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CULTURA, METAMORFOSE, TERRITÓRIO E IDENTIDADE: UMA ANÁLISE DO BUMBA-MEU-BOI NO MARANHÃO1

Danniel Madson Vieira Oliveira.

CULTURE, METAMORPHOSIS, TERRITORY AND IDENTITY: AN

ANALYSIS OF BUMBA-MEU-BOI IN MARANHÃO

(Graduando em Geografia pela UFMA2/Diretor de RH da GEOTEC3). <[email protected]>

José Arnaldo dos Santos Ribeiro Junior.

(Graduando em Geografia pela UFMA/ Monitor da Disciplina Metodologia da Pesquisa em Geografia e membro do GEDMMA4

<).

[email protected]>

RESUMO: Este artigo retrata as metamorfoses culturais, territoriais e identitárias no Bumba-meu-Boi tradicional decorrentes da modernização e transição dessa festa camponesa para uma festa urbana. Dessa forma elencam-se as temáticas: cultura, território e identidade, fazendo uma revisão bibliográfica de autores especializados em cada categoria de análise, com o objetivo de entender o imbricamento entre o tradicional e o moderno na principal manifestação junina maranhense: o Bumba-meu-Boi, assim como explanar sobre a festividade e seus desdobramentos sócio-culturais; mostrar como esta representação funciona como elo entre identidade e território; e diagnosticar como essa festa serve de forma vital para a afirmação da identidade sócio-territorial e cultural maranhense. Palavras-chave: Cultura Maranhense. Bumba-meu-Boi. Transformações Culturais.

ABSTRACT: This article depicts the cultural, territorial and identity metamorphosis in the traditional Bumba-meu-Boi due to modernization and transition of the peasant party to a party city. Thus lists are themes: culture, territory and identity, making a review of authors specializing in each category of analysis, aiming to understand the interlinked between the traditional and the modern in the main manifestation Junina of Maranhão, the Bumba-meu-Boi, and explain about the festival and its socio-cultural developments, show how this representation acts as link between identity and territory, and diagnose how this festival is so vital to the affirmation of socio- territorial and cultural identity of Maranhão. Keywords: Maranhão Culture. Bumba-meu-Boi. Cultural Change. 1 Os autores agradecem ao NAE (Núcleo de Assuntos Estudantis - UFMA) pelo financiamento recebido. 2 Universidade Federal do Maranhão. 3 Empresa Júnior de Geografia – UFMA. 4 Grupo de Estudos Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente.

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1 INTRODUÇÃO

Sempre houve na história da humanidade uma necessidade de se conhecer.

Conhecer uma religião, um território, uma manifestação cultural. E, dentro da

Geografia, esta necessidade não se excetuou. Para desenvolver suas relações

sociais e suas relações territoriais, o homem teve a necessidade de conhecer as

estruturas culturais, as formas de manifestação e o folclore de cada unidade de área

ao longo de um período dinâmico e espaço-temporal.

Dentro deste horizonte vislumbram-se as manifestações folclóricas como

perspectivas alusivas às representações sociais inerentes às singularidades e

coletividades de cada território. O estudo científico das manifestações festivas tem

por finalidade identificar os diversos tipos de cultura, caracterizá-los, classificá-los e

interpretá-los, objetivando estruturar toda a conjuntura sócio-territorial do folclore

como forma de afirmação da identidade. Ateste-se ainda a este conceito, a

importância intrínseca que cada festejo contribui para a preservação dos laços e

traços culturais.

Com efeito, as representações culturais não são homogêneas em todo o

mundo. Por isso, é significante pensar-se as festividades de uma forma individual e

ao mesmo tempo conjunta, mostrando que cada tipo de manifestação festiva apesar

de ter suas características típicas, apresenta paralelismos.

A partir deste momento, o Bumba-meu-Boi torna-se fundamental para o

estudo científico da relação cultura, identidade e território. É no bojo desta discussão

que o presente trabalho geoantropológico foi desenvolvido. Nesta análise, buscou-se

mais do que uma simples conceituação dessa manifestação folclórica. Teve-se como

desígnio mostrar as metamorfoses impostas pela absorção da modernidade pelo

Bumba-meu-Boi, assim como a sua singularidade com a interrelação entre as

temáticas território e identidade.

