Obras da UEM - Contos Novos - Mario de Andrade(1).pdf

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OBRAS DA UEM - Profª Sônia Targa Contos Novos, de Mário de Andrade Análise da obra Contos Novos, publicados postumamente, em 1947, escritos por Mário de Andrade num período de crise pessoal, teve publicação póstuma. Contos Novos é a obra de maturidade Duas observações importantes: a presença de um autor que acredita na literatura como instrumento como retrato do Brasil e para despertar o interesse das pessoas pelo país e o equilíbrio entre a escrita popular e automática com a consciência da necessidade de reescrita para se chegar á perfeição. Contos de estrutura moderna, que acolhem as principais correntes ficcionistas que marcaram a Literatura Brasileira das décadas de 30 e 40. Mais do que os fatos exteriores, os relatos procuram registrar o fluxo de pensamento das personagens. Os contos destacam São Paulo, capital e interior, nas décadas de 20 a 40; o processo de urbanização e industrialização (cidade); e o duelo patriarcalismo X progressismo (ambiente rural). Foco narrativo Quatro contos são narrados em 1ª pessoa (Peru de Natal, Vestida de Preto, Frederico Paciência e No Tempo da Camisolinha), que se centram no eixo de individualidade de Juca, protagonista-narrador. Por meio de evocação memorialista, em profunda introspecção, ele relembra a infância, a adolescência e o início de vida adulta. Os contos em 1ª pessoa, apresentam caráter autobiográfico. No período, influenciado pelas doutrinas psicanalíticas de Freud,. São cinco os contos narrados em 3ª pessoa (O Ladrão, Primeiro de Maio, Atrás da Catedral de Ruão, O Poço e Nélson), que centra-se num eixo de referência social, de inspiração neorrealista. A denúncia de problemas sociais se alia à análise da problemática existencial das personagens. Espaço-Integra-se de forma dinâmica nos conflitos das personagens. Por exemplo, em O poço, o frio cortante do vento de julho, no interior paulista, amplifica o tratamento desumano que o fazendeiro Joaquim Prestes dá a seus empregados. Personagens Nas nove narrativas, evidencia-se um profundo mergulho na realidade social e psíquica do homem brasileiro Enredos Vestida de preto - Nele, o narrador aborda um amplo período de sua vida. Tudo começa na infância. Flagramos Juca (o narrador) e sua prima, de família abastada (alguns estudiosos apontam as dificuldades do relacionamento Juca / Maria, provocadas pela diferença social, como um aspecto autobiográfico) brincando de família com outras crianças numa casa de vários cômodos. Deitados, o menino, posicionado atrás da companheira, acaba encantando-se com a vasta cabeleira que tem à sua frente,

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OBRAS DA UEM - Profª Sônia Targa Contos Novos, de Mário de Andrade Análise da obra

Contos Novos, publicados postumamente, em 1947, escritos por Mário de Andrade num período de crise pessoal, teve publicação póstuma.

Contos Novos é a obra de maturidade Duas observações importantes: a presença de um autor que acredita na

literatura como instrumento como retrato do Brasil e para despertar o interesse das pessoas pelo país e o equilíbrio entre a escrita popular e automática com a consciência da necessidade de reescrita para se chegar á perfeição.

Contos de estrutura moderna, que acolhem as principais correntes ficcionistas que marcaram a Literatura Brasileira das décadas de 30 e 40. Mais do que os fatos exteriores, os relatos procuram registrar o fluxo de pensamento das personagens. Os contos destacam São Paulo, capital e interior, nas décadas de 20 a 40; o processo de urbanização e industrialização (cidade); e o duelo patriarcalismo X progressismo (ambiente rural). Foco narrativo

Quatro contos são narrados em 1ª pessoa (Peru de Natal, Vestida de Preto, Frederico Paciência e No Tempo da Camisolinha), que se centram no eixo de individualidade de Juca, protagonista-narrador. Por meio de evocação memorialista, em profunda introspecção, ele relembra a infância, a adolescência e o início de vida adulta.

Os contos em 1ª pessoa, apresentam caráter autobiográfico. No período, influenciado pelas doutrinas psicanalíticas de Freud,.

São cinco os contos narrados em 3ª pessoa (O Ladrão, Primeiro de Maio, Atrás da Catedral de Ruão, O Poço e Nélson), que centra-se num eixo de referência social, de inspiração neorrealista. A denúncia de problemas sociais se alia à análise da problemática existencial das personagens.

