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O TEMPO NA COMUNICAÇÃO DIGITAL · La organización del tiempo y su estructuración social son,...
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Agradecimentos Agradeço à Professora Mestre Taís Bressane, por suas orientações técnicas para
o meu trabalho, por suas indicações de leitura que contribuíram para a elaboração
de parte da minha pesquisa. Mas, principalmente, por acreditar no meu trabalho e
por me incentivar a continuá-lo nos momentos de dificuldade.
Agradeço à minha mãe, Marcia, e ao meu pai, Roberto.
Agradeço aos meus amigos da faculdade.
Agradeço ao meu orientador, Professor Mestre Milton Pelegrini.
Resumo O tempo é um conceito simbólico, de vital importância para a organização das
sociedades. Desde sua compreensão mais arcaica, baseada nos ciclos da
natureza, até os dias de hoje, o conceito de tempo sofreu inúmeras
transformações. O desenvolvimento dos meios de comunicação imprime a
aceleração e a velocidade das máquinas ao cotidiano das pessoas, de tal forma
que o sentimento de tempo atual não guarda relação alguma com as concepções
que ritmizavam a sociedade. O excesso de informação, de imagens, imposto pelos
meios digitais de comunicação representam o traço da temporalidade das
máquinas: a realidade atemporal dos bancos de dados, o não tempo decorrente
de eventos simultâneos e imediatos. A leitura de uma narrativa hipertextual e a
análise qualitativa deste processo comunicativo demonstram a dificuldade que as
pessoas têm em lidar com a realidade do tempo das máquinas. É por isso que a
maioria das pessoas vive uma relação deslocada com o tempo, pois não há
aproximação entre o tempo individual e o não tempo da tecnologia.
Palavras-chave: tempo; comunicação digital; hipertexto.
Abstract Time is a symbolic concept, the most important in the organization of the society.
Since your oldest conception, based on the cycles of nature, until today, time has
suffered many changes. The development of the media causes the acceleration
and the speed from the machines to people’s routine, in some level that the feeling
of real time doesn’t keep any relations with the conceptions that puts rhythm in the
society. The excess of information, of images, imposed by the media represents
the feature of temporality from the machines: the timeless reality from the data
banks, the not time the resulted from the simultaneous and immediate events. The
reading of an hipertextual narrative and the qualitative analysis from this
communication process has showed a difficulty that people have in dealing with
reality of time from the machines. This is why most people live a dislocated relation
with time, because there isn’t any relation between individual time and the
technology not time.
Keywords: time; digital communication; hypertext.
Título: O TEMPO NA COMUNICAÇÃO DIGITAL Autora: DANIELLE SOARES E SILVA BICUDO FERRARO Local e data: São Paulo, 2003 Banca Examinadora: Profa. Dra. Carmen Lúcia José Instituição: PUC-SP Nota: ________________________ Assinatura:___________________ Prof. Ms. Milton Pelegrini Instituição: PUC-SP Nota:________________________ Assinatura: ___________________ Profa. Silvia Terezinha Liberatore Instituição: PUC-SP Nota: ________________________ Assinatura: ____________________
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 09
I. O TEMPO COMO TEXTO DA CULTURA .............................................................. 12 1. O tempo ................................................................................................................ 12 1.1 Tempo qualitativo e tempo quantitativo. Tempo natural e tempo cultural ................................................................................................................... 15
II. A MÍDIA E SUA NARRATIVA TEMPORAL ........................................................... 20 2. O tempo na comunicação ................................................................................... 20 2.1 O tempo e os meios digitais de comunicação ............................................. 22
III. TEXTO E HIPERTEXTO. HISTÓRIA ..................................................................... 29 3. A representação hipertextual ............................................................................. 29 3.1 Características do hipertexto ......................................................................... 31 3.2 A narrativa hipertextual digital ....................................................................... 38
IV. ANÁLISE DE UMA OBRA NARRATIVA HIPERTEXTUAL .................................. 46 4. Análise da narrativa hipertextual ....................................................................... 46 4.1 Os tipos de links e a navegação .................................................................... 52 4.2 Os padrões de hipertexto ............................................................................... 53 4.3 A leitura da narrativa hipertextual – a construção de significados ............ 55
CONCLUSÃO ............................................................................................................. 58
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 62
ANEXOS...................................................................................................................... 65
Introdução
Este trabalho busca compreender de que forma o tempo se estrutura nos processos
comunicativos digitais. Para tanto, serão considerados aspectos como a mídia e sua
narrativa temporal, a aceleração do tempo e as conseqüências para o processo
comunicativo e o papel das novas tecnologias da comunicação e informação na
construção da representação do tempo no processo comunicativo digital.
O tempo é um conceito difícil de ser definido. Esta dificuldade decorre do fato de que
todas as explicações possíveis são necessariamente circulares, ou seja, implicam definir
o tempo mediante referências a si próprio. A imagem recorrente do tempo, que permeia
as ações cotidianas, é o tempo como uma sucessão de momentos, um contínuo e
sucessivo fluxo de instantes, orientado de forma linear, como uma flecha, que segue do
passado em direção ao futuro, sem a possibilidade de retorno.
Essa concepção usual, na verdade, é um complexo sistema simbólico construído pelo
homem, de fundamental importância na organização das sociedades. Portanto, o tempo é
um texto cultural, uma construção artificial, cujo objetivo principal era vencer a
limitação da existência do homem: a morte. Ou seja, a existência do tempo, mais
precisamente de um tempo orientado para o futuro, para o homem, seria a prerrogativa
de continuar existindo, de vencer sua finitude perante a morte.
A partir da observação dos ciclos da natureza, como as estações do ano, os dias e as
noites, que sempre se repetiam, as sociedades mais primitivas puderam organizar suas
colheitas, suas produções etc. Com o surgimento de formas cada vez mais precisas de
medição do tempo, as sociedades foram organizando seus rituais e se orientando não
mais pelos ciclos, mas por um tempo medido, quantificado, linearizado, metrificado
pelos relógios mecânicos, caracterizado pela velocidade e aceleração, pelos ideais de
progresso da sociedade industrializada moderna.
Na sociedade atual, não mais os ciclos da natureza, mas a atividade da mídia e os meios
de comunicação de massa são importantes demarcadores do tempo de vida dos
indivíduos, sincronizando suas ações dentro de um todo maior (BAITELLO, 1999, p.
98). É fundamental lembrar que os meios de comunicação são importantes ordenadores
da realidade. Os compromissos são marcados após a novela, janta-se durante o
noticiário, dorme-se após a sessão de filme. O tempo das pessoas está sendo cada vez
mais apropriado pela comunicação, por seu caráter imediato, em que o novo já nasce
condenado a ser substituído pelo mais novo. Por outro lado, o tempo é uma das
coordenadas da comunicação. A comunicação precisa do tempo para se orientar, é uma
operação que se realiza no tempo. “La comunicación sólo es posible si se dispone de
tiempo. La organización del tiempo y su estructuración social son, por tanto, elementos
esenciales de la comunicación” (ROMANO, 1998, p. 124).
As novas tecnologias de informação e comunicação criaram novos espaços de vivência
no processo comunicativo. Acentua-se a sensação de não ter tempo para nada, nem para
ninguém. O excesso de informações, de redes, de caminhos e escolhas acelerou a
representação da flecha do tempo, modificando, assim, os processos comunicativos. As
tecnologias de informação criam novas formas de comunicação que refletem essa
crescente complexidade e características como a aceleração, o excesso, a
descontinuidade, a simultaneidade, como a narrativa hipertextual em suporte digital.
As narrativas hipertextuais são construídas, resumidamente, de forma não linear, multiseqüencial. O leitor atua de forma interativa, escolhendo trajetos para sua leitura. A análise qualitativa de uma narrativa hipertextual digital pretende mostrar as possibilidades instauradas pelos meios digitais de comunicação em relação à estruturação temporal – ou atemporal, que questionam as concepções lineares, definitivas, fechadas, baseadas em relações causais de começo, meio e fins definidos.
A obra escolhida é a narrativa hipertextual Sand Loves, de Deena
Larsen, que pode ser acessada no endereço eletrônico
http://www.eastgate.com/SandLoves/Welcome.html e encontra-se, impressa, nos
Anexos. Esta obra foi escolhida por apresentar uma estrutura de navegação simples, que
não confunde o leitor, além de ter sido publicada num endereço de referência para
narrativas digitais, o site ‘Eastgate.com’.
Para a análise da obra, serão levados em conta os seguintes aspectos:
1. Descrição das lexias que compõem a narrativa hipertextual.
2. Os tipos de links e a navegação;
3. Os padrões de hipertexto, segundo o autor Mark Bernstein, que serão
apresentados no item 4.3;
4. Estando todos estes aspectos analisados, a etapa final será a descrição da leitura
da narrativa hipertextual, onde será observado como o leitor constrói sua rede de
significados, sob o ponto de vista da quebra da estruturação temporal da obra.
Este trabalho é composto por quatro capítulos. O primeiro capítulo apresenta uma
descrição e as transformações do conceito tempo como texto da cultura, como sistema
simbólico e ferramenta de organização social.
O segundo capítulo refere-se à mídia e sua narrativa temporal, às relações e às
transformações do tempo a partir dos meios digitais de comunicação.
O terceiro capítulo apresenta as características de um sistema de comunicação digital, o
hipertexto eletrônico.
O quarto capítulo traz uma análise de leitura de uma narrativa hipertextual como forma
de demonstrar como se estrutura o tempo neste processo de comunicação.
I. O tempo como texto da cultura
1. O tempo
O tempo converteu-se em uma das questões centrais desta época, pois as
inovações técnicas, principalmente a partir da primeira metade do século XX,
obrigaram as sociedades a enfrentar um processo de aceleração temporal e
conseqüente diminuição do espaço. O mundo, cada vez mais, torna-se pequeno
para as novas tecnologias. A sensação é que as pessoas não têm mais tempo
para nada, nem para ninguém, pois devem estar presentes, a qualquer momento,
em todos os lugares. Há sido dito muitas vezes que o símbolo e o paradigma da Idade Moderna não é a máquina a vapor, mas sim o relógio mecânico. [...] Os relógios tornaram-se mais precisos ao longo dos séculos. Os relógios mecânicos eram pouco exatos até quase o início da Idade Média e prestavam-se mais para satisfazer necessidades estéticas e simbólicas do que para regular os movimentos. Desde a clepsidra até o relógio atual, que mede o tempo exato com a longitude da onda do átomo do césio, percorreu-se um longo processo de abstração (ROMANO, 2002, p. 1).
Mas o que é o tempo? O tempo é um conceito elaborado pelo homem, um
complexo sistema simbólico, o mais importante sistema construído socialmente,
uma ferramenta de organização social, pois participa da elaboração de ritmos e
rituais a serem seguidos. O tempo como símbolo, como texto cultural, passa a
desempenhar “um papel de vital importância na organização das sociedades, mas
também de crucial complexidade e abstração, dada a sua natureza simbólica, vale
dizer, social e contratual, vale dizer, histórica” (BAITELLO, 1999, p. 97).
O alicerce constitutivo da cultura humana foi marcar compassadamente os
períodos da vida com base em processos naturais. Quando as principais
atividades econômicas estavam centradas na caça, na agricultura e no pastoreio,
o tempo era demarcado por dois ciclos principais: os dias e as noites e as
estações do ano, sincronizando as ações vitais organizadas coletivamente. Esta é
a concepção mais arcaica que se dispõe do tempo, à qual os gregos atribuíram a
metáfora do círculo, representando os acontecimentos do mundo que se
repetiriam periodicamente.
A aparição das cidades e a especialização das atividades técnicas e econômicas
tornaram necessária a divisão do dia em intervalos mais exatos e assim,
provavelmente, surgiu o relógio de sol, no Egito, em 4000 AC. O imperativo de se
medirem as horas na ausência do sol levou ao desenvolvimento de uma série de
dispositivos, que culminaram em diferentes descobertas ao longo dos séculos,
como a clepsidra, a ampulheta e, posteriormente, o relógio mecânico, que
consolidaram o tempo como um sistema simbólico capaz de organizar os
processos sociais de modo mais eficiente.
O relógio mecânico possibilitou a segmentação uniforme do tempo em unidades
de tamanho fixo. De uma divisão elástica dos dias, dependendo das estações, a
hora se tornaria um padrão constante e universal: no inverno ou no verão, os dias
teriam vinte e quatro horas idênticas. Os ciclos naturais passaram a ser referidos a
um ciclo artificial.