Dessa forma, o presente trabalho tem como objetivo analisar o imbricamento

entre o tradicional e o moderno na principal manifestação junina maranhense: o

Bumba-meu-Boi, assim como explanar sobre a festividade e seus desdobramentos

sócio-culturais; mostrar como esta representação funciona como elo entre identidade

e território; e diagnosticar como essa festa serve de forma vital para a afirmação da

identidade sócio-territorial e cultural maranhense.

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Para o alcance do entendimento por parte dos leitores deste trabalho,

realizaram-se algumas atividades em etapas tais como: levantamento e análise do

material bibliográfico; leitura de artigos, livros, monografias, dissertações e teses de

doutorado; além da observação de alguns vídeos que serviram como ferramenta de

auxílio para a compreensão do tema proposto, assim como pesquisa de campo.

Para a fundamentação teórica sobre o tema abordado e no intuito de pautar e

corroborar as informações aqui estudadas, foram analisadas diversas publicações,

destacando-se: Canclini (1986), Carvalho (1995), Martins (2007), Prado (1977),

Santos (1971) e Silva (2001).

A observação dos vídeos e no campo, que retratam algumas das muitas

realidades existentes no seio do Bumba-meu-Boi foi, indubitavelmente, de valor

inestimável para todo o processo de aquisição de conhecimento, bem como

reavaliação de paradigmas folclóricos.

Fez-se necessário a utilização do método dialético, haja vista foi possível

encontrar diferenças de pensamento, teorias e práticas, assim como uma

necessidade de mudança no sistema de percepção acerca das representações

culturais; a formação de opiniões presentes neste trabalho é resultante da

concepção de realidade existente em nossa sociedade: caracterizada sumariamente

pelos paralelismos, contradições e preconceitos.

Outro método aplicado foi o dedutivo, que possibilitou a formulação de um

argumento lógico, orientado por levantamentos bibliográficos, buscando através

deste meio evidenciar as mais diferentes e semelhantes abordagens para as

manifestações festivas, coligando-os com o dinamismo espaço-temporal,

constituindo desta forma questões de suma importância no que tange a

compreensão e o entendimento do referido trabalho.

Por fim, usufrui-se do método fenomenológico. Método este que se mostrou o

mais eficaz, uma vez que se trata de uma escala de análise que requeria uma

perspectiva in situ a partir da observação direta. Trabalhando com o sentindo restrito

e com o lato sensu de forma concomitante, acabamos por deflagrar diferentes

perspectivas.

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2 O BUMBA-MEU-BOI5

Em quase todo o decorrer da história da humanidade, o Boi tem tido seu lugar

de veneração como símbolo de virilidade, predominando sua presença nos cultos

agrários. O Bumba-meu-Boi é uma dança do folclore popular brasileiro, com

personagens humanos e animais fantásticos, que gira em torno da morte e

ressurreição de um Boi. Hoje em dia é muito popular e conhecida.

O Bumba-meu-Boi é sem dúvida um dos folguedos populares mais característicos do Maranhão, com um elevado poder expressivo de comunicação. Auto dramatizado, com uma constante temática conhecida mas que se enriquece cada ano de novos elementos, o Bumba-meu-Boi tem um elevado poder de comunicação porque funciona, no plano sócio-psicológico, como uma espécie de revista do ano. As toadas que os vaqueiros cantam, invariavelmente celebram acontecimentos verificados no ano, marcando fatos e pessoas, numa identificação comum de anseios, num nivelamento social que lembra os processos de transfert que as pitoigias gregas representavam. E a expressão dramatizada do auto, em sua forma típica de teatro, concorre igualmente para operar uma comunicação massal. Brincando em pátios e terreiros, em ambiente aberto portanto, os figurantes se identificam com o público que também participa ativamente do folguedo. Com essas características, o Bumba-meu-Boi é uma forma de comunicação popular ativa que desafia o tempo, numa vitalidade impressionante (VIEIRA FILHO apud SANTOS, 1971).

A origem do Bumba-meu-Boi remete ao século XVIII, resultante das

divergências e do relacionamento entre os escravos e os senhores nas casas

grandes e senzalas. Refletia as condições sociais de negros e índios. A essência da

lenda enlaça a sátira, a comédia, a tragédia e o drama, e demonstra sempre o

contraste entre a fragilidade do homem e a força bruta de um Boi. A dança folclórica

do Bumba-meu-Boi é um dos traços culturais marcantes na cultura brasileira,

principalmente na região Nordeste, mas disseminou-se por quase todos os estados

do país.

