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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
SANDRA KRETLI DA SILVA
OS CAMINHOS DA PRODUÇÃO CULTURAL INSERIDA NAS
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DO/NO COTIDIANO DE PROFESSORES(AS) E ALUNOS(AS)
Vitória 2005
SANDRA KRETLI DA SILVA OS CAMINHOS DA PRODUÇÃO CULTURAL INSERIDA NAS
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DO/NO COTIDIANO DE PROFESSORES(AS) E ALUNOS(AS)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre em Educação.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Janete Magalhães Carvalho.
Vitória 2005
SANDRA KRETLI DA SILVA
OS CAMINHOS DA PRODUÇÃO CULTURAL INSERIDA NAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DO/NO COTIDIANO DE
PROFESSORES(AS) E ALUNOS(AS)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre em Educação.
Aprovada em 10 de março de 2006.
COMISSÃO ORGANIZADORA __________________________________________ Prof.ª Dr.ª Janete Magalhães Carvalho Universidade Federal do Espírito Santo Orientadora __________________________________________ Prof. Dr. Carlos Eduardo Ferraço Universidade Federal do Espírito Santo __________________________________________ Prof.ª Dr.ª Regina Helena Silva Simões Universidade Federal do Espírito Santo __________________________________________ Prof.ª Dr.ª Célia Frazão Linhares Universidade Federal Fluminense
AGRADECIMENTOS
A Janete Magalhães Carvalho, por ter acreditado em mim. Sua atenção, apoio, carinho e amizade foram fundamentais neste percurso. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação, em especial a Carlos Eduardo Ferraço, Regina Helena Silva Simões e Denise Meyrelles de Jesus, pela amizade e por terem compartilhado muitos momentos de estudo e de reflexões teóricas e práticas. Aos alunos e alunas, professoras, pedagogas e demais profissionais da escola pesquisada, pelo apoio e pela permissão para entrar e participar dos seus desejos, indignações, reflexões, enfim, de suas culturas e suas histórias. Aos colegas da turma 17, em especial a Tânia Delboni, pela amizade, cumplicidade e companheirismo. Aos profissionais da Escola da Ilha, com quem compartilho grande parte da minha formação, em especial a Cecília Oliveira, amiga e grande incentivadora. A Marcelo Kill, pela escuta e pelas intervenções necessárias ao meu crescimento pessoal e profissional. A Rosana Gívigi, pelo estímulo e empurrão inicial. A Wanir, minha primeira interlocutora, pelas intervenções na melhoria do texto. Aos meus pais, por me terem ensinado a ser guerreira e perseverante na luta por um mundo melhor para todos. A toda minha grande família, pelo apoio eterno. A Eduardo, pelo incentivo, pelo companheirismo e por ter cuidado do nosso ninho nos momentos em que precisei estar ausente. A Pedro e Marina, pela paciência e pela alegria que depositam em minha vida.
RESUMO
Trata de uma investigação sobre como os artefatos culturais (todos os produtos disponibilizados, constituídos através de ideologias ou políticas, variando de produtos tecnológicos a simples recursos materiais) utilizados por professores(as) e alunos(as) se expressam no currículo e no cotidiano escolar. Constitui-se num estudo de caso no/do cotidiano escolar de uma escola de Ensino Fundamental da Prefeitura Municipal de Vitória, capital do Estado do Espírito Santo. Utiliza como instrumentos observações e participação do/no cotidiano escolar, entrevistas estruturadas e recorrentes, análise documental, registros escritos e fotográficos. Aponta que os produtos culturais consumidos por professores(as) e alunos(as) são constantemente ressignificados, transformados e reinventados por meio de múltiplas redes de saberes, valores, sentimentos, pensamentos, que são tecidas, individual e coletivamente, na produção do currículo praticado. Sugere a necessidade de espaço e tempo de ação, criação, autonomia e reflexão coletiva no processo de fabricação de um currículo, processo que consiste de um movimento que é dinâmico, plural, inusitado e multifacetado.
Palavras Chaves: Currículo; Cultura; Artefatos Culturais; Cotidiano Escolar.
ABSTRACT
A study at a public elementary school in Vitória, ES analyze how cultural artifacts (products chosen based on ideologies or politics, which range from technological to simple materials) used by teachers and students are present in the curriculum and students’ academic life. This analysis was made through observation and participation in students’ academic life, structured interviews, analysis of documents, and photographic and written records. It states that the cultural products which teachers and students consume are constantly resigned, transformed and reinvented having either individual or collective knowledge, values, feelings and thoughts compounding the building of the current curriculum. Therefore, space-time of action, creation, autonomy and collective thinking is necessary in the process of building a curriculum. It’s a dynamic, plural, unexpected and multifaceted movement.
Key-words : Curriculum; Culture; Cultural Artifacts; Academic Life.
LISTA DE FOTOGRAFIAS
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A cozinha .............................................................................
A portaria da Escola ............................ ...............................
A quadra de esportes: ensaio para a festa junina ...........
A biblioteca .................................... ......................................
O refeitório ..................................... .......................................
Na sala dos professores, homenagem à professora
grávida .......................................... ........................................
O Laboratório de Informática ..................... .........................
Biblioteca ocupada por alunos em hora de recreio ............
Cartaz produzido pelos alunos no projeto “Paz a gen te
sonha, a gente faz” ...............................................................
A sala de aula .................................. ....................................
A utilização de revistas nas redes de aprendizagens .....
Reunião pedagógica sobre educação inclusiva ..... .........
Reunião de estudo sobre as implicações de Piaget e
Vygotsky na educação ............................ ...........................
Professoras em planejamento para elaboração do
projeto sobre os índios ......................... .............................
Alunos pesquisando na biblioteca com o apoio da
pedagoga ........................................ .....................................
Aula de Ciências ................................ .................................
Alunos em busca de novos desafios ............... .................
Alunos questionadores ........................... ...........................
Aluna em busca de solução para suas questões .... ........
Aula de Matemática .............................. ...............................
Uso de revistas para produzir situações-problema na
aula de Matemática ................................................................
Uso da calculadora e de encartes de supermercados n a
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aula de Matemática .............................. ...............................
A professora tirando dúvidas dos alunos ......... ...............
Alunas em movimento de aprendizagem ............. ............
Aluno na rua em horário de aula ................. ......................
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SUMÁRIO
1 2 2.1 2.2 3 4 4.1 4.2 4.3 5 6
INTRODUÇÃO ................................................................................. CONTEXTUALIZAÇÃO DA TEORIA QUE SE FAZ PR ÁTICA E DA PRÁTICA QUE SE FAZ TEORIA ....................... ............................. SOBRE OS ESTUDOS DO COTIDIANO: “CONTA OUTRA VEZ!” .. DOS OBJETIVOS AOS LABIRINTOS PERCORRIDOS ................. CARACTERIZAÇÃO DA ESCOLA ........................ ......................... O “OLHAR” IMPLICADO DA PESQUISA SOBRE O USO E O CONSUMO DOS PRODUTOS CULTURAIS NO COTIDIANO ESCOLAR ......................................... .............................................. OS USOS DE PRODUTOS CULTURAIS NAS/DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS DE PROFESSORES E ALUNOS ........................... DAS BURLAS E ARTIMANHAS FAZENDO-SE NAS PRÁTICAS DISCURSIVAS DE PROFESSORES E ALUNOS ........................... FRAGMENTOS DAS REDES DE DIÁLOGOS TECIDAS DURANTE A PESQUISA ................................................................................... CONSIDERAÇÕES FINAIS: AS POSSIBILIDADES DO IMPREVISÍVEL ................................................................................ REFERÊNCIAS ............................................................................... ANEXOS .......................................................................................... ANEXO A ......................................... ................................................ ANEXO B ......................................... ................................................
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1 INTRODUÇÃO
Paixão entre leitura que se faz escrita que se faz leitura uma empurrando a outra uma inquietando outra apaixonando uma a outra. Interminavelmente.
LARROSA (2003)
Para iniciar este trabalho recorri ao ditado popular “Para comer e coçar, basta começar”, acreditando
que em relação a escrever seria da mesma forma. A leitura do livro Estudar, de Larrosa (2003),
também contribuiu para revigorar a minha paixão pelo estudo, pela problematização, pela pesquisa.
Com muita obstinação em busca de soluções provisórias e de novos questionamentos, corri atrás de
respostas para as perguntas sobre meu objeto de estudo, procurando junto com ele explicações para
minha própria existência. Assim, fui saboreando a dor e a delícia de ser o que sou, cheia de
inquietudes, angústias, incertezas, alegrias, tristezas, vitórias, deslizes e descobertas. Movimentos
intermináveis.
Sempre que retomava os meus estudos, lembrava-me das palavras de Larrosa (2003, p. 75):
“Começar a escrever é criar uma voz, deixar-se levar por ela e experimentar as possibilidades”.
Assim, fui experimentando, degustando, buscando fios, tecendo-os e, por fim, até mesmo
bordando...
Os estudos sobre a formação de professores1 têm-se revestido, nos últimos anos, de uma crescente
importância, pelo potencial de transformação das antigas estruturas de ensino e de formação que
representam. Conforme pesquisa realizada por André (2002), o aumento de interesse por esse tema
deriva da dificuldade de se encontrarem, hoje, respostas teóricas e práticas às demandas do
1 No decorrer do texto, utilizarei alternadamente o feminino e o masculino.
processo de aprendizagem e ensino2 que sejam adequadas aos momentos de rupturas sociais, nos
quais os antigos paradigmas já não respondem à complexidade do mundo contemporâneo e
precisam ser repensados com a introdução de práticas associadas aos avanços da ciência e da
tecnologia de modo que se atualize o cotidiano escolar.
O crescente interesse pelo tema, no entanto, não tem sido suficiente para produzir mudanças
significativas no cotidiano escolar. Por esse motivo, ao fazer uma longa reflexão sobre a minha
trajetória profissional, percebi que precisava buscar parceria e cumplicidade em autores e
pesquisadores engajados como eu nessa busca de renovação, para continuar investigando os
diversos aspectos e contextos educacionais.
Especificamente, neste estudo, pretendo compreender melhor como os artefatos culturais – revistas,
jornais, narrativas de novelas, imagens de publicidade, desenhos animados entre outros – usados
por alunos e professores expressam e/ou renovam o currículo e o cotidiano escolar.
Utilizo o enfoque oferecido por Certeau (1994), que entende por artefatos culturais todos os produtos
disponibilizados pelo poder proprietário, constituídos através de ideologias ou políticas, variando de
produtos tecnológicos a simples recursos materiais ordinários que são usados pelos praticantes em
seus cotidianos.
Há quase duas décadas venho tentando descobrir maneiras de desenvolver no interior da escola
processos de produção de conhecimentos efetivos, para que a prática cotidiana se torne
verdadeiramente mais significativa. Percebo que aqueles que atuam no cotidiano escolar comentam
constantemente sobre o que vêem nas novelas, revistas, jornais e, também, sobre o que vivenciam
em diversos espaços e tempos. Esses assuntos algumas vezes fazem com que o planejamento
prescrito, ou oficial, seja substituído por calorosas reflexões sobre temas, como ciência, sexualidade,
tecnologia, drogas, história, preconceito, violência, entre outros, que atravessam cotidianamente as
vivências de professores e alunos. Outras vezes, esses assuntos ficam tamponados nas mentes
desses atores, que preferem não falar durante as suas aulas sobre essas questões e optam por
seguir o que outras pessoas, em outras instâncias, lhes determinam fazer ou ensinar.
Ouço queixas de alunos, professores, especialistas, insatisfeitos com o que lhes é imposto, o que
está instituído, em contraposição a seus desejos de fazerem diferente, indicando com isso uma
dificuldade imensa para romper com a racionalidade técnica do processo tradicionalmente
“mecânico” de ensino. Por isso, eu pergunto: De que forma podemos abrir espaços para que
ocorram processos de criação de conhecimentos no âmbito escolar? É possível criarmos esses
espaços dentro do modelo de escola que ainda temos? Sabemos, ainda, que professores e alunos
burlam as regras instituídas e criam espaços não autorizados para se fazerem autores e atores de
2 Ao invés de usar o termo ensino e aprendizagem, utilizo o termo aprendizagem e ensino, conforme ouvi de Célia Linhares, procurando distanciar-me dos resíduos da modernidade que ainda estão em nós: muito ensino e pouca aprendizagem. Porém, entendo que ambos se dão concomitantemente.
sua escola, do seu currículo e da sua história. Por esse enfoque, iniciei minha pesquisa pela
observação desses espaços e tempos praticados por professores e alunos.
Acredito que o ensinar e o aprender precisam efetivar-se com prazer, emoção, envolvimento,
interação, “dialogicidade”, como destacam Santos (2003a) e Freire (1997), “heterodialogicidade”,
conforme Larrosa (2004) e Bhabha (1998). Para isso, faz-se necessário apostar nos novos
conhecimentos que, na atualidade, a cada instante, estão sendo criados por alunos e professores.
Se os antigos modelos da escola, caracterizados por linearidade, disciplinarização,
compartimentalização, homogeneização entre outros, não dão conta dos problemas sociais e
educacionais que hoje presenciamos, é preciso recriar uma prática escolar com mais vitalidade e
mais liberdade de aprendizagens. Concordando com Linhares (2005, p. 1), penso que a escola de
hoje exige de nós a utilização de organizações vivas, compartilhadas, dinâmicas e interativas. Sendo
assim, “[...] os movimentos instituintes que ampliam espaços de respeito e liberdade nos circuitos de
aprendizagens“ precisam ser mais reconhecidos do que as pressões políticas, econômicas e sociais,
que vêm desqualificando, engessando e prescrevendo reformas imediatistas e utilitárias, eximindo os
professores de sua vitalidade, de sua participação, da coletividade. É preciso ter coragem para
assumir os riscos das mudanças. Muitas vezes o medo de correr riscos leva o educador a continuar
aceitando o que já está instituído, conformando-se a reproduzir o que está preestabelecido.
Pretendo, apesar de saber que não existem verdades absolutas para essas e nem para outras
questões que aqui discuto, encontrar novos fios e novas redes que nos possibilitem tecer a nossa
história, direcionando-a a uma sociedade, no mínimo, mais justa e solidária.
Venho, há bastante tempo, exercitando o meu olhar de pesquisadora, de curioso
interesse pelas questões do ensino, e procuro não deixar que os momentos de
ansiosa escuridão que costumam surgir quando me encontro mergulhada no
cotidiano escolar perturbem a minha sensibilidade e o meu desejo de lutar por
possibilidades de intervenção que, efetivamente, provoquem mudanças na
formação de professores, alunos, na prática pedagógica e no currículo. E, acredito,
a melhor maneira de lutar contra esses momentos de escuridão é viver, observar,
testemunhar, estabelecer relações com os nossos alunos e professores, parceiros
nessa busca por qualidade na escola.
Percebo que as barreiras e obstáculos a romper no planejamento das ações prescritas no currículo
são menores na Educação Infantil e nas séries iniciais do Ensino Fundamental do que nas séries
finais desse nível de ensino e, mesmo, do Ensino Médio. Por isso, considero que experiências
investigativas desenvolvidas em turmas desses níveis podem contribuir para promover mudanças
nesses e em outros segmentos dos sistemas de ensino.
Como sugere Santos (2000, p. 9), é preciso
[...] que os professores reaprendam a viver o jogo da cartografia na Educação Infantil, como um modo de funcionamento, um exercício do olhar, da escuta, que toma a dimensão estética como potencializadora do movimento, no lugar do estável, do prescrito e reproduzível.
Sendo assim, realizei a minha pesquisa nas séries iniciais do Ensino Fundamental,
por acreditar que nessas séries os professores estão menos preocupados com o
cumprimento das determinações da grade curricular. Sentem-se mais livres das
amarras da burocracia escolar e do engessamento curricular, mais dispostos a ouvir
os alunos e a perceber as suas intuições, os seus desejos e a sua cultura.
Ao longo de minha carreira no magistério, atuando como professora, como diretora,
como coordenadora pedagógica e como formadora de professores, fui percebendo
a necessidade de discutir, de forma crítica e coletiva, as reformas educacionais que
surgiram nas últimas décadas. Senti a necessidade de refletir sobre a função e os
conteúdos dos referenciais e parâmetros curriculares, dos livros didáticos, das
músicas, dos vídeos, dos livros que eram usados por professores e alunos. Juntos,
pudemos perceber que o mercado está cheio de propostas e novidades e que,
muitas vezes, surge todo um arsenal de produtos culturais a reboque das reformas
curriculares que, embora anunciadas como inovadoras, não instituem um novo fazer
pedagógico e, por reproduzirem – com maquiagens e remendos – práticas
escolares já viciadas, excluem os “sujeitos aprendentes dos circuitos de saber”
(LINHARES, 2005, p. 2).
Após conhecer a obra de Certeau (1994), algumas questões foram emergindo nas
minhas reflexões: Que tipo de conhecimentos professores e alunos constroem a
partir do que lêem ou vêem nas revistas, na televisão, no cinema, ou em outras
fontes? São instituídos por eles espaços coletivos para a discussão dos assuntos
que surgem com o uso que fazem desses artefatos culturais? Qual a repercussão,
na sala de aula, das informações contidas nesses artefatos que circulam na escola?
Essas informações são transformadas em conhecimento no cotidiano escolar?
Penso que o conhecimento não deve ser percebido como algo restrito à sala de
aula, e que o cotidiano escolar constitui espaços e tempos de saber, de criação, de
prazer, de exercício da inteligência, da imaginação, da memória, da solidariedade e
de grande diversidade de outros saberes. Para que a aprendizagem aconteça de
forma mais significativa, precisamos aproveitar melhor, explorar mais o potencial
formador dos diversos espaços e tempos escolares, além dos artefatos culturais
que perpassam o seu cotidiano.
Certeau (1994) comenta que muitos trabalhos acadêmicos se têm dedicado a
estudar as representações e os comportamentos da sociedade. Ele sugere que
analisemos, além das imagens difundidas pela televisão e dos tempos passados
diante do aparelho, o que o consumidor cultural “fabrica” durante essas horas e com
essas imagens. Ele sugere que essa “fabricação” a ser detectada seja uma
produção, uma poética, palavra que vem do grego poiein, que significa criação e
invenção, pois supõe que os usuários desses artefatos façam uma “bricolagem”
com e na economia cultural dominante, burlando regras, seguindo seus próprios
interesses.
Os modos de proceder no cotidiano, segundo Certeau (1994), jogam com os
mecanismos da disciplina e alteram o seu funcionamento, pela utilização de uma
multiplicidade de “táticas” e “estratégias” dos consumidores, compondo redes de
comportamentos que delineiam uma antidisciplina.
“A tática depende do tempo, vigiando para ‘captar no vôo’ possibilidades de ganho”,
afirma Certeau (1994, p. 47). Essas são as maneiras que o homem ordinário3
encontra para transgredir as regras instituídas. Sugere, como sendo necessário, o
jogar com os acontecimentos, para transformá-los em ocasiões. Para esse autor,
estratégia seria o cálculo das relações de forças que se tornam possíveis a partir do
momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um ambiente.
Exemplifica ele dizendo: “A nacionalidade política, econômica ou científica foi
construída segundo esse modelo estratégico” (CERTEAU, 1994, p. 46). As
estratégias escondem, sob o cálculo de objetivos, a sua relação com o poder que as
sustenta, guardado pela instituição.
3 Certeau (1994, p. 58) retira o termo “homem ordinário” de Freud, que seria o homem comum que precisa de controle. Trata-se do homem comum, do herói anônimo, dos que fazem do cotidiano um lugar praticado: “Trata-se de uma multidão móvel e contínua, [...] de heróis quantificados que perdem nomes e rostos tornando-se a linguagem móvel de cálculos e racionalidades que não pertencem a ninguém”.
Nesta pesquisa, em vez da suposta passividade dos consumidores, busquei a
criatividade das pessoas ordinárias, conforme as descreve Giard (1994, p. 13) ao
apresentar a obra de Certeau: “Uma criatividade que se esconde num emaranhado
de astúcias silenciosas e sutis, eficazes, pelas quais cada um inventa para si
mesmo uma ‘maneira própria’ de caminhar pela floresta dos produtos impostos.”
A análise dos produtos ou artefatos culturais que freqüentemente incidem sobre o
cotidiano escolar remeteu-me à preocupação, já exposta anteriormente, com as
modalidades de ação didática envolvidas na produção do conhecimento e da cultura
no âmbito escolar, em sua inserção no atual contexto social. Alguns autores, como
Santos (2003a, 2003b), Freire (1997), Certeau (1994, 1996), Bhabha (1998),
Carvalho (2005a, 2005b), Ferraço (2001), Linhares (2005), entre outros, ajudaram-
me a compreender essas questões fundamentais para a minha análise.
Percebo no cotidiano escolar, alunos e professores nos corredores, no rápido
intervalo para o café, em burburinho, tentando manter esse diálogo. Em entrevista
realizada recentemente com professores, ouvi muitas queixas sobre a falta de
tempo instituído para facilitar essas trocas e o trabalho coletivo. Em pesquisa que
desenvolvi com a minha orientadora, as professoras chamavam o tempo que tinham
de o famoso “se vira nos trinta”, em alusão a um quadro de programa dominical de
televisão, pois tinham apenas trinta minutos diários para conversar ou trocar
experiências. E esse tempo, atualmente, foi reduzido para uma hora semanal.
Acredito que, quanto maiores forem as oportunidades de diálogo e de troca entre
professores e alunos, maior autonomia se terá ante os aparatos culturais.
Entretanto, nas escolas, “[...] fala-se quase que exclusivamente do ensino dos
conteúdos, ensino lamentavelmente quase sempre entendido como transferência do
saber” (FREIRE, 1997, p. 49). Com isso, esquecemos o fato primordial: que foi
aprendendo socialmente que homens e mulheres, historicamente, descobriram as
possibilidades do ensinar. Se isso estivesse claro para todos, teríamos a facilidade
de entender a importância das experiências informais nas ruas, nas salas de aula
das escolas, nos pátios dos recreios, onde e quando variados gestos de alunos,
professores, serventes, porteiros se cruzam cheios de significação.
Sabemos que as antigas fontes de ancoragem da identidade (a família, o trabalho, a
igreja, entre outras) estão em crise, e que novos grupos e produtos culturais
começam a aparecer, afirmando suas identidades e questionando a posição
privilegiada das identidades hegemônicas. Se o momento é de crise da própria
civilização, dela só sairemos com uma escola que se refaça, livrando-se da
reprodução do que já foi feito sem, contudo, abandonar a estrada percorrida.
Por isso, considero fundamental analisar o “uso” (CERTEAU, 1994) que professores
e alunos fazem dos produtos culturais que circulam na e fora da escola, para que
possam ser reconhecidos por meio de novas formas, novos processos culturais
engendrados/produzidos no cotidiano escolar.
Santos (2003b) contribui para esse debate, afirmando que tais formas e processos
tendem a produzir identidades4 culturais não rígidas nem imutáveis, mas processos
de identificações em curso.
Esse mesmo autor, por outro lado, considera que estamos num momento em que é
muito difícil sermos lineares, pois estamos numa fase de mudanças paradigmáticas.
Ele acredita que seja o nosso olhar que está a mudar e que a mudança ocorrida no
objeto do nosso olhar faz parte de um processo histórico de longa duração.
Percebo que a escola, reflexo da nossa sociedade, vivencia dificuldades em relação
às diferenças – racial, sexual, econômica, cultural e social –, ignorando como elas
podem ser trabalhadas na escola para a produção de um mundo mais inclusivo.
Complementarmente, Santos e Nunes (2003b) sugerem formas de reconstrução de
um novo vocabulário, além de instrumentos emancipatórios, para a invenção de
novas formas de cidadania baseadas nos recursos de uma sociologia das
ausências, das emergências e de uma teoria da tradução. Como descrevem esses
autores, a sociologia das ausências é capaz de identificar os silêncios que definem
o caráter de incompletude das culturas, das experiências e dos saberes,
objetivando transformar objetos impossíveis em objetos possíveis e, com base
neles, transformar as ausências e/ou silenciamentos sentidos nas práticas
4 Utilizarei identidades por entender a impossibilidade de relacioná-las às propriedades de estabilidade e permanência, mas, sim, como múltiplas, plurais, fragmentadas, instáveis. Penso, portanto, que as identidades estão, constantemente, sujeitas a processos de mudanças e transformação.
discursivas em presenças, revelando a diversidade e a multiplicidade das práticas
sociais, dando credibilidade a esse conjunto, por contraposição à credibilidade
exclusivista das práticas hegemônicas. Ainda segundo esses autores, a sociologia
das emergências consiste em trocar o vazio do futuro por um futuro de
possibilidades plurais e concretas, concomitantemente utópicas e realistas, que se
constroem no presente. Constitui a investigação das alternativas que cabem no
horizonte das múltiplas possibilidades concretas. Por outro lado, a teoria da
tradução permite criar inteligibilidades mútuas e articular diferenças e equivalências
entre experiências, culturas, formas de opressão e de resistências, possibilitando
aos atores coletivos dialogarem sobre as pressões a que resistem e sobre as
aspirações que os animam. Fazendo um paralelo com as situações escolares
pesquisadas, seriam todas as criações e invenções que professores e alunos
produzissem a partir dos artefatos culturais que usam no contexto da sua realidade
sociocultural.
Para Santos (2003b), todas as culturas tendem a distribuir as pessoas e os grupos
sociais entre dois princípios de vínculo hierárquico: o da igualdade e o da diferença.
O autor ressalta que a luta pelos direitos humanos é uma prática que se baseia no
inconformismo e na exigência de ação, sendo necessário o diálogo intercultural e a
hermenêutica diatópica. Para o autor, a hermenêutica diatópica tem como objetivo
ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua, por intermédio de um
diálogo intercultural. Portanto, ela exige uma produção de conhecimento coletiva,
participativa, baseada em trocas cognitivas e afetivas, ou seja, privilegia o
conhecimento-emancipação em detrimento do conhecimento-regulação. O autor
esclarece, ainda, que o conhecimento-regulação permite o conhecer, transformando
o caos em ordem, e o conhecimento-emancipação transforma o colonialismo em
solidariedade, ou seja, em suas palavras, é “[...] um conhecimento prudente para
uma vida decente” (SANTOS, 1987, p. 60).
Professores e alunos, no cotidiano escolar, acham brechas e criam espaços e
tempos para dialogarem sobre o uso que fazem dos artefatos culturais que circulam
nas escolas. Falam de suas invenções e criações, possibilitando, assim, uma
efetiva troca de experiências e saberes. No entanto, quando isso não acontece,
emerge o vazio na escola, o que alguns especialistas denominam de falta de
“capacitação”. Assim, vão surgindo seqüências de “cursos de capacitação”, que
objetivam “aplicar” aos professores o que eles chamam de novos conhecimentos e
novas metodologias.
A falta de espaços e tempos para os professores dialogarem sobre o cotidiano
escolar tem impedido que se efetive uma coletividade nas escolas. Com isso, os
professores permanecem sozinhos, isolados, sem espaços nem motivações para
discutir com seus pares. Enfraquecidos e amortecidos, “aceitam” a reprodução e a
repetição de qualquer pacote de instrução metodológica que lhes for repassado, ao
invés de apostar e acreditar nos movimentos que possam ser reinventados a cada
dia por eles.
Freire (1997) também insiste em nos apontar a importância de o professor ter
consciência da sua incompletude/inconclusão, da sua inserção num constante
movimento de procura, ensinando-nos que formar é muito mais do que treinar o
educando no desempenho de destrezas; é, também, criar possibilidades para a
produção de conhecimentos. Por isso, faz críticas severas ao cinismo fatalista do
governo neoliberal, que muitas vezes vem reforçando, através de pacotes fechados
de políticas educacionais, o “não-lugar dos professores” (CARVALHO, 2005a) no
contexto dos sistemas educacionais.
Para Freire (1997), o ser que se sente inacabado/inconcluso está mais aberto ao
diálogo; à procura de explicações, está sempre cheio de curiosidades, com
múltiplas perguntas e em busca de respostas provisórias. Em seu livro Pedagogia
da autonomia, o autor reflete sobre os diversos saberes necessários à prática
educativa e ressalta a importância da articulação da educação com outras áreas,
principalmente a da comunicação.
Freire (1997, p. 157) considera necessário desocultar verdades escondidas e
desmitificar a farsa ideológica apresentada pela mídia, pela televisão:
O mundo encurta, o tempo se dilui; o ontem vira agora; o amanhã já está feito. Tudo muito rápido. Debater o que se diz e o que se mostra e como se mostra na televisão me parece algo cada vez mais importante [...] Não podemos nos pôr diante de um aparelho de televisão “entregues” ou “disponíveis” ao que vier. A postura crítica e desperta nos momentos necessários não pode faltar.
Em Woodward (2000), por outro lado, as identidades adquirem sentido por meio da
linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas. A
representação5 atua simbolicamente para classificar o mundo e nossas relações no
seu interior. Nesse sentido, sendo relacional, as identidades são marcadas pela
diferença e por símbolos. Assim, penso que, ao identificar os artefatos culturais que
estão sendo mais utilizados por alunos e professores e ao analisar como esses
artefatos são utilizados no cotidiano escolar, será possível ressignificar os diferentes
modos de tessitura do currículo.
Aquela autora apresenta, ainda, duas concepções de identidade: a essencialista e a não-
essencialista. A perspectiva essencialista de uma identidade sugere a existência de um conjunto
cristalino e autêntico de características partilhadas por todos, que não se altera ao longo do tempo.
Uma definição não-essencialista focalizaria as diferenças, assim como as características comuns ou
partilhadas.
Woodward (2000) descreve que é por meio dos significados produzidos pelas
representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos.
Portanto, a representação é compreendida como um processo cultural que
estabelece identidades individuais e coletivas, além dos sistemas simbólicos, para
que possamos nos posicionar como sujeitos.
A autora afirma, ainda, que a cultura molda as identidades ao dar sentido à
experiência e ao produzir um tipo de subjetividade dentre as várias possíveis.
Somos, portanto, constrangidos pelas diversas possibilidades oferecidas pela
cultura, pela variedade de representações simbólicas, bem como pelas relações
sociais.
Para a autora, o termo subjetividade envolve sentimentos e pensamentos, além das
emoções conscientes e inconscientes que constituem as nossas concepções sobre
quem nós somos. As posições que assumimos nas interações sociais, e com as
quais nos identificamos, constituem as nossas identidades. “Vivemos nossa
subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão significado
à experiência que temos de nós mesmos. [...] Quaisquer discursos, eles só podem
ser eficazes se eles nos recrutam como sujeitos“ (WOODWARD, 2002, p. 55).
5 Por representação entendo, como Santos (2000, p. 91), “[...] sempre uma forma de olhar [...]”, ou seja, quanto maior o poder de representação, maior a profundidade e a transparência do olhar.
Ampliando essa discussão, a autora aponta para o fato de que a globalização é um evento da
contemporaneidade, que envolve uma interação entre fatores econômicos e culturais capazes de
provocar mudanças nos padrões de produção e consumo e de produzir novas identidades. O
desenvolvimento global do capitalismo não é novo, mas representa a convergência de culturas e
estilos de vida nas sociedades. É o que caracteriza a sua fase mais recente.
[...] a homogeneidade cultural promovida pelo mercado global pode levar ao distanciamento da identidade, relativamente à comunidade e à cultura
local. De forma alternativa, pode levar a uma resistência que pode fortalecer e reafirmar algumas identidades nacionais e locais ou levar ao
surgimento de novas posições de identidade (WOODWARD, 2000, p. 21).
Descrevendo a influência de alguns artefatos culturais na formação de identidades,
Torres (2004) ressalta que a televisão, nas últimas décadas, assumiu o papel de um
sistemático e poderoso meio de comunicação em todo o mundo. A autora comenta
que os adolescentes assistem à TV para compartilhar os programas com seus
amigos, com o grupo de adolescentes, dividindo seus gostos e suas escolhas,
fazendo piadas, cantando e dançando juntos e utilizando um material apropriado da
TV. Ela conecta, ainda, os discursos da TV a uma série de eventos sociais e
demonstrações culturais e morais envolvendo ideologias e julgamentos,
principalmente na produção de significados novos para a vida de jovens e crianças.
De outro ponto de vista, Soares et al. (2004) apresentam os meios de comunicação
como conectivos de acesso a visões de mundo e a processos de construção de
identidades, considerando que as formações discursivas dos grupos sociais são
culturais e históricas. Ressaltam que a mídia não determina coisa alguma, apenas
prescreve, o que nos permite vislumbrar a possibilidade da instalação da diferença
identitária, mesmo se considerarmos a ação padronizadora dos meios de
comunicação.
Na tentativa de entender o processo coercitivo e manipulativo do capitalismo tardio
representado pela mídia, Ludwig e Trevisan (2004) procuraram discutir as
repercussões das imagens culturais no fazer pedagógico, concordando com as
considerações de Trevisan:
[...] a educação está sendo confrontada atualmente com a cultura da
imagem, mediando as relações do homem com o universo [...]. Vivemos a
cultura do espetáculo que nos assombra ou encanta sem que muitas
vezes saibamos como reagir, nas instituições educativas, diante da força
de sedução ou de impacto que ela produz (TREVISAN, 2002, apud
LUDWIG;TREVISAN, 2004, p. 3).
Os autores enfocam as implicações da cultura imagética na experiência do
professor e nos modos de produção do conhecimento na contemporaneidade.
Consideram de fundamental importância que seja ressignificada a sua dimensão
estética, sugerindo aos sujeitos envolvidos outras formas de relacionamento e de
análise da imagem, para que construam uma postura crítica. Portanto, interpretar e
decodificar imagens culturais pode significar conhecer e entender sentidos,
silêncios, diferentes linguagens e promover mudanças. A linguagem imagética
propõe um diálogo de sensibilidade entre as pessoas, entre as formas de
imaginação e de sentimento.