Outra conseqüência do uso do relógio mecânico foi possibilitar a subdivisão
precisa da hora em unidades cada vez menores. O tempo passou a ser concebido
como uma sucessão linear de unidades de extensão arbitrariamente pequenas, os
instantes. A imagem de uma linha de pontos de tempo, sua geometrização, foi um
passo importantíssimo na elaboração da física newtoniana e, por conseqüência,
de toda a ciência moderna (OLIVEIRA, 2003, p.45). Os relógios foram
fundamentais na concepção mecanicista do mundo natural, em que o tempo seria
linear, sucessivo, uniforme e contínuo.
O conceito de tempo metrificado, composto por sucessões de durações unitárias,
mensuráveis, que se traduz como linear, acumulativo e irreversível, parece
completamente natural. A percepção cultural do homem passa a se apoiar,
sobretudo, na poderosa certeza da sincronia e constância do tempo construído,
“via de regra pelas insuficiências dos calendários quando é precisa lidar com
períodos longos, fato que conduz, invariavelmente, a um processo de linearização
do tempo” (PELEGRINI, 2003, p. 3).
Mas, principalmente, a função do tempo para o homem é fugir da condição de ter
a morte como sentido definitivo na vida: “o tempo não é finito como a vida
biológica individual, mas infinito como os símbolos. Já não é da ordem do mortal
como o homem, mas da categoria do imortal como a escritura” (BAITELLO, 1997,
p. 2).
A noção linear de tempo constitui a consciência temporal da vida cotidiana na
cultura ocidental. O tempo é concebido como algo sincrônico e constante, que
discorre em uma só direção, medido e divisível em unidades distintas. O indivíduo
distingue entre um acontecimento anterior e um posterior, organizando seus
vivências e relações sociais, porque a idéia de sincronia e constância do tempo
constitui, sobretudo, uma poderosa certeza fundamentada em nossa percepção
(ROMANO, 1998, p. 170, tradução nossa).
Estas dimensões de tempo pertencem a uma certa lógica que passa, de
acontecimentos que fluem em uma direção única e que não voltam. O tempo
seria, antes de tudo, uma linha de instantes, estendendo-se do passado ao futuro,
distanciando-se do passado e rumando para o futuro, de forma invariável e
orientada. No passado, estão as coisas que eram, que já não vão mais ser, mas
que antecederam o presente. O presente, percebido pelo indivíduo, conecta
passado e futuro. No futuro, estão os projetos, as esperanças e os medos. Age-se
de tal modo que o futuro seja melhor que o presente: a sociedade está
essencialmente orientada para o futuro.
A partir do século XIX, a idéia de progresso inaugurava um conceito diferente para o tempo, marcado por avanços tecnológicos cedidos pela escala industrial de produção. Ele passa a ser representado por uma flecha disparada pela força das máquinas rumo ao
futuro, que não mede os ciclos observáveis na natureza, mas atribui convenções e novos conceitos à sociedade ocidental que nada têm a ver com o tempo que acompanhava os indivíduos até a morte. O cotidiano é fragmentado em níveis de compreensão fora do tempo de vida mensurável, em que o presente não é mais concebido pelo indivíduo, mas pela sociedade. Os tempos sociais fracionados pela imposição industrial da produção já continham traços do que concebemos hoje como idéia coletiva de progresso (PELEGRINI, 2003, p. 8).
Com os avanços tecnológicos e os ideais de progresso que orientavam a sociedade industrial, o futuro tornou-se a imagem da superação dos limites do tempo. Assim como os pensamentos mítico e religioso inventaram o sonho de eternidade dos deuses, de vida após a morte, o futuro é vislumbrado em novos mundos de objetos fabricados pela operosidade, engenhosidade e criatividade do homem. “E, como o futuro é a ambiência dos deuses, seu tempo é o da eternidade. Com as maravilhas e surpresas da tecnologia, sonhamos ter alcançado a eternidade dos deuses, suprimindo o tempo, suprimindo a história” (BAITELLO, 1997, p. 4). No futuro, então, não cabe a morte, não cabe o tempo, porque este é a marca da finitude da vida, de todas as coisas.
1.1 Tempo qualitativo e tempo quantitativo. Tempo natural e tempo
cultural
A imaginação, a memória e os sentimentos também influem na vivência do tempo
e em seu transcurso. Os acontecimentos históricos, para o indivíduo, não apenas
são vividos sob o ponto de vista da cronologia, como também sob os
acontecimentos cotidianos. A percepção destes intervalos pode variar muito,
segundo as circunstâncias em que se vive. A perspectiva em relação ao tempo de
uma pessoa presa, aguardando um julgamento, ou até mesmo de alguém que
estivesse num campo de concentração, é muito diferente de alguém que vive
numa grande cidade, presa em engarrafamentos, ou numa casa de campo,
afastada. O sentimento de tempo guarda uma importante relação com as
sensações de cada um, suas relações com o passado, o presente e o futuro.
Segundo Sawaia (apud ROMANO, 1998, p. 43),
no proceso de vivencia el antes contiene varios pasados y el después es doble: el instante de la reminiscencia y el de la ruptura que se dio en el tiempo cronológico. En este proceso, la memoria desarticula el pasado y redefine el presente y el futuro a partir de los instantes vividos.
Assim, as diferentes temporalidades fazem com que o tempo varie em intensidade
e em extensão. Alguns períodos podem parecer mais longos, embora é sabido
que, à escala do calendário, tiveram igual duração. Segundo Pomian (1993, p. 12),
“esta duração relativa depende do número das recordações: um período parece-
nos retrospectivamente tanto mais longo quanto mais rico em recordações”. Mas,
de qualquer forma, a organização destes acontecimentos, mesmo em níveis
diferentes, dá-se sob uma perspectiva cronológica linear, baseada na
representação histórica do passado, presente e futuro.
O sentimento de tempo não pode ser definido sob um único ponto de vista. Os
tempos são muitos, e muito diversos, em função das diferentes sociedades,
culturas, idades e sexos. As formas de tratar com o tempo, as diversas
experiências e vivências dependem de distintas ordens de tempo. Desse modo, o
conceito de tempo será considerado sob as seguintes formas: tempo qualitativo e
tempo quantitativo; tempo natural e tempo cultural.
Uma forma de tempo qualitativo é o tempo psicológico. A perspectiva temporal
individual, inseparável dos eventos percebidos, das recordações, das
expectativas, composta por intervalos desiguais e heterogêneos, tanto no presente
como no passado e no futuro, marcada por estados afetivos, traduz-se num tempo
qualitativo, orientado, dotado de uma direção determinada e dividido em fases ou
períodos que se sucedem segundo uma ordem imutável. Não há regresso ao
passado, a não ser em sonhos. Cada agora, cada instante desaparece para
sempre, dando lugar a outro, o qual, por sua vez, desaparecerá. O tempo
individual é irreversível e finito, compreendido entre o nascimento e a morte,
momento que se mantém presente no horizonte de todas as antecipações e
projetos (POMIAN, 1993, p. 13).
Tempos coletivos, como o solar, o religioso e o político, também são qualitativos.
Um ano é regido, basicamente, pela sobreposição destes três movimentos
periódicos. O tempo solar é simplesmente cíclico, pois mesmo que nunca
inteiramente iguais, as estações e os dias, que se repetem, são sempre muito
semelhantes aos dos anos passados. Já o tempo religioso é linear e orientado
como o tempo psicológico, mas em direção diferente: não simplesmente do
nascimento à morte, mas do nascimento na Terra para a vida eterna no Além. No
calendário Cristão, este tempo orienta-se, também, pelo nascimento de Cristo, que
abre uma época na história do mundo, iniciando a contagem dos anos. O tempo
religioso é, como o tempo psicológico, irreversível, mas sua finitude não é
empírica, é antes um efeito de um discurso que estabelece a duração definida do
mundo perante a duração infinita de Deus. (POMIAN, 1993, p. 15).
O tempo político comporta elementos cíclicos, que se repetem periodicamente
todos os anos, como o inicio e fim do ano escolar, ou que se repetem em
intervalos mais longos, como os jogos olímpicos, a cada quatro anos. Por sua vez,
estes eventos repetitivos se inscrevem numa história linear e orientada e, embora
comporte elementos cíclicos, o tempo político é também irreversível, mas abre-se
para o futuro infinito.
Se um dia, todos os relógios se recusassem a obedecer, nossa sociedade
afundar-se-ia por completo. Os transportes aéreos e ferroviários parariam, pois
não podem funcionar a não ser respeitando horários bem precisos. A indústria,
submetida a horários, teria dificuldade em manter-se em atividade, tanto pelo
atraso dos funcionários como pelas diversas operações minuciosamente
sincronizadas. A rede de distribuição de energia elétrica sofreria um colapso. O
sistema de comunicação ficaria profundamente desorganizado, assim como os
meios de comunicação de massa, incapazes de seguir os seus programas.
Estes exemplos bastam para entender que a sociedade se reproduz diariamente
graças a atividades cuja ordenação só é possível porque os vários poderes
públicos impõem a todos um tempo principalmente quantitativo: medido e
anunciado pelos relógios e pelo calendário, é um tempo macroscópico, porque sua
unidade mínima é o segundo, e breve, porque não abarca mais do que alguns
milênios. Porém, o tempo quantitativo não é isolado do tempo qualitativo. Na vida
coletiva real, os dois tempos compenetram-se. (POMIAN, 1993, p. 17).
O tempo individual, o tempo biológico (ou biotempo), subjetivo, qualitativo também
se refere à ordem natural do tempo (ROMANO, 1998, p. 69, tradução nossa). É o
tempo privado, o tempo em que se produz a vida. Conecta-se, também, aos
processos biológicos dos seres humanos, como acordar, dormir, alimentar-se,
reproduzir-se, vivenciar o clima das estações do ano (sentir calor no verão, frio no
inverno).
As inovações tecnológicas, como a iluminação artificial, o ar condicionado, entre
outros exemplos, foram ajudando as pessoas a se distanciarem desta ordem
natural do tempo. Atualmente, jovens deitam-se quando o sol nasce e não à noite,
casas noturnas abrem à meia-noite, festas de música eletrônica começam a ficar
cheias por volta das quatro, cinco horas da manhã, sem contar que há muitos
funcionários de empresas que optam por trabalhar durante a madrugada. Há
grupos sociais que, segundo Romano (2002, p. 2), “postulam a liberdade das
ordens e da configuração do tempo para cada um: que se possa comprar durante
as 24 horas do dia, como se mantém em emissão permanente a cadeia televisiva”.
Além disso, pode-se esquiar tanto no inverno quanto no verão, comer fruta fresca
independentemente das estações do ano.
O termo tempo cultural tem relação com o calendário, com aspectos artificiais e
quantitativos que regulam e determinam o cotidiano das pessoas, de forma cada
vez mais precisa e controlada. O tempo cultural se refere aos tempos socialmente
definidos com as notícias da TV, a abertura dos cinemas, dos restaurantes, os
feriados etc. e que marcam a vida do cidadão atual. O tempo cultural é
determinado, principalmente, pelas convenções da sociedade e pode ser
caracterizado como o tempo quantitativo do senso comum, que tem a finalidade
de sincronizar os indivíduos. Neste sentido, uma das contradições mais coercitivas
é a que se dá entre o tempo biológico e o tempo do calendário: o tempo cultural,
“[...] al imponer sus ritos de calendario ejerce violencia simbólica contra el
individuo” (ROMANO, 1998, p. 44).
Os aspectos artificiais que regem o tempo da sociedade ajudaram a transformá-lo
em recurso econômico, cada vez mais escasso e mais caro. O tempo é vendido, é
alugado, é investido. Mas quem é o dono do tempo? O automóvel, o vídeo, o
computador, o telefone celular e demais máquinas nascidas para ganhar tempo ou
para passar o tempo? A indústria de entretenimento, de informação? O trabalho?
Provavelmente, todos e simultaneamente. É só parar e observar o cotidiano das
pessoas, principalmente nas grandes cidades: muitos motoristas dirigem enquanto
falam ao telefone celular, fazem uma refeição lendo jornal, vendo o noticiário,
trabalham e assistem à televisão, entre muitos outros exemplos.
Por isso, o tempo se converteu num problema central desta época. Muitas
inovações técnicas economizam tempo. Por outro lado, as pessoas são obrigadas
a lidar com um mundo mediado por suportes digitais, memória em banco de
dados, aparatos eletroeletrônicos, fluxos contínuos de informação, conexões em
redes, onde “a tecnologia é a fiel depositária da idéia dessa flecha que segue cada
vez mais rápida e acelerada rumo ao tempo da eternidade científica” (PELEGRINI,
2002, p. 3).