Do ponto de vista teatral, o folguedo deriva da tradição espanhola e da

portuguesa, tanto no que diz respeito ao desfile como à representação propriamente

dita; tradição de se encenarem peças religiosas de inspiração erudita, mas

destinadas ao povo para comemorar festas católicas nascidas na luta da Igreja

contra o paganismo. Esse costume foi retomado no Brasil pelos jesuítas em sua

obra de evangelização dos indígenas, negros e dos próprios portugueses

5 Segundo os escritos de Carvalho (1995), Dantas (2008), Lima (1982), Prado (1977) e Santos (1971).

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aventureiros e conquistadores no catolicismo, por meio da encenação de pequenas

peças.

Como dança dramática, o Bumba-meu-Boi adquire através dos tempos

algumas características dos autos medievais, o que lhe dá o seu caráter de veículo

de comunicação. Simples, emocional, direto, linguagem oral, narrativa clara e uma

ampla identificação por parte do público, tomando semelhanças com a comédia

satírica ou tragicomédia pela estrutura dramática dos seus personagens alegóricos,

os incidentes cômicos e contextuais, a gravidade dos conflitos e o desenlace quase

sempre alegre, que funciona como um processo catártico.

O Bumba-meu-Boi é um ato popular difundido em vários estados, mas é no norte e nordeste que ele adquire sua melhor expressão: Pará, Maranhão, Piauí, Alagoas, etc. “Mas porém” no Maranhão, é que o Boi é diferente: é ostentação, é opulência, é arte, é esbanjamento de arte e beleza (...) (LIMA, 1982, p. 05).

Ao espalhar-se pelo país, o Bumba-meu-Boi adquire nomes, ritmos, formas

de apresentação, indumentárias, personagens, instrumentos, adereços e temas

diferentes. Dessa forma, enquanto no Maranhão, Rio Grande do Norte e Alagoas é

chamado Bumba-meu-Boi, no Pará e Amazonas é Boi-bumbá ou pavulagem; em

Pernambuco é Boi-calemba ou bumbá; no Ceará é Boi-de-reis, Boi-surubim e Boi-

zumbi; na Bahia é Boi-janeiro, Boi-estrela-do-mar, dromedário e mulinha-de-ouro; no

Paraná, em Santa Catarina, é Boi-de-mourão ou Boi-de-mamão; em Minas Gerais,

Rio de Janeiro e Cabo Frio é Bumba ou folguedo-do-Boi; no Espírito Santo é Boi-de-

reis; no Rio Grande do Sul é Bumba, Boizinho, ou Boi-mamão; em São Paulo é Boi-

de-jacá e dança-do-Boi.

3 OS RITOS DO BUMBA-MEU-BOI TRADICIONAL NO MARANHÃO6

O Bumba-meu-Boi delimita um universo rico e pujante, que mistura lazer,

trabalho, compromissos, festas, artes, ritos, mitos, performances, crenças e

devoção. Envolve milhares de maranhenses ao longo de seu ciclo festivo, que se

estende durante quase todo o ano, embora seu período de maior ebulição esteja

concentrado no mês de junho. Em linhas gerais, consiste na brincadeira que faz

dançar, cantar e tocar, em volta de uma carcaça de Boi bailante, um agregado de

6 Segundo os escritos de Carvalho (1995), Lima (1982) e Prado (1977).

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pessoas que se tratam por brincantes. Esses brincantes organizam-se em grupos

conhecidos localmente como Bumba-meu-Boi, Bumba-Boi ou simplesmente Boi. O

universo do Bumba-meu-Boi comporta diversos sotaques ou estilos de brincar:

sotaque da ilha, sotaque de orquestra, sotaque da baixada e sotaque costa-de-mão.

Cada sotaque engloba uma série de grupos com determinadas características que

os aproximam entre si e os separam de outros grupos pertencentes a outro sotaque;

todos os sotaques, contudo, são vistos como partes, ou aspectos, de um mesmo

fenômeno cultural.