Para Fabris (2002) e Oliveira e Fabris (2004), que tomaram o cinema como um
artefato cultural a ser investigado, uma das questões importantes levantadas indica
que os estudos culturais não aceitam que se trate a cultura como um conjunto
elitizado da produção humana:
Em cada ação social vem uma manifestação cultural e, portanto, uma ação social carregada de significados culturais, a qual está permeada de relações de poder [...]. O cinema é uma prática de significação que se expressa por um complexo de sistemas que atua como uma linguagem (FABRIS, 2002, p. 6).
Os recursos cinematográficos e as tecnologias não possuem um significado fixo e
garantido, pois o processo de significação envolve integralmente o sujeito, suas
experiências, sua cultura e suas emoções. O alerta de que é preciso estar atento ao
que o jogo comercial vem produzindo, já que esses recursos estão intimamente
ligados à política neoliberal, é uma das contribuições de Fabris (2002): é um jogo
que continua excluindo muitos sujeitos que deixam de ocupar espaços importantes
na vida social.
O conceito de identificação, a descrição do processo pelo qual nos identificamos com os outros, tem
a sua origem na psicanálise e está sendo retomado nos Estudos Culturais6 para explicar a forte
ativação de desejos inconscientes relativos a pessoas ou a imagens, que fazem com que seja
possível nos vermos nas imagens apresentadas na tela.
Assim, ao optar por ter filmes infantis como foco de trabalho, Oliveira e Fabris
(2004) pretenderam analisar a presença e a circulação do cinema nas práticas
escolares. Nesse exercício analítico, utilizaram as teorizações do campo dos
Estudos Culturais pós-estruturalistas para identificar os sentidos que esses filmes
vêm produzindo por meio de seus textos culturais e o modo como eles têm
conseguido exercer o poder de governar, moldar e subjetivar a infância
contemporânea.
Com a ajuda de outros autores, elas argumentam que os filmes infantis constituem-
se de narrativas múltiplas que ensinam sobre diferentes questões: gênero,
sexualidade, raça, etnia, entre outras. Ou seja, podem produzir subjetividades.
Pesquisaram também de que maneira os filmes são introduzidos no currículo
escolar e como as questões sociais, políticas e culturais produzidas por esse
artefato são problematizadas pelos docentes. Apontam que as produções
cinematográficas contêm marcas que definem modos de ser e de ver o mundo e,
mesmo que não seja esse o objetivo da escola, são significados que circulam
intensamente entre as crianças, produzindo identidades, legitimando verdades. São
representações que exercem grande poder constitutivo sobre os sujeitos,
introduzindo sentidos e subjetivando-os.
Para Oliveira e Fabris (2004), é fundamental, também, proporcionar aos alunos um
olhar sobre concepções de gênero, sexualidade, classes sociais, raça, etnia, padrão
estético, diferença, religião, e propiciar situações de análise crítica. Assim, é
possível desnaturalizar verdades antes consideradas intocáveis e inquestionáveis.
6 A origem dos Estudos Culturais se dá com autores como Richard Hoggart (1957), Raymont Willians (1958), Palmer Thompson (1963), que desenvolveram diversos questionamentos sobre os conceitos que atrelam a cultura à dimensão política.
Para isso, as autoras sugerem ser necessário que professores percebam as
produções fílmicas e demais produtos midiáticos como espaços de ensino e de
constituição de identidade das crianças, e que prevejam a sua inclusão nos
currículos escolares, fazendo deles alvos de discussão para os educandos e para o
próprio grupo docente.
Alguns autores têm colocado o foco de seus estudos nas modificações que vêm
ocorrendo nos modos de se conceber a infância, considerando a explosão de
informações na contemporaneidade. As crianças estão hoje imersas em uma
verdadeira avalanche de imagens e significados em grande parte produzida pela
televisão. É a cultura midiática modelando o desejo das crianças, suas ações e
suas identidades.
Os artefatos que circulam nas escolas são compostos por imagens relacionadas a
outras imagens, compondo um mundo de simulacros. Essas imagens são múltiplas,
variadas e efêmeras, porque o mercado que usa essa tecnologia faz com que as
mercadorias simbólicas circulem a uma velocidade acelerada. A cada ano, mês,
semana e, até, a cada dia as crianças comentam sobre novos produtos, novos
brinquedos, novos alimentos.
Elizabeth Ellsworth (2001) toma por empréstimo o conceito de “modos de
endereçamento” da teoria do cinema, para demonstrar que o intervalo entre o que
um filme ou uma aula pretendem que nós sejamos e o que nós, verdadeiramente,
somos é muito mais indeterminado do que imaginamos. E é nesse espaço de
indeterminações que tentamos equilibrar-nos.
O conceito de “modo de endereçamento” fundamenta-se no argumento de que,
para um filme fazer sentido para um determinado público, esse público deve
estabelecer uma relação particular com a história e o sistema de imagens do filme.
Destaca a autora a importância de se considerar a que espectador o filme se
destina (ELLSWORTH, 2001). Porém o modo de endereçamento de um filme, ou de
uma aula, também está envolvido nos prazeres e nas interpretações dos públicos.
Defende a autora que os educadores não devem ignorar os modos de
endereçamento. Entretanto considera importante lembrar que todos os modos de
endereçamento erram seus públicos, de uma forma ou de outra. Exemplifica ela
que, por meio do planejamento, também os professores tentam prevenir, ou
impedir, que os momentos de desejo, prazer, medo e desentendimentos dos alunos
se manifestem nas salas de aula.
Prosseguindo nesse enfoque, estudos realizados por Momo (2004) questionam o consumo infantil.
Segundo a autora, as imagens e práticas que compõem o cenário das escolas em estudo são
produzidas, em sua grande maioria, pela mídia televisiva. As crianças não desejam um produto
somente porque eles estão no mercado. A fabricação de seus desejos acontece pelas práticas
discursivas (visuais e verbais) dos meios de comunicação de massa.
Também Alves (2004) e diversos membros de sua equipe de pesquisa vêm fazendo
uso da imagem (desenhos, charges, obras de arte, fotografias, propaganda, vídeos
e filmes) nos processos de busca de compreensão dos múltiplos espaços e tempos
educativos. Em seus projetos, procuram identificar os diversos usos que são feitos
dessas imagens. Entendem que é preciso ter em mente que, se as imagens têm um
significado para quem as produz, podem representar outras coisas para quem as
vai “ver”, ao serem usadas nas múltiplas situações possíveis.
Como nos fala Ferraço (2002, p.115), muitas das conversas entre alunos e
professores revelam a diversidade de lógicas recorrentes e compartilhadas entre os
seres humanos. Afirma ele que “[...] são jeitos, táticas, espaços/tempos, maneiras
de nos relacionarmos com a diversidade da vida”. E questiona ainda: “Por que não
se assumir essa multiplicidade de lógicas como espaços/tempos do
aprender/ensinar? Por que não tornar essas lógicas, essas redes compartilhadas,
em espaços/tempos de aprender/ensinar?”
Para o autor, essas lógicas não existem separadamente, mas são “entrelaçadas,
emendadas”, sendo impossível antecipar e controlar as inúmeras táticas utilizadas
pelos professores. Elas são efêmeras, imprevisíveis. Não acontecem de forma
gradual ou cumulativa, como uma construção, mas de modo fractal, rizomático,
múltiplo.
A partir do exposto até o momento, passei a considerar a importância de analisar o
modo como esses fragmentos de lógicas sobre os artefatos culturais são trazidos
por alunos e professores para a composição do currículo praticado.
Quando participei de uma pesquisa coordenada pela minha orientadora, Dr.ª Janete
Magalhães Carvalho, ao acompanhar um cameraman durante a filmagem de um
clipe que fizemos para registrar e apresentar o nosso trabalho, alguns
acontecimentos daquele contexto fizeram-me abrir o “zoom” do pensamento para
algumas cenas relacionadas à temática de estudo que eu seguiria neste trabalho
acadêmico.
Ao chegar à escola em estudo, uma das pedagogas me disse que havia pedido ao
cameraman que registrasse uma atividade que estava sendo desenvolvida numa
turma da 4.ª série, com o “apoio” da professora de Ciências da 5.ª série. A
professora havia ensinado como fazer um vaso usando sucatas que, de acordo com
ela, “têm mil e uma utilidades”. Naquele momento, chamou-me a atenção o
intercâmbio de idéias entre as professoras e a empolgação da pedagoga. Resolvi
conversar com a professora que havia inventado o objeto utilizado para facilitar o
ensino do conteúdo programático sobre as Plantas. – Como você inventou isto?,
perguntei-lhe. Ela riu com uma certa timidez e disse: “Eu não crio nada, só copio.
Não tenho tempo para criar essas coisas.” Perguntei-lhe, então: – De onde você o
copiou? Respondeu-me: “Da revista. Toda semana eu passo na banca para ver as
novidades. Tem uma que é só para ensinar a fazer objetos com as garrafas ‘pet’.”
E começou a me contar como, e a mostrar o que fazia com as garrafas.
Em seguida, a pedagoga acrescentou que, nessas andanças em busca de
novidades nas bancas de revistas, ela resolveu comprar um livro para um aluno que
adorava plantar. Esse aluno apresentava dificuldades de leitura e escrita. A
professora encontrou um livro sobre o assunto e pensou: “Acho que Rodolfo vai se
interessar por este tipo de leitura, já que ele gosta tanto desse assunto”. E começou
a alfabetizar o aluno usando revistas sobre plantas.
Ao mesmo tempo, no corredor, um grupo de mais ou menos quinze meninas
dançava, sem música. Uma liderava o grupo, ensinava os passos, ditava o ritmo,
cantava, ouvia sugestões de novos passos, brigava quando alguém errava. Era a
professora de dança. Perguntei-lhe como havia aprendido aquilo. Ela respondeu
que, quando morou em São Paulo, ajudava uma professora de dança a dar aulas.
Estava utilizando o que aprendera para ensaiar uma apresentação para a festa
junina da escola.
As provocações levantadas pelos diversos autores que estudei e as cenas que
presenciei e vivenciei então, nos cotidianos escolares, incentivaram-me, ainda mais,
a pesquisar os caminhos da produção cultural inserida no cotidiano de professores
e alunos.
Observei que alunos e professores expressam nas suas falas algo que vai além das
relações que estabelecem com o objeto de conhecimento, e que aquilo também
interfere na aprendizagem. Essa se tornou a questão investigada por mim: Como os
artefatos culturais são utilizados na produção do currículo praticado por professores
e alunos inseridos no cotidiano escolar das séries iniciais do Ensino Fundamental.
Nos diferentes espaços da escola, durante as reuniões semanais de estudo,
individualmente e em pequenos grupos, nos intervalos, na hora do café, os
professores comentam assuntos que viram nos jornais, no cinema e/ou na
televisão. Eles se posicionam, dão opiniões, apresentam dúvidas, questionamentos.
Por essa via, utilizei a hipótese identificada por Carvalho (2005c, p. 12), na pesquisa citada
anteriormente, de que:
[...] assim como outros artefatos culturais, tais como as narrativas das
novelas, a semiótica da publicidade, também as matérias jornalísticas, as revistas pedagógicas e seus enfoques ajudam: a traduzir pressupostos
epistemológicos do conhecimento para o processo de ensinar, aprender e estar no cotidiano escolar do ensino fundamental; a produzir e regular, pelo consumo das mensagens veiculadas, as práticas discursivas dos
professores.
2 CONTEXTUALIZAÇÃO DA TEORIA QUE SE FAZ PRÁTICA E D A PRÁTICA QUE SE FAZ TEORIA
Professores podem ser observados comentando, no cotidiano escolar, suas opiniões
sobre assuntos que viram, ouviram ou vivenciaram através da TV, internet, revistas,
jornais, cinemas, nos cursos de formação continuada, nos encontros com os colegas.
Alguns de seus planos de ensino já incluem essas temáticas. Outros professores, no
entanto, ainda se encontram “presos” ao que prescreve a grade curricular, seguindo à
risca os manuais didáticos e programas.
Alunos também parecem ter incorporado essas concepções. Alguns verbalizam que,
na hora da aula, “... o professor tem mesmo é que dar o dever”, que a função do
professor é apenas a de ser ”tarefeiro”, ou seja, passar tarefas. Outros até arriscam
propor debates sobre assuntos que possibilitem o envolvimento de todos.
Entretanto, notei que, em rodas de conversa, vários assuntos são discutidos
dissimuladamente. Ao analisar fatos desse tipo, verifiquei que o que é discutido nos
bastidores é, algumas vezes, tão ou mais importante do que muitos dos temas
previstos ou planejados.
A partir dessa constatação, a pesquisa dos caminhos da produção cultural inserida
nas práticas pedagógicas do e no cotidiano de professores e alunos revelou-se um
interessante problema para a compreensão de como os artefatos culturais usados e
consumidos por eles se expressam no currículo e no cotidiano escolar, meu tema de
estudo neste trabalho.
Tomando por base uma epistemologia crítica e pós-crítica que questiona a
neutralidade e as conseqüências da ciência, Carvalho apresenta como pressupostos
do ato de conhecer, na concepção pós-moderna de ciência, ou paradigma
emergente:
[...] enfocar o conhecimento a partir da localização histórica de sua produção, percebendo-o como provisório e relativo; estimular a análise, a capacidade de compor e recompor dados, informações, argumentos e idéias; valorizar a curiosidade, o questionamento exigente e a incerteza. [...] perceber o conhecimento de forma interdisciplinar/transdisciplinar, estabelecendo pontes de relações entre eles e atribuindo significados
próprios aos conteúdos, em função dos objetivos sociais e acadêmicos; entender a pesquisa como um instrumento de ensino; opor-se à linearidade, à hierarquia, à fragmentação; conceber o conhecimento em rede (CARVALHO, 2005 c, p. 45).
Portanto, faz-se cada vez mais necessário que as escolas estabeleçam uma interface
entre conhecimento e percepção política da sociedade, rompendo com a linearidade,
a hierarquização e a fragmentação do ensino, propondo saberes “híbridos” (BHABHA,
1998), produzidos e fabricados a partir de problematizações, de diálogos e de
utilização produtiva de artefatos culturais.
Os conteúdos geralmente prescritos nos currículos oficiais são sempre o resultado de
uma seleção, o que implica escolhas, opções feitas por alguém. No entanto, após
essa seleção, os educadores os assumem e procuram justificar por que tais
conhecimentos devem ser priorizados, o que esperam que os alunos aprendam e
desenvolvam. Nesse sentido, os atores do cotidiano escolar, aqueles que criam e
inventam a cada instante o currículo praticado, nem sempre participam da produção
do currículo que é autorizado e reconhecido. Geralmente, os técnicos, os
especialistas, os enviam em pacotes fechados, indicando as finalidades, as famosas
listas de conteúdos e, ainda, as metodologias que deverão ser trabalhadas.
É Silva quem esclarece que o currículo, além de envolver uma questão de
conhecimento, expressa também processos de identificação. “[...] o conhecimento
que constitui o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido
naquilo que somos, naquilo que nos tornamos” (SILVA, 1999, p. 15).
As teorias tradicionais pretendem-se neutras, assumem o caráter científico,
pretendem-se desinteressadas. No entanto, ao aceitarem o status quo, concentram-
se em definir qual será a melhor forma de transmitir “os inquestionáveis”
conhecimentos de que se tornam portadoras. Diferentemente, os teóricos críticos e
pós-críticos defendem que nenhuma teoria é neutra, científica ou desinteressada,
mas que está sempre implicada em relações de poder. Eles questionam o porquê da
seleção daqueles conhecimentos e não de outros. Quais os interesses que
determinam que sejam esses os conhecimentos a serem construídos em suas salas
de aula? Por que privilegiar-se a formação de um tipo de identidade ou subjetividade,
e não de outro?
Silva (1999) resume, em grandes categorias, as teorias do currículo, de acordo com os conceitos que
elas respectivamente enfatizam: as teorias tradicionais dão destaque especial ao ensino, à
aprendizagem, à avaliação, à metodologia, à didática, à organização, ao planejamento, à eficiência,
aos objetivos. As teorias críticas reportam-se à ideologia, à reprodução cultural e social, ao poder, à
classe social, ao capitalismo, às relações sociais de produção, à conscientização, à emancipação e
libertação, ao currículo oculto, à resistência. As teorias pós-críticas dão ênfase à identidade, à
alteridade, à diferença, à subjetividade, à significação, ao discurso, ao saber, ao poder, à
representação, à cultura, ao gênero, à raça, à etnia, à sexualidade, ao multiculturalismo.
Mais recentemente, Silva (1999) descreve as duas concepções de conhecimento que
têm dominado o currículo e o cotidiano escolar: o conhecimento como “coisa” e o
conhecimento como idéia, abstração. Essas concepções, no entanto, reduzem o
conhecimento e a cultura à categoria de “coisas”, o que equivale a conceber a
sociedade como estática e o indivíduo como objeto passivo do currículo. Nessas
concepções, a cultura é compreendida como um produto acabado, pronto, que pode
apenas ser transmitido, repetido.
Concordando com Silva (1999), compreendo o conhecimento, a cultura e o currículo
como produções sociais, o que nos permite destacar o seu caráter político, social e
histórico. Essa perspectiva enfoca o cotidiano escolar como uma prática de
significações, uma relação social, uma relação de poder e uma prática que produz
identidades sociais.
Para complementar essa idéia, considero importante focalizar as diversas
concepções de cultura e a concepção que este estudo toma por referência.
A história da humanidade está marcada por contatos e conflitos entre modos
diferentes de organizar a vida social, de conceber e de expressar a realidade. Nos
tempos atuais, os estudos da cultura têm-se intensificado, devido à aceleração dos
contatos entre povos e nações, à necessidade de reflexão sobre a lógica da
sociedade produtivista. Observamos ainda a inadequação das ações previstas nos
planos econômicos para responder ao mal-estar causado pelo progresso, além dos
grandes descontentamentos coletivos que caracterizam a nossa época. Os alunos e
os professores trazem para o cotidiano escolar questões que estão fora dos
parâmetros previstos pelos currículos impostos, provocando-nos à reflexão no plural,
ou seja, ao pensar não mais a cultura, mas as culturas.
Veiga-Neto (2004, p. 53) afirma:
Ao invés de entendermos Cultura no seu sentido clássico, isto é, como
aquilo de melhor e mais elevado que a Humanidade produziu, [...] hoje se
prefere falar em culturas, para designar qualquer “lugar social” onde não
apenas se dão constantes lutas pela imposição de significados, valores e
modos de vida, como também se constituem subjetividades e se dão
poderosos processos de regulação social.
Mais recentemente, nós, educadores, recebemos de presente do campo da economia
e da produção industrial um vocabulário extenso de palavras, como eficácia,
eficiência, produtividade, qualidade, avaliação, enfim, deixando para um segundo
plano a articulação, tão necessária e fundamental, da educação com o campo da
cultura.
A cultura, nesse caso, precisa ser entendida, como já enfatizei anteriormente, numa
perspectiva dinâmica e plural, pois uma cultura que se reproduz de maneira idêntica,
ou seja, sem criação, é um ”câncer sociológico, uma condenação à morte” (PRETTO,
2005). Portanto, há sempre um certo perigo em querer defender ou proteger as
culturas, pois elas só existem por terem sido capazes de se transformar e de permitir
ressignificações a cada geração.
Para Certeau (1995, p. 10), mais do que um conjunto de valores que devem ser
preservados na sociedade, a cultura tem hoje a conotação de “[...] um trabalho que
deve ser realizado em toda a extensão da vida social”. Por isso, faz-se necessário
trabalhar visando a determinar, no fluxo fecundo da cultura, um funcionamento social,
uma topografia de questões, um campo de possibilidades estratégicas/táticas e de
implicações políticas.
A cultura no plural sugerida por Certeau é o campo de luta entre o rígido e o flexível,
é aquela que se contrapõe à cultura no singular (a que impõe sempre a lei de um
poder), pois acredita que para haver cultura é preciso que as práticas sociais tenham
significado para aquele que as realiza.
Santos e Nunes (2003), ao criticarem o conceito de cultura como “repositório do que
de melhor foi pensado e produzido pela humanidade”, esclarecem que essa
concepção de cultura estabelece os critérios de seleção e as listas de objetos
valorizados como patrimônio cultural universal, em áreas como a literatura, as artes, a
música, a filosofia, a religião ou as ciências. A expressão por excelência dessa
concepção de cultura é o cânone. Em contraposição, apresentam uma outra
concepção que reconhece a pluralidade de culturas, definindo-as como totalidades
complexas que se confundem com as sociedades, permitindo caracterizar modos de
vida baseados em condições materiais e simbólicas.
Depois dos anos 80, segundo Santos e Nunes (2003), as abordagens das ciências
humanas e sociais se dirigiram para o campo dos estudos culturais, interpretando a
cultura como um fenômeno associado a repertórios de significados partilhados pelos
membros de uma sociedade e, ainda, associado à diferenciação e à hierarquização
de contextos locais e transnacionais.
Assim, cultura passou a ser um conceito importante para a definição de identidades e
diferenças no mundo contemporâneo; “[...] um recurso para a afirmação da diferença
e da exigência do seu reconhecimento, e um campo de lutas e contradições”
(SPIVAK, apud SANTOS; NUNES, 2003, p.45).
Cabe-nos questionar se não seria fundamental criarmos espaços e tempos nos
cotidianos escolares para que os diálogos pudessem ocorrer de maneira mais
aberta/coletiva e não somente clandestina. Sabemos que esse movimento se faz num
processo nem sempre harmônico, no qual os conflitos e as contradições, muitas
vezes, são necessários para que se produza, de fato, um projeto coletivo e
democrático. Nesse sentido, cumpre destacar a relevância do “saber de experiência
feito” (FREIRE, 1997).
Benjamin (1985) e Santos (2000) expõem sobre o desperdício da experiência. Quem
convive com professores sabe como não lhes faltam histórias e experiências para
contar. Segundo Azevedo, nessa “troca de figurinhas e abobrinhas” vamos refletindo
e transformando o nosso fazer, compreendendo a teoria e a prática, “[...] produzindo
múltiplas e complexas negociações e traduções entre as políticas educacionais e as
redes de cada um dos sujeitos do processo, nelas incluídas as trajetórias escolares, a
formação acadêmica, as expectativas e os desejos” (AZEVEDO, 2004, p. 15).
Benjamin (1985) também questiona o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a
experiência não mais o vincula a nós. A experiência sempre fora comunicada aos
jovens pela autoridade da velhice. Onde estão os nossos mestres mais velhos,
reconhecidos e valorizados pelos seus ensinamentos, por suas sabedorias? Quantos
ensinamentos já nos foram passados de geração em geração? Sabemos que o
tempo para narrar histórias e tradições tem sido tomado pelas rápidas informações,
mas acreditamos que ainda temos muitos professores que gostam de “contar
causos”, trocar experiências. A narrativa, segundo Benjamin, tem sempre em si uma
dimensão utilitária que pode consistir num ensinamento moral, numa sugestão prática
ou num provérbio. O narrador geralmente sabe dar conselhos. Nós somos, no
entanto, do tempo em que a expressão corrente é “Se conselho fosse bom não seria
dado, seria vendido”. Quanto mais caro for, melhor é o produto.
Para aquele autor, as pessoas só são receptivas a um conselho na medida em que verbalizam a sua
situação. O conselho, quando tecido na vivência, no cotidiano, é sabedoria. O narrador colhe o que
narra na/da sua própria experiência ou o retira daquelas que lhes são contadas, transformando-as,
novamente, em experiências de todos os que ouvem as suas histórias.
A difusão da informação é uma das responsáveis pelo declínio da narrativa. A todo instante recebemos
novas notícias de todo o mundo. Estabelecendo um paralelo: Estamos apenas repassando
informações, ou problematizando questões para serem discutidas com os alunos e com os demais
atores do nosso cotidiano escolar? Nossas aulas já vêm prontas, com os exercícios preparados para
seguirmos os modelos e verificarmos, ao final, se as respostas estão certas ou erradas? Estamos
tendo espaços e tempos para questionarmos, refletirmos sobre as inúmeras informações que nos
estão sendo apresentadas a cada instante, nos dias atuais?
Ainda Benjamin, ao se referir aos narradores, afirma que estes eram, tradicionalmente, vistos como
pessoas que vinham de longe e que, por terem viajado, teriam muito o que contar. Porém o homem
que honestamente ganhou a sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições
também tem muito o que contar.
Portanto, considero fundamental criarmos espaços e tempos para dialogar, para compartilhar nossos
sonhos, nossas utopias, nossos ideais de educação, pois, se a sabedoria, como nos ensinou
Benjamin, parece adormecida numa sociedade pautada na velocidade de informações, resta-nos
despertá-la através das narrativas e das histórias dos professores e dos alunos que vivem, encantam,
problematizam e realizam o cotidiano das escolas.
Percebi, através da pesquisa, inúmeros conhecimentos e valores sendo tecidos nas complexas
relações estabelecidas pelos múltiplos sujeitos e produtos culturais que circulam na escola. Portanto,
para além das propostas curriculares oficiais oferecidas pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC)
ou pelas Secretarias Municipais de Ensino (SEMEs), uma vida cotidiana repleta de artes, de fazeres,
de criação, de lutas, de indignações fabrica um jeito próprio de utilizar a ordem supostamente imposta.
A cultura não pode ser concebida sem a existência de práticas de significação e de
produção de sentidos. O sentido e o significado não são produzidos de forma isolada.
Eles se organizam em relações que se apresentam como marcas lingüísticas que
geram redes de significados. Os produtos culturais recebidos são sempre submetidos
a uma nova atividade de significação, sofrendo, assim, um complexo processo de
transformação.
No currículo praticado por professores e alunos, são produzidos sentidos e
significados sobre os vários campos e atividades sociais, como a ciência, a economia,
a política, as instituições, a saúde, a alimentação, a educação.
É importante ver o currículo não apenas como sendo constituído de “fazer coisas”, mas também vê-lo como “fazendo coisas às pessoas”. O currículo é aquilo que nós, professores/as e estudantes, fazemos com as coisas, mas é também aquilo que as coisas que fazemos fazem a nós. O currículo tem que ser visto em suas ações (aquilo que fazemos) e em seus efeitos (o que ele nos faz): nós fazemos o currículo e o currículo nos faz (SILVA, 1999, p. 194).
O currículo nos constrói como sujeitos e constrói também, de alguma forma, as
nossas identidades. As narrativas existentes no currículo é que indicam o que se
deve ensinar, a melhor forma de ensinar e como organizar a sociedade e os grupos
sociais, a partir dos diversos enredamentos tecidos nas salas de aula:
O currículo, ao lado de muitos outros discursos, nos faz ser o que somos. Por isso, o currículo é muito mais que uma questão cognitiva, é muito mais que uma construção do conhecimento, no sentido psicológico. O currículo é a construção de nós mesmos como sujeitos (SILVA, 1999, p. 196).
O currículo, portanto, não é neutro na escolha de conhecimentos ou informações. No
momento em que alguém decide o que vai trabalhar e como vai trabalhar, deixa claro
que a regulação e o controle estão sempre presentes. Nesse sentido, Silva alerta
para este fato:
Identificar e questionar os atuais regimes de regulação inscritos no currículo
significa abrir a possibilidade de contestar e modificar aquelas relações de
poder que tendem a excluir certos saberes e grupos sociais, que tendem a
estigmatizá-los e a inferiorizá-los (SILVA, 1999, p. 202).
Por isso acredito que, na análise dos artefatos culturais que são utilizados na
produção do currículo praticado por alunos e professores, podem ser produzidos
novos sentidos para o cotidiano escolar e para a prática pedagógica.
Na escola, enquanto os professores estão muito preocupados com o “dever”, olhando
os cadernos, fazendo os alunos copiarem o que lhes foi pedido, os alunos estão
fabricando outras situações de aprendizagens significativas: lendo curiosidades,
contando dinheiro, jogando, conversando sobre situações do cotidiano.
O mesmo ocorre com os professores no uso da xerox: burlam as regras instituídas
quando a sua cota explode. Fazem as cópias às escondidas ou usam as cotas de
outros professores, para não se restringirem ao “cuspe e giz”, expressão utilizada por
eles para as atividades de cópia do quadro.
O dia de planejamento, também chamado por eles de “dia de rei ou princesa”, é o
tempo em que organizam o pagamento de suas contas pessoais, lêem o jornal,
revistas, planejam, pensam. Só não planejam suas ações docentes futuras. Segundo
Certeau, como assinalei anteriormente, esses modos de proceder de consumidores
constituem uma rede de antidisciplina, que inclui os professores no momento em que
estão consultando seus cadernos de planejamentos de anos anteriores, ouvindo
relatos de atividades feitas pelos colegas, fazendo leituras dos jornais, revistas ou
livros. Aí se incluem também as emoções que sentem ao ler um livro, ao ver filmes,
novelas, programas de TV, ao ouvirem as informações dos documentários, das
manchetes de jornais, das letras de músicas, dos conhecimentos que buscam em
livros: estão criando seus itinerários, suas invenções.
Uma professora mostrou-me uma pasta que ela organizava com recortes de matérias
que tinha lido em jornais e revistas. Recortava as matérias e colava numa folha de
papel chamex, fazendo um arquivo organizado por temas. Sempre que alguém lhe
conta o que está trabalhando com sua turma, ela tem sugestões de textos, atividades,
questionamentos dos seus alunos para apresentar, propondo assim a troca, a
parceria, o trabalho cooperativo, solidário e coletivo.
Como Azevedo (2004), acredito que seria ingenuidade pensar que bastam aos
professores os seus saberes tecidos na prática. O que não podemos ignorar é que se
faz necessário um diálogo permanente desses saberes com as teorias, com as
políticas educacionais, com os artefatos culturais que circulam nas escolas, num
processo interminável de hibridização, negociação.
Homi Bhabha (1998), ao falar de negociação, quer tornar possível a articulação de
elementos antagônicos ou contraditórios. O autor reconhece a ligação histórica entre
o sujeito e o objeto da crítica de modo que não possa haver uma posição simplista
essencialista. Os princípios dessa oposição são construídos por meio de uma troca
discursiva dialógica no reconhecimento de um sujeito politizado. Um saber só se
torna político através de um processo de dissenso, alteridade e outridade.
Para esse mesmo autor, o tempo da tradução consiste no “[...] movimento de
significado, o princípio e a prática de uma comunicação que [...] põe o original em
funcionamento para descanonizá-lo” (BHABHA, 1998, p. 313).
É Certeau (1995, p.34) quem nos esclarece: “Uma linguagem uma vez falada, implica
pontos de referência, fontes, uma história, ou seja, uma articulação de autoridade.”
Por autoridade, ele entende tudo o que dá ou pretende dar autoridade –
representações ou pessoas –, que se refere, portanto, de uma maneira ou de outra,
àquilo que é aceito como crível (acreditável).
Talvez seja pertinente situar aqui o exemplo dado por Certeau para essa questão: em
uma escola na França, substituir Racine por Brecht significa modificar a relação do
ensino com uma tradição autorizada, aceita entre eles, ligada aos ancestrais e aos
valores considerados nobres. É também introduzir uma problemática política contrária
ao modelo cultural estabelecido:
É evidente que mudar o conteúdo, sair desse francês congelado nos livros é tocar em um aspecto fundamental da cultura, insinuar um outro comportamento cultural. É aceitar a explosão da língua em sistemas diversificados mais articulados; pensar o francês no plural, introduzir a relação com o outro como condição necessária da aprendizagem e do intercâmbio lingüísticos, substituir a multiplicidade das práticas atuais à preservação de uma origem legislativa na qual as gramáticas exerceriam a magistratura (CERTEAU, 1995, p. 125).
A questão que Certeau (1995) nos propõe refletir é a relação entre conteúdos
ensinados na escola e a interação didático-pedagógica estabelecida: A relação
didático-pedagógica tem sido produtora de linguagem dialógica ou é o canal pelo qual
se aplica um saber estabelecido pelos professores? Tem havido comunicação, tem-
se possibilitado a criação da cultura escolar promotora de conhecimentos
significativos?
Sabemos que, cada vez mais, a cultura está nas mãos do poder. Entretanto,
aprendemos com esse mesmo autor, que a cultura no singular é mortífera e ameaça
a criação e a invenção. Sendo assim, defendo que seja desvelada toda a riqueza da
pluralidade das culturas presentes nos currículos praticados por professores e alunos
no/do cotidiano escolar, ou seja, que se deixem emergir os diversos sistemas de
referências e significados que estão sendo silenciados e mortificados na escola.
Acrescenta ele, ainda, que quanto mais a economia se unifica, mais a cultura deve
diversificar-se, pois ela é uma prática significativa, que não consiste em receber
pronto, mas em se fabricar tudo o que nos é oferecido para viver, pensar e sonhar.
Toda cultura requer, portanto, uma ação, um modo de apropriação, uma
transformação pessoal.
Como Carvalho (2004b), entendo que é no âmbito do currículo praticado, vivido,
aquele que ocorre na perspectiva do desenvolvimento do poder argumentativo das
pessoas e de grupos – dialogicidade – que efetivamente se manifesta, ou não, a
concretização do currículo concebido (Parâmetros Curriculares Nacionais, Planos
Estaduais ou Municipais, projetos político-pedagógicos, por exemplo).
Portanto, “[...] o currículo praticado envolve as relações entre poder, cultura e
escolarização, representando, mesmo de forma nem sempre explícita, o jogo de
interações e/ou as relações presentes no cotidiano escolar” (CARVALHO, 2004b, p.
1).
Assim, faz-se cada vez mais necessário divulgar alto e em bom som, todos os
projetos coletivos que estão sendo produzidos nas escolas, explicitando os objetivos,
as ações, as realizações e os resultados. Muitas vezes, o desconhecimento dessas
experiências, dessas referências, desses diálogos partilhados faz com que os
professores fiquem desacreditados. Essa sensação mortificante da falta de criação,
de desejo, acarreta acomodação, doenças, cansaços intermináveis, fadiga e “stress”.