Romano (1998, p. 16) completa: “esta circunstancia ha conducido al fenómeno
ilógico de que nadie parece tener tiempo. La tensión y el ‘estar quemado’ [...]” são
fatos que parecem dominar as vidas dos cidadãos nos chamados países
desenvolvidos. Cresce, desta forma, o desejo de separação entre o tempo da
sociedade e o ritmo de cada indivíduo.
O que se conclui, então, é que na sociedade contemporânea, a maioria das
pessoas vive em uma relação deslocada com o tempo (ROMANO, 1998, p. 27,
tradução nossa). Ou, dito de outra forma, o tempo as domina. As pessoas, por um
lado, têm a consciência cada vez mais aguda do valor do tempo e, por outro, a
preocupação pela exatidão, pela percepção.
II. A mídia e sua narrativa temporal
2. O tempo na comunicação
Um dos mais importantes portadores materiais do tempo é a atividade de geração,
distribuição e conservação das informações. Neste contexto, exercem papel de
destaque a atividade da mídia e os meios de comunicação de massas: sistemas
de notícias, desde a sua geração até a sua chegada ao receptor, jornais,
emissoras de rádio e televisão, redes etc. Estes suportes atuam como
“demarcadores de tempo de vida dos indivíduos, sincronizando suas atividades
dentro de um todo maior” (BAITELLO, 1999, p. 98).
O século XX foi marcado uma profunda revolução no sentimento de tempo, que se
contaminou pela velocidade instantânea dos meios de transporte e de
comunicação e pelos ideais de progresso. As utopias diretivas da sociedade
contemporânea passaram a ser a velocidade e a aceleração crescentes. A
sociedade eletrificada pôde generalizar seus rituais com a velocidade e o alcance
da comunicação, iniciando uma profunda transformação na consciência do tempo.
A sociedade de consumo não poderia mais permitir o desperdício de perder
tempo. A comunicação foi se convertendo, gradativamente, num setor estratégico
da economia, da política e da cultura. Progressivamente, foram surgindo grandes
conglomerados de comunicação, as “plataformas digitais” (ROMANO, 1998, p. 17,
tradução nossa), prometendo informação, atualização, entretenimento, pluralismo,
conteúdos diferenciados, programas culturais, e, posteriormente, o prazer de viajar
pelos intermináveis oceanos da Internet e de experimentar a realidade virtual.
O tempo das pessoas, então, foi sendo cada vez mais apropriado pela comunicação. O lugar da comunicação, hoje, é aqui, e seu tempo é marcado pelo descarte de informação histórica, pelo culto ao superficial, porque códigos são sucedidos e substituídos com grande velocidade, de maneira pouco traumática. O novo já nasce condenado à obsolescência, programada e presente em sua essência. Não há mais referências históricas construídas pelas experiências passadas e, com isso, perde-se a criatividade, a fertilidade do terreno do imaginário, para as técnicas e tecnologias que, por fim, confundem-se com o saber (BAITELLO, 1999, p. 99).
É a colonização do biotempo, do tempo subjetivo e livre, pela indústria da informação e do entretenimento.1 Os seres humanos que desejam participar da comunicação ofertada se vêem obrigados a reservar tempo para ela, descartando a informação passado apenas seu tempo imediato de veiculação, instaurando uma memória de curtíssimo tempo, pois tudo ocorre no presente, aqui, isto é, em nenhuma parte em particular.
1Indústria de informação e de entretenimento refere-se às grandes emissoras de televisão, rádio, cinema e internet, que controlam as notícias e os programas: ou seja, o oligopólio das agências de notícias, que difundem os temas das conversas, as atitudes corporais, as modas, as maneiras de falar. “Em todas as partes está Hollywood, em todas as partes estão Clinton e Yeltsin” (ROMANO, 1998, p. 33, tradução nossa).
A comunicação requer tempo, é uma operação que se realiza no tempo. A
comunicação só é possível se dispuser de tempo. A organização do tempo e sua
estruturação social são, portanto, elementos essenciais da comunicação. A
comunicação necessita do tempo e auxilia que este passe porque é também uma
fonte de entretenimento. Por um lado, circula em si mesma e, por outro, tem que
fazer conexão com outras estruturas temporais, com outro modelo de organização
temporal, que marca a vida cotidiana das pessoas. (ROMANO, 1998, p. 124,
tradução nossa).
A relação entre o emprego dos meios de comunicação e o sentimento de tempo
transcorre em duas direções opostas:
en función de un determinado sentimiento de la vida las personas utilizan los medios de una manera determinada, es decir, el sentimiento del tiempo es la causa del uso de los medios, porem, el empleo de los medios fomenta o motiva un determinado sentimiento del tiempo, es decir, el sentimiento del tiempo es consecuencia del uso de los medios (ROMANO, 1998, p. 252).
2.1 O tempo e os meios digitais de comunicação
Quando se fala em tempo e os meios digitais de comunicação, é necessário
compreender o significado do tempo em mídia primária, mídia secundária e mídia
terciária.
Os meios digitais de comunicação são constituintes, na comunicação, da mídia
terciária: “aqueles meios de comunicação que não podem funcionar sem
aparelhos tanto do lado do emissor quanto do lado do receptor” (PROSS apud
BAITELLO, 2002, p. 4). São exemplos a telegrafia, a telefonia, o cinema, a
radiofonia, a televisão, a indústria fonovideográfica e seus produtos, discos, fitas
magnéticas, cd’s, fitas de vídeos, dvd’s etc.
A mídia primária, por sua vez, é a origem e chegada de toda comunicação (BAITELLO, 2002, p. 2). “Toda comunicação humana começa na mídia primária, na qual os participantes individuais se encontram cara a cara e imediatamente presentes com seu corpo” (PROSS apud BAITELLO, 2002, p. 2). A comunicação se dá de forma imediata, sem aparatos mediadores, de maneira presencial, pois exige a presença de emissores e receptores em um mesmo espaço físico e num mesmo tempo – é, portanto, a mídia do tempo presente.
A mídia secundária é constituída por “aqueles meios de comunicação que
transportam a mensagem ao receptor, sem que este necessite de um aparato para
captar seu significado” (PROSS apud BAITELLO, 2002, p. 3). Apenas o emissor
necessita um aparato (ou suporte), utilizando prolongamentos para aumentar seu
tempo de emissão, ou seu espaço de alcance, ou seu impacto sobre o receptor.
A imagem, o impresso, a gravura, a fotografia, a escrita – e também seus
desdobramentos enquanto carta, panfleto, livro, revista, jornal, bilhete – assim
como as máscaras, pinturas e adereços corporais, roupas, a utilização do fogo e
da fumaça, os bastões, a antiga telegrafia ótica, bandeiras, brasões e logotipos,
imagens, pinturas e quadros, o cartaz, o calendário são exemplos de mídia
secundária.
Os processos comunicativos que constituem a mídia secundária são
inauguradores não apenas de toda uma importante era da palavra visual, mas
também instrumentos da conquista de um tempo lento, tempo que não apenas
permite a reflexão, mas também a retrospecção. Por isso, seu tempo é o futuro, já
que, com a mídia secundária, inaugura-se, simbolicamente, a permanência e a
sobrevida após a presença do corpo. O homem vence seu maior adversário pois,
através da escrita e seus precursores, impõe-se sobre a morte e seu tempo
irreversível. O tempo lento, e não a velocidade, da escrita e da leitura permite
alongar a percepção do tempo de vida, constituindo-se em grande trunfo para o
homem (BAITELLO, 2002, p. 5).
A mídia terciária, por sua vez, exprime a complexificação do processo de
mediação, que passa a exigir disponibilidade tecnológica tanto para o emissor
quanto para o receptor. Ocorre uma crescente transferência de atribuições e
responsabilidades tecnológicas para a esfera da recepção, ocasionando inúmeras
conseqüências, como a redução – e até a anulação – crescente do espaço, a
superação da dificuldade do transporte físico da mensagem, presente na mídia
secundária, graças ao sistema de eletrificação, às redes de cabeamento e à
transmissão por ondas.
Na verdade a grande mídia terciária do nosso tempo é a eletricidade, o mediador de todas as outras possibilidades de geração, transmissão e conservação de mensagens. Graças aos sistemas e redes elétricos puderam ser desenvolvidos todos os grandes sistemas contemporâneos de comunicação terciária. (BAITELLO, 2002, p. 6).
A sociedade eletrificada pôde generalizar seus rituais em espaços cada vez mais
amplos, graças à velocidade das comunicações, gerando assim a perda da
distância. A aceleração amplia o ritual a todos os indivíduos, impondo-os o
compasso da era eletrônica. A comunicação humana, submetida a uma
estruturação temporal, vem sendo induzida à aceleração e as Novas Tecnologias
de Comunicação e Informação2 contribuem de forma decisiva neste aspecto.
Pois desde que existem, os meios digitais de comunicação estão destinados a
transmitir o mais rápido possível as novidades a seu público, sem que haja forma
de se determinar separações temporais entre os eventos. Sendo assim, o tempo
da comunicação terciária é o não tempo.
2 As Novas Tecnologias de Comunicação e Informação referem-se aos meios de comunicação, que se caracterizam pela velocidade de transmissão de informação, pela tecnologia avançada e pelo tamanho diminuto, que constituem a televisão, a Internet, sistemas de redes e bancos de dados, rádio.
O desenvolvimento dos meios digitais de comunicação é caracterizado pela
velocidade, pela diversidade e pela infinita possibilidade de aplicações, que
acabam gerando novas formas de comunicação. O incremento dos ritmos vem
alterando o processo comunicativo, assim como o sentimento de tempo e de suas
estruturas.
Os atuais meios de comunicação desenvolveram determinadas maneiras de utilizar o tempo que transcendem os modelos da língua falada ou escrita. Os textos impressos, por exemplo, permitem um grau de liberdade muito maior aos leitores de controlarem seu tempo e decidirem qual o ritmo dedicado à leitura. Eles permitem aos seus usuários a soberania e a lentidão da permanência no tempo. O tempo da mídia terciária é o das máquinas, o tempo dos bancos de dados, que existem em uma realidade atemporal, pois os dados só são percebidos quando acessados para a obtenção de alguma informação. (PELEGRINI, 2003, p. 13).
As pessoas que desejam participar da comunicação ofertada pelos meios digitais se vêem obrigadas a lidar com outra maneira de se relacionar com o tempo. O público necessita de tempo para receber a oferta comunicativa, mas não controla a estruturação temporal destes meios. Pelo contrário, deve estar sempre disponível para receber dados, imagens e informação, de forma simultânea aos acontecimentos.
A aceleração imposta pelos meios digitais inclui todos os indivíduos no ritual da
comunicação e lhes impõe o ritmo da era eletrônica. As sociedades industriais e
pós-industriais orientam suas atividades em função dos estímulos que provêm do
futuro, num tempo de espera pelo que vai acontecer imediatamente. O progresso
é a aceleração e o futuro é sempre muito próximo do presente, que se encontra
cada vez mais alargado.
A mídia terciária provocou uma aceleração do tempo e das sincronizações sociais. Os ritmos, ditados pela espera na mídia secundária, se aquecem na terciária, trazendo acelerações comportamentais importantes. Resgata-se a oralidade, mais célebre que a escrita. Instala-se a sua conservação em suportes legíveis por aparelhos elétricos. Torna-se possível a escolha entre a oralidade mediata, à distância e sem a presença física do interlocutor, ou mediatizada, conservada para posterior audição. Inaugura-se assim a conservação da presença, por meio de imagens e de som. A presença conservada é a criação de um eterno presente que, no entanto, é apenas memória e indício de um sujeito emissor (BAITELLO, 2002, p. 6).
Os meios de comunicação, percebidos como organizações sociais que informam e
entretém, criam produtos em um processo temporalmente estruturado e
distribuem-nos ao público em determinados ritmos temporais, co-determinando,
em parte, os tempos sociais, pois os sistemas comunicativos têm sempre a função
ordenadora dentro das sociedades, já que os símbolos regulamentam relações,
convencionam significados e valores, estabelecendo ordem e tecendo relações. O
tecido comunicativo, funcionando perfeitamente, conecta os indivíduos através da
formação de um amplo sistema de símbolos ordenadores que garante a
sobrevivência do tecido social, com suas múltiplas funções. A cultura, enquanto
sistema comunicativo, tem como papel principal ordenar as funções dentro de uma
sociedade, ou seja, criar ritmos para as informações, ritmizar em concordância
com as ritmicidades observadas na vida (BAITELLO, 1999, p. 95).