A história que envolve a dança é a seguinte: um rico fazendeiro possui um Boi

muito bonito, que inclusive sabe dançar. Pai Chico, um trabalhador da fazenda,

rouba o Boi para satisfazer sua mulher Catarina ou Catirina, que está grávida e

sente uma forte vontade de comer a língua do Boi. O fazendeiro manda seus

empregados procurarem o Boi e quando o encontra, ele está doente. Os pajés

curam a doença do Boi e descobrem a real intenção de Pai Chico, o fazendeiro o

perdoa e celebra a saúde do Boi com uma grande festividade. A seguir uma

descrição de apresentação de Bumba-meu-Boi tradicional do Maranhão:

Vaqueiros e rapazes se parecem. São empregados do Amo e usam calças estreitas, pouco abaixo dos joelhos, deixando ver as pernas das ceroulas brancas, blusas frouxas de mangas compridas, de seda laquê, quase sempre em cores fortes, os mesmos chapéus do amo, variando a suntuosidade conforme a hierarquia, as roupas dos vaqueiros as mais ricas, as dos rapazes as mais modestas. Seu número vai de 2 a 6, tanto para rapazes como para os vaqueiros. Conduzem grandes varas coloridas, extraordinária esterilização do instrumento vil e proletário usado para tanger o gado, a vara-de-ferrão, transfiguradas por mãos hábeis em obra de arte, motivo ornamental de grande efeito. Há dois tipos de varas ou “mourões”: um, um galho seco, farto de ramos, e que é todo enrolado de tiras de papel e enfeitado de fitas e de flores; outro, dúzias e dúzias de tufos de papel-de-seda, ou celofane colorido e picotado, montados numa haste central, bem semelhantes às usadas nas festas populares de Barcelos, no norte de Portugal. Pai Francisco veste roupas velhas geralmente pretas, calça e paletó, leva espingarda de pau e patrona a tiracolo, máscara de meia ou de couro cabeludo. A seu cargo fica a parte humorística da representação, é o palhaço e o vilão da estória, e, nessa qualidade, faz centenas de pessoas morrerem de rir, como a da prisão e interrogatório. Normalmente há um só em cada conjunto, mas o número, às vezes, cresce até cinco, espichando a exibição com sucessivas inquirições e surras, buscando cada qual eximir-se de culpa atribuindo-a ao que o segue. Mãe-Catarina é a esposa do Chico, pivô da questão-tema. É sempre um homem vestido de mulher, apesar de que participem do Bumba, mulheres, embora em reduzido número. Afora encarnam vaqueiros, rapazes e caboclos, as mulheres tem papel importante no “brinquedo”, acompanhando, resignada mas obstinadamente, amantes e maridos, noite adentro, com eles amanhecendo nas calçadas; carregavam-lhes os petrechos, recompõem-lhes os trajes, atuaram-lhes os pileques; heroínas anônimas dessas lutas exangues, cujo trabalho começa tão logo se desfaz

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a brincadeira, desarticulando, desmanchando chapéus, catando contas, enrolando fitas, tudo preservando e guardando para o próximo ano. Que ninguém brinca Boi com roupas velhas, ô xente! Para curar o Boi há 1, 2 ou 3 “doutores” que, compenetrados de sua importância, proferem diagnósticos esdrúxulos e incríveis receitas, para hilaridade de todos os presentes. Já as roupas estrambóticas predispõem a platéia para o riso: chapéus esquisitos, gravatas berrantes, corcundas e mil e um detalhes compõem a figura desses arlequins cambembes. Mas a empáfia, o convencimento do doutor, as bestialógicas tiradas é que são o “élan” de sua interpretação, “o fino” de sua arte. (LIMA, 1982, p. 09).

A apresentação de um Boi, completa, dura mais ou menos 2 horas,

compreendendo:

- a chamada para “guarnecer”, cantada nas proximidades do local em que vai

se apresentar;

- chegada e saudação aos donos de casa;

- elogio do Boi e louvação ao Santo (São João, São Pedro, etc.);

- a “comédia”;

- a despedida.

4 BUMBA-MEU-BOI X CULTURA, TERRITÓRIO E IDENTIDADE

Uma questão se coloca como um dos muitos pontos chaves dessa discussão:

o imbricamento entre cultura, território e identidade. Os antropólogos e sociólogos

conceituam de várias dimensões o que seria cultura; os geógrafos, apoiados no

conceito raffestiniano de território7

Como não poderia deixar de ser, o Maranhão reflete, em parte, estas três

grandes etnias em seu arcabouço folclórico. A fundição destas variedades de

manifestações culturais no território brasileiro e, por conseguinte, no Maranhão,

propiciaram e abalizaram a grande riqueza cultural que o nosso País e Estado

, entendem-no como um desdobramento político

da ambiência espacial; e tanto os geógrafos, quanto antropólogos e sociólogos

admitem certa noção do que seria identidade. O território brasileiro, por apresentar

uma vasta extensão, é palco de uma série de manifestações culturais que, de certa

forma, contribuem para a afirmação da nossa identidade, uma vez que somos o

resultado da miscigenação de três grandes etnias da humanidade: o indígena (ou

ameríndio), o negro (ou africano) e o branco (ou europeu).

