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Boletim de Estudos da Ordem Soberana e Militar do Templo de Jerusalém Universalis. Volume 2.

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    Ordem Soberana e Militar do Templo de

    Jerusalm Universal

    Prioratus Ibericus

    Estudos II

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    Ordo Templi

    Ordem Soberana e Militar do Templo de

    Jerusalm Universal

    Prioratus Ibericus

    Estudos II A cavalaria perfeita

    e as virtudes do bom cavaleiro

    no Livro da Ordem de Cavalaria

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    Ordo Supremus Militaris Templi Hierosolimitani Universalis

    (c) 1994 / 2013 - Magisterial Council / Prioratus Ibericus / Luis de Matos

    "Estudos II - A cavalaria perfeita e as virtudes do bom cavaleiro no

    Livro da Ordem de Cavalaria (1275), de Ramon Llull"

    Por: Ricardo da COSTA (c)

    [email protected]

    1 Edio - Maio 2013

    Akademia Templria de Sintra

    akademia.osmthu.org

    Reservados todos os direitos. proibida a reproduo total ou parcial desta publicao.

    Destina-se exclusivamente a uso privado.

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    Estudos II

    A cavalaria perfeita

    e as virtudes do bom cavaleiro

    no Livro da Ordem de Cavalaria

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    ndice

    Introduo 9

    I. O cavaleiro (miles) 10

    II. A cerimnia de iniciao do cavaleiro (adoubement) 11

    III. A cavalaria, terror da poca: as guerras privadas (fehde) 13

    IV. A cristianizao da cavalaria de Sat: a Paz de Deus 14

    V. O processo civilizador da Igreja: o juramento do cavaleiro 16

    VI. A produo luliana 19

    VII. A Arte luliana 20

    VIII. O Livro da Ordem de Cavalaria 22

    IX. A oposio virtudes/vcios no Livro [...] 27

    Fontes Consultadas 33

    Bibliografia Citada 33

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    A cavalaria perfeita

    e as virtudes do bom cavaleiro no

    Livro da Ordem de Cavalaria

    de Ramon Llull

    Ricardo da COSTA

    In: FIDORA, A. e HIGUERA, J. G. (eds.) Ramon Llull caballero de la fe.

    Cuadernos de Anurio Filosfico - Srie de Pensamiento Espaol.

    Pamplona: Universidad de Navarra, 2001, p. 13-40.

    (o texto foi traduzido para o espanhol)

    e a nobreza de coragem elegeu o cavaleiro sobre os homens que lhe esto em baixo em

    servido, nobreza de costumes e de bons ensinamentos convm ao cavaleiro, pois

    nobreza de coragem no poderia subir na alta honra de cavalaria sem eleio de

    virtudes e de bons costumes. Ramon Llull. Livro da Ordem de Cavalaria, VI, 1 (a

    partir de agora como LOC).

    Quando Ramon Llull escreveu essas linhas, por volta de 1280, a cavalaria j era

    uma ordem firmemente estabelecida no seio da sociedade do ocidente medieval

    europeu. Depois da religio, ela encarnava, para os espritos da poca, os valores

    mestres da cultura (DUBY, 1989, 23), sua mais forte concepo de vida

    (HUIZINGA, s/d, 58).

    Com sua obra, Llull pretendia iluminar com valores morais e ticos os novos

    pretendentes cavalaria, registrando por escrito os cdigos cavaleirescos, a

    sacralizao do rito de passagem (adoubament), a simbologia das armas do

    cavaleiro e principalmente as virtudes que o cavaleiro deveria conhecer e os vcios

    que deveria evitar para honrar a ordem de cavalaria e se tornar um cavaleiro de

    bons costumes e bons ensinamentos (LOC, VI, 1, 89).

    S

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    Destes vrios temas tratados por Ramon, gostaria de analisar mais detalhadamente

    aqui o ltimo ponto: a questo das virtudes e vcios, um dos temas mais frequentes

    na literatura e filosofia medieval e presente em quase todas as obras de Llull, como

    veremos adiante. Para isso, farei antes uma breve anlise da cavalaria medieval,

    seus cdigos, preceitos para, a seguir, tratar dos ideais cavaleirescos lulianos,

    especialmente as virtudes crists tratadas no Livro da Ordem de Cavalaria.

    I. O cavaleiro (miles)

    No tempo de Ramon, a palavra miles era utilizada para definir o indivduo

    pertencente cavalaria. A origem destes milites de difcil preciso e delimitao.

    Inicialmente, isto , no final do sculo IX, aps a dissoluo do imprio carolngio,

    os historiadores perceberam que este grupo social encontrava-se bastante prximo

    da aristocracia rural originria da nobreza carolngia (os nobiles ou nobiliores).

    Trabalhavam a seu servio em determinadas regies no existiam sequer

    militeslivres (PACAUT, s/d, 374). Mas com o passar do tempo este grupo

    nobilitou-se, ascendeu socialmente e passou a ser confundido com a prpria

    nobreza.

    Este processo de fuso foi brilhantemente analisado por Georges Duby: deixando

    de lado as obras literrias neste caso mais propensas a distores e analisando

    uma documentao jurdica proveniente da Borgonha, dos cartulrios da abadia de

    Cluny um tipo de material muito mais afeito identificao dos estatutos sociais

    dos envolvidos em discusses de bens e negociatas Duby reconstituiu a evoluo

    do sentido da palavra miles, desde o seu surgimento, em 971, at o sculo XIII.

    Segundo Duby, inicialmente, miles designava apenas a superioridade social do

    vassalo. Mas de 1032 at 1100 o vocbulo substituiu gradativamente as outras

    formas que exprimiam a distino social, passando a designar toda a aristocracia

    laica (DUBY, 1989, 24-26). Este processo, precoce na Borgonha, difundiu-se para

    as outras regies da Europa, de modo que, no tempo em que Llull escreveu seu

    tratado, a cavalaria estava estreitamente associada nobreza hereditria detentora

    de terras.

    No entanto, preciso advertir que esta assimilao nunca foi completa e, em alguns

    lugares, como no Sacro Imprio, a cavalaria manteve-se sempre como um estrato

    social dependente e distinto da nobreza (PACAUT, s/d, 375). Outro exemplo desta

    diversidade medieval o reino de Portugal: at meados do sculo XIII, seus

    cavaleiros (milites nobiles) constituam a camada mais baixa da nobreza, utilizando

    este termo apenas para diferenci-los dos camponeses e cavaleiros-vilos - homens

    livres, no-nobres e grandes proprietrios (MATTOSO, s/d, 548; COSTA, 1998,

    104-108).

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    II. A cerimnia de iniciao do cavaleiro (adoubement)

    Assim, pelo menos na Frana, por volta do ano mil, a cavalaria passou a existir

    como uma instituio social, exclusiva da nobreza. Mas para o processo se tornar

    completo era necessrio estabelecer com preciso as regras que determinariam o

    ingresso do pretendente. Embora ainda profana e domstica, a cerimnia de

    iniciao (adoubement) j estava solidificada neste mesmo perodo.

    Ela acontecia entre os 18 e 20 anos: ser cavaleiro distinguia o adolescente do

    adulto. O rapaz era introduzido no grupo de cavaleiros do senhor da fortificao,

    do castelo ou da torre, o castelo (castellanus, ou, em lngua vulgar, sire) o

    detentor do poder pblico, aquele que tinha o poder de ban (um poder militar,

    judicial e econmico) (LE GOFF, 1983, I, 127). O castelo recebia dos camponeses

    as exaes (exactio ou consuetudo), o fornecimento de vveres (DUBY, 1992, 78).

    Em troca disso, ironicamente, tinha a responsabilidade de conservar a paz (DUBY,

    1999, 115).