Espaço-Integra-se de forma dinâmica nos conflitos das personagens. Por exemplo, em O poço, o frio cortante do vento de julho, no interior paulista, amplifica o tratamento desumano que o fazendeiro Joaquim Prestes dá a seus empregados. Personagens

Nas nove narrativas, evidencia-se um profundo mergulho na realidade social e psíquica do homem brasileiro

Enredos Vestida de preto - Nele, o narrador aborda um amplo período de sua vida. Tudo começa na infância. Flagramos Juca (o narrador) e sua prima, de família abastada (alguns estudiosos apontam as dificuldades do relacionamento Juca / Maria, provocadas pela diferença social, como um aspecto autobiográfico) brincando de família com outras crianças numa casa de vários cômodos. Deitados, o menino, posicionado atrás da companheira, acaba encantando-se com a vasta cabeleira que tem à sua frente,

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mergulhando a cabeça nela, enquanto Maria entrega-se, estorcendo-se de prazer, com o contato dos lábios do menino em sua nuca.

São interrompidos com a chegada de Tia Velha (outro elemento autobiográfico. Mário de Andrade possuiu uma tia com as mesmas características de Tia Velha), que os flagra, dá-lhes uma bronca e ameaça delatá-los. O que acontece aqui é como a Queda do Paraíso (Mário de Andrade era muito católico).

Os dois separam-se, assustados e envergonhados, e nunca mais aquela sensação de êxtase e felicidade vai ser recuperada, apesar de as duas personagens buscarem, à sua maneira, recuperar esse bem perdido.

Interessante é notar o papel que a Tia exerce. Antes de sua chegada, a brincadeira não tinha nenhuma conotação indecente.

Maria se casa com um diplomata e vai morar no exterior. Juca, na tentativa de mostrar seu valor, torna-se um estudioso obcecado e

divide seu amor entre duas mulheres: Rosa para de noite e Violeta, como namoradinha oficial.

Muitos anos depois, chega a notícia da volta de Maria ao Brasil. Juca vai revê-la. No reencontro, todo o embaraço do passado volta e nada consegue dizer para quebrar a barreira erguida entre ambos , mas vendo-a vestida de preto um enorme desejo de possuí-la , o que não acontece.

Maria volta para o exterior e Juca continua guardando este grande amor. Fica nas entrelinhas a idéia de que seria positiva a união dos dois, pois

sossegaria o espírito afoito da mulher. Comentário:- Esse conto é narrado pelo próprio Juca, personagem que ainda aparece em outras duas histórias deste livro. As memórias do rapaz assemelham-se muito a fatos ocorridos na vida do autor, o que dá ao texto um certo tom autobiográfico. Além disso, vale observar a simplicidade da linguagem, marca típica tanto de Mário de Andrade quanto da primeira geração modernista. Nota-se também a simbologia dos nomes rosa é a flor símbolo da paixão e violeta, da amizade. O ladrão - Sua narrativa é simples: toda uma vizinhança é acordada com a gritaria de perseguição a um ladrão.

Num primeiro momento, marcado pela agitação, os moradores reagem com atitudes que vão do medo ao pânico e à histeria, anulados pela solidariedade com que se unem na perseguição ao ladrão.

Num segundo momento, caracterizado pela serenidade e enleio poético, um pequeno grupo de moradores experimenta momentos de êxtase existencial. Os comportamentos se sucedem, numa linha que vai do instinto gregário ao esvaziamento trazido pela rotina. O engraçado é que ninguém chega a ver esse bandido, o que leva à dúvida sobre sua existência. No entanto, serviu para unir as pessoas em plena madrugada para viverem um pouco da alegria coletiva, o que já estava começando a desaparecer na São Paulo da época de Mário de Andrade.

Chama a atenção nesse conto como o elemento coletivo é bastante vivo, chegando perto da técnica apresentada por Aluísio Azevedo em O Cortiço. (Intertextualidade) Comentário:-Narrado em 3ª pessoa, de forma despojada, este conto nos revela a tendência do ser humano de envolver-se nos fatos e emitir julgamentos sem mesmo saber do que se trata, fato que, muitas vezes gera

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grandes desastres e, em outras, como neste caso, acaba em festa. Ainda, este conto como em outros é anedótico, e na opinião de alguns criíticos, como Massaud Moisés, perde um pouco de sua função devido ao fato de o autor se ter alongado na história.