7 Raffestin (1993, p. 153-154).

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possuem, já que foram produzidas pela sociedade. De fato, existem festas pagãs,

festas religiosas, festas de origem européia, de origem africana e de origem

indígena; manifestações mais reconhecidas, manifestações estereotipadas. Porém,

o mais significante é estar atento ao fato de que em qualquer manifestação

folclórica, percebe-se a importância e a influência da miscigenação das etnias como

resultado de um amplo processo de afirmação e reconhecimento da sua própria

identidade. Afinal, o Bumba-meu-Boi é ou não é representante legítimo da

maranhensidade?

Mais do que simples comemoração ou festividade, esta representação cultural

serve de forma vital para a manutenção e corroboração do espaço brasileiro e

maranhense. Não é de se estranhar então que, cada tipo de manifestação folclórica

é dotada de singularidades de cada naturalidade. A origem, os motivos, a

religiosidade, os períodos, as vestes, os adereços, a coreografia, a música, o canto,

a melodia, os instrumentos, enfim, todos estes eixos canalizam para a estruturação

de algum tipo de festividade.

Por isso tudo, as festas funcionam como motivadoras da perpetuidade

cultural, assegurando o seu espaço de influência e a ação; “delimitam fronteiras”,

fronteiras essas que são muitas vezes suplantadas pela relação intra e

interespecífica que cada manifestação cultural tem; são meios de integração à

ambiência social. No entanto, a maior contribuição das festividades está alicerçada

no tripé: conservação, preservação e proteção. A conservação da cultura, a

preservação dos valores étnicos e a proteção do território a partir da afirmação da

identidade social.

5 BUMBA-MEU-BOI X GLOBALIZAÇÃO DE CULTURAS NA MODERNIDADE: a

convivência entre o Novo e o Antigo, a transição entre uma Festa Camponesa

Tradicional para uma Festa Urbana

O constante e abrupto renovar técnico-científico-informacional observado no

século XX e atual século XXI são fatores demasiadamente essenciais para o

desenvolver de um período que denominamos de Globalização. Processo que,

apesar de excludente, consegue paulatinamente estreitar os laços geográficos e

culturais entre diversos povos, porém não promove a unidade cultural como afirmam

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alguns autores em análises superficiais. O que ocorre é a hibridização e

ressignificação de manifestações culturais análogas e até mesmo distantes, mas que

encontram sempre um elo, um ponto de afinidade como afirma Featherstone apud

Silva (2001, p. 189): “(...) a globalização nos torna conscientes do próprio volume da

diversidade e das muitas faces da cultura. Os sincretismos e os hibridismos

constituem mais a regra do que a exceção (...)”.

A passividade perante as metamorfoses culturais e consequente assimilação

do novo, a hibridização de culturas, com flutuação de identidade, descrito por Hall

(2006), pode caracterizar a rápida transfiguração da população tradicional no sujeito

pós-moderno, pelo menos no que tange o aspecto conceitual deste indivíduo:

Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentirmos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu” [...]. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. [...] [...] Eles devem aprender a habituar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas. As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidade distintivamente novos produzidos na era da modernidade tardia. [...] (HALL, 2006, p. 12-13, 89).

Partindo desse pressuposto podemos compreender que no âmbito cultural a

globalização atinge a sua faceta menos excludente. A interrelação entre tradicional e

moderno e vice-versa é algo irremediável, já que a mídia tornou-se algo tão

poderoso na contemporaneidade que é praticamente impossível não absorver as

informações veiculadas pelos meios de comunicação de massa e reconstruir a partir

daí, novas formas de relacionamento e interação com a vida social.

No Maranhão, como atesta Silva (2001, p. 182-183) a convivência entre o

moderno e tradicional, o novo e o antigo, é perceptível com a relação da população

local entre as diversidades rítmicas do Nordeste estendendo-se até o Caribe,

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produtos da diáspora africana. É o caso do forró, merengue, samba de roda e

principalmente do reggae jamaicano, o que comprova a existência de uma certa

familiaridade entre os ritmos afro-caribenhos e afro-brasileiros – carimbó, merengue,

etc. – que são bastante veiculados nas rádios locais e transfigurados pela população

nas festas populares em povoados rurais e casas de cultos afro-brasileiros.