2.1 SOBRE OS ESTUDOS DO COTIDIANO: “CONTA OUTRA VEZ!”
Todo professor ou contador de histórias já se deparou com esse pedido dos alunos:
“Conta outra vez!” Quantas vezes, ao acabarmos de assistir a um bom filme,
sentimos aquela vontade louca de vê-lo mais uma vez! É Benjamim (1985) quem nos
esclarece que a criança faz esse pedido para saborear a vitória da aquisição de um
saber, ou seja, para incorporá-lo.
Toda criança gosta de muitas histórias. Com o intuito de resgatar um pouquinho das
nossas infâncias, vou apresentar três recontos7 retirados de estudos do cotidiano.
Dois deles abordam a origem dos estudos do cotidiano e o outro enfoca fragmentos
da pesquisa que realizei junto com minha orientadora e meus colegas do grupo de
pesquisa do Mestrado em Educação da UFES, conforme já citado anteriormente.
Essas histórias, com certeza, subsidiaram a minha pesquisa.
1.º Reconto: A primeira história foi escrita por Alves e Oliveira (2002) e tem como
título Uma História da Contribuição dos Estudos do Cotidiano Escolar ao Campo do
Currículo:
7 Utilizarei esse gênero para apresentar algumas experiências e reflexões sobre os estudos do/no cotidiano.
Houve um tempo em que se falava do cotidiano escolar como sendo uma “caixa
preta”.8 Mas, afinal, de onde vem essa metáfora? Uma hipótese é de que ela tenha
vindo com a “caixa preta” do ensino de Ciências, um instrumento inventado para
estimular os alunos à criação de idéias, por meio de perguntas que os levassem a
imaginar o que havia dentro de uma caixa fechada. Interessava mais o que era
“inventado e criado” pelo aluno, do que a resposta certa.
Outra hipótese é que essa metáfora tenha surgido da “caixa preta mecânica e da
tecnologia lógica”. Nesse momento, aparece a chamada “teoria de sistemas”, sob a
influência das origens da administração.
Para Alves e Oliveira (2002), o uso dessa metáfora indica a impossibilidade de se
saber o que de fato se passa dentro da escola, devido à multiplicidade e à
complexidade dos processos que a constituem. Eles alertam, ainda, que o uso dessa
metáfora tem sido muito freqüente no discurso oficial, sem esclarecer se o que se
passa no interior da “caixa preta” é um “ideal da escola” ou “uma escola ideal”,
planejada do alto e de fora: a escola compreendida como lócus de aplicação de
planos curriculares, precisando ainda ser eficiente e obediente, pois, em casos de
resultados indesejáveis, os responsáveis pelos planos e pelos recursos acusam a
“caixa preta” de mau funcionamento e de ser responsável pelo fracasso escolar.
Sendo assim, fica evidente que, hegemonicamente, se entende o mundo da escola
como um mundo separado do real, onde dificilmente se percebem as múltiplas
relações que seus sujeitos mantêm com o mundo, assim dizendo, exterior.
Em 1983, foram feitos estudos no Brasil, com base em pesquisas do norte-americano
Robert Stake, estudioso do método fenomenológico da pesquisa descritiva, qualitativa
e etnográfica, que possibilitou o entendimento de que a forma hegemônica de
compreensão, representada pela vertente quantitativa/positivista da pesquisa, era
insuficiente para a apreensão do cotidiano escolar, seus problemas e suas possíveis
soluções.
8 A expressão “caixa preta”, segundo o dicionário Aurélio, surgiu em 1945, durante ou logo depois da Segunda Guerra Mundial. Em mecânica e tecnologia lógica, esse nome é dado a qualquer elemento, máquina ou dispositivo de cujo funcionamento não se tem nenhum conhecimento por acesso direto, sendo apenas identificado e caracterizado pela verificação da relação existente entre as informações ou estímulos que chegam a ele e as respostas de saída.
Aquelas autoras relatam que Stake indicava a necessidade de observação do que
diariamente se passava na escola e a impossibilidade de generalização das
conclusões desses estudos, dada a sua individualidade.
Em 1991, estudos do inglês Stenhouse enfocavam a idéia de o professor assumir-se
como pesquisador, favorecendo a compreensão de que o conhecimento das escolas
existentes em um mesmo sistema educativo só seria possível à medida que, nos
processos necessários a esse tipo de conhecimento, fossem incorporados os
múltiplos sujeitos do cotidiano escolar. Dessa forma, para o autor, os professores
seriam os sujeitos que poderiam efetivar intervenções sobre o cotidiano das escolas,
ao questionarem suas práticas e clarificar sua problemática por meio de processos de
pesquisa.
Com a tradução, no Brasil, dos estudos realizados no México por Rockwell e Ezpeleta
(apud ALVES; OLIVEIRA, 2002), incorporou-se aos estudos do cotidiano o
entendimento de que, para além de descrever a escola em seus aspectos negativos,
o importante seria compreender que as escolas devem ser estudadas em sua
concretude, como elas realmente são, sem julgamentos de valor. Entretanto,
considero que seja preferível que os valores do pesquisador e dos sujeitos sejam
explicitados, uma vez que os olhares nunca são neutros, mas carregados de
subjetividades.
Segundo às idéias apresentadas por Alves e Oliveira (2002), os estudos atuais
referentes aos diversos cotidianos nos quais nos formamos, como numa rede de
subjetividades (SANTOS, apud ALVES; OLIVEIRA, 2002), fundamentam-se numa
crítica ao modelo da ciência moderna que, para a sua constituição, teve de considerar
o conhecimento até então produzido como senso comum, que seria superado pelo
conhecimento científico. Acrescentam elas, ainda, que todas as atividades que
desempenhamos são aprendidas instintiva ou mecanicamente, o que significa que
nossas ações são provisórias, dinâmicas, plurais, efêmeras, já que estamos (sempre)
em permanente processo de mudança, imersos em redes de saberes que não podem
ser explicadas por intermédio de simples relações lineares de causalidade.
Portanto, é fundamental nos estudos do cotidiano considerar os processos de
formação de nossas subjetividades em seus múltiplos espaços e tempos.
Nesse sentido, Alves e Oliveira (2002) afirmam que o conteúdo e as formas pelas
quais nossas ações cotidianas são desenvolvidas podem ser caracterizados pela
complexidade e pela diferenciação, sendo, portanto, imprevisíveis, o que significa que
as lógicas que presidem o desenvolvimento das ações cotidianas são diferentes
daquela com que nos acostumamos a pensar na modernidade.
Para compreender as lógicas que presidem a vida cotidiana, as autoras citadas
ensinam que é necessário “mergulhar” na análise do cotidiano, aceitando a
impossibilidade de obtermos dados relevantes gerais em meio à realidade e a
necessidade de considerarmos a relevância de seus elementos constitutivos, em
suas infinitas relações e conseqüências.
GARCIA (2003), ao apresentar o livro Método: Pesquisa no Cotidiano, relata que,
muitas vezes, o mergulho no cotidiano nos obriga (grifo meu) a incursões “sem
âncoras ou bóia”. O termo “obriga” chama-me a atenção. Questiono por que a autora
se sente obrigada a mergulhar “sem bóia”. Ela própria aponta algumas pistas:
[...] alguns companheiros e companheiras que, como nós, vêm mergulhando nas águas turbulentas do cotidiano, escavando o microcosmo onde o macrocosmo se revela em suas formas singulares, surpreendentes, embaraçosas que, por vezes, nos obrigam a incursões sem âncoras ou bóia (GARCIA, 2003, p. 7).
É possível mergulhar sem bóia no cotidiano? não seria mais seguro mergulhar com
bóia? qual seria o melhor tipo de bóia? ponderam alguns pesquisadores.
Acredito que somente quem mergulhou ou mergulha, de fato, no cotidiano sabe que,
por mais que se esteja preparado, o inesperado é sempre surpreendente. Bóias,
âncoras, máscaras, canudos, o que seja levado, pode ter que ser abandonado a
qualquer instante, no meio do caminho. Sobra somente o mergulhador e, talvez, sem
saber a direção a tomar. Ao realizar o mergulho, além de nos sentirmos obrigados a
cumprir com a responsabilidade, o dever, a missão de pesquisadores e educadores,
sentimos a necessidade de agradecer ao cotidiano, que nos permite resgatar “[...] o
sabor do saber e confirmar nossa crença na força do coletivo” (GARCIA, 2003, p. 12).
Garcia (2003) relata que, no último seminário realizado pelo Grupo de Alfabetizadores
(GRUPALFA),9 a grande questão discutida foi se o método é um “a priori”, ou vai
sendo construído no período de pesquisa, em resposta aos sinais oferecidos pela
realidade, ao ser investigada.
Esteban (2003, p. 200) complementa:
A pesquisa no cotidiano nos coloca algumas indagações que exigem proposições metodológicas específicas, não bastando uma adaptação dos procedimentos instituídos, pois é uma pesquisa que não pretende apenas construir explicações para os fenômenos encontrados, mas procura aprofundar a compreensão sobre a realidade numa perspectiva dialógica vinculada a processos de intervenção.
Para a autora, a pesquisa no cotidiano conduz-nos por um terreno movediço, híbrido, opaco, no qual
percorremos caminhos com riscos. Porém, o fato de assumirmos que a pesquisa implica riscos não
significa a inexistência de tentativas teórico-metodológicas de condução rigorosa e responsável do
processo investigativo e do compromisso com os resultados apresentados, entendidos como parciais e
provisórios, cujo rigor não significa neutralidade, nem mensuração.
Utilizando metáfora de Ginsburg (1989), como caçadora iniciante que sou, mergulhei no cotidiano com
todos os apetrechos necessários para não afundar, não me enroscar e não correr o risco de morrer na
beira da praia, porém municiada com a audácia, a coragem e a perspicácia suficientes para penetrar
lugares ainda não percebidos por outros corajosos mergulhadores e pesquisadores do cotidiano
escolar. Acredito que é nos corais ainda não percorridos que se faz possível vislumbrar as mais ricas e
belas paisagens.
2.º Reconto: A segunda história que eu vou contar foi escrita por Marli ANDRÉ e tem
como título O Cotidiano Escolar, um Campo de Estudo.
André (2003), ao mostrar a importância dos estudos voltados para o cotidiano
escolar, indica que, na década de 80, se tornou mais evidente o interesse por essas
questões, e que esse interesse vem acompanhando a própria história da abordagem
qualitativa de pesquisa, ou seja, tem integrado os pressupostos da fenomenologia10 e
9 GRUPALFA – Grupo de Pesquisadoras Alfabetizadoras da Universidade Federal Fluminense. 10 A fenomenologia enfatiza os aspectos subjetivos do comportamento humano e os sentidos que os sujeitos atribuem aos acontecimentos e às interações sociais que ocorrem em sua vida diária.
das correntes a ela associadas, como a etnometodologia11, o interacionismo1
simbólico e a etnografia2.
André esclarece que a abordagem qualitativa da pesquisa privilegia as análises
microestruturais compreensíveis e fenomenológicas das experiências cotidianas de
grupos ou indivíduos em situação de interação.
O cotidiano, nessa perspectiva, tem diversas possibilidades de análise: a fenomenologia e as correntes
dela derivadas; as alternativas inspiradas no pensamento marxista, por exemplo, as de Agnes Heller
(1972), Henri Lefèbvre (1991) e Karel Kosik (1976); as pós-modernas, como as de Maffesoli (1998).
André argumenta também sobre a importância dos estudos no cotidiano porque
acredita que as práticas escolares podem revelar formas particulares de cada sujeito
perceber e interpretar a realidade.
Para responder à questão sobre o porquê de estarmos buscando os estudos do
cotidiano, André (2003, p. 13) justifica:
Investigar as especialidades do cotidiano escolar é tarefa das mais urgentes, para tentarmos compreender, por exemplo, como os atores escolares se apropriam das normas oficiais, dos regulamentos, das inovações, que peso têm as relações sociais na aceitação ou na resistência a essas normas, que processos são gerados no dia-a-dia escolar para responder às demandas das políticas educacionais, aos anseios das famílias e aos desafios do ensino na sala de aula.
A autora ressalta ser fundamental que se estude sob determinado ponto de vista teórico, a fim de
orientar as análises da pesquisa. Defende, também, a necessidade de se construir, teoricamente, a
categoria “cotidiano escolar”, para que se avance no conhecimento do que constitui a vida escolar
cotidiana, ou para que se possa entender o processo de construção cultural de cada escola.
É importante observar que ela tanto sinaliza os cuidados que se deve ter, como
sugere alguns caminhos para serem seguidos numa abordagem teórica do cotidiano,
como focalizarei a seguir. Sobre os cuidados, ela enfatiza que o mergulho se dê com
11 A etnometodologia propõe-se estudar os métodos que os indivíduos usam no dia-a-dia para entender e construir a realidade que os cerca. 12 O interacionismo simbólico destaca a importância das interações sociais na construção do conhecimento. 2 A etnografia tem como principal preocupação o estudo da cultura em um sistema complexo de significados que as pessoas usam em cada sociedade, para organizar seu comportamento, para entender os outros e a si mesmas e para dar sentido ao mundo em que vivem.
bóias e todos os equipamentos necessários para que se evitem os problemas já
identificados, como, por exemplo, os estudos sem suporte teórico para orientar a
análise; o relato de dados sem um questionamento sobre a sua origem; a ausência
de localização do contexto específico em que são produzidos; o seu significado
naquele momento histórico, seus condicionantes e suas implicações.
Sobre os caminhos a seguir, ela sugere:
É preciso analisar, em profundidade, os elementos que constituem o
cotidiano, buscando, por meio de um referencial teórico, compreender e
interpretar os sujeitos e as expressões, as manifestações escritas dos atores
escolares no contexto em foram gerados, à luz das circunstâncias
específicas em que foram produzidas (ANDRÉ, 2003, p. 12).
André considera importante fazer uma análise consistente, deixando claro que, para
isso, se faz necessário que o pesquisador se apóie num referencial teórico que o
ajude a definir categorias e núcleos temáticos, para captar todo o dinamismo da vida
escolar e orientar a sua análise e interpretação. Nesse sentido, ela considera
fundamental estudar, pelo menos, quatro dimensões da vida escolar, a saber:
� dimensão subjetiva, que abrange a história de cada sujeito pelas suas formas
concretas de representação social, por meio das quais ele age, se posiciona, se
aliena, se comunica;
� dimensão institucional ou organizacional, que envolve os aspectos referentes ao
contexto da prática escolar – formas de organização do trabalho pedagógico,
estruturas de poder e de decisão, níveis de participação dos seus agentes,
disponibilidade de recursos humanos e materiais e toda a rede de relações que se
forma e se transforma no acontecer diário da vida escolar;
� dimensão instrucional ou pedagógica, que abrange as situações de ensino, nas
quais se dá o encontro professor-aluno-conhecimento, dimensão na qual estão
envolvidos os objetivos e conteúdos do ensino, as atividades e o material didático, a
linguagem utilizada e outros meios de comunicação entre professor e alunos, e as
formas de avaliar o ensino e a aprendizagem;
� dimensão sociopolítica, que se refere ao contexto sociopolítico e cultural mais
amplo, ou seja, aos determinantes macroestruturais da prática educativa.
A autora ressalta, ainda, que essas dimensões não podem ser consideradas
isoladamente, mas como uma unidade de múltiplas inter-relações, por meio das quais
é possível compreender as relações sociais expressas no cotidiano escolar.
Concordo com André, quando ela declara que o conhecimento tecido a partir do
cotidiano é fundamental para a definição de políticas públicas, para a gestão dos
sistemas educativos e para a formação de educadores.
3.º Reconto: A terceira história que vou contar foi escrita por minha orientadora no
desenvolvimento da pesquisa ”A epistemologia da prática docente nos processos de
ensino, de pesquisa e de formação continuada no cotidiano escolar do ensino
fundamental”, no ano de 2004.
Uma das ações realizadas pelo grupo de pesquisa foi analisar, nos periódicos de
maior circulação e utilização entre professores de Ensino Fundamental, as teorias de
conhecimento predominantes e sua relação com as dimensões pedagógicas
presentes em tais publicações.
O conceito de representação utilizado por Carvalho está baseado em Lefèbvre
(1980), Boaventura Souza Santos (2000) e Hall (2002). Para esses autores,
representação é um sistema de significação por meio do qual os processos culturais
não podem ser compreendidos quando separados dos signos e dos sentidos a eles
atribuídos nas relações concretas que o produzem.
Assim, Carvalho (2004a) partiu do pressuposto de que as revistas pedagógicas de
maior circulação e consumo entre professores de Ensino Fundamental, como
produtos culturais, atuam como representações de pressupostos filosófico-
epistemológicos e ideológicos do conhecimento, gerando identidade, produção,
consumo, regulação e representação do processo de ensinar e aprender entre os
seus usuários.
Após analisarmos essas revistas, começamos a interagir com os atores da escola: professores e
alunos, pedagogos, diretores e outros, para conhecermos melhor o grupo, bem como para investigar
até que ponto a representação de conhecimento predominante nas práticas discursivas de professores
do Ensino Fundamental, sobre o processo de ensino aprendizagem, pesquisa e formação continuada,
orienta o seu cotidiano escolar.
Realizamos entrevistas com professores e pedagogas da escola e, em seguida,
promovemos outros encontros para esclarecer os objetivos da pesquisa. Os
professores escolheram, dentre as temáticas que iríamos trabalhar, aquela com que
mais se identificavam e/ou pela qual tinham maior interesse. Identificamos e
indicamos fontes bibliográficas e nos subdividimos, para que cada pesquisador
pudesse acompanhar um grupo de trabalho e registrar o percurso de suas
experiências. Começamos assim a ver registradas, pelos próprios professores, as
suas histórias.
Nos últimos encontros que realizamos, os professores, ao apresentarem os textos das temáticas que
haviam escolhido, puderam, além de registrar o currículo praticado em suas escolas, refletir
criticamente sobre o que, há algumas décadas, vem sendo proposto pelos discursos oficiais, numa
comunidade compartilhada.
Carvalho, a partir da concepção de Santos sobre a comunidade interpretativa, vem trabalhando com o
que chama de “comunidade compartilhada”. Baseada também no princípio da comunidade,
solidariedade e coletivo aponta:
[...] em direção a um projeto instituinte forjado e/ou gerado na rede de
conhecimentos concebidos (teoria) e vividos (prática cotidiana) por meio de discursos práticos que, em sua dinâmica, desvelem as relações entre
representado (objeto) – representação (objeto mental e/ou seu equivalente simbólico) – representante (conceito, teoria), ou seja, desvelem as teorias-
linguagem que, sendo produções sociais e envolvendo transmissão cultural, comportam visões de mundo que contribuem para a reprodução do instituído
ou para a produção do instituinte (CARVALHO, 2004a, p. 105)
Assim, dentre os autores que me acompanharão e subsidiarão neste trabalho, destaco Carvalho
(2004a, 2004b), que vem, por meio da pesquisa da qual participo como aprendiz de pesquisadora,
apontando a necessidade de passarmos do uso e do consumo individualizado das revistas
pedagógicas ao uso e consumo em comunidades compartilhadas, dialógicas e heterológicas.
Essa autora apresentou recentemente, em artigo intitulado “Educar na diferença: o
que as revistas pedagógicas dizem ao currículo escolar?”, um estudo em que buscou
pensar o currículo escolar a partir de produtos culturais que incidem sobre ele.
Carvalho (2004b, p. 12) considera
[...] que a questão da diferença é enfocada no âmbito dos conteúdos prescritos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), e é voltada, predominantemente, para a dimensão sociopolítica (redução do preconceito, “empoderamento” de minorias, etc.) numa abordagem que se situa entre uma postura assimilacionista, própria da versão discursiva hegemônica do outro como objeto a ser aniquilado ou conquistado; uma postura radical que, em sua versão essencialista, vê o outro como sujeito pleno de um grupo cultural; e uma postura relativista, que vê o outro como alguém a tolerar e aceitar.
Assim, propõe aos professores a problematização do que eles lêem e vêem nas
revistas, de modo que possa ocorrer, para além do consumo individualizado de tais
publicações, o surgimento de um texto articulado ao vivido coletivamente por
professores e alunos e situado na tensão entre o local, o regional, o nacional e o
global.
Após conhecermos essas e outras histórias, nós, professoras-pesquisadoras,
estaremos cada vez mais sendo provocados a ir à “caça” (autorizada ou não
autorizada), não esquecendo nosso compromisso social de continuar buscando
novos sentidos para a escola, para que de fato possamos formar sujeitos críticos que
possam escrever a nossa história com mais justiça e viver como nos ensinou o poeta:
Viver e não ter a vergonha de ser feliz...
Cantar e cantar, A beleza de ser um eterno aprendiz... Eu sei que a vida devia ser bem melhor, e será!
Gonzaguinha
2.2 DOS OBJETIVOS AOS LABIRINTOS PERCORRIDOS
Neste estudo, parti da constatação de que as escolas brasileiras têm sido o lugar da reprodução dos
modos de fazer e pensar a educação e a ciência das elites hegemônicas, o que faz com que
professores e alunos ocupem, ali, um “não-lugar” (AUGÈ, 1994). Contudo, nesse mesmo contexto
cotidiano, por meio de artimanhas, astúcias e táticas (CERTEAU, 1995) de professores e alunos,
muitos outros saberes e quereres são tecidos e enredados, fazendo a escola mais viva e
ressignificada.
Diante de tais considerações, constitui-se como objetivo principal deste estudo: Analisar como os
artefatos culturais (revistas, jornais, televisão) utilizados por alunos e professores se expressam no
currículo e no cotidiano escolar.
Tendo em vista esse objetivo, procurei identificar os artefatos culturais mais “consumidos”
pelos alunos e professores; analisar o que eles “fabricam” ao “consumirem” esses artefatos
culturais; observar e analisar de que forma os artefatos culturais “consumidos” pelos alunos e
professores são manifestados no currículo; investigar como professores e alunos instituem
espaços e tempos coletivos para a discussão de assuntos e questões que emergem da
experiência de “uso” didático-pedagógico dos artefatos culturais.
Considerando o cotidiano escolar como um espaço e tempo de prazer, de criação, de
complexidades e de diferenciação, no decorrer da pesquisa procurei estar sempre
atenta para registrar, a partir dos movimentos que o constituem, as diversas questões
importantes que ali surgiram.
Assim, constituíram-se como questões preliminares a nortear a pesquisa: De
que forma o planejamento prescrito, ou oficial, é s ubstituído por assuntos que
emergem das relações que alunos e professores mantê m com diferentes
artefatos culturais (narrativas das novelas, a semi ótica da publicidade, as
matérias jornalísticas)? Como os professores e alun os discutem os artefatos
culturais que circulam na escola? Com quem discutem ? Quando discutem?
Consideram importantes essas discussões? Por que pr ofessores e alunos
consideram importante discutir os artefatos cultura is que circulam na escola?
Quais são as atitudes dos professores quando esses assuntos emergem no
cotidiano escolar? Como é construído o currículo na escola, quais os critérios
que embasam os professores na construção curricular ?
Conforme mencionado anteriormente, este estudo desvela movimentos de interseção
entre a cultura e o currículo da escola. A pesquisa foi realizada por meio de um
estudo de caso inserido no cotidiano escolar. Entendemos, conforme Alves e Oliveira
(2002) e Ferraço (2001), que essa é a abordagem metodológica mais adequada para
este tipo de investigação, porque possibilita a apreensão de fragmentos reais da
escola e não de como se pensa que ela seja. Para isso, percorri complexos
caminhos, plurais, imprevisíveis, multidimensionais, caóticos, de ordem e desordem,
a fim de entender, sentir e analisar o meu objeto de estudo.
O estudo foi realizado nas séries iniciais do Ensino Fundamental (1.ª a 4.ª séries) de
uma escola do Sistema Municipal de Ensino de Vitória, a Escola Municipal de Ensino
Fundamental (EMEF) Maria Rodrigues Leite14, situada na região de Maruípe. Após
um ano de pesquisa nessa escola, junto com minha orientadora, dei continuidade às
minhas investigações por mais oito meses, tentando colocar o foco no meu objeto de
estudo.
Achar o foco não foi nada fácil, já que o cotidiano apresenta mil facetas. Cada instante nos revela
infinitos questionamentos e, quando começamos a registrá-los, percebemos que não nos faltarão
jamais objetos para estudos e pesquisas, pois ali, como nos ensinou Garcia (2003), é que sujeitos
encarnados lutam, sofrem, são explorados, subalternizados, resistem, usam de astúcias para se
organizarem coletivamente, criando situações de aprendizagens prazerosas e significativas para seus
alunos, produzindo assim incessante e incansavelmente a escola.
Sempre que começava a escrever, buscava em meus arquivos de fotografias e entrevistas os registros
das observações do cotidiano, para me inspirar e me fazer fiel às minhas investigações e intuições.
Entretanto, quando menos esperava, lá estava eu de volta à escola. Para rever os amigos, para ver as
novidades, o resultado dos projetos, para conferir o crescimento dos alunos, para participar das
comemorações. No dia da eleição de diretores na escola, recebi um telefonema dizendo que eu não
perdesse aquele momento. Na previsão do Conselho de Classe, perguntaram-me qual o dia em que
eu estaria na escola, pois gostariam de agendá-lo para uma data em que eu pudesse estar presente.
Outro lugar de que não conseguia me afastar era da Universidade. Muitas vezes me perguntava por
que não conseguia me afastar da sala de aula, principalmente quando o meu prazo estava
extrapolando. Já tinha cumprido todos os meus créditos e, sempre que ficava sabendo de uma
disciplina nova que estava sendo oferecida, ou de um grupo de estudos que se formava, eu me
inscrevia, pedia para participar das aulas. Nesses momentos, minha rede de conhecimentos e
interpretações ia sendo tecida, ou seja, cada apresentação de trabalho estabelecia novas relações
com o que eu estava investigando.
Diante do emaranhado de questões sobre as quais me via refletindo, sobre a escola que eu
investigava, tentava, a cada instante, não me afastar demais do meu objeto de estudo. Assim, recorri a
Esteban (2003, p. 129), que me assegurou: “[...] o cotidiano escolar é uma realidade de emergências,
14 Nome fictício, escolhido em homenagem à escola em que cursei as séries iniciais do Ensino Fundamental. As professoras e demais funcionários também receberam nomes fictícios, que foram sendo resgatados através das lembranças de algumas professoras que de alguma forma influenciaram a minha vida.
sem itinerários fixos, que faz do pesquisador um sujeito errante, em busca de perguntas e de
respostas, e sempre distante das verdades definitivas”.
Portanto, descobri que são muitas as relações possíveis, que os trajetos não são predefinidos, muito
menos lineares. A imprevisibilidade e a complexidade marcada pela multiplicidade imperam no
contexto escolar. Sendo assim, os caminhos traçados inicialmente, feitos através de traduções do real,
precisaram ser, em alguns momentos, alterados.
Bhabha (1998) ensina que pela teoria da tradução se entretecem negociação e negação, originando-se
na diferença. A tradução é instável, opera sempre com a possibilidade de ser transformada.
O meu estudo pôde ser discutido com o nosso grupo de pesquisa e, também, com a equipe da escola,
o que contribuiu muito para que o diálogo não constituísse um “monólogo disfarçado” (ESTEBAN,
2003). As discussões coletivas possibilitaram que cada um de nós trabalhasse no sentido de produzir
“significações partilhadas” (SANTOS, 2000), favorecendo a compreensão mútua e estabelecendo
redes de solidariedade.
Com o objetivo de identificar os pressupostos que embasam o currículo da escola, realizei uma análise
documental dos planos de ensino dos professores, dos cadernos dos alunos, dos cadernos de
planejamentos dos professores, de arquivos de fotografias, de livros, revistas, vídeos mais utilizados,
das propostas de passeios e/ou de aulas fora da escola, do projeto político-pedagógico da escola, da
proposta curricular da Secretaria Municipal de Educação (SEME), dos planos anuais de trabalhos, das
comunicações internas e externas que circulavam na escola, entre outros documentos.
Constantemente, algumas professoras e pedagogas entregavam-me algum material para me manter
informada do que estava acontecendo: as atas dos Conselhos de Classe, bilhetes de reunião de pais,
textos discutidos nas reuniões pedagógicas. Compreendi que quanto mais me aproximava das
pessoas, participando do que faziam, colaborando no planejamento ou nas intervenções com os
alunos, maiores possibilidades de diálogo e apresentação de trabalhos me eram oferecidas. Um dia,
observando uma professora que fazia o seu planejamento na sala dos professores, vi que ela
recortava um artigo do jornal sobre o Dia da Mentira. Solicitei o seu caderno para que eu pudesse dar
uma “olhadinha”, e a pedagoga, ao me ver encantada com aquela fonte de pesquisa, ofereceu-me
outros materiais, dizendo: “Sandra, nós temos muitos cadernos de planejamentos e de registros das
professoras. Quer que eu converse com elas para deixar você analisar os cadernos?”
No dia seguinte, ela já estava com um caderno nas mãos, dizendo que a professora me tinha
emprestado para fazer xerox.
Com objetivo de caracterizar e verificar o uso dos artefatos culturais no cotidiano
escolar, realizei entrevistas com todos as professoras de 1.ª a 4.ª série, pedagogas,
bibliotecárias, alunos, representantes do Conselho de Escola, diretora, auxiliares de
serviços gerais, entre outros.
Comecei entrevistando a pedagoga e as professoras de 1.ª a 4.ª séries. Aproveitava
o dia dedicado ao planejamento, que era considerado por elas o dia mais tranqüilo.
Porém, mesmo agendando no horário solicitado, alguns imprevistos sempre
aconteciam. Sem contar as falhas da pesquisadora: esquecer-se de verificar se havia
pilhas para substituir, no caso de finalizar no meio da entrevista, a que estava sendo
utilizada no gravador, o roteiro de entrevistas, entre outras.
A fim de que eu pudesse entrevistar os alunos, as professoras escolhiam o melhor dia
e a melhor hora, para não atrapalhar o andamento de suas aulas. Elas escolhiam
geralmente aqueles que já tinham concluído as tarefas. Porém, tive a sorte de que
alguns alunos, curiosos com o que seria uma entrevista, se oferecessem a dar o seu
depoimento no horário de recreio. As entrevistas foram realizadas com 60% dos
alunos de cada turma, ou seja, numa turma de trinta alunos, entrevistava, pelo
menos, dezoito. No turno vespertino, a escola atende a 145 alunos, 87 dos quais
foram, portanto, entrevistados.
Aconteceram, também, algumas entrevistas com os alunos de forma inesperada, pois
alguns ficavam curiosos com o movimento da pesquisadora: “Por que você está
gravando? Vai aparecer na televisão? Tia, tira uma foto de mim. Para que você está
fazendo esse trabalho?”, inquiriam alguns. Assim, tornávamo-nos amigos e, muitas
vezes, uma conversa descontraída acabava em entrevista.
Para entrevistar os demais atores do cotidiano da escola, a escolha dava-se ora por
necessidade, ora por oportunidade. Em alguns casos, os próprios profissionais
pediam para falar, como, por exemplo, uma auxiliar de serviços gerais que me
convocou para entrevistá-la, dizendo:
“Você sabia que eu sou uma das mais antigas aqui? Eu sou de uma época que eu
fazia de tudo. Não era como hoje que tem gente para limpeza, gente para abrir o
portão, professor, coordenador, pedagogo. Antigamente, quando faltava uma pessoa,
a gente tinha que se virar: eu fazia merenda, ajudava no portão e até ficava com os
meninos quando a professora atrasava.“(Tânia, auxiliar de serviços gerais).
Em algumas entrevistas, assim que terminávamos o roteiro, o bate-papo se
prolongava por muito mais tempo. Nesses momentos, eu precisava registrar as
coisas interessantes que surgiam na conversa, para não ser pega pelo esquecimento.
Por meio de observação participante, levantei grande parte dos dados a respeito do
“uso” que professores e alunos fazem dos artefatos culturais no cotidiano escolar.
Verifiquei como se organizam os espaços e tempos dedicados a discutir o que eles
produzem/”fabricam” com esses artefatos. Procurei envolver-me nos diversos
espaços e tempos do cotidiano da escola: sala de aula, reuniões, refeitório, biblioteca,
horários de planejamentos, Conselhos de Classe, hora do café, festas e
comemorações, entrada e saída das professoras e dos alunos, investigando as
oportunidades, as táticas e artimanhas criadas por elas para que os eles se
expressem, revelando o que produzem com os artefatos culturais.
Os sujeitos da pesquisa foram, portanto, todas as professoras e alunos das séries
iniciais do Ensino Fundamental e a equipe pedagógica. O propósito de estudar o
cotidiano escolar deve-se à intenção de contribuir para o desvelamento dos vários
significados das experiências de alunos e professores, possibilitando um novo olhar
sobre a prática pedagógica e o currículo.
3 CARACTERIZAÇÃO DA ESCOLA
Crianças jogando bola na rua, jovens em clima de paquera, discussões sobre o jogo
de dominó, campeonatos de baralho, estudo do vento que faz subirem as pipas,
pessoas debruçadas nas janelas analisando tudo o que acontece na praça, ciclistas
que, na passagem pela praça, não deixam de dar uma paradinha para saber das
últimas novidades, jovens que passam com a bíblia embaixo do braço, indo em
direção à igreja. Esse é o cenário que costumo ver nos momentos de entrada e saída
de alunos da escola. É constante esse movimento de pessoas, o que demonstra certa
familiaridade, um clima de amizade. Recordo-me de uma Caminhada pela Paz que
fizemos pelo bairro. Fui entrevistando, além dos alunos e professores, os moradores
do bairro. O que me chamou a atenção foi que todos paravam para ver a passeata;
não só a observavam, mas também a apoiavam, acenando com um sinal de positivo,
aplaudindo e alguns até acompanhando-nos. Uma das entrevistadas disse-me:
“Meus 11 filhos estudaram aqui e agora estão os meus netos. Esta escola é muito
boa, já me trouxe muitas alegrias e a cada ano fica ainda melhor.”