    Convidado a mostrar suas capacidades viris num simulacro de combate, o

    pretendente, se vitorioso, recebia um golpe curto e seco na nuca ou no rosto (a

    cole ou paume), sinal de aceitao por parte do grupo e que foi marcado com o

    carter cavaleiresco (BLOCH, 1987, 330). Esta bofetada era um dos sinais

    comemorativos da poca: o contato entre a mo do investidor e o corpo do

    investido servia como uma espcie de transmisso da energia exclusiva do novo

    estatuto, exatamente como o tapa que o bispo dava no clrigo que era ordenado

    padre (BLOCH, 1987, 327).

    Ento o castelo presenteava o jovem cavaleiro com suas armas, um casaco de

    couro, a cota de malha (haubert), o elmo, a espada. Elas eram consideradas

    mgicas, especialmente a espada, pois tornavam-se parte do cavaleiro e de seu

    modo de vida Ramon Llull dedica boa parte de seu Livro simbologia das

    armas do cavaleiro (COSTA).

    A investidura muitas vezes terminava com a quintana: o novo cavaleiro, montado

    em seu cavalo, atravessava um escudo com um golpe de sua lana, gesto simblico

    que indicava a mudana de categoria. A partir da, at que se casasse e se tornasse

    chefe de uma linhagem, o jovem seria um sergent, o servidor armado do castelo, e

    ficaria agregado manada (maishie), o squito de guerreiros solteiros que o

    castelo tinha o dever de alimentar e levar sempre consigo nas cavalgadas, essas

    aventuras violentas que aconteciam sempre a cada primavera (DUBY, 1999, 119-

    120).

    Entre seus membros havia diferenas notveis de fortuna. Os historiadores

    precisaram basicamente duas categorias de cavaleiros. Acima, uns poucos, os que

    possuam um castelo. Formavam parte de uma elite, pois tinham o poder de ban.

    Abaixo, a grande maioria dos cavaleiros, os que pertenciam categoria de milites

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    gregarii, pois viviam sombra de um senhor (DUBY, 1992, 75). Levando uma vida

    relativamente pobre, muitos destes milites gregarii tinham uma existncia semi-

    camponesa, pois dirigiam sozinhos o cultivo de suas pequenas propriedades

    (PERROY, 1994, vol. VII, 22). Existiam mesmo aqueles que, para no descer ao

    nvel dos camponeses, optavam em sair pelo mundo em busca de aventura. Muitos

    destes eram secundognitos.

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    III. A cavalaria, terror da poca: as guerras privadas (fehde)

    Este grupo social representava a violncia, o esprito de agresso e pilhagem da

    poca, pois qualquer pretexto era motivo para esses homens turbulentos lanarem-

    se uns contra os outros. Estavam assim, sempre matando, em movimento: nas

    batalhas, caando o javali, organizando torneios.

    Mas o maior sofrimento que infligiam s populaes especialmente aos

    camponeses eram as guerras particulares, as vinganas, chamadas de fadas

    (fehde), isto , o direito da vtima de um prejuzo causar ao seu autor prejuzo igual.

    Nestas fadas, a principal estratgia cavaleiresca era arruinar o inimigo matando e

    aleijando o maior nmero possvel de camponeses, alm de destruir suas plantaes

    e celeiros. O objetivo era reduzir as fontes de renda do inimigo.

    Por exemplo, Thomas de Marle, sire de Coucy a partir de 1116, nas palavras do

    abade Suger, um lobo raivoso ajudado pelo Demnio, alm de tomar terras de

    conventos provavelmente um dos motivos da censura eclesistica , em suas

    guerras privadas cortava pessoalmente a garganta dos que considerava rebeldes e

    torturava os prisioneiros pendurando-os pelos testculos at o peso do corpo

    arranc-los (TUCHMAN, 1990, 10).

    Essas violncias aconteciam porque as prticas judicirias eram lentas e imperfeitas:

    no existiam tribunais regulares que recebessem a queixa e agissem contra o

    agressor. Assim, o cavaleiro que sofria um dano por parte de um de seus pares

    devia fazer justia com suas prprias mos. Toda discrdia entre cavaleiros

    resultava em conflito armado. O carter do processo estimulava as agresses: os

    juzes eram apenas conciliadores, no impunham a sentena. Isso encorajava o

    recurso violncia, e os maiores prejudicados eram os camponeses (PERROY,

    1994, 29-30).

    Alm disso, essa violncia era institucionalizada: a cavalaria estava integrada ao

    sistema feudo-vasslico. Para o vassalo, o senhor era como seu pai, pois deveria

    proteg-lo, aconselh-lo e aliment-lo. Mais do que isso: desde o ano 1000

    difundiu-se por todos os lados a ideia que o senhor de uma manada tinha o dever

    de, alm de dar cavalos, armas e outros tantos adornos militares, conceder uma

    terra, uma tenncia (tenure), um benefcio que durasse o tempo do devotamento do

    cavaleiro e que simbolizasse os laos de dependncia de homem para homem.

    O senhor deveria mostrar-se generoso com seus homens. At que quebrassem a

    palavra empenhada, estes vassalos deveriam receber um espao fsico, uma igreja,

    um dzimo, um campo arrendado a camponeses, enfim, uma renda regular que o

    sustentasse: era o feudo. Esse gesto de largueza por parte do senhor se tornou to

    comum que, pouco a pouco, entre 1030 e 1075, o sentido do ato se inverteu: o

    feudo passou ento a determinar a fidelidade e os servios do vassalo, e se tornou

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    hereditrio. A partir de ento, o senhor teve a seu dispor cada vez mais vassalos que

    desconhecia, e o sistema passou a oferecer cada vez mais fissuras, brechas para a

    quebra dos votos de fidelidade (DUBY, 1999, 125).

    IV. A cristianizao da cavalaria de Sat: a Paz de Deus

    Desta forma, o tempo da cavalaria foi tambm, por excelncia, o tempo do

    feudalismo. Nos reinos nascidos da partilha do imprio carolngio (Frana,

    Alemanha, Borgonha-Provena e Itlia), do sculo X ao XIII, as duas instituies

    se desenvolveram e se mesclaram num imbricado sistema de relaes pessoais. O

    servio militar dos cavaleiros (servitium) era, para o senhor, o principal motivo do

    contrato vasslico.

    Com o armamento completo ou apenas uma parte dele, o cavaleiro deveria tomar

    parte da cavalgada, integrar um simples servio de escolta ou mesmo servir de

    guarda num dos castelos do senhor, o chamado stagium - existiam ainda uma srie

    de pequenos servios obrigatrios para o vassalo, como, por exemplo, segurar a

    cabea do rei quando este, no decurso de uma travessia, aliviava o estmago

    vomitando (GANSHOF, s/d, 122-140).

    A paz que o castelo tinha o dever de manter era como um frgil fio ao sabor do

    vento. Pois o tempo dos feudais foi, sobretudo, o tempo dos saques, dos dios

    atrozes entre as linhagens, violncias que as crnicas fartamente ilustram. por

    esse motivo que, por volta de 1130, So Bernardo, ao enaltecer as virtudes da nova

    cavalaria dos templrios, no se cansa de criticar a militia saeculari, que ele chama

    de malcia (malitiae), num jogo de palavras (milcia/malcia) que mostra a plena

    compreenso dos clrigos a respeito da origem social desse tenso estado de coisas:

    Vs, milicianos, como haveis se equivocado to estupendamente? Que fria os tem

    arrebatado para verem a necessidade de combaterem at se esgotarem com tanto

    dispndio sem outro salrio que a morte ou o crime? Cobristes vossos cavalos com

    sedas, pendurastes telas belssimas em vossas couraas; pintastes as lanas, os

    escudos e as selas; recarregastes os arreios e esporas de ouro, prata e pedras preciosas.