Em relação ao Bumba-meu-Boi nota-se a assimilação de características a

partir da utilização de elementos da modernidade. Houve a substituição de materiais

e objetos para confecção da indumentária: utilizam-se os sintéticos disponíveis no

mercado como forma de adotar o discurso do “ecologicamente correto”. O

cosmopolitismo das toadas de Bumba-meu-Boi também é algo marcante na sua

recente história, com temas sempre contemporâneos e abrangentes. Porém, o ideal

de liberdade no fazer cultural, ultrapassa os limites da imposição oficial que tenta

aprisionar as brincadeiras em um calendário turístico, já que seguir esse

cronograma, entre outras coisas, reflete a astúcia dos brincantes dos diversos

folguedos espalhados pelo país, pois é uma forma de obter recursos para a

continuidade da atividade. (SILVA, 2001)

O que fica, entretanto, nesse jogo de relações é que as manifestações tradicionais, tanto no carnaval, como nos festejos juninos, ou religiosos de qualquer ordem, assimilam os elementos da modernidade e fazem disso um enriquecedor da sua cultura, pois esta vai sendo pluralizada por meio do contato com o novo, que chega como revitalizador, ofertando novas possibilidades e alternativas para que a tradição se renove e sirva de estímulo às lutas políticas e sociais dos grupos populares, subalternizados pelas elites (SILVA, 2001, p. 184).

Considerando, portanto, as novas articulações estabelecidas pelo confronto

entre os elementos culturais diversificados da modernidade e as manifestações já

reconhecidas como representativas da tradição local, o que pretende-se enfatizar é

que nessa relação não existem perdas culturais, como se a tradição se extinguisse

para permitir o nascimento do novo. O que ocorre é uma espécie de transição entre

uma festa camponesa tradicional para uma festa urbana, porém funde elementos do

tradicional e do moderno sem desfazer os laços primordiais de identidade, como

ressalta Santos (1971, p. 20): “Bumba-meu-Boi, para ser Bumba-meu-Boi, precisa

ter coragem e cachaça; precisa ter São João e luar e, enquanto não morrerem estes

valores, o Boi vai-se arrastando noite adentro”.

Outro fator importante a ser considerado é que a cidade [São Luís] não é mais a mesma de 30 anos atrás, a produção rural foi reduzida drasticamente e a zona urbana estendeu suas fronteiras ferozmente sobre o

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campo provocando mudanças bruscas na forma de vida do homem rural, incluindo a forma de manifestar sua cultura e suas manifestações folclóricas. (...) O fenômeno da urbanização acelerada trouxe ao Bumba-Boi também a necessidade de realizar adaptações também aceleradas, como o fato de não poder mais transportar brincantes em caminhões abertos por causa do risco de acidentes; a introdução do Pandeiro de Nylon, industrializado, em substituição ao de couro, artesanal, já que são cada vez mais escassos os locais onde podem acender uma fogueira para aquecê-los; a limitação de horário para brincar em obediência à Lei do Silêncio; a determinação dos dias, horários e locais para apresentação definidos pelos órgãos de cultura que contratam os grupos, etc. Observa-se que o Bumba-meu-Boi é obrigado a se transformar rapidamente, de um lado, pelas transformações do espaço rural e urbano e por outro, pelo interesse da elite em moldá-lo, torná-lo mercadoria desejada, revesti-lo de um visual estilizado, pronto para ser consumido em qualquer mercado, seja internamente ou exportado para terras longínquas (MARTINS, 2007, p. 83 e 87).

Gilberto Giménez esquematizou os traços das festas rurais e urbanas no

seguinte modelo:

Festa camponesa tradicional: a) Ruptura do tempo normal; b) Caráter coletivo do fenômeno da festa, sem exclusão de nenhuma classe, como expressão de uma comunidade local; c) Caráter compreensivo e global, uma vez que a festa abrange os elementos mais heterogêneos e diversos sem disgregação nem “especialização” (jogos, danças, ritos, música etc. ocorrem no interior de uma mesma celebração global); d) Com a conseqüente necessidade de ser realizada em grandes espaços abertos e ao ar livre (a praça, o pátio da Igreja...); e) Caráter fortemente institucionalizado, ritualizado e sagrado (a festa tradicional é indissociável da religião); f) Impregnação da festa pela lógica do valor de uso (como conseqüência: festa-participação e não festa espetáculo); g) Forte dependência do calendário agrícola no quadro de uma agricultura sazonal. Festa Urbana: a) Integração da festa à vida cotidiana como um seu apêndice, complementação ou compensação; b) Caráter fortemente privado, exclusivo e seletivo da festa; c) Sua extrema diferenciação, fragmentação e “especialização” (são dissociados os elementos que na festa popular coexistiam no interior da unidade de uma mesma celebração global); d) Com a conseqüente necessidade de ela ser desenvolvida em espaços íntimos e fechados; e) Laicização e secularização da festa, maior espontaneidade e menor dependência de um calendário estereotipado; f) Penetração da lógica do valor de troca: festa-espetáculo, concebida em função do consumo e não da participação. (GIMÉNEZ apud CANCLINI, 1986, p. 113).

