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  • Cadernos de Letras da UFF Dossi: Palavra e imagem no 44, p. 21-46, 2012 21

    oS muNdoS imAgTicoS dE BENjAmiN1oBjEToS, TEoriAS, EfEiToS

    Detlev Schttker

    Antes da teoria das imagens

    Dado que a escrita se originou, no decorrer de sua histria, de signos imagticos, ela permaneceu sempre ligada imagem atravs da visu-alidade e da metfora. Tal concepo da imagem , contudo, muito mais ampla que a das artes plsticas. Ela compreende no apenas as imagens reais, como pinturas, o grafismo e a fotografia, seno tambm as imagens mentais (inneren Bilder), como sonhos, recordaes e mitos. Todavia, at hoje no existe nenhuma disciplina acadmica que tenha abarcado essa abrangente concepo de imagem. No final do sculo XVIII, aps a esttica ter evoludo para uma teoria da arte, sob o influxo do idealismo alemo, as questes filosficas da literatura e da msica permaneceram no centro de suas atenes at meados do sculo XX. As imagens reais e, portanto, fisicamente apreensveis, se tornaram objeto da histria da arte, ao passo que as imagens mentais couberam psi-cologia, mas, mesmo aqui, foram pouco consideradas. Por outro lado, apenas uns poucos pensadores se ocuparam com as conexes entre escrita, imagem e fantasia. A esse restrito grupo pertence Walter Benjamin.

    Seu interesse por um conceito de imagem abrangente se baseia em dois motivos: por um lado, ele almejava desenvolver, desde seu ensaio Sobre o

    1 Este texto foi publicado originalmente em Detlev Schttker (org.) Schrift. Bilder. Denken: Walter Benjamin und die Knste. Frankfurt/Main: Suhrkamp/Haus am Waldsee, 2004, p.10-29. A verso aqui traduzida foi adaptada do texto da conferncia de Detlev Schttker veio UFF - Instituto de Letras - em junho de 2011. A traduo foi feita por Erick Fe-linto e Adalberto Mller, com sugestes de Susana Kampf-Lages. As edies de Benjamin citadas no texto so, doravante abreviadas: 1) GS = Gesammelte Schriften, Frankfurt/Main: Suhkamp, 1972-1989 (14 vol.); 2) GB= Gesammelte Briefe, Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1995-2000 (6 vol.)

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    Programa da Filosofia Vindoura(1918), uma teoria da experincia na qual as imagens mentais desempenhassem papel central. Por outro lado, desde os anos 20, as imagens reais teriam exercido grande influncia na formao da ex-perincia (Erfahrungsbildung) atravs de sua reproduo massiva na fotografia, no cinema e no jornalismo. Desse modo, apresentavam um desafio para a teo-ria cultural, ao qual Benjamin queria responder com sua teoria da experincia. Com isso, ele antecipou um desenvolvimento que se vinha realizando desde a metade do sculo XIX em diferentes disciplinas acadmicas, como a histria da arte, a crtica literria e a filosofia nomeadamente a orientao para as imagens e seu impacto sobre formas de pensamento e comportamento2.

    Nesse meio tempo, o termo teoria da imagem (Bildwissenschaft) passou a ser utilizado para definir o comrcio com as formas e os efeitos dos fen-menos ligados imagem. Os escritos de Benjamin oferecem contribuies para os questionamentos de uma tal disciplina, pois no se limitam aos tra-dicionais domnios acadmicos, mas tambm incluem saberes da mitologia, da psicanlise e da teologia, sem os quais as imagens mentais no podem ser adequadamente investigadas e explicadas. Minha inteno esclarecer, a partir de domnios centrais de sua obra, o conceito de imagem que se encontra na base dos escritos de Benjamin.

    As imagens de klee e suas consequncias

    O encontro mais significativo de Benjamin com um trabalho de artes plsticas foi a aquisio da gravura Angelus Novus, de Paul Klee. Ele comprou a imagem em 1921, em uma galeria de Munique, e a considerou, at sua morte, como um de seus mais importantes bens (FIGURA 1)3. Ainda no ano dessa aquisio, ele desejava dar o nome da obra a uma publicao que deveria preparar seu ingresso no campo do jornalismo elevado. Em 1940, interpretou

    2 Cf. Gottfried Boehm (org.), Was ist ein Bild? Mnchen 1994; Gernot Bhme, Theorie des Bildes. Mnchen 1999; Christa Maar/Herbert Burda (orgs.), Iconic Turn. Die neue Macht der Bilder. Kln 2004.

    3 Comparar com a recepo e histria dessa gravura na obra de Benjamin, em Gershom Scho-lem, Walter Benjamin und sein Engel (1972), includo no mesmo Walter Benjamin und sein Engel. Vierzehn Aufstze und kleine Beitrge. Org. por Rolf Tiedemann. Frankfurt/Main 1983, S. 35-72.

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    alegoricamente a gravura na mais nova de suas Teses sobre o Conceito de His-tria, de modo a apoiar sua concepo da histria: h uma imagem de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar--se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos esto escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas (GS I, 697).