    E com toda essa pompa se lanastes morte com um furor cego e nscia insensatez.

    O que so essas coisas, arreios militares ou vaidades de mulher? Ou credes que pelo

    ouro a espada inimiga se amedronte para respeitar a formosura das pedras e no

    transpasse seus tecidos de seda?

    Por experincia, vs sabeis muito bem que so trs as coisas de que mais necessita o

    soldado em combate: agilidade com reflexos e precauo para defender-se; total

    liberdade de movimentos em seu corpo para poder movimentar-se continuamente, e

    deciso para atacar. Mas vs afagastes a cabea como as damas, deixastes crescer o

    cabelo at cair sobre os olhos; vestistes vossos prprios ps com amplas e largas

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    camisas; sepultastes vossas covardes e afeminadas mos dentro de luvas que as

    cobrem por completo.

    E, o que todavia mais grave pois isso os leva ao combate com grandes

    ansiedades de conscincia , que guerras to mortferas se justificam com razes

    to enganosas e pouco srias. Pois, o que ordinrio, o que s induz guerra at

    provocar o combate a no ser em vosso caso so sempre paixes de iras

    incontrolveis, o af de vanglria ou a ambio de conquistar territrios alheios. E

    estes motivos no so suficientes para poder matar ou expor-se morte com uma

    conscincia tranquila. (BERNARDO DE CLARAVAL, 1983, II, 501-503)

    Atravs dos olhos de quem podemos observar esse mundo, os clrigos, a cavalaria

    era de Sat, no de Deus. Era necessrio civiliz-la, ou, em outras palavras,

    cristianiz-la. Com o binmio cavalaria/feudalismo, a cristianizao da cavalaria

    veio acompanhada da campanha da Paz de Deus. O objetivo desta campanha era

    pr fim s violncias exercidas pelos homens da guerra e proteger todo o restante

    da sociedade no-beligerante (camponeses, mercadores e religiosos no armados

    sim, pois muitos clrigos participavam de batalhas e campanhas militares).

    Vrias assembleias foram reunidas com esse objetivo: Charroux, no Poitou (989),

    Le Puy (990), Limoges e Anse, no Mconnais (994) (BONNASSIE, 1985, 163). A

    melhor descrio dessas grandes assembleias foi feita pelo monge e cronista Raoul

    Glaber (1044), considerado a melhor testemunha da primeira metade do sculo XI

    (DUBY, 1986, 23):

    Foi ento [no milsimo ano da Paixo do Senhor], primeiro nas regies da

    Aquitnia, que os abades e os outros homens dedicados santa religio comearam

    a reunir todo o povo em assembleias, para as quais se trouxe numerosos corpos de

    santos e inumerveis relicrios cheios de santas relquias. A partir da irradiaram,

    pela provncia de Arles, depois pela de Lyon; e assim, por toda a Borgonha e at nas

    regies mais recuadas da Frana, foi anunciado em todas as dioceses que em

    determinados lugares, os prelados e os grandes de todo o pas iam reunir assembleias

    para o restabelecimento da paz e para a instituio da santa f.

    Quando a notcia destas assembleias foi conhecida de toda a populao, os grandes,

    os mdios e os pequenos para elas se dirigiram, cheios de alegria, unanimemente

    dispostos a executar tudo o que fosse prescrito pelos pastores da Igreja: uma voz

    vinda do Cu e falando aos homens sobre a terra no teria feito melhor. Porque todos

    estavam sob o efeito do terror das calamidades da poca precedente, e atazanados

    pelo receio de se verem retirar no futuro as douras da abundncia.

    Um documento dividido em captulos, continha ao mesmo tempo o que era proibido

    fazer e os compromissos sagrados que se tinha decidido tomar para com o Deus todo

    poderoso. A mais importante destas promessas era a de observar uma paz inviolvel;

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    os homens de todas as condies, qualquer que fosse a m ao de que fossem

    culpados, deviam a partir da poder andar sem receio e sem armas. O ladro ou

    aquele que tinha invadido o domnio de outrem estava submetido ao rigor de uma

    pena corporal.

    Aos lugares sagrados de todas as igrejas devia caber tanta honra e reverncia que, se

    um homem, punvel por qualquer falta, a se refugiasse, no sofreria nenhum dano,

    salvo se tivesse violado o dito pacto de paz; ento era agarrado, retirado do altar e

    devia sofrer a pena prescrita. Quanto aos clrigos, aos monges e s monjas, aquele

    que atravessasse uma regio na sua companhia no devia sofrer nenhuma violncia

    de ningum (citado em DUBY, 1986, 164-165).

    O movimento, popular e com o firme apoio dos oratores, se espalhou at o norte da

    Frana. Era uma exclusividade francesa, o resultado da impotncia do rei francs,

    pois no Sacro Imprio o soberano ainda era capaz de manter a ordem e a justia. A

    violncia dos cavaleiros na Frana era tanta que Paz de Deus juntou-se, a partir

    dos anos 1020-1040, outro movimento: a Trgua de Deus, uma imposio de

    armistcio semanal, inicialmente de dois dias, mas que chegou a quatro (da noite de

    quarta-feira at a manh de segunda). Era um remdio, uma tentativa dos clrigos

    de pr ordem no caos face debilidade da autoridade rgia. Os poderes

    eclesisticos assumiram a tarefa, utilizando a principal arma de seu ofcio: a

    excomunho.

    V. O processo civilizador da Igreja: o juramento do cavaleiro

    Esta tentativa de conter a pulso agressiva dos cavaleiros era sacramentada por

    meio de um juramento, quando o guerreiro colocava suas mos sobre relquias

    sagradas, mgicas, e fazia uma srie de promessas de paz. Lendo inversamente uma

    dessas promessas, registrada pelo bispo Gurin de Beauvais por volta dos anos

    1023-1025, pode-se imaginar o insustentvel e sombrio cotidiano das populaes

    que viviam junto aos senhores da guerra e o temor que deveria passar pela cabea

    de um campons ou clrigo ao avistar um enxame daqueles milites gregarii:

    No invadirei de forma alguma uma igreja. Em razo da sua salvaguarda tambm

    no invadirei as adegas que esto nos termos de uma igreja, salvo no caso de um

    malfeitor ter infringido esta paz, ou em virtude de um homicdio, ou da captura de

    um homem ou de um cavalo. Mas se por estes motivos eu invado as ditas adegas,

    no trarei nada a no ser o malfeitor ou o seu equipamento, com perfeito

    conhecimento.

    No atacarei o clrigo ou o monge se no trazem as armas do mundo, nem aquele

    que caminha com eles sem lana nem escudo; no tomarei o seu cavalo, salvo em

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    caso de flagrante delito que me autorize a faz-lo, ou a no ser que tenham recusado

    reparar a sua falta num prazo de quinze dias depois do meu aviso.

    No tomarei o boi, a vaca, o porco, o carneiro, o cordeiro, a cabra, o burro, o feixe

    que traga, a gua e o seu potro no adestrado. No agarrarei o campons nem a

    camponesa, os sargentos ou mercadores, no ficarei com os seus dinheiros; no os

    arruinarei tomando-lhes os seus haveres sob o pretexto da guerra do seu senhor, e

    no os chicotearei para lhes retirar a sua substncia.

    O macho ou a mula, o cavalo ou a gua e o potro que esto na pastagem, no

    despojarei ningum deles, desde as calendas de Maro at o Dia de Todos os Santos,

    salvo se os encontro a causarem-me danos.

