Os artefatos têm política

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Os artefatos têm política? Texto base de Langdon Winner, 1986

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Os artefatos têm política?

Texto base de Langdon Winner, 1986

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O que significa a pergunta?

• Trata-se de avaliar máquinas, estruturas e sistemas de produção pelas maneiras pelas quais eles podem incorporar formas específicas de poder e autoridade.

• “Viagem?”• Afinal: quem tem intenções políticas são as

pessoas, e não as coisas.

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Porém:

• Exemplo do antropólogo Munford Lewis:• Viadutos em Long Island (Nova York)

construídos entre as décadas de 1920 e 1970.• Eles são estranhamente baixos: 2,6 metros.• Ônibus (3,5 m) não podem passar.• Isso ocorre especialmente no trajeto para

Jones Beach, um grande parque (e praia).• Qual o motivo?

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Intenções racistas e elitistas

• Robert Moses (planejador urbano) queria evitar o acesso de pessoas pobres e negros.

• Acesso só de carro.• Moses ainda impediu extensão da ferrovia de

Long Island até a Jones Beach...• Política geral de favorecer o automóvel.

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Arquitetura/urbanismo tem ideologia?

• Arquitetura e planejamento urbano: áreas especialmente sensíveis a fins políticos

• Paris: largas avenidas construídas pelo Barão Hausmann após as rebeliões populares/1848.

• Prédios de concreto nas universidades/EUA.• Os bancos do início do século XX...• O caso da Cidade Universitária em SP• E as rampas do Kassab?

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Segundo o autor...

• O caso de Long Island mostra claramente que, entre as motivações humanas por trás das inovações tecnológicas, se inclui o desejo de dominar os outros, ou de excluir setores da sociedade do acesso a algum lugar.

• Isso pode ocorrer até mesmo ao custo de algum ocasional sacrifício na redução de custos.

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Caso da empresa Cyrus McCormick

• Metalúrgica em Chicago, década de 1880.• Contexto: intensos conflitos trabalhistas.• Decisão: introduzir novas máquinas a ar

comprimido, ainda não testadas, a alto custo.• Modernização do equipamento?• Objetivo real: afastar os trabalhadores mais

experientes, que organizaram o sindicato.• Na prática: máquinas abandonadas após 3 anos.

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Tudo é conspiração?

• Nem sempre:• Os aparatos que resultavam na exclusão de

deficientes físicos: negligência• Mas a discussão vai além do “intencional” e

do “não intencional”:• Em certas instâncias o desenvolvimento

técnico já está direcionado para produzir resultados que envolvem interesses sociais.

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Ao vencedor, os tomates...

• Colheitadeira desenvolvida na Universidade da Califórnia a partir dos anos 1940

• Colhe tomates em uma única passagem por fileira, cortando as plantas a partir do solo

• Tomates acomodados automatica/: gôndolas plásticas com capacidade até 25 toneladas

• Variedades de tomates mais duros, resistentes• Antes: trabalhadores separavam os tomates

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Resultado da nova colheitadeira

• Número de produtores caiu de 4 mil para 600 entre o início dos anos 60 e 1973

• Motivo: ao preço de US$ 50 mil, máquinas só eram compatíveis com produção concentrada

• Ao final dos 70s, mecanização tinha eliminado 32 mil empregos na indústria do tomate

• Aumento na produtividade beneficiou os grandes plantadores, às custas dos demais

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Impossível falar em conspiração

• Trata-se de “um processo social em curso no qual o conhecimento científico,

a inovação tecnológicae o lucro corporativo se reforçam mutuamenteem padrões padrões entreçalados, que

carregam o inequívoco selo do poder econômico e político.”

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Padrões sutilmente enraizados

• A colheitadeira é a corporificação de uma ordem que beneficia alguns e pune outros.

• Nesse contexto...• Quem se coloca contra é logo classificado

como:• “anti-tecnologia” ou “anti-progresso”...

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Dois tipos de escolha...

• ...que podem alterar a distribuição relativa de poder, autoridade ou prestígio:

• Primeiro tipo: desenvolver e adotar a coisa...... Ou não?Exemplos: agrotóxicos, construção de estradas,

energia nuclear, represas, armas high techRazões para adotar ou não valem tanto quanto a

decisão em si (para que servirá Belo Monte?)

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Um segundo tipo de escolhas:

• Depois que a decisão principal já foi tomada, é a hora dos “detalhes”:

• A rota em que será construída a linha elétrica• O sistema de televisão digital: japonês,

europeu ou brasileiro?• A tecnologia da represa em “linha d’água”...(No caso dos tomates,acréscimo de mecanismo

de classificação eletrônica.)

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Por trás de tudo isso...

• ...se observa o fato de que projetos tecnológicos aparentemente inócuos, em sistemas de trânsito, irrigação etc, mascaram escolhas sociais de profunda significação.

• As coisas que nós chamamos de tecnologia são formas de construir a ordem no mundo.

• Influenciam a maneira como as pessoas vão trabalhar, se comunicar, viajar, consumir....

