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O ÚLTIMO SEGREDO DO TEMPLO

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O ÚLTIMO SEGREDODO TEMPLO

PAUL SUSSMAN

O ÚLTIMO SEGREDODO TEMPLO

Tradução deMANUEL CORDEIRO

Para Alicky,cuja luz é a mais brilhante de todas.

E para a nossa linda e amada Layla Rose

PRÓLOGO

Templo de Jerusalém

Agosto, ano 70 d.C.

As cabeças, dúzias delas, voaram por cima da muralha do templocom um silvo, como um bando de aves desajeitadas, de olhos abertose bocas escancaradas, ainda com fiapos de carne a flutuarem onde ti-nham sido cruelmente separadas dos pescoços. Algumas caíram noPátio das Mulheres e embateram nas lajes enegrecidas com uma espé-cie de tamborilar arrítmico, fazendo com que velhos e crianças disper-sassem, horrorizados. Outras chegaram mais longe, passando por cimada Porta Nicanor até ao Pátio de Israel, onde caíram como gigantescaspedras de granizo em redor do grande Altar dos Holocaustos. Umaspoucas foram projetadas ainda mais longe e embateram contra as pa-redes e o telhado do próprio Mishkan, o santuário sagrado no coraçãodo templo, que pareceu gemer e ressoar sob o ataque como se sofressede dores físicas.

— Sacanas... — murmurou o rapaz entredentes, com lágrimas dedesespero a cintilarem-lhe nos olhos azuis como safiras. — Malditos sa-canas de romanos!

Da sua posição privilegiada no alto das muralhas do templo, olhavapara o formigueiro de legionários que se moviam de um lado para ooutro abaixo dele, com armas e armaduras a tremeluzirem ao clarãodas furiosas chamas. Os seus berros enchiam a noite e misturavam-se

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com o sibilar das catapultas, o ressoar dos tambores, os gritos dos mori-bundos e também com o som de barítono dos arremessos dos aríetes,tão regular como um metrónomo, um som que quase abafava todos osoutros e fazia com que o mundo inteiro parecesse estar a rachar-se len-tamente.

— Tem misericórdia de mim, oh, Senhor — sussurrou ele, citan-do o Salmo —, pois estou angustiado. Consomem-se de tristeza osmeus olhos, a minha alma e o meu corpo...

Havia seis meses que o cerco se apertava em volta da cidade co-mo um garrote, sugando-lhe a vida. As legiões romanas, quatro dasquais reforçadas por milhares de auxiliares, tinham avançado inexora-velmente a partir das suas posições iniciais no monte Scopus e nomonte das Oliveiras, rompendo todas as linhas de defesa, obrigandoos judeus a recuar e empurrando-os para o centro. O número de mor-tes era incontável, gente abatida quando tentava repelir os atacantes oucrucificada ao longo das muralhas da cidade e no vale do Cédron, on-de os bandos de abutres eram agora tão densos que obscureciam o sol.O cheiro a morte pairava por todo o lado, um fedor corrosivo que sesobrepunha a tudo o mais e queimava as narinas como fogo.

A Fortaleza Antónia tinha caído havia nove dias, e seis dias de-pois fora a vez dos pátios exteriores e das colunatas do templo. Tudoo que restava agora era o templo interior fortificado, onde os sobrevi-ventes da outrora orgulhosa população da cidade se amontoavam co-mo peixes num barril, sujos, esfomeados, forçados a alimentarem-sede ratos e bocados de couro, e com uma sede tão terrível que se viamforçados a beber a sua própria urina. No entanto, ainda lutavam, fre-neticamente, sem esperança, atirando pedras e barrotes a arder sobreos atacantes lá em baixo, e fazendo surtidas ocasionais para obrigaremos romanos a recuar dos pátios exteriores, apenas para logo de seguidaterem eles próprios de recuar, com perdas terríveis. Os dois irmãosmais velhos do rapaz tinham morrido na última dessas surtidas, abatidosquando tentavam derrubar uma máquina de cerco dos romanos. Tantoquanto ele sabia, as suas cabeças mutiladas deviam estar entre as que ti-nham sido catapultadas por cima das muralhas para o recinto do templo.