    No incendiarei nem destruirei as casas, a no ser que a encontre um cavaleiro

    inimigo ou um ladro; a menos tambm que estejam adjuntas a um castelo que seja

    mesmo um castelo.

    No cortarei, arrancarei ou vindimarei as vinhas de outrem, sob o pretexto da

    guerra, a no ser que estejam sobre terra que e deve ser minha. No destruirei os

    moinhos e no roubarei o trigo que a se encontre, salvo quando estiver em cavalgada

    ou em expedio militar pblica, e se for sobre a minha prpria terra.

    Com perfeito conhecimento meu no concederei nem apoio nem proteo ao ladro

    pblico e provado, nem a ele nem a seu empreendimento de banditismo. Quanto ao

    homem que conscientemente infringir esta paz, deixarei de proteg-lo, desde que o

    saiba; e se agiu inconscientemente e que venha a recorrer minha proteo ou bem

    farei uma reparao por ele, ou bem obrigarei a faz-la no prazo de quinze dias,

    depois do que estarei autorizado a pedir-lhes contas ou retirar-lhe-ei a minha

    proteo.

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    No atacarei e nem despojarei o mercador ou o peregrino, salvo se cometerem uma

    m ao. No matarei o gado dos camponeses, a no ser para a minha alimentao

    e da minha escolta.

    No capturarei o campons e no lhe retirarei a sua subsistncia por instigao

    prfida do seu senhor.

    No atacarei as mulheres nobres, nem os que circularo com elas, na ausncia do seu

    marido, a no ser que os encontre cometendo alguma m ao contra mim com o seu

    movimento; observarei a mesma atitude para com as vivas e as monjas.

    Tambm no despojarei aqueles que transportam o vinho em carroas, e no ficarei

    com os seus bois. No prenderei os caadores, os seus cavalos e ces, exceto no caso de

    serem nocivos a mim ou a todos aqueles que tomaram o mesmo compromisso e o

    observam para comigo (...)

    Desde o comeo da Quaresma at a Pscoa no atacarei o cavaleiro que no use as

    armas do mundo e no lhe retirarei a subsistncia que tiver consigo. Se um

    campons fizer mal a um outro campons ou a um cavaleiro, esperarei quinze dias;

    depois do que, se no fizer reparao desprender-me-ei dele, mas s tomarei de seus

    haveres o que est legalmente fixado (citado em DUBY, 1986, 166-167).

    Todas essas promessas mostram a virulncia cavaleiresca contra a sociedade feudal

    do sculo XI. A Paz de Deus, a Trgua de Deus e os juramentos dos cavaleiros

    sobre as relquias frearam um pouco as pulses, os mpetos agressivos dos

    guerreiros. Mas ainda faltava cristianizar os rituais cavaleirescos para tornar

    completo esse processo civilizatrio.

    Para a consecuo deste processo, a partir do sculo XI elaborou-se o ideal

    cavaleiresco, sempre baseado nas prescries da Paz e na Trgua de Deus. Os

    oratores perceberam que no bastava evitar a brutalidade dos cavaleiros contra os

    fracos: passaram ento a exigir do cavaleiro que protegesse a sociedade no-

    beligerante com suas armas (PACAUT, s/d, 377).

    A sacralizao dos gestos pelos quais as armas eram entregues ao cavaleiro recm

    ingresso na ordem tinha como objetivo estender o reino de Cristo ao mundo dos

    homens atravs da espada em forma de cruz Ramon Llull no esquecer essa

    imagem cristolgica da espada:

    Ao cavaleiro dada a espada, que feita semelhana da cruz, para significar que

    assim como nosso Senhor Jesus Cristo venceu a morte na cruz na qual tnhamos

    cado pelo pecado de nosso pai Ado, assim o cavaleiro deve vencer e destruir os

    inimigos da cruz com a espada. E porque a espada cortante em cada parte, e

    cavalaria existe para manter a justia, e justia dar a cada um o seu direito, por

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    isso a espada do cavaleiro significa que o cavaleiro mantm a cavalaria e a justia

    com a espada (LOC, V, 2, 77).

    A sacralizao do ritual de adoubement pode tambm ser percebida pela mudana

    do vocabulrio: ...no se arma apenas um cavaleiro. Procede-se sua ordenao.

    (BLOCH, 1987, 329). Os clrigos procuraram assim transformar a entrega das

    armas num sacramento ento entendido como um ato de consagrao.

    Em resumidas contas, era este o estado de coisas quando Ramon Llull escreveu o

    Livro da Ordem de Cavalaria, ou seja, a no ser num curto espao de tempo e em

    circunstncias especiais como a cruzada, por exemplo (tema que, por sua

    extenso, propositalmente no tratei aqui) a tica cavaleiresca forjada pelos

    religiosos para esse grupo social no vigorou. Talvez o Livro da Ordem de

    Cavalaria seja, alm de uma proposta de entrelaar a filosofia da Igreja com a

    prtica guerreira das ordens de cavalaria, o registro escrito pstumo de um ideal j

    h muito abandonado, ou poucas vezes seguido na prtica.

    De qualquer modo, para compreender o sentido da obra de Ramon e suas

    propostas utpicas, necessrio v-la na perspectiva maior do conjunto das obras

    lulianas, para ento tentar precisar o universo de sentidos que Ramon atribui s

    virtudes e vcios.

    VI. A produo luliana

    A vasta produo luliana duzentas e quarenta e quatro obras sobreviveram at

    os dias de hoje foi dividida pelos especialistas em quatro etapas (Bonner, 1989.

    Citarei como OS):

    1) Fase pr-artstica (1271-1274, fim da poca de estudo at sua viso no monte

    Randa),

    2) Fase quaternria (1274-1289, subdividida em dois ciclos [Ciclo da Ars

    compendiosa inveniendi veritatem [ca.1274-ca.1283] e Ciclo da Art demostrativa

    [1283-1289]),

    3) Terceira fase (1290-1308, perodo caracterizado por uma tentativa de facilitar a

    compreenso de sua Arte) e

    4) Fase ps-artstica (1308-1315. J com mais de setenta anos, Llull passou a se

    preocupar com problemas concretos, filosficos [campanha anti-averrosta] e lgicos,

    alm de livros polemistas).

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    20 osmthu.org

    O Livro da Ordem de Cavalaria se insere no incio do ciclo da Ars compendiosa

    inveniendi veritatem (ca.1274 - ca.1283), isto , ainda no incio de sua produo

    literria. A obra uma aplicao prtica de sua Arte. Para que o leitor compreenda

    seu sentido, necessrio explicar o que era a Arte luliana, segundo seu prprio

    autor.

    VII. A Arte luliana

    A Arte luliana (Ars) era um sistema de pensamento aplicvel a qualquer tema ou

    problema especfico, uma tentativa de unificar todo o pensamento da cultura

    medieval e um instrumento para investigar a verdade das criaturas tendo como

    pressuposto apriorstico a verdade de Deus,

    criada com o objetivo de converter os infiis

    (PRING-MILL, 1962, 31-32).

    A Ars luliana era mais que uma doutrina: era

    uma tcnica, um sistema, um modo de

    exposio tcnico de uma cincia

    (BONNER, OS, I, 64) uma definio

    bastante anloga ao perodo: os medievais

    consideravam o conceito de ars como uma

    doutrina do fazer humano. Para os

    medievos, arte era sobretudo uma tcnica,

    ...a especializao do professor, assim como

    o tm as suas o carpinteiro ou o ferreiro.

    Aps Hugo de Saint-Victor, So Toms, no

    sculo seguinte, extrairia todas as consequncias dessa proposio. Arte toda

    atividade racional e justa do esprito, aplicada tanto produo de instrumentos

    materiais como intelectuais: uma tcnica inteligente do fazer. (LE GOFF, 1993,

    57).

