, sem forma. Algo que pulsa de dentro

    para fora. Andar pela contramo. Na beira.

    Dias antes da apresentao eu entrei em contato com um texto incrvel que relacionava

    o teatro com a performance art. O texto se chama Performance e Teatro Poticas epolticas da cena contemporneada pesquisadora Eleonora Fabio. Antes de terminar de l-lo

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    a minha cabea j comeava a dar um n, mas muitas coisas comeavam a fazer sentido.

    Principalmente essa questo de pr-se em risco. Mas que tipo de risco seria esse? fsico?

    Psicolgico? Do novo? Do incerto? Bem, acredito que a palavra risco venha como uma

    metfora que tenta adjetivar uma caracterstica desse gnero que sempre ser difcil de

    balancear: sua condio anrquica diante do entendimento que se tem sobre arte. Mas no

    pense que se trata de pura anarquia desmedida. Em relao a isso, uma citao em especial me

    marcou.

    Fcil seria dizer que se tratam de operaes adolescentemente provocativaspromovidas por um punhado de sadomasoquistas e/ou idiossincrticos para chocar osenso-comum (que aturdido perguntasse o que isso? para qu isso? afinal,o que eles querem dizer com isso? isso arte?). Porm, no h nada de fcil em

    lidar com a potncia cultural dessas presenas, verdadeiras fantasmagoriasassombrando noes clssicas ou tradicionais de arte, comunicao, dramaturgia,corpo e cena. (FABIO, 2009, p. 237)

    Bem, acredito que quando um artista busca esse risco ele busca, na verdade, ouvir a

    pulso da obra que aponta e conduz os caminhos a serem seguidos, sejam eles prximos de

    atos sadomasoquistas ou absurdamente enlouquecidos. O artista vira um veculo de

    manifestao da obra, mas no como personagem, pois ele assume o risco de encarar o

    acontecimento com seus prprios medos. Outra imagem interessante que Fabio nos prope

    sobre esse risco a de que um performer no apenas coloca propositalmente pedras em seu

    sapato, mas usa sapatos de pedra para que outros fluxos e outras maneiras de percepo e

    relao possam circular (2009, p. 243). Portanto, qual seria o risco de mudar o programa a

    ser executado sem mudar o objetivo central desta obra?

    Essa segunda apresentao aconteceu no ms de dezembro. Prximo ao natal. As

    pessoas estavam eufricas com o fim do semestre. Ao mesmo tempo, no Brasil, aconteciam

    vrios acontecimentos interessantes. Logo, tudo isso acabou respingando sobre o trabalho. A

    obra estava em processo de transformao rumo a uma ideia de acontecimento. E de fato

    disso que, talvez, se trate a obra. Uma pausa ou uma desculpa para parar, ascender um cigarro,

    fumar, perceber o outro, o entorno e conversar sobre tudo isso. Uma pausa para o caf da

    tarde. Dar um tempo para perceber mais do que o tempo. Para isso o cigarro comeou a

    ganhar outra caracterstica. Ele virou um artigo de seduo. Algo que provocasse o pblico a

    percorrer a cena. Talvez nosso primeiro dispositivo mvel de ao.

    Algumquer fumar comigo? Voc quer fumar? Pois toma! Vem aqui buscar. Querque eu ascenda? J fumou em cena? bom no ?! Agora, como voc j est emcena, fume cenicamente. Isso... Anda pelo espao ocupando os lugares vazios...

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    Interpreta! Usa o cigarro em cada ao. Joga como ele. Elegncia... Nossa, quecharme!. (Texto desenvolvido para essa apresentao)

    Foto/Arquivo de apresentao

    Solidificava-se ento a obra como processo. Como descoberta. Essa foi a melhor

    reflexo que tiramos dessa apresentao. Para no desvirtuar o conceito da obra ela deveria

    estar sempre em processo tentando se encontrar no meio. Sempre com novas possibilidades.

    Dessa vez deu tudo certo!

    3 - Semana de Boas Vindas

    Sejam todos bem vindos!

    Essa foi primeira apresentao em um espao diferente. E na verdade foi muito

    esquisito. Paulo e Evan estavam na plateia, mas isso no me incomodava mais. O espao eratotalmente diferente. Bem menor. Profundidade e largura. Tudo menor. Uma sala pequena no

    segundo andar da Casa de Artes. Duas janelas. Imediatamente senti falta dos espelhos do

    outro espao, das tantas janelas. Tive que passar a considerar a falta de ar-condicionado, pois

    estava muito quente l em cima. O piso estava com problemas tambm. Alguns pedaos

    saam, caso fossem puxados ou algum topasse em algum deles. Dava-me a sensao de que

    existiam mais pessoas. Em cena subiram trs, mas a sensao foi de terem sido cem. O espao

    comeou a ser percebido de outra forma, pois era outro lugar. Antes da apresentao

    chegamos e examinamos todo o espao. Tentvamos entender todas as possibilidades. Alguns

    armadores, duas porta. Desenhos? Em uma sala de teatro? Sim. L estavam os trs. Ludwig

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    Van Beethoven, Maria Bethnia e Pina Bausch. Pina estava a danarCaf Mllertalveze

    Bee