— Vivat Titus! Vincet Roma! Vivat Titus!As vozes dos romanos elevavam-se numa ruidosa vaga de som,

gritando em coro o nome do seu comandante, o general Tito, filho do

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imperador Vespasiano. Os defensores instalados ao longo das mura-lhas tentaram responder com o seu próprio coro, entoando os nomesdos seus chefes, João de Gischala e Simão Bar-Giora. Porém, o gritofoi fraco, pois tinham as bocas ressequidas e os pulmões enfraqueci-dos, e também porque era difícil manifestar um grande entusiasmopor homens que, de acordo com os boatos, já tinham feito um acordocom os romanos em troca das suas vidas. Mantiveram o clamor du-rante meio minuto, mas depois as suas vozes apagaram-se lentamente.

O rapaz tirou uma pedra do bolso da túnica e começou a chupá--la, tentando esquecer a sede. Chamava-se David e era filho de Judá, ovinhateiro. Antes da grande revolta, a família trabalhara numa vinhanos socalcos das colinas junto a Belém, onde as uvas cor de rubi pro-duziam o vinho mais leve e doce que alguém jamais provara, um vi-nho que era como a luz do sol nas manhãs de primavera, ou comouma brisa suave a soprar nos sombrios e frescos bosques de tamarin-dos. No verão, o rapaz tinha ajudado nas vindimas e a pisar as uvas,rindo-se com a sensação dos frutos esmagados por baixo dos pés e domodo como o sumo lhe manchava as pernas com um tom vermelhode sangue. Agora, as tinas estavam destruídas, as vinhas, queimadas eos membros da sua família, mortos, todos eles. Encontrava-se sozinhono mundo. Tinha doze anos, mas já carregava consigo os desgostos deum homem cinco vezes mais velho.

— Aí vêm eles outra vez! Preparem-se! Preparem-se!O grito ressoou ao longo dos bastiões quando uma nova vaga de

auxiliares romanos correu para as muralhas do templo com as escadasde assalto erguidas acima das cabeças. Era como se dezenas de gigan-tescas centopeias corressem pelo solo sob a luz imprecisa e infernaldas chamas. Caiu-lhes em cima uma desesperada saraivada de pedras,que fez com que a carga abrandasse um pouco, mas depois continua-ram a avançar até atingirem as muralhas e ergueram as escadas, cadauma delas segura ao solo por dois homens enquanto uma dúzia de ou-tros se servia de varas para as levantar e encostar às paredes. Enxamesde soldados começaram a trepá-las e a cobrir os flancos do templo co-mo uma maré de tinta negra.

O rapaz cuspiu a pedra que tinha na boca, agarrou noutra da pi-lha aos seus pés, colocou-a no couro da funda e inclinou-se por cima

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da muralha em busca de um alvo apropriado, sem prestar atenção àchuva de setas que assobiavam desde lá de baixo. A mulher que se en-contrava ao seu lado, uma das muitas que ajudavam a defender as mu-ralhas, cambaleou para trás com a ponta de um pilum a perfurar-lhe agarganta e sangue a escorrer-lhe por entre as mãos. Ignorou-a e conti-nuou a observar as fileiras do inimigo, nas quais acabou por avistar umporta-estandarte romano que erguia a insígnia de Apollinaris, a Déci-ma Quinta Legião. Cerrou os dentes e começou a rodopiar a fundapor cima da cabeça, de olhos postos no alvo. Uma volta, duas, três...

Agarraram-lhe o braço por trás. Rodopiou e atacou com o punholivre e aos pontapés.

— David! Sou eu, o Eleazar! Eleazar, o ourives!Um homem enorme e barbudo encontrava-se atrás dele, com um

pesado martelo de ferro enfiado no cinto e a cabeça envolta numa li-gadura ensanguentada. O rapaz deixou de se debater.