    Arte era uma ordem fundamental do esprito (CURTIUS, 1996, 77). Esta

    concepo baseava-se em dois fundamentos: um cognoscitivo (ratio, cogitatio),

    outro produtivo (faciendi, facctibilium). Arte, para o medievo, era sobretudo um

    conhecimento de regras, atravs das quais coisas poderiam ser produzidas. Era uma

    virtude, uma ...capacidade de fazer algo, e, portanto, uma virtus operativa, virtude

    do intelecto prtico. A arte inscreve-se no domnio do fazer, no do agir (...) a

    teoria da arte , antes de mais nada, uma teoria da profisso. (ECO, 1989, 131-

    132).

    Arte era tambm a maneira pela qual Ramon Llull enfocava a filosofia ou a

    teologia: ele quase no discutia um conceito isoladamente (como faziam seus

    contemporneos Toms de Aquino e o franciscano Duns Scotus [c.1265-1308 ]).

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    Em lugar disso, apresentava um grupo de conceitos, onde o que interessava era o

    lugar que eles ocupavam e a sua relao com os outros conceitos limtrofes

    (BONNER, OS, vol. I).

    Por fim, a aplicao da Arte luliana possua cinco usos, segundo seu prprio

    criador:

    1) Conhecer e amar a Deus amar a Deus era um preceito cristo (Mc 12,30 e Lc

    10, 27), mas amar e conhecer a Deus era uma caracterstica da teologia muulmana,

    o que indica uma influncia islmica no pensamento de Ramon (GAY

    ESTELRICH, 1974, 47-51),

    2) Unir-se s virtudes e odiar os vcios, um processo que, segundo Llull, refrearia as

    paixes com a virtude da temperana (voltarei adiante a estas questes relativas s

    virtudes),

    3) Confrontar as opinies errneas dos infiis por meio das razes convincentes, ou

    necessrias,

    4) Formular e resolver questes e

    5) Poder adquirir outras cincias em um breve espao de tempo e tirar as concluses

    necessrias segundo as exigncias da matria.

    Isto fazia da Arte luliana uma cincia das cincias, proporcionando critrios para

    um ordenamento preciso e racional de todo o conhecimento (ROSSI, 1960, 44-45;

    BONNER, OS, 69-71).

    Figura da "Ars Magna", Ramon Llull, 1305

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    VIII. O Livro da Ordem de Cavalaria

    No se sabe o local da redao da obra, nem sua datao precisa: provavelmente

    entre os anos 1279-1283. O Livro apologtico e doutrinrio, tem contedo

    missional e pretende ocupar espao na formao dos novos pretendentes

    cavalaria, iluminando o caminho dos novios com valores espirituais, morais e

    ticos.

    Llull inicia seu livro com um pequeno Prlogo, que difere bastante em sua forma

    literria do restante da obra. A histria simples: vendo a proximidade da morte,

    um velho cavaleiro escolheu a vida eremita da floresta. Um dia, um escudeiro que

    viajava adormeceu em seu cavalo e foi levado pelo animal presena do eremita. O

    escudeiro tinha o desejo de ser feito cavaleiro, e viajava para participar de cortes

    reunidas por um grande rei. Maravilhados um com o outro, eles conversaram.

    Quando o escudeiro disse ao eremita no conhecer as regras da cavalaria, o velho

    deu a ele um antigo livro, escrito para restaurar a honra, a lealdade e a ordem que os

    cavaleiros deveriam ter. O jovem, agradecido, chegou corte do prestigioso rei e

    presenteou-o com o livro dado pelo eremita, para que todos pudessem l-lo com

    frequncia e tivessem sempre presentes em suas almas os ideais da cavalaria (LOC,

    Prlogo, 2-11).

    Ramon utilizou neste Prlogo vrios motivos novelescos provenientes do chamado

    Ciclo do Graal - tema desenvolvido por Chrtien de Troyes no sculo XII na obra

    Perceval, e se relaciona a crenas clticas (como o caldeiro da abundncia, por

    exemplo). Pouco mais tarde, Robert de Boron comps uma trilogia na qual o Graal

    se tornou a taa em que Cristo bebeu na ltima ceia e que mais tarde continha seu

    sangue recolhido por Jos de Arimateia na crucificao.

    No sculo XIII foram desenvolvidas vrias obras annimas com base no

    manuscrito de Boron, as quais tratavam da busca espiritual do Graal pelos

    cavaleiros do rei Artur. O Graal seria o objeto perfeito, capaz de garantir a

    prosperidade ao reino de Camelot. S o cavaleiro perfeito, isto , puro e sem

    pecados (Galaaz), seria capaz de encontrar o Santo Vaso (ZIERER, 1999).

    Dos temas tratados no Ciclo do Graal, Llull utilizou: a floresta como lugar da

    solido reflexiva, o velho cavaleiro feito ermito, a relao cavaleiro-ermito e o

    escudeiro que adormece e levado pelo cavalo (SOLER I LLOPART, 1988, 15).

    A forma literria da obra se reduz praticamente ao Prlogo e aplicao alegrica

    na quinta parte do tratado: o restante dedicado argumentao dialtica com um

    discurso alegrico didtico-moral para Llull, cincia escrita em livros , se

    estabelecendo ento um claro contraste entre as partes (SOLER I LLOPART, 1989,

    21).

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    J no Prlogo o leitor percebe os propsitos da obra. A cavalaria e o povo cristo se

    perderam, preciso trazer o rebanho de volta, ilumin-lo. A obra possui um

    sentimento de nostalgia: era necessrio fazer-se o soerguimento da cavalaria, j que

    o quadro era absolutamente decadente: cavaleiros ladres e traidores de sua causa,

    reis e prncipes malvados.

    Para Llull, as maiores misses do cavaleiro seriam: pacificar os homens, manter e

    defender o cristianismo e vencer os infiis. A cavalaria deveria estar a servio da f

    crist. Para tanto, o cavaleiro deveria imbuir-se dos mais nobres ideais, pois esta era

    uma misso divina, e s os puros de corao deveriam ter acesso a ela. Sendo

    assim, a cavalaria deveria escolher seus combatentes entre os nobres.

    Llull limita o nmero de cavaleiros e afirma que os pretendentes devem ser ricos,

    para poderem possuir todo o armamento necessrio ao seu ofcio: ...cavalaria no

    observa multido de nmero (LOC, III, 1, 53). Isto fica ainda mais claro quando

    da festa que acontece aps a sagrao do cavaleiro: o nobre que ir armar o

    cavaleiro novio deve dar presentes aos convidados, e o novo cavaleiro tambm:

    Naquele dia deve ser feita grande festa de oferecimento, de convites, justas, e das

    outras coisas que convm festa de cavalaria. E o senhor que faz cavaleiro deve

    presentear ao novo cavaleiro e aos outros novos cavaleiros; e o cavaleiro novo deve

    presentear, naquele dia, porque quem recebe to grande dom como a ordem de

    cavalaria, sua ordem desmente se no d segundo deve dar. Todas estas coisas e

    muitas outras que seriam longas de contar pertencem ao fato de dar cavalaria (LOC,

    IV, 13, 75).

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    Na quinta parte da obra (Do significado que existe nas armas de cavaleiro LOC, V,

    77- 87), Llull desenvolve uma argumentao alegrica: a atribuio de um

    significado a cada uma das armas do cavaleiro. Em todos os casos, Llull insiste em

    explicar uma relao analgica entre signo e realidade, estabelecendo um sentido

    existente entre o mundo fsico e o metafsico, uma transcendncia (SOLER I

    LLOPART, 1989, 12).