Além da observação direta, recorri a outras fontes de pesquisa para descrever a
escola. A diretora permitiu-me o acesso ao Projeto Político-Pedagógico, a
coordenadora lembrou que os planos de trabalho anual poderiam ajudar-me, uma
outra professora emprestou-me um projeto de estudo do bairro realizado por alunos e
um conjunto de entrevistas com todos os que atuavam na escola.
A professora falou muito orgulhosa do projeto que ela havia coordenado, que tinha
como objetivo conhecer o bairro Santa Marta, onde se localiza a escola:
“Sabe, Sandra, a gente faz muita coisa, são tantas que a gente até esquece. Ainda
bem que você vai usar nesse trabalho. Eu acabei não ficando com nenhuma cópia.
Na época, nós pensamos até em fazer uma revista, mas acabou não saindo.”
Esse depoimento aponta para ausência de registros e arquivos de tantas histórias
interessantes que surgem a cada instante no cotidiano escolar. É possível que esta
pesquisa tenha, de fato, capturado momentos significativos que sirvam de reflexão
para tecer a imagem das escolas.
O bairro Santa Marta está localizado na região de Maruípe, município de Vitória,
Espírito Santo, a 5km do centro da cidade. Sua topografia é acidentada, com becos e
escadarias interligando as ruas principais, pavimentadas com asfalto, por onde
trafega um grande fluxo de veículos e pessoas, notando-se a existência de muita
poluição sonora e visual.
O bairro tem algumas ruas calçadas e outras sem calçamento. Possui rede telefônica,
rede elétrica, rede de esgoto e coleta de lixo. É atendido por várias linhas de ônibus.
Na pesquisa realizada pelos alunos, a população queixava-se da falta de abrigo nos
pontos de ônibus, da falta de um terminal que fosse para Vila Velha, outro município
da área metropolitana de Vitória, e da falta de unidades de saúde, o que os obrigava
a utilizar a unidade de saúde de Andorinhas, um dos bairros vizinhos. Essas
informações foram confirmadas em entrevistas feitas com os moradores do bairro.
“O comércio é bom. Falta banco 24 horas. Posto de Saúde não temos, é carência
total. Nós somos até humilhados. No posto de Maruípe, a gente não tem prioridade.
Em Andorinhas eles dão preferência a quem mora lá. A gente marca horário e não
adianta, o atendimento é depois de 3 ou 4 dias. Nós estamos precisando com
urgência de um Centro de Saúde. Inclusive estão construindo um lá em cima.” (Rita –
representante do Conselho de Escola)
A Escola localiza-se na rua João Batista Martinho, s/n, funcionando em dois turnos. Atende a crianças
de 1.ª a 8.ª séries. Logo em frente à escola, há uma praça com quadra esportiva, árvores, bancos,
mesas, com muito movimento de pessoas. Nos seus arredores encontra-se um intenso comércio de
cabeleireiros, bares, lanchonetes, casas de material de construção, mercearias, igrejas, entre outros.
Como bem destacaram os alunos:
“O comércio funciona também como ponto de encontro, de troca de informações, enfim, de
crescimento cultural, como dizem os moradores: ‘para bater dois dedos de prosa’.”
Sempre que retorno à escola, o cheiro de minha infância reaparece, pois aquela rua
me faz lembrar a minha cidade natal. Parece que todos se conhecem com intimidade,
pois o bate-papo é constante, a velocidade das pessoas também é diferente, em
estilo câmara lenta. Entretanto, dentro da escola, o ritmo é mais veloz, principalmente
nos horários de entrada, saída e recreio. Alunos conversam, brincam, dançam. O
movimento é intenso. A direção e a coordenação utilizam um microfone para
coordenar os momentos de entrada e de retorno do recreio. Os alunos precisam fazer
fila nesses horários. São comuns os empurrões, para derrubar todos da fila ao
mesmo tempo, brincadeiras como o “pique-chute”, “porrão”. As coordenadoras
convocaram uma reunião para dividir com o grupo de alunos essas dificuldades e
eles sugeriram terminar com uma das filas ou, pelo menos, para os alunos de 5.ª a
8.ª séries. Porém a sugestão não foi aprovada, principalmente pela direção, que
afirmou já ter realizado essa experiência e que não havia dado certo. Foi solicitado,
então, o apoio dos professores nesses momentos.
O Projeto Político-Pedagógico foi elaborado em 2001 e, conforme afirmou a diretora,
precisava ser revisado. Segundo consta no Projeto, a escola atende a 498 alunos e
conta com 53 funcionários. A comunidade escolar é composta por alunos moradores
dos bairros de Santa Marta, Bairro da Penha, Resistência, São Cristóvão, Maruípe,
Centro, Cariacica, entre outros.
A comunidade, segundo informa o Plano Anual da Escola para 2004, tem alunos com
poder aquisitivo baixo e médio. Está constantemente exposta a complexos e violentos
problemas sociais, principalmente aos relativos ao uso e tráfico de drogas. Nas
entrevistas realizadas com os professores e com os pais que fazem parte do
Conselho da Escola, essa informação foi confirmada, pois muitos consideram a
comunidade carente não só financeiramente, mas também afetivamente. Relatam,
como problemas que precisam enfrentar, além do uso e tráfico de drogas, abusos
sexuais, alcoolismo, desemprego, fome, moradias inadequadas, poucas opções de
lazer para as crianças, entre outros. Portanto, a pintura idealizada por mim nas cenas
que me reportaram à minha infância não é constituída só de flores, assim como a
minha infância também não deve ter sido. Encontramos, como em qualquer outro
lugar, alguns entraves espinhosos para superar.
Vejamos alguns relatos que retratam um pouco mais a comunidade:
“Aqui temos problemas com tráfico de drogas. Infelizmente todo bairro tem. Ali na
pracinha, do mesmo jeito que tem as crianças brincando, tem uns que chegam
fumando maconha, como se estivessem em casa, sentam na maior cara de pau,
ousados, atrevidos, petulantes. Eu fico impressionada porque é um bairro em que
80% é policial. Temos aqui coronel, sargento, tenente. De vez em quando alguém liga
para os homens e a viatura passa. Mas só passa quando alguém liga. Já aconteceu,
lá no barracão (antiga sede da Escola), de alunos levarem droga escondida. A
diretora foi muito firme quando chegou aos seus ouvidos e ela, por ser muito correta e
direta com as coisas da escola, pediu ajuda e todos ajudaram. Ela descobriu que os
alunos que tinham faixa na mão levavam ali a droga para vender.” (Rita,
representante do Conselho de Escola)
No Projeto Político-Pedagógico, encontrei, logo no início, uma citação de Paulo
Freire: “Todos os saberes são indispensáveis à prática docente de educadores
críticos”. O projeto ressalta como função do professor o ser o estimulador de
aprendizagens, criando situações que levem o aluno a produzir conhecimentos e a
desenvolver hábitos de estudos no cotidiano escolar.
Ali se destaca que a escola se propõe a trabalhar com conteúdos que devem
constituir meios para desenvolver competências; que o conhecimento deve ser
interdisciplinar, contextualizado, privilegiando a criação de conceitos e a criação de
sentidos; que o currículo deve estruturar-se em rede, sendo dinâmico e organizado
por áreas de conhecimentos; e que a sala de aula deve ser um local de reflexão e de
ocorrência de situações de aprendizagem.
A estrutura curricular da escola segue as orientações da SEME. As séries
subdividem-se em Bloco Único (equivocadamente classificado de inicial e final), e de
3.ª a 8.ª séries, e seguem o modelo tradicional de seriação anual. Do Bloco Único
inicial, os alunos prosseguem para o Bloco Único final, sem retenção escolar.
A avaliação do aluno no Bloco Único é descritiva, e a do aluno de 3.ª a 8.ª séries é
expressa por meio de notas de 0 a 10. Segundo orientação do Plano Anual, os
aspectos qualitativos devem sobrepor-se aos quantitativos, valorizando o ritmo de
apropriação de conhecimentos do aluno ao longo do ano. O aluno retido em um ano
poderá avançar para a série subseqüente, dependendo do seu aproveitamento e
freqüência.
A escola, conforme descrito no seu Plano Anual, está voltada para a construção de uma sociedade
mais justa e solidária. Tem como objetivos: conscientizar o educando sobre a importância da
escolaridade no mercado de trabalho e a valorização da sua vida sociocultural; demonstrar ao aluno a
importância da preservação do patrimônio escolar e/ou público; formar pensamentos sem
discriminação de sexo, crença, etnia e classes sociais.
Identifica, ainda, como meta, a criação de modos de resolver problemas, buscando a adequação do
educando à comunidade escolar. Pretende superar o desafio de reduzir as perdas escolares (evasão e
reprovação) e, para isso, se propõe a trabalhar utilizando os princípios da Pedagogia Dialética, que
concebe o conhecimento como sendo discutido e produzido no coletivo escolar, tomando por base a
diversidade cultural dos alunos.
“Espera-se formar o aluno crítico, criativo, descobridor, capaz de tomar decisões frente às vicissitudes
próprias do mundo globalizador, no âmbito da economia, política e administração escolar pública”
(Fragmento do Plano Anual).
Essa escola foi criada no ano de 1971 e mantida pelo Governo Estadual até janeiro de 1999, quando
foi municipalizada. O nome “Maria Rodrigues Leite” é uma homenagem à primeira professora
designada para trabalhar naquela comunidade. A princípio chamava-se Escola Singular de Mulembá.
Segundo o depoimento de uma moradora, Mulembá era o antigo nome do bairro, que foi escolhido
devido a uma árvore chamada Mulemba, que existia próximo à praça. Os antigos diziam que lá
aparecia uma mula-sem-cabeça, na época da quaresma. Com o passar do tempo, acharam que esse
nome não trazia bons fluidos para o bairro e, por isso, deram-lhe o nome de uma santa: Santa Marta.
Os pais e mães dos alunos perceberam muitas melhorias após a municipalização da escola e com a
entrada da atual diretora, principalmente na alimentação, no uso de uniformes, nos professores, que se
tornaram mais presentes, e na existência regular de materiais escolares.
A EMEF Maria Rodrigues Leite tem, no primeiro piso, cozinha, refeitório, sala dos professores,
secretaria, sala de coordenação pedagógica, banheiros de alunos e professores, biblioteca, sala de
artes, sala disseriada, Laboratório de Informática e quadra esportiva. No segundo piso, ficam as salas
de aulas, as salas de coordenação, o almoxarifado, o banheiro de alunos. No terceiro piso, há um
auditório.
À entrada da Escola, há uma foto da professora Maria Rodrigues Leite, colocada na parede em frente
ao portão de entrada. Nos murais da frente da escola são apresentadas fotos das atividades realizadas
pelos alunos, ou mensagens relacionadas a temas que estejam sendo trabalhados nas salas de aula
ou a datas comemorativas. Por exemplo, no Dia da Mulher, os alunos confeccionaram cartazes com
letras de músicas relacionadas ao tema. Um grande mural enorme foi montado para o Projeto da Paz,
para o Dia do Livro, para o Dia das Mães, entre outros. Por toda a Escola encontrei cartazes expostos.
Alguns são produzidos pelos alunos e outros pela própria diretora, que é formada em Educação
Artística e diz adorar fazer trabalhos manuais. Ela disse-me, inclusive, que iria coordenar uma oficina
de amarradinho, que é uma atividade de artesanato manual destinada aos alunos de 5.ª a 8.ª série. A
Escola está sempre muito enfeitada, arrumada, limpa e cheirosa.
À frente da rampa de entrada há um pequeno “hall”, que dá passagem para a quadra. Existe nele um
portão, que se fecha nos horários de recreio e de saída dos alunos. Há um portão também na quadra,
o qual dá passagem para uma rua lateral e por onde se dá a saída dos alunos.
À esquerda do portão de entrada, estão a sala dos professores, a sala da equipe pedagógica, o
refeitório, o banheiro dos funcionários de serviços gerais, uma área de serviço, o depósito de material
de limpeza, a cozinha e a despensa de produtos alimentares; à direita, encontra-se a secretaria, o
banheiro de professores; em frente, o banheiro de alunos e o de alunas, a biblioteca, a sala de artes, a
sala disseriada e o Laboratório de Informática, no final do corredor.
A Escola não tem rampas, somente escadas. A escada do lado direito é muito apertada, o que causa
tumulto na hora de subir e descer. A falta de rampas é muito criticada pelos alunos e professores.
”É um absurdo! A secretaria se propõe a ser uma Escola inclusiva e não tem rampas nas escolas. Esta
Escola foi construída recentemente. Eu tenho uma aluna com dificuldades motoras que todos os dias,
para ela subir e ou descer, eu tenho que acompanhá-la.” (Angélica, professora)
No segundo andar, estão instaladas as salas do Bloco Único 1 e 2, a sala da coordenação, o
almoxarifado e os banheiros de alunos. Em seguida, ficam as salas da 7.ª e 8.ª séries. No corredor da
frente estão as salas da 5.ª e 6.ª séries e as salas da 4.ª e da 3.ª série. No terceiro andar, há, ainda,
um auditório com televisão, vídeo e DVD, retroprojetor e outros equipamentos.
Logo na entrada da sala dos professores há um mural, onde são afixados bilhetes, avisos, quadro de
aniversários. Nesse quadro, eventualmente, aparecem citações de autores, propagandas, fotografias e
outros. Em relação a equipamentos, a sala dos professores conta com geladeira, bebedouro térmico,
escaninho, uma mesa para café, televisão, uma mesa grande e cadeiras. Um exemplar do jornal do dia
está sempre na sala e é muito utilizado pelos professores. A Escola recebe assinaturas dos jornais A
Gazeta e A Tribuna, que são os jornais de maior circulação na cidade. Nos intervalos, é comum as
pessoas fazerem comentários sobre os assuntos que leram nos jornais e ou revistas.
Ultimamente, a televisão que está na sala dos professores fica mais tempo desligada, porém, já
presenciei professores assistindo a noticiários e a outras programações de canais locais de televisão.
Em pesquisa realizada recentemente, alguns professores consideraram inadequada a estrutura
arquitetônica da Escola, queixando-se principalmente da falta de ventilação, da sonorização, da
iluminação, da falta de rampas para deficientes, de espaços para recreação e de arborização, da falta
de lavatório no refeitório.
Algumas falas:
”Acho que todo engenheiro deveria ser professor... Tem banheiro para deficiente, mas não tem
rampa... Falta verde. A ventilação da Escola é horrível, a questão da luminosidade dos quadros...”
(Regina, professora)
As professoras, ao serem questionadas sobre os recursos didáticos disponíveis para o ensinar e
aprender, responderam que estão satisfeitas, porém, solicitaram maior quantidade de jogos e maior
número de cópias xerográficas, por professor. Em resposta, a diretora informou que o armário estava
cheio de jogos. As professoras e pedagogas não sabiam da existência desse armário e usavam
somente os jogos que elas mesmas confeccionavam, ganhavam de brindes ou reaproveitavam dos
brinquedos dos filhos.
“Eu vou juntando estes materiais... Gosto de ter muita variedade, pois muitas vezes o que eu planejo
não dá certo e eu preciso recorrer ao meu armário. Não dá para esperar o dia seguinte.” (Margareth,
professora)
No refeitório há várias mesas com toalhas de plástico decoradas e bancos de madeira. Geralmente, os
alunos se levantam para serem servidos, formando uma fila. Outras vezes, as auxiliares do refeitório
os servem à mesa. A Escola dispõe de uma cantina, onde se vendem bolos, biscoitos, refrigerantes e
outras guloseimas. O lucro da cantina vai para secretaria da Escola.
Em todas as janelas existem grades. Nas entradas e saídas há portões de ferro que costumam ser
fechados após a entrada dos alunos nas salas. Segundo depoimento da direção, todas as escolas da
Prefeitura têm grade e vigilância devido ao grande número de assaltos que vêm sofrendo.
Esta Escola conta com os seguintes profissionais no turno vespertino: uma diretora, duas pedagogas,
duas coordenadoras, quatorze professores, três merendeiras, quatro auxiliares de serviços gerais,
quatro porteiros que se revezam em escalas, uma bibliotecária e um pedagogo que ocupa a função de
auxiliar de biblioteca, uma coordenadora do Laboratório de Informática, dois funcionários da secretaria
e uma tesoureira.
Uma das pedagogas no turno vespertino atende as séries iniciais e a outra, as séries finais do Ensino
Fundamental. Apesar de a pesquisa ter como foco as séries iniciais do Ensino Fundamental, as
contribuições da pedagoga de 5.ª a 8.ª série e de algumas professoras desse segmento foram muito
importantes. Os profissionais da Prefeitura Municipal de Vitória (PMV) cumprem uma carga horária de
30 horas semanais, dividida entre aulas, planejamento, formação continuada, entre outras funções.
Marta atuou como diretora na Escola Maria Rodrigues Leite durante quatro anos. Veio
para cá na época da municipalização. Aposentou-se ao completar 31 anos de PMV.
Nesse percurso, trabalhou como professora de Educação Artística e como diretora
em outras escolas da Rede Municipal. Conforme depoimento de alguns pais de
alunos, a Escola melhorou muito durante a sua gestão.
”Antes os professores faltavam demais, e os diretores não se preocupavam em
arrumar um substituto. Houve melhoria em relação ao material escolar. Marta nunca
deixou faltar nenhum material. A Escola freqüentemente está limpa e arrumada.
Nossa Escola melhorou 100% na administração dessa diretora. A participação dos
pais ajuda muito. Eu, por exemplo, sou do Conselho Fiscal, então, sempre participo
de tudo, dou sugestões, fico sabendo do dinheiro que entra e do que será comprado
com ele.” (Rosângela, do Conselho de Escola)
Leny, atual diretora, foi eleita em julho deste ano, tem cinco anos de PMV. Em 2001, fez o seu primeiro
contrato para pedagoga. Atuou como pedagoga e coordenadora de turno porque, na época, a
pedagoga exercia as duas funções. Desde que assinou o contrato, está nesta Escola. Fez concurso
para professor de 1.ª a 4.ª séries (PA) e para pedagoga. A sua classificação como pedagoga no
concurso fez com que ela demorasse a ser chamada. Assim, começou a trabalhar num Centro
Municipal de Educação Infantil (CMEI), com uma turma de crianças de 4 anos: Jardim II. Conseguiu,
neste ano, uma extensão e atuou como professora de 3.ª série. Na cidade em que morava era diretora
de uma escola. Veio para Vitória cursar a pós-graduação (Especialização) em Educação pela UFES,
um curso presencial todo de dois anos. Ela jamais imaginara que fosse voltar a ser diretora, pois assim
que começou a trabalhar como professora em um turno e pedagoga em outro, por necessidade, para
melhorar o salário, percebeu que gostava mesmo era da sala de aula. Fez quatro períodos de Ciências
e Matemática, depois parou e entrou para cursar Pedagogia, Supervisão e Magistério.
Isa, pedagoga de 5.ª a 8.ª séries do turno vesperti no, trabalha há dois anos na
Escola. Desde 1990, ela está na Prefeitura, onde en trou por contrato. Em 1991,
prestou concurso e ingressou como professora de 1.ª a 4.ª séries, até 1997. Em
1995, fez outro concurso, passando a trabalhar tamb ém como pedagoga. Atuou,
ainda, no Órgão Central. Em 2000, retornou para a E scola e, dois anos depois,
iniciou o curso de Mestrado, na UFES. Quando sua li cença terminou, ela
retornou para a Escola.
A pedagoga de 1.ª a 4.ª séries demorou a chegar à E scola, e Isa ficou
cumprindo as suas funções, atendendo e apoiando tod os os professores.
Geralmente é ela quem coordena as reuniões de estud o, que passaram a ser
nas quintas-feiras, com duração de 60 minutos.
Na entrevista realizada, ela relatou o seu percurso como professora e como
pedagoga da Prefeitura:
“ Como professora da rede pública, eu já tive pedagog o com quem eu não
conseguia estabelecer parceria, então eu ficava aba ndonada, eu era sozinha
para fazer tudo. E seguia o livro didático. O pedag ogo só me chamava para me
pedir para prestar contas; eu até dizia que era só ele pegar a minha pauta para
ver. Já tive pedagogos de sentar comigo e discutir o que íamos fazer e assim
estabelecer uma parceria. Eu acho que é esse o pape l que ele deve assumir.
Quando acontece o trabalho integrado, a gente conse gue pensar e produzir
junto. É tudo de bom, a gente sai da Escola superfe liz. Mas, na maioria das
vezes, não dá tempo para eu ir para sala de aula, p orque, enquanto eles estão
lá, eu já estou planejando com outros . Meu primeiro trabalho com os
professores é de sedução, de uma aprendizagem difer enciada, de trabalhar de
outra maneira, de ver o ensino de uma outra forma, de quebrar mesmo esse
paradigma. Se é difícil quebrar na gente, desconstr uir, mesmo, após tanto
tempo de estudo e pesquisa, imagine nos professores que ainda não tiveram
essa oportunidade!”
Maria, pedagoga de 1.ª a 4.ª séries, ingressou este ano na Prefeitura, e seu contrato vence no final do
ano. Fez Pedagogia e atualmente está cursando uma pós-graduação em Psicopedagogia. Na
entrevista, ela disse que sempre gostou de estudar. Trabalhou alguns anos como professora, mas
esse era o seu primeiro ano de experiência como pedagoga. Atualmente está na mesma Escola como
professora no turno matutino. A sala de aula faz com que ela se sinta mais realizada, pois percebe
imediatamente o resultado do seu trabalho.
Bárbara, professora da 3.ª série, chegou este ano à Escola. Antes, ela foi professora
de Educação Infantil. Já trabalhou para o Estado como professora do Ensino
Fundamental. Trabalhou por dois anos na Educação Infantil, por comodidade, como
afirma. Relatou que não conseguiu adaptar-se nesse segmento, por ter passado por
experiências muito ruins:
“O professor de Educação Infantil é visto pela comunidade como uma babá e isso
dificulta o trabalho. A gente não consegue controlar 25 crianças ao mesmo tempo.
Você sempre faz o máximo que pode, mas tem hora que por tudo que acontece nós
somos os culpados. Se você virou e a criança caiu, a culpa é da professora.”
Esse foi um dos motivos que a levaram a escolher o segmento de 1.ª a 4.ª séries. É
formada em Pedagogia e pós-graduanda em Psicopedagogia.
Inês, professora do Bloco Único 1, também trabalha nesta Escola pela primeira vez. Está na rede
municipal há dois anos e trabalha em apenas um expediente. No ano passado, fez extensão de carga
horária. Trabalhava no CMEI, na sala do Pré. Tem cinco anos de magistério e se considera pouco
experiente. Antes de ser professora, foi secretária de uma empresa que não tinha qualquer relação
com a educação. Resolveu fazer Pedagogia, por se considerar uma pessoa muito fechada e com
dificuldades de comunicação. Estava desempregada e precisava ter um curso superior. Antes,
pensava que, pela experiência que já tinha como secretária, poderia trabalhar como secretária escolar.
Porém, começou a fazer inúmeros cursos até surgir a oportunidade de assumir a sua primeira turma.
Sobre essa experiência, ela relatou:
“Menina, que tristeza! Eu não tinha nenhuma experiência. Eu não tinha o magistério, e a faculdade é a
aquela coisa teórica, parte do princípio de que você já sabe tudo. Aquelas orientações básicas de
como trabalhar, sugestões de atividades, quais jogos usar, eu nada sabia. Então, eu saí da faculdade
e corri atrás disso.”
Maria Helena, professora do Bloco Único 2, é graduada em História. Escolheu o curso
de História por influência de uma professora, porém nunca lidou com turmas de 5.ª a
8.ª séries. A sua intenção era, após terminar a faculdade, trabalhar em um período
com turmas de 1.ª a 4.ª e, no outro, de 5.ª a 8.ª séries. Porém isso ainda não
aconteceu. Ao passar no concurso para a Prefeitura e para o Estado, começou a
trabalhar em um CMEI de manhã e numa sala de 1.ª série, no Estado, à tarde. Está
nesta Escola há três anos.
Roberta, professora da 4.ª série, leciona nesta Esc ola há três anos e sempre
com turmas de 3.ª ou de 4.ª série.
Denise, professora da 2ª série, ingressou na rede em 1991. Há dois anos está na
Escola. No ano passado, foi professora da 4.ª série. Trabalha em dois expedientes,
com séries diferentes. Solicitou afastamento (licença médica), por estar com lesão por
esforço de repetição (LER). Temporariamente, está sendo substituída por outra
professora.
Regina, professora de Inglês, tem 22 anos de magistério. Em 1998, trabalhou no
Maria Rodrigues Leite como professora de Português, mas foi chamada para ser
somente contratada, porque a sua pontuação no concurso tinha sido muito baixa. No
concurso seguinte, ela não quis tentar para Português pelo fato de a concorrência ser
muito grande. Foi assim que começou a lecionar Inglês. É candidata a diretora em
uma outra escola.
Margareth, professora do Bloco Único 2, é formada em Pedagogia pela UFES, pós-
graduada em Planejamento Educacional, trabalhou na Prefeitura Municipal de Vila
Velha (PMVV), durante nove anos. Atualmente trabalha pela manhã na Serra e, à
tarde, nesta Escola. Trabalha com as séries iniciais do Ensino Fundamental já há
quinze anos. O desafio deste ano tem sido trabalhar com tantos alunos com
necessidades educativas especiais na mesma sala.
Fátima é formada em Geografia pela UFES. Está coordenando o Laboratório de Informática. O seu
contrato é temporário, o que considera muito ruim, porque ela fica sempre planejando como será a sua
situação funcional depois do contrato e, quando começa a se adaptar, precisa sair.
Rita, professora de Educação Física, também é contratada. Formada por uma faculdade particular,
sente-se muito animada com o trabalho porque ainda é jovem e recém-formada. Considera que os
profissionais de Educação Física precisam defender a importância do seu lugar na Escola.
”Para você ter uma idéia, os alunos agora passaram a dizer que não gostam da minha aula, para que
os professores não usem a aula de Educação Física como castigo.”
Como dito anteriormente, a Escola tem sempre seu portão fechado, mas, com um simples toque no
portão, os porteiros atendem, com muito acolhimento. Na portaria trabalham Matias, Pedro, Carlos e
Leandro. Eles são funcionários do Grupo CJF, Conservadora Juiz de Fora, que presta serviços à
Prefeitura de Vitória.
Matias é o porteiro do turno vespertino, porém, algumas vezes, a escala o manda cobrir outro turno,
sendo substituído por outros porteiros no período da tarde. Está nesta Escola há três anos e a sua
função é cuidar do patrimônio, evitar as brigas de alunos, fazer o serviço de segurança. Antes, ele
trabalhava em lojas e “shoppings”. Gosta mais de trabalhar em escolas, por ser menos arriscado.
Considera o seu trabalho muito tranqüilo, e declara que os alunos com necessidades especiais
precisam de mais atenção. As questões que costumam dar mais trabalho, segundo ele, dizem respeito
à agitação de alguns alunos, quando eles querem sair sem autorização das coordenadoras, insistem
em tomar chuva e brigam. Nesses momentos, ele interfere e pede o apoio das coordenadoras.
Na secretaria trabalham Valéria, secretária escolar, Wanilson, auxiliar administrativo, Cinara, Alza e
Beatriz. Beatriz atualmente é tesoureira e candidata a diretora da Escola.
A secretaria é um local de fácil acesso. Professores e alunos, sempre que precisam, solicitam e
conseguem o apoio do pessoal do setor. Certo dia, vi uma aluna que é portadora de deficiência física
parada à porta. Perguntei-lhe se eu podia ajudá-la e ela me disse que queria ficar com a Valéria,
porque no pátio ela poderia cair e se machucar. Perguntei à secretária se ela podia entrar e
compreendi que já era rotineira a presença de alguns alunos na secretaria, por sua própria vontade:
“Há dias que a gente precisa ajudar, pois as coordenadoras estão ocupadas, as pedagogas estão
atendendo professores. Então alguns alunos ficam aqui, para fazer uma tarefa, para aguardar a
coordenadora.” (Valéria, secretária)
No início do ano, a biblioteca estava sendo coordenada pela bibliotecária Fernanda e pela estagiária
de Pedagogia, Paula. Durante quase todo o primeiro bimestre, a biblioteca estava ocupada com os
livros didáticos, que não podiam ser entregues aos alunos porque não havia exemplares suficientes, o
que dava um aspecto de desorganização ao ambiente.
A bibliotecária, além de trabalhar nesta Escola, atuava também em
outras escolas da Prefeitura. Em entrevista realizada, disse usar no
seu cotidiano muito livros e revistas e que, para ela, isso já era
automático. Sempre que encontrava algum material interessante,
lembrava-se dos professores e mandava-lhes cópias, não só para
eles, mas também para os pedagogos, principalmente para aqueles
que se mostravam mais interessados.
Segundo, ainda, o relato da bibliotecária, os professores costumavam usar mais o material quando ela
o levava à sala, de forma mais direcionada, por exemplo, alguma matéria sobre um tema que eles
estivessem trabalhando. Considera que o uso das revistas, por parte do corpo docente, ainda é pouco
disseminado.
“Acho que já é uma cultura nossa de comodismo: tanto na escola pública quanto na particular é a
mesma coisa, se não der na mão, eles não vão. É de se contar nos dedos aqueles que freqüentam a
biblioteca. Tem que ser um trabalho muito direcionado mesmo. Os professores trabalham às vezes em
três jornadas de trabalho, então fazer a cópia dos materiais facilita. Eu não consigo, tendo que
trabalhar em três escolas, fazer tudo que eu poderia e gostaria. Até porque eu trabalho com estagiárias
que não têm o mesmo sistema de valores, possuem visões diferentes, e não dá para acompanhar
muito bem o trabalho delas.
Na entrevista, a bibliotecária disse ter um agendamento com as turmas de 1.ª a 4.ª séries e que os
professores de 5.ª a 8.ª séries usavam o espaço da biblioteca para dar aulas diferentes.
Logo no início do ano, a pedagoga a convidou para dar uma palestra aos professores, sobre a
importância da biblioteca no enriquecimento das práticas pedagógicas. Nessa reunião, houve uma
polêmica sobre o dia fixado para o uso da biblioteca para as turmas de 1.ª a 4.ª séries. Os professores
de 5.ª a 8.ª séries, juntamente com a pedagoga, diziam que, se os professores aceitassem os horários
com dias fixos, isso impediria aqueles que não estão todos os dias na Escola de usar o espaço. Alguns
professores disseram que só retornariam à biblioteca quando tivessem os seus horários fixos, porque
“aquele negócio de marcar dificulta muito”.
Fernanda considera que os artefatos culturais que a biblioteca oferece, como livros, revistas,
enciclopédias, jornais, dicionários, entre outros, enriquecem demais o processo de aprendizagem e o
currículo da escola, e afirma:
“A aula, sem estas outras possibilidades, acaba ficando maçante. A diversidade das fontes de
pesquisa sempre contribui. Por exemplo, numa aula de História, o professor vai falar do
Descobrimento; se ele usa diferentes fontes de pesquisa, possibilita que o aluno faça comparações.
Mostra que um autor aborda a História de uma forma e outro de outra. Isso faz com que o aluno reflita,
e não fique apenas na decoreba..”
No mês de maio, houve uma mudança significativa na biblioteca. A Prefeitura
contratou mais bibliotecários e cada escola passou a dispor de uma bibliotecária fixa.
Nesta Escola, além da nova estagiária, chegou também um pedagogo para trabalhar
no setor. Em menos de uma semana, a biblioteca apresentava outro aspecto e,
conseqüentemente, passou a ser muito mais freqüentada pela comunidade escolar.
Segundo informação da pedagoga, a próxima meta seria ampliar o seu acervo.
Quanto aos alunos, são 558 matriculados na Escola, 282 dos quais matriculados no turno matutino e
270, no vespertino.
Em pesquisa realizada em 2004, a maioria dos professores considerou como positivos os laços de
amizade e a predisposição de alguns alunos para a ação participativa. No entanto, uma característica
citada foi a violência física e verbal entre eles. Os professores afirmam que procuram resolver essa
questão estimulando o trabalho em grupos. Recorrem, ainda, segundo dizem, à leitura de histórias
sobre temas humanistas, atividades auto-recreativas e auto-organizadoras, como ajuda mútua entre os
colegas, orações coletivas, solução coletiva e reflexiva para os conflitos surgidos.
O Plano Anual de 2005 foi elaborado pela pedagoga de 5.ª a 8.ª séries e pela diretora, pois, na fase da
elaboração, a pedagoga de 1.ª a 4.ª séries ainda não tinha chegado à Escola. Segue abaixo um trecho
da sua parte introdutória:
“Trabalhar com formação integral de crianças e adolescentes não é um processo simples, nem
mecânico, onde se utilize a mera repetição de mecanismos e modelos já testados de maneira acrítica,
sem considerar que os seres são únicos, singulares, ímpares, com subjetividades em permanente
processo de construção e reconstrução [...] e, além disso, que estão em constante mutação. Exige de
nós educadores um pensar mais sério e mais reflexivo de nossas atuações e ações. Conscientes de
que o tema inclusão/diferenças [...] é uma necessidade que todos temos de estar interagindo no e com
o mundo, exige de nós muito cuidado com nossas ações e muita ação-reflexão-ação, um olhar que
exige que se vá da prática para a teoria e da teoria para a prática, entendendo a efemeridade do
mundo. Sabendo, então, da necessidade de pensar com critério/cuidado/zelo/respeito e, por que não?,
carinho, as ações a serem desenvolvidas na Unidade de Ensino em que estamos atuando, e
lembrando sempre da nossa responsabilidade na formação acadêmica dos alunos, do nosso
compromisso com seus desenvolvimentos cognitivos e afetivos [...] todo ser humano tem, sente e
precisa estar incluído no mundo, quer seja no âmbito educacional, familiar, profissional ou outro, a fim
de realizar seus sonhos, desejos e objetivos. Pensamos de maneira coletiva as nossas ações e o
processo de ensino-aprendizagem por meio de reflexões e avaliação de nossas ações. Assim,
caminhamos na construção constante e contínua de nosso Plano de Ação para 2005, lembrando que
ele não está fechado, muito pelo contrário, está aberto a um repensar porque nossa ‘matéria prima’ é o
ser humano”.