Primeiro de Maio - Conflito de um jovem operário, identificado como "chapinha 35", com o momento histórico do Estado Novo. 35 vê passar o Dia do Trabalho, experimentando reflexões e emoções que vão da felicidade matinal à amargura e desencanto vespertinos. Mesmo assim, acalenta a esperança de que, no futuro, haja liberdade democrática para que "sua" data seja comemorada sem repressão.

O conto possui uma excelente ideia que pecou pelo aspecto panfletário. Sua personagem principal, 35 (a maneira como as personagens são nomeadas, por meio de números, não só indica a desumanização por que passam dentro do sistema capitalista, como também faz referência a datas importantes, como 35 (ano em que foi decretado o feriado de Primeiro de Maio)

No momento em que vai para a Estação da Luz ele é comparado a uma negra em disponibilidade; isto é sem trabalho, vagabundeando Comentário:- É interessante notar neste conto que as personagens não têm nome, o que revela uma crítica á massificação do operariado, ideia que vai ao encontro das aspirações políticas do autor.Além disso, a história discute a ausência de sentido do feriado do Dia do Trabalhador , posto que par 35, nada de bom ou proveitoso acontece neste dia. É fundamental, também,perceber que 35 é um trabalhador alienado, que não compreende as informações que lê nos jornais , mesmo assim sofre uma transformação ao fim do dia , embora não seja capaz de traduzi-la verbalmente. Por fim, o uso do discurso indireto livre é feito de forma muito bem empregada, dando voz aos confusos pensamentos da personagem. Atrás da catedral de Ruão –Alda e Lúcia, duas adolescentes , aprendem francês com uma quarentona , virgem transformada pela mãe . As aulas são pontuadas por insinuações maldosas sobre sexo, deixando a solteirona envergonhada e excitada ao mesmo tempo.As alunas, com suas conversas de duplo sentido, acabam fazendo com que mademoiselle que nunca desejara um homem, fique no “cio” . Um dia, as meninas começam a falar que viram um homem de barba atrás da catedral de Ruão, mas não conseguem terminar, pois a professora diz que já sabe o que acontece atrás de todas as catedrais., Outro dia, tendo ido comprar remédio,sentiu-se arrastada em direção á catedral da Sé , numa “evocação bruta de carnes vibrantes”, com medo e desejos confusos, desejando uma experiência maior. Tal experiência acontece numa noite , quando retornando da casa das meninas, ela se sente atraída para trás da Catedral de Santa Cecília. De uma das ruas surgem então dois homens e, em sua fantasia , Mademoiselle se vê atacada e violentada por eles, tudo é narrado como se fosse verdade Ao fim ela lhe dá dois níqueis , agradecendo-os pelo sexo que viveu em sua fantasia. Comentário:- Este conto nos revela tanto a fúria do desejo contido, “ a cruel necessidade de amar” , como diria Clarice Lispector, quanto prazer que o ser humano sente diante da desgraça alheia –vide o comportamento das

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meninas diante da solidão da professora. É bom lembrar, também, que esta temática da sexualidade reprimida aparece em outras obras de Mário de Andrade. O poço – O velho Joaquim Prestes , 75 anos homem rico e viajado,chegou ao pesqueiro de Mogi, ás onze horas da manhã trazendo consigo uma visita. Vendo os empregados parados, quis saber por que não trabalhavam.Eles disseram que com o frio forte que fazia ninguém conseguia ficar dentro do poço para continuar a perfuração . Durante a conversa tensa entre patrão e empregados vamos descobrindo os problemas : o trabalho é perigoso e apenas Albino tem a prática necessária para fazê-lo , mas é doente dos peitos.Quando vai olhar o poço,Joaquim deixa sua caneta valiosa cair e exige que alguém vá pegá-la. Todos se desesperam para recuperar a valiosíssima caneta e o Albino sacrifica-se na lama do fundo do poço. As horas passam , o sofrimento continua e Joaquim não se abala,xinga,ofende, dá ordens irracionais. Albino se esforça num tormento insano e quando sai, eu irmão enfrenta o patrão para impedir que o serviço desumano continue. Joaquim acaba por ceder. Dois dias depois os empregados encontram a caneta e vão devolvê-la . Joaquim, sentado em seu escritório , examina o objeto, testa-o e percebe que não funciona:reclama por que pisaram a sua caneta jogando-a no lixo. De uma de suas gavetas tira uma caixa contendo várias lapiseiras e três canetas-tinteiro como aquela, dentre as quais uma era de ouro Comentário: Este conto revela, na verdade, o desprezo do patrão pela vida humana, a qual vale menos do que uma caneta. Mostra-nos o quanto a relação de poder pode fazer com que as pessoas percam o seu lado humano e passem a tratar seus subordinados como “exemplares humanos”. Assemelha-se, essa narrativa, ao que o avarento senhor Scrooge, de Charles Dickens, faz com seu empregado em uma fria noite de natal. Esse tema da indiferença humana é muito caro à literatura e teve ainda mais força nas mãos de autores que aprofundaram a análise psicológica das personagens, como Machado de Assis. Peru de Natal - A história passa-se poucos meses depois da morte do pai de Juca. Ainda sob a sombra do luto, o narrador tem a idéia de possibilitar um pouco de alegria às suas “três mães”: mãe, irmã e tia (note que pode ser visto aqui um indício de complexo de Édipo). Expressa o desejo de comemorar o Natal com a degustação de um peru. Socialmente – não se deve esquecer o luto – era uma idéia que poderia ser reprovada, mas quem não curtiria um pouco de prazer na vida? Dessa forma, quando Juca expressa tal desejo, serve de válvula de escape para a família. Nenhuma delas poderia ter feito aquele pedido, mas o desejavam. Assim, com a desculpa de que estavam preocupadas em atender o desejo de um “doidinho”, embarcam na comemoração que também as satisfaz (será essa a função do artista: expressar o que os outros têm reprimido, represado?).

