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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem n o 44, p. 21-46, 2012 21 OS MUNDOS IMAGÉTICOS DE BENJAMIN 1 OBJETOS, TEORIAS, EFEITOS Detlev Schöttker Antes da teoria das imagens D ado que a escrita se originou, no decorrer de sua história, de signos imagéticos, ela permaneceu sempre ligada à imagem através da visu- alidade e da metáfora. Tal concepção da imagem é, contudo, muito mais ampla que a das artes plásticas. Ela compreende não apenas as imagens reais, como pinturas, o grafismo e a fotografia, senão também as imagens mentais (inneren Bilder), como sonhos, recordações e mitos. Todavia, até hoje não existe nenhuma disciplina acadêmica que tenha abarcado essa abrangente concepção de imagem. No final do século XVIII, após a estética ter evoluído para uma teoria da arte, sob o influxo do idealismo alemão, as questões filosóficas da literatura e da música permaneceram no centro de suas atenções até meados do século XX. As imagens reais e, portanto, fisicamente apreensíveis, se tornaram objeto da história da arte, ao passo que as imagens mentais couberam à psi- cologia, mas, mesmo aqui, foram pouco consideradas. Por outro lado, apenas uns poucos pensadores se ocuparam com as conexões entre escrita, imagem e fantasia. A esse restrito grupo pertence Walter Benjamin. Seu interesse por um conceito de imagem abrangente se baseia em dois motivos: por um lado, ele almejava desenvolver, desde seu ensaio “Sobre o 1 Este texto foi publicado originalmente em Detlev Schöttker (org.) Schrift. Bilder. Denken: Walter Benjamin und die Künste. Frankfurt/Main: Suhrkamp/Haus am Waldsee, 2004, p.10-29. A versão aqui traduzida foi adaptada do texto da conferência de Detlev Schöttker veio à UFF - Instituto de Letras - em junho de 2011. A tradução foi feita por Erick Fe- linto e Adalberto Müller, com sugestões de Susana Kampf-Lages. As edições de Benjamin citadas no texto são, doravante abreviadas: 1) GS = Gesammelte Schriften, Frankfurt/Main: Suhkamp, 1972-1989 (14 vol.); 2) GB= Gesammelte Briefe, Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1995-2000 (6 vol.)

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oS muNdoS imAgéTicoS dE BENjAmiN1

oBjEToS, TEoriAS, EfEiToS

Detlev Schöttker

Antes da teoria das imagens

Dado que a escrita se originou, no decorrer de sua história, de signos imagéticos, ela permaneceu sempre ligada à imagem através da visu-alidade e da metáfora. Tal concepção da imagem é, contudo, muito

mais ampla que a das artes plásticas. Ela compreende não apenas as imagens reais, como pinturas, o grafismo e a fotografia, senão também as imagens mentais (inneren Bilder), como sonhos, recordações e mitos. Todavia, até hoje não existe nenhuma disciplina acadêmica que tenha abarcado essa abrangente concepção de imagem. No final do século XVIII, após a estética ter evoluído para uma teoria da arte, sob o influxo do idealismo alemão, as questões filosóficas da literatura e da música permaneceram no centro de suas atenções até meados do século XX. As imagens reais e, portanto, fisicamente apreensíveis, se tornaram objeto da história da arte, ao passo que as imagens mentais couberam à psi-cologia, mas, mesmo aqui, foram pouco consideradas. Por outro lado, apenas uns poucos pensadores se ocuparam com as conexões entre escrita, imagem e fantasia. A esse restrito grupo pertence Walter Benjamin.

Seu interesse por um conceito de imagem abrangente se baseia em dois motivos: por um lado, ele almejava desenvolver, desde seu ensaio “Sobre o

1 Este texto foi publicado originalmente em Detlev Schöttker (org.) Schrift. Bilder. Denken: Walter Benjamin und die Künste. Frankfurt/Main: Suhrkamp/Haus am Waldsee, 2004, p.10-29. A versão aqui traduzida foi adaptada do texto da conferência de Detlev Schöttker veio à UFF - Instituto de Letras - em junho de 2011. A tradução foi feita por Erick Fe-linto e Adalberto Müller, com sugestões de Susana Kampf-Lages. As edições de Benjamin citadas no texto são, doravante abreviadas: 1) GS = Gesammelte Schriften, Frankfurt/Main: Suhkamp, 1972-1989 (14 vol.); 2) GB= Gesammelte Briefe, Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1995-2000 (6 vol.)

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Programa da Filosofia Vindoura”(1918), uma teoria da experiência na qual as imagens mentais desempenhassem papel central. Por outro lado, desde os anos 20, as imagens reais teriam exercido grande influência na formação da ex-periência (Erfahrungsbildung) através de sua reprodução massiva na fotografia, no cinema e no jornalismo. Desse modo, apresentavam um desafio para a teo-ria cultural, ao qual Benjamin queria responder com sua teoria da experiência. Com isso, ele antecipou um desenvolvimento que se vinha realizando desde a metade do século XIX em diferentes disciplinas acadêmicas, como a história da arte, a crítica literária e a filosofia – nomeadamente a orientação para as imagens e seu impacto sobre formas de pensamento e comportamento2.

Nesse meio tempo, o termo “teoria da imagem” (Bildwissenschaft) passou a ser utilizado para definir o comércio com as formas e os efeitos dos fenô-menos ligados à imagem. Os escritos de Benjamin oferecem contribuições para os questionamentos de uma tal disciplina, pois não se limitam aos tra-dicionais domínios acadêmicos, mas também incluem saberes da mitologia, da psicanálise e da teologia, sem os quais as imagens mentais não podem ser adequadamente investigadas e explicadas. Minha intenção é esclarecer, a partir de domínios centrais de sua obra, o conceito de imagem que se encontra na base dos escritos de Benjamin.

As imagens de klee e suas consequências

O encontro mais significativo de Benjamin com um trabalho de artes plásticas foi a aquisição da gravura Angelus Novus, de Paul Klee. Ele comprou a imagem em 1921, em uma galeria de Munique, e a considerou, até sua morte, como um de seus mais importantes bens (FIGURA 1)3. Ainda no ano dessa aquisição, ele desejava dar o nome da obra a uma publicação que deveria preparar seu ingresso no campo do jornalismo elevado. Em 1940, interpretou

2 Cf. Gottfried Boehm (org.), Was ist ein Bild? München 1994; Gernot Böhme, Theorie des Bildes. München 1999; Christa Maar/Herbert Burda (orgs.), Iconic Turn. Die neue Macht der Bilder. Köln 2004.

3 Comparar com a recepção e história dessa gravura na obra de Benjamin, em Gershom Scho-lem, Walter Benjamin und sein Engel (1972), incluído no mesmo Walter Benjamin und sein Engel. Vierzehn Aufsätze und kleine Beiträge. Org. por Rolf Tiedemann. Frankfurt/Main 1983, S. 35-72.

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alegoricamente a gravura na mais nova de suas Teses sobre o Conceito de His-tória, de modo a apoiar sua concepção da história: “há uma imagem de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar--se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas” (GS I, 697).