No Plano de Ação, aparece como objetivo geral o propiciar um ambiente favorável ao desenvolvimento
e à criação de estratégias e práticas pedagógicas, à previsão de situações de aprendizagens que
favoreçam a organização dos conhecimentos escolares em relação ao tratamento da informação,
articulando diferentes conteúdos em torno de hipóteses, de maneira que facilitem aos alunos e aos
professores se perceberem como autores e atores do fazer pedagógico.
Estariam os ambientes escolares possibilitando a alunos e professores serem autores e atores da
prática pedagógica? Recordo-me do dia em que a pedagoga recebeu uma carta da SEME,
determinado a alteração da data da festa junina no calendário escolar. Ela discutiu a carta com as
professoras e a direção, argumentando que não concordava com essa determinação, pois a festa
junina já estava agendada com a comunidade escolar, e que o grupo não achava justo trabalhar em
um sábado sem receber para isso. Todos concordaram em manter o dia já previsto, enviando uma
carta-resposta à Secretaria Municipal.
Outras situações como essa aconteciam na relação pedagogo/professor, professor/aluno, ficando
evidente as burlas e artimanhas de todos para saírem do “não-lugar” (AUGÈ, 2003) e lutarem pela
autoria de seu trabalho. Porém, nem sempre isso era possível. Às vezes desistiam e aceitavam
passivamente as determinações, assumindo o lugar da reprodução e da repetição.
Após a avaliação do Plano Anual de 2004, pôde-se verificar que muitos projetos que estavam tendo
um bom andamento precisaram ser interrompidos, por falta de apoio da SEME. Os projetos, que são
criados a partir das necessidades, vão aparecendo no cotidiano escolar. Discute-se com as
professoras a sua divulgação e a mobilização do projeto com a comunidade. Vejamos alguns
exemplos:
PROJETO DE LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTO – Incentiva variadas formas de
expressão nas diferentes disciplinas, como eixos articuladores: a oralidade, a leitura e
a escrita. Este projeto desenvolve-se com bons resultados, ampliando-se para a
interdisciplinaridade, por meio das múltiplas linguagens trabalhadas nas aulas, que
são coordenadas com as professoras, em parceria, para desenvolverem atividades a
partir de filmes, leituras de entrevistas, jornais, revistas e produção de teatro, de
textos, de historinhas, entre outras, atividades que têm por objetivo a ampliação do
olhar do aluno, do seu senso crítico, e valores de solidariedade e de cooperação.
PROJETO ÁGUA, FONTE DE VIDA, RESPONSABILIDADE HUMANA – Convênio
com a Cia. Vale do Rio Doce. Foram desenvolvidas atividades variadas, da
reciclagem do lixo a visitas a nascentes, passeios em parques e praças, plantio de
plantas ornamentais e paisagísticas, de acordo com o espaço físico da escola,
criação de peixes e girinos, reciclagem de garrafas de refrigerante, maquete de
nascentes de rios e suas margens, passeata em prol da conservação do meio
ambiente e pela paz das pessoas e do planeta, entre outras mais. O objetivo maior
vem sendo a formação de indivíduos como cidadãos mais sensíveis às demandas da
natureza e atentos à necessidade dos cuidados ambientais, ou seja, comprometidos
com a preservação do meio-ambiente. Aliado a isso, o desenvolvimento da
capacidade crítica e criativa dos alunos e a apropriação dos conteúdos escolares.
PROJETO SAMBA E MANIA – Existe há três anos e vem cada vez mais sendo solicitado que se
façam apresentações, objetivando o crescimento cognitivo e afetivo dos que nele estão envolvidos,
contribuindo para melhorar as relações tanto na comunidade escolar como na comunidade onde são
feitas as apresentações. Colabora, assim, para o enriquecimento cultural e social de uma clientela que
tem tido pouco acesso à cultura. É muito relevante para que uma clientela que está exposta aos riscos
de uma vida ociosa se ocupe com uma atividade de enriquecimento cultural, o que vem em muito
acrescentando à sua produção intelectual e ao seu processo de aprendizagem.
PROJETO DE CAPOEIRA – Esse projeto tem dado uma efetiva contribuição para a formação integral
dos alunos, promovendo a construção/reconstrução da sua auto-estima, disciplina, organização,
autocontrole, oportunizando assim um crescimento afetivo-psíquico-motor.
PROJETO PAZ A GENTE SONHA, A GENTE FAZ. O tema foi proposto pela SEME para ser
desenvolvido durante todo o ano letivo, porém cada escola planejou as suas próprias atividades,
ações, discursos e projetos.
Dessa forma, no início de março, a escola propôs uma manhã e uma tarde quando
todos, a partir de notícias de jornais e revistas, leriam e produziriam textos, painéis,
cartazes, murais, entre outros, como formas de implementação coletiva do projeto
“Paz a gente sonha, a gente faz”.
A partir daí, foi organizado um cronograma com todas as ações que seriam realizadas
durante o ano e que poderiam ser alteradas, conforme demandas do cotidiano. Foram
também implementados novos projetos, como Múltiplas Linguagens, Despertando e
Formando Alunos-Pesquisadores, Estrangeirismo, Oficinas Profissionalizantes, entre
outros.
Algumas imagens da escola:
Foto 1 : A cozinha.
Foto 2 : A portaria da escola.
Foto 3 : A quadra de esportes: ensaio para a festa junina.
Foto 4 : A biblioteca.
Foto 5 : O refeitório.
Foto 6 : Na sala dos professores, homenagem à professora grávida.
4 O “OLHAR” IMPLICADO DA PESQUISA SOBRE O USO E O CONSUMO DOS PRODUTOS CULTURAIS NO COTIDIANO ESCOLAR
Nas minhas andanças investigativas à procura de entender como professores e
alunos usam os diversos produtos culturais e de que forma o uso e o consumo
desses produtos expressam e retratam o cotidiano e o currículo das escolas, utilizei
como recursos para a coleta de dados entrevistas, observações, interação nos
diversos espaços e tempos da escola, além de fotografias, para registrar as astúcias,
as táticas e as estratégias dos praticantes do cotidiano escolar.
Na escola, a cada instante, dependendo do olhar de cada um, novas imagens e
narrativas iam surgindo de diferentes formas: umas mais aparentes, outras menos
evidentes, como num movimento de entrar e sair do foco. Ora algumas cenas,
vozes, cheiros, cores chamavam mais a minha atenção, ora outras surgiam com
tanta intensidade que roubavam a cena anterior. Ficava encantada e, ao mesmo
tempo, espantada e preocupada com todos os acontecimentos que ia vivenciando.
Não é à toa que os professores vivem queixando-se da falta de tempo, pois é
impossível participar de todos os movimentos inventados pelos alunos, além
daqueles que elas próprias propõem e criam. Quando não dava conta de registrar
tantas situações interessantes e significativas, lembrava-me da música dos Titãs:
“[...] o acaso vai me proteger [...]” Lembrava-me, ainda, da minha orientadora,
sempre atenta para que eu não me desviasse do meu objeto de estudo. Entretanto,
era impossível ignorar a quantidade de questões que continuamente emergiam do
cotidiano e foi exatamente isso que me fascinou: esse furacão de acontecimentos.
Como bem expressou uma professora, arregalando os olhos e rindo: “A escola tem
este tamanho mesmo, Sandra, ... infinito.”
Como o meu objeto de estudo era o uso dos artefatos culturais pelos atores/
protagonistas do cotidiano escolar, fiquei atenta a diversos momentos: situações nas
salas de aula em que professoras e alunos utilizavam propagandas contidas em
revistas, artigos, fotos de jornais, imagens computadorizadas, figuras em geral; idas
dos alunos e professoras à biblioteca, ao Laboratório de Informática; saídas dos
alunos da escola para visitas de estudo; hora do recreio no pátio, entre outros.
Foi também uma professora que me lembrou um ditado popular que ouvi muito na
minha infância e que foi ali ressignificado: O que os olhos não vêem o coração não
sente.... Durante a pesquisa, exercitei/trabalhei/transformei constantemente o meu
olhar. Muitas vezes, ao observar a complexidade do cotidiano, fazia os meus
registros, as minhas análises e, ao dialogar com autores, através das leituras
especializadas, e com os autores e atores da escola, aquele meu olhar inicial ia
transformando-se e percebendo múltiplas possibilidades de problematização, de
interpretação, de desvelamento de imagens, narrativas, conhecimentos e
sentimentos.
O termo possibilidades é aqui utilizado com a conotação dada por Ferraço (2005, p.
17):
[...] potencialidades do imprevisível, do não conhecido e controlado. Nesse sentido, não estamos nos valendo de projeções utópicas idealizadas ou da idéia de futuro como predestinação. As possibilidades aqui defendidas são as do presente, do vivido, não dadas, mas possíveis, nos aproximando da idéia de utopia positiva, de Edgar Morin.
As fotografias foram sempre a minha fonte inspiradora quando começava a fazer os
registros no diário de campo. Fotografia para mim sempre foi paixão, registro,
memória, história, e nos momentos de pesquisa não foi diferente. Não queria abrir
mão de dialogar com mais essa fonte de informação e significação, pois acredito que
as imagens contêm elementos que possibilitam as mais complexas leituras.
Além de sair fotografando e revelando novas imagens, gostava de verificar as fotos
que chegavam aos murais, ou os cartazes produzidos pelos alunos e professoras,
pois sabia que essas produções também expressavam o currículo da escola (SILVA,
2000). Assim, fui selecionando muito material: fotos, bilhetes, textos, manchetes,
propagandas, revistas, registros, entre outros. Algumas professoras ofereciam-me
amostras das produções dos alunos, como exercícios de interpretação, sugestões
ou comentários. Foram amostras de escritas, desenhos, atividades xerografadas,
imagens, textos ou citações que circulavam nas salas de aulas. A pedagoga da
escola também se integrou a esse movimento, trazendo-me o que circulava na sala
dos professores, nas correspondências para as famílias, nos Conselhos de Classe e
em outras situações que ocorriam na escola. Geralmente essas imagens faziam-me
percorrer novos caminhos. Quem as fez? Em que contexto? O que significam? Para
que servem? Que possibilidades temos a partir dessas produções? Assim, o
enredamento da pesquisa foi acontecendo...
Como eu estava sempre com a máquina fotográfica nas mãos, pude registrar muitas
situações interessantes. A dificuldade maior foi selecionar as melhores fotos para
representar os numerosos acontecimentos daquele cotidiano tão movimentado e
efêmero. Todas as fotos que olhava, tentando eliminar algumas, faziam-me lembrar
uma cena, um acontecimento, um significado que eu considerava importante. Ao
encontrar fragmentos que representavam o meu pensamento surgia outra questão a
ser resolvida: em que lugar este depoimento será mais evidenciado? Eu gostaria de
que todas as fotos e narrativas que estava selecionando pudessem revelar o seu
efeito sobre o meu pensamento e o meu sentimento e expressar as emoções do
cotidiano que venho desvelando e pesquisando.
Benjamin (1985) ensinou-nos que, ao narrarmos os acontecimentos, sem fazer
distinção entre os grandes e os pequenos, estamos levando em conta que nada do
que aconteceu um dia pode ser considerado perdido para a história.
Assim fiquei atenta aos detalhes; procurei ouvir as alegrias, as queixas, as
decepções, as tentativas, as vitórias e conquistas para tecer os significados. Tenho a
certeza de que outros sentidos e significados podem ser dados pelos diferentes
leitores deste texto, pois, como nos ensinou Alves (2001a, p. 9) citando Gombrich:
[...] a significação de uma imagem permanece em grande parte tributária da
experiência e do saber que a pessoa que a contempla adquiriu
anteriormente. Neste tocante, a imagem visual não é uma simples
representação da realidade e, sim, um sistema simbólico.
Portanto, as minhas análises estão imbricadas nas redes de significação de minhas
experiências que, possivelmente, entrarão em inúmeras outras redes de
significados. Ou seja, muitas fotografias nos informam, representam fatos, ações.
Servem para nos surpreender, produzir significações, criar sentidos, despertar
desejos, resgatar a memória de muitas alegrias ou de tristezas vividas. Tenho ainda
muitas fotos e também registros de narrativas que representam infinitas histórias que
poderão ser analisadas por diversos interlocutores, ou por mim mesma, em outras
ocasiões.
Fui buscar em Barthes (1984, p. 13) algumas considerações fundamentais para o
aprimoramento do meu olhar e das minhas escolhas. Em A Câmara Clara, o autor
considera a fotografia inclassificável, relacionando-a com outras formas de
representação. Para ele, “[...] a fotografia repete mecanicamente o que nunca mais
poderá repetir-se existencialmente”. Ele questiona, ainda, o que nos leva a fotografar
tais momentos e não outros. Outros fotógrafos teriam feito as mesmas escolhas?
Para Barthes, uma foto pode ser objeto de três práticas, emoções e intenções: o
fazer, o suportar e o olhar. Para ele, o “operador” é o fotografo; o spectador somos
todos nós que compulsamos nos jornais, nas revistas, nos álbuns, nas coleções de
fotos; o spectrum da fotografia é o alvo, aquilo que é fotografado.
Como Barthes (1984, p. 39), eu também decidi analisar as fotos porque me sentia atraída por
algumas cenas/imagens do cotidiano pesquisado. Aprendi e me identifiquei com esse autor quando
afirma: “como spectador, eu só me interessava pela fotografia por sentimento, eu queria aprofundá-la,
não como uma questão, mas como uma ferida: vejo, sinto, portanto noto, olho e penso”.
O mesmo autor distingue dois de seus interesses pela fotografia: o studium e o
punctum:
Para reconhecer o studium é necessário fatalmente encontrar as intenções do fotógrafo, entrar em harmonia com elas, aprová-las, desaprová-las, mas sempre compreendê-las, discuti-las em mim mesma, pois a cultura (com que tem a ver o studium) é um contrato feito entre criadores e os consumidores. Já o punctum de uma foto é, para ele, o acaso, as associações subjetivas que vêm da cena nos ferir, é o “detalhe” das fotos (BARTHES, 1984, p. 48).
Barthes conclui dizendo que são duas as vias da fotografia: a louca e a sensata. A
louca, retratando o realismo absoluto, original, e a sensata, retratando o realismo
relativo. Cabe ao indivíduo escolher, submeter seu espetáculo ao código civilizado
das ilusões perfeitas, ou afrontar nela o despertar da intratável realidade.
Penso como Monteiro (2001, p. 31), que afirma: “Se as imagens vêem com os olhos
que as vêem, vemos o que pensamos”. A autora, citando Santos (2000), questiona:
se somos cegos, por que vemos tão facilmente a cegueira dos outros e por que
razão é tão difícil aceitar a nossa própria cegueira? O que é muito comum nas
nossas relações é enxergarmos nos “outros” as nossas questões. A autora sugere
que sejam criadas, no processo de aprendizagem e de ensino, redes de
“participação não cegas”, ou seja, redes que nos permitam ver nos olhos dos outros
o que eles vêem em nós, a fim de rompermos com a cegueira herdada pela
modernidade, que julga ver o conhecimento sem perceber a multiplicidade e a
complexidade dos acontecimentos em que nos encontramos mergulhados.
Precisamos superar as dicotomias, as hierarquizações e classificações ainda
presentes nas escolas, para deixar emergir seus movimentos instituintes15 e o
hibridismo, que apontam para um jogo permanente entre emancipação e regulação,
no movimento político da escola.
Recorrendo a Kellner (1995), que nos indica que um dos insights da teoria pós-
moderna é a ênfase no papel central da imagem na sociedade contemporânea,
considero fundamental que a educação esteja atenta à cultura das imagens. A todo
instante recebemos mais imagens em nossa vida cotidiana: revistas, TV, outdoors,
anúncios, cartazes, street tvs. Estamos cercados de imagens e precisamos aprender
a lê-las criticamente. Kellner (1995, p. 109) nos ensina que:
Ler imagens criticamente implica aprender como apreciar, decodificar e interpretar imagens, analisando tanto a forma como elas são construídas e operam em nossas vidas, quanto o conteúdo que elas comunicam em situações concretas.
No dia-a-dia, muitos pais, mães e profissionais, preocupados com o que os filhos/alunos ouvem,
vêem, lêem na TV, no cinema, na rua, pensam que a solução para o contato prematuro com temas
adultos seria apenas não deixar que seus filhos assistam a certos programas. Através desta
pesquisa, percebi que alunos e professores sentem necessidade de dialogar sobre o que estão
fabricando com os produtos culturais que estão sendo utilizados por eles. Gostaria de citar mais uma
vez Kellner (1995, p. 127) para sugerir com ele que: “[...] o ensino de um alfabetismo crítico em
relação à mídia é um excelente meio para fazer com que os estudantes falem sobre sua cultura e
experiência, para articular e discutir a opressão e a dominação cultural”.
15 Assim como Linhares (2003), entendo por movimentos instituintes práticas sociais que se endereçam a uma cultura mais includente, que acolhe outras lógicas e racionalidades políticas com sua multiplicidade de tempos, espaços e linguagens, fortalecendo os processos de pluralização como uma interface da luta contra as desigualdades e a massificação.
Portanto, pensando assim em todos os momentos da pesquisa, além dos cadernos de registros e do
gravador, a máquina fotográfica me acompanhava. Ao buscar as fontes de registros e fazer a análise
dos dados, tive a certeza de que não poderia deixar de utilizar as fotografias, as narrativas e as
demais imagens do cotidiano por mim observado. E que uso pude fazer dessas imagens e
narrativas? As imagens ajudaram-me a buscar significados que muitas vezes escapavam aos
discursos e aos registros escritos. Elas foram responsáveis também por resgatar lembranças e
memórias, criando muitas possibilidades de narrativas e de novos sentidos.
Ao buscar autores como Alves (2001a), Mota e Pacheco (2005), Vasconcellos (2005), entre outros
que estão utilizando as imagens nas pesquisas do cotidiano escolar, pude comprovar como a
provocação imagética é fundamental para resgatar a memória da nossa história, possibilitando o
diálogo, a visualização das táticas dos praticantes, das criações e invenções cotidianas e da cultura
escolar.
Assim, mergulhada nas fotos, nos cadernos das professoras e dos alunos, nos diários de campo,
entre outros apetrechos, fui tecendo o resultado assumidamente parcial desta pesquisa na qual, com
freqüência, percebo ainda a impossibilidade de colocar o ponto final. Porém, sabendo da necessidade
desse ponto-final mesmo que provisório, a cada instante do trabalho, ao invés de respostas
definitivas, continuo buscando a problematização, a indagação, novos questionamentos e respostas
provisórias.
Alguns trabalhos produzidos ao longo do curso de mestrado levaram-me a revirar gavetas para
localizar fotos da minha infância, do meu tempo de escola, do meu tempo de professora. E foi
remexendo essas histórias que descobri que o meu sonho de ser pesquisadora já estava sendo
tecido nesse percurso de vida. No entanto, foi somente lendo Esteban e Zaccur (2002) que me
autorizei, respaldada nessas autoras, a me considerar uma “professora-pesquisadora”, pois, como
elas, sempre questionei a minha prática e busquei interlocutores que me ajudassem a enfrentar todos
os desafios do cotidiano e a ousar fazer dos meus ideais e das minhas utopias uma realidade.
Na escola pesquisada, encontrei colegas da graduação, do mestrado e outras professoras que aos
poucos foram mostrando-me os seus fazeres, saberes, sonhos, desejos, dores e alegrias. Como bem
expressou uma delas: “Nós ganhamos pouco, sabe, Sandra?, mas aprendemos, trabalhamos e nos
divertimos muito! Por isso lutamos pelo reconhecimento e valorização do nosso trabalho, tão sério e
comprometido.”
Nos instantes em que o meu olhar só conseguia enxergar e alcançar a mesmice, a repetição e o “não
lugar das professoras” (CARVALHO, 2005a), eu atentava para a procura dos saberes que estão
sendo desvalorizados e não reconhecidos. Comecei então a falar pelos corredores o que muitas
vezes não era dito nos encontros dos professores, a contar para os próprios atores do cotidiano as
inúmeras aprendizagens interessantes que estavam sendo tecidas entre cada aluno e os professores.
Devido ao pessimismo que as tem dominado, nossas escolas estão precisando contaminar-se com as
histórias e experiências educativas interessantes que são tecidas diariamente no seu interior.
Aprendi com Von Foerster (1996) que só vemos aquilo em que cremos, e foi por acreditar que o uso
dos produtos culturais expressava o currículo praticado por professores e alunos que pude viver e
sentir a realidade dos diversos espaços e tempos de criação, interação dialógica e criticidade da
escola.
Quero fazer eco à fala de pesquisadores como Vasconcellos (2005), Linhares (2005), Carvalho
(2005a, 2005b), que vêm entendendo a necessidade de discutir e divulgar as práticas geradas no
cotidiano escolar porque, através delas, podemos anunciar um outro fazer pedagógico, diferente dos
que estão sendo atualmente preconizados, que costumam considerar os professores como técnicos
desqualificados. Na contracorrente da posição hegemônica, os professores precisam resgatar a sua
competência de sujeitos criativos, autores de saberes e fazeres contrários à repetição e à reprodução
de uma ordem social injusta e de uma proposta curricular preestabelecida e descontextualizada da
realidade sociocultural dos alunos: uma proposta curricular que tem demonstrado ser abstrata e sem
sentido.
Portanto apresentarei, através de alguns registros fotográficos e das vozes de professoras e alunos, o
uso dos produtos culturais nas/das práticas discursivas dos diversos protagonistas que atuam nas
escolas pesquisadas.
4.1 OS USOS DE PRODUTOS CULTURAIS NAS/DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS DOS PROFESSORES E ALUNOS
Com o objetivo de analisar como os produtos culturais consumidos e usados por
professores e alunos expressam o currículo da escola, busquei, como dito, ouvir,
sentir e vivenciar o currículo praticado de uma escola da rede municipal de Vitória.
Por meio das vozes de professoras e alunos e das observações, aprendi que são
inúmeras as redes de relações tecidas com saberes, valores, poderes e culturas
mediante os artefatos culturais que alteram e/ou complementam as propostas
curriculares, potencializando criações e invenções cotidianas.
Conforme mencionei na metodologia, além de realizar entrevistas com professoras,
alunos e outros atores do cotidiano escolar, vivenciei, num período de quase oito
meses, diversos espaços e tempos, como salas de aula, pátio, reuniões
pedagógicas, Conselhos de Classe, Laboratório de Informática, biblioteca,
brincadeiras de rua, moradias, entre outros, a fim de analisar como professores e
alunos “fabricam” ao “consumirem” esses artefatos culturais.
O conceito de fabricação elaborado por Certeau (1994) teve fundamental
importância no meu trabalho, pois se refere a uma maneira de consumir os produtos
impostos de forma que os usuários reinventem, recriem e retrabalhem aquilo que
recebem.
Assim, o consumo nunca é reduzido à reprodução, pois ele é sempre permeado de
mediações que estabelecem negações, negociações de sentidos, interações,
diálogos (VASCONCELLOS, 2002).
Portanto, estou assumindo o currículo relacionado não às prescrições escritas
presentes nas escolas (FERRAÇO, 2004), mas ao uso que fazem professores e
alunos das propostas curriculares, dos livros didáticos e demais artefatos culturais
que circulam no espaço escolar.
As entrevistas aconteceram a partir de dois roteiros: um para alunos e outro para
professores (Anexos A e B). Vale lembrar que muitas das entrevistas acabaram
transformando-se num gostoso bate-papo e muitas das conversas informais se
tornaram excelentes fontes de reflexão e problematização. As narrativas e as
imagens coletadas sobre o uso dos artefatos culturais foram agrupadas nas
seguintes temáticas:
• para facilitar o processo de aprendizagem em suas variadas dimensões;
• para trabalhar a realidade sociocultural dos alunos;
• para possibilitar lazer, descanso e para substituir o professor ou o
planejamento;
• para auxiliar na formação continuada do professor;
• para formar valores.
As diversas narrativas e imagens do cotidiano são apresentadas a seguir, por meio
da reprodução das vozes16 das professoras e dos alunos que, propositadamente,
não serão identificados por série e/ou turma em que atuam, pois acredito que o
currículo praticado se produz na escola por meio das inúmeras redes de relações
estabelecidas individual e coletivamente.
16 As vozes das professoras serão identificadas por P, as dos alunos por (A) e as das coordenadoras pedagógicas por (C), somente para facilitar a diferenciação.
Como Oliveira (2005), penso que ao dialogarmos com as experiências significativas
dos sujeitos reais das escolas, temos chance de efetivamente produzir mudanças
emancipatórias, com possibilidades de escolhas de caminhos sociais e políticos
mais justos e felizes.
Conforme defende Garcia (2004, p. 3), apesar de nos currículos e na própria cultura
escolar circularem textos culturais dotados de valores ancorados na dominação e na
regulação, ou a serviço delas, a organização complexa do sujeito permite-lhe
produzir sua realidade em ações e desejos estranhos a essa regulação. Assim, fui
compreendendo as tramas das culturas ordinárias na produção de sentidos e valores
realizados pelos currículos praticados.
Com relação ao uso dos artefatos culturais que facilitam o processo de aprendizagem em suas
variadas dimensões, observei no cotidiano e nas narrativas das professoras e dos alunos que é
utilizada na escola ou fora dela uma variedade de materiais ou recursos, como vídeos, livros de
literatura, revistas, jornais, gibis, panfletos de propaganda, internet, CD-ROMs, jogos, enciclopédias,
dicionários, imagens, músicas, livros didáticos, cartilhas com novas e velhas roupagens, materiais
instrucionais que reproduzem atividades de anos anteriores, narrativas das novelas ou programas
apresentados pela televisão, entre outros.
Algumas professoras afirmaram que os produtos culturais serviam para ilustrar o conteúdo
trabalhado, fazendo com que a aula se tornasse mais interessante. Além disso, possibilitavam o
trabalho em pequenos grupos, o que garantia o atendimento à heterogeneidade da turma e à
necessidade de realização de atividades diferenciadas. Favoreciam, ainda, aprendizagens mais
concretas, atualizadas e lúdicas e facilitavam a criação e invenção de atividades significativas para os
alunos, de acordo com as suas necessidades educativas.
Alguns posicionamentos a esse respeito foram:
“Utilizamos gravuras, o rádio, a música, o DVD para os alunos assistirem, recortes de jornais,
revistas. Tenho jogos preparados com pequenas gravuras, quebra-cabeças, dominós. Vou usando de
acordo com o conteúdo que eu venha a dar para ilustrar o que estou ensinando.” (P)
“Eu uso os livros paradidáticos, porque eu tenho uma turma muito heterogênea. Tenho cinco alunos
que foram retidos, um aluno que tem dificuldades de locomoção, outro que tem dificuldades de
aprendizagem, alunos com pouca concentração, e tenho aqueles que estão na faixa etária de uma 2.ª
série, sem nada que os desconcentre. Então, o que fazer? Esse trabalho diferenciado é uma forma.
Pelo menos está dando certo, pois aqueles que estão muito lentos, que não estão a fim de escrever,
de fazer a atividade, estão se interessando por fazer rápido. Eu falo para eles que só vão poder pegar
um livro – o que eles quiserem – lá no armário quando terminarem a tarefa. Tem livros de folclore, da
bíblia, do Ziraldo, de contos, do Pequeno Príncipe, história em quadrinhos... Eles vão ler sozinhos e
contar para mim; escrever o que entenderam da história. Observo que os que demoram a fazer as
atividades, a copiar os exercícios estão fazendo mais fácil para poderem usar esses outros materiais
que tenho deixado disponíveis no armário.” (P)
“Os alunos gostam muito de jogar dominó, baralho... então eu utilizo, e, através
desses jogos, eles vão aprendendo a contar, a pensar, porque eles não gostam
muito de raciocínio lógico, gostam de tudo muito pronto... é isso, é aquilo e acabou.
As perguntas e as respostas geralmente vêm em uma palavra só... Eles estão com
falta de concentração, então eu vou colocar as perguntas no quadro para eles
ouvirem as histórias já pensando em buscar as respostas.” (P)
Cabe-me questionar se realmente os alunos não gostam de raciocínio lógico, ou se
nos acostumamos a apenas receber, reproduzir e repassar os conhecimentos para
eles. A lógica instrumental continua muito presente nas práticas pedagógicas,
principalmente de leitura e escrita. O impor à criança ler, escrever “para ser alguém
no futuro” impede-as de desfrutar as dimensões estética, ética e política desses
atos.
Benjamin (1985), ao criticar a modernidade, relaciona a ânsia do progresso ao
empobrecimento da experiência humana e à alienação da linguagem. Para ele, a
obsessão com o progresso e o desenvolvimento, ou seja, esse olhar para o futuro,
entorpece os homens, destituindo-os da linguagem e da cultura, o que lhes subtrai a
capacidade de fazer história.
No livro A infância berlinense por volta de 1900, esse mesmo autor mostra a sua
infância não como tempo de faltas, de imaturidade, mas como narrativa de
experiências culturais. Sua relação com as letras, com as histórias, com os livros são
modos de ler, conhecer, compreender e escrever o mundo em nada incompletos,
mas plenos, sensíveis, lógicos e criativos. Porém, a mesma professora que relatou
que seus alunos gostam de tudo muito pronto apontou que esses alunos pensam,
arriscam suas hipóteses de pensamento, buscam significados para as questões,
interpretam e inventam, e fez críticas às práticas mais reprodutoras:
“Então, através de dominós de palavras e figuras, o aluno vai fazendo suas
tentativas de leitura. Eu trouxe de casa uma coleção chamada Eletronix, da revista
Recreio, que eles vão achar que estão brincando, mas eles têm que falar, por
exemplo, pelo menos cinco palavras que comecem com a letra L; e se daquelas
cinco palavras pelo menos duas estiverem na cartinha deles, eles vão marcar a
quantidade de pontos. Cada cartinha vale dez pontos, vinte pontos... Assim, eu já
estou trabalhando Matemática. No Eletronix, vêm também os minigibis, um jogo em
que o aluno tem que procurar a figura e, quando a acha, eu faço um ditado para ele,
tipo jogo de memória. Uso fitas cassete ou CDs com histórias. Às vezes, proponho
que eles só ouçam; outras, peço-lhes para ouvir e responder a perguntas sobre a
história. Sugiro que eles inventem um final diferente ou um reconto da história.” (P)
“Eu já escutei muita crítica de colegas por estar fazendo aulas diferentes. Eu fiz um
trabalho lindo com encartes de jornais, com a 4.ª série. O trabalho ficou muito bom, e
uma colega virou para mim e disse: ‘Eu jogo contas no quadro e fico sentada lendo
jornal’. Parecia que eu fazia para aparecer... parecia que eu estava provocando. E
realmente ela faz isso, e faz até hoje. Uma outra coisa que eu não concordo: todos
têm livros. Se você tem um livro, o livro é seu e vai ficar com você até o final do ano.
Então, me diga: Para que o aluno precisa copiar aquelas leituras no caderno?
Alguns passam a manhã inteira copiando. E aí, no outro dia, eu fico copiando as
perguntas e as respostas. Passa de A a Z de contas. Você anda, sai da sala, e os
alunos não podem nem respirar porque não sobra tempo... Eu tenho 22 anos de
Prefeitura. Você acha que eu vou ficar fazendo essas coisas?” (P)
Ao mesmo tempo em que presenciei práticas reprodutoras, mecânicas, parecendo
sem sentido, presenciei também práticas de criação e invenção, o que mostra que
os processos de regulação e emancipação se fazem concomitantemente nas redes
de relações. As professoras usam os livros e algumas atividades ressignificando-os
e fabricando conforme suas necessidades e possibilidades. Como nos ensina
Certeau (1994, p. 94), ao fazer suas seleções, adaptações, o professor produz e
inventa a sua prática pedagógica, “[...] ganha um espaço, assina aí sua existência de
autor”. Portanto, ao invés do consumo supostamente passivo dos produtos culturais,
as professoras e também os alunos exploram diferentes maneiras de operar e usar
esses artefatos, criando e inventando o cotidiano escolar.
Alguns exemplos:
Eu pego as sugestões de atividades que há em outros livros, faço adaptações do jeito que me atenda
e faço cópias. Temos cotas, portanto às vezes se faz necessário passar a atividade no quadro. Faço
recorte. Na semana passada não fiz nenhuma atividade de quadro; fizemos pesquisa sobre
alimentação. Os alunos trouxeram as frutas e verduras, e estudamos os valores nutritivos e quais são
as frutas que possuem maior concentração de vitaminas. Pesquisamos nos livros que eu tenho e nos
livros da biblioteca. Eu programei a semana toda para isto; nós não fizemos nenhuma atividade de
quadro, nem atividade xerocada.” (P)
“Eu costumo usar muito, com a minha turma, revista e jornal, só pelo fato de que,
quando eles estão cortando, eles estão não só observando, mas também
trabalhando a coordenação motora. As revistas que eu uso são de doação, por isso
uso qualquer revista para recortes. Diversifico muito no que solicito para recortar:
letras, palavras, figuras, números, gravuras interessantes. Por exemplo: eu estou
trabalhando palavrinhas, então eu uso muito revistas e jornais para isso. Na minha
sala, pelo fato da turma estar em diferentes processos de alfabetização, nem todo
mundo faz a mesma coisa o tempo todo. Ora uns estão recortando e eu estou
atendendo à necessidade do outro, ora estão copiando atividade do quadro. Os
jornais e as revistas possibilitam também que eu trabalhe com diversos tipos de
letras, pois, quando eles chegam na 1.ª série, eles usam mais a letra bastão, e daí
vai. Dos 26 alunos que eu tenho, três ou quatro já têm o domínio da leitura e da
escrita. Tem aquela média que conhece todas as letras, sabe jogar sílabas, mas
acredita que não sabe ler; quando você pede para ele silabar as palavras, ele tem o
domínio, mas você precisa apertar ele para isso. É aquele aluno que está pronto,
mas não domina a leitura. E tem aquele aluno que você precisa ainda lapidar
totalmente.” (P)
“Os panfletos, por exemplo, eu gosto de utilizar nas aulas de Matemática. As leituras são feitas
através de revistas que eu coloco em sala, de algumas reportagens que eles mesmos pesquisam e
trazem para a gente ler no começo da aula e discutir. Uso também as revistinhas que eu tenho em
sala, gibis, livros didáticos. Eu gosto muito de trazer o vídeo para apresentar questões da atualidade.