A expansão da fronteira cultural do Bumba-meu-Boi se dá a partir da

preservação e valorização dessa manifestação folclórica pela população pobre da

zona rural que se identifica com essa dança e gradativamente vai sendo “conurbada”

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pelo crescimento da zona urbana, assim como a resistência dos grupos tradicionais

perante a discriminação das classes mais favorecidas, como atesta Martins (2007):

Assim ocorreu e ainda ocorre com o Bumba-Boi de matraca que teve na conquista do João Paulo e adjacências, através do encontro realizado no dia 30 de junho de cada ano, o instrumento de resistência à perseguição da polícia e à discriminação e controle da elite, para continuar a existir e expandir seus domínios do campo para a cidade, ganhando, com o passar dos anos, o direito de apresentar-se em qualquer local da Ilha do Maranhão e até mesmo em outros estados, quer seja espaço rural, quer seja urbano (MARTINS, 2007, p. 86).

Paulatinamente, o Bumba-boi foi sendo aceito e assimilado pelo inconsciente

coletivo como um elemento importante da maranhensidade, que tornava o

maranhense diferente do restante do Brasil e unia-o por um laço cultural comum. O

turismo e a mídia, ao prestigiarem o Bumba-meu-Boi, também foram fundamentais

para difusão do sentimento de identidade e consequente melhor e maior aceitação

desse folguedo no Maranhão a partir da década de 90. O maior número de

espectadores do Bumba-Boi fez surgirem novas manifestações, como explica

Martins (2007):

(...) surgem novas manifestações, o Boi da Ilha que tinha origem eminentemente rural, aparece agora nos bairros periféricos provocando um novo fenômeno, o chamado Boi de Bairro, concorrendo com os antigos Bois de Sítio. Na Festa de São Marçal estão todos eles presentes, disputando espaço, prestígio e poder (...) De certo que todos eles, defendendo suas territorialidades específicas, porém no mesmo espaço, a Avenida São Marçal, constroem juntos, involuntariamente, uma grande trincheira de resistência às contradições de classes. Nesse sentido contraria as concepções dominantes em relação a eventos dessa magnitude, mantendo firme a participação popular, onde o povo atua unido aos grupos, corpo a corpo, sem cordões de isolamento, arquibancadas ou camarotes (MARTINS, 2007, p. 87-88).

Para as populações indígenas e camponesas, as festas são acontecimentos

coletivos enraizados na sua vida produtiva, celebrações fixadas de acordo com o

ritmo do ciclo agrícola ou o calendário religioso, onde a unidade doméstica de vida e

de trabalho se reproduz através da participação coletiva da família. Nas cidades, a

existência da divisão entre as classes sociais, de outras relações familiares, o maior

desenvolvimento técnico e mercantil voltado para o lazer, a organização da

comunicação social que apresenta um caráter massivo criam uma festividade que é

distinta. À maioria das festas as pessoas vão individualmente, são feitas em datas

arbitrárias, e, quando se adere ao calendário eclesiástico, a estrutura segue uma

lógica mercantil que transforma o motivo religioso num pretexto; ao invés da

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participação comunitária, é proposto um espetáculo para ser admirado (CANCLINI,

1986, p.112).

Esse caso é bastante observado nas apresentações de Bumba-meu-Boi em

São Luís, onde o esquadrinhamento urbano e a dialética do capital determinam a

segregação sócio-econômica no que tange o público espectador e as datas nas

quais os grupos de Bumba-Boi se apresentam. Como exemplo podemos citar os

espaços de espetáculos públicos próximos ao Centro da cidade, o Arraial do São

Luís Shopping Center e do “São João fora de época” (que ocorre de quinta-feira a

domingo durante todo o mês de julho – período de férias e com grande fluxo de

turistas para capital maranhense – no Convento das Mercês, prédio histórico do

Bairro Praia Grande, tombado pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade)

(FIGURA 01), que viraram verdadeiros espetáculos para o turista admirar, em locais

bem estruturados, com maior segurança e presença dos grupos folclóricos de São

João mais valorizados do Estado.