— Eleazar! Pensei que eras...— Um romano? — O homem riu-se desconsoladamente en-

quanto lhe largava o braço. — Não cheiro assim tão mal, pois não?— Ia acertar no porta-estandarte... — queixou-se o rapaz. — Era

um alvo fácil. Podia ter partido a cabeça ao sacana!O homem voltou a rir-se, agora com um pouco mais de entusiasmo.— Estou certo de que o farias! Toda a gente sabe que o David

Bar-Judá é o melhor atirador de funda das redondezas. Mas neste mo-mento há coisas mais importantes. — Olhou em volta e baixou a voz.— O Matias mandou-me chamar-te.

— O Matias! — O rapaz arregalou os olhos. — O sumo...O homem tapou-lhe a boca com a mão e olhou novamente ao

redor.— Cala-te! — silvou. — Há aqui coisas secretas em jogo... O Si-

mão e o João não ficariam satisfeitos se soubessem que foram toma-das decisões sem o seu consentimento...

Os olhos do rapaz cintilaram, confusos; não percebia de que es-tava o homem a falar. O ourives não fez qualquer esforço para se ex-plicar. Olhou para ele para se certificar de que as suas palavras tinham

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produzido efeito, destapou-lhe a boca e, pegando-lhe no braço, condu-ziu-o ao longo da muralha e fê-lo descer umas estreitas escadas até aoPátio das Mulheres, cujas lajes estremeciam à medida que os aríetes dosromanos embatiam nos portões do templo com um vigor renovado.

— Depressa! — incitou-o. — As muralhas não vão aguentarmuito mais.

Apressaram-se através do pátio, desviando-se das cabeças corta-das espalhadas pelas lajes, enquanto as setas choviam à sua volta e em-batiam nas pedras. No outro extremo, subiram os quinze degraus até àPorta Nicanor e passaram através de um segundo espaço aberto, ondemultidões de kohenim frenéticos faziam sacrifícios no grande Altar dosHolocaustos, com os trajes cobertos de fuligem e as vozes lamentosasquase a sobreporem-se ao clamor da batalha.

Oh, Deus, que nos rejeitasteE quebraste as nossas defesasCom a Tua ira,Defende-nos!Tu, que fizeste a terra tremer,Tu que a rasgaste,Repara as suas fendas, pois ela vacila!

Atravessaram o pátio e subiram os doze degraus para o pórticodo Mishkan, cuja fachada maciça se erguia acima deles como uma falé-sia com cem cúbitos de altura, ornamentada com uma magnífica vinhatrabalhada em ouro puro. Aí, Eleazar deteve-se, virou-se para o rapaze baixou-se para que os olhos de ambos ficassem ao mesmo nível.

— Não posso ir mais longe. Só os kohenim e o sumo sacerdotepodem entrar no santuário.

— Então e eu? — A voz do rapaz era pouco firme.— A tua entrada foi autorizada neste momento de extrema gravi-

dade. Foi o Matias quem o disse. O Senhor irá compreender. — Pou-sou-lhe as mãos nos ombros e apertou com força. — Não tenhas me-do, David. O teu coração é puro e nada de mal te acontecerá.

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Fitou o rapaz nos olhos, levantou-se e empurrou-o na direção dagrande entrada, ladeada por um par de pilares de prata e com uma cor-tina bordada de seda vermelha, azul e púrpura.

— Vai... e que Deus te acompanhe!O rapaz olhou para ele, uma grande silhueta que se destacava

contra o céu flamejante, virou-se e, afastando a cortina, entrou numsalão enorme repleto de colunas, com um chão de mármore polido eum teto tão alto, que se perdia nas sombras. Lá dentro, o ambiente erafresco e silencioso, e pairava no ar uma fragrância doce e intoxicante.A batalha pareceu afastar-se e desaparecer, como se estivesse a aconte-cer noutro mundo.