Eu sempre procuro um vídeo que tenha a ver com o conteúdo que está sendo discutido. No caso de
Ciências, por exemplo, eu estou trabalhando a preservação. Então, neste caso, eu procuro um vídeo
que fale sobre isto. Vou selecionando diversos materiais que servem de apoio na sala de aula:
imagens, entrevistas...” (P)
“Eu acho música muito importante, porque facilita o trabalho corporal. A criança tem
que conhecer o seu corpo. O mundo gira em torno desse corpo. Eu tenho um aluno
que todo mundo falava da timidez dele, e aqui, na aula de Educação Física, ele se
solta com a música, dança, canta, se apresenta.” (P)
“Eu acho que materiais diferentes auxiliam na aprendizagem, tanto para a criança como para o
professor. Desculpe a expressão, mas ‘cuspe e giz’ é uma coisa muito cansativa. Claro que tem
aquela hora que não tem jeito e, se você puder aliar outras coisas a isso, a aula se torna mais
atrativa... porque a criança não agüenta ficar muito tempo sentada, muito menos ficar muito tempo
fazendo as mesmas coisas. Então você vai tendo que mesclar para a aula poder ter um atrativo a
mais para ela poder absorver o conhecimento. Porém, se todo dia eu der jogos ou livros, também vai
enjoar.” (P)
As imagens a seguir expressam alguns produtos culturais que estão sendo utilizados para favorecer o
processo de aprendizagem e ensino.
A Foto 7 ilustra uma aula de Ciências no Laboratório de Informática. A professora, após conversar
com os alunos sobre o tema Planetas em sala de aula, sugeriu uma pesquisa na internet.
A Informática, além de estar sendo muito usada para ajudar na formação dos professores, pois eles
tiram dúvidas e buscam atualização sobre os assuntos que estão trabalhando, é usada
principalmente para ilustrar uma aula ou fornecer informações não encontradas no acervo da
biblioteca. As professoras discutem com as pedagogas e com a coordenadora do Laboratório de que
forma podem utilizar a ferramenta no processo de aprendizagem e de ensino. Após planejarem as
aulas, encaminham os alunos para o trabalho. Segundo relato dos alunos, no Laboratório ou em
outros espaços, usando outros recursos ou materiais, a aula fica muito mais interessante. Isso os
deixa mais atentos e envolvidos com o assunto trabalhado.
Alguns depoimentos a esse respeito:
“Porque a pessoa, vendo o filme, o assunto no computador, nas revistas, ela presta
mais atenção e aprende.” (A)
“Nós estamos fazendo uma pesquisa sobre os índios lá no Laboratório de
Informática; cada um vai escrever um pouco. A professora e a coordenadora do
Laboratório estão nos ajudando”. (A)
“Aprende muito mais, porque lá na Informática a professora consegue falar com os
alunos, coloca ordem na gente, e todo mundo fica quieto, e, na sala, quando é só
para fazer o dever, a professora quase não fala, porque os alunos gritam.” (A)
“O computador também é um artefato cultural muito importante atualmente.” (P)
A Foto 8 focaliza a biblioteca, que também é muito utilizada pelos professores para fazerem
pesquisas, contarem histórias, tomarem livros emprestados e até mesmo darem uma aula diferente.
Os professores usam bastante esse espaço. Houve, inclusive, uma solicitação durante um Conselho
de Classe para que o dia de utilização da biblioteca fosse fixo. Felizmente os alunos não esperam as
aprovações e os decretos: nos intervalos, lá estavam eles em busca de conhecimentos, interação,
entretenimento, desafios e descobertas. Insistiam com a bibliotecária, que lhes dizia que o
empréstimo só poderia ser feito quando a biblioteca estivesse organizada. Os professores gostam de
utilizar não só o espaço, mas também os diferentes recursos que favorecem a elaboração de uma
aula “diferente”.
Foto 7 : Laboratório de Informática.
Foto 8 : Biblioteca ocupada por alunos em hora de recreio.
Nos intervalos, os alunos estavam sempre investigando revistas, livros de literatura, enciclopédias.
Gostavam de socializar com os colegas o que descobriam, faziam comentários em sala de aula, com
a bibliotecária e até mesmo comigo, demonstrando emoções, sentimentos e muitas aprendizagens:
“Eu estou lendo um livro do menino que dormia sorrindo. Sabe, tia? eu também às vezes durmo
sorrindo. Quando eu sonho, eu fico rindo no sonho. Teve um dia que eu não dormi porque tinha
passeio no dia seguinte e eu fiquei muito ansioso e agitado.” (A)
“Eu estou lendo o livro do ‘Zé Descalço’, que ensina sobre higiene. Eu aprendi que se a gente ficar
andando descalço em alguns lugares a gente pode pegar vermes.” (A)
Outro exemplo de imagens que ilustram o uso dos produtos culturais para favorecer o processo de
aprendizagem e ensino é este cartaz, produzido pelos alunos no projeto “Paz a gente sonha, a gente
faz” (Foto 9). Uma das atividades do projeto era pesquisar em revistas artigos sobre a violência no
mundo, produzir cartazes e discutir na sala as questões encontradas.
Constatei, nos diversos cartazes espalhados pela escola, a ocorrência do diálogo dos alunos e das
professoras com os produtos culturais: recortes de imagens mais significativas com comentários de
indignação, expectativas de solução, participação, cidadania. Esses relatos e as imagens acima
expressam bem como vai sendo tecido o currículo e o cotidiano da escola com o uso de diversos
artefatos culturais, como revistas, jornais, livros de literatura, internet, entre outros.
Retomando a análise das narrativas, percebi nos discursos das professoras uma permanente
transformação: ora demonstravam uma concepção de conhecimento mais tradicional, enfatizando
uma grande preocupação com a transmissão e reprodução de um conhecimento estático, pronto e
acabado, ora ressaltavam uma concepção mais voltada para a produção e fabricação de
conhecimentos, apresentando assim uma perspectiva mais dialógica, direcionada à transformação,
ao desejo, ao prazer e ao trabalho com pesquisas.
Foto 9 : Cartaz produzido pelos alunos no projeto “Paz a gente sonha, a gente faz”.
Os entrevistados (professoras, alunos e pedagogas), quando questionados sobre se o uso dos
produtos culturais faz com que a aula se torne mais interessante e se favorece o processo de
aprendizagem e ensino, foram unânimes em responder afirmativamente.
Alguns exemplos:
“Com certeza, porque a aula sem essas outras possibilidades acaba ficando maçante... pela
diversidade das coisas. Por exemplo, numa aula de história, o professor vai falar do Descobrimento
do Brasil. Se ele usa diferentes fontes de pesquisa, possibilita que o aluno faça comparações. Mostra
que um autor aborda a história de uma forma, e outro autor, de outra. Isso faz com que o aluno reflita
e não fique apenas na decoreba.” (C)
“Com certeza. Eu acho que quanto mais modificamos o cotidiano, mais eles se interessam. Porque é
diferente de sentar, pegar o livro didático e ficar vendo e repetindo. Em Ciências, a gente está
trabalhando um conteúdo a partir da experiência. É muito melhor o aluno estar ali pesquisando e
descobrindo do que eu levar o conhecimento prontinho. Talvez ele nem vá se interessar. Eu trabalho
com o livro e com todos os outros materiais que eu tenho, concomitantemente.” (P)
“Sim, porque faz com que o conhecimento se torne mais concreto. Para estudar a Grécia, por
exemplo, eu usaria um livrinho didático que conta a história da Grécia para alunos dessa idade,
porque conta a história de um garotinho que eu acho que chamaria a atenção deles.” (P)
“Acho, porque a gente vai aprendendo mais e vai crescendo, e aí as outras crianças vai aprendendo
mais ainda e vai multiplicando.” (A)
“A gente vai aprendendo as coisas que a gente nunca viu antes.” (A)
“Eu acredito que sim, pois nada melhor que a coisa prática para aprender. Só que, cada vez mais, eu
estou achando difícil trabalhar. Os alunos não se interessam por nada. As salas estão muito lotadas.
O espaço é inadequado, não temos laboratório. Nas salas falta luz, claridade. Quando temos uns
alunos interessados, a bagunça dos outros os faz desistir de querer aprender. Em outras escolas tem
o Laboratório de Ciências. Eu já trabalhei assim... é outra coisa. É como diz o ditado popular: o que
os olhos não vêem o coração não sente, não é? Eu uso muitos livros com ilustrações e, mesmo
assim, não tem a emoção da coisa real. São raros os livros que mostram detalhes. Comecei a
trabalhar sobre o cacau. A gente tem um projeto de aluno-pesquisador. Eu acredito que trabalhar a
partir de projetos enriquece muito mais. Trouxe a semente de cacau, plantamos, e ela germinou. O
pezinho está lindo. Os alunos sempre observam, cuidam... Quis fazer um docinho da semente de
cacau para eles, só que aqui a gente não pode usar a cozinha. Eu vi a receita do docinho em uma
revista, fiz em casa e trouxe para eles comerem. Eles adoraram e até copiaram a receita. Agora eu
vou trabalhar o açaí e quero semear também. Tem uma revista e um filme superlegal que mostra os
pés de açaí da Amazônia. Gosto de trabalhar a higiene, o desperdício, o consumismo, o
reaproveitamento, o lixo... Muitas vezes, a partir da fala dos alunos eu dou uma aula expositiva. Por
exemplo, um dia um menino perguntou por que chiclete não faz bem. Um aluno contou sobre uma
pessoa que tinha tido gastrite de tanto chupar chicletes. Na aula seguinte, eu trouxe um monte de
coisas sobre a nossa conversa.” (P)
“Com certeza (com expressão de convicção)! Eu acho que desde o interesse que desperta neles. A
aula se torna mais interessante quando utilizamos diferentes materiais. Se você está proporcionando
uma visualização já faz a aula se tornar mais atrativa e envolvente. Quando eles estão fazendo
pesquisas, eles gostam e produzem muito mais. Então é um suporte. Eu tenho certeza de que só com
a minha fala eu não estou conseguindo nem vou conseguir nunca passar o conteúdo para eles. Pelo
contrário eles quase não estão sentindo a minha falta. Por isso, cada vez mais eu estou utilizando
recursos, porque dessa forma eu consigo estar passando alguma coisa para eles.” (P)
Observei, na fala dessa professora, que ela parecia estar em conflito com a sua função: “Eles quase
não estão sentindo a minha falta”, disse ela. Ouvi outros depoimentos que explicitam essa angústia e
preocupação dos professores que demonstram ter, em alguns momentos, dificuldades para fazer os
alunos se interessarem pela escola e pela aprendizagem. A indisciplina, o desinteresse, a desatenção
se fazem presentes, deixando-os incomodados. Muitas vezes esses recursos têm aumentado a
possibilidade de escuta dos alunos, favorecendo o andamento das aulas.
Alguns depoimentos revelam também que o conhecer é matéria para ser cumprida, avaliada.
Segundo Esteban (2004, p. 31), essa prática reduz a riqueza e a complexidade dos processos de
aprendizagem e de ensino, das relações sociais das quais as relações pedagógicas se constituem e
dos sujeitos que aprendem e que ensinam. A autora propõe uma prática de investigação como uma
possibilidade de distanciamento da avaliação classificatória. Essa concepção inscreve-se no conjunto
de práticas escolares e sociais que enfatiza a produção de conhecimento como processo realizado
por seres humanos em interação, que, “[...] ao conhecer, se conhecem; ao produzir, se produzem; ao
viver, vão esgotando suas possibilidades de vida individual e estreitando os laços que unem cada um
e cada uma à infinita rede da vida”.
Alguns desses posicionamentos:
“Acho interessante quando ela traz figuras para a gente ver, porque educa. Por
exemplo, quando ela está contando a história do Brasil... aí, quando a gente vai
fazer uma prova, a gente já sabe o que ela contou naquela história.” (A)
“Através da leitura, a gente aprende muito e pode fazer muitas coisas... muitas coisas através da
leitura: trabalhar, se comunicar...” (A)
“É importante sim. Por quê? Porque esses materiais ajudam a criança a gostar mais. Gostar mais de
quê? Da escola e do que está aprendendo.” (P)
Como dito anteriormente, aparece também, na fala das professoras e alunos, a escola como
preparação e oportunidade para o futuro. Santos (2004, p. 314) nos ensina que a possibilidade de um
futuro melhor não está num futuro distante, mas na reinvenção do presente, ampliado “[...] pela
sociologia das ausências e pela sociologia das emergências e tornado coerente pelo trabalho de
tradução”. O objetivo da tradução é construir novas e plurais concepções de emancipação social.
Assim, esse mesmo autor orienta-nos a imaginar um mundo melhor a partir do presente, propondo a
dilatação do presente e a contração do futuro. Isso me faz buscar possibilidades de uma escola com
mais sentido, mediante as alternativas que estão disponíveis aqui e agora, pois acredito como ele
“que hoje e não amanhã é possível viver num mundo muito melhor”.
Alguns exemplos de vozes que vêem a escola como preparação para o futuro:
“Quando a gente crescer e tiver um trabalho, a gente já vai saber usar o computador.“ (A)
“Eu acho muito importante que tenha o Laboratório, pois quando eles forem trabalhar, eles vão
precisar: para depositar e/ou tirar dinheiro em banco...” (P)
Com relação ao uso dos artefatos culturais para trabalhar a realidade sociocultural dos alunos,
observei que algumas professoras se preocupam em utilizar recursos trazidos pelos alunos, como
livros, revistas, filmes, narrativas do que eles assistem na televisão e/ou vivenciam fora da escola,
procurando realizar uma prática mais interativa e dialógica.
Alguns exemplos:
“Nós temos alunos que têm livros e revistinhas em casa. Eles trazem para a escola. Tem um aluno
que o avô dele tem uma locadora aqui no bairro. Ele disse que sempre que eu precisar ele pode
trazer um filme.” (P)
“Eu tento aproximar o que eu posso; nem tudo é dentro da realidade sociocultural dos alunos, mas eu
acho importante que eles conheçam outras realidades.” (P)
“A Informática tem auxiliado muito na aprendizagem dos alunos. Os professores vêm aqui no
Laboratório de Informática para começar aula ou para finalizar um conteúdo. Tem uma professora
que está trabalhando com textos e trouxe os alunos aqui para procurar no dicionário as palavras
desconhecidas. As aulas são planejadas para interagir com o que acontece na sala. Aprendem a
mexer na máquina. É muito bom, pois estamos oferecendo algo mais a eles, porque muitos podem
não ter esse acesso fora da escola.” (C)
Observei ainda, no cotidiano, situações em que as atividades pareciam estar descontextualizadas da
realidade sociocultural dos alunos, que clamam por busca de sentidos e significados para suas
aprendizagens, como ilustram a Foto 10 e as narrativas que seguem.
A fotografia ilustra mais um momento em sala de aula. Logo que entrei, a atividade exposta no
quadro chamou-me a atenção. Lembrava-me o meu tempo de escola, pois no quadro estava:
“Escreva cinco palavras que comecem com BA, BE, BI, BO, BU. Leia e desenhe bola, baleia,
bananas. Você sabia que a baleia não cabe numa bacia?” A professora está com um livro na mão.
Será que a atividade foi retirada desse livro? E os alunos, como reagem a esse tipo de atividade em
pleno século XXI?
Foto 10 : A sala de aula.
Recordo-me de um momento em que presenciei uma outra professora olhando a atividade de um
aluno que havia escrito BOLEBA quando ela lhe pediu para escrever uma palavra que começasse
com a sílaba BO. A professora riu e perguntou o que era boleba, e o menino prontamente respondeu:
“Bolinha de gude, aquela que a gente brinca na rua... a gente também chama de boleba.” Nesse
instante, o aluno narrou a sua experiência cultural, solicitando à sua professora que desse mais
“ouvidos” a essas experiências. O simples olhar da professora pareceu ter valorizado a brincadeira e
a atividade do aluno.
Outra observação importante é que essa mesma professora que propôs a atividade organizava sua
turma em grupos, possibilitando o diálogo, a troca, a conversa. Sentava com os alunos para ver o que
já sabiam, fazia intervenções e programava atividades que deixavam os alunos, em alguns
momentos, instigados e curiosos.
Resolvi então ouvir um pouco mais os alunos. Ao serem questionados sobre se
traziam algum tipo de material para a escola, a maioria respondeu que não,
alegando medo de perdê-lo, ou dizendo que os pais ou as professoras não
permitiam. Quando perguntei se os colegas traziam, obtive algumas respostas
afirmativas. Isso me deu a impressão de que os materiais que eles costumam trazer
são usados de forma velada e clandestina.
Como bem ensina Certeau (1994), eles o fazem através de burlas, artimanhas, usos
e táticas, e vão criando maneiras de fazer e usar (ler, produzir, jogar, conversar).
Perguntei também se as professoras aproveitavam o que eles traziam. Eles
afirmaram: “Usam em aula mais os livros e revistinhas”. Acrescentaram que esses
materiais são utilizados principalmente depois que eles terminam o dever, ou na
hora do recreio. No entanto, confirmaram que as professoras traziam para as aulas
recursos como livros, jogos, revistas, jornais, internet, CDs e que também
consideravam que esses materiais tornavam a aula mais interessante, o que
favorece a aprendizagem (Foto 11).
Foto 11 : A utilização de revistas nas redes de aprendizagens.
No entanto é possível observar, através da fala das professoras e dos alunos, a
dicotomia que se estabelece dentro da escola entre brincar e estudar, ou seja, entre
fazer tarefa/dever e usar outros produtos culturais. Sabemos que as rotinas
marcadas por tempos cronometrados fazem parte do cotidiano de muitas escolas. É
comum ouvirmos: “Acabou a hora de brincar.”, ou “Professora, agora eu posso
brincar?”.
Algumas professoras usam o ”tempo de brincar” dos alunos como ameaça ou
castigo para estabelecer disciplina, manter o controle ou impor uma programação à
turma. No entanto, agindo assim, podem acabar também com a inquietude, a
curiosidade e a vivacidade peculiar dos alunos. O prazer e as brincadeiras parecem-
lhes incompatíveis com as ações de conhecer, aprender e estudar. Mas os alunos,
de forma clandestina e dissimulada, acham brechas em busca de sentidos e
prazeres na escola, como ilustra a Foto 11.
Percebi na fala de algumas professoras e alunos uma concepção de criança como a
predominante no século XVII, conforme Ariès (1978), uma época em que a infância
significava “pequeno, bobinho”.
Algumas afirmações a esse respeito foram:
“Tem alguns assuntos que é difícil conversar. Eles são muito pequenos. Então
procuro falar de forma mais simplificada.” (P)
“... mesmo eles sendo pequenos, eu gosto de conversar”. (P)
“Ajuda. Por quê? Na 3.ª série, a professora não falava sobre isso, porque a gente
era muito novinho. Agora que a gente está na 4.ª série ela explica melhor, explica
um monte de coisa." (A)
“Eu falo que não posso ver coisas feias, porque é muito feio que crianças vejam as
coisas feias que o adulto vê. Porque a gente somos crianças e a gente não vai
entender... e vamos colocar na nossa cabecinha... e a gente não vamos tirar isso
mais.” (A)
Acredito que a criança seja um sujeito social que possui história. Nesse sentido, é
produtora de história, cultura e protagonista da sociedade em que está inserida.
Considerar a criança como pequena e sem possibilidades de discutir alguns
assuntos é “[...] negar sua condição de sujeito histórico e social, capaz de expressar
idéias e sentimentos e de assumir sua condição de sujeito inventivo, com o poder de
virar pelo avesso a ordem natural (ou naturalizada?) das coisas” (MICARELLO;
DRAGO, 2005, p. 133).
Ao serem questionadas sobre se aproveitavam os materiais que os alunos usam
e/ou trazem para a escola, algumas professoras disseram que sim, outras afirmaram
que dependia do material e do momento.
Algumas falas indicam que o livro didático é o recurso mais utilizado na escola. As
professoras alegaram falta de tempo e também de outros recursos como
impedimento para a utilização de diferentes produtos culturais. Em seu depoimento,
uma delas confessou que, apesar de a escola possuir uma variedade de jogos e
materiais, ela não os utilizava por comodismo mesmo; preferia usar os materiais
disponíveis na sua sala, como livros e revistas. Perguntei também aos alunos e às
professores se eles discutiam sobre os diversos artefatos culturais que estão sendo
utilizados na escola. Algumas professoras responderam que sim; disseram que os
alunos comentam muito sobre o que lêem ou vêem na TV, em revistas, e
argumentaram que essas conversas também auxiliam muito no processo de
aprendizagem e ensino, pois têm a ver com a realidade sociocultural dos alunos.
Alguns depoimentos dos professores e alunos:
“Eu utilizo muito o que eles trazem, eu tento valorizar sempre. Às vezes eu conto as
histórias, outras vezes deixo eles contarem. Um dia um aluno pediu para ele ler na
roda de leitura. Achei importante deixar porque assim os colegas vão sentindo
vontade e necessidade de fazer também.” (P)
“Aproveito tudo, porque eles me cobram o tempo inteirinho. Eu estou com dois lá no
armário. Eles perguntam: ‘Professora, mas não deu tempo ainda?’ Hoje uma aluna
trouxe um DVD, mas eu disse que não ia dar tempo de assistirmos porque tem aula
de Inglês.” (P)
“As conversas com os alunos vão surgindo no decorrer da aula. Outro dia, um aluno
disse: ‘Professora, aqui em Vitória tem vulcão, né?’ Eu não sei, respondi. ‘Tem, eu li
na revista. Está lá na Ilha de Trindade’. Pedi então para ele trazer na próxima aula, e
ele me disse que estava na revista Recreio, que fica no Canto da Leitura... e trouxe
para a turma ver. Eu faço sempre um momento de leitura no início da aula. A gente
discute e, depois, aqueles que terminam a tarefa podem usar o Canto da Leitura.
Agora a minha angústia é que os alunos que não terminam a atividade rápido não
estão tendo tempo para ler. Então, eu estou pensando em como eu vou instigar
esses alunos a quererem terminar logo a atividade para ir para o Canto da Leitura.
Eu tenho um aluno que antes ‘murrinhava’ mesmo. Aí, um dia, ele foi o primeiro a
terminar. Então, eu pedi para ver se ele realmente tinha feito, e falei: ‘Ótimo!’. E
agora ele sempre está lá. Com professores, eu não discuto não. Eu não gosto de
ficar falando ou divulgando o que eu faço não. Eu só discuto com a pedagoga. Acho
complicado, porque uma colega pode te ver de uma outra forma. Então eu sempre
faço o meu trabalho, mas me retraio... fico na minha.” (P)
“Com os professores é complicado conversar. Cada um tem o seu horário. Agora,
com a chegada da professora de Artes, talvez seja possível. Com essa falta de
professores a gente não consegue conciliar os horários. Quando eu subo, a outra
professora da mesma série que a minha desce. Com os alunos, aparecem os
assuntos que eles trazem. Por exemplo, a morte do Papa tomou muitos momentos
de discussões e debates. A gente tem esse horário na entrada e depois do recreio
para conversar. Uma professora observou que eles estavam comendo muito ‘chips’,
então a escola propôs o Projeto Alimentação. Trabalhamos muito com os alunos
sobre nutrição, porém a própria cantina vende ‘chips’, e os alunos optam por
comprar ‘chips’ e coca-cola, apesar de ter um lanche muito mais nutritivo oferecido
pela escola.” (P)
“Eles trazem tazos (cartões com imagens dos personagens de desenhos animados)
e me mostram. Eu sempre demonstro interesse. É claro que, às vezes, eu preciso
pedir para eles guardarem, para fazer as atividades. Por exemplo, teve um dia em
que eles estavam falando sobre a eliminação de um personagem do ‘Big Brother’.
Aí, eu estava dando uma atividade e eu parei a aula; parei, não, eles estavam
fazendo e conversando, e aí eu deixei eles conversarem e entrei na conversa... e
socializei para todo mundo. Quem vai ganhar? Por que vai ganhar? Aí, depois, foi
morrendo o assunto, e eles foram voltando para a atividade. E eu também tinha
interesse em saber o que eles estavam pensando. Eles diziam que queriam que o
Jean ganhasse porque ele é legal, porque ele é bonzinho. Tinha coisas que eu via
que era fala da mãe, porque a família influencia. Eu acho que eles não têm
discernimento para entender a questão do caráter do Jean, e a família ajuda.
Quando eles estavam usando os tazos, eu observei que eles estavam usando
conhecimentos matemáticos o tempo todo. Analisavam a quantidade de cartas, o
valor de cada carta, exploravam as trocas. [E você aproveitou? perguntei.] Não, até
porque eles usam no recreio. Eu às vezes ajudo naquela situação ali, mas é pouco.
[Eles não levam para sala? questionei.] Não, até porque a gente tem esse
pensamento de que vai desviar a atenção deles... e desvia... querendo ou não,
desvia, porque se eles vão pegar o tazo, eles vão se envolver na brincadeira e vão
esquecer a atividade.” (P)
“Converso com minha mãe... sobre o ‘Big Brother’. Eu torço pelo Jean, porque ele já
enfrentou muito paredão e tem sorte.” (A)
Algumas professoras consideram que os recursos utilizados não têm relação com a realidade
sociocultural dos alunos. No entanto, pensam ser importante o seu uso, já que a escola muitas vezes
é a única oportunidade que eles têm de acesso aos diferentes aparatos culturais. Outras defendem
que a maioria dos materiais utilizados pela escola faz parte da realidade dos alunos.
Percebi ainda, em algumas falas, que os produtos culturais favorecem o trabalho com a realidade
sociocultural dos alunos e que algumas professoras tinham a preocupação de trabalhar os conteúdos
tomando por referência a realidade da comunidade e os diversos espaços e tempos do mundo
globalizado. Na escola, por exemplo, são desenvolvidos alguns projetos pedagógicos para atender a
essa demanda, como, por exemplo: o Projeto Capoeira, o Projeto Samba e Mania, o Projeto Paz a
Gente Sonha, a Gente Faz, a Oficina de Amarradinho, entre outras ações cotidianas.
“Os recursos são utilizados no dia-a-dia, no planejamento. Eu tenho que sentar com
o professor e explicar que esses recursos são interessantes porque fazem parte do
cotidiano dos alunos... porque os alunos têm acesso a eles.” (C)
“As atividades desenvolvidas no Laboratório são completamente fora da realidade dos alunos. Até
mesmo a biblioteca é fora da realidade deles. Eu até falo ‘Você é responsável por essa máquina. Se
quebrar, tem que pagar’. ‘Mas eu não tenho dinheiro, professora’, eles respondem. ‘Então, cuidado!’.”
(P)
“Acredito que sim. Aqui tem muitos alunos com materiais muito bons. Então, eu acredito que eles
fazem parte da realidade sociocultural da maioria.” (P)
“Sociocultural, sim. Pode não ser econômica.” (P)
“Acho que sim, porque eles falam: ‘Isso meu avô tem.’, ou ‘Lá em casa tem’.” (P)
“Não, poucos alunos conhecem e têm computador em casa, por exemplo.” (P)
“Eu acho que sim, porque a realidade sociocultural muda com o tempo e ela é
ampla, não? Vamos buscar estudar sobre a violência. Aí, vamos estudar sobre a
violência daqui, da nossa escola, do nosso bairro, do nosso município. O tema que
está sendo abordado, pelo menos o que eu vi até agora neste projeto, é a violência
dentro de Vitória e do mundo. Foi discutido, mas eu acho que não foi amplamente
abordado esse assunto, não, até porque os próprios pais... só você vendo... eles
trazem uma cultura bem radical mesmo. Por exemplo, eles pensam que, se o filho
estiver brincando lá fora e levar um empurrão, ele precisa se defender. Isso foi
conversado em reunião de pais, e a maioria dizia que o filho não poderia voltar para
casa machucado, que era para a escola deixá-lo reagir, que ele tem que machucar o
outro também. É o ‘toma-lá-dá-cá’, sabe? Portanto, temos que trabalhar com os
alunos e com os pais porque, senão, estamos remando contra a maré. Nós estamos
tentando envolver as famílias, tanto que agora nós vamos fazer a segunda chamada
para a reunião de pais. Nós falamos com os pais e deixamos bem claro que o
problema é que a comunidade não trabalha a paz com seus filhos em casa. Não sei
se é porque a escola está localizada próxima ao Quartel, mas a violência aqui é feia!
A agressividade está ficando banalizada. Ontem mesmo, eu cheguei aqui, você
estava até presente... eu presenciei uma situação em que uma criança estava
chutando a outra... Na hora em que eu chamei e pedi que não fizessem aquilo para
não se machucarem, ele falou que não era briga, era pique-chute! E eu falei que isso
não existe, que são coisas de que eu nunca nem ouvi falar. Mas, realmente, tem que
chamar a atenção, proibir. Os professores vão para a sala explicando. Os próprios
pais, na hora em que acontece isso, na hora do recreio, eles estão sendo chamados
e ficam sabendo o que está acontecendo.“(C)
“Eu trabalho usando textos de jornais, revistas, filmes, músicas. Às vezes um
professor traz uma atividade pronta para xerocar... aí, eu vou e proponho: Vamos
trocar por outra... para o jornal daquele dia... para trazer uma coisa da atualidade,
que tenha a ver com a realidade do aluno, com a cultura do aluno. E, aí, no primeiro
momento ele resiste, mas depois ele já passa a fazer assim.” (C)
Observei na fala de algumas professoras uma preocupação em trabalhar assuntos
da atualidade, refletindo sobre o entorno físico, social e cultural dos alunos.
“Eu utilizo jornais, não só os que a escola pode oferecer; mas eu também peço para
os alunos trazerem notícias de casa, para eles notarem que a escola não é o centro
do saber. O centro do saber é tudo aquilo que envolve a vida deles.” (P)
“O livro me possibilita trabalhar com o meio ambiente como um todo; depois eles trazem notícias do
mundo para eu refletir como está isto no nosso bairro, na escola, no Brasil.” (P)
“Com certeza eles estão ali trabalhando o dia-a-dia deles. Quando estão vendo o
que acontece no mundo, eles se tornam também mais atualizados.” (P)
“Sim, muito importante, porque através dos artefatos culturais o aluno vai ter uma visão muito maior
do mundo em que ele vive. Vai ser mais estimulado, vai ser muito mais crítico, porque vai ter espaço
para ler, discutir, mostrar as idéias dele. O espaço é deles e eles podem sempre utilizar.” (P)
Recorro mais uma vez a Certeau (1995, p. 9) para lembrar: “Para que haja
verdadeiramente cultura, não basta ser autor de práticas sociais; é preciso que
essas práticas sociais tenham significado para aquele que as realiza”. O autor
acrescenta que “[...] a cultura não consiste em receber, mas em realizar o ato pelo
qual cada um marca aquilo que os outros lhe dão” (CERTEAU, 1995, p. 9).
Durante uma das conversas com a pedagoga da escola quis saber como percebiam
a cultura dos alunos.
“A gente percebe através do que falam, do que vemos... que a maioria dos pais são separados.
Muitos são evangélicos, maranatas e adventistas. Da Igreja Católica quase não existe. Tem muita
gente do Congo... muita pobreza. Tem o pessoal da Escola de Samba... filhos que moram só com a
mãe porque o pai os abandonou... Eles vão para o Congo à noite e nos fins de semana. Outros vão
para a oficina de fantasias de carnaval. Outros vão para a igreja. Até que, para ganhar dinheiro, eles
podem confeccionar fantasias. Assim, ao escolher os livros, ao invés de livros clássicos, fomos
escolher os que falam dessas temáticas. Estamos fazendo também uma ciranda de livros justamente
para eles estarem lendo e discutindo. Estamos escolhendo uma literatura infanto-juvenil que tem a
ver com a adolescência, com essa cultura deles. Primeiro a professora leu para eles; depois fizeram
teatro, em que cada um fez um personagem. Com outra turma, estão lendo as sinopses e criando
novas sinopses. Vão escolher livros para ver de que forma eles vão se envolvendo na leitura. Na
questão cultural, eles se dedicam muito ao Congo e ao Carnaval porque tem Escola de Samba aqui.
O mestre do Congo está estabelecendo uma parceria com a Secretaria de Cultura e assinou um
acordo com a escola para que, no ano que vem, possa ter uma parceria da escola com a Secretaria
de Cultura e a de Educação. Então eles dedicam boa parte do ano ao Congo e à Escola de Samba...
No ano que vem, vamos ter uma parceria. Hoje ainda não, mas sabemos que eles vão.” (C)
Algumas vozes das professoras expressaram que os produtos culturais trazidos por
elas ou pelos alunos são utilizados também para substituir um imprevisto no/do
planejamento e até mesmo para substituí-las – às próprias professoras, quando elas
estão muito cansadas para coordenar as aulas – e ainda como lazer para os alunos.
Por parte dos alunos, os produtos culturais são bastante utilizados para lazer,
diversão, entretenimento, principalmente fora da escola.