A rapidez das transformações tecnológicas e a aceleração temporal dos
processos comunicativos acarretam conseqüências para a sociedade, pois os
sistemas comunicativos são importantes ritimizadores e ordenadores sociais. O
resultado é a inadaptação de muitos indivíduos em nossa sociedade. O nível
tecnológico alcançado agrava o problema do tempo, de forma que não temos
tempo para nada, nem para ninguém. Esta circunstância modificou a
representação do tempo, porque as pessoas sequer têm tempo de esperar pelo
futuro.
As novas tecnologias inverteram a relação do tempo, transformando a divisão
tradicional entre passado, presente e futuro. O futuro passou a ser motor do
presente no lugar do passado. Ou seja, o futuro, cada vez mais, torna-se causa
dos acontecimentos presentes. A capacidade de previsão que a tecnologia
oferece substitui o passado como determinante do presente, à medida que se
constrói o presente a partir das ameaças do futuro. A historicidade do futuro nos
coloca diante do dilema entre Modernidade e atualidade; “entre uma fé no futuro
da tecnologia e a angústia de um mundo que está se desfazendo diante de nosso
olhar” (DOCTORS, 2003, p.11).
As mudanças se efetuam com tal rapidez que não são percebidas. Confunde-se,
assim, o princípio e o fim das coisas. Mas o ser humano precisa conhecer o
princípio e o fim para diferenciar os processos, o desenvolvimento, as dinâmicas,
para orientar-se no fluxo do tempo. Na sociedade de alta velocidade, o tempo se
converte em objeto de aceleração. A conseqüência é que, cada vez mais, carece-
se de tempo para dar sentido ao princípio e ao fim das coisas, tanto em nível
individual como social. O final do velho e o começo do novo se confundem com
maior freqüência. O novo se substitui precipitadamente pelo mais novo. As
separações e conexões, começos e conclusões ocorrem simultaneamente. Na
sociedade industrial, tudo tem que estar permanente, em qualquer hora e em
qualquer lugar. O estado dos receptores e a situação do contexto são
temporalmente incertos porque, no todo, o presente é simultâneo.
Os meios de comunicação perseguem superar unidades de tempo cada vez mais
curtas, espaços cada vez maiores e alcançar cada vez mais
consumidores/receptores. A comunicação só pode realizar-se imediatamente, e
não logo. Difunde-se informação e conhecimento em intervalos de tempo cada vez
mais curtos, em que não há margem temporal para elaboração intelectual e física
por parte do consumidor/receptor. Os meios de comunicação se movem e se
deslocam como o portador que, se desejar, é acompanhado 24 horas por dia. A
acessibilidade é total, pois indica presença. Não estar acessível é não estar
presente.
As Novas Tecnologias de Comunicação e Informação pretendem uma anulação
do tempo-espaço: aproximar-se de uma simultaneidade que inclua todo o mundo,
o tempo todo.
Al hacer posible que acontecimientos de lugares muy alejados entre sí se proyecten de manera casi simultánea en el cuarto de estar y se acoplen a otros que ocurren en lugares muy apartados surge esa conciencia del tiempo que transciende el limitado tiempo local y se convierte en un tiempo mundial bajo el signo de la simultaneidad [...], una simultaneidad que vuelve a unirse con el tiempo local (ROMANO, 1998, p. 119).
As Novas Tecnologias de Comunicação e Informação criaram novos espaços de
vivência. O mundo se contraiu. A oferta comunicativa é aniquiladora. Implantou-se
igualmente a consciência de tudo o que existe e, com ela, o desejo de participar
de tudo. À ampliação dos desejos e necessidades, de estar em outros lugares da
Terra e com outras pessoas, de participar de outros atos, de ver outros programas
de televisão, a estes desejos se opõe a consciência de que o tempo é limitado, da
finitude do biotempo. Desde o ponto de vista subjetivo, acentua-se a sensação de
não ter tempo. Os novos meios não têm pausas, nem descansos.
As Novas Tecnologias de Comunicação e Informação também eliminaram a
referência espacial da comunicação, apresentando dois traços distintivos dos
meios de comunicação contemporâneos: o efeito colagem, a justaposição. As
notícias de lugares muito diferentes são colocadas uma ao lado da outra, carentes
de contexto e narrativa (ROMANO, 1998, p. 431, tradução nossa), caracterizando
uma apresentação dos acontecimentos presentes espacialmente confusa, com
predomínio do tempo instantâneo – ou não tempo.
A articulação do presente é uma atividade tradutora. Ela pretende transpor o complexo continuum dos acontecimentos vivenciados, presenciados – uma linguagem que se desenvolve em múltiplas e simultâneas dimensões e direções – em um objeto temporal e espacialmente delimitado, circunscrito, vale dizer, em um texto. [...] O contemporâneo apresenta-se como rede na qual os acontecimentos se desenvolvem indissoluvelmente vinculados ao seu contexto. Nada se dissocia de nada, tudo se associa a tudo. A causa se transforma em caso e inaugura com isto uma reação em cadeia da qual o receptor participa com sua presença, com sua percepção, com suas emoções. Acontecimento e percepção do acontecimento são neste momento temporalmente inseparáveis. O contemporâneo destrói a temporalidade; resta apenas a simultaneidade como elo que liga o que passou com o que está por vir. [...] A representação icônica da simultaneidade – e, portanto, do presente – é a colagem (BAITELLO, 1999, p. 77-78).
Em virtude da necessidade de respostas instantâneas introduzidas pelas Novas
Tecnologias de Comunicação e Informação, o futuro parece dissolver-se no
presente. A categoria do futuro é abolida por um presente alargado, em que tudo
ocorre simultaneamente. Reduz-se o futuro porque a ciência e a tecnologia
reduzem a distância necessária para colocar seus produtos, por aceleração. Mas
as passagens temporais pressupõem um antes e um depois, pois cada passagem
tem uma relação que faz referência a outras relações, levantando um
questionamento quanto ao sentido das coisas, já que o tempo é um regulador
social.
Os novos meios, as novas tecnologias, que imprimem o traço característico desta
época e aceleram a vida humana, criam a dissolução de todo princípio e fim. Vive-
se sob o signo do trans: transporte, transitoriedade, transversalidade,
transnacionais. Como o culto à velocidade está a ponto de fazer perder fazer o
mundo, chega-se a uma situação em que se necessita de uma reflexão sobre o
uso do tempo.
Perde-se o mundo porque este é muito pequeno para as novas tecnologias. Cada
vez mais é impossível a experiência duradoura. As experiências ocorrem sem que
as percebamos. Sem duração, o ser humano perde a distância consigo mesmo e
com o outro. Na sociedade de renovação fugaz e constante, em que as novidades
dominam o mercado, os seres humanos experimentam cada vez menos os limites
das coisas.
III. Texto e hipertexto. História.
3. A representação hipertextual
Quando uma nova tecnologia passa a ser utilizada no processo comunicativo, novos
artifícios surgem para construir relações e hábitos na esfera da comunicação social.
Desta forma, passou-se da narrativa oral para literatura escrita, do desenho e pintura para
a fotografia, filme e vídeo, e de interações com textos fixos para novos modos de
participação nos sistemas materiais que permitem criar textos que respondem
dinamicamente às leituras e aos processos comunicativos: o hipertexto eletrônico.
Análogo ao que ocorreu com o cinema e com outros meios e tecnologias, a Internet tem
inaugurado novos modos de gerir a informação e de produzir conhecimentos. A
informação que inunda o meio digital, estocada no computador, traduz-se como
informação imaterial, como memória de base de dados existentes numa realidade
atemporal, como
[...] não-coisas impossíveis de serem pegas, agarradas, seguradas. Elas somente podem ser abertas para decodificação. Como nas informações tradicionais elas também vêm inscritas em alguma coisa: em tubos catódicos, celulóides, micro-chip etc. [...] A informação no seu novo estilo não está presa ao local de sua inscrição como nas ditas “coisas” (SANTANA, 2003, p. 1).
A informação, no meio digital, disposta sob a forma de hipertexto eletrônico, é uma
idéia aparentemente nova, mas cujo exercício pode ter sua mais remota origem.
Tomás de Aquino, por exemplo, em seus escritos ou rastros, colocava e respondia
questões, recontava pontos de vista opostos aos seus, criando um diálogo
constante com a cultura de seu tempo e com textos da antiguidade clássica.
“Embora o hipertexto represente uma inovação importante na aquisição e organização do conhecimento, não se pode deixar de mencionar que sempre existiu uma tradição não-linear na literatura” (LEÃO, 1999, p. 59). Neste sentido, é importante observar a obra de autores como Ítalo Calvino, James Joyce, Jorge Luis Borges, Júlio Cortazar, Laurence Sterne, Marcel Proust e Milorad Pavitch. Cada uma dessas obras tem uma estrutura específica e busca quebrar a linearidade da narrativa de uma forma particular.
Um dos mais antigos e populares livros da história da humanidade, o I Ching: livro das
mutações, é totalmente escrito e concebido segundo princípios não lineares. O I Ching é
composto por uma série de sessenta e quatro hexagramas, formados a partir da
combinação de seis linhas, que podem ser de duas maneiras: interrompidas ou cheias.
Não é um livro para ser lido do começo ao fim, seguindo uma ordem linear e contínua,
pois sua estrutura aberta permite que os hexagramas sejam lidos isoladamente ou em
conjunto, conforme o desejo do leitor. Este livro de sabedoria possibilita leituras
polifônicas, múltiplas, pois um mesmo trecho pode significar muitas coisas diferentes e,
ao mesmo tempo, únicas, pois o indivíduo o interpreta de acordo com a sua situação.
Essas obras apresentam características de hipertexto eletrônico porque, de certa forma,
subvertem a noção de texto tradicional, apontando para a atividade do leitor em seguir
caminhos variados em histórias de diferentes formatos. Podem também estabelecer o
verdadeiro espaço de sua novidade, que não é absoluto, porém fundamental para se
pensar a escrita hipertextual (DIAS, 2000).
Sendo assim, a construção dinâmica do texto impresso propõe que a escrita não linear já
existe há muito tempo. O hipertexto eletrônico pode ser uma leitura muito familiar se for
relacionado às notas de rodapé, às revistas e às enciclopédias, que permitem um
movimento sem seguir nenhuma seqüência específica.
O meio impresso também suporta percursos genuinamente hipertextuais. [...] É só mais enfadonho e lento. A tecnologia do hipertexto produz seqüenciamento instantâneo. A seqüência gerada pela ativação de links (e não ativando-os) é o texto lido. Ao menos que haja uma seqüência predefinida indicada pelo designer, não haverá outro texto completo, há apenas as unidades de texto sem nenhuma ordem particular. Hipertextos nos tornam conscientes da importância das escalas de texto. Nós não fazemos necessariamente o mesmo tipo de significado com sentenças complexas que fazemos com palavras ou frases (LEMKE, 2003, p. 02, tradução nossa).
Geralmente, não se começa a leitura de um texto impresso pela página do título ou pelo primeiro parágrafo do texto principal. Numa página escrita, os olhos podem saltar linhas, voltar ao começo ou correr ao fim, criando um outro texto paralelo ao original, sem que nada ou ninguém desautorize (DIAS, 2000). Pode-se iniciar a leitura pela última página ou seguir o número de páginas pelo sumário. Pode-se olhar uma nota de rodapé ou as referências bibliográficas, voltar a leitura para o índice do autor e então, seguir para outra página, continuando a leitura.
A não linearidade, igualmente, não é novidade para o argumento de uma novela
literária contemporânea ou para o cinema, onde um filme não precisa ser
necessariamente apresentado de forma linear. O teatro, a literatura impressa, o
rádio e a televisão já ofereciam, em sua estrutura estética, configurações
temporais onde não predominam a constância linear do fluxo do tempo. Os
espectadores estão acostumados a flash-backs, a compressões de vários anos da
história numa única cena ou parágrafo ou a descrições tão detalhistas que se
estendem muito além do tempo real de uma ação.
Embora a não linearidade, em si, não represente inovação alguma, pode-se
observar que os avanços tecnológicos possibilitam, cada vez mais, formas de se
exercer a temporalidade – ou a não temporalidade, pois a informação digital está
contida nos bancos de dados das máquinas, incluída neste meio de não-coisas
em que todos os valores são transformados em informação.
3.1 Características do hipertexto
Uma das características dos meios digitais de comunicação é existir em um não
tempo.
[...] os processadores eletrônicos operam cada vez mais em uma escala temporal impossível de reconhecê-la pelos sentidos, mas apenas pela matemática. Ambos os tempos são tempo congelados como o tempo que deve existir nas utopias. São um ‘não tempo’ (PELEGRINI, 2003, p. 13).