— Shema Yisrael, adonai elohenu, adonai ehud... — sussurrou ele. —Escuta, ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é uno.

Deteve-se por instantes, demasiado assustado, mas depois, muitodevagar, começou a avançar na direção da outra extremidade do salão,e os seus pés pousavam silenciosamente no mármore branco. Na suafrente, erguiam-se os objetos sagrados do templo — a mesa do Pão daProposição, o altar dourado do incenso, a grande menorá de sete bra-ços — e, para lá deles, tremeluzia um diáfano véu de seda, a entradapara o debir, o Santo dos Santos, onde nenhum homem além do sumosacerdote podia entrar, e até ele apenas uma vez por ano, no Dia daExpiação.

— Bem-vindo, David — disse uma voz. — Estava à tua espera.Matias, o sumo sacerdote, surgiu das sombras à esquerda do ra-

paz. Usava uma túnica azul-celeste, presa à cintura por um avental ver-melho e dourado, e um fino diadema na cabeça, bem como o peitoralsagrado, o Ephod, com as suas doze pedras preciosas, representandocada uma das tribos de Israel. Tinha o rosto profundamente sulcado euma barba branca.

— Finalmente, encontramo-nos, filho de Judá — disse ele baixi-nho, enquanto se aproximava do rapaz e o olhava, com os movimen-tos acompanhados pelo suave som tilintante das dezenas de minús-culas campainhas cosidas ao longo da bainha da túnica. — O Eleazar,o ourives, falou-me muito de ti e disse-me que eras o mais destemidoentre todos os que defendem os lugares sagrados. E o mais merecedorde confiança. Como se o David de outrora tivesse regressado... Foi oque ele disse.

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Fitou-o demoradamente e então, pegando-lhe na mão, conduziu--o até ao fundo do salão, onde se detiveram defronte da menorá dou-rada, com os seus braços encurvados e a base intrincadamente decora-da, feita a partir de um único bloco de ouro puro, de acordo com odesenho do próprio Todo-Poderoso. Impressionado, o rapaz contem-plou as lamparinas tremeluzentes e os seus olhos brilharam como la-gos a cintilarem ao sol.

— É bela, não é? — perguntou o velho ao aperceber-se da ex-pressão maravilhada do rapaz e pousando-lhe a mão no ombro. —Não há em toda a Terra objeto mais sagrado para nós ou mais precio-so para o nosso povo, porque a luz da sagrada menorá é a luz do Se-nhor. Se algum dia a perdêssemos... — Suspirou e levou a mão ao pei-toral. — O Eleazar é um bom homem — acrescentou, como queretomando o fio à conversa. — É um segundo Bezalel.

Ficaram em silêncio durante longos momentos, a contemplaremo grande candelabro, sentindo-se rodeados e envolvidos pelo seu bri-lho. Depois, meneando a cabeça, o sumo sacerdote virou-se e olhoudiretamente para o rapaz.

— Hoje, o Senhor decretou a queda do seu templo sagrado —afirmou tranquilamente —, tal como já aconteceu antes, neste mesmodia, o Tish B’Av, há mais de seiscentos anos, quando a Casa de Salo-mão foi derrotada pelos babilónios. As pedras sagradas serão desfeitasem pó, as vigas do teto ficarão despedaçadas e o nosso povo será leva-do para o exílio e disperso pelos quatro ventos. — Inclinou-se umpouco para trás e fitou intensamente os olhos do rapaz. — Temosuma esperança, David, uma única esperança. É um segredo, um gran-de segredo, conhecido apenas por poucos de nós. Agora, nesta horafinal, também tu o vais conhecer.

Debruçou-se para ele, baixou a voz e falou rapidamente, como sereceasse que o ouvissem, embora estivessem absolutamente sozinhos.Os olhos de David abriram-se muito enquanto o escutava, desviando--se do chão para a menorá e novamente para o chão, ao mesmo tem-po que os seus ombros não paravam de tremer. O sacerdote terminou,endireitou-se e deu um passo atrás.