Algumas manifestações e imagens a esse respeito foram assim registradas:
“Em casa, assisto televisão, leio revistinha, brinco de casinha, de fazendinha com o meu irmão, aonde
eu sou a mãe dele... e meu irmão passa mal. Na TV vejo desenho... jornal para ver as notícias... As
meninas superpoderosas... eu gosto porque elas voam. Eu gosto do programa do Chaves, porque é
muito engraçado. Ele abre a porta e a Florinda cai, dá soco na cabeça do Kiko... Faço dever de casa,
vejo o Bonde e Companhia. Vejo o desenho dos bichos e aprendo sobre os animais. Aprendi que a
diferença entre o crocodilo e o jacaré é o sorriso. Eu brinco também com minhas colegas.” (A)
“Eu assisto TV: vejo desenhos, as novelas Senhora do Destino, Tiquititas. Eu acho aquela Nazaré
muito falsa. Jogo bola, brinco de vôlei com meus amigos, tomo banho de piscina, jogo vídeogame, o
jogo do Mário, o de basquete. Você aprende! Assistindo TV eu aprendo... a lutar Karatê, como na
Malhaçã, brincar de queimada como eles brincam lá.” (A)
Nas narrativas dos alunos, a televisão aparece como o artefato cultural mais utilizado pelos alunos
para lazer e entretenimento. O programa do Chaves, um seriado infantil mexicano transmitido pela
Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), foi citado como o preferido das crianças. A revista Veja
recentemente confirmou que esse tem sido um dos programas de maior audiência da televisão
brasileira. Os alunos relataram que, além de assistir à televisão, brincam muito de jogos de faz-de-
conta (casinha, carrinho, salão de beleza), brincadeiras de rua (pique-esconde, bicicleta, soltar pipa),
jogos eletrônicos, jogos de mesa (dominó, baralho), fazem leituras de livros, revistas, ouvem músicas,
realizam as tarefas da escola e ajudam nos afazeres domésticos.
Alguns exemplos:
“Ajudo minha mãe a lavar roupas, encher os litros, varrer a casa... brinco e venho para a escola.
Brinco de pique-bóia, pique-gelo, pique-esconde, pique-pega, bola... leio livro, leio revista da turma da
Mônica, livro da minha irmã.” (A)
Recordo-me de uma professora que declarou que, muitas vezes, quem a salvava era
o seu armário – que era cheio de materiais, como livros, jogos, revistas, que ela foi
selecionando ao longo de sua jornada como professora. Algumas vezes percebi, em
suas aulas, as crianças buscando esses materiais, além dos momentos em que ela
própria os utilizava. Tais materiais eram utilizados para auxiliar o processo de
aprendizagem através de brincadeiras, de jogos. Ao selecionar as fotos, encontrei o
armário aberto e lembrei-me do seu depoimento: “Sou uma sucateira. Sempre saio
catando brinquedos, livros, revistas que a minha filha não usa mais e vou trazendo
para os meus alunos.”
Segundo Certeau (1996, p. 91), esse “[...] trabalho com sucata se infiltra e ganha
terreno”. A arte de fazer sucata seriam, para esse autor, as táticas cotidianas, a arte
do desvio, que não obedecem à lei do lugar. Ou seja, desse ponto de vista, o
trabalho e o lazer homogeneízam-se, atravessam as fronteiras. Essa professora,
que se reconhece como “sucateira”, pensa constantemente na complexidade da sua
sala de aula e sai à caça de possibilidades diferentes de provocar desejos e desafios
para que seus alunos se interessem pelas aulas e, conseqüentemente, aprendam.
Baron (2002), em seu texto Brincar: Espaço de Potência entre o Viver, o Dizer e o
Aprender, contribui para a minha análise, ao defender a importância do brincar nas
escolas. Aponta que, ao brincar, o aluno ensaia, se distrai e também se constrói:
afirma, assimila, organiza, reorganiza, descobre, cria, inventa, produz
conhecimentos, busca novos desafios, interage, resolve conflitos, percebe
diferenças, faz negociações. Enfim, será que para aprender é preciso separar a hora
de brincar da hora de aprender?
Algumas evidências do posicionamento dos alunos a esse respeito podem ser
percebidas nas falas abaixo.
“Os amigos trazem brinquedo, diário, livros... Eu não gosto de trazer porque a
professora briga. A professora deixa brincar quando acaba o dever e sobra um
pouquinho de tempo. Aí a gente brinca... ou, então, na aula de Educação Física, ou
no passeio. Os meninos trazem carrinhos e as meninas, bonecas, e a gente brinca
de mãe e pai.” (A)
“Brinquedo eu não trago não. Meu amigo trouxe. A professora não deixa brincar
não.” (A)
“Não. Porque eu sei que na escola não pode brincar. Porque aqui é uma escola
pública; tem dia de brincar e tem dia de aprender. Por isso que não pode trazer
brinquedo para cá. Na escola a gente brinca mais no recreio, porque no período de
aula a gente quase não tem tempo. Quando acaba é que pode brincar no Cantinho
da Leitura. Só se pode ir no Cantinho, quando acaba o dever.” (A)
“A gente brinca na hora do recreio. Ou então a gente só pode brincar no Canto da
Leitura. Aí a gente pode ficar lendo ou brincando de alguma coisa diferente, que não
faça bagunça. E só depois que a gente acaba o dever.” (A)
“A professora traz livros e revistinhas. Eu acho muito legal, porque eu e minhas
colegas ficamos lendo. É bom para a gente ficar sabendo das coisas; a gente
aprende para quando eu for adulta eu poder ser professora. Eu acho legal ser
professora.” (A)
“Traz revistas, um monte de jogos, porque, quando a gente acaba o dever, a gente
pode brincar. A gente joga, nossa! até acabar. A gente aprende um monte de coisa.
A minha amiga aprendeu a ler falando as letras de uma em uma. Eu aprendi a ler de
repente; me deu um treco assim e, na hora, eu comecei a ler. Eu estava assim
escrevendo e, aí, depois, quando eu parei de escrever, olhei para o quadro. Fez
bem assim. Me deu até um susto na hora, passou um negócio rápido assim; aí eu
comecei a ler. Antes, nossa! eu via as letras tudo embolada; depois disso eu aprendi
a ler.” (A)
“Livros, revistas, sim; jogo, não. É legal ficar brincando... tem perguntas no livro... Eu
não respondo porque a tia disse que não pode escrever no livro. Eu copiei uma
receita no meu caderno para fazer em casa.” (A)
“Traz. Hoje ela trouxe um negócio falando do dia da mentira. Ela tira do jornal ou da
Internet.” (A)
As professoras relataram que os produtos culturais são usados quando ocorrem
imprevistos no planejamento, ou até mesmo a pedido dos alunos para um pouco de
lazer e descanso.
“Eu gosto do meu material na minha sala porque muitas vezes acontece de não dar
certo aquilo que planejamos. Porque o planejamento é uma coisa de improviso. A
gente que está na sala de aula sabe que fura. Então, às vezes você prepara aquele
material, e o tempo às vezes não dá para aquilo tudo que planejamos; outras vezes
sobra tempo.” (P)
“Nós vamos seguindo o que planejamos, mas, quando a turma está agitada e o
planejamento não anda, aí a gente tem que fazer uma atividade de integração. Às
vezes tem muita brincadeira, muita fofoca... é difícil conter. E são duas aulas
seguidas, entendeu? Você fica muito tempo com os alunos. Quando acaba a
motivação do grupo, você tem que criar na hora.” (P)
“Nas sextas-feiras, eu tiro a última meia hora, quando eles e eu também – afinal, eu trabalho dez
horas por dia – já estamos cansados. Eu dou hora livre, desenho, livro, rimas e deixo eles brincarem
à vontade.” (P)
“Sim. A última hora da sexta-feira é livre, mas as outras horas eu direciono
conforme as necessidades.” (P)
Com relação ao uso dos produtos culturais para favorecer a formação continuada de
professores, constatei, nos depoimentos das professoras, bem como em diversas
reuniões coletivas e planejamentos individuais, que era comum o uso de revistas
pedagógicas, livros didáticos, jornais, cadernos de anos anteriores, Internet e outros
materiais para provocar reflexões teóricas e práticas, criar projetos, produzir
conhecimentos e repensar questões políticas, culturais, sociais e econômicas da
nossa sociedade.
Sabemos, conforme nos aponta Oliveira (2001, p. 46), que os professores, ao
consumirem os artefatos culturais, “[...] instituem usos diferenciados desses produtos
e regras, num processo de desenvolvimento de ‘táticas desviacionistas’ circunscritas
pelas possibilidades oferecidas”.
Conforme pesquisa realizada por Carvalho (2005a), as revistas de maior circulação
nas escolas da Prefeitura Municipal de Vitória são Nova Escola, Amae Educando e
Pátio. Observei que, apesar de algumas revistas pedagógicas apresentarem de
forma tão seqüenciada e padronizada alguns planejamentos de atividades,
oferecendo quase que receitas ou instruções “passo a passo”, como o título dado a
uma das matérias, os praticantes do cotidiano escolar reinventam e ressignificam as
propostas oferecidas, rejeitando a mera reprodução.
Como “caçadoras” (GINSBURG, 1989), elas procuram, através do que estão lendo,
vendo, ouvindo, sentindo, contribuir para a sua formação e a sua prática
pedagógica. Pesquisam, registram, interpretam as pistas e os indícios oferecidos
pelos alunos e pelos produtos culturais, para criarem a escola que desejam. Nas
conversas com os colegas, trocam experiências, saberes, socializam valores,
discutem diferentes possibilidades para a prática pedagógica.
A proposta curricular oficial,17 elaborada recentemente pela Secretaria Municipal de
Educação de Vitória (SEME), só é conhecida por uma das pedagogas, que
comentou que só havia chegado um exemplar para a escola e que faltava tempo e
espaço na escola para estudá-la e refletir coletivamente sobre ela:
“Temos agora as diretrizes. A outra diretriz vinha toda com os objetivos. Esta diretriz está muito boa,
mais aberta. Só que o que eu tenho dito no encontro dos pedagogos é que cada escola só recebeu
um caderno. Os professores precisam ter esse material. Eles não conhecem. Eles não estão
apresentando e tampouco discutindo as diretrizes nos encontros com os professores. No último
encontro das reuniões de estudo, nós discutimos a teoria sociocultural de Vygotsky. As diretrizes da
SEME se baseiam na perspectiva histórico-cultural e na pedagogia inclusiva. ‘Mas nós não
conhecemos’, falaram os professores. ‘Como não?! Eles dizem que vocês estão estudando isso no
encontro de professores!’. Então eu combinei com eles de a gente estar estudando a introdução das
diretrizes e depois lermos por área. Mas honestamente, Sandra, o que essa formação que a SEME
oferece adianta para o professor e para o cotidiano da escola? Eu ainda não descobri. Eu não vejo
respostas. Eu acredito na formação que se dá no cotidiano... para poder ir e voltar, ir e voltar. Porque
essa formação que está acontecendo, ela é fragmentada. Eles vão pra lá e voltam do mesmo jeito.
Eles demonstram estar desinteressados, cansados. Você vê como eu estou tentando. Até digo para
eles se interessarem mais, que isso que estamos estudando vai cair no concurso.” (C)
“Ainda não foram passadas as diretrizes curriculares. Este ano, a pedagoga chegou depois que as
aulas começaram. Eu tenho cópias e várias apostilas que dizem o que se deve trabalhar na 1.ª série.
É isso que eu uso para me referenciar.” (P)
Cabe questionar para que servem as propostas oficiais, se não abrimos espaços e
tempos para os professores as conhecerem e dialogarem coletivamente sobre elas,
com possibilidades de refletirem sobre o fazer pedagógico.
17 Oficial, aqui, refere-se às propostas, parâmetros e referenciais curriculares preestabelecidos e as propostas pedagógicas das escolas.
Vale ressaltar também que as professoras se queixaram de falta de espaço e de
tempo para dialogar com os colegas sobre o que vêem nas revistas, livros e/ou
sobre o que vivenciam nas salas de aula. As reuniões coletivas acontecem uma vez
na semana, num período de uma hora. Muitas vezes, até o grupo todo se reunir já se
passou quase meia hora. A maioria considera o tempo curto para um trabalho
crítico-reflexivo coletivamente orientado. No entanto, na hora do café, na hora da
entrada e da saída, nas caronas, nas idas até o ponto de ônibus, pude perceber os
diálogos que se teciam sobre os saberes, os fazeres e as reflexões cotidianas.
“Eu sinto muita dificuldade em falar no coletivo nesta escola. Parece uma
resistência. Aí o que acontece é que cada um fala e continua acontecendo. A gente
não vê resolver. E tem coisas relevantes que deveriam ser discutidas no e pelo
grupo todo. Aqui existe uma política do autoritarismo. Por exemplo, na última
reunião, uma professora foi dar uma opinião e, pronto, acabou a reunião. Foi
cortada.” (P)
Em Conselho de Classe, as professoras voltaram a solicitar mais espaço para
resolver as questões coletivamente.
“É necessário compartilhar. Eu considero fundamental que as ações sugeridas no
Conselho sejam encaminhadas para acontecer, porque é muito ruim repetir o
Conselho de Classe e continuar com os mesmos problemas anteriores. É
interessante pontuar o que se terá que resolver e o que foi resolvido.” (P)
“Muitos Conselhos de Classe acabam sendo mero formalismo. O Conselho precisa
falar da aprendizagem dos alunos, do comportamento, e buscar ações que possam
de fato ser realizadas. Parece que as coisas só acontecem quando a cúpula decide
que tem que acontecer.” (P)
As fotos 12 e 13 retratam reuniões coletivas. Na foto 12, a coordenadora do
Laboratório de Aprendizagem da SEME dialoga com os professores sobre as
dificuldades e possibilidades do trabalho com alunos que apresentam necessidades
educativas especiais. Na foto 13, a pedagoga coordena um estudo sobre as
implicações de Piaget e Vygotsky na educação. As imagens, fragmentos de textos,
artigos de revistas e outros materiais são utilizados individualmente e em diversos
encontros, favorecendo a formação.
Alguns comentários das professoras:
“Para minha formação, eu utilizo artigos de jornal. Por exemplo, saiu em A Tribuna, jornal que circula
em Vitória, uma matéria sobre hiperatividade que me ajudou muito no diagnóstico de alguns alunos.
Artigos sobre educação que saem em jornais e revistas, que dão as dicas todinhas, ‘né?’, e que me
ajudam a reestudar. Uso muitos livros e revistas.” (P)
Constatei na fala da professora – “... jornais e revistas, que dão as dicas todinhas” –
o que Carvalho (2005c) destacou nas análises das revistas de maior circulação nas
escolas da prefeitura de Vitória: um pragmatismo com recortes simplificados e
reduzidos sobre assuntos e conceitos fundamentais para a formação do professor.
Foto 12 : Reunião pedagógica sobre educação inclusiva.
Foto 13 : Reunião de estudo sobre as implicações de Piaget e Vygotsky na educação.
Com isso, professores arriscam fazer diagnósticos sobre alunos, seguindo roteiros de testes
sugeridos pelas revistas e jornais, criando rótulos e estigmas que podem dificultar a aprendizagem
dos alunos. Porém alguns professores ressignificam o que vêem nas revistas, buscando em outras
fontes teóricas novas aprendizagens para tecer significados com sua prática pedagógica. Assim,
posso afirmar, como aponta (OLIVEIRA, 2005, p. 46), que a formação de professores necessita ser
compreendida em múltiplos contextos: “[...] o da formação acadêmica [...]; o das propostas oficiais
[...]; o das práticas pedagógicas cotidianas [...]; o das culturas vividas [...]; o das pesquisas em
educação[...]”.
Alguns exemplos da fala das professoras:
“Uso para a minha formação materiais de cursos que a gente faz, das aulas que tive
na faculdade, das palestras... materiais de todas as formações que a gente tem e faz
por conta própria, da pós-graduação nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental, de
encontros com professores alfabetizadores, enfim, tudo o que encontro aonde eu
vou e o que faço me ajuda na hora que dou aula. Logo que surgiu o PROFA,18 eu fiz,
porque eu sou lá de Aracruz. Eu entrei na 1.ª turma e aí juntou tudo: orientação do
PROFA, das minhas amigas, da formação em serviço. Uso também revistas. O
PROFA orienta a gente para trabalhar com músicas, recortes de jornal, revistas,
nomes, listas, e daí eu vou planejando minhas aulas com essas orientações. Eu
18 PROFA - Programa de Formação de Professores Alfabetizadores, oferecido pelo Ministério de Educação (MEC).
quase não usei ainda o livro que a escola deu para os alunos. No decorrer do ano,
até que eu uso, mas não sigo a seqüência. Eu vejo o livro todo e, se eu perceber
que a atividade é adequada e vai fazer o aluno crescer, aí eu trabalho aquela
atividade.” (P)
“A gente trabalha bastante com jornais, textos de jornais, para poder estar mais atualizada; livros de
projetos, onde há projetos de cada professor; revistas em termos gerais que tragam reportagens
sobre o tema trabalhado.” (P)
“Eu uso estas revistas para me preparar internamente para dar aulas... para ter mais inspiração.” (P)
“Os professores me procuram para ver como eles podem juntar o que estão trabalhando na sala com
o que a gente oferece aqui na Informática.” (C)
“A gente sempre fica ligada. Ontem mesmo eu estava lendo a revista Nova Escola que estava falando
de uma experiência na Sala de Informática, e vi que posso fazer um trabalho legal no Laboratório
sobre os índios.” (P)
Durante a leitura de um relato de experiência da revista Nova Escola, a professora refletiu sobre o
seu cotidiano e procurou produzir um projeto sobre os índios. Buscou a parceria da coordenadora do
Laboratório e da sua pedagoga para desenvolver a idéia na sala de aula (Foto 14). Esse projeto fez
com que a turma ficasse bastante envolvida. Cada aluno pesquisou um assunto para a elaboração de
um trabalho coletivo. Durante as pesquisas, novas questões foram surgindo: “Os alunos trazem
observações importantes e o projeto vai ampliando-se cada vez mais.” Após a conclusão, os alunos
socializaram as suas descobertas (Foto 15).
Foto 14 : Professoras em planejamento para elaboração do projeto sobre os índios.
Foto 15 : Alunos pesquisando na biblioteca com o apoio da pedagoga.
Alguns depoimentos:
“Durante o ano letivo, vai surgindo. Eu não sei planejar para a semana toda. Às vezes eu planejo,
depois mudo tudo e faço diferente. Às vezes dá aquela tempestade e vem. Eu paro e penso, vejo
algum material de pesquisa. Lógico, seleciono, e de repente vem a idéia. A idéia vem da experiência,
da forma como a gente conduz o trabalho, da forma como a gente pensa que tem que estar formando
esses meninos, passando alguma coisa para eles. Acho que tudo isso, a experiência de vida, tudo
contribui para essa tempestade. Por isso a atualização e a formação do professor são fundamentais.
A gente está sempre procurando ler. Eu estou com um problema sério com a minha turma, de
excesso de conversa. Até separei um monte de material para inovar alguma coisa. Eu tenho que
buscar uma forma de trabalhar isso, de aproveitar isso. Eu estava até conversando com as colegas
que essas crianças têm uma necessidade tão grande de falar! Eles conversam entre eles; às vezes
eu consigo entrar nas conversas. Eu até fiz uma pesquisa para saber o que está acontecendo, o que
eles estão achando das minhas aulas, o que leva eles a conversarem tanto, o que tem de
interessante. Essa pesquisa vai me ajudar a entender o que está acontecendo e ver de onde eu
tenho que partir. Não sou só eu que tenho essa reclamação. A gente não está conseguindo chamar a
atenção. O que se passa na cabeça deles? Tem algo errado aí... eu acho que esses meninos estão
dispensando o professor. Quando eles estão diante do computador, eu fico observando como eles
estão atentos. Por que eu não consigo isso? Eu acho que isso aí é um fator que está pesando muito.
Então eu estou tendo que rever as minhas práticas. Eu tenho que concorrer com esse computador de
qualquer jeito, eu tenho que estar igual a ele... durante o ano. Como eu citei o caso da revista que
estava lendo: eu já vou usar a idéia que tive. Vou trabalhar um conteúdo de História no Laboratório de
Informática.” (P)
“Eu pergunto ao professor o que ele está trabalhando e vou ajudando eles. Por exemplo, quando eu
pedi para xerocar aquele livro ‘O Por Quê dos Porquês’... eu estou usando em todas as áreas porque
ele trabalha com curiosidades. Eu ajudo eles a problematizar algumas questões, a investigar, a
ensinar a pesquisar. Você lembra aquele livro que você indicou para a gente, ‘A pesquisa na escola’?
Então. A professora já fala agora: ‘Eu já posso entender por que eu não preciso ficar presa aos
conteúdos; eu já posso me soltar, porque eu estou trabalhando a leitura, a escrita e a interpretação’...
ela percebe. Ela tira um dia de planejamento para pôr em dia a leitura dela.” (C)
Observei nas vozes das professoras e dos alunos que, em diversas situações do
cotidiano, os produtos culturais são usados para refletirem sobre os valores. Como
nos ensinam Azevedo e Alves (2004), é nos diversos espaços e tempos que
vivenciamos, aprendemos, fazemos escolhas, tecemos, destecemos, retecemos
nossos valores, num processo de múltiplas negociações, rupturas e movimentos
imprevisíveis.
Percebi também como as experiências vivenciadas por eles fora da escola, ou
dentro dela, são fundamentais na formação dos valores. A escola não se limita a
ensinar os conteúdos e conceitos, mas preocupa-se com os múltiplos saberes, tanto
quanto com os diferentes valores, trabalhando-os de forma transversal e
interdisciplinar. Porém algumas falas apresentaram uma postura assimilacionista.
Conforme Carvalho (2005b), citando Candau, na postura assimilacionista os
professores identificam o pluralismo cultural presente nas escolas, procurando
integrar as diferentes culturas à cultura hegemônica.
Alguns exemplos desses posicionamentos:
“Sim, eu tenho os livros didáticos para me referenciar. Alguns livros são bons, mas sempre uso livros
diferentes, didáticos ou não, revistas, jornais, porque eu gosto de trabalhar a formação do cidadão –
respeito, cidadania, valorização do ser humano – de forma integrada com os conteúdos.” (P)
“Amanhã eu vou ler um livro da Ruth Rocha sobre meio ambiente. Depois eles vão
falar sobre meio ambiente. No caso de Ciências, por exemplo, eu estou trabalhando
a preservação. Então, nesse caso, eu procuro um vídeo que fale sobre isso. A gente
vai selecionando, para dar apoio na sala de aula, imagens, entrevistas.” (P)
“Filme, quando eu utilizo, eu utilizo lá para maio, porque em maio eles estão mais entrosados comigo
e eu com eles. Porque o filme tem o seu objetivo. Porque assistir por assistir não vale a pena. Se eu
projeto um filme, como eu pretendo projetar, que é o Pocahontas, é para trabalhar índio, devastação,
branco. Eu pretendo passar esse filme para eles pela questão indígena. Até porque o livro didático
fala muito pouco sobre os índios, tanto o de História como o de Geografia. Então, eu pretendo passar
Pocahontas para eles. Eu tenho um projeto de passar para eles uma experiência que eu tive, que foi
assim... do nada, e deu certo. Foi com uma 3.ª série. Eu peguei o Projeto Filmes e passei Charles
Chaplin, um filme em inglês, Scoobdoo e Shreck, em português. O filme que eles mais gostaram foi o
de Chaplin, por ser mudo. Eu tinha como objetivo trabalhar os diversos tipos de linguagem e me
deparei com outros objetivos. Por exemplo, através dos filmes de Chaplin eu acabei discutindo
problemas sociais. Um recurso que eu achei que era apenas para diferenciar os tipos de filmes que
existiam e para trabalhar a linguagem, para a gente entrar na linguagem verbal e gestual, acabou
saindo outra coisa. Por isso, eu acho que o recurso é um aprendizado do dia-a-dia que você faz.” (P)
“A professora traz livros de histórias, revistinhas da Mônica, filmes do Peter Pan, de Cinderela, de
Branca de Neve. Eu acho interessante, porque a gente tem mais tempo de se divertir um pouquinho.
Eu aprendi que quando a gente brinca, a gente não pode discutir com o outro e não pode empurrar.”
(A)
Janet, citada por Certeau (1996, p. 199) argumenta: “O que criou a humanidade foi a
narração”. Como Certeau, entendo que as ações narrativas permitem traçar as
práticas organizadoras de espaço. Como dito anteriormente, espaço para esse autor
é um lugar praticado. É, portanto, o efeito produzido pelas operações que o
orientam. Assim, no momento em que professores e alunos assistem a desenhos
animados e novelas, lêem sobre os diversos assuntos nas revistas, nos jornais, nas
propagandas publicitárias, criam movimentos, buscam diferentes percursos na
construção de valores.
Ao questionar sobre se tinham espaço e tempo para conversar sobre temas como
preconceito, violência, entre outros, a maioria das professoras se queixou da falta de
tempo para essas conversas, principalmente de forma coletiva. Os alunos relataram
que conversam mais com os colegas e/ou familiares fora do espaço escolar. Porém
observei, no cotidiano escolar professoras e pedagogas conversando com os alunos
sobre valores.
“Sim, converso com Andressa, minha colega. Quando eu li no jornal que um homem
bateu na criança de 9 anos e pegou a criança... Aí, no pátio ou no final da aula, eu
falo para ela. Porque ela aprende que a gente não pode fazer careta para estranhos,
não pode pegar carona. Porque a gente não conhece e ele pode pegar a gente.” (A)
“Converso com a minha mãe. Eu falo que não posso ver coisas feias porque é muito
feio que crianças vejam coisas feias que o adulto vê, tipo ver um homem pelado. É
muito feio ver isso. Isso é coisa de adulto, porque a gente é criança e a gente não
vai entender, e vamos colocar na nossa cabecinha, e a gente não vai tirar isso mais.”
(A)
“A gente tem esse horário da entrada e depois do recreio para conversar. Por
exemplo, a professora observou que os alunos estavam trazendo muito ‘chips’,
então a gente começou a fazer um projeto sobre Alimentação.” (P)
As burlas para os encontros coletivos acontecem no momento em que o grupo
necessita de reflexões e combinações coletivas.
“Amanhã eu vou soltar os alunos mais cedo para a gente combinar o que fazer a
partir do filme que vimos sobre alimentação.” (C)
“Eu já disse que projeto, para dar certo, tem que envolver a escola toda. Não adianta
a gente discutir alimentação saudável na sala se a cantina continuar vendendo
refrigerante e ‘chips’.” (P)
Como dito anteriormente, as professoras consideram escasso o tempo para
reflexões coletivas. Entretanto, não deixei de ouvir, mesmo de forma isolada, críticas
importantes referentes a alguns projetos patrocinados por empresas que apóiam a
SEME.
“Nós temos um projeto sobre o meio ambiente patrocinado por uma empresa que
contribuiu imensamente com o aumento da poluição em nossa cidade e agora vem
fantasiada de projeto de preservação do meio ambiente. É uma incoerência, não?”
(P)
As vozes das professoras e dos alunos expressaram as múltiplas identidades
tecidas em diferentes contextos socioculturais: família, religião, escola, amigos, entre
outros. Como propõe Santos (2003), todos nós, cada um de nós é uma rede de
sujeitos em que se “hibridizam” (BHABHA, 1998) várias subjetividades
correspondentes às várias formas de poder que circulam na sociedade:
Somos um arquipélago de subjetividades que se combinam diferentemente sob múltiplas circunstâncias pessoais e colectivas. Somos de manhã cedo privilegiadamente membros de família, durante o dia de trabalho somos classe, lemos o jornal como indivíduos e assistimos ao jogo de futebol da equipe nacional como nação (SANTOS, 2003, p. 107).
“Eu gosto de músicas evangélicas porque elas foram criadas por Deus. Este jogo
minha mãe não deixa eu jogar porque é coisa do ‘Demo’.” (A)
“Estes dias eu coloquei o filme do Garfield para os alunos porque eu acho que ele
tem uma mensagem. Ele quer ser o mandão. O espaço tem que ser só dele. Depois
ele vê que não é assim. Sempre, depois do filme, os alunos querem conversar sobre
o assunto. Com essas reflexões podemos ajudar na formação dos valores deles.” (P)
4.2 DAS BURLAS E ARTIMANHAS FAZENDO-SE NAS PRÁTICAS DISCURSIVAS DE PROFESSORES E ALUNOS
Aprendi com Certeau (1994) que os praticantes do cotidiano, ao consumirem os produtos culturais,
traçam “trajetórias indeterminadas”. Essas trajetórias representam o que aparentemente parece não
ter sentido, porque não são coerentes com a situação vivenciada. Percebi, durante a pesquisa,
alguns “indícios” e “pistas” (GINSBURG, 1989) dos diferentes desejos e das astúcias dos alunos. Ou
seja, usando mais uma vez as palavras de Certeau (1994, p. 38), o cotidiano “[...] se inventa com mil
maneiras de caça não autorizada”. O movimento da escola é dinâmico, incontrolável, cheio de
sabedoria, jogos de poder e também de cooperação e solidariedade.
Certo dia, uma professora, com o objetivo de trabalhar os estados físicos da água – líquido, sólido e
gasoso –, utilizou como recurso o livro didático e ainda trouxe um copo com gelo para ilustrar as
mudanças que nele ocorriam, de modo que a aula se tornasse mais atraente. Numa aula expositiva
dialogada, alguns alunos participavam fazendo comentários, perguntas, e ainda sobrava tempo para
burlas e artimanhas, como revela a Foto 17.
Os alunos conseguiam desviar-se do assunto abordado pela professora, buscando respostas para o
enigma proposto no livro de Português. O desafio de descobrir o que estava escrito pareceu ter
provocado um interesse maior. Por diversas vezes, nas minhas participações nas salas de aula,
observei alunos mudando o foco dos objetivos propostos pelas professoras. Era muito comum
encontrar, por debaixo das mesas ou até mesmo dentro dos livros ou cadernos, livros de literatura,
revistas em quadrinhos, cartas de jogos. Nos intervalos entre uma atividade e outra, lá estavam eles
fabricando sentidos, emoções e conhecimentos com esses artefatos.
Foto 16 : Aula de Ciências.
Foto 17 : Alunos em busca de novos desafios.
Os professores, de vez em quando, flagravam algumas dessas situações e, quando percebiam que
os alunos já tinham feito o famoso “dever” ou cumprido o planejado, permitiam conversas, trocas de
experiências e algumas “brincadeiras”.
A foto 18 ilustra a professora respondendo à pergunta de uma aluna. Alguns alunos aparentam estar
bastante curiosos, levantam o dedo pedindo a participação, contribuindo com informações e/ou
questionamentos. Outros demonstram estar com o pensamento em outro lugar, como este aluno que
está com a mão na boca e com o olhar distante. Pode-se perceber, por acaso, que ele está sem livro
e sem material. Embaixo da mesa, há alguns cadernos fechados. Investiguei o motivo da desatenção
desse aluno e fiz as intervenções possíveis.
Foto
18: Alunos questionadores.
Sabemos que os professores, incansavelmente, criam táticas para fazer com que seus alunos se
interessem pelos estudos. Recordo-me do depoimento de uma professora que, ao perceber o desejo
de um aluno de possuir uma mochila de rodinhas, ficou atenta às possibilidades de que isso se
concretizasse. Um dia, depois de uma conversa com a filha, que tinha ganho duas mochilas de
aniversário, conseguiu levar uma delas para o aluno: “Eu fiquei surpresa em ver como ele evoluiu e
se interessou depois desse pequeno gesto. Acho que este avanço se deu porque ele percebeu que
eu estava cuidando dele.”
Certeau (1994, p. 102) nos fala, também, que as táticas exigem habilidades para a utilização do
tempo e das ocasiões: “[...] são procedimentos que valem pela pertinência e dão ao tempo – às
circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação favorável – a
rapidez dos movimentos que mudam a organização do espaço [...]”.
Para Certeau (1994, p. 202), o espaço
[...] é de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se
desdobram. [...] É um lugar praticado que nos permite pensar sobre as
singularidades, nem sempre visíveis, de cada espaço escolar e, ainda, o
caráter contra-hegemônico das ações “que emprestam vida e identidade às
propostas curriculares”.
Pretto, ao defender a necessidade de os professores navegarem pelos labirintos das escolas, ensina-
nos que para isso se faz necessário ter coragem de experimentar, como as crianças fazem ao brincar
de roda: rodopiam, rodopiam, rodopiam “[...] até a tontura desconcertante das certezas ainda não
estabilizadas. Mas isso exige confiança. Confiança no outro” (PRETTO, 2005, p. 146).
Segundo esse autor, é necessário uma outra ética para que essa confiança se estabeleça. Uma ética
que supere a idéia de que as questões possam ser resolvidas individual e isoladamente. A
possibilidade de movimento muitas vezes gera desequilíbrio, porém é esse desequilíbrio que
desestabiliza temporariamente, provocando novos movimentos.
Gagnebin, citado por Oswald (2001, p. 66) complementa que a história, longe de ser um tempo
contínuo e linear que predetermina o agir do homem, é feita de renúncia do homem à segurança do
previsível, renúncia que lhe permite ser livre: “No limiar do labirinto, a criança não manifesta medo;
pelo contrário, o desejo de exploração predomina como se soubesse, confusamente, que só poderá
se reencontrar se ousar perder-se”.
Larrosa (2003) também contribui, esclarecendo que o labirinto é o lugar do estudo: Labor intus. O
lugar de estudo é um espaço de pluralização, um aparato que desencadeia um movimento de
desordem, de obscuridade, de expropriação.