    As obrigaes materiais restringem consideravelmente os nobres que desejam

    ingressar na cavalaria, tornando-a quase um corpo de elite. A Igreja deve cercar a

    cavalaria com seus ideais para que ela no se perca nos pecados mundanos. Isto

    est bem claro quando Llull afirma que a maior amizade existente deve se dar entre

    clrigos e cavaleiros:

    Muitos so os ofcios que Deus tem dado neste mundo para ser servido pelos homens;

    mas todos os mais nobres, os mais honrados, os mais prximos dos ofcios que

    existem neste mundo so ofcio de clrigo e ofcio de cavaleiro; e por isso, a maior

    amizade que deveria existir neste mundo deveria ser entre clrigo e cavaleiro (LOC,

    II, 4, 25).

    Da o elogio milcia dos templrios feito cem anos antes por So Bernardo: as

    ordens militares (templrios, hospitalrios e posteriormente os cavaleiros

    teutnicos) seriam a personificao do ideal cavaleiresco: ofcio de clrigo e de

    cavaleiro juntos num s homem, duas bases da pirmide social unidas no ideal da

    guerra santa.

    Outro ponto que unia as duas instituies (Igreja/Cavalaria) era o cerimonial que

    antecedia a sagrao do novio. A confisso e a data para a entronizao do

    cavaleiro (qualquer festa honrada do ano cristo) indicavam que se tratava de uma

    cerimnia de carter religioso. O jejum em honra do santo do dia e a observncia

    de no participar da festa em si (o cavaleiro no deveria ouvir jograis, considerados

    transmissores do pecado) eram sinais do sagrado totalmente inseridos neste

    universo blico:

    O escudeiro deve jejuar na viglia da festa, por honra do santo da festa. E deve vir a

    Igreja orar a Deus na noite antes do dia em que deve ser feito cavaleiro; deve velar e

    estar em preces e em contemplao e ouvir palavras de Deus e da ordem de cavalaria;

    e se escuta jograis que cantam e falam de putarias e pecados, no comeo da entrada

    na ordem de cavalaria comea a desonrar e a menosprezar a ordem de cavalaria

    (LOC, IV, 3, 67).

    Com os dez mandamentos e os sete sacramentos da Igreja, todos eles jurados pelo

    cavaleiro na missa solene da sagrao (LOC, II, 5-8, 69-71), a Igreja revestia o

    cerimonial militar com uma aurola sagrada indissolvel. O ideal cavaleiresco

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    luliano muitas vezes quebrado na prtica tinha assim um propsito firme de

    entrelaar a filosofia da Igreja com a prtica guerreira das ordens de cavalaria. Tal

    meta visava o restabelecimento de um passado mtico glorioso, ligado diretamente

    nobreza e cavalaria do tempo de Carlos Magno, rei-perfeito na concepo

    medieval.

    Vimos que, desde o final do sculo XII, a cavalaria era criticada pelo clrigos, por

    no cumprir sua misso primeva e adquirir valores mundanos, como, por exemplo,

    os torneios (LE GOFF, 1994, 267-279). Mas no tempo de Ramon, e especialmente

    no final de sua vida (sc. XIV), as prprias monarquias, em determinadas ocasies,

    tambm faziam coro aos eclesisticos: muitos cavaleiros se transformavam em

    exrcitos de mercenrios e se aliavam s milcias urbanas: eram as chamadas

    Grandes Companhias, o terror do sculo XIV (TUCHMAN, 1990, 205-213).

    Diante de tamanha presso, a cavalaria se refugiou nesta ideologia cavaleiresca que

    Ramon defende, construda com elementos eclesisticos e nobilirquicos. A

    ideologia um sistema de representaes globalizante, deformante e estabilizador,

    que pretende preservar as relaes sociais. Ela no um reflexo do vivido, mas um

    projeto de agir sobre a realidade social (DUBY, 1982, 21), permitindo ao grupo

    criar uma identidade comum que coordene suas aes e faa-o agir coletivamente.

    Numa mesma sociedade coexistem vrias ideologias concorrentes, correspondendo

    a diferentes estratos culturais, tnicos e de relaes de poder (DUBY, 1995).

    Associada a um sistema de crenas, a ideologia medieval baseava-se em textos da

    teologia crist. A Igreja pretendeu, a partir do sculo XI, moralizar o mundo

    militar, moldar a cavalaria a um cdigo tico particular. Atravs da literatura

    clerical composta para um auditrio guerreiro, pouco a pouco foi tomando corpo

    uma ideologia prpria ao grupo de cavaleiros, a ideologia cavaleiresca, realizao

    do esquema ideolgico das trs ordens do feudalismo (DUBY, 1995, 144).

    Os eclesisticos ofereciam uma ideologia cavaleiresca baseada em sua prpria

    concepo de sociedade. Apesar de matizaes diversas, percebo duas tendncias

    bsicas da atuao da Igreja sobre a cavalaria. A primeira, mais antiga e radical,

    pretendia a integrao da cavalaria na instituio eclesistica. Vimos que seu maior

    representante foi So Bernardo, que justificava a violncia dos cavaleiros templrios

    atravs de uma finalidade correta:

    Mas os soldados de Cristo (os templrios) combatem seguros nas batalhas do Senhor,

    sem temor algum por pecar ao se colocarem em perigo de morte e por matar o

    inimigo. Para eles, morrer ou matar por Cristo no implica criminalidade alguma e

    reporta a uma grande glria (...) o soldado de Cristo mata com segurana de

    conscincia e morre com mais segurana ainda (BERNARDO DE CLARAVAL,

    BAC, 503).

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    curioso o fato de Llull ignorar completamente esta obra de So Bernardo

    embora o catalo trate do cavaleiro secular, e o santo, do monge-cavaleiro

    (OLIVER, 1958, 175-186).

    De qualquer modo, visto em retrospecto no conjunto da cavalaria medieval, esta

    corrente de interveno eclesistica demonstrou pouca eficcia. Apesar de seu

    mpeto inicial, levado a cabo atravs das ordens militares (na Europa,

    principalmente com a expanso para o Leste Drag Nach Osten promovida

    pelos cavaleiros teutnicos na Prssia [MILITZER, 1993, 165-193]), ela fracassou

    definitivamente com a decadncia dessas mesmas ordens militares (templrios

    [BARBER, 1991], hospitalrios e teutnicos) e com a perda definitiva da Terra

    Santa em 1291 (NICHOLSON, 1995, 125-128).

    A segunda linha ideolgica, mais moderada e de maior alcance temporal,

    legitimava a funo da cavalaria na sociedade e reconhecia sua violncia, em

    determinadas condies, como o meio lcito para um fim. Por exemplo, o papa

    Gregrio VII (1073-1085) pretendia submeter a cavalaria a seu programa de

    reforma, fundando uma militia Petri (DUFFY, 1998, 94-99).

    No entanto, tal corrente ideolgica desejava controlar os cavaleiros por meio de

    uma tica, atribuindo cavalaria ideais, objetivos e normas de comportamento

    sacralizando o grupo com um cerimonial e a criao do conceito de ordo. O Livro

    da Ordem de Cavalaria se insere nesta segunda tradio ideolgica. Era sua

    proposta oferecer uma ideologia cavaleiresca com o objetivo de formar um projeto

    social coerente atravs de cinco pontos:

    1) Funo

    2) Determinao da posio social

    3) Construo de um sistema tico, baseado na anttese virtude vcio

    4) Proposta de mecanismos de reforma e

    5) Oferecimento de um esquema tipolgico imaginrio (SOLER I LLOPART,

    1988, 47).

    A principal finalidade da obra era instruir os cavaleiros nas virtudes prprias da

    ordem de cavalaria, tema que passo agora a analisar.