— Como vês — declarou, com um leve sorriso a repuxar-lhe oscantos dos lábios descorados —, até na derrota continuará a haveruma vitória. Mesmo em plena escuridão, haverá luz.

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O rapaz não respondeu. Tinha o rosto contraído, numa expres-são algures entre o espanto e a descrença. O sacerdote ergueu a mão eafagou-lhe os cabelos.

— Já está fora da cidade, para lá da paliçada dos romanos. Agora,terá de abandonar esta terra, porque a nossa ruína está próxima e já nãopodemos garantir a sua segurança. Foi tudo tratado. Só falta uma coisa, anomeação de um guardião, alguém que a leve até ao seu destino finale fique aí a aguardar a chegada de tempos melhores. É essa a tarefa para aqual te escolhemos, David, filho de Judá... se a aceitares. Queres aceitá-la?

O rapaz sentiu os olhos serem arrastados para cima, para os do sa-cerdote, como que puxados por fios invisíveis. Os olhos do velho eramcinzentos, mas com um fundo estranhamente translúcido e hipnótico, se-melhante a nuvens a flutuarem num vasto céu. Sentiu um peso dentrodele... e também uma grande leveza, como se estivesse a voar.

— O que tenho de fazer? — perguntou com voz rouca.O velho baixou o olhar para ele, percorrendo-lhe o rosto repetidas

vezes, estudando-lhe as feições como se fossem palavras escritas numlivro. E então, com um aceno de cabeça, meteu a mão dentro da túnica,puxou de um pequeno rolo de pergaminho e entregou-o ao rapaz.

— Isto irá guiar-te — declarou. — Faz o que diz aí e tudo corre-rá bem. — Tomou-lhe o rosto nas mãos. — Agora, és a nossa únicaesperança, David, filho de Judá. A chama irá arder apenas contigo.Não contes este segredo a ninguém. Guarda-o com a tua vida, passa-oaos teus filhos, aos filhos dos teus filhos e aos filhos dos que vierem aseguir, até que chegue o momento de ele ser revelado.

O rapaz fitou-o.— Mas quando será isso, mestre? — murmurou. — Como vou

saber que chegou o momento?O sacerdote sustentou o olhar dele durante mais um instante, de-

pois endireitou-se e virou-se para a menorá. Ficou a observar as lam-parinas tremeluzentes e os olhos fecharam-se-lhe pouco a pouco, co-mo se estivesse a entrar em transe. O silêncio que os rodeava aprofun-dou-se e tornou-se mais denso; as joias do peitoral do sumo sacerdotepareciam arder com uma luz interior.

— Haverá três sinais para te guiarem — disse ele baixinho, e asua voz soou repentinamente distante, como se falasse de muito alto.

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— Primeiro, virá o mais jovem dos doze, que trará na sua mão um fal-cão; segundo, um filho de Ismael e um filho de Isaac juntar-se-ão naCasa de Deus como amigos; e terceiro, o leão e o pastor serão comoum só e terão uma lâmpada suspensa ao pescoço. O momento teráchegado quando estas coisas acontecerem.

Diante deles, o véu que cobria o Santo dos Santos pareceu enfu-nar-se ligeiramente, e o rapaz sentiu uma brisa suave e fria passar-lhepelo rosto. Julgou ouvir vozes estranhas a ecoarem-lhe nos ouvidos,sentiu a pele a arrepiar-se e chegou-lhe ao nariz um cheiro curioso, ri-co e bafiento como o do Tempo... se o Tempo pudesse ter um cheiro.Durou apenas um instante. Depois, de repente, ouviu-se um grandeestrondo no exterior, logo seguido pelo grito de um milhar de vozesrepletas de terror e desespero. Os olhos do sacerdote abriram-se.