O hipertexto está adequado a marcas de tempo. Enquanto nova tecnologia de
escrita, o hipertexto apresenta características únicas, apesar da sua coexistência
com as tecnologias anteriores. O hipertexto deve ser visto como um processo
multilinear3 de concepção de escrita, a partir de uma lógica não linear de
apropriação do espaço e do objeto.
3 O autor George Landow, em Hipertext 2.0 – The convergency of Contemporary Critical Theory and Technology define o hipertexto como não linear ou multilinear: “… defining characteristics of hypertext – its non or multilinearity …” (LANDOW, 1997, p. 183).
A idéia de hipertexto foi concebida muito antes do desenvolvimento da informática.
Walter Benjamin, por exemplo, expressou a importância de uma escrita
multidimensional, através do uso do fichário, que representaria uma conquista na
escrita. Esta, por sua vez, passa a ser concebida em múltiplas possibilidades de
combinações. O fichário marca a conquista da escrita tridimensional e, deste modo, apresenta um extraordinário contraponto para a tridimensionalidade da escrita na sua forma original como runa e escrita nodular. E o livro hoje, tal como o presente modo de produção acadêmica demonstra, é uma ultrapassada forma de mediação entre dois sistemas de arquivos. Pois tudo que importa se encontra no fichário do pesquisador que o escreveu, e o aluno, ao estudar os textos, assimila o que importa em seu próprio fichário (BENJAMIN apud LEÃO, 1999, p. 18).
A estrutura dinâmica e o sistema tridimensional dos hipertextos, possibilitados
pelos links são, segundo Leão (1999, p. 19), “são a realização dos anseios de
Benjamin, pois, com sua arquitetura fundada em blocos interligados, o hipertexto
representa um fichário ativo, fácil de ser consultado”.
O físico e matemático Vannevar Bush, em 1945, concebeu as principais idéias de
hipertexto, partindo do paradigma de que a mente humana trabalha por
associações. Sendo assim, sistemas tradicionais de indexação, organização e
trocas de informação, que se baseiam na hierarquia, não seriam muito eficientes.
Através de um aparelho para armazenar dados de diferentes tipos, permitindo elos
entre diferentes documentos, chamado Memex (Memory Extension), Bush permitiu
que o
usuário construísse trajetos de leitura de acordo com seu interesse.
O cientista Douglas Engelbart partiu das premissas de Bush, de que a mente
humana operaria por associações. Com o objetivo de disponibilizar ferramentas
que auxiliassem nas diversas operações mentais, Engelbart pôs em prática essas
premissas e foi além, desenvolvendo uma série de inovações tecnológicas, como
o processador de texto, a utilização de redes, a interface de janelas e o mouse,
dispositivo que associa gestos do corpo humano a tarefas a serem realizadas pelo
computador.
Na década de 60, o cientista Theodor Nelson, considerado o inventor do termo
hipertexto (LEÃO, 1999, p. 21), vislumbrou um sistema capaz de possibilitar o
compartilhamento de idéias entre as pessoas, no qual cada leitor deixaria seu
comentário. Criou o projeto "Xanadu", uma espécie de biblioteca universal, onde
as pessoas poderiam trocar informações, diálogos, interações etc. Funcionando
como um imenso sistema de informação e arquivamento, a ‘Biblioteca de Babel’,
deveria ser um enorme arquivo virtual.
Atualmente, o termo hipertexto é concebido como um documento digital composto
por diferentes blocos de informação interconectados. “Essas informações são
amarradas por meio de elos associativos, os links. Os links permitem que o
usuário avance em sua leitura na ordem que desejar” (LEÃO, 1999, p.15). Os links
eletrônicos oferecem ao usuário diferentes trajetos para a leitura, disponibilizando
a informação de forma não linear. A forma de composição do hipertexto possibilita
vários caminhos para a leitura e a escrita, sendo que cada leitura pode ser iniciada
e acabada em diferentes pontos.
As conexões, facilitadas pelo computador, ligam as informações umas às outras.
O hipertexto é composto por nós e conexões, que podem ser acessados de
qualquer computador e por qualquer usuário. O leitor pode navegar pelos textos
anotados, referidos e conectados de forma ordenada mesmo que não seqüencial
(LANDOW, 1997, p. 17, tradução nossa).
O hipertexto é parcialmente criado pelo autor, que o organiza e parcialmente pelo
leitor. Mas também é um produto das máquinas, pois
O novo ser humano é aquele sem mãos, aquele que não segura nada, o homem não é mais da prática e nem da ação manual. O que resta e importa são as pontas dos dedos a qual ele pode tocar as teclas e jogar com os símbolos. ‘O novo ser humano não é um homem da ação mas um jogador: homo ludens como oposto ao homo faber’. [...] O que quer que exista ainda hoje para ser agarrado e produzido é feito automaticamente pelas não-coisas, pelos programas, pela inteligência artificial e pelas máquinas robóticas. [...] A mão se transforma em algo redundante e possível de atrofiamento enquanto a ponta dos dedos se transforma no órgão mais importante do ser humano. São eles que lidam com as teclas para a decodificação e atuação com os símbolos em benefício dos programas. A ponta dos dedos passa a ser o órgão da decisão, da escolha (SANTANA, 2003, p. 2).
Desta forma, os documentos em hipertexto permitem ao escritor e aos autores
conectarem dados entre si, criando trajetos em um conjunto de material, além da
possibilidade de se fazer referências a textos já existentes e de criar notas que
remetam tanto a dados bibliográficos como ao corpo do texto em questão.
O hipertexto é um documento em que as operações da estrutura interativa estão
misturadas com o texto. O hipertexto será considerado como qualquer tipo de
sistema no qual o texto contém operações estruturais interativas embutidas. O
nível mais básico da atividade hipertextual é executar uma operação como, por
exemplo, seguir um link. Em geral, investiga-se a estrutura hipertextual do ponto
de vista da estrutura “real” que conecta essas operações. Os leitores descobrem a
estrutura através de atividades providas pelo hipertexto. (ROSEMBERG, 2002,
p.57).
Torna-se claro que é preciso mover o hipertexto de maneiras diferentes do texto.
No hipertexto, a leitura possibilita uma construção que reúne um grande número
de variáveis, e que dificilmente repetirá a mesma configuração. A cada visita a
uma mesma homepage, novas leituras se realizam, novos contextos são
percebidos. O hipertexto remete a uma escrita não seqüencial, a um texto que
bifurca, que permite ao leitor uma certa liberdade de escolha (pré – programada) e
que se lê melhor em uma tela interativa. “Trata-se de uma série de blocos de
textos conectados entre si por nexos, que formam diferentes trajetos para o
usuário” (LANDOW, 1997, p.15, tradução nossa).
O hipertexto apresenta um conjunto de informações textuais que podem estar
combinadas com imagens (animadas ou fixas) e sons, organizadas de forma a
permitir uma leitura (ou navegação) não linear, baseada em indexações e
associações de idéias e conceitos, sob a forma de links.
O hipertexto, por estar em suporte digital, permite que o leitor realize saltos em
sua leitura, que acarretam duas conseqüências importantes. Primeiro, favorece
um tipo de leitura descontínua. Segundo, promove um deslocamento quase
instantâneo pelas páginas. “À medida que possibilita ligações rápidas a diversas
redes associativas, o hipertexto se apresenta como um meio de relações,
incitando conexões“ (LEÃO, 1999, p. 62).
Desta forma, o hipertexto de destaca pela leitura não seqüencial, fragmentada, pela simultaneidade da produção e circulação de suas produções, pelo desenvolvimento de nós e redes em ligações multilineares, pela possibilidade de passar quase instantaneamente da parte ao todo, pela presença de textos não-verbais (imagens, sons, gráficos, animações etc.) e pela disponibilidade de um aparato paratextual, característica semelhante à existente no texto impresso, mas que se diferencia pelas possibilidades de acesso graças às características do suporte digital.
O hipertexto não apresenta fronteiras nítidas, nem interioridade definível. O texto, no contexto digital, é posto em movimento, envolvido em um fluxo. Hipertexto é mais que um texto. Não apenas pelo fato de imagens, texto e som poderem ser justapostos, mas porque se desenham múltiplas interconexões entre eles, potenciais e explícitas. “Na forma mais simples de um hipertexto, podemos ter uma rede de páginas em que o todo, ou alguma parte do texto, está ligado a alguma parte de outra página, mas não por seqüências convencionais de leitura” (LEMKE, 2003, p. 1, tradução nossa). Os links tornam o hipertexto multi-seqüencial. Há múltiplas trajetórias possíveis, ou percursos, através de uma rede de hipertextos.
O hipertexto, ao estender e possibilitar a passagem do discurso verbal a
informações visuais e sonoras e animações, expande a noção de texto. Sendo
assim, como um texto impresso diferencia-se de um hipertexto, a textualidade
difere da hipertextualidade. A noção de um texto inteiro deve ser reexaminada no
meio hipertextual. Os objetivos semânticos do hipertexto são os percursos, as
seqüências de lexias4 produzidas pelo usuário. Em muitos hipertextos, o autor cria
percursos ou caminhos predefinidos e opcionais, mas claramente marcados, com
seqüências de lexias com links explicitamente indicados. O usuário pode seguir
esse caminho ou mapear seu próprio trajeto, “um compromisso entre o
seqüenciamento guiado pelo autor e as seqüências selecionadas pelo leitor”
(LEMKE, 2003, p. 3).
O hipertexto, inserido no contexto digital, possibilita uma rede com novas formas de ler e escrever. Por suas características, o usuário interliga informações, realizando associações. Através dos saltos, que marcam o movimento do hipertexto, o leitor assume um papel dinâmico e interativo, operando de forma descontínua e multilinear.
A estrutura do hipertexto requer um leitor habilidoso em navegação, que vai estabelecendo elos, impondo uma certa ordem e delineando um tipo de leitura particular, provavelmente exclusiva.
4 De acordo com a autora Lúcia Leão, em O Labirinto da Hipermídia – Arquitetura e Navegação no Ciberespaço, o termo lexia denomina os blocos ou unidades básicas de informação que constituem um hipertexto. Uma lexia pode ser formada por diferentes elementos, tais como textos, imagens, vídeos, ícones, botões, sons, narrações etc.
O hipertexto altera fundamentalmente a noção de textualidade, pois se
constitui num texto plural, sem centro discursivo, sem margens, sempre mudando e recomeçando, de forma associativa, cumulativa,
multilinear e instável. No hipertexto, perde-se a relação com o livro que é exclusiva do leitor: o poder de considerar o que está escrito como
alguma coisa finita e definitiva, à qual nada se pode acrescentar ou da qual nada se pode subtrair. “A existência de múltiplos trajetos de leitura perturba o equilíbrio entre leitor e escritor” (DIAS, 2000).
A organização do significado era uma responsabilidade que cabia ao autor, assim
como controlar a coerência da língua escrita, da gramática e da sintaxe. O hipertexto
eletrônico desencadeou um outro processo de leitura e escrita, modificando, em
relação ao texto, a posição do autor e do leitor. O hipertexto não se configura como um sistema unilateral, centralizador, porém trata-se de um sistema em que cada usuário pode ser um autor, leitor e um editor em potencial. No hipertexto, o que se tem é a ausência de um centro controlador. (MARCUSCHI, 2000, p. 1),
tanto pelas possibilidades de leitura oferecidas ao usuário como pelas possibilidades de armazenar dados e pela forma como estes se apresentam.
O papel do leitor como um agente ativo envolve mexer com antigos esquemas conceituais. A tênue separação entre autor e leitor, característica presente na escrita eletrônica, é datada da Antigüidade. Os textos constituíam-se fóruns de discussão, pois eram consertados pelos leitores, pelos copistas e comentaristas que, ao exercerem suas tarefas de reprodução e crítica, acrescentavam as suas próprias idéias e comentários. Na página impressa, entretanto, as idéias tornaram-se fixas e imutáveis, concedendo ao trabalho de escrita uma autoridade praticamente incontestável. Por sua vez, o espaço de escrita patrocinado pelo computador recupera para o leitor as chances de dialogar com o escritor, criando uma relação colaborativa e, principalmente, interativa. A ação do leitor torna-se não só possível, mas essencial à experiência hipertextual (DIAS, 2000).
E se a hipertextualidade não é uma invenção contemporânea, ela ganha impulso com o avanço da crescente ação entre o homem e a técnica. A hipertextualidade questiona o discurso tradicionalmente lógico, acabado, fechado em si. As inúmeras possibilidades de conexões entre trechos de textos e textos inteiros favorecem a flexibilização das fronteiras entre diferentes áreas do conhecimento humano.