Por diversas vezes observei que, enquanto a professora atendia aos alunos que lhe pediam
explicações sobre uma atividade, outros faziam a atividade em silêncio; outros, ainda, produziam
movimentos e ritmos diferentes. Por exemplo: um dia, presenciei na sala de aula um grupo de alunos
combinando fazer um jornal na hora do recreio – idéia proposta por eles – porque o tempo não tinha
sido suficiente para concluir todo o planejamento. Um deles pegou um Atlas que estava embaixo da
mesa e mostrou a uma amiga a sua proposta de pauta para o jornal. Outro aluno selecionou a melhor
história do gibi para publicá-la.
Ainda nessa investigação, um aluno contou que adorava ouvir a música do jumento. Pedi que
cantasse um pedacinho. Ele cantou: “O jumento descobriu que era um gênio musical, decidiu então
fazer uma orquestra e os bichos reuniu lá no fundo do quintal, veio bichos da floresta e da fazenda...”
O aluno demonstrou já perceber a riqueza das diferenças e quis divulgar sua descoberta no jornal.
Cada bicho, com sua voz, com seu tom, com o seu jeito especial de ser, compunha a orquestra.
No momento em que os alunos e as professoras estavam produzindo as atividades, era constante
esse movimento de levantar e buscar novos sentidos ou novos fazeres e saberes, compartilhando
com os colegas experiências, como olhar o que e como o colega estava fazendo, conferir o resultado
de um problema e ainda perguntar como ele havia conseguido aquele resultado, analisar as próprias
hipóteses de escritas, criar novas situações de aprendizagem (Foto 19). Percebi, por exemplo, um
grupo em que as crianças estavam contando o dinheiro que tinham para participar da pescaria na
festa junina. Nesse momento, produziam diversas situações-problema, realizavam muitos cálculos,
faziam trocas, empréstimos, com interesse, envolvimento e animação. Nas salas de aula, as
professoras aproveitaram esse interesse e simularam as situações vivenciadas na festa junina para
favorecer o processo de desenvolvimento do raciocínio lógico dos alunos.
Foto19 : Aluna em busca de solução para suas questões.
Outro momento interessante ocorrido durante a pesquisa foi quando a professora da 1.ª série me
convidou para acompanhar uma atividade de Matemática, cujo objetivo era trabalhar a soma e a
subtração, usando panfletos de propaganda de um supermercado (Foto 20). Ela propôs que cada
aluno fizesse compras usando R$20,00.
Durante a atividade, os alunos escolheram o que poderiam comprar com esse valor. Além de
trabalhar Matemática, a professora trabalhou o conceito de consumismo e refletiu sobre a influência
da mídia nas nossas escolhas. A calculadora não é um recurso permitido na sala, mas alguns alunos
costumam usá-la escondido. Nesse dia a professora autorizou o seu uso para a conferência dos
cálculos. Os alunos demonstraram muito interesse e, além de alcançarem o objetivo proposto, faziam
comentários sobre o que viam nas revistas (Foto 21).
Foto 20 : Aula de Matemática.
Foto 21 : Uso de revistas para produzir situações-problema na aula de Matemática.
No dia seguinte, a mesma professora contou-me mais uma novidade: “Sandra, você não sabe o que
aconteceu... a gente não pode inovar mesmo, não pode fazer diferente”. A mãe de um aluno havia ido
à escola para questionar por que a professora havia solicitado aquelas compras. Ela não tinha
entendido que o dever de casa consistia de uma compra simulada, ou seja, os alunos deviam fazer as
compras usando encartes (Foto 22). Quando a professora chegou à escola, deparou-se com a mãe
com uma sacola de supermercado, achando que a atividade de compras era para ser feita de
verdade, e não por meio de colagem. A mãe já havia até procurado a SEME para reclamar.
Foto 22 : Uso da calculadora e de encartes de supermercados na aula de
Matemática.
Assim, posso afirmar, conforme diz Alves (2001b), que a aprendizagem se dá em diversos espaços e
tempos escolares e que é preciso aproveitar melhor os movimentos instituintes criados por alunos e
professores para produzir uma escola mais significativa (Foto 23).
Foto 23 : A professora tirando dúvidas dos alunos.
Como diz Larrosa (2003, p. 35), é “[...] nos meandros de um labirinto sem centro e sem periferia”,
sempre aberto ao infinito, que alunos e professores saem em busca de conhecimento e de vida.
Não podendo participar de alguma atividade por questões religiosas, os alunos não perdiam tempo e
logo pensavam em realizar outra, como escrever uma carta para um amigo. A foto 24 mostra duas
alunas que vivenciavam essa situação. Em parceria, enquanto uma escreve a outra analisa seus
escritos, dando-lhe sugestões de melhoria.
Foto 24 : Alunas em movimento de aprendizagem.
Vale ressaltar que, no calendário da escola, algumas datas comemorativas, como a festa junina, o dia
de Ação de Graças, continuam repercutindo no currículo e no cotidiano. As diferentes concepções
religiosas são discutidas, mas o calendário não se modifica. Percebi que algumas alterações
acontecem conforme a realidade sociocultural da comunidade. Por exemplo, muitas alunas usavam
como traje para a festa junina as roupas que confeccionavam para os desfiles na Escola de Samba.
Assim como os alunos, as professoras também criavam suas táticas para planejar
coletivamente, trocar experiências, produzir conhecimentos, como, por exemplo, nos
momentos em que selecionavam recursos, materiais para favorecer o processo de
aprendizagem dos alunos.
Recordo-me de diversos depoimentos das professoras, como o de uma que disse
que seu objetivo era, até o final do ano, ver a “galera dos onze” realizando as
mesmas atividades propostas para o restante da turma. A professora sonhava com o
crescimento/desenvolvimento de seus alunos e, ao perceber a heterogeneidade da
turma, fez planejamentos diferenciados, objetivando o desenvolvimento de todos
eles.
“Aquele ali não copia e não faz nada durante a aula inteira; só faz alguma coisa
quando estou do lado dele. Então, o que eu tenho que fazer? Passar uma atividade
para a turma que dá conta de fazer sozinha e ir aos poucos atendendo a galera que
não consegue fazer sem apoio. Todo mundo comemora quando os alunos começam
a fazer sem precisar da minha ajuda. Ah! tem momentos em que eu peço para um
ajudar o outro.” (P)
A professora estava na prática exercitando o que Vygotsky chamou de conceito de
desenvolvimento proximal e real. No entanto, as dificuldades continuavam: “Eu só
não posso fazer nada com aqueles que não vêm para a escola. Eu já tenho alunos
que estão reprovados por falta”.
Ao questioná-la sobre o que a escola faz quando percebe as reincidências de
ausências, respondeu:
“Fazemos de tudo: reunião com a família, conversa com os alunos, enfim... Outro dia
uma mãe me disse: ‘O que eu posso fazer, professora? Meu filho sai de casa
arrumado, dizendo que vai para escola, e aqui não chega?!’ Outra respondeu: ‘Eu já
conversei muito com o meu filho, mas ele gosta mesmo é de jogar futebol.’ A direção
conversa com as famílias e há casos que até encaminha para o Conselho Tutelar.”
(P)
Sempre que observava os momentos de planejamento, percebia o trabalho de
análise das produções dos alunos, a procura de atividades interessantes, as
pesquisas sobre algum assunto, a confecção de atividades. Percebia ainda que lhes
sobrava tempo para “dar uma respirada”. Portanto, esse momento de planejamento,
também chamado por elas de “dia de rei ou de princesa”, é aquele que algumas
aproveitam para fazer suas contas, ler jornais, revistas, planejar individual e
coletivamente, pensar, trocar experiências, criar suas aulas, reinventar a partir dos
produtos culturais que estão sendo consumidos. Segundo Certeau (1994, p. 42),
esses modos de proceder de consumidores compõem “[...] a rede de uma
antidisciplina”.
O mesmo ocorre com o uso da xerox. Burlam quando a cota explode. Fazem
escondido, usam cotas de outros para não se restringirem ao “cuspe e giz”,
expressão utilizada por elas para as atividades copiadas no quadro.
No momento em que estão consultando seus cadernos de anos anteriores ou
ouvindo relatos de atividades feitas pelos amigos nos intervalos das aulas, nas
leituras que fazem nos jornais e/ou revistas e nos livros, nas emoções que sentem
ao ler um livro, ao ver um filme, novelas, programas de TV, nas informações que
recortam dos documentários, das manchetes de jornais, das letras de músicas, dos
conhecimentos que buscam em livros, estão criando seus itinerários, estão
inventando.
A professora de Ciências, que desenvolve o projeto chamado Despertando e
Formando Alunos-Pesquisadores em parceria com as professoras das séries iniciais
do Ensino Fundamental, organizava numa pasta recortes de matérias de jornais e
revistas que considerava importante para discutir com professoras e alunos. Esse
Projeto tem como eixo central o trabalho com a natureza e o desenvolvimento dos
seres vivos, com o objetivo de despertar nos alunos o gosto pela pesquisa científica,
aplicando nela os seus conhecimentos cotidianos. Além disso, pretendia contribuir
para que o processo de aprendizagem e ensino se desse pelo enfoque da pesquisa,
de modo a despertar o gosto e o prazer pela busca de conhecimentos. Como o
tempo para conversarem sobre essas ações era pouco, as professoras
aproveitavam os intervalos das aulas para combinar ações e comentar os resultados
do trabalho. As reuniões coletivas aconteciam uma vez na semana e tinham a
duração de sessenta minutos. O tempo era muito curto para que desenvolvessem
um estudo ou uma discussão mais aprofundada.
4.3 FRAGMENTOS DAS REDES DE DIÁLOGOS TECIDAS DURANTE A PESQUISA
Muitos diálogos foram tecidos com o intuito de buscar possibilidades de intervenção na escola: as
conversas de pé de orelha, os desabafos, os pedidos de ajuda, os comentários do sucesso de uma
atividade, as alegrias manifestadas ao ver o progresso dos alunos... enfim, muitos e muitos relatos,
que ficaram arquivados em minha memória.
Obstinada por querer fazer com que as fotos e as narrativas do cotidiano representassem tudo o que
senti, observei e comprovei a respeito do uso que fazem professores e alunos dos produtos culturais
que circulam na escola, fiquei curiosa para ver a exposição de Sebastião Salgado18 – Êxodos –,
realizada recentemente no Shopping Vitória. Pensei que a experiência do renomado fotógrafo
pudesse inspirar-me e ajudar-me na seleção. Devido à sabedoria de quem fez a exposição, pude
sentar-me em bancos para apreciar a riqueza do material. Fiquei anestesiada, enternecida,
imaginando que, se cada cidadão que por ali passasse conseguisse sair da inércia e lutar por um
mundo melhor e menos injusto, aqueles olhares de medo, aqueles pedidos de socorro registrados por
Salgado poderiam ser diferentes e apresentar, em outra ocasião, um pouco mais de alegria, de justiça
social.
Uma foto em especial chamou a minha atenção: retratava olhares de sofrimento, dor, medo e susto
que me obrigaram a parar. Nesse instante, só me restava pensar na minha função social como
educadora. Nessa condição, o que podemos de fato fazer para escrever uma história melhor do que a
que estamos vivenciando? O que as políticas públicas podem fazer para melhorar a qualidade das
escolas e reduzir a desigualdade social?
Voltando à escola, recordo-me dos desenhos do aluno Aloísio. Segundo sua professora, esses
desenhos eram sempre bem elaborados. Na sala, sempre o víamos com o olhar distante. Não
entendíamos por que ele tinha tantas dificuldades na leitura e na escrita. A professora descobriu que
poderia ser devido a um problema de vista, pois o aluno precisava de óculos e não tinha como
comprá-los. Num projeto desenvolvido por outra escola em que eu trabalhava, consegui adquirir um
par de óculos para o aluno. Levei-o até a loja e disse que ele podia escolher. Essa possibilidade de
escolha parecia ser-lhe pouco familiar, pois o aluno demorou a ter coragem de exprimir a sua
preferência. Após um olhar mais direcionado para ajudá-lo, o aluno começou a ficar mais atento e a
progredir nos estudos. Sempre que retornava àquela escola eu perguntava por ele, até que, um dia, a
professora me disse que ele havia mudado de escola porque sua mãe tinha sido despejada do
cômodo em que moravam. O percurso de Aloísio, que começara a alcançar êxitos, mais uma vez
18 Sebastião Salgado, fotojornalista que percorre o mundo recolhendo fragmentos de dor e violência das minorias esquecidas, de beleza e alegria, a fim de registrar e denunciar os muitos lugares e situações cotidianas.
precisou ser interrompido. E Aloísio? Será que conseguiu encontrar uma nova escola que o
acolhesse? Uma nova moradia? Novos amigos? Novas perspectivas de vida?
Como ele, vimos ainda Pedro, que preferia ficar na rua a ter que ir para a escola. Certo dia, resolvi ir
atrás dele e perguntei-lhe por que não estava na escola. Inicialmente, ele respondeu que seu
uniforme estava sujo. Perguntei-lhe se não seria melhor ir, mesmo sem o uniforme. Respondeu-me:
“Mas eu também estou doente”. Estava sem camisa, jogando bola na rua, com um aspecto bem
“saudável”. Apresentou-me a seu tio e a seu avô, que estavam jogando baralho na praça, em frente à
escola (Foto 25).
Por que esse aluno estaria preferindo ficar na rua a ir para a escola? O que podemos fazer para
tornar a escola significativa para esse aluno? Será que ele estava sentindo-se excluído da/na escola?
Ao discutir essa questão com as professoras, uma delas acrescentou:
”O irmão dele é meu aluno e está quase reprovado por faltas, sem contar que, sempre que falta, ele
perde um monte de coisas e eu perco a oportunidade de tentar fazê-lo se interessar e se envolver
com a aprendizagem.”
Na tentativa de dialogar com o avô e com o tio do aluno sobre o motivo de ele estar do lado de fora
da escola, senti pouca receptividade, pois o envolvimento e a concentração estavam no jogo de
cartas e na cerveja que tomavam com os amigos.
Foto 25 : Aluno na rua em horário de aula.
Outro episódio interessante ocorreu no horário de recreio. Estava conversando com os alunos que
queriam saber se eu seria a sua professora substituta, pois a titular havia pedido licença. Nessa
conversa, alguns alunos começaram a descrever a turma como se todos os lugares já estivessem
marcados naquele grupo. “Resta saber se você vai agüentar a Maiara, o Pedro e o Filipe.” Por quê?
perguntei com olhar de estranhamento.
E todos começaram a falar, provavelmente sobre as queixas que as professoras e os colegas faziam
daqueles alunos. Ao ouvir os amigos falarem comigo, Maiara saiu chorando. Fui atrás dela e
perguntei o que estava acontecendo. Chamou-me a atenção o que ela disse: “Eu não tenho jeito
mesmo, eu não tenho amigos. Ninguém gosta de ficar comigo. No recreio, eu fico andando de um
lado para o outro.” Na sala, observei que a professora a colocou para fazer o dever na sua mesa.
Logo em seguida, a aluna foi chamada para a aula de apoio e só retornou no dia seguinte. O que
estava sendo feito para favorecer a inclusão dessa aluna?
Ela também já mudou de escola. Para onde foi e o que faz agora, não se têm notícias. E nós? O que
estamos fazendo nas nossas escolas? Estamos de fato nas escolas?
A falta de concurso público para professores contribui para o não-pertencimento dos professores à
escola. Resolvi analisar uma outra em que eu também havia realizado uma pesquisa, acreditando
que poderia estabelecer uma aproximação maior com as professoras. Entretanto, apenas uma delas
havia continuado na escola. As outras também tinham mudado ou saído de lá por vários motivos:
término de contrato, remoção, licença médica...
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: AS POSSIBILIDADES DO IMPREVISÍVEL
No aeroporto o menino perguntou:
– E se o avião tropicar num passarinho? O pai ficou torto e não respondeu. O menino perguntou de novo:
– E se o avião tropicar num passarinho triste? A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia?
Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu: Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.
E ficou sendo.
Manoel de Barros (1999).
Para tecer as considerações finais, quero ressaltar que as possibilidades
imprevisíveis acontecem em todos os espaços e tempos escolares, num processo
dialógico contínuo e interminável de negações, negociações, rupturas,
desconstruções, buscas, invenções, coletividade, complexidade, pluralidade,
cooperação, transformação.
Sabemos que o currículo praticado por professores e alunos se dá através de
múltiplas redes de saberes, valores, sentimentos, pensamentos, que são tecidas
individual e coletivamente. Durante a pesquisa, vivenciei muitos desses movimentos e
posso afirmar que os produtos culturais consumidos pelos atores do cotidiano escolar
são constantemente ressignificados, transformados e reinventados por professores e
alunos na tessitura do currículo.
Fui seduzida por Esteban (2004) a reler o livro Exercícios de Ser Criança, de Manoel
de Barros. Corri às estantes dos meus filhos à procura do livro e dele retirei o trecho
que destaquei na epígrafe deste capítulo. Penso que, como esse menino, que insistia
nas perguntas, mesmo sem receber respostas imediatas, nós, educadores,
precisamos provocar e valorizar as perguntas, a curiosidade, os questionamentos
dos/nos nossos alunos e professores e as possibilidades imprevisíveis no/do
cotidiano escolar, bem como ficar atentos aos despropósitos, possibilitando o diálogo
com toda a pluralidade que nele se encontra.
Santos (2002, p. 59) também sugere ser “[...] necessário voltar às coisas simples, à
capacidade de formular perguntas que, como Einstein costumava dizer, só uma
criança pode fazer, mas que, depois de feitas, são capazes de trazer uma luz nova à
nossa perplexidade”.
Larrosa (2003) contribui dizendo que perguntar é a paixão do estudo, sua respiração,
sua obstinação. Para ele, é a inquietude que nos provoca a pensar que a certeza
impede a transformação.
Assim, retomei as questões iniciais do meu objeto de estudo e revirei os diários de
campo à procura das inúmeras perguntas que ouvi de professores e alunos, além das
minhas e das dos autores com quem dialoguei, para tecer as (in)conclusões deste
estudo:
“Posso ser eu, tia? Eu posso falar com você? O que você está filmando vai sair na
televisão?.” (A)
Sentia, através desses pedidos, os alunos suplicando atenção, um momento de
conversa, espaço para falar de seus pensamentos, sentimentos, conhecimentos,
enfim, de suas culturas e até mesmo de seus despropósitos.
“Você que vai ser a nova professora? Diga que vai, por favor?.” (A)
Essa pergunta revela como eles reconhecem a importância da escola e do professor
e como a falta da professora trazia ansiedade ao grupo.
“Só resta saber se você vai “agüentar” Paulo, Carlos e Jéssica.” (A)
O processo de exclusão/inclusão aparece na fala de professores e alunos, que quase
não percebem como, quando e por que ocorre, mas lutam incansavelmente por
mudanças.
“O que eu vou fazer numa sala com 35 alunos? Três deles já foram retidos no ano
passado, dois são alunos com necessidades educativas especiais e ainda outros têm
questões comportamentais?” (P)
“A gente, às vezes, não sabe mais o que fazer, pois os alunos parecem não se
interessar por nada. A falta de respeito é geral.” (P)
“Para que serve esse Conselho de Classe? Muitas vezes a gente fala, fala, e a coisa
não muda.” (P)
“Mas, não é esta a função do Laboratório de Informática? E qual é, então?” (P)
“Eu não sei para que serve essa formação continuada lá na SEME se não temos aqui
na nossa escola espaço e tempo para resolver as nossas questões.” (P)
“Eu sei que tem proposta curricular porque a pedagoga fala, mas eu nunca vi. Como
eu posso ver? O que eu faço para ver?” (P)
“A nova proposta curricular está muito boa, mas só chegou um exemplar para a
escola. A gente ainda não discutiu com os professores. Vale a pena tanto trabalho e
investimento se o material não chegar às mãos dos professores?” (C)
“Ela quer aprovar todos os alunos. Como aprovar um aluno que ainda não lê?” (P)
“Os pesquisadores assessoram poucos. Será que eles não podem nos ajudar?” (P)
“Que dia que vocês vão apresentar a pesquisa? A diretora ainda não mostrou o
material para a gente. Muitas pesquisas são divulgadas apenas para a direção. A
gente não fica sabendo...” (P)
“O que vamos trabalhar? O plano de ação da escola indica que o Dia do Livro deve
ser trabalhado. Eu penso que com livro eu trabalho todos os dias, mas... e o Dia do
Índio? Não merece uma reflexão maior? Não devemos refletir com os alunos sobre o
que foi feito com os índios? Que música favorecerá a reflexão?” (P)
“Será que é necessário fazer filas todos os dias, na hora do recreio, da entrada e da
saída? Os gritos pelo microfone não são suficientes para o controle. Não será por
causa dessa formalidade toda que os alunos estão tão indisciplinados?” (P)
“Você não acha que nas festas juninas os alunos deveriam vir a caráter? Eles usam
as roupas da Escola de Samba. Isto não descaracteriza? Até mesmo as músicas não
são mais aquelas das festas juninas de antigamente.” (P)
A complexidade, as incertezas, a pluralidade do cotidiano estão presentes na fala dos
sujeitos reais que vivem as práticas e as táticas cotidianas.
“Gente, se pensarmos que tudo que está sendo sugerido não vai dar certo, o que estamos fazendo
aqui?” (P)
A professora solicita a seus colegas que fiquem atentos às possibilidades do aqui e do agora, como
sugere Santos (2003b).
O que podemos então aproveitar das narrativas de professores e alunos, de tantos
projetos e experiências instituintes que revolucionam diversos espaços e tempos
escolares, para favorecer mudanças nas políticas públicas, na formação de
professores e alunos, na prática pedagógica, no currículo e na reinvenção do
cotidiano escolar?
Certeau (1994, p. 52-53) aponta como necessário reconhecer os procedimentos, as
maneiras de se reapropriar do sistema produzido, a fim de elaborar “[...] uma política
dessas astúcias, dessas criações de consumidores.” Ao citar Gombrowics, defende a
importância de dar voz ao ‘homem ordinário’: “Tive que recorrer, [...] sempre mais, a
pequenos prazeres, quase invisíveis substitutos [...]. Vocês não fazem idéia como,
com esses detalhes, alguém se torna imenso; é incrível como se cresce”.
As astúcias, táticas e criações dos professores e alunos acontecem incessantemente
nas escolas. Precisamos ter espaço e tempo para conhecer essas criações e
invenções cotidianas, a fim de dialogar em busca de projetos coletivos.
Santos (2003a, p.147) também nos alerta dizendo que, muitas vezes, a aceitação das
injustiças da sociedade capitalista nos impossibilita de pensar uma sociedade melhor
que esta:
As lutas locais e as identidades contextuais tendem a privilegiar o pensamento tático em detrimento do pensamento estratégico. [...] Quanto mais incomunicáveis forem as identidades, mais difícil será concentrar as resistências emancipatórias em projetos coerentes e globais.
O autor esclarece ainda que a cultura é uma autocriação, uma negociação de
sentidos, com múltiplas possibilidades de identificação. Para identificarmos a zona
fronteiriça da cultura, indica-nos: “A leveza da zona fronteiriça torna-a muito sensível
aos ventos. É uma porta de vai-e-vem, e como tal nem nunca está escancarada nem
nunca está fechada” (SANTOS, 2003a, p. 154).
Homi Bhabha (1998, p. 19), ao citar Heidegger, aponta que “uma fronteira não é o
ponto onde algo termina, mas [...] o ponto a partir do qual algo começa a se fazer
presente”.
Sei que não é possível apresentar todas as questões que levantei durante a
pesquisa, até porque não quero cansar os meus leitores. Entretanto, acredito que, ao
ouvirmos os alunos e os professores para saber o que eles desejam, o que fazem,
como fazem, o que “usam”, como usam, o que “fabricam” com os produtos culturais
que circulam nas escolas e/ou fora delas, estaremos retratando como eles
produzem/criam conhecimentos. Assim, poderemos avançar na formação de
professores e na prática pedagógica, pois “[...] de nada valem as receitas
pedagógicas se não existem condições para a performatização dos gostos e dos
sabores” (PAIS, 2003, p. 173).
Bhabha (1998, p. 20) distingue o pedagógico, entendido como normativo e prescritivo,
do performativo, entendido como criatividade transgressiva: “[...] os termos do embate
cultural, seja através de antagonismo ou de afiliação, são produzidos
performaticamente. A representação da diferença não deve ser lida apressadamente
como o reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos [...]”. Para ele, a
articulação social da diferença, na perspectiva da minoria, é uma negociação
complexa que confere autoridade aos hibridismos culturais que vêm à tona em
momentos de transformação histórica.
Portanto, concluo que alunos e professores, ao consumirem as imagens e narrativas
difundidas pela televisão, as notícias das revistas e dos jornais, as propostas
curriculares dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), dos livros didáticos e
paradidáticos, entre inúmeros outros artefatos culturais, fabricam/produzem o
currículo e o cotidiano escolar. Apesar de terem pouco espaço e tempo instituído para
refletir/discutir questões relativas ao uso que fazem dos produtos culturais e outras
que emergem das/nas relações que estabelecem com seus alunos e colegas de
trabalho, nos intervalos, fazem comentários, criam projetos, buscam soluções,
reinventam ações que contribuem para o processo de aprendizagem e ensino.
Verifiquei durante a pesquisa que os planejamentos prescritos são constantemente
ressignificados por meio do uso desses produtos culturais, fazendo fruir a experiência
estética e a sensibilidade das professoras, que procuram através do diálogo favorecer
o desenvolvimento lógico-cognitivo, estético-expressivo e ético-moral de seus alunos.
Por isso pergunto mais uma vez: Será que não deveríamos discutir com alunos e
professores as questões pertinentes à formação desses sujeitos? Ao invés de
prescrições e normatizações, não deveríamos abrir mais espaços para professores e
alunos serem de fato sujeitos de sua história e de suas experiências?
Ao investigar o meu objeto de estudo, constatei a importância de dar vez e voz aos
professores e alunos. Percebi que precisamos valorizar cada vez mais a cultura
infantil, a cultura dos professores, a cultura do cotidiano escolar, as culturas das
diferentes comunidades escolares, enfim, a cultura no plural.
Os depoimentos das professoras apontam que o currículo é tecido nas diversas redes
de saberes e fazeres, como informou uma delas, para quem foram os anos que
vivenciou na roça, no interior, no contato com os bichos, com a natureza, com os
homens do campo que possibilitaram/favoreceram o seu entendimento sobre os
assuntos nas aulas do curso de graduação em Ciências Biológicas. Foram as
vivências nos laboratórios que a incentivaram a não desistir de deixar o campo e vir
para a cidade em busca de um curso superior. Por isso não se sente bem quando
não consegue fazer a aula tornar-se interessante e significativa para os alunos.
Assim, vive gastando o seu salário em livros, revistas e tudo a que pode ter acesso
em busca de imagens, textos e muitos outros aparatos culturais que possam
contribuir para a comunicação, a interação e o envolvimento dos seus alunos com a
aprendizagem.
Como a mãe que ternamente foi buscar respostas para a pergunta do filho, Esteban
(2004, p. 159), com muita poesia, também dialogou com Manoel de Barros e
ressignificou, magnificamente, a história do menino que carregava água na peneira,
considerando o aprender e o ensinar como tal:
[...] carregar água na peneira. Ato encantador, surpreendente, imprevisível poderiam pensar aqueles que ficam atentos ao movimento da água caindo da peneira enquanto o menino se desloca, aos desenhos que a água faz no chão, aos ruídos produzidos, às expressões do menino se indagando sobre o desaparecimento da água... Processo privilegiado para aquela professora ou aquele professor que busca compreender o compreender [...] de seus alunos e encontra nos despropósitos e nos vôos indícios preciosos dos caminhos que estão sendo percorridos pelos estudantes para aprender.
As burlas e artimanhas dos praticantes do cotidiano, consideradas despropósitos em
algumas situações, não abririam possibilidades instituintes para pensar o currículo e a
prática pedagógica? Estamos participando da aventura de conhecer dos nossos
alunos ou estamos fazendo-os pensar que estudar através de uma grade curricular
fechada, linear, descontextualizada e fragmentada é chato e maçante?
Comecei novamente a fazer perguntas a respeito das escolas: Há nas escolas
espaços de convívio, de culturas, de trabalho em equipe, de inovação e
experimentação? Nossas escolas possuem locais que permitem a aprendizagem
cooperativa, solidária e autônoma? Espaços que favoreçam a flexibilização de
atividades docentes e discentes? Como estamos respondendo à curiosidade dos
nossos jovens e também dos nossos professores?
Aprendi com Freire (1997, p. 82) que não se aprende sem esforço. As crianças e os
jovens precisam aprender a se esforçar, a trabalhar, a investir no estudo, na
aprendizagem: “[...] um fazer exigente em cujo processo se dá uma sucessão de dor,
de prazer, de sensação de vitórias, de derrotas, de dúvidas e de alegrias”.
Garcia (2003), estimula-nos a aprender e reaprender constantemente, não
esquecendo que o objetivo do conhecimento é dialogar com o mistério do mundo, e
não perder o prazer e a alegria de penetrar no desconhecido em busca de respostas
parciais, sempre parciais.
Para que isso ocorra é necessário sabermos aonde queremos ir. Há quase 20 anos
faço constantemente estas perguntas: Que educação queremos? Para que educar?
Por que educar? O que aprender/ensinar? Como ensinar? Para quem? Que “sujeitos”
queremos formar?
Que caminho escolher sempre foi a questão. Aprendemos que o caminho se faz
percorrendo os labirintos do cotidiano escolar. Sabemos que não existe o caminho,
mas caminhos, uma pluralidade. E isso exige um investimento pessoal, uma opção de
vida. Nessa busca e nessa construção encontraremos outros construtores, já que os
projetos são múltiplos.
O plural nem sempre é fácil de ser vivido, principalmente diante da história autoritária
da qual somos herdeiros e em que ainda estamos imersos – é preciso muita
criatividade, burlas e artimanhas para sermos sujeitos da nossa história.
Linhares destaca pensadores como Montaigne, Freire, Freud, Marx e Nietzsche, que
valorizaram as irrupções emergentes de territórios de baixa visibilidade e
reconhecimento social, a fim de retomarmos sonhos éticos que, ressignificados,
estarão organizando nossos projetos:
[...] faiscar provocações que nos coloquem em contato com as irradiações desses pensadores, para vitalizar um tipo múltiplo de saber que convive com as artes de enluarar continentes esquecidos e, assim, abrirmos atalhos de criação, de ética, para a construção de igualdades, compatibilizadas com as diferenças (LINHARES, 2005, p. 65).
Devemos esforçar-nos para aprofundar a “virtualização” (NAJMANOVICH, 2001) da
problemática educativa, para nos conectar com as múltiplas oportunidades e desafios
contemporâneos, ao mesmo tempo em que vamos tecendo respostas provisórias
mais férteis e produtivas no caminho para um sistema educativo que aceite a
diversidade de pontos de vistas, que ceda lugar à subjetividade e à diferença de
estilos e aproximações e que, ao mesmo tempo, nos permita entrar em contato com
nosso acervo cultural, desenvolver nossas potencialidades e criar espaços de
convivência ricos e fecundos.
Portanto, acredito que só a partir do reconhecimento da diferença, das possibilidades
do imprevisível e da mobilização da comunidade é que conseguiremos traçar
projetos, buscar recursos para uma verdadeira transformação. Assim, penso ser
necessária uma mudança na estrutura organizativa das escolas, na concepção de
aprendizagem, de disciplinas e de sistema de avaliação.
No processo de construção de um currículo, faz-se necessário espaço e tempo de ação e de reflexão
coletiva. Esse movimento é dinâmico, plural, inusitado e multifacetado. Os conflitos e contradições são
necessários e desejáveis para que de fato o projeto seja coletivo e democrático.
Para finalizar, quero destacar que as perguntas e as provocações selecionadas não
esgotam de maneira alguma a questão. Muito pelo contrário, quero colocar-me ao
lado de autores cujas abordagens, que pretendem ceder lugar à complexidade,
aceitem a incompletude como uma característica interessante de qualquer sistema
teórico e multidimensional, pois acredito que a incompletude, em um universo
conceitual aberto, é uma forma natural de existência, capaz de dar as boas vindas à
mudança e à transformação.
ANEXOS
ANEXO A
ROTEIRO DE ENTREVISTA PARA PROFESSORES(AS)
1. Quais são os materiais/recursos (revistas, jornais, entre outros) que você utiliza na escola e ou
fora dela?
2. Como você os utiliza? De que forma?
3. Esses recursos/materiais são utilizados no processo de organização e orientação do ensino?
4. São incorporados nos seus planejamentos no início ou durante o ano letivo? Como?
5. Você considera que esses artefatos culturais auxiliam no processo de aprendizagem dos
alunos? Como?
6. Enriquecem o processo curricular? Como?
7. Você acha que esses materiais/recursos têm a ver com a realidade sociocultural dos alunos?
8. Quais são os artefatos mais trazidos pelos seus alunos?
9. Você os utiliza? De que forma?
10. Existe espaço e tempo para vocês discutirem com alunos(as) e professores(as) sobre os
diversos artefatos culturais que estão utilizando? Quais? Como?
11. Você considera importante o uso desses materiais na escola? Por quê?
ANEXO B
ROTEIRO DE ENTREVISTA PARA ALUNOS(AS)
1. Quais são os materiais/recursos (televisão, revistas, jornais, rádio, livros, jogos, entre outros)
que você utiliza na escola e ou fora dela? Como?
2. Você traz para escola algum material de casa? Quais?
3. Seus amigos trazem? O que eles trazem?
4. A escola aproveita esses materiais? Como?
5. Você fala/discute sobre os assuntos que vê, lê ou ouve nas revistas, na televisão, no rádio e em
outros materiais? Com quem? Onde? Como?
6. Seu professor utiliza algum material e/ou recursos como músicas, vídeo, livros nas aulas?
Quais?
7. Você acha isto interessante? Por quê?
8. Você acha que o uso desses materiais faz com que a escola se torne mais atraente? Mais
agradável? Ajuda você a aprender? Como? Por quê?
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