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    IX. A oposio virtudes/vcios no Livro da Ordem de

    Cavalaria

    Ramon desenvolve o tema virtudes/vcios praticamente em todas as sua obras,

    pois, como vimos, este era um dos cinco usos possveis de sua Arte. No Livro da

    Ordem de Cavalaria, Llull trata do tema com o objetivo de legitimar a ordem

    cavaleiresca, ou, em suas palavras, torn-la bem acostumada (LOC, V, 1, 89).

    Ramon inicia ento com as virtudes teologais e cardeais:

    Todo cavaleiro deve conhecer as sete virtudes que so raiz e princpio de todos os bons

    costumes e so vias e carreiras da celestial glria perdurvel. Das quais sete virtudes

    so as trs teologais e as quatro cardeais. As teologais so f, esperana, caridade. As

    cardeais so justia, prudncia, fortaleza, temperana (LOC, V, 2, 89).

    Virtude (virtus) deriva de vir (virilidade, vigor, homem, masculinidade). O sculo

    XIII considerado o tempo da virtus por excelncia, isto , o tempo da vontade

    como potncia da vida. Para os filsofos medievais, o racionalismo deveria ceder

    terreno ao voluntarismo, pois se pensava o divino como um ser volitivo (BHLER,

    1983, 96).

    Por outro lado, conceitualmente, virtude significa fora, poder, eficcia de uma

    coisa (FERRATER MORA, 1982, 419), algo merecedor de admirao, que

    tornaria seu portador uma pessoa melhor, moral ou intelectualmente

    (BLACKBURN, 1997, 405).

    Desde Plato e Aristteles, o conceito foi entendido, para o primeiro (virtudes

    cardeais), como uma capacidade de realizar uma tarefa determinada (PLATO, A

    Repblica, Livro I, 353a, 49-50); para o segundo (virtudes morais ou excelncia

    moral), como um hbito racional, que tornaria o homem bom (ARISTTELES,

    tica a Nicmanos, Livro II, 2, 1103b, 35-36 e Livro II, 6, 1106, 40).

    Estas quatro virtudes cardeais (prudncia, justia, fortaleza e temperana) pontos

    referenciais para a potncia do homem , eram utilizadas por todos os pensadores

    medievais. Toms de Aquino, ainda defendeu o conceito de virtude aristotlica

    como uma consequncia dos hbitos humanos, mas sobretudo como perfeio da

    potncia (capacidade de ser alguma coisa) voltada para seu ato (TOMS DE

    AQUINO, Suma Teolgica, volume III, q. 55).

    So Toms ainda aproveitou este sistema referencial para demonstrar que s as

    virtudes morais poderiam ser chamadas de cardeais, pois exigiriam a disciplina dos

    desejos (rectitudo appetitus), virtude perfeita (Suma, II, 1, q. 52). De fato, esta a

    base de todas as citaes medievais posteriores sobre as virtudes cardeais, inclusive

    Ramon Llull, que se vale principalmente da ideia de virtude como hbito.

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    Por outro lado, as virtudes teologais. Elas se encontram em So Paulo (c.10-66

    d.C.), em sua Primeira Epstola aos Corntios, escrita por volta dos anos 50-57 d.C.

    Ao comentar o uso e a hierarquia dos carismas um dos problemas cruciais do

    cristianismo primitivo So Paulo, trata da importncia da caridade (Ainda que

    eu falasse lnguas, as dos homens e as dos anjos, se eu no tivesse a caridade, seria

    como um bronze que soa ou como um cmbalo que tine) (Bblia de Jerusalm,

    1991, 1Cor, 13, 1, 2.164).

    No final desta passagem, So Paulo fala das trs virtudes teologais: f, esperana e

    caridade, sendo que a caridade no sentido grego de gape, um amor de dileo,

    que quer o bem do prximo, sem fronteiras, que busca a paz no sentido mais puro,

    o amor que a prpria natureza de Deus a maior delas (Bblia de Jerusalm,

    1Cor, 13, 13, 2.166).

    Sempre junto dessas virtudes, o pensamento em Deus. Estes atributos (imperativos)

    deveriam ser encadeados. Tambm para Ramon Llull as virtudes deveriam ser

    ativas: atravs de sua ao, de sua prtica social, a ordem dos cavaleiros seria

    reconhecida pelo restante do corpo social.

    E o que Llull entendia exatamente por virtude? O estudo das virtudes lulianas se

    insere no mbito da tica, de uma tica das virtudes. A tica, junto com a

    Metafsica e a Epistemologia, considerada um dos trs pilares da Filosofia, e

    estuda a natureza e os fundamentos do pensamento e da ao moral, em geral,

    cincia da conduta.

    A tica luliana possua base aristotlica, privilegiando as virtudes. Ramon

    comparava as correspondncias e contrariedades entre virtudes e vcios, tpica de

    seu tempo, partindo de uma gnese filosfica de cunho psicolgico: o que

    impulsionava o homem a filosofar era a admirao, o ato de maravilhar-se, pelo

    assombro do espetculo da natureza e pela falta de caridade e devoo a Deus por

    parte dos homens de seu sculo.

    Esta estupefao dava lugar a uma conscincia moral que justificava uma atitude

    apologtica: o homem cristo deveria difundir a f. Assim, a tica luliana estava

    dividida em quatro segmentos:

    1) a chamada primeira inteno (a preocupao com a soluo do problema da

    finalidade do universo)

    2) os dois movimentos da alma (para o bem e para o mal) em relao liberdade

    3) a conscincia como diretriz da conduta prtica

    4) o sentido correcionista da tica (TOMS Y JOAQUN CARRERAS Y

    ARTAU, EL, vol. I, 1, 1957).

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    osmthu.org 29

    Mas o que interessa ressaltar na tica luliana sua montagem atravs de contrrios.

    Seria mesmo uma tica da polaridade: os princpios de concordncia e

    contrariedade, de perfeio e imperfeio, cuja explicao pode encontrar-se no

    substrato ideolgico da poca. Os pensadores medievais pensavam suas idias em

    termos dualistas; o sculo XIII realizou um esforo intelectual de sntese de

    contrrios (ROBERT LOPEZ, 1965, 359).

    Esta polaridade est assim expressa no captulo VI do Livro da Ordem de Cavalaria

    (LOC, VI, 89-107): virtudes teologais (f, esperana e caridade), virtudes cardeais

    (justia, prudncia, fortaleza e temperana) e os vcios, ou sete pecados capitais

    (glutonia, luxria, avareza, preguia, soberba, inveja e ira).

    A f o alicerce do cavaleiro: dela decorrem a esperana e a caridade. Sete so as

    qualidades decorrentes da f, quatro da esperana, quatro da caridade:

    As Virtudes Teologais e suas qualidades no Livro da Ordem de Cavalaria

    Para Ramon, o cavaleiro adquiria todas as virtudes teologais, necessrias e

    fundamentais ao seu ofcio, atravs da f. E de todas as qualidades decorrentes da

    f, as duas obrigaes mais importantes para o cavaleiro do sculo XIII: a

    peregrinao Terra Santa e a luta na cruzada. Da f decorreriam tambm as

    outras duas virtudes teologais (caridade e esperana), o que fazia o sistema luliano

    ser entrelaado por um profundo sentido unitrio.