Entretanto, de todas essas características, é a velocidade, a instantaneidade, a rapidez da passagem, que encerram a maior diferença entre o hipertexto literário eletrônico e o texto impresso. A Internet, “como mass-media do futuro, é mais rápida que a televisão
ou revista” (UCHTMANN, 2001, p. 8). O hipertexto acrescenta a aceleração temporal que visa a simultaneidade de acesso à informação.
3.2 A narrativa hipertextual digital
A narrativa, um dos gêneros literários mais antigos da tradição ocidental, uma das formas mais artesanais de comunicação, foi e continua sendo muito importante para a cultura. A narrativa saiu da boca dos narradores orais, se deitou nas páginas tipográficas, virou história em quadrinhos, vagou pelas ondas das novelas radiofônicas, ganhou corpo e voz em filmes e novelas televisuais, agora é videogame e hipertexto. Mas nada indica que todas as possibilidades já foram esgotadas, pois em toda narrativa existe o gérmen de uma aventura que explora um elemento vital ao homem e à cultura: o deslocamento, o movimento rumo ao desconhecido e a descoberta. Por representar o deslocamento no tempo (chronos) e no espaço (topos), a aventura foi considerada o elemento mais importante do romance (MACHADO, 2002, p.72).
Sendo a narrativa esse gênero ainda inesgotado, muitos autores migraram da escrita impressa para a escrita eletrônica e começaram a escrever obras ficcionais em formato digital. Estas obras podem ser chamadas de narrativas hipertextuais, hipernarrativas, hipertexto de ficção, narrativas digitais ou, ainda, hiperficção,5 entre outras denominações, e apresentam características semelhantes às do hipertexto, pois são conseqüências da escrita digital.
Mas não significa que toda narrativa hipertextual, necessariamente, tenha a forma de um hipertexto, pois mesmo que trabalhe com as possibilidades de as tecnologias digitais de informação adicionarem cores, imagens e movimento à narrativa, a função de seus links não é somente promover um seqüenciamento de informações, ou indicar a passagem de uma página à outra. Isso seria simplesmente mudar o suporte impresso de um livro para o suporte digital e as narrativas digitais propõem uma estrutura bem mais complexa e questionadora do que apenas virar as páginas. Trata-se da criação de múltiplas histórias, que podem ser combinadas inúmeras
5 O autor George Landow (1997) adota os termos narrativa digital, narrativa hipertextual e hipertexto de ficção. A autora Lúcia Leão (1999) utiliza os termos hipernarrativa e hiperficção. Neste trabalho serão utilizados os termos narrativa hipertextual e narrativa digital pois caracterizam o formato (hipertextual) ou o suporte (digital).
vezes, caracterizando a escrita multilinear que constitui a narrativa hipertextual. Suas características referem-se a:
reader choice, intervention and empowerment; inclusion of extra-linguistic texts (images, motion, sound); complexity of network structure and degrees of multiplicity and variation in literary elements, such as plot, characterization, setting, and so forth (LANDOW, 1997, p. 180).
E as narrativas digitais ainda questionam a seqüência fixada, fim e começos definidos, histórias de dimensão definida e a concepção de unidade e totalidade associadas a todos estes conceitos, além de experimentarem pontos comuns com o hipertexto: sua não linearidade, – ou multilinearidade – sua multivocalidade e sua inevitável combinação entre o visual e o verbal, envolvendo uma complexa mistura de qualidades e tendências. Trata-se, enfim, de uma narrativa que se transforma através de sucessivas leituras, de acordo com as combinações de conexões realizadas pelo leitor.
A experiência individual de cada leitor, a forma como direcionará seu caminho,
deve levar em conta que não haverá seqüências de páginas, pois o espaço da
narrativa hipertextual é multidimensional e teoricamente infinito, com uma enorme
possibilidade de recombinar a seqüência de links. O leitor deve escolher a rota,
dentro deste labirinto, que deseja tomar, seguindo alguma característica particular,
como a ação de um personagem. Os leitores podem se tornar leitores-autores não
somente por escolherem seus caminhos ao longo do texto, mas também por
atuarem de forma mais ativa, o que significa que, eventualmente, poderão
interferir diretamente na história, introduzindo novos elementos, novas estratégias
narrativas, abrindo novos caminhos, interagindo com os personagens e até
mesmo com o autor.
Quanto à forma como os leitores seguem os links, em contraste com o hipertexto
informacional, que deve empregar marcas de orientação e navegação para guiar o
leitor, na narrativa digital nem sempre ocorre o mesmo, o que pode implicar em
leitores desorientados e sem capacidade de tomar decisões em seu percurso ao
longo do texto. Por sua vez, sempre foi comum na literatura o emprego de uma
certa organização lógica, seja no tempo ou no espaço, pois o deslocamento ou a
omissão de algum elemento poderia tornar a seqüência de fatos incompreensível,
ou alterar radicalmente seu propósito.
As narrativas baseadas em estruturas hierárquicas de textos sempre orientaram a
leitura através de marcas, no início das obras, como “estabelecer entidades
necessárias para a criação do mundo ficcional, fornecer descrições de algum
personagem ou lugar, fornecer informações preliminares sobre eventos” (HOEY,
2001, p. 47, tradução nossa). Estas premissas funcionam para orientar o leitor,
além de criar o cenário para que a história se desenvolva.
Sempre que numa narrativa há um ou mais dos seguintes fatores: uma clara mudança de enquadramento de tempo, tipicamente marcada por adjuntos de tempo como ‘poucas horas depois’; uma clara mudança de lugar, quase sempre marcada por uma sentença relatando a chegada a um novo local; uma mudança em personagens, tanto pela adição de uma nova pessoa como pela remoção de um dos personagens presentes ou ainda pela mudança completa do elenco; uma clara transição estrutural, como um novo capítulo; um claro paralelismo estrutural; há uma prima face para identificar o bloco de texto que formará um novo episódio na narrativa. Os limites dos episódios variam em sua clareza, mas representam uma decisão do escritor em mostrar uma relação seqüencial entre dois blocos de textos do que apenas entre duas seqüências ou frases. São, portanto, uma outra maneira na qual as necessidades globais e locais do leitor são alcançadas (HOEY, 2001, p. 48, tradução nossa).
Entretanto, muitos trabalhos contemporâneos questionam as narrativas que mostram, claramente, as relações seqüenciais entre blocos de textos, explorando a tensão entre a linearidade e as sensações temporais subjetivas. A tendência da teoria contemporânea da narrativa é que esta venha a se “descronologizar” (LANDOW, 1997, p. 188, tradução nossa), lutar com a representação linear do tempo, principalmente quando se tem um personagem e seus conflitos pessoais em foco e quando se fala em aceleração temporal proveniente das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação.
As forças da narrativa hipertextual como forma literária parecem residir em seu realismo, no modo como traduzem a consciência do tempo em mutação, a falta de coerência e as conclusões passageiras, fatos comuns no cotidiano das pessoas. A narrativa digital assemelha-se “à complexidade e à doçura de se viver num mundo povoado por outros seres humanos, igualmente incertos, seus sonhos e suas lembranças” (JOYCE, 2002, p. 50).
Anteriores ao hipertexto, obras literárias impressas denominadas semi hipertextuais – “quasi hypertextual” (LANDOW, 1997, p. 189) já utilizaram o conceito de não linearidade, sugerindo como as narrativas hipertextuais seriam. Podem ser citadas como
exemplos precursores da narrativa hipertextual Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristam Shandy, Ulysses e Finnegan’s Wake, além de produções literárias de ficção recentes, provenientes da França, América e América Latina, particularmente as obras de Jorge Luis Borges, Júlio Cortazar, Marc Saporta Michel Burtor e Robert Cover.
Em Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristam Shandy, publicada em 1759, o escritor Laurence Sterne, através de uma narrativa carregada de digressões, fantasia e humor, convida o leitor a participar da história abrindo espaço na página para que este emita as suas opiniões. Ulisses, de James Joyce, publicado em 1922, é considerado “o romance mais revolucionário do século em termos de rompimento com as estruturas estabelecidas pela técnica literária” (DIAS, 2000). O movimento do romance de Joyce, semelhante ao fluxo da consciência, traz características que podem ser associadas a termos hipertextuais, tais como intertextualidade, intervocalidade, interdisciplinaridade e a paródia literária.
Em sua obra O jogo da amarelinha, de 1963, Júlio Cortazar indica duas seqüências de leitura da obra, embora existam mais caminhos possíveis:
a primeira, pela ordem tal como está impressa no livro, que estende-se até o capítulo 56, sendo os demais, ‘capítulos prescindíveis’, segundo o autor; a segunda, uma seqüência de leitura determinada pelo autor e diferente da ordenação impressa no livro, o que constitui-se, de acordo com Cortázar, no ‘segundo livro’. Este pode ser tomado como um exemplo hipertextual de romance impresso, basicamente, por instituir uma leitura multiseqüencial (LONGHI, 2000).
Jorge Luis Borges, no seu conto O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, de 1941, apresenta uma história repleta de referências e associações dentro dela mesma, com se fosse um labirinto, num exercício de narrativa que assume formas diferentes de tempo e de espaço, realizando uma reconceituação destes aspectos em sua obra literária.
As obras citadas não requerem o aparato digital do hipertexto para serem
entendidas, mas para os leitores que tiveram a experiência da narrativa
hipertextual, revelam novos princípios de organização ou novas formas de leitura,
pois o hipertexto levanta pontos relevantes sobre a narrativa que se afastam do
formato linear, já que, convencionalmente, a trama de uma narrativa é construída
pela sucessão de eventos.
A diferença entre as obras semi-hipertextuais e as narrativas digitais refere-se,
principalmente, à maior liberdade que o leitor possui para traçar seus caminhos,
às múltiplas possibilidades de leitura e de fechamento da obra. Cabe ao leitor
escolher qual caminho seguir e, então, perceber que não há uma narrativa
principal que permeie a obra, pois a narrativa eletrônica não espera uma resposta
única. Não há uma única história porque cada leitura é uma versão, porque cada
leitura determina uma história a ser seguida. “We could say that there is no story at
all; there are only reading” (LANDOW, 1997, p.189).
Entretanto, por suas características, o hipertexto criou um problema para as
narrativas em relação às questões do início e do fechamento das histórias. O
início é designado para identificar, clarear ou definir um tempo, um lugar ou uma
ação de um personagem. Quando se aponta o início de uma narrativa, significa
que daquele princípio a história deve ser seguida. Como, na narrativa hipertextual,
o leitor é quem determina, pelo menos parcialmente, o trajeto de sua leitura,
surgiram questões quanto à delimitação do ponto de partida da história.
Diante deste fato, muitos autores passaram a utilizar recursos que demonstram o
ponto inicial da obra, dando indicações aos leitores no título ou na introdução.
Alguns autores evitam, assim, desorientar seus leitores no início da narrativa, pois
acreditam que a narrativa hipertextual deveria necessariamente “mudar a
experiência do meio, mas não do início da narrativa de ficção” (LANDOW, 1997,
p.190, tradução nossa).
Se questões relacionadas a iniciar uma narrativa hipertextual foram identificadas e
possivelmente resolvidas, o problema então se concentrou em chegar a uma
conclusão de uma obra multiseqüencial. A leitura e sua interpretação nunca foram
um ato acabado, mas sempre tenderam a uma conclusão, a um fechamento,6 a
um acerto, sempre dentro do conhecido e respeitável. Tradicionalmente, um início
implica em um final e finais requerem um tipo de fechamento formal, uma
conclusão que satisfaça o leitor, para que este possa perceber e entender a
6 Fechamento é a tradução para o termo Closure, utilizado pelo George Landow em Hipertext 2.0 – The convergency of Contemporary Critical Theory and Technology, de 1997.
história como um todo. Ou seja, para que o leitor compreenda a narrativa, é
necessário primeiro compreender como e por quê os sucessivos episódios
chegaram a uma determinada conclusão, que longe de ser prevista, deve ser
finalmente aceita, coerente aos episódios que constituíram a história.
Estas ficções demonstram o caráter oscilatório do hipertexto, pois elas se recusam
a serem fixas, estáticas. A estrutura da narrativa parecerá fechada quando o leitor
experimentá-la de forma integral, coerente, completa e estável. Estas qualidades
produzem um senso de composição, de estabilidade, resolução ou equilíbrio.
Diferente dos textos impressos ou escritos, a narrativa hipertextual aparentemente
pode continuar indefinida, talvez infinitamente, porque se recusa a ser fixa. “They
say things and then take them back. They challenge the reader to question
repeatedly where the narrative is going. They enact the indeterminacy, the
flexibility, and the interactivity” (BOLTER, 1996).