Figura 01. Apresentação de Bumba-meu-Boi sotaque de Zabumba no São João fora de época – destaque para os caboclos-de-fita. Fonte: http://www.digiforum.com.br, 2009.

Já os Vivas8

8 Praças de Bairros de São Luís com espaços para apresentações culturais.

periféricos e a Festa de São Marçal, voltados para as

populações mais pobres da cidade, seguem suas apresentações durante o

calendário religioso do mês de junho, além de possuírem estruturas menos

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sofisticadas, menor segurança e preços acessíveis para o consumo de mercadorias

no local. Dessa forma, percebe-se a convivência entre o novo e o antigo, o popular e

a “elitização” do popular através da segregação sócio-espacial e econômica, a

transição de uma festa camponesa tradicional para uma festa urbana na cultura do

Bumba-meu-Boi.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após o que foi abordado, entende-se que as manifestações festivas,

eminentemente o Bumba-meu-Boi, são de fundamental importância não só como

representação cultural de uma determinada região, mas também para a afirmação

da identidade sócio-territorial que cada habitante mantém com seu devido ambiente.

Enxergar essa festividade, bem como seus desdobramentos na sociedade, como

atributos de caráter social, humano, político, territorial e econômico é uma das

formas de quebrar a visão preconceituosa que aflige o Bumba-Boi. Ao constituir e

impetrar ações que visem mostrar como a cultura tem relações inseparáveis com a

afirmação da identidade e com o pertencimento a um território estar-se-á diante de

um quadro que apresenta perspectivas positivas em vários aspectos.

É importante pensar que as manifestações culturais são mais do que tudo,

uma das muitas formas de representação cujos atributos foram herdados da religião,

da cultura e do ambiente, em determinados territórios ao longo de um determinado

período, que serviu para a afirmação e legitimação de uma identidade.

O Bumba-meu-Boi e seus desdobramentos são importantes para a

compreensão dos fatores que asseguram o sentimento de pertencer a um

determinado lugar, no caso ao Maranhão. Dialeticamente, entendemos também que

mesmo que existam “fronteiras culturais”, estas vêm com o passar dos anos, sendo

suplantada pelo próprio desejo do homem de conhecer o novo e também pelo fato

de que a cultura brasileira, em geral, e a maranhense, em especial, possuem

diversas afinidades que se interrelacionam de forma contínua e gradual.

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REFERÊNCIAS

CANCLINI, Nestor Garcia. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1986. CARVALHO, Maria Michol Pinho de. 1995. Matracas que desafiam o tempo: é o Bumba-Boi do Maranhão. São Luís: s/e, 1995.

DANTAS, Tiago. Bumba-meu-Boi. In: <http://64.233.169.104/search?q=cache:Fxvgr1XbJecJ:www.brasilescola.com/folclore/BumbameuBoi.htm+Bumba-meu-Boi&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=5&gl=br>. Acessado em: 01/06/2008.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Tradução por Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. – 11ª. ed. – Rio de Janeiro: DP&A, 2006. LIMA, Carlos de. Bumba-meu-Boi. São Luís: Augusta, 1982.

MARTINS, Paulo de Tasso Alves. A Construção Dialética do Encontro de Bumba-meu-Boi de Matraca no Caminho Grande – João Paulo “Festa de São Marçal”. 2007. 106 f. Monografia (Graduação em Geografia) – Centro de Ciências Humanas, Universidade Federal do Maranhão, São Luís.

PRADO, Regina de Paula Santos. 1977. Todo ano tem: as festas na estrutura social camponesa. Dissertação de Mestrado em Antropologia. Rio de Janeiro: PPGAS-MN/UFRJ.

RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993.

SANTOS, José de Jesus. O Bumba meu Boi do Maranhão. Maranhão: s/e, 1971. SILVA, Carlos Benedito Rodrigues da. Ritmos da identidade: mestiçagens e sincretismos na cultura do Maranhão. Tese de Doutorado. São Paulo: PUC, 2001.

<http://pt.wikipedia.org/wiki/Bumba-meu-Boi>. Acessado em: 01/06/2008.

<http://www.digiforum.com.br>. Acessado em: 01/05/2009.