— É o fim — afirmou. — Repete os sinais de que te falei!O rapaz repetiu-os, tropeçando nas palavras. O velho obrigou-o

a repeti-las mais uma vez, e outra, até lhe saírem perfeitas. Os sons dabatalha precipitavam-se agora para o santuário como uma inundação— gritos de dor, o clangor das armas e o estrondo de paredes a caí-rem. Matias apressou-se a atravessar o salão, espreitou pela entrada eregressou rapidamente.

— Já transpuseram a Porta de Nicanor! — exclamou. — Nãopodes sair por aí. Anda, ajuda-me!

Dando alguns passos em frente, agarrou no pé da menorá e co-meçou a puxá-lo, arrastando-o pelo chão centímetro a centímetro.O rapaz juntou-se-lhe e os dois moveram-no cerca de um metro parao lado, deixando à vista uma laje quadrada de mármore com duas ar-golas. O sacerdote agarrou-as, puxou a laje e revelou uma cavidade es-cura, no interior da qual uma estreita escada de pedra em espiral desa-parecia na escuridão.

— O templo tem muitos caminhos secretos — explicou, enquan-to agarrava no rapaz pelo braço e o encaminhava para a abertura — eeste é o mais secreto de todos. Desce as escadas e segue o túnel. Nãote desvies nem para a esquerda nem para a direita. Irás sair longe da-qui, a sul, já fora da cidade e muito para lá da paliçada romana.

— E então o...— Não há tempo! Vai! Agora, és a esperança do nosso povo.

Vou chamar-te Shomer Ha-Or. Aceita este nome, conserva-o e tem

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orgulho nele. Transmite-o aos teus. Deus há de proteger-te... e julgar--te também.

Inclinou-se, beijou o rapaz nas faces e, pousando-lhe a mão nacabeça, empurrou-o para baixo. Voltou a tapar o buraco com a laje demármore, agarrou na menorá e arrastou-a penosamente pelo chão. Assimque a pôs no lugar, ouviram-se gritos no outro extremo do salão e espa-das que se entrechocavam. Eleazar, o ourives, cambaleou para trás comum dos braços inerte junto do corpo e um coto sangrento onde tivera amão; na outra, ainda segurava o martelo que brandia furiosamente contraa muralha de legionários que o perseguiam. Por momentos, conseguiumantê-los à distância. Depois, com um rugido, os romanos investiram eele foi dominado, tropeçando e caindo de costas no chão, onde os solda-dos lhe deceparam as pernas e lhe espezinharam o corpo.

— Iavé! — gritou Eleazar. — Iavé!O sumo sacerdote observou a cena com um rosto inexpressivo;

depois virou-se, pegou num punhado de incenso e lançou-o para asbrasas que ardiam no altar dourado. A nuvem de fumo perfumado ele-vou-se em volutas. Ouvia os romanos a aproximarem-se, com as suasbotas ferradas a ressoarem no solo e o entrechocar das armaduras aecoar pelas paredes.

— O Senhor chegou como um inimigo — sussurrou, repetindoas palavras do profeta Jeremias. — Destruiu Israel, destruiu todos osseus palácios e deixou as suas fortalezas em ruínas.

Os romanos estavam agora atrás dele. Fechou os olhos. Ouviugargalhadas e o leve sopro de uma espada a erguer-se no ar. Por ins-tantes, foi como se o Tempo se detivesse... mas a seguir a espada des-ceu, apanhando-o entre as omoplatas, e abriu caminho através do seucorpo. Ele cambaleou e caiu de joelhos.

— Que descanse na Babilónia! — tossiu, com o sangue a borbu-lhar-lhe nos cantos da boca. — Na Babilónia, na casa de Abner.

Tombou para a frente, morto, aos pés da grande menorá. Os le-gionários afastaram o corpo a pontapés, carregaram os tesouros dotemplo aos ombros e levaram-nos do santuário.

— Vicerunt Romani! Victi Iudaei! Vivat Titos! — gritavam. — Romaconquistou! Os judeus estão derrotados! Viva Tito!