A narrativa digital termina porque a leitura sempre termina, mas não significará
que a história em si chegou ao fim. O que se percebe imediatamente é que, para
um leitor não familiarizado com o funcionamento de um hipertexto, seja ele
ficcional ou não, a questão do fechamento é colocada imediatamente como um
problema.
A expectativa de um fim advém da experiência com a narrativa definida por
seqüências de episódios (seja numa narração oral, num texto, numa peça teatral,
num filme...). “A Poética de Aristóteles (350 a.C.) já determinava claramente que
uma narrativa deve ter Início, Meio e Fim” (PALACIOS, 2001). As pessoas estão
acostumadas, desde que começam a escutar histórias, a esperar por um
desfecho, pois a narrativa só tinha duas maneiras de terminar: uma vez passadas
sua provações, o herói e a heroína se casavam ou morriam.
Uma narrativa não linear, em suporte impresso, tem a representação física do livro
como recurso para o fechamento, mesmo que a história não tenha um final,
mesmo que a última página não traga um desfecho. O mesmo se pode afirmar
com relação a produções cinematográficas que experimentam com a não-
linearidade, como A Estrada Perdida, de David Lynch, Pulp Fiction, de Quentin
Tarantino, ou Depois da Chuva, de Milcho Manchevski. No entanto, eventualmente
chega-se a um fechamento, representado pelo último fotograma do processo de
projeção do filme.
Com o hipertexto, o fechamento não se dá da forma à qual os leitores estão
acostumados. O fechamento é um conceito psicológico que se refere à bem
sucedida conclusão de uma tarefa antes que outra se inicie. Se os links de um
hipertexto podem se ramificar de página de leitura, para cada nó há uma boa
chance de que o percurso inicial seja interrompido por um link que leve à
seqüência de leitura, o que significa que o leitor pode chegar a nunca completar a
informação daquele ponto inicial, principalmente quando não se tem um foco de
atenção. “The reason may be simply that we are still in the late age of print and are
still influenced by the linear habits developed over hundreds of years. Or it may be
that linear and univocal expression comes easier to the human mind than multiple
expression” (BOLTER, 1996).
As narrativas hipertextuais compreendem grandes variações interpretativas, cujo
conteúdo nunca se encontra encerrado, porque não se estruturam de forma
fechada, com começo, meio e fim definidos. As obras são organizadas de forma a
conter muitos significados, instaurando uma leitura incômoda porque nunca é
definitiva, mas sim inesgotável e aberta. Portanto, sobre as narrativas digitais,
pode-se dizer que não se tratam de obras definidas, mas sim de obras compostas
por possibilidades de leitura.
A hiperficção é como sentar-se num restaurante em meio ao burburinho de histórias, algumas bem conhecidas, algumas de que só se ouviu metade, entre pessoas com as quais compartilhamos apenas a brevidade da vida e a certeza da morte (JOYCE, 2002, p. 50).
IV. Análise de uma obra narrativa hipertextual
4. Análise da narrativa hipertextual
A narrativa hipertextual Sand Loves é composta por oito lexias principais, além da
página inicial. Para acionar os links desta narrativa digital, o leitor deve deslizar o mouse
sobre a imagem principal e ver as palavras mudarem e piscarem. O leitor também pode
clicar em qualquer palavra grifada para iniciar a navegação. Ou seja, descontando-se a
página principal, não há um ponto de partida definido para
Figura 1 – Página principal7
a leitura, não há um ponto central que inicie a história, mas oito possibilidades diferentes
de escolha.
O computador deverá possuir o dispositivo Java para que a narrativa hipertextual seja
visualizada. Este dispositivo pode ser baixado ao se acessar a página principal de Sand
Loves (http://www.eastgate.com/SandLoves/Welcome.html). 7 Fonte: http://www.eastgate.com/SandLoves/Welcome.html
Estabelecidas as configurações necessárias, o leitor poderá fazer seu próprio
percurso de leitura, primeiramente escolhendo entre oito possibilidades: ‘Castles’,
‘Wet buckets’, ‘Scrunching’, ‘of beachsand’, ‘squarely’, ‘and crabs’, ‘toes forever’ e
‘through our’.
Na lexia Castles, o link liquid sand leva o leitor à lexia Wet buckets, e o link
laughter leva à lexia Scrunching. Na lexia Wet buckets, o link buried leva o leitor à
lexia of beachsand, e o link sand leva o leitor à lexia squarely.
Na lexia Srunching, o link nether words leva o leitor à lexia and crabs, e o link we
dared leva o leitor à lexia Wet buckets.
Na lexia of beachsand, o link sand crusted eyes leva o leitor à lexia squarely, e o
link follow us leva o leitor à lexia toes forever. Na lexia squarely, o link We knew
leva o leitor à lexia toes forever, e o link loves you leva o leitor à lexia through our.
Na lexia and crabs, o link wet silk sand leva o leitor à lexia Scrunching, o link dry
hot sand leva à lexia of beachsand, e o link magic leva o leitor à lexia toes forever.
Na lexia toes forever, o link I remember leva o leitor à lexia through our, e o link
laugh leva o leitor à lexia Castles.
Na lexia through our, o link secret leva o leitor à lexia and crabs, e o link deep dark
secrets leva o leitor à lexia Castles.
Estas combinações de leitura podem ser melhor observadas no fluxograma a
seguir:
CASTLES
WET BUCKETES
SCRUNCHING
OF BEACHSAND
SQUARELY
AND CRABS
TOES FOREVER
THROUGH OUR
WET BUCKETS
SCRUNCHING
OF BEACHSAND
SQUARELY
AND CRABS
WET BUCKETS
SQUARELY
TOES FOREVER
TOES FOREVER
THROUGH OUR
SCRUNCHING
OF BEACHSAND
TOES FOREVER
THROUGH OUR
CASTLES
AND CRABS
CASTLES
Fluxograma 1 - Possibilidades combinatórias de leitura da narrativa hipertextual
Para esta análise, o percurso de leitura foi iniciado pelo link ‘underlinerd words’,
que levou à lexia ‘Castles’. Além disso, pode ser levada em consideração que a
leitura se inicie por esta lexia graças à disposição do link, no canto esquerdo da
página – de certa forma, é um costume ocidental iniciar a leitura pelo canto
esquerdo da página.
Figura 2 – Lexia Castles8
Neste ponto, o assunto é a construção de castelos de areia. A partir desta página,
pode-se seguir por outros dois caminhos: liquid sand e laughter.
A leitura continuou através do link liquid sand, pois é o primeiro da seqüência.
Este link leva à página cujo título é Wet buckets, em que o autor fala sobre a
brincadeira de se enterrarem na areia.
8 Fonte: http://www.eastgate.com/SandLoves/Welcome.html
Figura 3 – Lexia Wet buckets9
Os links desta página estão nas palavras buried e sand. A leitura continuou pela
palavra sand.
Este link leva à página denominada squarely. Squarely relaciona-se, no texto, a
arrumar a areia sob os ombros.
9 Fonte: http://www.eastgate.com/SandLoves/Welcome.html
Figura 4 – Lexia squarely10
Duas palavras podem ser linkadas: We knew e loves you. Como nenhuma delas
está relacionada ao tema da narrativa, foi escolhida a palavra We knew, pois é o
primeiro link deste trecho.
We knew leva o leitor à página denominada toes forever. O conteúdo desta página
é o seguinte: “This is what I remember. This is what you will tell your children you
remember. And we will laugh through the sand for centuries to come”. (‘Isto é o
que eu me lembro. Isto é o que você pode contar aos seus filhos que você se
lembra. E nós riremos pela areia pelos séculos que vêm’).
10 Fonte: http://www.eastgate.com/SandLoves/Welcome.html
Figura 5 – Lexia toes forever11
Esta passagem pode ser entendida como a página final da hipernarrativa, pois
permite que o leitor tenha a sensação de fechamento, de conclusão. Porém, como
nesta passagem ainda há dois links, em I remember e em laugh, o leitor pode
continuar a história, se achar necessário.
4.1 Os tipos de links e a navegação
Os links possibilitam o relacionamento entre lexias, permitindo que se
estabeleçam “associações semânticas, comentários mais aprofundados,
definições, exemplos etc” (LEÃO, 1999, p. 31).
11 Fonte: http://www.eastgate.com/SandLoves/Welcome.html
Os links, em sua maioria, podem ser denominados direcionais, ou seja, “levam o
leitor a um ponto predeterminado pelo autor, podendo ser um ponto x, y, ou z, mas
necessariamente são pontos que foram programados previamente” (LEÃO, 1999,
p. 31). Na hipernarrativa analisada, pode-se observar que todos os links são
diretivos, pois levam o leitor a pontos pré-programados pelo autor.
Leão (1999, p. 31) ainda classifica os links sob outros dois aspectos: disjuntivos,
que correspondem a situações nas quais, ao clicar sobre um termo destacado, o
leitor é levado a outro ponto do sistema, e conjuntivos, que levam a uma
experiência de simultaneidade, pois abre-se uma janela sobre a tela que está
sendo vista.
Desta forma, podemos classificar os links de Sand Loves como diretos e
conjuntivos, pois as páginas se abrem sobre o espaço em que se realiza a leitura,
de forma pré-estabelecido pelo autor.
Quanto à navegação, os leitores realizam seu trajeto de leitura através dos links
dispostos no texto. Se desejar voltar a leitura, ou retornar à página principal, será
possível fazê-lo através do botão voltar na barra de navegação, como também
pode clicar na lexia em que se encontrava anteriormente, pois todas as lexias
permanecem expostas no desenho que compõe a narrativa hipertextual.
4.2 Os padrões de hipertexto
Outro aspecto a ser observado na análise da narrativa hipertextual refere-se aos padrões
do hipertexto, padrões estruturais úteis para a descrição, análise e projeto de hipertextos,
que serão descritos a seguir, de acordo com a nomenclatura do autor Mark Bernstein.
A estrutura do hipertexto, na verdade, não reside exclusivamente na topologia dos links, tampouco na linguagem dos nós individuais. Os hipertextos característicos contêm exemplos de vários padrões diferentes, e freqüentemente um simples nó ou link pode participar de várias estruturas interseccionadas (BERNSTEIN, 2002, p.84).
Os padrões propostos pelo autor são: ciclo, contraponto, mundo dos espelhos,
emaranhamento, crivo, montagem, vizinhança, ruptura/junção, link perdido e
estratagema navegacional. Um hipertexto pode ser constituído por um padrão, por dois
padrões ou por vários deles ao mesmo tempo.
No hipertexto analisado, foram encontrados dois tipos de padrões: o ciclo e o
contraponto. No ciclo, o leitor volta a um nó já visitado e eventualmente parte para
um novo caminho. Os ciclos criam recorrência, expressando a presença da
estrutura e modulando a experiência do hipertexto, pois enfatiza os pontos-chave
enquanto relega os outros ao segundo plano. Revisitar um local faz com que este
proporcione uma experiência nova, porque o novo contexto pode mudar o
significado de uma passagem, mesmo que as palavras não mudem. A repetição
medida e planejada pode reforçar a mensagem do escritor: os resumos de fim de
capítulo e os refrãos musicais, por exemplo, são composições comuns da
literatura pedagógica da cultura oral e escrita que têm a finalidade de reforçar a
mensagem proposta. Os ciclos levam, por si mesmos, não apenas a uma
variedade de efeitos pós-modernos, mas também a motivos conhecidos do texto
escrito (BERNSTEIN, 2002, p. 85).
No contraponto, duas vozes se alternam, intercalam temas ou agrupam tema e
reação. O contraponto dá um senso de estrutura, uma ressonância de demandas
e respostas reminescentes tanto da liturgia como do diálogo casual. O contraponto
surge naturalmente de narrativas centradas no personagem, por exemplo, quando
um autor utiliza-se de correspondências entre dois personagens centrais para
expor suas idéias, suas diferenças e estabelecer suas conexões.
O contraponto pode ser granulado. Um personagem pode se mover entre contos
do passado distante e histórias de seu próprio presente; pode se mover entre
tempos e vozes dentro de uma única lexia. As mesmas técnicas de contraponto
podem ser adaptadas para descentralizar o tema. Um hipertexto pode alternar
enquadramentos de tempo: um espaço escrito, que descreve uma cena de
infância, linkado a cenas da vida adulta, e as cenas da vida adulta, vinculadas à
infância, apresentando, desta forma, o contraponto entre as cenas atuais com a
infância. O contraponto distorce os ciclos, ao mesmo tempo em que os limita
(BERNSTEIN, 2002, p. 86).
4.3 A leitura da narrativa hipertextual – a construção de significados A análise dos fragmentos da narrativa hipertextual, dos links, da navegação e dos
padrões hipertextuais da obra permite observar como o leitor pode construir sua
rede de significados.