    F Esperana Caridade

    Com a F o cavaleiro tem a

    Viso de Deus e de Suas obras

    Com a Esperana o cavaleiro tem

    coragem

    Com a Caridade o cavaleiro tem

    amor a Deus

    Esperana O cavaleiro lembra-se de Deus na

    batalha

    O cavaleiro tem piedade dos

    desafortunados

    Caridade O cavaleiro vence a batalha O cavaleiro tem misericrdia dos

    vencidos

    Verdade O cavaleiro suporta fome e sede Com a caridade o cavaleiro suporta

    o peso de seu nobre corao

    O cavaleiro vai para a cruzada --- ---

    O cavaleiro torna-se mrtir --- ---

    O cavaleiro defende os clrigos --- ---

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    30 osmthu.org

    Esse mesmo entrelaamento acontecia com as virtudes cardeais e os vcios que elas

    combateriam:

    As Virtudes Cardeais, suas qualidades e os Vcios (os Sete Pecados Capitais) no

    Livro da Ordem de Cavalaria

    Atravs da justia, o cavaleiro teria o conhecimento do mal e a possibilidade de

    evitar as injrias. A justia serviria ao cavaleiro em seu dia-a-dia, no em combate.

    J a prudncia sim, seria a virtude necessria na guerra. Com ela, o cavaleiro

    conheceria os pressgios, o bem e o mal, se esquivaria dos golpes e venceria as

    batalhas.

    Com a temperana, o cavaleiro viveria na perfeio filosfica, sem excessos nem

    faltas. Mas seria com a fortaleza que o cavaleiro combateria todos os vcios, os sete

    pecados que poderiam lev-lo aos caminhos do Inferno, ...carreiras pelas quais

    vai-se aos infernais tormentos que no tm fim (LOC, VI, 95) .

    Justia Prudncia Fortaleza Temperana

    Com a Justia o

    cavaleiro evita as injrias

    e as coisas tortas

    Com a Prudncia o

    cavaleiro tem

    conhecimento das coisas

    vindouras

    Virtude com a qual o

    cavaleiro combate os

    sete pecados capitais:

    Inveja, Acdia, Luxria,

    Glutonia, Avareza,

    Soberba, Ira

    Virtude que est no meio

    de dois vcios: o excesso

    e a falta

    --- O cavaleiro se esquiva

    dos danos corporais e

    espirituais

    --- ---

    --- O cavaleiro vence as

    batalhas

    --- ---

    --- O

    cavaleiro conhece o bem

    e o mal

    --- ---

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    No mesmo captulo, Llull ainda ope diretamente as virtudes aos vcios, alterando

    um pouco a relao acima e criando uma srie de binmios contrrios:

    Glutonia Abstinncia

    Luxria Fortaleza

    Avareza Fortaleza

    Acdia Fortaleza

    Soberba Fortaleza e Humildade

    Inveja Fortaleza

    Ira Coragem, Caridade, Abstinncia e Pacincia

    De todas as virtudes, a fortaleza seria a mais necessria ao cavaleiro, pois ela

    combateria a luxria, a avareza, a preguia, a soberba e a inveja, pecados mortais

    que provavelmente assolavam a cavalaria da poca. Na descrio de todos os

    vcios, Ramon d exemplos de como os cavaleiros eram tentados. Por exemplo, por

    causa de sua riqueza, necessria ao seu ofcio (LOC, III, 16, 61), a soberba tentava

    o cavaleiro, montado em seu grande cavalo, guarnecido com todas as suas armas.

    Ele s teria foras para combat-la atravs da fortaleza e humildade, que o

    lembrariam a razo pela qual era cavaleiro (LOC, VI, 14, 99).

    Assim, atravs de sries de binmios contrrios, submetidos a uma lei de formao,

    o sistema luliano de virtudes e vcios formava um todo unitrio. Seu objetivo era

    reproduzir no ser humano a imagem da Divindade, traduzindo as dignidades

    divinas em virtudes humanas (S. TRAS MERCANT, 1969, 119-121).

    Esta unidade do sistema luliano de virtudes se baseava em dois polos: o amor (as

    virtudes, inteno final do homem) e o pecado (os vcios, fora desviadora da

    inteno final para qual cada homem foi criado) (S. TRAS MERCANT, 1970,

    135).

    Por fim, o que mais importante destacar que, para Ramon Llull, atravs do

    conhecimento das virtudes, raciocinando-as, que nossa inteligncia se elevaria

    de Deus (LEOPOLDO EIJO GARAY, 1974, 25). Com esse conhecimento, o

    cavaleiro viveria de acordo com a nobreza de seu ofcio: manter, defender e

    multiplicar a f catlica, reger as terras e gentes pelo pavor, vilas e cidades,

    defender seu senhor, proteger as vivas, rfos e despossudos, fazer justia,

    defender os caminhos e lavradores, cavalgar, caar, esgrimir, justar e fazer tvolas

    redondas (LOC, II, p. 23-51).

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    A proposta utpica do Livro da Ordem de Cavalaria nunca pde realizar-se. O

    sculo XIV, com o fortalecimento das monarquias europeias, a Guerra dos Cem

    Anos e a Grande Peste, viu o fim de todos os projetos cavaleirescos e dos sonhos de

    harmonia do sistema feudal baseado no conhecimento das virtudes e vcios criados

    pelos clrigos e leigos como Ramon Llull. Terminava a Idade Mdia (DUBY,

    1992).

    Na verdade, este tratado, alm de ser um projeto civilizador cristo, um registro

    tardio de um ideal, o ideal cavaleiresco, um sonho na maior parte das vezes

    aviltado pelos homens de ento.

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    Fontes consultadas

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    PLATO. A Repblica, Porto, Fundao Calouste Gulbenkian, 1996.

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    Paulo, Instituto Brasileiro de Filosofia e Cincia Raimundo Llio/Editora Giordano, 2000.

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    de Brindes, Livraria Sulina Editora, Caxias do Sul, Universidade de Caxias do Sul, 1980, volume

    III.

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    cronstica de Sancho II e Afonso III, Niteri, Universidade Federal Fluminense (UFF), dissertao

    de mestrado, 1999.

    Nota sobre a autoria:

    Ricardo da Costa (Ricardo Luiz Silveira da Costa, 16 de Dezembro de 1962 - ) um destacado medievalista brasileiro.

    Dedica-se ao estudo da Idade Mdia europeia adoptando os temas e objectivos da Nova Histria (Nouvelle Histoire).

    Escreveu extensamente sobre uma grande variedade de temas e traduziu numerosos documentos do filsofo catalo Ramon

    Llull (1232-1316). Professor da Universidade Federal do Esprito Santo, em Vitria, Brasil.

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    Ordo Supremus Militaris Templi Hierosolimitani Universalis

    A Ordo Supremus Militaris Templi Hierosolimitani Universalis (OSMTHU), ou seja, a

    Ordem Soberena e Militar do Templo de Jerusalm Universal, um ramo da Ordem do

    Templo despertada por Fabre-Palapran no sculo XIX. No reclama nenhuma ligao

    histrica Ordem do Templo medieval. , no entanto, inspirada pelo mesmo esprito de

    servio e Cavalaria. A Ordem prope aos seus membros o estudo da histria do Templo e das

    antigas Tradies de Cavalaria atravs do despertar das artes, lendas, rituais, celebraes e

    ensinamentos espirituais dos passado de modo a poder conduzir uma vida de realizao e paz

    interior no presente.

    O Priorado Geral da Ibria (Prioratus Ibericus) o Priorado Geral que organiza as estruturas

    locais da Ordem nos territrios da Pennsula Ibrica e territrios administrados por Portugal e

    Espanha (incluindo as Ilhas Canrias, Madeira, etc.).

    www.osmthu.org

    Akademia Templria de Sintra

    A Akademia Templria de Sintra uma associao que promove o estudo e a

    divulgao das fontes histricas e tradicionais da Cavalaria Espiritual,

    incluindo histria, lendas, gestas, arte, msica e todo o tipo de estudos que

    ajudam a conhecer e apreciar a Cavalaria nos seus diversos matizes.

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    : non nobis domine non nobis : : sed nomine tua da gloriam :