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O + importante é a escolha inicial

• Decisões estruturantes: uma vez que os compromissos iniciais são assumidos, as escolhas tendem a se tornar fortemente fixadas no equipamento material, no investimento econômico e no hábito social.

• A flexibilidade inicial desaparece na prática.• Inovações tecnológicas: similares às leis que

estabelecem uma estrutura de ordem pública. Efeitos das escolhas podem durar gerações.

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E quando a escolha envolve o sistema de organização da vida social?

• (Ou seja: até aqui, tratamos de tecnologias usadas em arranjos específicos...)

• Lewis Munford (1960s): Desde a pré-história, dois tipos de tecnologia convivem:

• Autoritária: “centrada em sistemas, imensamente poderosa, mas inerentemente instável”

• Democrática: “centrada no ser humano, relativamente fraca, mas flexível e durável”

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Em debate, o autoritarismo

• Engels: defesa da autoridade forte como condição necessária à indústria moderna.

• O processo industrial da fiação: divisão clara de tarefas, “timing” fixado pela chefia, rígida disciplina. Trabalhadores têm de aceitar os horários regulares, subordinar suas vontades individuais aos responsáveis pela operação.

• O risco: de que a produção venha a parar.

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O caso da energia nuclear

• Opção exige estrutura centralizada, com alto grau de controle.

• Reciclagem do plutônio: leva ao aprofundamento do poder autoritário dos que comandam o sistema: medidas “extraordinárias”...

• Imperativos técnicos se sobrepõem a qualquer consideração moral ou política.

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Nuclear x energias alternativas...

• “Uma confiança segura no poder nuclear como principal forma de energia só será possível num estado autoritário.”

• “Fontes solares dispersas são mais compatíveis com a igualdade social, a liberdade e o pluralismo cultural do que as tecnologias centralizadas.” (David Hayes)

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Sempre alguém vai mandar?

• Para Engels, esse tipo de organização do trabalho ocorre independentemente do modo de produção: capitalista ou socialista.

• Precedente: em Platão, o exemplo do navio em alto mar. Alguém acha que ele pode ser dirigido democraticamente?

• Marx: visão divergente. A crescente mecanização tornará obsoleta a divisão hierárquica do trabalho, necessária nos primeiros estágios da manufatura moderna.

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A visão tecnocrática

• Desenvolvimento técnico exige/determina um modo particular de operar os sistemas de produção, transporte e comunicação:

• Organizações grandes, centralizadas e hierárquicas, administradas por gerentes altamentes especializados (Alfred Chandler)

• Exemplo das ferrovias.• A tradicional pequena firma familiar não pode

dar conta de organizar algo tão complexo.

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Uma verdade absoluta?

• O autor sugere que “existem outros arranjos concebíveis de poder e autoridade”. P.ex., casos em que o trabalhador auto-gerido se mostre capaz de administrar, em um esquema descentralizado, fábricas, refinarias, sistemas de comunicação e estradas de ferro...

• ...tão bem ou melhor que as organizações verticais defendidas por Chandler.

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Em suma...

• Será que Platão estava mesmo certo ao dizer que um navio no mar precisa ser dirigido por uma “mão forte” e que isto só poderia ser obtido por um único capitão e uma tripulação obediente?

• Será que os sistemas de produção em grande escala exigem controle gerencial centralizado e hierárquico?

• Não existe mesmo alternativa?

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Em jogo, aqui, outro dilema moral

• Argumentos morais são utilizados pelos dois lados envolvidos no debate:

• De um lado: o argumento moral da necessidade prática

• Do outro: a noção de que é bom para o marinheiro participar do comando do navio, ou de que os trabalhadores têm o direito de se envolver nas decisões de uma fábrica.

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Problema vai além da tecnologia

• No discurso político dominante, os argumentos morais de outros tipos que não os de necessidade prática aparecem cada vez mais como obsoletos, “idealistas”,irrelevantes.

• Qualquer alegação feita em nome de outros valores (justiça, igualdade) é neutralizada com argumentos “práticos”: “só assim a coisa pode funcionar”...

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Muita coisa em jogo...

• Assim, naturaliza-se a velha frase:“A democracia termina nos portões da fábrica”,Como se isso fosse um fato normal da vida, sem

nada a ver com as práticas da liberdade política.

Mas será que as políticas internas aos sistemas tecnológicos e a política como um todo podem ser facilmente separadas?

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“Impaciência” com a democracia

• Pesquisa com gerentes nos EUA:• “Se a democracia não funciona para a firma,

que é a principal instituição de toda a sociedade (perguntam os executivos americanos) será que ela pode funcionar bem para a sociedade? E quando o governo tenta interferir nas decisões tomadas pela firma?”

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A visão do autor

• Em qualquer circunstância é preciso levar em conta o contexto em que as decisões tecnológicas são tomadas.

• Um navio em alto mar é diferente do mesmo navio no porto...

• Fundamental: um olhar mais crítico sobre as decisões justificadas em nome de necessidades impostas por inovações tecnológicas. (Mais fáceis de aceitar...)

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