É característica da narrativa hipertextual apresentar uma estrutura sem início ou
fim definidos. Isso pode ser observado em Sand Loves, pois o leitor tem oito
opções para iniciar sua leitura. Se clicar no link ‘underlined words’, na página
principal, será direcionado à lexia ‘Castles’, caso contrário, terá as opções
dispostas no desenho que compõe a página principal. A partir de então, pode
começar a construir sua narrativa. Também não há um fim definido, pois a obra é
construída por ciclos, ou seja, todas as páginas possuem links que levam a outras
páginas, de forma que o leitor pode realizar inúmeras combinações.
Também podem ser encontrados contrapontos na leitura do texto, em que o autor
alterna duas vozes. Por exemplo, na lexia ‘Wet buckets’ (ver Figura 3), o autor
inicia o texto comentando que alguém pode estar chateado – ‘buried’. Porém, a
lexia anterior, ‘Castles’, imprimia um tom de brincadeira através da construção de
castelos na areia. Ou seja, há uma intercalação de idéias, de forma que cada um
dos fragmentos é independente da significação de outros. Ou seja, não se trata de
uma obra linear, em que um episódio seja dependente de outro, impondo uma
ordem coerente de fatos para a construção de significados.
Não há uma noção de causalidade ou de temporalidade na leitura dos fragmentos.
Não há marcas de passagem temporal em relação aos links, eles não sugerem
sucessão de fatos. A seqüência lógica dos fragmentos será formatada pelo leitor,
de modo que um acontecimento não será causa de outro. Os episódios estão
dispostos de forma não linear ou multilinear, e não de forma hierárquica. Segundo
Hoey (2001, tradução nossa), na narrativa estruturada de forma hierárquica, “uma
clara mudança de enquadramento de tempo, tipicamente marcada por adjuntos de
tempo como ‘poucas horas depois’”, consiste numa premissa que funcionam para
orientar o leitor.
A relação seqüencial entre os blocos de texto nesta hipernarrativa consiste na
utilização de “paralelismos estruturais” (HOEY, p. 47, 2001, tradução nossa). O
autor utilizou, em todos os episódios, a mesma configuração, tanto no que se
refere ao tema, quanto aos referenciais – sempre há a utilização dos pronomes
Nós e Você para identificar os personagens – gerando assim, uma estrutura que
orienta o leitor, porque não há relação de causa e efeito entre os blocos de texto,
nem de seqüências temporais.
A leitura desta narrativa digital, portanto, pode ser descrita como não linear, ou
multilinear, porque não existe uma estrutura centralizadora, um ponto de partida
para o leitor. Além disso, não há uma seqüência temporal a ser seguida, porque a
escolha da seqüência de links não produz uma relação de causa e efeito. Esta
narrativa hipertextual não implica em seqüência de fatos, eles simplesmente
existem e se interligam no decorrer das escolhas relacionadas pelo leitor.
Numa narrativa digital, a leitura não é linear porque não há uma seqüência de páginas, mas sim múltiplos caminhos. Neste caso, os leitores não precisaram contrapor todas as facetas do acontecimento ao mesmo tempo; em lugar disso, a ordem na qual examinam as várias facetas determina cada experiência do texto. A narrativa hipertextual abre o leque de desenlaces possíveis segundo as escolhas que o leitor vai fazendo, criando uma pluralidade de vozes.
A origem e o fim não mais se apresentam com tanta nitidez. A necessidade de um
momento inaugural e de um fechamento se colocavam como um imperativo. No
caso desta narrativa digital, a passagem ‘toes forever’, pode ser entendida como
uma conclusão. Por outro lado, o leitor ainda pode optar por continuar sua leitura,
pois ainda há links nesta página, que levarão a outras páginas. Então, talvez seja
mais efetivo pensar numa temporalidade que comporte a simultaneidade, ao invés
de tomar a sucessividade como princípio organizador do tempo (LANDOW, 1997,
p. 194, tradução nossa).
Tantos contextos diferentes atravessam e interferem, pois há vários centros de
interesses, de personagens e de cenários, que podem ser iguais, mas possuírem
significados diferentes. A criação de significados se dá no desenvolvimento da
leitura. Uma seqüência casual é sempre uma narrativa implícita organizada ao
redor do assunto, mas não necessariamente o que vem depois é causado pelo
que vem antes. “Algumas séries de acasos e eventos desconexos foram
apresentados, nas quais os eventos acontecem somente porque eles acontecem”
(LANDOW, 1997, p. 193, tradução nossa).
Conclusão
Os sistemas comunicativos exercem importante função ordenadora dentro das sociedades. É evidente que, graças ao surgimento das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação, as coordenadas espacial-temporais do universo cultural, social e comunicacional sofreram profundas transformações. A rapidez na circulação de notícias, na movimentação de pessoas e na produção de eventos, assim como a crescente aceleração do progresso tecnológico, conduziu a uma profunda modificação no sentimento de tempo, embora o conceito de tempo linear e seqüencial esteja enraizado
na cultura ocidental e não tenha deixado de existir. Representar os fenômenos de forma seqüencial tornou-se obsoleto e superado diante dos novos espaços virtuais, diante das formas multiseqüenciais e não lineares que vêm constituindo os processos comunicativos, especialmente os de suporte digital.
O tempo, o mais importante sistema simbólico construído socialmente, ordenador de processos sociais complexos, sempre foi constituído, na cultura ocidental, pela consciência de um modo sincrônico e constante, que discorre em uma só direção, medido e divisível em unidades distintas, de tal forma que o indivíduo conseguia distinguir entre um acontecimento anterior e um posterior, organizando suas vivências e relações sociais. Esta idéia constituía, sobretudo, uma poderosa certeza para a percepção humana.
Formas de tempo diversas, e por vezes opostas, sempre coexistiram: o tempo natural e o tempo cultural, o tempo qualitativo e o tempo quantitativo etc. Entretanto, as máquinas, o excesso de informações dispostas de forma simultânea, a necessidade de estar presente em todos os lugares concomitantemente, a aceleração imposta pelos rituais sincronizados pelos atuais meios de comunicação, disparando a flecha do tempo rumo a um presente alargado, a uma eternidade científica, deslocam cada vez mais a relação das pessoas com o tempo.
O tempo de nossos processos biológicos, assim como o tempo de nossas organizações culturais e sociais, não guarda relação alguma com o tempo das máquinas. As máquinas inventaram seu próprio tempo e parece não haver sincronismo possível com o tempo dos indivíduos.
Aqui, a expressão ‘tempo real’ já não faz sentido para a humanidade, mas apenas para as máquinas, hoje capazes de operar com tempos infinitamente grandes (quando dos cálculos astronômicos) e infinitamente pequenos (quando dos processadores eletrônicos). (PELEGRINI, 2003, p. 13).
No ritmo da era eletrônica, as pessoas sequer têm tempo de esperar pelo futuro. Tudo ocorre simultaneamente, não mais se pressupõe um antes e um depois. O tempo biológico, que implica em uma certa ordem de acontecimentos orientados por uma lógica sucessiva, que vai desde o nascimento até a morte, não possui nenhuma ligação com o tempo das máquinas, com o tempo da mídia terciária. A noção de tempo cronológico, linear, que sempre orientou nossas atividades do cotidiano, não guarda nenhuma relação com o tempo simultâneo, imediato, instantâneo, em que tudo está presente o tempo todo. A noção de tempo que se orienta do passado em direção ao futuro está sendo substituída pelo não tempo das máquinas, que exprime a incapacidade de se determinar separações temporais entre os eventos. Este tempo é percebido quando
acessamos uma base de dados para obter alguma informação. Fora isso, as informações permanecem num estado atemporal (PELEGRINI, 2003, p.13).
Se a mídia secundária – principalmente através da escrita – representou a conquista de um tempo lento, a mídia terciária, e nela inclui-se a comunicação digital, ruma para a conquista da simultaneidade, em que as informações são transmitidas o mais rápido possível para o público – este, por sua vez, deve estar sempre disponível para receber, de forma instantânea, a maior quantidade de dados descartáveis e sem nenhuma referência histórica.
A narrativa hipertextual é um exemplo atual da transformação da estrutura temporal da comunicação numa realidade atemporal. A cada instante, e de forma simultânea, surgem novas narrativas para serem decifradas e interpretadas. A continuidade de uma história já não se dá de um modo circunstancial e restrito, mas de modo a ampliar as possibilidades infinitas de encontros de informações e de personagens que estão em realidades e tempos diferentes, ou então, que existem apenas ao serem acessados.
A estrutura do hipertexto, de blocos que se conectam por links e não por uma
lógica causal de acontecimentos, evidencia a quebra da linearidade temporal. O
tempo, numa narrativa digital, não aparece de forma linear, como uma seqüência
de eventos dispostos numa linha temporal, mas como uma sucessão de
momentos isolados, que aponta para a simultaneidade.
Essa contradição entre o tempo – ou não tempo – das máquinas, que só existe
quando acessado, e o tempo subjetivo dos homens, que estabelece ordem e
sincronia, torna-se claro na leitura da narrativa digital. Existe uma sensação de
estranheza, porque, culturalmente, as pessoas estão acostumadas a entender os
fenômenos temporais numa relação de sincronia, mesmo que estes não estejam
em ordem. As pessoas têm necessidade de organizar-se num fluxo de tempo para
dar sentido às coisas, mas o excesso de imagens e informações imediatas revela
que, cada vez mais, é impossível a experiência duradoura.
Retomando as idéias de Hoey apresentadas no capítulo quatro, as narrativas
lineares, ou seja, baseadas em estruturas hierárquicas de textos, sempre
orientaram a leitura através de marcas indicativas da configuração do tempo
nestas narrativas.
Sempre que numa narrativa há um ou mais dos seguintes fatores: uma clara mudança de enquadramento de tempo, tipicamente marcada por adjuntos de tempo como ‘poucas horas depois’; [...] há uma prima face para identificar o bloco de texto que formará um novo episódio na narrativa. Os limites dos episódios variam em sua clareza, mas representam, uma decisão do escritor em mostrar uma relação seqüencial entre dois blocos de textos do que apenas entre duas seqüências ou frases (HOEY, 2001, p. 47, tradução nossa).
Numa narrativa hipertextual, a origem e o fim não mais se apresentam com tanta
nitidez. A necessidade de um momento inaugural e de um fechamento se
colocava como um imperativo, mas, na realidade atemporal dos meios digitais, é
mais efetivo pensar numa forma de organização que comporte a simultaneidade,
ao invés de tomar a sucessividade como princípio organizador do tempo.
Já que é impossível as pessoas se livrarem das conseqüências das novas
tecnologias de comunicação e informação nos processos comunicativos, será
necessário acompanhar o desenvolvimento destas novas noções, principalmente
nas questões relativas ao tempo. Ou então, os indivíduos estarão condenados a
viver e a entender o tempo da comunicação de forma intempestiva.
Desta forma, este trabalho contribui para que cada pessoa possa entender, por
um lado, o tempo como uma coordenada fundamental nos processos
comunicativos, mas também as transformações no sentimento do tempo
decorrentes da aceleração imposta pelas Novas Tecnologias de Informação e
Comunicação. Ou seja, tempo e comunicação são aspectos interligados e
reguladores do cotidiano da sociedade.
É importante para os estudantes e profissionais de comunicação compreenderem
o abismo existente entre o sentimento de tempo dos indivíduos e o tempo, ou não
tempo, das máquinas, dos bancos de dados, graças ao excesso e à
simultaneidade de informações e fatos que permeiam os meios de comunicação,
que já nascem condenadas a serem descartáveis e obsoletas.
Sendo o tempo um símbolo social tão importante, não foram considerados
aspectos que afetam subjetivamente o sentimento de tempo dos indivíduos e que
também podem ser analisados pela Psicologia, pela Sociologia, pela Antropologia,
por exemplo. Portanto, este trabalho ainda pode ser estendido a diferentes áreas
das ciências humanas.
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As lexias da narrativa hipertextual analisada estão impressas nas páginas
seguintes e também podem ser acessadas no endereço
http://www.eastgate.com/SandLoves/Welcome.html.
Anexo A – Lexia principal12
12 Fonte: http://www.eastgate.com/SandLoves/Welcome.html
LISTA DE FLUXOGRAMAS
Fluxograma 1 - Possibilidades combinatórias de leitura da narrativa hipertextual ....48
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Página principal .......................................................................................... 46Figura 2 – Lexia castles .............................................................................................. 49Figura 3 – Lexia Wet buckets....................................................................................... 50Figura 4 – Lexia squarely ............................................................................................ 51Figura 5 – Lexia toes forever ....................................................................................... 52