É quando o rapaz tem uma excelente jogada. De uma forma que pode ser entendida como hipócrita, o narrador lembra que a mãe tinha razão. Para tudo ficar perfeito, só faltava mesmo a presença do falecido, mas que onde quer que este estivesse, estaria contente vendo a família reunida. Com tal

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expediente, em pouco tempo a alegria retornava à mesa e todos voltaram a devorar o peru, enquanto o fantasma do pai começava a diminuir. Comentário: Novamente temos aqui o retrato da família de Juca. Desta vez vemos a escravidão a que as relações familiares submetem as pessoas, sendo que a devoração do peru simboliza a destruição da figura do pai e, portanto, põe fim à escravização da mãe. Para muitos estudiosos da obra de Mário de Andrade este conto é a obra-prima dele em virtude do poder de síntese alcançado pelo autor nesta narrativa. Frederico Paciência – Novamente temos Juca como narrador. O único texto em que Mário de Andrade tematizou, ainda que de forma tão tangencial, o homossexualismo.

Pegamos Juca na fase escolar, no que hoje se chamaria a passagem da 8a série para todo o Ensino Médio. Fase conturbada, dizem os psicanalistas, pois é nela que se afirma a identidade sexual, o que implica lembrar que é nela em que tal caráter está oscilante.

A maneira como Juca descreve o seu novo companheiro de escola, Frederico Paciência, destacando seu aspecto solar (alguns mitos (provavelmente Mário de Andrade, profundo estudioso desse assunto, deveria conhecê-los) narram a impossibilidade de relação amorosa entre o sol e a lua, pois nunca se encontram.

E por aí os dois vão, deliciando-se em passear abraçados da casa de um para a casa de outro, a ficar no sofá, cabeças unidas. Vivem na proximidade do perigo, como faz mademoiselle, de Atrás da Catedral de Ruão. Era um recalque, assim como o era a maneira como se deliciavam em discutir e se agredirem. Mas queriam apenas intuir a sensualidade, sem jogar para o consciente. Qualquer tentativa em contrário era reprimida.

Um dia, velório do pai de Frederico, os dois tiveram um momento mágico de sedução. Depois de expulsar um homem preocupado, como abutre, com negócios ligados ao falecimento, Juca e seu amigo vão para o quarto. Frederico fica conversando na semi-escuridão. Juca perde-se admirando os lábios carnudos de seu amigo, deitado. Percebendo o lance, Frederico pára de conversar e levanta-se da cama. Falta pouco, percebe-se, para os dois entregarem-se.

No entanto, a lembrança do pai, ainda sendo velado, parece impor-se entre os dois (semelhante à imagem castradora do pai de O Peru de Natal), esfriando completamente o clima. A partir de então, a amizade muda de rumo, perdendo a intensidade.