    No obstante muito se haver escrito sobre esta interpretao da figura como Anjo da Histria, pouco se considerou a pr-histria da imagem na obra de Benjamin4. Ela remete aos primrdios da preocupao de Benjamin com as artes plsticas, que foi desencadeada por uma carta (hoje perdida) de Gershom Scholem a Benjamin5. Scholem escreve, em 1917, sobre a gravura de Picasso Dama com Leque, que ele havia visto em uma exibio da gale-ria Sturm em Berlim. Benjamin descreve este escrito como Carta sobre o Cubismo, anuncia o envio de uma transcrio de seu escrito Sobre a Pin-tura, elaborado pouco antes, e chega mesmo a efetuar consideraes sobre o cubismo, que ele liga a um reconhecimento de Klee, e um afastamento de Picasso. Nessa carta, lemos:

    Entre os pintores modernos Klee, Kandinsky e Chagall, Klee o nico que apresenta abertamente conexes com o Cubismo. De fato, diante das imagens de Picasso, venho tendo sempre, at aqui, essa impresso de falta de potncia e inacessibilidade, que voc, para minha alegria, confirma [...] Voc toma como quintessncia do Cubismo a comunicao do ser do espao, que o mundo, atravs de decomposio. Nessa definio, pa-rece-me existir um equvoco referente relao da pintura com seus objetos sensveis. Em verdade, na geometria analtica posso oferecer a equivalncia de uma imagem bi- ou tridimensional, sem com isso (entrar) sair da anlise do espao. Contudo, o mesmo no possvel fazer na pintura; pintar Dama com Le-

    4 Cf., como primeira interpretao abrangente, Otto Karl Werckmeister, Walter Benjamin, Paul Klee und der Engel der Geschichte . In: Neue Rundschau 87 (1976), H. 1, p. 16-40.

    5 Cf. a sentena de Scholem em Walter Benjamin, Briefe. 2 Bde. Organizado e com notas de Gershom Scholem e Theodor W. Adorno. Frankfurt/Main 1978 [primeira edio 1966], Bd. 1, S. 156f. Os organizadores da Correspondncia Completa de Benjamin adotaram a afirmativa de Scholem (GB II, 397).

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    que (por exemplo), de modo a comunicar o ser do espao por meio de decomposio. Antes, a comunicao deve referir-se inteiramente, sob todas as circunstncias, Dama com Leque (GB I, 394s.)

    Diferentemente do que se passa nessa carta, no j mencionado escrito de ttulo Sobre a Pintura ou Signo e Marca, Benjamin no abordou o Cubismo, mas tratou de uma questo fundamental da pintura: a relao entre superfcie visvel e sentido da imagem. Ele buscou explicar essa relao com auxlio dos conceitos de signo, marca e medium, de modo que utilizou aqui, pela primeira vez, o conceito de medium que mais tarde conquistar posio central em seus escritos6. Aqui, escreve ele, deve-se enxergar a diferena fundamental entre o signo, que impresso, e a marca, que emerge. Isso indica que a esfera da marca a de um medium (GS II, 605). Como exemplo de uma marca, oferece Benjamin, entre outros, os estigmas de Cristo. A relao entre ima-gem e marca produzida atravs da palavra lingustica (das sprachliche Wort), que no est presente na forma de discurso ou escrita, mas na composio da imagem. Se a imagem fosse apenas marca, escreve ainda ele, tornar-se-ia assim completamente impossvel de nomear. (...) Essa conexo com aquilo que transcende a marca realizada pela composio. Este o ingresso de um poder superior no medium da marca (...). Tal poder a palavra lingustica que se estabelece no medium da linguagem pictrica, invisvel enquanto tal, e revelvel apenas na composio (ibid., p. 606 e ss.).

    No obstante essas reflexes precoces testemunharem uma busca intensa de apreenses tericas das artes plsticas, Benjamin no se ocupou com ima-gens reais nos trabalhos seguintes, mas sim com a linguagem ou a escrita e sua implementao na literatura e na filosofia. Trata-se dos ensaios Dois Poemas de Friedrich Hlderlin (1915) e Sobre a linguagem em Geral e sobre a Lin-guagem dos Homens (1916), bem como da dissertao Sobre o Conceito de Crtica no Romantismo Alemo (1919) e dos escritos posteriores Destino e Carter (1919), Para uma Crtica da Violncia (1921) e As Afinidades Ele-tivas de Goethe (1922, publicado entre 1924/1925). Mesmo no extenso traba-

    6 Cf. Walter Benjamin, Mediensthetische Schriften. Organizao e posfcio de Detlev Scht-tker. Frankfurt/Main 2002 (stw 1601).

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    lho sobre o romance de Goethe, que poderia ter tido como objeto um exame das artes plsticas j que descreve a construo de uma capela de povoado, no meio da sua segunda parte , Benjamin no se envolveu com imagens reais, mas sim com os panos de fundo msticos das constelaes de personagens, logo, com as imagens imateriais evocadas pela escrita (cf. GS I, 123 e ss.).

    Tambm o fato de ter recebido de sua esposa, dois anos antes da aquisi-o do Angelus Novus, uma outra obra de Klee, no deixou nenhum rastro em seus escritos ainda que tenha relatado enfaticamente a Scholem sobre esse presente numa carta de julho de 1920: Dora talvez j lhe tenha mencionado sobre como me