Não obstante muito se haver escrito sobre esta interpretação da figura como “Anjo da História”, pouco se considerou a pré-história da imagem na obra de Benjamin4. Ela remete aos primórdios da preocupação de Benjamin com as artes plásticas, que foi desencadeada por uma carta (hoje perdida) de Gershom Scholem a Benjamin5. Scholem escreve, em 1917, sobre a gravura de Picasso Dama com Leque, que ele havia visto em uma exibição da gale-ria “Sturm” em Berlim. Benjamin descreve este escrito como “Carta sobre o Cubismo”, anuncia o envio de uma transcrição de seu escrito “Sobre a Pin-tura”, elaborado pouco antes, e chega mesmo a efetuar considerações sobre o cubismo, que ele liga a um reconhecimento de Klee, e um afastamento de Picasso. Nessa carta, lemos:

Entre os pintores modernos Klee, Kandinsky e Chagall, Klee é o único que apresenta abertamente conexões com o Cubismo. De fato, diante das imagens de Picasso, venho tendo sempre, até aqui, essa impressão de falta de potência e inacessibilidade, que você, para minha alegria, confirma [...] Você toma como quintessência do Cubismo ‘a comunicação do ser do espaço, que é o mundo, através de decomposição’. Nessa definição, pa-rece-me existir um equívoco referente à relação da pintura com seus objetos sensíveis. Em verdade, na geometria analítica posso oferecer a equivalência de uma imagem bi- ou tridimensional, sem com isso (entrar) sair da análise do espaço. Contudo, o mesmo não é possível fazer na pintura; pintar Dama com Le-

4 Cf., como primeira interpretação abrangente, Otto Karl Werckmeister, Walter Benjamin, Paul Klee und der ́Engel der Geschichte ́. In: Neue Rundschau 87 (1976), H. 1, p. 16-40.

5 Cf. a sentença de Scholem em Walter Benjamin, Briefe. 2 Bde. Organizado e com notas de Gershom Scholem e Theodor W. Adorno. Frankfurt/Main 1978 [primeira edição 1966], Bd. 1, S. 156f. Os organizadores da Correspondência Completa de Benjamin adotaram a afirmativa de Scholem (GB II, 397).

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que (por exemplo), de modo a comunicar o ser do espaço por meio de decomposição. Antes, a comunicação deve referir-se inteiramente, sob todas as circunstâncias, à Dama com Leque (GB I, 394s.)

Diferentemente do que se passa nessa carta, no já mencionado escrito de título “Sobre a Pintura ou Signo e Marca”, Benjamin não abordou o Cubismo, mas tratou de uma questão fundamental da pintura: a relação entre superfície visível e sentido da imagem. Ele buscou explicar essa relação com auxílio dos conceitos de signo, marca e medium, de modo que utilizou aqui, pela primeira vez, o conceito de medium que mais tarde conquistará posição central em seus escritos6. “Aqui”, escreve ele, “deve-se enxergar a diferença fundamental entre o signo, que é impresso, e a marca, que emerge. Isso indica que a esfera da marca é a de um medium” (GS II, 605). Como exemplo de uma marca, oferece Benjamin, entre outros, os “estigmas de Cristo”. A relação entre ima-gem e marca é produzida através da “palavra linguística” (das sprachliche Wort), que não está presente na forma de discurso ou escrita, mas na composição da imagem. “Se a imagem fosse apenas marca”, escreve ainda ele, “tornar-se-ia assim completamente impossível de nomear. (...) Essa conexão com aquilo que transcende a marca é realizada pela composição. Este é o ingresso de um poder superior no medium da marca (...). Tal poder é a palavra linguística que se estabelece no medium da linguagem pictórica, invisível enquanto tal, e revelável apenas na composição” (ibid., p. 606 e ss.).

Não obstante essas reflexões precoces testemunharem uma busca intensa de apreensões teóricas das artes plásticas, Benjamin não se ocupou com ima-gens reais nos trabalhos seguintes, mas sim com a linguagem ou a escrita e sua implementação na literatura e na filosofia. Trata-se dos ensaios “Dois Poemas de Friedrich Hölderlin” (1915) e “Sobre a linguagem em Geral e sobre a Lin-guagem dos Homens” (1916), bem como da dissertação Sobre o Conceito de Crítica no Romantismo Alemão (1919) e dos escritos posteriores “Destino e Caráter” (1919), “Para uma Crítica da Violência” (1921) e As Afinidades Ele-tivas de Goethe (1922, publicado entre 1924/1925). Mesmo no extenso traba-

6 Cf. Walter Benjamin, Medienästhetische Schriften. Organização e posfácio de Detlev Schöt-tker. Frankfurt/Main 2002 (stw 1601).

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lho sobre o romance de Goethe, que poderia ter tido como objeto um exame das artes plásticas – já que descreve a construção de uma capela de povoado, no meio da sua segunda parte –, Benjamin não se envolveu com imagens reais, mas sim com os panos de fundo místicos das constelações de personagens, logo, com as imagens imateriais evocadas pela escrita (cf. GS I, 123 e ss.).

Também o fato de ter recebido de sua esposa, dois anos antes da aquisi-ção do Angelus Novus, uma outra obra de Klee, não deixou nenhum rastro em seus escritos – ainda que tenha relatado enfaticamente a Scholem sobre esse presente numa carta de julho de 1920: “Dora talvez já lhe tenha mencionado sobre como me alegrou; sobretudo com uma maravilhosa obra de Klee inti-tulada “Die Vorführung des Wunders” (A exibição dos milagres)”. Das outras indicações de Benjamin se depreende claramente que ele não se lembrava mais da carta anterior, já que escreve: “Conheces Klee? Eu o admiro imensamente, e esta é a mais bela de todas as obras dele que já vi” (GB II, 92 e ss.). Con-tudo, Benjamin nunca mencionou a aquarela (que fora mostrada na galeria “Sturm”, de Waldens em 1916) em seus escritos e provavelmente a revendeu. Hoje, ela se encontra no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque7. O trágico, neste caso, foi o fato de Benjamin não ter conseguido chegar a esse locus da modernidade, que conhecia apenas através de cartas de outros imigrantes. Isso porque não pôde vender o Angelus Novus pelo valor de que necessitava para a planejada mudança para os Estados Unidos. “A questão central”, escreve ele, em princípios de agosto de 1939, ao autor e colecionador de arte Stephan La-ckner, “são os custos da viagem. Penso que devo tentar equiparar o que posso conseguir pelo Klee com o que devo ter para a viagem” (GB VI, 323).

Entrelaçamento da arte em imagem: vanguarda e livro infantil

Em 1924, Benjamin havia retomado suas precoces reflexões sobre a pin-tura em dois textos sobre fotografia e ilustrações de livros infantis. À primeira vista, eles não têm nada a ver um com o outro, porém estão estreitamente conectados. Trata-se da tradução de um texto de Tristan Tzara sobre Man Ray, que fora publicado em junho de 1924 na revista G, sob o título “O Reverso 7 As circunstâncias da compra são desconhecidas. As indicações de proveniência oferecem

pouca informação. Cf. Paul-Klee-Stiftung/Kunstmuseum Bern (Hg.), Paul Klee. Catalogue Raisonné, Bd. 2: 1913-1918. Bern 2000, Nr. 1651.

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da Fotografia” (GS Supl. I, p. 9 e ss.), bem como de uma recensão do livro de Karl Hobrecker “Antigos Livros Infantis Esquecidos”, que apareceu em 1924 no Illustrierte Zeitung (GS III, p. 14 e ss.). Nos dois textos, Benjamin se ocupa pela primeira vez com obras das artes plásticas e trata de um tema que aparecia como foco de seus primeiros escritos de 1915 sobre estética (cf. GS VI, 109) – ou seja, o papel das imagens na imaginação (Phantasie).

Em seu curto ensaio, Tzara tratava do procedimento da ‘fotografia sem câmera’ inventado por Man Ray8. Nesse processo, objetos eram iluminados diretamente sobre a placa fotográfica, de modo que a fotografia pudesse imi-tar a pintura. Man Ray designou esse procedimento como “Raiografia” e o apresentou, pela primeira vez, no volume Champs délicieux (Paris, 1922), no qual o texto de Tzara compunha a introdução. Tzara escreveu: “Quando tudo que se chamava arte se viu afligido de reumatismos, o fotógrafo ativou sua lâmpada de 1000 watts, e o papel fotográfico gradualmente absorveu o negro recortado por alguns objetos de uso cotidiano”. Em seguida, Tzara entra na questão da apreciação das fotografias:

Estamos lidando aqui com uma espiral aquática ou com o trá-gico brilho de um revólver, com um ovo, um arco ofuscante ou um represamento da razão, um ouvido sensitivo ou um apito mi-neral ou uma turbina de fórmulas algébricas? (GS, Supl. I, 11).

Benjamin utilizou a primeira das duas citações em seu ensaio Pequena História da Fotografia (1931) (GS II, 383), após ter chamado Man Ray de fotógrafo “excepcional” no artigo Fantasia sobre Kiki (1927). Como prossegue ele referindo-se a Man Ray, este “tomou o Dada e o retocou nos traços algo esgotados do Surrealismo” (GS IV, 485). No artigo sobre Kiki, informa Benja-min a respeito de uma exposição parisiense da dançarina e pintora Alice Prin, que se autointitulava ‘Kiki de Montparnasse’ e era amante de Man Ray9. As pinturas em si, ele as avaliava com certo distanciamento:

8 Cf. Man Ray – Photograph. München 1982.9 Ela se tornou conhecida como modelo do nu de costas Le Violon d’Ingres, sobre o qual Man

Ray pintou os “ouvidos” de um violino. Benjamin pode ter visto a imagem no periódico Littérature, onde ela foi publicada pela primeira vez em junho de 1924.

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Eu não sei como se posicionam os beócios conhecedores da pin-tura diante dessas imagens especulares. Talvez muitos tenham tido um vislumbre de estudos sobre as formações rosadas em suas bochechas, mais apaixonantes para eles que as do fundo das pinturas. Mas os pintores e seus conhecedores mantêm-se fiéis a seus colegas” (ibid., 485).

Benjamin conhecia, portanto, não apenas os debates literários das van-guardas em Paris, senão também os estéticos10. Nesse sentido, o artigo de Tza-ra sobre Man Ray representava também as mais importantes tendências da vanguarda europeia, segundo o Futurismo, o Dadaísmo, o Construtivismo e o Surrealismo. Tzara fora fundador, junto com Hans Arp, Marcel Janco e Hugo Ball, fundador do ‘Cabaret Voltaire’ de Zurique, no qual nascera, em 1916, o Dadaísmo. Em Berna, Benjamin e Ball mantiveram contato constante em 1917 como vizinhos. De Zurique, Tzara partiu para Paris em 1920, onde tomou parte em ações dadaístas que prepararam o Surrealismo. Lá ele encon-trou Man Ray, que tinha vindo, em 1921, como representante do movimento dada nova-iorquino e terminou filiado ao movimento surrealista. Benjamin já se vinha ocupando do Surrealismo desde a metade dos anos 1920 e tinha elaborado algumas ideias a respeito em seus escritos. A revista G, por sua vez, foi a primeira instituição construtivista alemã que abarcou a totalidade das vanguardas europeias. Além do editor Hans Richter, que Benjamin tinha co-nhecido em 1919, em Berna, através de Hugo Ball, pertencia ainda ao corpo de redatores Ludwig Mies van der Rohe, que se tornou, junto com Le Corbu-sier, um dos fundadores da arquitetura moderna.

Os autores da G ampliaram fortemente o espectro das artes imagéticas tradicionais através da fotografia, do cinema e da arquitetura, algo sobre o que Benjamin estava bem informado: por meio de colagens de textos e imagens (no Dadaísmo), conexões entre arte e técnica (Construtivismo) e do destaque da atividade do imaginário (no Surrealismo). No mesmo volume da G no qual Benjamin publicara a tradução de Tzara, escreveram, por exemplo, Ludwig Mies van der Rohe sobre A Construção Industrial, Ludwig Hilbersheimer sobre

10 Para detalhes, Cf. Detlev Schöttker, Konstruktiver Fragmentarismus. Form und Rezeption der Schriften Walter Benjamins. Frankfurt/Main, 1999 (stw 1428).

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A Construção e a Forma, George Grosz sobre George Grosz, Kurt Schwitters sobre Poesia Consequente e Raoul Hausmann sobre A Moda. Ainda no ano da publicação, Benjamin encontrou-se em Capri com representantes do Futuris-mo – entre os quais Marinetti, Vasari e Prampolini –, como relatou em uma carta a Gottfried Salomon (cf. GB II, 493). Isso depois de já ter mencionado a “pintura futurista” em seus primeiros escritos de 1915 sobre estética (cf. GS VI, 109).

Em ensaios e artigos que vinha publicando desde meados dos anos 1920, como “A Nova Poesia na Rússia” (1927), “O Surrealismo” (1929), “Experiên-cia e Pobreza” (1933) e “A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica” (1936), Benjamin abordou quase todos os representantes dos movi-mentos europeus de vanguarda. Aqui, todavia, as inovações estéticas das artes plásticas desempenhavam um papel inferior em contraste com a literatura. Em vez disso, Benjamin se dedicou a um tema aparentemente marginal das artes plásticas, as ilustrações de livros infantis. Para tanto, ele pôde apoiar-se em uma coletânea que havia organizado junto com sua esposa Dora11. Na versão expandida de sua discussão sobre o livro de Karl Holbrecker Alte verges-sene Kinderbücher, lê-se sobre as ilustrações de Peter Lyser, às quais Benjamin, como colecionador, prestou particular atenção:

O colorido de suas litografias contrasta fortemente com as de Biedermeier e adequa-se à desgastada e insípida expressão de muitas formas, das paisagens sombrias, da atmosfera fantasio-sa (Märchenstimmung), que não estão livres de uma impressão irônico-satânica (GS III, 19).

Para Benjamin, trata-se de questões metafísicas, não estilísticas. Em sua avaliação das ilustrações dos livros infantis, as reflexões se sobrepõem com ideias do Surrealismo, pois Benjamin emprega ali conceitos como sonho, des-pertar, fantasia e vida psíquica, que emergiam, ao mesmo tempo, no Primeiro

11 Após o divórcio, em 1930, a coleção foi transferida à esposa de Benjamin; ela hoje se en-contra no Institut für Jugendbuchforschung da Universität Frankfurt/Main. Cf. Stadt- und Universitätsbibliothek Frankfurt/Main (Org.), Die Kinderbuch-sammlung Walter Benjamin. Frankfurt/Main 1987 und Klaus Doderer (Org.), Walter Benjamin und die Kinderliteratur. Aspekte der Kinderkultur in den zwanziger Jahren. Weinheim, München 1988.

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Manifesto do Surrealismo (1924), de André Breton. Enquanto Breton falava, por exemplo, em uma “dissolução” da “relação opositiva entre sonho e re-alidade” 12, Benjamin destacava a diferença entre as percepções de imagens coloridas e em preto e branco: “no reino das imagens sem cor, a criança des-perta, assim como segue sonhando no reino das imagens coloridas” (GS III, 21). Desse modo, as considerações de Benjamin sobre as ilustrações de livros infantis localizam-se no ponto de partida de suas reflexões sobre as concepções estéticas da vanguarda.

Na recensão de Hobrecker, Benjamin aborda, além disso, a simbólica barroca, com a qual ele se vinha ocupando, ao mesmo tempo, na sua Habilita-tionsschrift sobre A Origem do Drama Barroco Alemão. Ele expressa a suposição de que as ilustrações dos livros infantis possam entreter “conexões históricas com a emblemática do Barroco”, pois a “tarefa artística” daquelas seria aparen-tada “à da combinação imagético-textual de objetos alegóricos que apresentam o signo do Barroco” (GS III, 17 e ss.). Antes disso, ele já havia assinalado em uma carta a Scholem, de março de 1924, sua “paixão pela emblemática bar-roca” e oferecido uma evidência sobre a rentabilidade de comparar emblema e ilustrações de livros infantis em obras que a isso se prestam: “Não há dúvida”, escreve, “que existem variadas conexões entre as ilustrações dos antigos livros infantis e aquelas da emblemática” (GB II, 433).

imagens por detrás da escrita: o livro do drama barroco e rua de mão única

Benjamin se dedica à relação entre escrita e imagem no Barroco na se-gunda parte de seu livro sobre o Trauerspiel. A alegoria barroca é entendi-da aqui como uma forma do “escritural” (Geschriebene) que conduziria “à imagem” – de fato, tanto “no caráter explícito da sentença escrita como na metáfora ornada” (GS I, 351). O emblema é, assim, apenas expressão de abrangentes tendências alegóricas na literatura do século XVII. “No contexto da alegoria”, escreve Benjamin, “a imagem é apenas signatura, somente um monograma da essência, não a própria essência em sua máscara. Mas não

12 Cf. a gravura em Karlheinz Bark (org.): Surrealismus in Paris 1919-1939. Ein Lesebuch. Se-gunda edição modificada. Leipzig 1990 (Reclam-Bibliothek 1078), pp. 82-120, aqui, p. 94.

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existe nada de subordinação a respeito da escrita, ela não é descartada na lei-tura como dejeto. É absorvida, com o lido, como sua ‘figura’. Os impressores, os escritores do Barroco devotaram sua mais dedicada atenção ao padrão das palavras (Schriftfigur) na página” (GS I, 388).

Na ênfase tanto da visualidade exterior como interior da escrita, sobre-põem-se a Vanguarda e o Barroco, como demonstra seu pendor compartilha-do pelos poemas visuais13. Benjamin considerou essa semelhança também no livro sobre o Trauerspiel, como mostram os conceitos que ele utilizou no capí-tulo sobre as ruínas para descrever os procedimentos poéticos do Barroco. Eles derivam todos da poética vanguardista, que Benjamin conhecera também por meio dos manifestos da Vanguarda14. É assim que ele fala da “experimentação dos poetas barrocos” (GS I, 354), da “explícita construção”, da “ostentação da confecção” (ibid., 355), da “obra de arte total” (356) e do “entrelaçamento de todas as artes” (357), bem como da “sincronia dos eventos” (370).

Apenas em uma ocasião, Benjamin abordou, de forma mais detalhada, uma obra de imagem real no livro sobre o Trauerspiel. Trata-se da gravura de Dürer, Melancholia I, de 1514 (im. 13). Por meio dela, explicita Benjamin sua concepção de que a alegoria é expressão da melancolia (cf. GS I, 326 e ss.). Essa teoria foi bastante discutida15, como paulatinamente se revela, na leitura de trabalhos do círculo da Biblioteca de Warburg. A este círculo pertencem, além do livro de Erwin Panofsky e Fritz Saxl sobre a Melancolia I de Dürer (1923), o escrito de Aby Warburg Profecia Pagã em Palavra e Imagem na Época de Lutero (1920). Ambas as obras são apreciadas em cartas (cf. GB II, 509) e no livro sobre o drama barroco (cf. GS I, p. 327 e ss.). De fato, elas tiveram amplas consequências sobre a concepção benjaminiana de imagem. As refle-xões sobre a relação entre imagens e formas de pensamento contribuíram para reconduzir uma forma imagética poética como a da alegoria para uma forma de experiência como a da melancolia.

13 Cf. Jeremy Adler/Ulrich Ernst, Text als Figur. Visuelle Poesie von der Antike bis zur Moderne. Weinheim 1987.

14 Cf. a documentação de Wolfgang Asholt/Walter Fähnders (orgs.), Manifeste und Proklama-tionen der europäischen Avantgarde (1909-1938). Stuttgart 1995.

15 Ver, como exemplo, as obras de Klaus Garber, Rezeption und Rettung. Drei Studien zu Walter Benjamin. Tübingen 1987, p. 59 e ss. e, do mesmo Garber, Zum Bildes Benjamins. Studien, Porträts und Kritiken. München 1992, S. 193ff.

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Ainda que os esforços de Benjamin de entrar em contato pessoal dire-to com Saxl, Panofsky e Warburg (GB III, 307 e ss.) – através do envio do livro sobre o drama barroco e de cartas complementares de Hofmannsthal e Scholem –, tenham fracassado, suas avaliações sobre os trabalhos do círculo de Warburg resultam, mesmo assim, muito positivas16. Em julho de 1928, ele escreve para Siegfried Kracauer após a leitura de uma recensão de dois volumes com palestras da Biblioteca Warburg, publicadas no Frankfurter Zeitung. Nesta carta, Benjamin afirma que a recensão teria “confirmado sua suposição de que as publicações acadêmicas mais importantes para nossa forma de abordagem se agrupam cada vez mais em torno do círculo de Warburg” (GB II, 400). A for-mulação “nossa forma de abordagem” (unsere Anschauungsweise) aponta para o método de análise de imagens orientado para uma perspectiva teórico-cultural, cujo direcionamento histórico-artístico é apresentado pela iconologia. Com isso, as obras das artes plásticas são não apenas investigadas estilisticamente, mas também são compreendidas como documentos, nos quais formas de ex-periência do passado são processadas e, desse modo, tornam-se presentes para o observador.17 Efetivamente, Panofsky e Saxl ampliaram a teoria e o método da iconologia apenas após a morte de Warburg (1928), porém, Benjamin tinha já precocemente discernido as ideias fundamentais da iconologia, transplan-tando-as para a literatura. O que importava para ele (assim escreve em um memorial de 1928) consistia em “uma análise da obra, na qual se reconhece integralmente, sem nenhuma espécie de limitação, a expressão das tendências religiosas, metafísicas, políticas e econômicas de uma época” (GS VI, 219)18.

A precisão com que Benjamin reproduz aqui as ideias fundamentais da iconologia é mostrada pelo ensaio de Edgar Wind “O Conceito de Ciência da Arte de Warburg e sua Significação para a Estética”, que fora publicado em 1931 no Zeitschrift für Ästhetik und allgemeine Kunstwissenschaft. Wind, que pertencia ao mais íntimo círculo de colaboradores de Warburg, escreve aqui:

16 Cf. a contribuição de Sigrid Weigel no texto para o volume Bild.Schrift.Denken (cf. n. 1), p. XXX.

17 Cf., da variedade de publicações de Martin Jesinghausen-Lauster, Die Suche nach er sym-bolischen Form. Der Kreis um die Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg. Baden-Baden 1985 e Michael Diers (org.), Porträt aus Büchern. Bibliothek Warburg und Warburg Institute. Hamburg, 1993.

18 Cf. D. Schöttker, “Von Ideologiekritik zur Kulturtheorie”. In: H. Knoch & D. Morat (org.), Kommunikation als Beobachtung. München, 2013.

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ao conceito do puro olhar artístico, que Wölfflin desenvolveu em confrontação com Burkhardt, opõe Warburg a noção de ‘cultura total’, na qual o olhar artístico tem uma função neces-sária. Todavia, quem quiser compreender a funcionalidade des-se olhar – assim reza outra exigência – não pode desvinculá-lo inteiramente de sua relação com as restantes funções culturais. Deve, antes, levantar a dupla questão: o que significam essas funções restantes – religião e poesia, mito e ciência, sociedade e estado – para a imaginação criadora?” (bildhafte Phantasie).19

Não se sabe se Benjamin leu o ensaio. Entretanto, não se podem apagar as diferenças entre a concepção de análise imagética do círculo de Warburg e a de Benjamin, que mais tarde se ampliou com o direcionamento deste para a esquerda. De fato, Benjamin se ocupara, em fins dos anos 1920, não com imagens reais, mas sim com imagens da literatura e da imaginação. A escri-ta permanece questão central. Isso já é demonstrado por Rua de Mão Única (1928), que Benjamin compilou em seguida ao livro do Trauerspiel com base em seus textos aforísticos. Em verdade, a figura aqui se converte – no sentido do Barroco e da Vanguarda – em ‘figura’, já que os curtos textos se enfilei-ram como casas em uma rua, através da formatação tipográfica do livro, e são correspondentemente designados (como “guichê de achados e perdidos” e “cervejaria”). Porém, essas ruas-imagem, segundo escreve Benjamin a Scholem sobre a concepção do livro em setembro de 1926, deveriam permitir “uma perspectiva de profundidade tão abrupta” como “o conhecido cenário do tea-tro de Palladios: a rua” (GB III, 197).

A comparação aponta para a dimensão conceitual do texto (gedankliche Dimension), que se revela não através de contemplação, mas apenas de lei-tura. De fato, Sasha Stone sugeriu essa dimensão de profundidade por meio de uma montagem em perspectiva de fotografias da metrópole na capa de Rua de Mão Única (FIGURA 2). Contudo, Benjamin renunciou conscien-temente a imagens reais, não obstante ter adaptado o formato do livro ao de uma brochura, publicando-o em revistas ilustradas. Stone, que era amiga de 19 Edgar Wind, “Warburgs Begriff der Kulturwissenschaft und seine Bedeutung für die Ästhe-

tik (1931)”. In: D. Wuttke & C.G. Heise (org.). Abby M. Warburg. Ausgewählte Schriften. Baden-Baden, 1980, p. 404 s.

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Benjamin, fotografara extensivamente nas ruas da cidade, e em 1929 publi-cou o livro Berlim em imagens. Portanto, dotar o texto de Rua de Mão Única de fotografias adequadas não constituía certamente nenhum problema. No texto “Residências de dez aposentos ricamente mobiliadas” (IV, 88), Ben-jamin chega mesmo a aludir a uma foto de Stone, que se encontra em três variantes em seu espólio. Também se encontram, em outros textos, corres-pondências visuais com fotografias contemporâneas. Todavia, Rua de Mão Única destaca-se precisamente pela renúncia sistemática a imagens impressas. Trata-se, aqui, antes, de presentificar a dimensão metafísica da modernidade por meio de textos escritos. Benjamin elaborou, desse modo, um programa que ele descreveu, em 1918, como esboço para um ensaio sobre Stifter da seguinte forma: “ele [Stifter] só pode criar no plano visual. Isso não significa que ele reproduza apenas o visível, pois, como artista, possui estilo. Porém, o problema de seu estilo é como ele apreende em tudo as esferas metafisica-mente visuais” (GS II, 609).

Das imagens de Proust e kafka à infância em Berlim 

Essa “esfera metafísica” despertou o interesse de Benjamin, quando ele, na metade dos anos 1920, aproximou-se das ideias do Surrealismo. Louis Ara-gon representou-a num capítulo de seu romance Paysan de Paris (1926), in-titulado “Discurso da Fantasia”. Esse capítulo não consta dos parágrafos que Benjamin traduziu para o Literarische Welt (cf. Suppl., I, p. 16 ss.), mas isso não escapou à atenção de Benjamin. Entre outras coisas, Aragon escreveu: “Esse vício, chamado Surrealismo, consiste no uso desordenado e ardente da imagem narcotizante, ou ainda, na incontrolável conjuração da imagem con-tra a sua própria vontade”.20

Também no texto O Surrealismo (1929), Benjamin defendeu uma con-cepção sobre a imagem de fantasia, que se diferenciava daquela dos surrealis-tas. Sua atenção não se dirigia para o “opiômano, o sonhador, o intoxicado”, mas para “o leitor, o pensador, o atento, o flâneur”(GS II, 308). Benjamin descreveu a experiência imagética desses protótipos do moderno como “ilumi-nação profana” ou “inspiração antropológica [id., 297) e também caracterizou

20 Louis Aragon, Pariser Landleben. Le paysan de Paris. München 1969, p. 78 s.

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como um “espaço-imagem” o que se pode apreender com um “mundo univer-sal e atualidade integral” (id. 309 ss.).

Embora Benjamin não tenha apresentado essa ideia, alguns ensaios li-terários, que ele publicou desde 1929, apontam para esse “espaço-imagem”. Entre eles estão os ensaios sobre Proust e Kafka, os quais Benjamin apresenta, junto com James Joyce, em um Memorial de 1928, como os “os três grandes metafísicos entre os poetas da atualidade” (GS IV, p. 219). De fato, Benjamin não trata, nesses ensaios, do estilo de Proust e de Kafka, ou da estrutura de suas Obras, mas do seu mundo de imagens. No romance de Proust A la recherche du temps perdu, cujos volumes três e quatro ele traduziu a quatro mãos com Franz Wessel, no final dos anos 1920, Benjamin se interessa em saber o que são as recordações, as quais Proust constitui como o fundamento de sua narrativa.

No seu ensaio, Benjamin dedica-se à questão do caráter imagético da memória, da memória involuntária, que Proust descreve no exemplo do epi-sódio da Madalena, no primeiro volume da Recherche. “Sabe-se que a maioria das lembranças”, diz Benjamin, “surgem diante de nós como imagens faciais. E também as imagens destacadas da mémoire involontaire são em boa parte isoladas, retratos presentes apenas de forma enigmática” (id., p. 323). De um texto de 1932, publicado com o título “Um pequeno discurso sobre Proust, proferido por ocasião dos meus quarenta anos”, restou um fragmento, no qual Benjamin procura igualmente descrever o caráter imagético da memória in-voluntária, marcando, aliás, uma posição distinta da de Proust em relação à realidade. “Suas imagens”, segundo Benjamin, “não chegam até nós sem serem chamadas; trata-se de imagens que nunca vimos antes de nos lembrarmos delas” (GS IV, 1064).

A contraposição entre a memória e a sua transposição épica levou a que Benjamin buscasse uma forma de representação diferente da de Proust, quan-do começou a escrever, em 1932, as suas memórias da infância em Berlim. “Aqui também”, escreve ele em 1932 nas Crônicas Berlinenses, “o assunto é o espaço, um instante e a descontinuidade. Pois se aqui também surgem anos e meses, isso acontece na forma em que os mesmos emergem no momento da consciência” (GS IV, 488).

Benjamin refere-se duas vezes ainda, também na Infância Berlinense, a imagens reais. Trata-se de duas fotos no episódio “Die Mummerehlen” (“A tia Rehlen”). A existência da primeira foto já não pode ser verificada, se é que

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realmente existiu. A segunda encontra-se, ainda hoje, no espólio de Benjamin e mostra Franz Kafka por volta dos quatro anos de idade (FIGURA 3). As descrições de ambas as fotografias, da hipotética e da efetivamente existente, mesclam-se uma na outra. Como na primeira, Benjamin descreve não apenas si mesmo, mas também uma outra pessoa, que poderia ser o jovem Kafka, no segundo caso, pode tratar-se não somente do jovem Kafka, mas também do próprio Benjamin. Benjamin escreve:

Para onde quer que olhasse, via-me cercado por pantalhas, almofadas, pedestais, que cobiçavam minha imagem como as sombras do Hades cobiçam o sangue animal sacrificado. Por fim, sacrificavam-me a um prospecto dos Alpes, toscamente pintado, e minha mão direita, que deveria erguer um chapeu-zinho de camurça, depositava sua sombra sobre as nuvens e as geleiras do fundo. Porém, o sorriso forçado na boca do pequeno camponês alpino não é tão desolador como o olhar do rosto infantil que mergulhava em mim à sombra da palmeira decora-tiva... Estou em pé com a cabeça descoberta; na mão esquerda, um chapéu sombrero enorme que deixo pendente com graça estudada. (GS IV, 261 – III, p. 99).

Benjamin já havia descrito a foto de Kafka na “Pequena história da foto-grafia” (1931): “Ali está um menino de uns seis anos, vestido com uma roupa apertada e humilde, ornado de passamanes, numa espécie de paisagem de inverno” (GS, II, 375). Em 1934, ele retoma quase literalmente essa descrição em seu ensaio Franz Kafka, que tem por subtítulo “Imagem de criança”: “Exis-te uma imagem de Kafka criança, que se tornou a imagem perfeita da ‘pobre curta infância’” (GS II, 461). Essa intersecção entre o ensaio sobre Kafka e a Infância Berlinense não é um caso isolado, pois, em ambos os textos, Benjamin se detém sobre uma imagem na qual igualmente uma figura está no centro, a saber, aquela do Corcundinha, que Archim von Arnin e Clemens Brentano tornaram conhecida através da canção intitulada por ambos de Knaben Wun-derhorn (1808). O mesmo Benjamin cita, em Infância Berlinense, como, por exemplo, estes: “Will ich in mein Keller gehen/ Will mein Weinlein zapfen;/ steht ein Bucklicht Männlein da,/ Tät mir´n Krug wegschnapfen”.

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A imagem do corcundinha (FIGURA 4) é utilizada com uma função alegórica, cujo objeto referencial, além do mais, permanece um enigma, quan-do se lhe busca um significado. Assim, ele descreve o corcundinha no último parágrafo de Infância Berlinense, como alguém que vem cobrar a “metade do esquecimento” (GS IV, 303). No ensaio sobre Kafka, ele o chama de “protóti-po da desfiguração”, que é uma Forma que reveste “as coisas de Esquecimento” (GS, II, 432).

Mudança de imagem como mudança de experiência: fotografia e cinema

Enquanto a escrita, nos ensaios literários, devia abrir um caminho para a imagem metafísica, as imagens reais ocupam um lugar central nos trabalhos sobre imagem e história da mídia, e no modo de pensar a sociedade. Mas, também, no primeiro trabalho que expusera seu pensamento sobre uma forma de imagem real, o texto “Pequena história da fotografia” (publicado em 1931), Benjamin atribui ainda à escrita uma significação central para a análise dos modos de se pensar. Dessa maneira, Benjamin complementa uma formulação mais tarde bastante citada, de Lázló Moholy-Nagy, que ele citaria mais uma vez na resenha de Urformen der Kunst de Bloßfeld (GS III, 151): “O analfabe-to do futuro não será aquele que ignora a escrita, mas a fotografia”, – ao que se segue: “mas não será menos que analfabeto o fotógrafo que não souber ler as suas próprias imagens? Não será a legenda um componente central da foto?” (GS, II, 385)21.

Benjamin deixa isso ainda mais evidente na segunda Carta de Paris, de 1936, quando escreve sobre os surrealistas: “Eles conheciam o poder social penetrante da fotografia e também a importância da legenda, que seria um pavio em que surgiria a faísca crítica em relação ao acúmulo de imagens (como vemos, no melhor dos casos, em Heartfield)” (GS III, 505). Efetivamente, Benjamin reivindica, na “Pequena história”, uma “fotografia construtiva”, a qual não figura o mundo, mas o significa através da inserção da escrita, no sentido do protótipo [Vorbild] do mencionado John Heartfield (GS III, 505).

21 A formulação de László Moholy-Nagy encontra-se num texto sobre o artigo de Ernst Kallai, intitulado Malerei und Photographie. In: 1, 10 (1927), nr. 6, p. 233-234, aqui p. 233.

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A postulação segundo a qual a fotografia é uma meio de compreensão da sociedade liga Benjamin a Bertolt Brecht e à vanguarda de esquerda. Ele publicou muitos textos sobre as suas teorias de uma arte engajada socialmente, desde o início dos anos 1930. Juntamente com o trabalho sobre o teatro épico, estão entre esses textos, antes de mais nada, a conferência “Zum gegenwärti-gen gesellschaftlichen Standort des französichen Schriftstellers” (1934), “O autor como produtor” (1934) e o “posfácio” ao texto sobre a Obra de arte.22 A posição política e social-teórica que caracteriza a independência das posturas de Benjamin em relação à teoria da arte diferencia seu trabalho das pesquisas do círculo de Warburg. Pois se aqui estava em jogo a sensibilidade política de Warburg, era na linha da questão da documentação e da interpretação psico--histórica da tradição das imagens, mais do que de uma crítica da sua função social, como ocorre em Heartfield ou Brecht.

Os trabalhos de Benjamin com as novas mídias, publicados a partir do início dos anos 1930, devem ser entendidos em conjunto como análise crítico--ideológica e imagético-social. Por isso, a concepção de uma estética da mídia histórica-social-psicologicamente orientada se destaca de implicações políticas e ganha uma certa autonomia científica.23 Em suas reflexões da segunda fase sobre imagem e estética da mídia, o próprio Benjamin não se referiu explici-tamente às publicações do círculo de Warburg, mas a trabalhos de uma outra linha da teoria da arte, a saber, a da escola de Viena, sobretudo a de Alois Riegl e seu seguidor Carl Linfert. Nesses trabalhos, trata-se de uma forma de história da arte que se apresenta como história da visão e da percepção na modernidade. Na “Pequena história da fotografia”, trata-se, por exemplo, da mudança de percepção, que tinha a ver com a concepção de Benjamin sobre a fotografia, e que se manifestou depois em relação ao cinema:

Existe, pois, uma outra natureza, que fala para a câmera como se falasse ao olho; é outra natureza, pois substitui um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente [...] A fotografia com seus meios,

22 Cf. o texto de Peter Bürger em Schrift. Bilder. Denken (ver nota 1).23 Cf. Detlev Schoettker, “Vom Laut zum Cyberspace. Entwicklung und Perspektiven der

Mediengeschichtsschreibung”. In: _____. (org.), Mediengebrauch und Erfahrungswandel. Beiträge zur Kommunikationsgeschichte. Göttingen 2003, p. 9-21.

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manipulação de velocidade e ampliação, nos revela isso. Só a fotografia revela esse inconsciente óptico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional” (GS II, 371).24

Também a ideia da Aura, de que Benjamin falou pela primeira vez na “Pequena história...”, não é nenhum fenômeno da arte, mas da percepção, tal como podemos ver nessa introdução, que Benjamin posteriormente retomou literalmente no texto sobre a obra de arte:

Observar, em repouso, numa tarde de verão, numa cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, até que o instante ou a hora participem de sua mani-festação, significa respirar a aura dessa montanha, desse galho” (GS II, 378, cf. GS I 479 ss. – cf. OE, I, p. 101).

Na mesma direção dessa concepção sócio-psicológica da história da per-cepção, Benjamin viu no cinema uma forma de documentação da mudança nas nossas imagens mentais, e explicou o seu sentido através de uma compa-ração com a psicanálise. “O cinema”, assim ele escreve, “de fato enriqueceu metodicamente o nosso mundo conhecido, tal como ele pode ser ilustrado através da teoria freudiana. [...] Ela isolou e tornou analisáveis as coisas que antes flutuavam juntas na corrente grossa das percepções (GS I, 499). O ci-nema documenta igualmente para Benjamin a atenção humana às modernas formas de vida, que se expressam no trânsito das grandes metrópoles, mas também em ícones globais, como Charlie Chaplin ou Mickey Mouse”.25 “O cinema”, segundo Benjamin,

é a forma de arte que mais corresponde aos perigos cada vez maiores que se veem nos dias de hoje. A necessidade de expor-se à experiência de choque é uma forma de adaptação do homem em relação aos perigos da vida moderna. O cinema representa uma profunda modificação do aparelho da apercepção.”(GS I, 503)

24 Cf. Obras escolhidas I, p. 94 25 Cf. o texto de Burkhart Lindner e Dorothée Kimmisch em Bild. Schrift. Deken. (cf. nota 1).

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A história como imagem: as passagens e as teses sobre a história

A teoria histórica das formas de imagem, que Benjamin tentou esboçar no segundo texto sobre Baudelaire como o fundamento para a teoria da me-mória em Baudelaire, Proust, Bergson, Freud e Theodor Reik, encontra um paralelo nas seções teórico-metódicas das Passagens, nas quais ele trabalhou desde 1934, para representar as formas de pensamento e de experiência na modernidade capitalista. Do projeto das Passagens, Benjamin apenas pôde aca-bar o texto Paris, capital do século XIX, que foi apresentado como pedido de bolsa no Institut für Sozialforschung, em 1935.

Por isso, as diferentes teorias sobre as mudanças de experiência na moder-nidade que Benjamin projetou para as Passagens, originam-se de notas desen-contradas. Elas foram retiradas parcialmente de lá e retomadas no fragmento Zentralpark (cf. GS I, p. 655 s.) e desenvolvidas, em 1940, nas teses Sobre o conceito de História (cf. GS I, p. 691 s.). A categoria fundamental para a teoria da apreensão da História está no conceito de “imagem dialética”. Benjamin procurou representar a concepção aí subjacente de imagem em uma formula-ção sempre nova, cheia de intersecções, sem buscar construir um conjunto co-erente. Mas fica evidente, nos textos anteriores, que ele entendia a História não como evento, mas como imagem de memória. “A História”, ele diz, “se decompõe em imagens, não em histórias” (GS V, 596). Por isso, ele se afasta de todas as fronteiras da Filosofia da História, delimitadas pelo Historicismo e pelo Marxismo, que pretendiam compreender a história como continuum temporal, que se deixaria representar de forma épica ou cronológica.

Como “dialética”, Benjamin descreve a figura imaginária da experiência histórica, pois aqui se reúnem presente e passado. “Imagem é aquilo”, assim ele escreve nas Passagens, “em que o acontecido [Gewesene] encontra-se de for-ma relampejante com o agora, formando uma constelação. Em outras pala-vras: a imagem é a dialética em repouso.” (GS V, p. 576 s.; cf. id., 578).

Nas teses Sobre o conceito de História e nos seus correspondentes esboços, Benjamin estabeleceu a relação entre a “imagem dialética” e o caráter imagéti-co da memória e criou para ela um contorno preciso. Na quinta tese: “A ver-dadeira imagem do passado voeja perto. Apenas como imagem, que relampeja sobre o nunca-mais-ver no instante de seu reconhecimento, pode o passado ser capturado” (GS, I, 695, grifo do autor).

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Uma consequência dessa concepção imagética da experiência histórica foi a tentativa de repensar conceitualmente a teologia, cujas bases científicas se baseiam não em fatos, mas nas imagens da chamada “Escrita Sagrada”. Isso é o que pode ser visto em dois esboços para as teses Sobre o conceito de História, com as quais Benjamin associa duas notas das Passagens:

A experiência que fazemos com a consciência nos possibilita entender a História fundamentalmente de forma a-teológica, já que tampouco devemos tentar escrevê-la de forma teológica. Meu pensamento se relaciona com a teologia como o mata--borrão em relação à tinta. Ela é totalmente absorvida por ele. Se se tratasse apenas do mata-borrão, nada restaria do que foi escrito.” (GS I, 1235; cf. GS V 588 [N7a, 7] e 589 [N 8, 1].

imagens da recepção

As reflexões de Benjamin sobre a experiência histórica aparecem no fi-nal dos trabalhos que realizou em vida sobre os diferentes tipos de imagens do pensamento. Mais significativos que os textos precedentes que relacionam escrita, imagem e pensamento, eles mostram como a sua obra é um fenômeno a posteriori. Pois nenhum dos textos nos quais Benjamin esboçou uma teoria da “imagem dialética” está formulado em conjunto ou sequer foi publicado em vida. Apenas com a edição das Passagens (1982), essas reflexões se tornaram conhecidas e puderam ser relacionadas com outros escritos. Mesmo quando se pressupõe a recepção por parte dos contemporâneos de Benjamin dos escritos publicados26, mesmo assim podem surgir dúvidas se a obra de Benjamin foi recebida, depois de sua morte, de forma qualitativa e quantitativa bem dife-rente do que o foi durante sua vida. Nesse caso, também as imagens desempe-nham um papel central.

Assim, quase todos os textos de Benjamin estão não apenas entrelaçados de aforismos e fragmentos, que se oferecem para a interpretação e a concatena-ção através da sua concisão e abertura, mas também os textos são tão metafó-

26 Cf. os textos de M. Brodersen, G. Zohlen, B. Dotzler e J. Müller-Tamm, em Bilder. Schrift. Denken (ver nota 1).

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ricos, que, apesar de seu alto conteúdo teórico, mantêm um caráter poético.27 Essa tendência para a alegorização, que, entre outras formas, aparece na sig-nificação de figuras como o “corcundinha...” ou o “Angelus novus”, fortalece a tendência poética, e contribuiu para que os intérpretes tenham pretendido mostrar o caráter mágico dos escritos benjaminianos. Uma caracterização da autoralidade de Baudelaire, que Benjamin apresenta no Parque Central, pode ser referida a si próprio:

Baudelaire foi um filósofo ruim, um bom teórico, mas foi in-comparável como ruminador. Daquele que rumina ele tem a estereotipia dos motivos a capacidade de não se desviar na anormalidade de tudo o que perturba, a prontidão para a cada momento colocar a imagem a serviço do pensamento. O rumi-nador, como tipo histórico do pensador, é aquele que se sente em casa na alegoria”(GS I, 669).

Até mesmo as fotos que Benjamin tirou em vida perfilaram a sua recep-ção póstuma, pois estão presentes em muitas de suas publicações. O primeiro desses retratos é o de um busto criado por Jula Cohn, que se tornou conhecido através de uma foto de Sasha Stone. O próprio Benjamin induziu-a a isso: “Você deixou Stone fotografar a cabeça?”, pergunta ele em dezembro de 1926, durante uma estadia em Moscou em uma carta a Jula Kohn (GB III, 221). O que se segue a isso, demonstra-o o verso da foto, que traz a data de 1927 (FIGURA 5).

Em outras fotos, Benjamin faz a pose do melancólico de Dürer, cuja ca-beça do pensador se tornou tão pesada, que tinha que ser segurada pela mão. Enquanto a postura na foto de Germaine Krull, no final dos anos 1920, está marcada por uma leveza, as fotos correspondentes de Charlotte Joel (1929) e Gisèle Freund (1938) parecem representá-lo com uma semelhança cada vez maior à melancolia de Dürer (FIGURA 6).

O peso aparece nas conhecidas fotos de Gisèle Freund apenas na pri-meira série de retratos, em que Benjamin é fotografado. Trata-se de um grande número de fotos coloridas, que a fotógrafa realizou no final dos anos

27 Cf. o texto de H. Gfereis, no volume Bilder. Schrift. Denken. (ver nota 1).

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1930. Entre elas estão as fotos de André Gide, Paul Valéry, James Joyce, Virginia Woolf, T. S. Eliot, Jean Cocteau, Louis Aragon, Jean-Paul Sartre, Henri Matisse e Marcel Duchamp. Benjamin está entre eles, e é não apenas um dos únicos alemães e um dos únicos teóricos, mas o único desconhecido do grande público. Através dessa foto justamente, já adquirira um status que a ele só seria atribuído: como um dos pensadores mais importantes da modernidade.

As imagens de si próprio, que Benjamin apresentou em suas cartas, cor-respondem às dos retratos fotográficos. Também aqui ele aparece como o aca-dêmico solitário e pensador das profundezas, tal como lemos numa declaração sobre Baudelaire dos fragmentos de Parque Central, que também remete a si próprio: “Não existe nenhuma daquelas observações que vão ao centro das coisas, em Baudelaire, que não que não corresponda a uma imagem da sua própria vida” (GS I, 665). Nas cartas tardias, sobretudo, acumulam-se as auto--representações. Elas apontam para o caminho do sofrimento, para questões de dinheiro, solidão, angústia existencial, internação e tentativa de fuga, que terminam com a morte em Port Bou por inanição e overdose de morfina. Em todas as obras literárias, fílmicas ou musicais que lidam com a vida de Ben-jamin, ou sobre Brecht, ou Paul Celan ou Volker Braun, sempre aparece por perto a figura do anjo, que remete a uma catástrofe universal, com a morte de Benjamin, em Port Bou, no centro.28

Um exemplo da utilização da pessoa de Benjamin é a autobiografia de Jorge Semprun Unsere allzu kurze Sommer.29 Semprun usa os próprios meios narrativos de Benjamin, a saber, a escrita, as memórias e a fotografia, para tatear sobre uma possível presença do autor no café parisiense Select no verão de 1939. Através dessa aproximação lembrada, usando a imagem através da escrita, Semprun criou um dos mais belos retratos de Benjamin, que remete ao conjunto de escrita, imagem e pensamento em Benjamin:

28 Cf. o texto de Claus-Steffen Mahnkopf em Schrift. Bilder. Denken (cf. nota 1) e sobretu-do Erdmut Wizila/Michael Opitz (org.), Glückloser Engel. Dichtungen zu Walter Benjamin. Frankfurt/Main, Leipzig 1992; Michael Opitz, Zwischen Nähe und Distanz. Zur Benja-min-Rezeption in der DDR. In: Klaus Garber/Ludger Rehm (org.), Global Benjamin. In-ternationaler Walter Benjamin-Kongreß 1992. 3 Bde. München 1999, Bd. 3, S. 1277-1320; Lorenz Jäger, Benjamins Sprache und ihre Rezeption in der Dichtung der Gegenwart, ebd., p. 1453-1465.

29 J. Semprun. Unsere allzu kurzen Sommer. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 2001.

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Não sei e talvez nunca o saberei, se o homem que se sentou à mesa, e cuja opinião para outros parecia ser importante, era realmente Benjamin. Depois, quando eu vi as fotos dele, quis dizer, as fotos que reconheci do desconhecido do Select, em quem os outros fugitivos pareciam prestar atenção, se é que ele realmente tomou a palavra. (...) Seria uma pessoa taciturna, que se mantinha discretamente no fundo da cena, cuja palavra parecia ainda interessar às pessoas? De fato, isso é possível. Na-quele dia, Benjamin ainda não havia sido capturado pela polícia francesa, ocasião em que seria levado para a prisão em Nevers, da qual ele seria libertado no final do mês. Naquele ano, ele es-capou, diante de seus compatriotas, da Gestapo, chegou ilegal-mente até a fronteira com a Espanha em Port Bou e se matou, em circunstâncias que ainda não estão muito claras. Há muito tempo que leio Walter Benjamin, seus ensaios, os dois volumes das Passagens, suas últimas Teses sobre o conceito de história. Uma leitura inesgotável; ali, sempre se encontram novos reinos e formas de interpretação. Cada vez que me deleito com a prosa ao mesmo tempo hermética e brilhante de Benjamin, pergunto a mim mesmo se ele não era a pequena pessoa que parecia que-rer se esconder por trás das garrafas de água e dos jornais, num canto do Select, num dia do começo de setembro de 1939. Nunca saberei, mas acho que daria tudo para saber que era ver-dade, que eu teria tido a sorte de, mesmo anônimo, estar face a face com aquela pessoa dolorida e torturada – e torturante: labiríntica como o mundo do século XX, que ele queria decifrar – gênio do século XX.

Tradução: Erick Felinto e Adalberto Müller, 2012.

Recebido em: 15/09/11Aprovado em: 15/10/12

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Figura 1

Figura 2

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Figura 3

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Figura 4

Figura 5 Figura 6