Por fim, o tanto vira nada. Terminado o colégio, separaram-se, Frederico indo para o Rio. Anos depois, Juca fica sabendo da morte da mãe de seu antigo amigo. Era a grande chance de reatar tudo, sob o pretexto de consolar o necessitado. Mas termina por mandar um telegrama formal, o que arrefece de vez todo o relacionamento. Comentário: O conflito do conto deve-se ao fato de que op narrador presente a possibilidade de o relacionamento entre os dois transformar-se em homossexualismo, o que é insinuado em vários momentos na história. Temos aqui mais um dos “amores” de Juca, assim como Maria, Rose e Violeta. Para críticos como João Luis Lafetá e Werneck Sodré, este conto possui um tom autobiográfico, visto que, segundo eles, o próprio Mário de

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Andrade se denominava “um vulcão de complicações”, sendo sua luta na tentativa de sublimar a homossexualidade de uma delas. Nélson - Registro do comportamento insólito de um homem sem nome. Num bar, um grupo de rapazes exercita seu "voyeurismo" pela curiosidade despertada pelo estranho sujeito: quatro relatos se acumulam, na tentativa de decifrar a identidade e a história de vida de uma pessoa que vive ilhada da sociedade, ruminando sua misantropia.

Conto muito estranho, talvez por ser o único que ainda não passou pela revisão final do autor. Marcante é a utilização de vários focos narrativos, em que há uma técnica cubista de colagem de várias histórias, todas sobre o misterioso personagem que freqüenta o bar em que todos estão. Comentário: O texto alterna os narradores e várias versões são dadas para o mesmo fato, revelando a existência vazia de alguns que se preenche com a fofoca e a especulação da vida alheia. Este é mais um dos temas bastante trabalhado na literatura, tendo sido alvo (principal ou secundário) de poemas de Gregório de Matos, bem como de romances como O Cortiço, de Aluízio de Azevedo e Os Tambores Silenciosos, de Josué Guimarães. Tempo de camisolinha - Provavelmente seu narrador é o mesmo dos outros três, apesar da mudança de nome: Carlos.

O título é uma referência à roupa que o protagonista, ainda no início da infância, usava, típica de criança e que o irritava – claro sinal de que já estava crescendo, apesar de sua mãe não perceber. Nota-se que a criança estava no limiar de sua idade pelo fato de sempre estar brincando com seu pênis, o que, dizem os psicanalistas, equivale ao terceiro e último momento da primeira infância, a fase genital. É interessante lembrar que esse é justamente o momento de socialização da criança: ou vai haver um direcionamento em sua personalidade para o altruísmo, ou haverá para o egoísmo. Coincidência ou não, é este justamente o tema do conto.

A história passa-se numa rara viagem de férias em Santos, possibilitada apenas por causa de um período de convalescença da mãe do narrador (o pai do narrador Carlos não era afeito a esses luxos, o que faz lembrar o pai de Juca, de O Peru de Natal, reforçando a tese de se tratarem das mesmas personagens).

Em seus passeios, a criança, após desafiar a santa (já se disse que Carlos gostava de manipular seu pênis. Mas era sempre repreendido por sua mãe, sob a alegação de que a santa (um quadro na parede) não iria gostar. Nesse dia, Carlos, aproveitando que ninguém estava em casa, exibe com toda empáfia seu diminuto membro para a divindade, espantando-se por nada acontecer. Rompia limites. Estava crescendo), acaba ganhando de um pescador três estrelinhas do mar. O pobre homem havia dito, ao presenteá-las, que serviam para dar boa-sorte. O menino volta para casa feliz, mesmo sem saber direito o que era sorte, guardando as preciosidades no quintal de sua casa. Mas seu estado é tal que fica toda hora indo visitar seus troféus.

Até que, em outro de seus passeios, conhece um português infeliz. Fica sabendo que o sujeito tinha “má sorte”: muitos filhos pequenos, dificuldade para criá-los e uma esposa paralítica. O menino ficou penalizado. Num esforço enorme, volta para sua casa, pega suas estrelinhas e dá a mais bonita para o infeliz.

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É o momento de dois grandes aprendizados. O primeiro está na ideia de que a nossa felicidade é sempre diminuída pela infelicidade que existe no mundo. O segundo é a noção de altruísmo, mesmo que para tanto deva diminuir seu bem-estar. Comentário: Temos aqui a singela história de um menino que está descobrindo a si e ao mundo e formando o seu caráter que, como vemos pelo desfecho, pende para o lado bom. Pode-se dizer que esta é uma espécie de história de aprendizagem, porém sem a densidade existencial comum a esse tipo de texto, como vemos em alguns contos de Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector.