PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

124
ASSOCIAÇÃO DE ARTE E CULTURA PANORAMA DA MÚSICA NO OCIDENTE Prof. Fernando Lewis de Mattos

Transcript of PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

Page 1: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

ASSOCIAÇÃO DE ARTE E CULTURA

PANORAMA DA MÚSICA

NO OCIDENTE

Prof. Fernando Lewis de Mattos

Page 2: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................. 2 MÚSICAS DA CRISTANDADE..................................................................................................................... 4

IDADE MÉDIA ................................................................................................................................................. 4 Cantos Cristãos Originários.................................................................................................................. 4 O Canto Gregoriano .............................................................................................................................. 4 Kyrie ....................................................................................................................................................... 10 Gloria...................................................................................................................................................... 10 Credo ..................................................................................................................................................... 11 Sanctus .................................................................................................................................................. 12 Benedictus............................................................................................................................................. 12 Agnus Dei .............................................................................................................................................. 12 A Canção Trovadoresca ..................................................................................................................... 14 A Polifonia Medieval ............................................................................................................................ 17 Ars Antiqua............................................................................................................................................ 18 Ars Nova ................................................................................................................................................ 19

O RENASCIMENTO ....................................................................................................................................... 23 A Cultura Renascentista ..................................................................................................................... 23 Música Sacra ........................................................................................................................................ 24 ................................................................................................................................................................ 27 Música Profana..................................................................................................................................... 27 Música Instrumental............................................................................................................................. 29

MÚSICAS DA MODERNIDADE.................................................................................................................. 31 O PERÍODO BARROCO ................................................................................................................................ 31

O Nascimento da Ópera ..................................................................................................................... 31 Música Instrumental............................................................................................................................. 33 Gêneros da Música Barroca ............................................................................................................... 34 Teoria dos Afetos ................................................................................................................................. 37

O PERÍODO CLÁSSICO ................................................................................................................................ 41 Aspectos estilísticos............................................................................................................................. 41 A Forma-Sonata ................................................................................................................................... 42 Gêneros do Período Clássico ............................................................................................................ 46

OS ROMANTISMOS DO SÉC. XIX ................................................................................................................. 48 Valores gerais do Romantismo .......................................................................................................... 48 Tendências da Música Romântica .................................................................................................... 50 Gêneros e formas do Romantismo.................................................................................................... 52 Ópera e Drama Musical ...................................................................................................................... 56

MÚSICAS DO ÚLTIMO SÉCULO (O MODERNISMO)........................................................................... 59 PERÍODO ANTERIOR ÀS GUERRAS MUNDIAIS............................................................................................. 59

Page 3: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

1

Impressionismo Francês ..................................................................................................................... 60 Expressionismo Germânico................................................................................................................ 63

PERÍODO ENTRE-GUERRAS ........................................................................................................................ 66 Dodecafonismo..................................................................................................................................... 66 Nova Objetividade................................................................................................................................ 70 Tendências Nacionais ......................................................................................................................... 75 Caminhos Independentes ................................................................................................................... 77

PERÍODO PÓS-GUERRA .............................................................................................................................. 80 Serialismo Integral ............................................................................................................................... 81 Música Concreta e Eletroacústica ..................................................................................................... 84 Música Aleatória ................................................................................................................................... 87

MÚSICAS DA ATUALIDADE...................................................................................................................... 91 MOVIMENTOS DA DÉCADA DE 1960............................................................................................................ 93

Minimalismo .......................................................................................................................................... 94 Poliestilística ......................................................................................................................................... 99

MOVIMENTOS DAS DÉCADAS DE 1970-80.................................................................................................102 Música Espectral .................................................................................................................................102 Nova Simplicidade ..............................................................................................................................103 Nova Complexidade ...........................................................................................................................104

ÚLTIMAS DÉCADAS .....................................................................................................................................107 Tendências Pós-Modernas................................................................................................................108 Experiências Multimídia .....................................................................................................................113

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................................................119 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................................................121

Page 4: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

2

INTRODUÇÃO

Neste texto, serão apresentados aspectos da História da Música, na cultura

ocidental, desde as primeiras manifestações de canto cristão, até as tendências

da música contemporânea.

Os assuntos serão estudados nos seguintes tópicos:

1. Músicas da Cristandade – A gênese da Música Ocidental, nos cantos

cristãos originários. O canto gregoriano e o surgimento da polifonia. As cruzadas e

a influência árabe na canção trovadoresca. O auge da polifonia vocal sacra e os

principais gêneros profanos do Renascimento.

2. Músicas da Modernidade – O Sistema Tonal e suas bases filosóficas,

sociais e acústicas. O pensamento racionalista na gênese do Tonalismo e seus

desdobramentos em vários estilos: Barroco, Classicismo, Romantismo e Verismo.

3. Músicas do Último Século – O Modernismo e seus desdobramentos, na

diversidade de tendências e estilos, na música do século XX: Impressionismo,

Expressionismo, Neo-Classicismo, Música Aleatória, Eletroacústica, Minimalismo,

Poliestilística, Pós-Modernismo, Jazz, Música Pop.

4. Panorama da Música Atual – Tendências da música contemporânea. A

incorporação do princípio da diferença na produção artística atual e seus

desdobramentos na criação da heterogeneidade de métodos de composição,

gêneros e estilos. A incorporação de processos regionais e universais na música

recente.

Musicólogos dividem-se entre considerar a gênese da música ocidental na

Grécia clássica ou nos primeiros cantos cristãos.

Sem dúvida, o sistema musical grego e seus gêneros permanecem, em

vários aspectos da música atual: o uso de escalas diatônicas e sua divisão em

tetracordes, os nomes dos modos (dórico, frígio, etc.), a classificação dos

instrumentos em cordas e sopros, a divisão binária e ternária do ritmo e tantos

Page 5: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

3

outros conceitos que usamos, hoje em dia. Entretanto, sabe-se pouco sobre como

essa música soava.

Vamos considerar, neste texto, a música européia desde os primeiros

cantos cristãos até sua sistematização no canto gregoriano, pois foi através desse

tipo de manifestação que muitos dos princípios da música grega chegaram até

nós.

Page 6: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

4

MÚSICAS DA CRISTANDADE

Idade Média

Cantos Cristãos Originários

Sabe-se que os primeiros cristãos foram perseguidos pelos romanos, pois

eram considerados hereges por propagarem sua crença monoteísta.

Esses cristãos originários eram constituídos por membros de várias

nacionalidades, entre hebreus, gregos, palestinos, africanos e, inclusive, romanos.

Reuniam-se em catacumbas para louvar a Deus. Nessas assembléias1,

realizavam orações, pregações e exaltações através do canto coletivo.

Cada membro da congregação trazia aquilo que praticava em sua própria

comunidade. Assim, presume-se que os primeiros cantos cristãos foram o

resultado dessa experiência multicultural, em que se misturavam formas de cantar

oriundas de várias tradições.

No século IV, o imperador Constantino I converteu-se ao Cristianismo, que,

a partir de então, tornou-se a religião oficial do Império Romano.

O Canto Gregoriano

Ao longo do século V, Roma entrou em colapso. Guerras conduzidas em

várias frentes, revoltas internas, invasões estrangeiras e a insatisfação com a

administração central levaram à divisão do Império em dois blocos: Império do

Ocidente (latino) e Império do Oriente (bizantino).

O Império Ocidental foi, pouco a pouco, fragmentando-se em pequenos

reinos. Sob domínio de comandantes estrangeiros, cada reino tinha suas próprias

crenças e valores.

Na busca de unificar novamente o Império e centralizar o poder político e

religioso em Roma, no final do século VI, o Papa Gregório Magno (590-604) 1 A palavra ‘igreja’ vem do vocábulo grego ‘ekklésia’, que significa assembléia, isto é, reunião de pessoas em torno de um interesse comum.

Page 7: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

5

enviou missionários a várias regiões para coletar os ritos, os cantos e a forma

como praticavam a liturgia.

Em posse desse conhecimento, as várias formas do rito cristão foram

compiladas em um único sistema, tendo a música como um dos elementos

essenciais dessa unificação. Surge, então, o que hoje é chamado de canto

gregoriano, que é a reunião dos diferentes tipos de canto cristão dessa época,

coletados ao longo de alguns séculos.

O termo cantochão, algumas vezes confundido com canto gregoriano,

refere-se a vários estilos e gêneros de canto litúrgico cristão sobre textos latinos,

praticados nos primeiros séculos. Entre os tipos mais importantes de cantochão,

está o próprio Canto Gregoriano (Roma), o Canto Ambrosiano (Milão), o Canto

Galicano (Gália) e o Canto Moçárabe (Península Ibérica).

Alguns pesquisadores atuais já não mais consideram que a origem do que

atualmente se denomina canto gregoriano advenha do período do Papa Gregório

I, pois entendem que sua tradição remonta ao Império Franco, no século VII, e a

oficialização da liturgia romana. Para esses musicólogos, que chamam o período

do Papa Gregório de Canto Romano, a diferença estaria em que este canto

romano, mais antigo, teria convido com outras formas de canto, ao passo que o

canto gregoriano, ao tornar-se oficial, foi aos poucos sobrepujando os outros

estilos. De qualquer forma, a tradição romana permaneceu avançando até pelo

menos o século XI, absorvendo elementos de outros estilos e tornando-se a única

base para os cantos aceitos na liturgia católica.

Papa Gregório I

Page 8: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

6

Características do Canto Gregoriano

O canto gregoriano foi organizado e teorizado durante mais de três séculos,

entre os séc. VI e IX. O tratado mais completo sobre o assunto chama-se Musica

Enchiriadis (latim, ‘Manual de Música’), do século IX. Nesse tratado, explicam-se

gêneros e formas do canto, o sistema de organização das escalas e a função de

cada tipo de canto, na liturgia oficial. Além disso, este tratado apresenta os

primeiros exemplos escritos de música polifônica medieval.

Entre as características mais importantes do canto gregoriano está o fato de

se tratar de música vocal pura, isto é, canto sem qualquer tipo de

acompanhamento instrumental. Tratava-se de canto coletivo em uníssono,

realizado somente com vozes masculinas. O resultado produz uma textura

monofônica, em que todos os membros do coro cantavam a mesma linha

melódica, simultaneamente. O texto sempre possui caráter religioso e é cantado

em latim, sendo que os textos cantados durante a liturgia são bíblicos. Como o

ritmo do canto é diretamente derivado da prosódia latina, o resultado é um ritmo

fluido e sem marcação métrica. Isso pode ser conseqüente do fato de que, na

tradição greco-latina, a prosódia era entendida mais pela divisão das sílabas em

longas e breves do que pela separação atual entre sílabas tônicas e átonas.

As melodias gregorianas são diatônicas, isto é, desenvolvem-se no âmbito

de uma escala de sete notas, e normalmente possuem a extensão de uma oitava.

As escalas nas quais as melodias são embasadas derivaram dos antigos modos

gregos, porém os modos eclesiásticos da Idade Média são diferentes dos gregos

devido ao fato de que os monges interpretaram de forma errônea um texto de

Boécio (Da Música) e aplicaram os nomes gregos (Dórico, Frígio, Lídio e

Mixolídio) a escalas diferentes das escalas originais da Grécia clássica2. Cada um

desses quatro modos, considerados autênticos, poderia derivar um outro modo,

2 Ainda hoje, em vários meios musicais, é comum chamar erroneamente os modos eclesiásticos (ou modos gregorianos) de modos gregos. Para dar uma idéia da diferença, o modo dórico grego inicia com a nota mi e suas notas se movimentam de forma descendente: mi-ré-dó-si-lá-sol-fá-mi; o modo eclesiástico medieval chamado de modo dórico inicia com a nota ré e se movimenta ascendentemente: ré-mi-fá-sol-lá-si-dó-ré. Este é o modo dórico, na denominação atual. Além da diferença das notas que formam as escalas, há outras diferenças, em vários aspectos, como o tipo de contorno melódico, as funções sócio-culturais, as configurações estilísticas e a expressão de uma melodia grega são completamente distintas de uma melodia gregoriana.

Page 9: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

7

mais grave (cantado uma quarta abaixo), chamado de plagal. O nome do modo

plagal é o mesmo do autêntico, com o acréscimo do prefixo ‘hipo’ (do grego,

‘abaixo’): Hipodórico, Hipofrígio, Hipolídio e Hipomixolídio. O resultado é um

sistema de oito escalas distintas, com características peculiares.

Outro aspecto interessante do canto gregoriano, que perdura por toda a

Idade Média e Renascimento, é o que se costuma chamar de musica ficta (latim,

‘música falsa’), que surgiu no modo Lídio, autêntico e plagal. A nota de resolução

deste modo, chamada de finalis (nota final), é o fá, que se relaciona com o si pelo

intervalo de trítono. Este intervalo divide a oitava pela metade, produz dissonância

extrema e gera a maior disjunção na relação entre dois sons. Por isso, e devido ao

seu alto nível de dissonância, o trítono era chamado, entre os músicos medievais,

de Diabolus in musica (‘o demônio na música’). Para evitar este intervalo, quando

a melodia se movimentava em direção à nota fá, nos modos Lídio e Hipolídio, os

cantores costumavam baixar a nota escrita em meio-tom. Isso fazia com que, na

prática, estivesse escrita uma nota (si) e fosse cantada outra (sib). Assim, o si

natural e o si bemol3 eram tratados como variantes da mesma nota.

Tipos de Canto

Há três tipos de canto, na música gregoriana: o canto silábico, o canto

neumático e o canto melismático. No canto silábico, há uma nota da melodia para

cada sílaba do texto. No canto neumático, são utilizadas algumas poucas notas

para cantar uma sílaba, geralmente não mais que quatro notas. Os neumas são

sinais de notação, utilizados em diferentes estilos de cantochão, para representar

entre uma e quatro notas a serem cantadas; o canto em que uma única sílaba é

carregada por algumas notas do canto (entre duas e quatro) é chamado de

neumático por ser grafado por meio de neumas. O canto melismático é aquele

3 A origem dos nomes bequadro e bemol vem dessa prática. Na escrita alfabética, a nota si é escrita com a letra ‘B’. Na idade Média, os músicos percebiam a nota si bemol como sendo mais macia do que o si bequadro. Em latim, os nomes eram B-durus (si duro) e B-mollis (si mole), origem do bemol. A nota si, por ser mais áspera, era escrita com notação quadrada: B-quadrum (si quadrado), que deu origem ao bequadro; o sib era escrito com notação arredondada: B-rotundus (si redondo). Ainda hoje, na música germânica, os modos maiores são designados com o sufixo Durr e os modos menores, com o sufixo Moll. Por exemplo, Lá Maior chama-se A-Durr; Lá Menor é denominado A-Moll, em alemão.

Page 10: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

8

realizado por meios de melismas, que são aqueles trechos em que há várias notas

para cada sílaba do texto, geralmente se considera que há melisma, na música

gregoriana, quando há mais de quatro notas para cada sílaba.

Atualmente, consideram-se dois tipos de canto, o silábico, quando cada

sílaba do texto é carregada por uma nota, e o melismático, quando há mais de

uma nota para cada sílaba. Diferentemente do canto gregoriano, atualmente,

mesmo quando há apenas duas ou três notas para uma sílaba, considera-se que

há um melisma.

Formas de Canto

Há duas formas principais de canto gregoriano: o responsório e a antífona.

Ambas realizam-se através de um jogo de pergunta e resposta entre diferentes

segmentos do coro. O responsório se caracteriza pela apresentação de uma frase

ou trecho musical por parte de um cantor solista, ao qual o restante do coro

responde, logo em seguida. Na antífona, ocorre alternância entre dois coros, em

que um deles canta uma frase ou trecho musical e o outro grupo responde. Essas

respostas podem ser realizadas a partir do mesmo texto e da mesma melodia

apresentados pelo solista ou pelo primeiro coro, como podem ser cantados com

base em textos e melodias diferentes daqueles que foram introduzidos

anteriormente.

Gêneros do Canto Gregoriano

Entre os gêneros mais destacados de canto gregoriano, estão os salmos,

os hinos, as seqüências e as missas.

Salmo

Como diz o termo, salmos são cantos gregorianos escritos com base nos

textos salmódicos da Bíblia. O termo salmo provém do verbo psallein (grego,

‘dedilhar’ um instrumento), através de psalmós (grego, ‘canção com

acompanhamento de lira’). Na tradição hebraica, o termo salmo refere-se ao Livro

dos Louvores, também conhecido entre os cristãos como Livro dos Salmos. Nos

Page 11: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

9

templos hebraicos, os salmos eram cantados pelos levitas, músicos profissionais

da ordem dos sacerdotes que tinham a incumbência de cantar as partes

musicadas dos rituais com acompanhamento de instrumentos de cordas, como

liras, saltérios e harpas. Na tradição cristã da Idade Média, os salmos passaram a

ser praticados por meio de cantos antifonais e responsoriais, já que não eram

permitidos instrumentos musicais no interior da igreja católica.

Os historiadores reconhecem três fases na Salmodia ocidental. A primeira

fase corresponde ao período do Cristianismo inicial até o Édito de Milão, em 313,

quando os Salmos eram intercalados às Lições. A segunda fase corresponde à

época do Papa Gregório I (séc. VI-VII), quando se instituiu a Salmodia Antifonal,

isto é, aquela em que dois coros se alternam para a apresentação do texto

cantado, e a Salmodia Responsorial, em que o coro responde a um cantor solista.

A terceira fase da Salmodia corresponde ao período do Protestantismo, no século

XVI, em que as diferentes igrejas protestantes traduziram os salmos para a

linguagem vernácula, geralmente em versos metrificados, para serem cantados

pela congregação.

A primeira dessas traduções foi realizada pelo calvinista Clément Marot.

Naturalmente, os protestantes abandonaram o canto gregoriano e passaram a

compor melodias embasadas no estilo da época, com acompanhamento de

acordes (nota contra nota) ou em contraponto simples, denominado bicinium

(latim, canto a duas vozes).

Missa

A missa pode ser considerada como o mais antigo gênero musical de longa

duração e com suas partes separadas em movimentos. Como o gênero musical

desenvolveu-se para acompanhar as partes da liturgia católica, as partes musicais

da missa correspondem às partes do Ordinarium, cuja forma fixa se estabeleceu a

partir do século V, na Igreja do Ocidente, em contraposição à diversidade de

formas e rituais da Igreja do Oriente. As partes fixas da missa cantada são estas:

Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus, Benedictus e Agnus Dei.

Page 12: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

10

O texto cantado de cada uma dessas partes é o que se apresenta abaixo:

Kyrie

Original (grego) Tradução Kyrie, eleison Christe, eleison Kyrie, eleison

Senhor, tende piedade de nósCristo, tende piedade de nós Senhor, tende piedade de nós

Gloria

Original (latim) Tradução Gloria in excelsis Deo et in terra pax hominibus

bonæ voluntatis Laudamus te, benedicimus te Adoramus te, glorificamus te Gratias agimus tibi, propter magnam gloriam tuam Domine, Deus, Rex cælestis, Deus Pater omnipotens Domine Fili unigenite, Jesu Christe Domine, Deus, Agnus Dei, Filius Patris Qui tollis peccata mundi, Miserere nobis Qui tollis peccata mundi, Suscipe deprecationem nostramQui sedes ad dexteram Patris, Miserere nobis Quoniam Tu solus Sanctus Tu solus Dominus Tu solus Altissimus Jesu Christe, Cum Sancto Spiritu In gloria Dei Patris Amen

Glória a Deus nas alturas E paz na terra aos homens

De boa vontade. Nós Vos louvamos, nós Vos bendizemos Nós Vos adoramos, nós Vos glorificamos Nós Vos damos graças Por Vossa imensa glória Senhor, Deus, Rei dos céus, Deus-Pai Todo Poderoso Senhor Filho de Deus unigênito Jesus Cristo Senhor, Deus, Cordeiro de Deus Filho do Homem Que tira o pecado do mundo, Tende piedade de nós Vós que tirais o pecado do mundo, Acolhei a nossa suplica Vós que estais à direita do Pai, Tende piedade de nós Porque só Vós sois o santo Só Vós sois o Senhor Só Vós o Altíssimo Jesus Cristo, Com o Espírito Santo Na glória de Deus-Pai Amém

Page 13: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

11

Credo

Original (latim) Tradução

Credo in unum Deum Patrem omnipotentem, Factorem cæli et terræ, visibilium omnium et invisibilium Et in unum Dominum, Iesum Christum, Filium Dei unigenitum Et ex Patre natum, ante omnia sæcula Deum de Deo, lumen de lumine, Deum verum de Deo vero Genitum, non Factum, consubstatialem Patri: Per quem omnia facta sunt Qui propter nos homines, Et propter nostram salutem, Descendit de cælis Et incarnatus est de Spiritu Sancto, Ex Maria Virgine: et homo factus est Crucifixus etiam pro nobis: Sub Pontio Pilato, Passus et sepultus est Et resurrexit tertia die, Secundum Scripturas Et ascendit in cælum: Sedet ad dexteram Patris Et iterum venturus est cum gloria, Iudicare vivos et mortuos: Cuius non erit finis Et in Spiritum Sanctum, Dominum et vivificantem: Qui ex Patre Filioque procedit Qui cum Patre et Filio, Simul adoratur, et conglorificatur: Qui locutus est per Prophetas Et unam, sanctam, catholicam, Et apostolicam Ecclesiam Confiteor unum baptisma, In remissionem peccatorum Et exspecto resurrectionem mortuorumEt vitam venturi sæculi Amen

Creio em um só Deus Pai Todo-Poderoso Criador dos céus e da terra De tudo o que é visível e invisível E no Senhor Jesus Cristo Filho Unigênito de Deus E nascido do Pai antes de todos os séculos Deus de Deus, Luz da Luz Deus verdadeiro do Deus verdadeiro Foi gerado e não criado, consubstancial ao Pai: Por quem tudo foi feito E que, por nós, homens Para nossa salvação Desceu dos céus E encarnou pelo poder do Espírito Santo, Nascendo da Virgem Maria: e fez-se homem. Crucificado também por nós: Sob ordem de Pôncio Pilatos, Padeceu e foi sepultado. E ressuscitou ao terceiro dia Conforme as escrituras. E subiu aos céus Onde está sentado à direita do Pai Voltará novamente com glória, Para julgar os vivos e os mortos, E o seu Reino não terá fim. Creio no Espírito Santo Senhor que dá a vida. Que provém do Pai e do Filho E com o Pai e o Filho É adorado e glorificado: Ele que falou pelos profetas. Creio numa única, santa, católica E apostólica Igreja Confesso único batismo, Para remissão dos pecados E espero pela ressurreição dos mortos E a vida no mundo que há de vir. Amém.

Page 14: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

12

Sanctus

Original (latim) Tradução Sanctus, Sanctus, Sanctus

Dominus, Deus Sabaoth Pleni sunt cæli et terra gloria tuaHosanna, in excelsis

Santo, Santo, Santo

Senhor Deus do Universo O Céu e a Terra proclamam a Vossa glória. Hosana nas alturas

Benedictus

Original (latim) Tradução Benedictus qui venit

In nomine Domini Hosanna in excelsis

Bendito é aquele que vem

Em nome do Senhor Hosana nas alturas

Agnus Dei

Original (latim) Tradução Agnus Dei

Qui tollis peccata mundi miserere nobis Agnus Dei Qui tollis peccata mundi Dona nobis pacem

Cordeiro de Deus

que tirais o pecado do mundoTende piedade de nós Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundoDai-nos a paz

Dependendo da ocasião ou da função que a missa ocupa no calendário

religioso, pode haver diversos tipos de missa, sendo as mais comuns: Missa

Pontifical, celebrada com a participação de membros importantes da igreja; Missa

de Ação de Graças, para celebrar uma graça alcançada; Missa Solene,

geralmente celebrada por mais de um sacerdote e com duração maior do que o

comum (a Missa Solemnis de Beethoven é uma das mais conhecidas deste tipo);

Missa Campal, celebrada em praças ou áreas públicas; Missa de Defuntos ou

Missa de Réquiem, é um dos tipos especiais de missa que mais foi posto em

música, desde o período gregoriano até os dias de hoje.

Cada um desses tipos especiais de missa exige o acréscimo de

Page 15: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

13

determinadas partes, com textos diferentes da missa ordinária. Na Missa pro

Defunctis ou Missa de Réquiem, por exemplo, podem ser acrescentadas partes

como Requiem, Dies Irae, Lacrimosa e Lux Aeterna. O Réquiem de Mozart é

formado pelas seguintes partes: Introitus – Réquiem – Kyrie – Sequentia – Dies

Irae – Tuba Mirum – Rex Tremendae – Recordare – Confutatis – Lacrimosa –

Offertorium – Domine Jesu Christe – Hóstia – Sanctus – Benedictus – Agnus Dei –

Communio – Lux Aeterna.

Hino

Os hinos remontam à época de Santo Ambrósio (340-397), Bispo de Milão

e Doutor da Igreja considerado como um dos primeiros autores de hinos cristãos

propriamente ditos. Ambrósio embasou sua prática em hinos orientais,

principalmente os Madrashe de Santo Efrén (306-373), o Sírio. Os hinos se

diferenciam de outros cantos cristãos por serem escritos com base em textos

novos, em latim, ou seja, o texto cantado nos hinos é criado pelo próprio autor,

não sendo retirado da Bíblia como acontece em outras formas de canto. Acredita-

se que Santo Ambrósio criou seus hinos para fortalecer a fé cristã em sua

comunidade, tendo, inclusive, influenciado imperadores romanos, como Teodósio

e Graciano. Há uma história que narra como os cristãos resistiram a um cerco

militar que intencionava invadir Milão por estarem reunidos em assembléia e

cantarem hinos ambrosianos.

Seqüência

As seqüências surgiram como acréscimo melismático, ao final da aleluia da

missa. Aos poucos, a seqüência foi-se libertando da aleluia de onde se originava

até tornar-se independente. O auge do período em que se praticou a seqüência foi

entre 850 e 1150. Nesta época, já era uma forma musical de longa duração e

grande extensão melódica, incomum para a época. O texto era latino e consistia

de coplas, isto é, pares de versos cantados com a mesma melodia. O texto

geralmente está associado às estações do ano e a dias festivos ou faz referência

ao santo do dia.

Page 16: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

14

Santo Ambrósio Santo Efrén

A Canção Trovadoresca

O tipo de música profana mais destacado da Europa medieval é a canção

trovadoresca.

Esse tipo de canção surgiu no século XI, na região de Provença, no Sul da

França, certamente por influência do Duque de Aquitânia, Guilherme IX, que é

considerado o primeiro trovador provençal.

Devido à participação de Guilherme IX como um dos líderes da Primeira

Cruzada, a lírica trovadoresca costuma ser vinculada às Cruzadas. Isso é

reforçado pelo fato de haver alguns gêneros de canção trovadoresca em que o

texto trata das viagens, dos amores e das guerras levadas pelos cruzados. Não

há, porém indícios históricos que confirmem a origem do trovadorismo nas

Cruzadas.

Os trovadores eram poetas-músicos andarilhos, que viajavam de cidade em

cidade cantando seus amores, suas aventuras e desventuras e, muitas vezes,

faziam canções satíricas e críticas, em que comentavam a corrupção de

governantes, da alta nobreza e do clero.

Page 17: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

15

Devido à constante movimentação desses músicos, o trovadorismo logo se

espalhou por toda a Europa. Em cada região, foram dados nomes diferentes a

esses poetas músicos: troubadours (trovadores), em Provença; trouvères

(troveiros), na região de Paris; minnesingers (cantores-de-amor) e meistersingers

(mestres-cantores), na Alemanha; trovadores, na Espanha; trobadores, em

Portugal.

GÊNEROS DE CANÇÃO TROVADORESCA

Em cada região, o trovadorismo desdobrou-se em diferentes gêneros.

Atualmente, esses gêneros são, geralmente, classificados conforme o conteúdo

poético do texto.

Os gêneros de canção trovadoresca mais conhecidos são estes:

• Cantiga de Amor (canso) – que trata do amor de um cavalheiro por uma

dama;

• Cantiga de Amigo – que aborda o amor de uma dama por um cavalheiro;

• Cantiga Pastoril (pastorela) – cujo assunto é o encontro amoroso entre um

cavalheiro e uma pastora;

• Cantiga de Escarninho – em que o trovador ironiza alguém através de

trocadilhos e palavras de duplo sentido;

• Cantiga de Maldizer – na qual o trovador faz troça de forma direta, inclusive

com uso de linguajar grosseiro e palavrões;

• Cantiga de Cruzada – que trata de algo relacionado às Cruzadas;

• Cantiga de Aurora – em que uma cortesã lamenta o nascer do dia porque

seu amado deverá ir embora;

• Dança – poderiam ser danças vocais ou apenas instrumentais. Os dois

tipos mais comuns são o Saltarelo (saltarello, it.: dança saltitante) e a

Estampida (estampie, fr.: dança que faz bastante barulho)

Havia certa hierarquia entre os trovadores, que pode ser sintetizada assim:

• Trovador – geralmente era um membro instruído da nobreza, que sabia ler

e escrever, inclusive música. Era ele quem escrevia os versos, compunha a

Page 18: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

16

música e, muitas vezes, cantava. Entre os nobres trovadores mais destacados

estão: Guilherme IX, duque de Aquitânia; Condessa de Dia; Ricardo Coração

de Leão, rei da Inglaterra; Dom Afonso X, o Sábio, rei de Leão e Castela;

• Menestrel – artista que estava a serviço de um nobre e tinha a função de

cantar a poesia de seu mestre (geralmente era intérprete, não compunha nem

os versos, nem a música);

• Jogral – artistas populares, oriundos de classes humildes, geralmente

acompanhavam as canções, cantando ou tocando instrumentos. Também

participavam das apresentações, fazendo acrobacias, mímica, sátiras,

mágicas, etc.

Afonso X Bernard de Ventadorn

Page 19: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

17

A Polifonia Medieval

Organum

Na mesma época em que o trovadorismo se espalhava pela Europa,

desenvolvia-se, no interior da Igreja, uma nova forma de música sacra: a

polifonia, que surgiu pelo acréscimo de uma melodia que se sobrepunha em

contraponto ao canto gregoriano.

Esse tipo de música tornou-se conhecido como organum (‘instrumento’, em

latim). A melodia gregoriana que servia de base ao organum passou a ser

chamada de cantus firmus (‘canto de base’, em latim); a voz que cantava o cantus

firmus chamava-se voz principal (vox principalis) e a voz que cantava o

contraponto, voz organal (vos organalis).

Inicialmente, a voz organal movimentava-se paralelamente ao cantus

firmus, isto é, realizava a mesma melodia do canto gregoriano, porém à distância

de intervalos de 8ªJ, 5ªJ ou 4ªJ. Este tipo chama-se Organum Paralelo, sendo que

os exemplos mais antigos datam do século IX.

Por volta do século XI, a voz organal tornou-se melodicamente

independente do cantus firmus, isto é, realizava melodias diferentes do canto

gregoriano que servia de base ao organum. Este tipo, que se chamava organum

livre, ainda era ritmicamente dependente do canto gregoriano, isto é, o ataque das

notas da voz organal coincidiam com as notas do cantus firmus.

Foi somente no início do século XII que a voz organal tornou-se

ritmicamente independente. As notas do canto gregoriano original eram alargadas

e, sobre essas notas muito longas, eram realizados melismas (várias notas por

sílaba), no contraponto da voz organal. Com isso, a melodia do contraponto

tornava-se um totalmente diferente da melodia gregoriana que lhe deu origem,

tanto melódica, quanto ritmicamente.

Posteriormente, ainda no século XII, os músicos que atuavam na Catedral

de Notre Dame de Paris começaram a organizar o ritmo do contraponto com base

na métrica da poesia greco-latina. Esses músicos passaram a aplicar seis padrões

rítmicos (chamados modos rítmicos) para organizar a voz que realizava melismas

Page 20: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

18

sobre o canto gregoriano tradicional. A voz que carregava o cantus firmus passou

a ser chamada de tenor (‘que sustenta’, em latim) e a voz de contraponto

chamava-se duplum (‘duplo’, em latim).

Os primeiros músicos da polifonia sacra européia cujo nome conhecemos

atualmente pertencem à Escola de Notre Dame. Chamam-se Leoninus (atividade:

ca. 1160-1180) e Perotinus Magnus (ca. 1183-1238).4

Ars Antiqua

O MOTETO MEDIEVAL

Após o Organum, o gênero polifônico mais importante, entre os séculos XIII

e XVI, foi o Moteto.

Este gênero surgiu a partir do Organum de Notre Dame. Os músicos

aproveitavam trechos de uma música a duas vozes e adicionavam uma terceira

melodia em contraponto às duas anteriores. Posteriormente, acrescentavam

palavras a esse contraponto, de forma que cada uma das vozes fosse cantada em

forma silábica (uma nota por sílaba).

O vocábulo ‘mot’, em francês, significa ‘palavra’. Originalmente, motete

tinha o significado de palavras adicionadas a um canto melismático preexistente.

Entre os teóricos e compositores mais influentes da Ars Antiqua, estão

Johannes de Garlandia (ca. 1190-1272), Adam de la Halle (ca. 1237-1287), Petrus

de Cruce (ca. 1290-1347) e Franco de Colônia (ativ. ca. 1280).

4 É interessante destacar que já se conheciam nomes de músicos desde a Antigüidade. Há referência a um músico egípcio chamado Khufu-Anch, cantor e flautista de cerca de 3.000 a.C. Entre os gregos, conhecem-se vários músicos, como o lendário Mársias, que teria enfrentado os deuses Apolo e Minerva com sua flauta, Arquíloco de Paros (ca. 680 a.C.) e a poetisa Safo de Lesbos (ca. 600 a.C), a mais antiga musicista conhecida por seu nome. Já na Idade Média, os primeiros trovadores, como Guilherme IX (1071-1126), são anteriores aos músicos de Notre Dame, sendo que outros trovadores são da mesma época: Bernart de Ventadorn (1125-1195), Raimbaut de Vaqueiras (1155-1207), Giraut de Borneill (1165-1200), Walther von der Vogelweide (1170-1230), etc. Na própria Igreja Católica, Guido d’Arezzo (992-1050) e a abadessa Hildegard von Bingen (1098-1179) são anteriores aos polifonistas de Notre Dame.

Page 21: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

19

Durante o século XIII, no período conhecido como Ars Antiqua, o moteto

passou às ruas, tornando-se música profana, cantada por saltimbancos,

menestréis e jograis. Por possuir várias vozes simultâneas, com letras diferentes

em diversas línguas (latim, francês e italiano), logo o moteto tornou-se um tipo de

música propícia à sátira e à crítica social. Essa característica levou a polifonia para

o terreno da música profana, sendo usada para acompanhar canções, narrativas,

dramas e romances.

Uma das obras mais conhecidas, nesse sentido, é o Romance de Fauvel,

escrito por Gervais de Bus, entre 1310 e 1316. Esta obra dramático-narrativa de

crítica ao clero e à nobreza francesa é acompanhada por vários gêneros musicais,

incluindo 34 motetos do século XIII e do início do século XIV, escritos em latim e

francês.

O personagem principal é um asno chamado Fauvel (fraude), que

representa o rei da França, Felipe IV. O próprio nome do personagem é pleno de

duplos sentidos: F de Flaterie (adulação), A de Avarice (avareza), U de Vilanie

(vilania), V de Variété (inconstância), E de Envie (inveja) e L de Lascheté

(covardia). O romance representa essas qualidades nas relações do Estado com a

Igreja, dos nobres com seus súditos, dos homens com suas mulheres, etc. No

epílogo, é narrado como a união de Fauvel com as súditas do reino deu origem a

pequenos asnos que dominam o mundo.

Ars Nova

No início do século XIV, surge um movimento conhecido como Ars Nova,

em que são incorporados vários elementos importantes ao desenvolvimento

posterior da música ocidental. O termo Ars Nova surgiu a partir do tratado escrito

por Philippe de Vitry (1291-1361), em 1322, intitulado Ars Nova Musicae (A Nova

Arte da Música).

A expressão Ars Antiqua surgiu em um texto de Jacques de Liège em

oposição ao estilo da Ars Nova. Neste texto, intitulado Speculum Musicae (1323-

1325), Liège defende o estilo do século XIII com base nas teorias de Franco de

Colônia.

Page 22: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

20

O sistema mensural desenvolvido por Vitry tem sua origem no século XIII. É

uma ampliação do sistema proposto por Franco de Colônia, em seu tratado Ars

Cantus Mensurabilis (A Arte do Canto Mensural, 1280), que propunha a divisão

proporcional dos valores rítmicos em grupos de três (divisão ternária) para

substituir a rítmica modal da Escola de Notre Dame. Este sistema mensural dos

séculos XIII e XIV é o precursor do sistema de divisão rítmica atual.

As principais contribuições do tratado de Vitry são estas:

• Acréscimo de uma figura rítmica, a semínima, ao sistema anterior, que era

composto por longa, breve, semibreve e mínima;

• Introdução da divisão binária na divisão de figuras de menor duração;

• Utilização de um sistema de sinais colocados junto à clave para indicar se a

divisão era binária ou ternária (precursor das atuais fórmulas de compasso);

Com o sistema mensural, as possibilidades de combinações rítmicas

ampliaram-se consideravelmente, levando à necessidade de princípios definidos

para a organização da estrutura rítmica. O fundamento para a estruturação rítmica

passa a ser a isorritmia, ou seja, a composição de uma série rítmica com a

extensão de, aproximadamente, uma frase musical que será repetida na voz de

tenor durante toda a música. Este padrão rítmico recebe o nome de talea (do

francês taille: corte, esquema métrico de um poema). Em geral, somente a voz de

tenor é isorrítmica, mas podem ser aplicadas taleae5 às outras vozes.

Com base no conceito de utilização da talea como uma série rítmica, alguns

músicos passaram a utilizar, em seus motetos, uma série de alturas, isto é, um

padrão melódico repetido na voz de tenor, denominado color (do latim: cor,

ornamento).

Além da voz de tenor, torna-se importante a elaboração de uma parte que

se contrapõe ao tenor e está escrita abaixo deste, chamada de contratenor. O

5 Plural de talea.

Page 23: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

21

tenor e o contratenor apresentam a mesma tessitura e cruzam constantemente.

Assim, não é mais somente uma voz (o tenor) que serve de base para a

composição, mas o contraponto entre as duas vozes (tenor e contratenor) será o

fundamento sobre o qual o compositor irá elaborar as outras partes. As partes de

tenor e contratenor são, geralmente, instrumentais. O tenor continua sendo

elaborado a partir do canto gregoriano (cantus firmus). Um excelente exemplo de

peça construída sobre esta base é a Missa de Notre Dame de Guillaume de

Machaut.

O moteto isorrítmico é aquele construído com base nos processos descritos

acima. Suas principais características são:

• Politextualidade – o significado da poesia torna-se, muitas vezes,

ininteligível pela utilização simultânea de diferentes textos em diversas línguas

e pela ruptura com relação à métrica da poesia (muitas vezes, as frases

musicais quebram as palavras, deixando sílabas da mesma palavra em frases

diferentes);

• Cruzamento constante entre as vozes;

• Utilização freqüente de sensíveis duplas, gerando as cadências de Landini;

• Utilização mais ampla de consonâncias imperfeitas;

• Tenor é geralmente mais lento do que as outras vozes;

• Utilização de talea e color na voz de tenor – muitos motetos possuem uma

segunda parte em que os valores rítmicos da talea são diminuídos, tornando o

tenor mais movido no final da música. Podem ser utilizadas taleae nas outras

vozes (duplum ou triplum);

• Utilização de seções em hoquetus (do latim, soluço) – o hoquetus já existe

desde a época da Escola de Notre Dame, consistindo em trechos nos quais as

vozes superiores apresentam contraponto truncado, com ritmo complementar

rápido entre as partes (com alternância de pausas de maneira que sempre que

uma voz tem pausa, a outra canta). Com o tempo, o hoquetus deixou de ser

um trecho de uma peça polifônica para converter-se em um gênero

instrumental independente.

Page 24: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

22

Na segunda metade do século XIV, há um movimento do moteto de volta à

Igreja. Guillaume de Machaut (1300-1377), um dos mais importantes compositores

de todos os tempos, escreveu, em 1363, a sua Messe de Notre Dame (Missa de

Nossa Senhora).

Esta obra é um marco por várias razões: é a primeira missa completa a

quatro vozes e integralmente escrita por um único músico; nela, os intervalos

imperfeitos (terças e sextas) são utilizados abundantemente e as técnicas

polifônicas do moteto são empregadas para escrever música litúrgica.6

Acima, está Guillaume de Machaut em uma miniatura francesa do século

XIV. Uma cena alegórica na qual a Natureza oferece a Guillaume de Machaut três

de seus melhores filhos: a Razão, a Retórica e a Música.

6 Qual é a diferença entre música sacra e música litúrgica? Música sacra é aquela de caráter religioso, muitas vezes escrita com base em texto bíblico ou derivado da Bíblia; música litúrgica é aquela utilizada na liturgia, isto é, nos rituais e cultos oficiais da Igreja.

Page 25: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

23

O Renascimento

A Cultura Renascentista

O Renascimento (ou Renascença) caracteriza-se pela retomada dos

modelos da Antigüidade greco-romana, em vários aspectos do pensamento e da

cultura européia, nos séculos XV e XVI. Tem sua origem nas cidades

mercantilistas italianas, em que o antigo regime feudal foi-se gradativamente

transformando em um sistema de livre comércio.

O enriquecimento de cidades italianas, como Florença, Nápoles e Veneza,

levou à descentralização do poder. Isso permitiu que nobres e ricos comerciantes

patrocinassem encontros de intelectuais, cientistas e artistas com o intuito de

debater diversos assuntos, geralmente a partir da leitura de textos antigos.

Considera-se que a passagem definitiva da idade Média ao Renascimento

deu-se com a queda de Constantinopla, em 1453. Nas artes plásticas, porém,

considera-se que o Renascimento teve sua origem em Florença, por volta de

1420. Entretanto, artistas como Giotto e poetas do século XIV, como Dante

Alighieri, Boccaccio e Petrarca, já estão plenos do que será chamado

posteriormente de ‘espírito renascentista’.

Esse ‘espírito renascentista’ caracteriza-se por valores humanistas que

colocam a Humanidade e a Natureza no centro dos interesses. Com isso, tem-se

o ideal de Homem Universal, aquele que atua em vários campos do

conhecimento, como ciências naturais, artes, estratégia, medicina, etc. Leonardo

da Vinci foi o modelo, nesse sentido.

Esta é, também, a época das grandes navegações, em que exploradores

europeus partiam para terras desconhecidas, em busca de riquezas e aventuras.

O principal interesse era estreitar o caminho até a Índia, onde havia grandes

possibilidades de comércio com o Oriente. Foi na busca de uma rota ocidental

(pelo oeste) que chegasse mais rapidamente à Índia que os primeiros

navegadores italianos, portugueses e espanhóis chegaram à América.

Page 26: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

24

Acreditando terem chegado nas Índias Ocidentais, chamaram os povos que aqui

viviam de “índios”.

A descoberta do Brasil pelos portugueses faz parte desse grande

movimento renascentista de renovação de todas as áreas do conhecimento,

inclusive das técnicas de navegação. É esse espírito livre, de caráter humanista,

com base na razão, no estudo dos autores antigos e na observação da natureza

que dá início àquilo que chamamos atualmente de Modernidade.7

Música Sacra

A partir da influência da Missa de Notre Dame, de Machaut, as técnica

polifônicas do moteto são incorporadas à música sacra. A diferença, porém, na

música renascentista está em que o cantus firmus não permanece mais em uma

única voz, mas é apresentado em todas as vozes do contraponto, através da

técnica de imitação. Esta técnica, que se tornou uma das mais importantes da

música polifônica, consiste em apresentar um tema em uma das vozes, sendo que

este tema é, posteriormente, apresentado por outras vozes, que imitam o mesmo

tema que já foi cantado por outra voz.

No Renascimento, o moteto mantém-se como a forma e gênero musical

mais elaborado, vindo a influenciar todos os gêneros de música vocal e

instrumental. A partir da Inglaterra, a nova estrutura do moteto renascentista

chega à França, aos Países Baixos, à Itália, à Alemanha, a Espanha e Portugal,

ultrapassando as fronteiras européias e chegando a outros continentes através

das grandes navegações.

As principais características do moteto renascentista são estas:

• estilo vocal puro – na música sacra renascentista desenvolve-se o canto

7 A diferença entre Modernismo e Modernidade está em que esta se estende por todas as áreas do conhecimento, desde a Renascença até os dias atuais, ao passo que aquele é um movimento de renovação radical das artes (teatro, música, pintura, escultura, dança, etc.) que teve lugar entre o final do século XIX, com o Impressionismo, e a década de 1960, com as vanguardas tardias.

Page 27: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

25

polifônico a cappella, sem partes puramente instrumentais (os instrumentos,

geralmente de sopro, podem ser utilizados para dobrar ou completar partes

vocais);

• volta do moteto à liturgia – o moteto sacro torna-se, na Renascença, o

gênero musical mais importante que influencia toda a música, desde canções

profanas até danças instrumentais;

• uso de imitações – o cantus firmus não permanece fixo em uma única voz,

mas percorre todas as vozes que compõem a textura musical, através da

utilização de técnicas imitativas;

• canti firmi8 de várias origens – as melodias que servem de base para a

composição de motetos não são mais retiradas somente da tradição

gregoriana, porém há diversas obras em que o cantus firmus é obtido a partir

de melodias profanas conhecidas, inclusive para a composição de missas9, ou

é criado pelo próprio compositor;

• politematismo – cada seção do moteto renascentista apresenta um novo

tema (sujeito, ou ponto de imitação, retirado de um fragmento da melodia que

serve como cantus firmus) que é imitado por todas as vozes. Quando o

processo de imitação é completado, inicia-se a nova seção com um novo

fragmento melódico a ser imitado;

• texto único – volta à utilização de um só texto, em latim, em todas as vozes;

• separação das vozes em planos distintos – os cruzamentos entre as vozes

ficam cada vez mais raros na música renascentista e as vozes tornam-se cada

vez mais independentes entre si. Na segunda metade do século XVI, as vozes

já estão bem definidas com seu registro claramente distinto;

• emancipação dos intervalos imperfeitos – as consonâncias imperfeitas

passam a ser a base intervalar para a estrutura harmônica da música

renascentista, o que gera, no século XVI, o conceito de tríade como sendo a

combinação vertical mais natural entre as partes. Este princípio leva, na 8 Plural de cantus firmus. 9 As missas construídas a partir de canti firmi profanos tornaram-se conhecidas pelo nome das canções que lhes deram origem. Uma das melodias mais utilizadas pelos compositores renascentistas foi a canção L’Homme armé. São amplamente conhecidas as missas denominadas L’Homme armé de Dufauy, Ockeghem, Obrecht, Josquin, Morales e Palestrina.

Page 28: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

26

segunda metade do século XVI, à utilização abundante de acordes perfeitos,

formados especialmente sobre o II grau, o III grau e o VI grau das escalas

modais (a esta estrutura harmônica costuma-se chamar de caráter modal

eclesiástico);

• tratamento rigoroso das dissonâncias – se, por um lado, as consonâncias

imperfeitas tornaram-se a base para a música renascentista, por outro lado, as

dissonâncias passam a ser evitadas. Foram desenvolvidas regras e técnicas

de contraponto extremamente sofisticadas para que as dissonâncias fossem

utilizadas da forma mais suavizada possível (toda a dissonância deveria ser

preparada e resolvida como consonância – nota de passagem, bordadura ou

suspensão);

• sistematização da escrita a quatro vozes10 – devido ao uso da imitação, que

faz com que o cantus firmus percorra todas partes, não há mais distinção

hierárquica quanto à importância das diversas vozes, pois todas passam a ter

o mesmo valor na estrutura polifônica imitativa;

• forma bipartida – muitos motetos da Renascença apresentam a estrutura

dividida em duas partes, chamadas na época de prima pars e secunda pars. a

primeira parte é geralmente polifônica em métrica binária, sendo, a segunda

parte, homofônica em métrica ternária (influência das danças na música vocal

sacra);

• rítmica fluida e contínua – o ritmo torna-se mais fluido em comparação com

a música da Ars Nova, voltando às características de maleabilidade rítmica do

canto gregoriano.

10 As vozes passam a ser divididas em soprano (do latim sopranus, superior), alto (de contratenor alto, ou seja, voz que se contrapõe ao tenor acima deste), tenor e baixo (de contratenor baixo, isto é, voz que se contrapõe ao tenor abaixo deste).

Page 29: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

27

Giovanni Pierluigi da Palestrina

Música Profana

Os dois gêneros mais importantes da música vocal profana renascentista

são a chanson e o madrigal.

A chanson (canção, em francês) é um gênero vocal de origem francesa,

que se tornou muito popular entre os compositores franco-flamengos nos séculos

XV e XVI. A principal característica da chanson é a descrição realista do texto

através da representação musical de ruídos humanos e da natureza, tais como:

cantos de pássaros, cenas de caçada, sons de batalhas, etc.

Do ponto de vista estrutural, a chanson apresenta escrita contrapontística

geralmente a quatro vozes, em que a melodia principal é apresentada pela voz de

tenor. Há alternância de seções polifônicas e homofônicas, em que as primeiras

são mais vivas e as segundas são declamatórias.

Os princípios de organização e estruturação existentes no moteto

aparecem, de forma modificada, na chanson, adaptados às características

estilísticas e às necessidades descritivas do gênero profano.

Page 30: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

28

O madrigal é considerado o gênero profano mais importante da

Renascença, a partir do qual se deu a transição ao estilo Barroco. Nas cortes

italianas do século XVI reuniam-se intelectuais altamente especializados que

procuravam criar uma linguagem artística rica em sentimentos e imagens poéticas,

tendo como referência a poesia de Petrarca e Boccaccio. Na busca de uma arte

refinada e subjetiva, que retomasse os ideais da dramaturgia greco-romana,

chegaram a um estilo musical fortemente expressivo, com utilização abundante de

cromatismos e dissonâncias sem preparação ou resolução, abandonando os

princípios de contraponto dominantes na época. Este estilo tornou-se conhecido

como música reservata (música reservada), pois seus realizadores reuniam-se em

pequenos grupos nas grandes salas11 das residências de ricos comerciantes que

patrocinavam suas pesquisas. O madrigal foi o gênero musical mais cultivado

pelos intelectuais humanistas do Renascimento. Suas realizações são ainda hoje

chamadas de madrigalismo.

As principais características do madrigalismo são:

• expressão de caráter lírico

• descrições subjetivas do texto, com a representação musical de passagens

específicas e de palavras isoladas, como, por exemplo: movimento escalar

ascendente rápido utilizado para representar o fogo, escalas descendentes

utilizadas para significar a descida da alma ao inferno, cromatismos e

dissonâncias na expressão ‘lasciatemi morire’ (deixai-me morrer), etc.

• influências do moteto: forma multiseccional, estrutura politemática e

utilização de técnicas imitativas como elemento unificador.

O termo madrigalismo é utilizado até hoje para identificar passagens

musicais em que são expressar elementos extramusicais com forte caráter

11 Da produção oriunda destas reuniões nas câmaras das residências de nobres e burgueses originou-se a expressão ‘música de câmara’ (do italiano, musica da camera).

Page 31: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

29

emotivo ou subjetivo. Na área da Retórica Musical, o nome técnico para a

representação vívida de uma cena ou situação é Hipotipose.

Carlo Gesualdo

Música Instrumental

Na música polifônica dos séculos XIV e XV, os instrumentos eram utilizados

geralmente para reforçar ou para substituir as partes vocais. Na segunda metade

do século XV e, principalmente, durante o século XVI tem início a escrita de

música polifônica estritamente instrumental. Durante a Renascença não se torna

característica a escrita idiomática para instrumentos.

Inicialmente, a música polifônica instrumental era, simplesmente, a

transcrição de peças vocais (motetos, madrigais ou chansons) para instrumento

solista (alaúde ou teclado) ou grupo instrumental. Estas transcrições recebiam

diversas denominações, como canzona da sonar (canção para tocar) ou ricercare

(procurar, pesquisar no instrumento o melhor meio de tocar aquela música vocal).

A partir da prática de transcrever música vocal para instrumentos,

desenvolveu-se um dos principais gêneros polifônicos instrumentais da

Renascença, o ricercare (italiano, procurar). Inicialmente, o ricercare é a

transcrição de motetos para instrumento solista, tornando-se, posteriormente, uma

das formas instrumentais mais elaboradas da Renascença. Sua estrutura é

Page 32: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

30

multiseccional e politemática, com utilização das mesmas técnicas de imitação e

contraponto encontradas no moteto.

Outro gênero que tem a mesma estrutura que o ricercare é a fantasia. Na

verdade, os dois termos foram utilizados indiscriminadamente por diferentes

músicos para significar o mesmo tipo de estrutura instrumental. Geralmente se

considera que a fantasia apresenta mais características idiomáticas do

instrumento para o qual é destinada, sendo, portanto, mais aproximada da técnica

instrumental. No ricercare, as técnicas contrapontísticas geralmente são

realizadas de forma mais abstrata e similar à música vocal.

Os gêneros polifônicos instrumentais da Renascença (ricercare e fantasia)

são importantes principalmente por duas razões:

• Deram o impulso definitivo na direção da escrita idiomática

instrumental que se desenvolveu no período Barroco.

• Deram origem a uma das formas mais importantes da música

ocidental, a Fuga.

Alonso Mudarra

Page 33: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

31

MÚSICAS DA MODERNIDADE

O Período Barroco

O Nascimento da Ópera

A ópera tem sua origem nos círculos humanistas da Renascença,

principalmente na Camerata Florentina. Este era um grupo de artistas que se

reuniam nas cortes dos condes Bardi e Corsi, em Florença, na segunda metade

do século XVI (1550-1592).

Com a intenção de retomar a tragédia clássica grega, os músicos da

Camerata lançaram manifestos em defesa da música moderna, a qual opunham à

tradicional música polifônica. Os mais importantes desses manifestos chamam-se

Diálogo entre a Música antiga e a Música Moderna (1581), de Vicenzo Galilei, e

Novas Músicas (1602), de Giulio Caccini. Segundo seus princípios, a música

deveria ser subordinada à poesia e expressar fortes emoções.

Para expressar de forma cada vez mais intensa as emoções contidas nos

poemas musicados por eles, esses artistas passaram a empregar cada vez mais

elementos teatrais, como o uso de figurinos, a representação cênica do texto e,

inclusive, diálogos falados entre uma parte cantada e outra.

Com isso, nasceu o estilo recitativo, uma espécie de declamação cantada,

onde a poesia determina elementos musicais como o ritmo, a extensão das frases

e os tipos de cadência. Em seguida, passaram a combinar trechos em recitativo

com trechos de canto virtuosístico, chamados de ária.

No momento em que passaram a escrever uma abertura orquestral,

seguida pela seqüência de árias e recitativos, que alternavam com danças e

interlúdios instrumentais, já estavam escrevendo ópera.

As primeiras óperas tinham por base a mitologia grega:

• Dafne (1597), com libreto do poeta Rinuccini e música de Jacopo

Peri;

Page 34: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

32

• Eurídice (1600), com libreto do poeta Rinuccini e música de Jacopo

Peri;

• Alma e Corpo (1600), de Emilio Cavalieri.

Entretanto, a ópera mais importante desta época é Orfeu (1607), de Cláudio

Monteverdi (1567-1643). Considerada por muitos como sendo a primeira ópera no

sentido pleno da palavra, foi em Orfeu que foram realizados plenamente os

objetivos artísticos da Camerata, através do enriquecimento da estrutura da ópera,

com o acréscimo de árias estróficas, duetos, madrigais, prelúdios e interlúdios

instrumentais, etc.

Além disso, foi Monteverdi quem levou a ópera de Florença para outros

centros culturais, como Veneza e Nápoles. Foi nesta cidade que se desenvolveu

prática do bel canto, isto é, um gênero de ópera com a alternância de três tipos de

canto: o recitativo, a ária e o arioso. Este é um tipo de canto intermediário, mais

cantado do que o recitativo e menos elaborado do que a ária.

O surgimento da ópera como um gênero musical autônomo, em Florença,

coincide cronologicamente com os experimentos policorais de Veneza, que deram

origem ao concerto e à música orquestral tal como a conhecemos hoje.

Cláudio Monteverdi

Page 35: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

33

Música Instrumental

Música Instrumental Pura

É somente no século XVII que se desenvolve a música idiomática para

instrumentos. Anteriormente, os instrumentos eram destinados à dança ou eram

empregados, na música polifônica, para dobrar vozes ou para substituir partes

vocais que estivessem faltando.

Já no início do século XVI, instrumentistas italianos, franceses e espanhóis

faziam transcrições de música vocal polifônica para instrumentos de teclado e de

cordas. Esse tipo de música era chamado de ricercare (italiano, ‘procurar’). Isso

significa que esses músicos procuravam formas de tocar música escrita

originalmente para várias vozes em seus instrumentos.

Com o passar do tempo, os instrumentistas foram se libertando da origem

vocal e passaram e escrever fantasias, isto é, peças que já tinham trechos livres,

de acordo com as possibilidades técnicas e expressivas dos instrumentos. O

ricercare e a fantasia constam entre os primeiros tipos de música polifônica

instrumental.

Conjuntos Instrumentais

Em Veneza, na segunda metade do século XVI, os músicos que atuavam

na Basílica de São Marcos desenvolveram experimentos sonoros em que

combinavam grupos vocais e instrumentais, em diferentes pontos da igreja. Assim,

a música vinha de todos os lados, sendo esta prática chamada de estilo policoral,

pois havia vários coros vocais e instrumentais que eram combinados, gerando um

contraponto de texturas sonoras.

Dessas experiências, surgiram alguns dos gêneros instrumentais modernos

mais importantes, tais como a sonata, o concerto e a música orquestral.

Entre os músicos mais importantes de Veneza, nessa época, estão Andrea

Gabrieli (1520-1586) e seu sobrinho Giovanni Gabrieli (1557-1612).

Page 36: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

34

Gêneros da Música Barroca

O Concerto

No período barroco, há três tipos de concerto:

• Concerto Grosso – em que um pequeno grupo de solistas (concertino)

contrasta com a orquestra (ripieno)

• Concerto Solo – em que somente um solista se opõe à orquestra

Importantes compositores de concerto são: Giuseppe Torelli, Arcangelo Corelli,

Antonio Vivaldi, Georg Philipp Telemann, Johann Sebastian Bach e Geog

Friedrich Haendel, entre outros.

A Suíte

A suíte (fr., ‘seqüência’) é um gênero musical que também surgiu no final do

Renascimento, através da combinação de duas danças contrastantes, formando

uma unidade.

No Renascimento, os pares de danças mais comuns eram Pavana e Galharda. A

primeira é uma dança baixa (lenta), em compasso binário; a segunda é uma dança

alta (rápida), normalmente em compasso ternário. As duas danças que formavam

um par eram geralmente compostas no mesmo tom.

No período Barroco, a prática de combinar diferentes danças tornou-se tão

comum que foram acrescentadas outras danças ao conjunto, que passou a se

chamar suíte. A seqüência de danças mais comum era formada por:

• Alemanha – dança de origem alemã, em andamento moderado e compasso

quaternário, sendo que, geralmente, inicia com anacruse;

• Corrente – dança de origem italiana, com andamento rápido, em compasso

ternário;

• Sarabanda – dança de origem espanhola, em andamento muito lento e

compasso ternário, com acentuação no segundo tempo;

• Giga – dança de origem britânica, em compasso composto (binário ou

Page 37: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

35

quaternário), em andamento muito rápido.

Era comum serem acrescentados outros tipos de dança entre a sarabanda e a

giga. As mais comuns são: minueto, gavota, siciliana e bourrée.

Entre os compositores mais importantes de suítes, estão: Henry Purcell, François

Couperin, Jean-Philippe Rameau, Girolamo Frescobaldi, Geog Philipp Telemann,

Johann Sebastian Bach e Geog Friedrich Haendel.

Termos mais ou menos equivalentes à suíte, nos séculos XVII e XVIII são: ordre,

partita e sonata.

A Fuga

A fuga é considerada como sendo a forma polifônica mais elaborada. Tem

sua origem a partir do moteto e sua transcrição instrumental através do ricercare e

da fantasia.

A fuga consiste na apresentação de um tema em todas as vozes. A primeira

parte da fuga, onde o tema é apresentado, chama-se Exposição. Essa parte

consiste na apresentação do tema na tônica (sujeito) e na dominante (resposta).

As vozes que não estão apresnetando o tema podem fazer contraponto livre ou

um contra-tema.

A fuga é formada pelas seguintes partes:

Exposição: parte em que se apresenta o tema em todas as vozes;

Episódio – parte em que o compositor desenvolve suas idéias

contrapontísticas (o tema não aparece completo);

Reexposição – parte em que o tema é reapresentado em pelo menos uma

das vozes;

Coda – (it.: ‘cauda’) parte que tem a função de finalizar a música.

Page 38: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

36

• A palavra suíte vem de uma expressão francesa, suite de danses, que

significa ‘seqüência de danças’.

• O termo sonata vem do italiano musica suonata, que significa ‘música para

ser tocada’, expressão que surgiu em oposição a musica cantata, ‘música

para ser cantada’.

• O vocábulo concerto tem dupla origem, latina e italiana. Em latim, vem do

termo consere, que significa ‘união’; em italiano tem sua origem no verbo

concertare, que significa ‘rivalizar’.

• A palavra fuga tem sua origem no fato de que uma voz apresenta um tema

que será perseguido pelas outras vozes, através da técnica da imitação.

Johann Sebastian Bach Antonio Lucio Vivaldi

Page 39: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

37

Teoria dos Afetos

Os círculos humanistas da Renascença, tomando por base as categorias

aristotélicas de ‘pensar’, ‘fazer’ e ‘criar’, dividiam a música em teórica (theoretica,

categoria do pensar), prática (practica, categoria do fazer) e poética (poetica,

categoria do criar). A terceira categoria (poética) apóia-se na retórica,

concebendo, pela primeira vez, a música como uma linguagem sonora, isto é,

considerando que a música poderia substituir a linguagem verbal na significação

de objetos, conceitos e situações. Essa concepção da música como linguagem

gerou a Teoria dos Afetos do período Barroco e desenvolveu as noções de

fraseologia e representação musical. Esta foi realizada, nos séculos XVII e XVIII,

por meio de figuras de representação, que foram organizadas em cerca de 150

tipos diferentes, com nomes gregos e latinos, e foram agrupadas segundo seu

caráter e meio de representação de textos.

A Teoria dos Afetos (Affektenlehre), desenvolvida durante o período

Barroco, tem como princípio fundamental o conceito de que cada peça musical, ou

movimento de uma obra mais ampla, deve representar somente um estado de

alma, afeto ou emoção. Esta é uma diferença considerável com relação às teorias

de representação musical dos madrigalistas, pois, para estes a ‘imitação’ de

emoções ou situações era considerada em um sentido local, ou seja, através da

representação de cada palavra ou verso da poesia. Por seu turno, a Teoria dos

Afetos preconiza que a música deve expressar o pathos12 geral da poesia e não

descrever cada um de seus momentos específicos.

12 Pathos (do grego, sofrimento, paixão) é, para os antigos gregos, a utilização de figuras de retórica com a finalidade de provocar emoções intensas. Atualmente, a expressão designa os movimentos passionais (suavização ou intensificação da expressão das emoções) de uma obra de arte. Daí vem a expressão ‘patético’ com o sentido de algo que revela forte emoção, que comove por ser trágico, sinistro ou, mesmo, cruel.

Page 40: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

38

Os principais autores que se dedicaram à representação musical de afetos

foram: Réné Descartes, Athanasius Kircher e Johann Matheson. Descartes

menciona, em sua obra Traité des passions de l’âme (‘Tratado das paixões da

alma’, Paris, 1649), seis tipos principais de afetos: admiração, amor, ódio, desejo,

alegria e tristeza. Destes tipos surgem infinitas combinações e matizes que podem

ser representados musicalmente. Em um sentido amplo, a Teoria dos Afetos trata

da expressão musical das paixões e estados de excitação da alma por meio da

utilização de:

1. escalas – diferentes modos ou tonalidades representariam diferentes estados

de alma, vêm daí os conceitos de que a escala maior representa a alegria e a

escala menor expressa a melancolia.

2. registro – os diferentes registros (grave, médio ou agudo) podem representar

afetos como: alegria no registro agudo, tristeza no registro grave, ou ansiedade

provocada pela mudança repentina e constante de registros.

3. instrumentação – com base nas divisões renascentistas das famílias

instrumentais13, realizaram-se amplas descrições de instrumentos para

expressar musicalmente diferentes estados de alma ou tipos diferentes de

caráter musical, tais como: órgão expressa o caráter religioso, flautas

representam o caráter pastoril, instrumentos de metal são utilizados para

representar o caráter heróico.

4. harmonia – predominância de consonâncias ou dissonâncias podem expressar

diferentes afetos, como alegria ou tristeza, respectivamente.

5. contraponto – maior ou menor intensificação do contraponto poderia expressar

diferentes estados de alma.

6. textura – texturas homofônicas expressariam afetos diferentes das texturas

polifônicas.

7. articulação – a maneira de tocar também expressa afetos, como por exemplo:

13 As famílias de instrumentos eram divididas em: família das violas (instrumentos de arco), família das flautas (sopros de madeira, em especial a família das flautas doces) e família dos trombones (instrumentos de sopro de metal); havia, ainda, o broken consort (conjunto misto formado por instrumentos de diversas famílias).

Page 41: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

39

a expressão de tristeza por fraseado em legato ou de alegria pela utilização de

staccato.

Assim, a combinação de diversos recursos musicais permitiria a

representação adequada dos quatro humores14 que dariam origem aos mais

diferentes afetos, ou estados anímicos. A expressão de ‘alegria’ ou de ‘melancolia'

poderia ser musicalmente representada da seguinte forma:

a) expressão de alegria: por meio da utilização de escala em modo maior,

predominância de consonâncias, preferência pelo registro agudo, com textura

homofônica e articulação em staccato em andamento rápido.

b) expressão de melancolia: através de escala em modo menor, com

predominância de dissonâncias e suspensões, preferência pelo registro grave,

com melodia acompanhada e articulação em legato em tempo lento.

Abaixo, está reproduzido um quadro com a representação das virtudes

através do uso de modos escalares e instrumentos musicais, conforme

apresentado por Harsdörffer e Staden em sua obra Gesprächspiele V (1645):

Parte Modo Virtude Instrumentos

1

2 3

Dórico (em Ré) Frígio (em Mi) Eólio (em Lá)

Esperança

cornetas, órgão violas, B..C. violinos, teorba

14 Os quatro humores são disposições afetivas básicas que passam por vários estágios, desde uma sensação agradável (pólo de prazer) até sensações desagradáveis (pólo de dor). Para as teorias humorais mais antigas, desde a Idade Média (fundadas por Galeno), há correlação entre as disposições anímicas e os humores mórbidos, geradores de doenças. Os quatro humores mórbidos (chamados também de maléficos) são o sangue, a bile amarela, a bile negra e o linfa. Estes humores ‘físicos’ correspondem aos humores de estados anímicos, os quais são: cólera, melancolia, alegria e apatia. Diversas teorias de expressão da música recorreram à teoria humoral como ponto de partida para a representação de estados de alma. Desta forma, os quatro humores básicos, ao serem misturados, gerariam todas as paixões, e suas gradações, experimentadas pelos seres humanos.

Page 42: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

40

4

5

6

7

Lídio (em Fá)

Mixolídio (em Sol)

Jônio (em Dó)

Hipoeólio (em Sib)

Caridade

Justiça

Força

Prudência

Sobriedade

flautas, cordas

clarins, trombone

chirimias, regal

flautas, harpa

George Frideric Handel Jean-Philippe Rameau

Page 43: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

41

O Período Clássico

Aspectos estilísticos

A representação estática de afetos, como acontecia no período Barroco,

não era mais suficiente aa arte que pretendia captar o movimento das emoções,

característica da segunda metade do século XVIII. Esta foi uma época em que o

principal tópico das discussões, no meio artístico, eram as correlações entre razão

e sensibilidade. Assim, na busca de representar a sensibilidade movente, e não

apenas afetos estáticos, a representação dramática do período anterior é

substituída pela ação dramática e por uma narrativa musical, na música do

período clássico: “não basta mais representar emoções distintas, é necessário

navegar de uma a outra”.

Entre os processos de organização da música, um dos elementos mais

destacados na busca da ação dramática é o uso de frases breves, periódicas e

claramente articuladas, com base em princípios de simetria mais dinâmicos e

dramáticos, embasados em ritmos variáveis e irregulares e na natureza periódica

da frase. O caráter emotivo da música vê-se envolto pelo contraste entre tensão

dramática e estabilidade melódica. A correlação entre razão e sensibilidade é

trabalhada, no plano da estrutura musical, através do princípio estético

fundamental desta época: “unidade na variedade; variedade na unidade”. Com

isso, tem-se a exaltação da sensibilidade pela simetria articulada.

Para alcançar a representação musical da sensibilidade em movimento, os

compositores clássicos realizavam grandes transições entre um tema e outro. Em

Beethoven, por exemplo, muitas vezes, a ponte entre os temas principais de uma

sonata ou sinfonia é mais ampla do que próprio tema. Esta é outra diferença entre

o Barroco e o Classicismo: enquanto, naquele, as mudanças são abruptas e por

contraste, neste, as transições tornam-se necessárias para garantir a continuidade

no enlace de temas distintos, com afetos diferenciados. Estes elementos

Page 44: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

42

estilísticos fundem-se na busca do movimento dramático acentuado: a transição

entre elementos musicais representa a transição de emoções, em passagens

curtas, muitas vezes dentro da mesma frase.

Na busca de clareza e equilíbrio que representassem as nuanças da

sensibilidade, surgiu um novo conceito sobre a forma da música. Se o período

anterior era caracterizado pela multiplicidade de formas que representassem

afetos específicos (sonata, fuga, concerto, ária, recitativo, etc.), no Classicismo

essas diversas formas são reduzidas a um único princípio compositivo que domina

todos os gêneros musicais: a sonata.

A Forma-Sonata

Segundo Charles Rosen, a sonata é “um modo de composição, uma

percepção das proporções”. Trata-se de um processo que se funda no princípio da

ação dramática: a veiculação do movimento contínuo das emoções, que surge

através de transformações gradativas das formas tradicionais do Barroco,

reordenando-as e as fundindo em novos princípios que caracterizam os quatro

movimentos da sonata clássica

Primeiro Movimento – Allegro

Composto em forma-sonata, o primeiro movimento é a estrutura mais

dramática, entre os movimentos da sonata, devido à tendência dos compositores

clássicos em concentrar a maior carga emotiva no início.

A forma-sonata é um meio de controle de elementos opostos e

contrastantes: tensão x relaxamento. Isso surge a partir da apresentação de uma

contradição inicial, entre duas regiões temáticas, chamadas de primeiro tema e

segundo tema. O primeiro é o tema da tônica, da estabilidade, do objetivo da

Page 45: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

43

peça. O segundo tema é o tema da dominante, da instabilidade, que dificulta a

realização do objetivo principal. Beethoven chamava estes dois temas de tema e

tema.

Esta oposição se dá pelo contraste existente em vários níveis da composição:

• Melodia – antagonismo entre primeiro grupo tema e segundo tema;

• Harmonia – polaridade entre a tônica e a dominante;

• Rítmica – contraste entre ritmos contínuos e descontínuos;

• Textura – oposição entre texturas homofônicas (melodia acompanhada) e

polifônicas

Segundo Movimento – Lento

Este é o movimento derivado da música vocal, mais especificamente da

ária de ópera. Geralmente, possui caráter lírico, em que a tensão é reduzida ao

mínimo, com uma estrutura geral menos dramática.

Do ponto de vista formal, assemelha-se à Ária da Capo, isto é, é organizado

com base na forma ternária (ABA). Entretanto, pode haver uma pequena seção de

desenvolvimento do material temático, antes da recapitulação.

Há alguns movimentos lentos de compositores clássicos que são re-

elaborações de danças lentas do Barroco. Ex.: Sonata nº 37, de Franz Joseph

Haydn, cujo movimento lento é uma sarabanda.

Terceiro Movimento – Minueto & Trio

Este é o movimento mais leve da sonata, que faz referência a uma das

danças opcionais preferidas do período Barroco, o Minueto. No final da suíte

Page 46: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

44

barroca, era comum acrescentar dois minuetos (chamados Minueto I e Minueto II),

antes da giga. Eles eram contratantes em caráter e material temático, podendo,

inclusive serem apresentados em tons homônimos (Ré Maior e Ré Menor, por

exemplo).

No período Clássico, este contraste manteve-se na combinação Minueto e

Trio, sendo que o trio cumpre o mesmo papel que o segundo minueto do período

anterior.

Último Movimento – Rondó

O Rondó caracteriza-se pela oposição entre um refrão e episódios. A

estrutura geral do rondó é esta: A B A C A. A parte A designa o refrão e as partes

B, C e D são os episódios.

A estrutura geral do Rondó:

• Refrão – trecho musical repetido, sempre no mesmo tom;

• Episódio – trecho contrastante, com relação ao refrão, apresentado em

outras tonalidades e com temas diferentes do tema principal.

No período clássico, desenvolveu-se um tipo especial de rondó, chamado

Rondó-Sonata. Para Rosen, “Tecnicamente, um rondó de sonata é simplesmente

uma forma de primeiro movimento na qual se restabelece completamente o tema,

entre a segunda seção e a seção de desenvolvimento, para voltar a fazê-lo no

final”. Isso significa que o segundo tema (parte B do rondó) é retomado após a

parte C, gerando esta estrutura: A B A C A B A. Nesse esquema, a parte C

corresponde ao desenvolvimento da forma-sonata.

Pode-se interpretar a ordem dos movimentos da sonata clássica como uma

ampliação do conceito de ação dramática existente no primeiro movimento,

Page 47: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

45

aplicado à sonata como um todo: um acréscimo de tensão até aproximadamente o

centro da obra, com o último movimento funcionando como uma resolução geral

das tensões, por meio da forma do rondó, pois a reiteração do refrão, nesta forma,

produz o maior nível de estabilidade, nesta forma, do que naquela dos outros

movimentos.

Nenhuma das estruturas características de cada movimento da sonata é

fixa ou fechada. Os movimentos são intercambiáveis entre si, gerando muitas

vezes, formas híbridas, como o Rondó-Sonata. O aspecto mais importante da

sonata é seu princípio dramático-narrativo, que aparece como um processo

orgânico, e não como estruturas estereotipadas ou preconcebidas. Estas

estruturas desenvolveram-se conforme as necessidades expressivas dos músicos

da segunda metade do século XVIII, e não como regras abstratas às quais esses

músicos deveriam se adaptar.

Joseph Haydn Wolfgang Amadeus Mozart

Page 48: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

46

Gêneros do Período Clássico

O princípio geral da sonata está presente em todos os gêneros cultivados

durante o classicismo, sofrendo alterações necessárias à sua utilização em cada

gênero.

Os gêneros musicais mais importantes desta época são:

• Sonata – é o nome dado a peças em vários movimentos com base no

princípio da sonata. As sonatas podem ser compostas para instrumento

solo (piano), para dois ou três instrumentos, sendo um deles o piano

(violino e piano; flauta e piano; violino, violoncelo e piano; etc.). No

Classicismo, as sonatas tinham, geralmente, três movimentos (sem o

movimento lento ou sem o minueto e trio, conforme as necessidades

expressivas de cada obra). Posteriormente, tornaram-se mais usuais as

sonatas em quatro movimentos.

• Sonatina – é o mesmo que sonata, porém com proporções menores

(sonatina significa ‘pequena sonata’);

• Quarteto de Cordas – as peças para instrumentos melódicos (sem

acompanhamento de piano) eram, geralmente, chamadas de Trio,

Quarteto, Quinteto, etc. O gênero mais importante da época, nesse sentido,

é o Quarteto de Cordas, formado por dois violinos, viola e violoncelo. Este

foi um gênero criado por Haydn, sendo considerado o gênero de câmara

mais elaborado do Classicismo. Normalmente, possui os quatro

movimentos da sonata, descritos anteriormente.

• Sinfonia – surgiu da fusão da Abertura de ópera italiana (chamada de

sinfonia) com os princípios gerais da sonata clássica. Também possui os

quatro movimentos da sonata. Foi no período clássico que a orquestra

tomou a forma que se mantém até os dias de hoje, em que os instrumentos

são agrupados em quatro famílias. Atualmente, a orquestra “clássica” é

composta da seguinte forma: sopros de madeira (madeiras: 2 flautas, 2

Page 49: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

47

oboés, 2 clarinetes e 2 fagotes), sopros de metal (metais: 4 trompas, 3

trompetes, 3 trombones e tuba), percussão (tímpanos) e cordas de arco

(cordas: violinos I, violinos II, violas, violoncelos e contrabaixos).

• Ópera – a ópera foi o único gênero vocal que perdurou com vigor, no

Classicismo. Tendo, originalmente, influenciado a formação do princípio da

sonata, devido ao seu caráter dramático, também a ópera terminou sendo

influenciada por essa estrutura, em vários de seus números. A abertura da

ópera clássica é a parte que mais sofre interferência da sonata, pois passa

a ser tratada como se fosse uma pequena sinfonia.

• Outros gêneros: marcado pelo interesse pelas grandes formas (sonata,

quarteto, sinfonia, ópera), as formas curtas foram relegadas ao segundo

plano, no período clássico. Também foram compostas canções, fantasias,

divertimentos, cânones e outros gêneros, porém sem estarem no mesmo

nível de importância que as grandes estruturas descritas acima.

Os compositores mais destacados do período Clássico são: Johann Stamitz,

Christoph Willibald Gluck, Franz Joseph Haydn, Wolfgang Amadeus Mozart,

Ludwig van Beethoven, Luigi Boccherini, Luigi Cherubini e André Grétry, entre

outros.

Ludwig van Beethoven

Page 50: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

48

Os Romantismos do séc. XIX

Valores gerais do Romantismo

Ao contrário do Classicismo, o Romantismo caracteriza-se pela valorização

da fantasia criadora acima da clareza das idéias, da expressão das paixões acima

da precisão das formas, o que vai se manifestar, em grande parte, em pequenas

peças com base em processos de composição livre e contínua.

O Romantismo caracteriza-se pelo culto ao gênio, pela valorização do

sentimental e intuitivo, da liberdade criadora individual e pela revolta contra as

regras preestabelecidas e contra os ditames da racionalidade. Em grande parte

dos artistas românticos encontramos a vbusca de uma arte espontânea e natural.

Os valores estéticos cultivados pelos artistas românticos são, entre outros:

Fantasia – a fantasia criadora assume maior relevância para a arte do que

as regras e princípios formais preestabelecidos. Diz o compositor Franz Schubert,

considerado o primeiro músico romântico: “Oh, fantasia, tu és a jóia inexaurível do

homem, a fonte inesgotável da qual bebem tanto os artistas quanto os sábios”.

Nostalgia – resulta do desejo humano de conquistar o infinito, nasce do

conflito existente entre as limitações do mundo real e a infinitude do plano ideal.

Desses paradoxos também resultam elementos característicos do século XIX,

como o Pessimismo, uma corrente do pensamento que nasce com o filósofo

Arthur Schopenhauer, o qual dizia: “Viver é sofrer”, e a morbidez que predominou

em grande parte das artes do século XIX.

Subjetividade – como as intuições são características individuais, ao

contrário da objetividade da razão, que é universal, o artista romântico está

sempre em busca do que é único, original e particular – daí surge a preferência

dos músicos românticos por peças curtas e rapsódicas, onde podem expressar-se

livremente, sem preocupações com a estrutura de obras longas

Page 51: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

49

Paixões – a concepção romântica dos afetos dá-se através de uma

imersão no mundo dos sentimentos, como uma descida “ao reino nebuloso das

emoções” e dos impulsos espontâneos. Isso diferencia a arte patética do

Romantismo, da teoria estática dos afetos, do período Barroco, como também da

representação de seus movimentos, predominante no Classicismo. O artista

romântico não se limita a representar externamente os afetos, ele expressa as

paixões assim como elas brotam na alma – daí, o cultivo das chamadas estruturas

psicológicas, nas artes do Romantismo. O que importa é revelar ao espectador as

mais sutis variações das emoções, as tensões violentas existentes entre

sentimentos opostos. Com isso, também “a estética de uma arte é a mesma de

todas as outras, somente o material difere”, como teria dito o compositor Robert

Schumann.

Franz Schubert Robert Schumann

Page 52: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

50

Tendências da Música Romântica

Há várias tendências estéticas, na música do século XIX. Os valores desse

período predominam ainda hoje, em vários níveis do pensamento e da prática

musical da atualidade, seja pelo currículo das escolas de música, pela crítica, pela

administração de teatros, centros culturais e orquestras ou mesmo pela escolha

de repertório por parte dos intérpretes. Em um simples passar de olhos no

currículo das escolas de música ou nos programas de concertos é simples

perceber como a imensa maioria do repertório tocado, atualmente, advém do

século XIX.

Os movimentos mais importantes do século XIX podem ser classificados da

seguinte maneira:

Romantismo Inaugural – é a fase inicial do pensamento romântico, que

tem suas origens em certos autores que produziram no século XVIII, como Jean-

Jacques Rousseau, Johann Wolfgang Von Goethe, Friedrich Schiller, William

Wordsworth, Samuel Taylor Coleridge, Wolfgang Amadeus Mozart e Ludwig van

Beethoven e E. T. A. Hoffmann, entre outros. O primeiro músicos romântico, no

sentido pleno da expressão, foi Franz Schubert, que escreveu improvisos e

fantasias para piano e centenas de canções, muitas das quais formam ciclos que

apresentam uma narrativa mais extensa. Outro compositor importante desse

período é Carl Maria Von Weber, considerado o criador da ópera romântica.

Apogeu do Romantismo – esta é a fase de consolidação dos valores

românticos, com o confronto direto entre os artistas criadores e os “filisteus” (como

eram chamados, por Robert Schumann, os burgueses conservadores que

cultivavam uma música com resquícios de classicismo, que se caracterizava pela

resignação política e pelo conformismo às regras preestabelecidas). Schumann,

com seus heterônimos Florestan e Eusebius, encarna as duas personalidades

paradoxais do artista romântico: o lírico sonhador e o lutador rebelde. Entre os

compositores mais importantes deste período, estão: Robert Schumann, Felix

Mendelssohn-Bartoldy, Frédéric Chopin e Hector Berlioz.

Page 53: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

51

Realismo Romântico – Com base em princípios que valorizam o homem

universal, artistas dedicam-se à música, à poesia, às artes visuais, à filosofia, etc.

Dessa união das artes surgem dois movimentos importantes, na música do século

XIX: a música programática e o drama musical. A música programática descreve

estados psicológicos com base em programas, isto é, textos de fundo literário

tomados pelos músicos como fonte de inspiração para a criação de peças

musicais mais extensas. O autor preferido por esses músicos é Shakespeare.

Hector Berlioz escreveu sua Sinfonia Fantástica, de cunho auto-biográfico, que

narra a história de um músicos que se apaixona por uma atriz e vê seu amor

traído. Franz Liszt cria o poema sinfônico, que é uma espécie de representação

musical de cenas e situações retiradas de lendas, mitos ou de histórias

conhecidas. Sem poema sinfônico Hamlet descreve o perfil psicológico do

personagem de Shakespeare, sua Sinfonia Fausto, com base na obra homônima

de Goethe, foi escrita em três personagens (em vez de três movimentos): Fausto,

Margarida e Mefistófeles. Na busca de tornar as representações de situações

extramusicais mais ‘reais’, os músicos passaram a descrever situações concretas,

como o som da água corrente ou da chuva. O próprio Liszt tem uma peça

intitulada Nuvens Cinzas e Camille Saint-Saëns escreveu uma Dança Macabra,

com base em uma alegoria medieval em que a morte toca e dança em frente a um

cemitério. Liszt também compôs sua Totentanz, com base no mesmo assunto.

Classicismo Romântico – Uma tendência contrária à representação de

elementos extramusicais da corrente realista procurou restaurar as grandes

estruturas musicais de períodos anteriores, através de pesquisas com base na

polifonia renascentista, na fuga barroca e na sonata clássica, entre outras formas

e gêneros. Trata-se de músicos que defendiam a ‘música pura’ ou ‘música

absoluta’, isto é, em que o que importa são as relações entre os sons e as

estruturas que podem ser engendradas a partir disso. Um dos teóricos mais

importantes dessa tendência foi o tcheco Eduard Hanslick, que considerava

conceitos como inspiração e fantasia vazios de conteúdo, sendo que apenas a

análise técnica e objetiva dos elementos sonoros poderiam revelar algo sobre a

natureza da música. Entre os músicos clássicos do período Romântico, estão:

Page 54: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

52

Johannes Brahms, César Franck e Anton Bruckner.

Nacionalismo Romântico – este é um movimento que se tornou bastante

influente durante o século XIX, entre artistas que buscavam captar a expressão

espontânea popular, através do estudo e interpretação da arte folclórica. Os

países mais importantes, no terreno do Nacionalismo romântico, são: a Rússia,

cujos principais compositores são Mikhail Glinka e o Grupo dos Cinco (Mili

Balakirev, Aleksander Borodin, César Cui, Modest Mussorgsky e Nikolai Rimsky-

Korsakov); a República Tcheca, com Bedrich Smatana e Antonín Dvorák; a

Noruega, com Edward Grieg; a Espanha, com Issac Albeniz e Enrique Granados.

Romantismo Tardio – no final da era romântica, na passagem do século

XIX ao século XX, quando os recursos expressivos, técnicos e formais do

Romantismo já estavam plenamente estabelecidos, houve um retorno ao cultivo

de obras longas, muitas vezes embasadas em programas literários ou nas

grandes formas tradicionais, como a Fuga, o Concerto, a Sinfonia, etc. São

características dessa época, obras gigantescas, tanto em extensão quanto em

quantidade de instrumentos – é a grandiosidade do Romantismo Tardio,

especialmente na música de tradição germânica. O exemplo mais característico

desse período é a Sinfonia dos Mil, de Gustav Mahler, que exige cerca de mil

músicos. Para sua execução, são necessários regentes, cantores solistas,

inúmeros coralistas e instrumentistas. Além disso, essa sinfonia tem cerca de uma

hora de duração. Entre os compositores mais destacados do romantismo tardio,

estão: Gustav Mahler, Richar Strauss e Max Reger.

Gêneros e formas do Romantismo

Formas psicológicas – com a negação das grandes formas da tradição e

a busca da expressão subjetiva, os músicos românticos dedicaram-se às

chamadas formas psicológicas, embasadas na elaboração contínua e progressiva

de temas e idéias musicais, através de transformações temáticas que colocam o

mesmo tema ou idéia musical em diferentes perspectivas. Fazem parte desse tipo

Page 55: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

53

de procedimento a idéia fixa, de Berlioz, e o leitmotiv, de Wagner.

Formas cíclicas – é a organização de diversas peças curtas em coletâneas

de maiores dimensões, onde cada uma das peças vale tanto por si mesma como

pela sua posição no conjunto. Esse tipo de ciclo de peças curtas permite ao

músico dar tratamento individualizado a cada peça, através de processos de

composição contínua. A maior parte dessas peças cíclicas foi escrita para piano

solo, sendo as mais conhecidas: Prelúdios Op. 28, de Chopin; Carnaval Op. 9,

Cenas Infantis Op. 15 e Kreisleriana Op. 16, de Schumann; Canções sem

Palavras, de Mendelssohn, entre outras.

Canção (Lied) – Schubert é considerado o criador da nação romântica

(Lied), a qual consiste na expressão musical da poesia lírica, em que “a voz solista

e acompanhamento desempenham papéis mutuamente interdependentes na

comunicação do conteúdo emocional da poesia”. Na canção romântica, o

instrumento não se limita a realizar o acompanhamento harmônico ou preencher a

textura, porém, ao contrário, faz parte da expressão do conteúdo emocional,

juntamente com a voz.

Sinfonia Programática – é uma obra em vários movimentos, embasada na

forma-sonata da sinfonia clássica, à qual acrescenta-se um texto ou baseia-se em

um tema literário que geralmente é entregue ao público, no momento de sua

execução. A Sinfonia nº 6, Pastoral, de Beethoven, é considerada como sendo

precursora desse tipo de obra. Os títulos dos movimentos caracterizam programas

a serem seguidos pelo ouvinte: 1. Despertar de alegres sentimentos ao chegar ao

campo; 2. À beira do regato, 3. Alegre reunião de camponeses, 4. Tempestade, 5.

Canto dos pastores: sentimento de gratidão e felicidade após a tempestade.

Poema Sinfônico – é uma expressão criada por Liszt para designar uma

obra orquestral de caráter descritivo em um só movimento. Liszt empregava uma

técnica chamada de transformação temática, em que um tema básico percorre

toda a obra em processos contínuos de variação e transformação de maneira a

corresponder a cada situação psicológica representada pela música. Isso tem um

antecedente na idéia fixa de Berlioz.

Page 56: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

54

Peças características – são peças escritas para instrumento solista, em

geral para piano, com intenção de descrever estados psicológicos, fenômenos

naturais ou situações da realidade concreta, a partir da representação musical de

textos e poemas. Geralmente, o conteúdo encontra-se no título, que se refere ao

assunto abordado. Os seguintes títulos de peças para piano de Liszt já nos

predispõem à audição de determinadas situações: Funerais (harmonias poéticas e

religiosas), Lendas: São Francisco de Paula sobre as ondas, Mazzeppa (refere-se

ao poema homônimo de Victor Hugo), Nuvens Cinzas.

Sinfonia – As sinfonias românticas, escritas como música pura, são

derivadas do mesmos princípios da sonata que as sinfonias clássicas. A principal

diferença está em que, no romantismo, as sinfonias foram tornando-se cada vez

mais extensas, com acréscimo de movimentos e expansão de cada um deles. As

sinfonias românticas mais longas foram escritas por Anton Bruckner e Gustav

Mahler.

Hector Berlioz Anton Bruckner

Page 57: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

55

Concerto

Podem-se distinguir três tipos principais de concerto, no Romantismo: o

Concerto de Virtuoso, o Concerto Sinfônico e o Concerto Narrativo.

O Concerto Virtuoso é aquele destinado à demonstração de alto nível

técnico por parte dos instrumentistas. Em geral, trata-se de música sem grandes

conteúdos emocionais ou narrativos, em que a orquestra limita-se a acompanhar o

solista. São geralmente escritos em três movimentos: rápido – lento – rápido.

Cada movimento é projetado para explorar diferentes qualidades do solista. Os

movimentos rápidos caracterizam-se pela velocidade e exibicionismo técnico; os

movimentos lentos demonstram as qualidades sentimentais e expressivas, além

do lirismo do solista.

O exibicionismo virtuosístico levou Schumann, o lírico rebelde, a liderar um

movimento contra esse tipo de concerto e um retorno ao modelo beethoveniano.

Assim, mantém-se o virtuosismos romântico, mas acrescentam-se elementos

psicológicos mais convincentes à estrutura do concerto. O primeiro movimento

passa a ser empregado como veículo de estados patéticos, profundidade

psicológica e dramaticidade. Os concertos para piano e orquestra de Frédéric

Chopin são considerados modelares, nesse sentido, pois apesar de serem

extremamente virtuosísticos para o solista, são carregados de forte conteúdo

musical e emocional. Mendelssohn segue no mesmo caminho de Chopin.

O Concerto Sinfônico é o fruto da fusão dos gêneros, na segunda metade

do século XIX, em que diferentes estruturas são combinadas para produzir novos

resultados. Nesse sentido, foram combinadas formas de sinfonias, aberturas e

árias de ópera, peças características e poemas sinfônicos para a construção de

concertos para instrumento solista e orquestra. Johannes Brahms foi o principal

responsável por conduzir o concerto na direção da sinfonia, em que a orquestra

passa a ter um papel similar ao do solista, na exposição de temas e seu

desenvolvimento posterior. Outros compositores que aproximaram o concerto da

sinfonia são Tchaikovsky e Clara Schumann.

O Concerto Narrativo é o resultado das inovações de Liszt em relação à

música programática, isto é, o uso dos recursos orquestrais, adicionados às

Page 58: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

56

possibilidades técnicas e expressivas do solista, são empregados como veículo de

expressão de determinado programa literário. Muitas vezes, esse tipo de concerto

é escrito em um único movimento para possibilitar maiores nuanças, na

caracterização psicológica de cenas e personagens.

Frédéric Chopin Franz Lisz

Ópera e Drama Musical

No final do período Barroco, a ópera havia se estilizado, tendo seus

números estereotipados exclusivamente em função da exibição do virtuosismo dos

cantores. No inicio do Classicismo, o compositor e teórico Christoph Willibald

Gluck (1714-1787) lançou manifestos, em que denunciava a superficialidade em

que a ópera se encontrava.

Gluck considerava que a ópera deveria voltar ao seu caráter dramático, a

música estaria a serviço do enredo, refletindo a dramaticidade do texto. Não seria

necessário haver tantas distinções entre os números da ópera (ária, arioso,

recitativo, danças, etc.) e as cenas poderiam ser mais contínuas para que os

espectadores não perdessem a atenção no desenrolar da narrativa. Os

instrumentos seriam escolhidos com a intenção de enfatizar a ação, conforme a

situação dramática exigisse.

Page 59: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

57

Gluck colocou suas teorias em prática na ópera Orfeu e Eurídice (1762),

sendo um dos músicos que mais influenciou compositores como Mozart e Rossini.

Posteriormente, os músicos românticos sentem-se animados com as teorias

de Gluck, que vêm ao encontro de seus fundamentos conceituais sobre os

gêneros lírico, épico e cômico, sobre o trágico e o comovente, o grotesco e o

pitoresco, expressos por sutis gradações psicológicas. Esses valores conduziriam

a uma nova concepção da música dramática e da música de cena, em geral.

Carl Maria Von Weber (1876-1926) é considerado como sendo o criador da

ópera romântica. Para ele “o drama musical, uma obra de arte fechada em si, na

qual todas as partes e todas as contribuições das artes afins utilizadas

desaparecem, em um processo de fusão e, de certa maneira, ao submergirem,

formam um mundo novo” (trecho de um texto de Weber). Na sua ópera O Franco-

Atirador, buscou colocar em prática todos esses valores, através de novas

maneiras de tratar as melodias vocais e por meio de novos recursos colorísticos,

na orquestra.

É com Richard Wagner que esse ideal de drama musical se consolida

plenamente. Wagner buscava o que chamava de obra de arte total. Para Wagner,

“onde os limites de uma arte se mostram intransponíveis, começa, com certeza

indubitável, a eficiência de outra arte. Com isso, aquilo que é apenas exprimível

em uma delas, pode ser dito com clareza convincente pela união íntima das duas”

(trecho retirado de uma carta de Wagner a Berlioz).

O drama musical incorpora os recursos orquestrais advindos da música

programática, sendo que a orquestra torna-se o principal veículo da ação

dramática, sendo, muitas vezes, mais importante que o próprio canto, na

expressão do conteúdo narrativo e psicológico das cenas e do caráter dos

personagens.

Para alcançar plenamente seus ideais, Wagner cria o leitmotiv (al., ‘motivo

condutor’), em que um motivo musical – na forma de um fragmento melódico, um

pulsar rítmico, uma seqüência de acordes ou simplesmente pelo uso de um

instrumentos específico – caracteriza um personagem, uma relação entre

personagens, uma situação dramática específica, um estado psicológico

Page 60: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

58

determinado, em suma, uma situação dramática. Assim, Wagner criou motivos

musicais que correspondem ao brilho do ouro (O Ouro do Reno), à cavalgada

heróica das valquírias (A Valquíria), à perseguição (Siegfried), à nostalgia, ao

amor e á morte (Tristão e Isolda), etc.

Com esses recursos, Wagner alcança a fusão total entre ação dramática e

música, em que a música não está subordinada à ação, como pretendia Gluck,

mas faz parte dela. O papel do canto volta ao recitativo, através da chamada

melodia infinita, se segue seu curso ininterruptamente, de maneira irregular, sem

cadências claramente definidas ou uso de quadraturas ou qualquer outro elemento

que possa produzir simetria. A melodia vocal, na ópera de Wagner, move-se

através de linhas melódicas livres e contínuas.

A orquestra é colocada no fosso, abaixo do palco, com a intenção de criar

um ambiente mítico e fantástico, em que o público escuta os sons da orquestra,

porém não sabe de onde vem. O termo orquestra tem sua origem no vocábulo grego ‘orchestra’, que é a

parte do teatro destina ao coro, na tragédia Ática. Assim, no início do século XVII,

o lugar onde os instrumentistas se colocavam, nas apresentações de óperas

chamava-se orquestra. Os músicos que se dirigiam à orquestra (fosso) eram

chamados de “músicos da orquestra”. Com o tempo, o termo orquestra passou a

designar o conjunto de músicos, e não mais o local aonde se dirigiam para tocar.

Johannes Brahms Richard Wagner

Page 61: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

59

MÚSICAS DO ÚLTIMO SÉCULO (O MODERNISMO)

Período Anterior às Guerras Mundiais

Conforme foi apontado anteriormente, em um sentido mais amplo, a

Modernidade tem seu início no Renascimento, nos séculos XV e XVI. Nesta

época, os valores medievais, como o feudalismo e a Igreja Romana, vão perdendo

seu vigor e tem início uma nova aventura: a Humanidade coloca-se só, diante do

Universo, sem recorrer ao auxílio de deuses ou mitos. Como diria, mais tarde,

Ludwig van Beethoven, o homem torna-se responsável pelo próprio destino.

Nas artes, porém, o termo Modernismo refere-se àquele período do final do

século XIX e início do século XX, em que são rompidos os alicerces da tradição:

• O pensamento discursivo de origem cartesiana – em que o raciocínio lógico

e a compreensão dos fatos e acontecimentos devem estar ligados, uns aos

outros, por uma cadeia racional necessária – passa a conviver com outras

formas de pensamento, que se multiplicam no início do século XX:

Pragmatismo, Estruturalismo, Existencialismo, Hermenêutica,

Fenomenologia, etc.

• À Mecânica de Newton sobrepõem-se outras teorias sobre a realidade

física do mundo. Para o entendimento do microcosmo, desenvolve-se a

Física Quântica; para a explicação do Macrocosmo, surge a Teoria Geral

da Relatividade.

• Nas artes, isso se manifesta através da negação de tudo o que se refere às

correntes estéticas do século XIX, principalmente o Romantismo.

Inicialmente, os artistas estão interessados na percepção imediata, em

como a luz toca a retina ou o som reflete no tímpano. Posteriormente, são

rechaçados todos os cânones de beleza e a arte desvincula-se do conceito

de Belo, para expressar o que há de mais profundo da alma humana. Em

um terceiro momento, considera-se que a arte deve ser objetiva, sem levar

em conta a subjetividade e os sentimentalismos de seu autor.

Page 62: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

60

Impressionismo Francês

Na música, o Impressionismo é considerado como o elo de ligação entre o

Romantismo e o Modernismo, pois rompe com o princípio de funcionalidade tonal,

mas mantém a formação de acordes por sobreposição de terças, ampliando a

tipologia cordal até formações harmônicas com seis sons. Além disso, a

construção de uma peça permanece fortemente embasada em processos

intuitivos.

Algumas das características mais importantes da música impressionista são estas:

• A descrição programática da música romântica, com base literária, é

substituída por descrição das impressões sensoriais, ou, como diria Mario

de Andrade, a descrição programática é substituída pela sugestão

descritiva. Esta nova concepção torna a música livre da representação de

um texto literário específico e a vincula mais diretamente a valores

propriamente musicais.

• Utilização de faixas sonoras, isto é, seqüências de acordes não-funcionais

que atuam com papel unicamente colorístico. Estes acordes encadeiam-se,

muitas vezes, por movimento paralelo ente todas as vozes, à maneira do

organum medieval.

• Busca de sonoridades vagas para produzir ‘atmosferas’ sonoras, através de

ritmos fluidos, novas combinações tímbricas, estrutura frásica irregular,

atematismo, etc.

Na busca de novos materiais sonoros, os músicos franceses da passagem

do século XIX ao século XX passaram a se dedicar à pesquisa de duas fontes

diferenciadas: música européia antiga e música de tradições não-ocidentais.

No início da década de 1870, após Paris ter sido sitiada por tropas do

exército da Prússia, houve um forte movimento de retorno às tradições francesas.

Em artigo de jornal da época, um crítico defendeu a pesquisa da música antiga

como referência para a nova música, pois, segundo ele, a cultura musical da

Page 63: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

61

França estava repleta de compositores com nomes alemães (Meyerbeer,

Ofenbach, etc.) fazendo música italiana (ópera e opereta). Esse movimento levou

á criação da Schola Cantorum, a qual se dedicava à música antiga e à música

moderna.

Influenciados por esse movimento, jovens compositores franceses

passaram a incorporar elementos medievais, em suas obras, tais como: uso dos

modos eclesiásticos e escalas antigas, uso de movimento paralelo entre as vozes

(organum), ritmos irregulares. Esses elementos eram empregados por suas

características essencialmente modais, para criar uma atmosfera vaga e

arcaizante e para desfazer interações tonais, nas relações entre os sons.

Esses músicos também escutaram uma orquestra de gamelão da ilha de

Bali, na Exposição Universal de Paris de 1889. A sonoridade dessa música atraiu

os músicos impressionistas, especialmente por seu caráter de ambigüidade tonal,

sem definição precisa de tonalidade, principalmente pelo uso de duas escalas

incomuns na música européia: uma escala hexatônica de tons inteiros e uma

escala pentatônica, chamada Slendro.

Além de buscar inspiração na música antiga e na música oriental, os

impressionistas também criavam suas próprias escalas sonoras, sendo a mais

comum delas, o Modo Lídio-Mixolídio: originária da combinação do primeiro

tetracorde do Modo Lídio e o segundo do Mixolídio (na música brasileira, esta é

uma escala tradicional, conhecida como Modo Nordestino).

Em termos de harmonia, esses músicos acrescentaram novos sons às

tradicionais tríades e ainda criaram um novo tipo de acorde, formado pela

sobreposição de quartas (sendo que as tríades são formadas pela sobreposição

de terças). O acorde formado por sobreposição de quartas é, atualmente,

chamado de Quartal.

Page 64: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

62

Outra técnica incorporada pelos músicos impressionistas é o uso do

contraponto para produzir harmonia não-funcional. Trata-se de um retorno às

técnicas de contraponto renascentista, segundo a qual “a harmonia é o resultado

da combinação das diversas vozes em contraponto.” (Gioseffo Zarlino, 1558). O

uso desta técnica, no início do século XX, é conhecida como Pandiatonismo, em

que o resultado é um polifonia modal com sucessões de acordes não-funcionais.

Os compositores mais destacados do Impressionismo são: Claude

Debussy, Erik Satie, Maurice Ravel, Albert Roussel e Emmanuel Chabrier, entre

outros.

Claude Debussy

Page 65: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

63

Expressionismo Germânico

O Expressionismo é uma radicalização de certos princípios românticos,

através da expressão das regiões mais profundas do subconsciente, com valores

como a morbidez e o gosto pelo misterioso e pelo inexplicável.

Na música, o Expressionismo acrescenta um novo método de composição:

o Atonalismo.

Atonalismo é ausência de polaridade tonal entre tônica e dominante e a

rejeição das relações hierárquicas entre os graus da escala diatônica, através do

emprego igualitário de todas as notas da escala cromática. Com isso, concede-se

autonomia a cada nota individual, com anulação dos princípios cadenciais e

superação da dicotomia consonância x dissonância.

A intenção dos compositores atonais é a emancipação da dissonância, que

passa a ser tratada como nota real, no contraponto e na formação de acordes.

Com a negação completa do Sistema Tonal tradicional e das formas

musicais a ele relacionadas, o músico expressionista vê-se em uma dificuldade

parecida àquela vivida pelos primeiros barrocos e primeiros românticos, isto é, a

falta de um sistema de base a partir do qual possam sustentar a unidade de suas

obras. O resultado reflete-se na composição de peças curtas e na elaboração de

obras longas com base em textos: canções e música dramática (óperas,

monodramas, etc.).

Características da música atonal:

⇒ uso de longos saltos melódicos, muitas vezes ultrapassando a oitava;

⇒ elaboração de breves motivos melódicos, que muitas vezes são

abandonados logo depois de expostos;

⇒ assimetria na inter-relação entre as frases – Schoenberg defendia o

uso de uma “prosa musical” que se oporia à “versificação” do período tonal

– com isso, propõe uma música mais assimétrica e irregular, sem base na

metrificação poética ou na quadratura da fraseologia tonal;

Page 66: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

64

⇒ organização rítmica irregular, com ritmos cruzados, compassos

alternados, estrutura amétrica, etc;

⇒ a estrutura global das peças tende à assimetria, na proporção entre

as partes, o que muitas vezes produz a impressão de música improvisada;

⇒ relações harmônicas mais complexas, com abandono do princípio

das tríades como sendo a base para a construção de acordes. Com isso,

os acordes básicos da música atonal é formado pela sobreposição de

quartas (harmonia quartal), sendo uma quarta justa e outra aumentada.

Isso produz acordes com dissonâncias extremas, como trítono, sétima

maior e nona menor;

⇒ uso de técnicas expandidas, nos instrumentos tradicionais, isto é, os

compositores buscam novos recursos técnicos e expressivos para

expressar suas idéias musicais;

⇒ orquestração com combinações inusitadas de instrumentos, com

dissociação das famílias instrumentais tradicionais (cordas, madeiras,

metais, etc.). Isso produz a pulverização das combinações instrumentais,

através de relações harmônicas e melódicas espacializadas. O resultado

será o que atualmente chama-se de Pontilhismo, na orquestração.

A produção atonal pode ser dividida em duas fases principais:

1. atonalismo livre – mais intuitivo, com todos os elementos da composição

vocal, que é predominante, partindo do texto. As estruturas harmônicas

prevalecem sobre a melodia; 2. atonalismo organizado – tende à maior estruturação interna, com as

escolhas recaindo sobre um princípio básico que origina toda a obra. Um

princípio gerador prevalece sobre o princípio da construção temática, em

que temas passam a ser condensados em pequenos motivos de grande

densidade expressiva. Aqui, há predomínio do aspecto melódico sobre o

harmônico, com ênfase no contraponto linear.

Page 67: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

65

Inovações do Atonalismo:

Pontilhismo – termo retirado da pintura pós-impressionista, em que o

pintor não dá grandes pinceladas, mas cria relações entre as cores através de

minúsculos pontos próximos entre si. Na música, significa a construção do tecido

sonoro (textura) composto por notas isoladas, com linhas melódicas espalhadas

entre os diferentes instrumentos da orquestra. Assim, a melodia é pulverizada e de

difícil identificação, devido à variedade de timbres.

Canto-Falado (Sprechgesang) – espécie de recitativo dramático com

caráter meio delirante, meio poético, que se encontra entre a declamação e o

canto. Foi empregado tanto para situações extremamente dramáticas quanto para

situações cômicas.

Melodia de Timbres (Klangfarbenmelodie) – esse procedimento deriva da

intenção de inverter a hierarquia das propriedades musicais da música tradicional

européia, em que o mais importante são as relações entre alturas, sendo que o

timbre é apenas um suporte para carregar a melodia, o contraponto ou a

harmonia. Com a melodia de timbres, essas relações se invertem, pois ocorre

mudança de timbres instrumentais sobre as mesmas notas, ao passo que a

melodia, no sentido tradicional, é uma seqüência de notas tocadas pelo mesmo

instrumento (mesmo timbre).

Compositores mais destacados: Arnold Schoenberg, Anton Webern e Alban

Berg.

Arnold Schoenberg

Page 68: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

66

Período Entre-Guerras

No período entre a Primeira Guerra e a Segunda Guerra, houve uma fase

de depressão econômica nos países que participaram da Guerra de 1914-1918.

Isso fez com que os recursos financeiros, os teatros, as possibilidades de

contratar grande contingente de músicos para formar orquestras ou companhias

de ópera, se tornassem mais escassos. Por essa razão, houve um movimento em

direção à simplificação dos meios instrumentais e vocais, em relação aos pós-

românticos, cujas composições muitas vezes exigiam grandes efetivos – Gustav

Mahler, por exemplo, compôs apenas música sinfônica para grandes orquestras,

sendo sua obra mais extravagante a Sinfonia dos Mil, que exige um contingente

de cerca de mil músicos, entre regentes, instrumentistas e cantores.

Por outro lado, os músicos sentiram necessidade de organizar suas idéias

em novos processos de sistematização sonora. Assim, surgem vários métodos e

tentativas de explicação para as interações entre os sons que prescindissem das

inter-relações do Sistema Tonal. Neste campo, certos grupos de músicos

europeus continuaram se voltando para culturas exógenas (ou exóticas) e para a

musica européia tradicional (movimento conhecido como Neoclassicismo),

enquanto outros grupos buscaram inventar música nunca antes realizada, de

caráter fortemente abstrato e com ênfase nas combinações sonoras

(Dodecafonismo).

Dodecafonismo

O Dodecafonismo foi a decorrência de pesquisas empreendidas pelos

músicos expressionistas no campo da atonalidade. Schoenberg é considerado o

criador desse sistema compositivo. Com a exploração extrema dos infinitos

recursos dados pelas possibilidades do atonalismo, os compositores sentiram

necessidade de organizar esses novos materiais em um sistema que garantisse a

coerência lógica e fornecesse coesão às suas obras.

Page 69: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

67

Com base na escala cromática, a música dodecafônica (ou sistema dos

doze sons) firma-se na construção de uma série que servirá como ponto de

partida para a composição. Esta série é formada pelas doze notas do Sistema

Temperado (temperamento igual), evitando, a princípio, relações tonais explícitas

entre notas contíguas (sucessivas). Com o tempo, mesmo Schoenberg compôs

séries com sonoridade que lembram a música tonal, inclusive com o uso de

tríades.

O princípio geral da música dodecafônica consiste no seguinte: cada série

dará origem a relações intervalares determinadas, sendo que cada série produz

diferentes possibilidades melódicas, harmônicas, contrapontísticas, expressivas e

formais. A série pode aparecer, na música, em ordem sucessiva, formando linhas

melódicas, em blocos sobrepostos, formando acordes, sendo que as notas podem

ser arranjadas de diversas maneiras, no interior de cada peça musical.

Para obter variedade no uso da série, o compositor serial pode empregar

formas variadas da série original, sem descaracterizar suas inter-relações básicas.

As formas seriais mais empregadas pelos músicos desse período são:

Série Primitiva – é a série de doze sons criada originalmente para a

composição de determinada peça musical;

Retrógrado – obtém-se pela execução da série original de trás para frente;

Inversão – é obtida ao inverter-se a direção de todos os intervalos da série

original, ou seja, intervalos ascendentes tornam-se descendentes, e vice-versa.

Por exemplo, o intervalo formado pelas notas dó-mi é uma terça maior

ascendente, sua inversão seria dó-láb (uma terça maior descendente);

Retrógrado da Inversão – obtém-se ao tocar a inversão de trás para

frente.

Além das variantes acima, cada série pode ser transposta para iniciar em

qualquer nota.

Page 70: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

68

Tem-se, assim, um total de 48 possibilidades diferentes para a elaboração

da série: quatro formas seriais, sendo que cada uma delas pode ser transposta 12

vezes (12 x 4 = 48).

Todos esses métodos de variação a partir de uma estrutura sonora básica,

empregados pelos dodecafonistas, foram aproveitados da polifonia tradicional, a

partir da análise de música medieval, renascentista e barroca. A própria noção de

série é tomada das técnicas da Ars Nova francesa e italiana, pelo uso de talea

(corte, em francês; série de notas cantadas pela voz de tenor) e color (cor, em

latim; série de durações que acompanhavam a talea).

No período dodecafônico, os compositores da tradição expressionista

fizeram um movimento de retorno à música pura (instrumental e abstrata). O

mesmo vai acontecer com os compositores de uma tendência antagônica, os

neoclássicos.

Neste período, a música deixa de importar por seu conteúdo emocional e

encaminha-se para um terreno especulativo e intelectualizado que desdenha o

campo do expressivo. Isso também se dá através do abandono das formas curtas

(microformas) e pela busca de estruturas da tradição européia pré-romântica

(principalmente o Barroco e o Classicismo). São compostas peças que reportam

às formas européias tradicionais, como tocata, suíte, sonata, sinfonia, ópera,

ballet, etc.

Assim, a duração das obras instrumentais torna-se maior devido às

possibilidades de relacionar os elementos com base em estruturas

predeterminadas pela tradição. A diferença, com relação à música tradicional, está

no uso de recursos vocais e instrumentais expandidos, emprego livre de

dissonâncias, abandono da tonalidade, etc. Outra diferença importante, na música

dodecafônica está em que, na música tonal, as estruturas e interações entre os

sons são determinadas pela tradição (remota ou imediata), ao passo que, no

dodecafonismo, a estrutura interna de cada obra é determinada pelas relações

sonoras da série.

Características da música dodecafônica:

Page 71: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

69

● polifonia integral, com contraponto rigoroso, em que o acorde é decorrente

da sobreposição de linhas melódicas individuais; ● intensificação das dissonâncias; ● utilização das possibilidades técnicas e expressivas no limite dos

instrumentos, com predomínio de regiões extremas; ● construção lógica musical, com base em leis puramente musicais, ● predomínio de música instrumental sobre a música vocal ● retomada de combinações instrumentais usuais, como o quarteto de

cordas, o concerto para solista e orquestra, etc. ● Ritmo refinado e fluente, integrando-se aos demais agentes sonoros, como

o timbre, a melodia e a melodia; ● partitura escrita em seus mínimos detalhes, com indicação das intenções de

interpretação, através de sinais de dinâmica e agógica em todos os

detalhes da peça; ● frases irregulares e assimétricas, porém o resultado global é geralmente

uma estrutura simétrica e irregular.

Anton Webern Alban Berg

Page 72: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

70

Nova Objetividade

No período entre as duas grandes guerras (1918-1939), surge um

movimento de negação da expressão subjetiva, da grandiloqüência da música

orquestral e da ópera românticas, crítica à música programática e ao caráter vago

e indefinido da música impressionista. Em certo sentido, busca-se um retorno à

pureza da música do século XVIII.

Esses princípios deflagram o movimento conhecido como Neoclassicismo,

que desdenha das tradições oitocentistas, busca uma nova objetividade, assimila

elementos populares e retorna à pureza das estruturas, da harmonia, da melodia e

do contraponto anteriores ao séc. XIX. Ao realizar essa renovação objetiva dos

meios musicais, foram retomados os principais gêneros e formas da tradição

setecentista, como a fuga, a suíte, o concerto e a sonata, entre outras.

O termo neoclássico também está relacionado ao interesse pela cultura da

Grécia antiga, principalmente através do uso de narrativas e personagens da

mitologia grega ou da tragédia ática, caracterizada por seu estilo puro e conciso.

Exemplos podem ser encontrados em obras como a ópera Antígona (1926) de

Arthur Honneger, o bailado Édipo Rei (1927) de Igor Stravinsky, a ópera Medeia

(1938) de Darius Milhaud e o filme Orfeu (1950) de Jean Cocteau com trilha

musical de Georges Auric.

Em 1918, é publicado o ensaio Le Coq et l’Arlequin (O Galo e o Arlequim),

de Jean Cocteau. Nele, o diz autor: “Basta de nuvens, ondas, aquários, ondinas e

fragrâncias noturnas. Precisamos de uma música com os pés na terra, uma

música com base no cotidiano. [...] Uma arte objetiva, desligada do individualismo,

que exija a total consciência do ouvinte [...], música acabada, pura, sem

ornamentos supérfluos”.

Com base na leitura deste texto, um grupo de jovens compositores reúne-

se em torno de Erik Satie, tomando como modelo tanto os postulados estéticos de

Coteau, quanto a irreverência de Satie. Estes músicos, que formaram um núcleo

conhecido como Les Six ou O Grupo dos Seis, são: Louis Durey (1888-1979),

Page 73: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

71

Arthur Honegger (1892-1955), Darius Milhaud (1892-1974), Germaine Tailleferre

(1892-1983), Georges Auric (1899-1983)e Francis Poulenc (1899-1963).

Os Seis são ainda hoje reconhecidos como o grupo neoclássico por

excelência. Formado basicamente por franceses, este grupo também fazia fortes

críticas à tradição germânica do século XIX, o que já aparece no ensaio de

Cocteau de 1918:

É necessário gritar: “Abaixo Wagner !” [...] Essa é a verdadeira audácia […]. A multidão é seduzida pela mentira; ela é recebida pela verdade mais simples, mais nua, muito pouco inconveniente. Schoenberg é um mestre; todos os nossos músicos e Stravinsky lhe devem algo, mas Schoenberg é, sobretudo, um músico de quadro negro. Sócrates dizia: “Quem é este homem que come pão como se fosse a boa carne e a boa carne como se fosse pão?”. Resposta: o melômano alemão.

Considerado o fundador do movimento neoclássico, o compositor russo Igor

Stravinsky (1882-1971) segue na mesma linha de pensamento e atua, em Paris,

colaborando com artistas de outras áreas também ligados o movimento anti-

romântico. Seu bailado Pulcinella (1920), que tem por base personagens da

Commedia dell’Arte e foi composto a partir da releitura de uma obra dramático-

musical atribuída ao italiano Giovanni Battista Pergolesi15 (1710-1736), é

considerado o marco inicial que caracterizou o estilo neoclássico do século XX. A

obra foi encomendada para os Ballets Russes de Sergei Diaghilev, sendo

realizada com libreto e coreografia de Léonide Massine e com figurinos e cenários

de Pablo Picasso.

Com auxílio do musicólogo Roland Manuel e do filósofo Pierre

Schouvtchinsky, Stravinsky escreveu uma série de conferências que apresentou

na Harvard University, nos Estados Unidos, e, posteriormente, publicou sob o

título Poética Musical. Neste texto, o compositor russo manifesta seu ponto de

vista alinhado com os princípios de clareza e concisão de Cocteau e os

15 Pergolesi é o compositor da ópera La Serva Padrona, obra que marcou significativa mudança estilística na dramaturgia operística do séc. XVIII e influenciou algumas das óperas mais importantes de W. A. Mozart, como As Bodas de Fígaro e Don Giovanni.

Page 74: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

72

neoclássicos franceses. Para Stravinsky, “inspiração, arte, artista são termos, no

mínimo, obscuros que nos impedem de ver claramente um campo onde tudo é

equilíbrio, cálculo, onde o que se passa é o sopro do espírito especulativo [...].

Temos um dever para com a música e é o de ‘inventar’; [...] ‘inventor de música’

parece definir melhor o ofício que exerço”. Em outro ensaio, Crônicas de Minha

Vida, considera

a música, por sua própria natureza, essencialmente incapaz de expressar o que quer que seja, sentimentos, atitudes mentais, estados psicológicos, fenômenos da natureza, etc.. [...] A música é o único domínio no qual o homem realiza o presente. Pela imperfeição de sua natureza, o homem está destinado a sofrer o escoamento do tempo – de suas categorias de passado e futuro – sem jamais poder tornar real, portanto estável, o presente. O fenômeno musical nos é dado com o único fim de instituir uma ordem nas coisas, compreendendo aí e, sobretudo, uma ordem entre o homem e o tempo. Para ser alcançada, exige, então, necessária e unicamente, uma construção. Feita a construção, atingida a ordem, tudo está dito.

Os músicos ligados à nova objetividade colaboraram com artistas de outras

artes, na produção de canções, bailados, óperas, filmes e peças teatrais. Entre os

colaboradores, estão: Sergei Diaghilev, Vaslav Nijinski, George Balanchine, Pablo

Picasso, Jean Cocteau, Guillaume Apollinaire, Jean Renoir, Alain Resnais, René

Clair, Paul Valéry, André Gide, Albert Camus, Paul Claudel, Blaise Cendrars e

Berthold Brecht.

Os músicos ligados à nova objetividade também se interessaram por outros

movimentos modernistas que surgiam na primeira metade do séc. XX, como o

Futurismo, Cubismo, o Surrealismo e o Dadaísmo. Além de haverem colaborado

com artistas de diferentes áreas e tendências, esses músicos incorporaram

valores e processos desenvolvidos por eles, como o fluxo criativo automático dos

surrealistas, o gosto pelo nonsense dos dadaístas, o interesse pela máquina e

pela velocidade dos futuristas, crítica a valores moralistas e às instituições

religiosas, análise e juízo de caráter irônico, além da participação política efetiva

em movimentos sociais.

O movimento anti-romântico da Nova Objetividade foi o que caracterizou o

Modernismo internacional do período entre-guerras, em que mesmo os músicos

Page 75: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

73

expressionistas buscaram organizar seus experimentos através do

Dodecafonismo.

Com o êxito da Revolução russa, no final da Primeira Guerra, a esquerda

internacional ganhou fôlego, sendo que a linguagem clara e direta da Nova

Objetividade, com base em elementos aproveitados da cultura popular, foram

amplamente empregados por músicos ligados a movimentos de esquerda. Neste

contexto, destacam-se as óperas políticas de Kurt Weill (1900-1950) com libretos

de Bertold Brecht, tais como Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny e a

Ópera dos Três Vinténs.

Outros compositores importantes na linha da nova objetividade são: Sergei Prokofiev (1891-1953), Paul Hindemith (1895-1963), Hanns Eisler (1898-1962) e Aaron Copland (1900-1990).

Entre as características gerais que identificam as diversas tendências da

Nova Objetividade internacional, estão:

⇒ Busca de novas funcionalidades para a arte, a partir do credo de que

o artista cumpre uma função social (negação do princípio alienante da

“arte pela arte”);

⇒ Gosto pela dissonância e pela aspereza harmônica;

⇒ Uso de acordes expandidos, com diferentes tipos de dissonância e

acordes formados pela combinação de qualquer tipo de intervalo;

⇒ Uso freqüente de nota pedal e baixo ostinato;

⇒ Sobreposição de diferentes melodias, sem interação necessária

entre elas;

⇒ Emprego de Politonalidade, em que são superpostas melodias em

diferentes tonalidades para produzir dissonâncias e asperezas no

contraponto;

⇒ Inovações rítmicas pelo uso de compassos alternados (a música

muda constantemente de fórmula métrica), compassos mistos (em que

são combinados compassos de naturezas diversas), polirritmia

(simultaneidade de diversos ritmos e suas divisões) e polimetria

(sobreposição de diferentes tipos de compasso)

Page 76: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

74

⇒ Conjuntos instrumentais reduzidos (pequenas orquestras e conjuntos

de câmara) – alguns historiadores atribuem essa característica da

música do período entre-guerras à escassez de meios existente na

Europa após a destruição causada pela Primeira Guerra; outros preferem

interpretar como sendo fruto da preferência por pequenos grupos de

sonoridade leve e concisa e da rejeição à grandiloqüência romântica e

suas grandes massas orquestrais;

⇒ Referência em tradições não-ocidentais, como a música chinesa, a

música do Leste europeu, a música espanhola e o jazz, através do uso

de escalas “exóticas”, sobreposições rítmicas e ritmos aditivos;

⇒ Versatilidade de métodos e processos de composição e

orquestração;

⇒ Diversidade de estilos;

⇒ Valorização do equilíbrio, mesmo que através de irregularidades e

assimetrias.

Darius Milhaud Arthur Honegger

Page 77: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

75

Tendências Nacionais

Após o predomínio da música sinfônica germânica e da ópera italiana, ao

longo do séc. XIX, músicos de vários países começaram a pesquisar tradições

folclóricas e populares de suas regiões.

Este movimento inicia na França, com a criação da Sociedade Nacional de

Música, em 1871, com o lema ars gallica e espalha-se rapidamente.

Entre os primeiros a buscarem suas raízes locais estão os músicos de

países deslocados do eixo central da cultura européia, principalmente aqueles

oriundos do Leste europeu e da Espanha, como os tchecos Leo Janacek (1854-

1928) e Vitezslav Novák (1870-1849) e os espanhóis Isaac Albéniz (1860-1909) e

Enrique Granados (1867-1916). No Brasil, um dos pioneiros do uso de elementos

regionais foi o paranaense Brazílio Itiberê da Cunha (1846-1913), que já na

década de 1860 escreveu A Sertaneja para piano, a qual, segundo relatos, teria

sido tocada por Franz Liszt, em Milão. Esta obra, porém, está mais impregnada de

caráter romântico do que moderno.

A principal diferença entre as tendências nacionalistas do Romantismo e do

Modernismo está em que os românticos procuram captar a expressão popular

para interpretá-la em um contexto imbuído de lirismo ou efeitos grandiosos. Por

outro lado, o que os modernistas buscam nas manifestações autóctones é seu

caráter rude, sua rítmica pulsante e sonoridades ásperas. Além disso, grande

parte dos nacionalistas modernos alinha-se à tendência geral da Nova

Objetividade.

Para descobrir essas características, muitos destes músicos empreenderam

viagens por seus países, gravando e transcrevendo as músicas que conseguiam

registrar. Alguns deles fizeram uso de materiais rítmicos e melódicos oriundos do

populário em suas canções, música de câmara e música orquestral; outros

preferiram aproveitar estilemas16 e princípios estruturais sem, contudo, citar

diretamente melodias conhecidas.

16 No campo da Lingüística, o que caracteriza um estilema são os traços que definem as constâncias estilísticas de determinada manifestação artística. Na música, os elementos mais

Page 78: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

76

Entre os músicos que se destacaram neste campo da pesquisa e seu uso

nas suas próprias composições, estão o espanhol Manuel de Falla (1876-1946),

os húngaros Béla Bartók (1881-1945) e Zoltán Kodály (1882-1967), o brasileiro

Heitor Villa-Lobos (1887-1959), os mexicanos Carlos Chávez (1899-1978) e

Silvestre Revueltas (1899-1940) e o argentino Alberto Ginastera (Argentina, 1916-

1983). Músicos das Américas também pesquisaram a música indígena e

incorporaram alguns de seus elementos em suas obras. Um exemplo disso é a

Sinfonia Índia (1936) de Carlos Chávez ou a Sinfonia Ameríndia (1952) de Villa-

Lobos.

Béla Bártok Heitor Villa-Lobos e Edgard Varèse

importantes para o estabelecimento de estilemas são tipos de escalas, contornos melódicos, padrões rítmicos e uso de certos tipos de instrumentos.

Page 79: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

77

Caminhos Independentes

Uma das características da cultura moderna e contemporânea é a

consciência da multiplicidade de atitudes e posicionamentos frente à realidade

circundante. As diferentes posturas perante a arte e suas manifestações podem

estar relacionadas a aspectos nacionais, regionais, locais ou mesmo individuais.

Desde os prenúncios da Modernidade houve a busca de caminhos individuais em

vários setores do conhecimento, como podem testemunhar obras de Roger

Bacon, Vico, Copérnico, Galileu, Cervantes, Shakespeare, Michelangelo,

Gesualdo e tantos outros.

Na arte do Romantismo, tem início a valorização da expressão individual

que no século XX se manifesta através da diversidade de estilos e processos

criativos que podem coexistir de forma tensa ou serena, dependendo da época,

lugar e da situação.

Mesmo quando se unem para formar grupos de afinidade, como

impressionistas, expressionistas ou neoclássicos, o grupo esforça-se para impor

sua particularidade através dos meios que lhe são próprios. Há, também, artistas

que buscam deliberadamente caminhos individuais, independentes de escolas, ou

que terminam flutuando de uma escola a outra.

Além de empregarem meios e técnicas concebidas por outros artistas e

escolas, chegando a eles por caminhos próprios, também desenvolvem suas

maneiras pessoais através de caminhos muitas vezes inusitados.

Entre os músicos que seguiram caminhos independentes, na primeira

metade do século XX, estão: Erik Satie (1866-1925), Julián Carrillo (1875-1965),

Aleksander Scriabin (1877-1915), Charles Ives (1883-1965), Edgard Varèse

(1883-1965), Kaikhosru Sorabji (1892-1988), Alois Hába (1893-1973), Henry

Cowell (1897-1965).

Entre as mais contribuições desses músicos, estão:

⇒ Expansão das possibilidades técnicas e expressivas dos instrumentos

tradicionais – esse princípio tornou-se tão usual na música do último século que

Page 80: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

78

existe uma categoria denominada “técnicas expandidas” na música

contemporânea. Cowell (que foi professor de John Cage) já utilizava piano

preparado e exigia que o pianista tocasse diretamente nas cordas do instrumento;

⇒ Uso de materiais cotidianos como instrumentos musicais – no seu bailado

surrealista17 Parade (1917), com argumento de Cocteau, coreografia de Massine e

cenário de Picasso, o compositor Erik Satie18, a partir de idéias de Cocteau, fez

com que músicos tocassem vários tipos de “produtores de ruído”, como tachos de

leite, buzinas e máquinas de datilografia.

⇒ Invenção de novos instrumentos – insatisfeitos com as possibilidades dos

instrumentos conhecidos, muitos músicos passaram a projetar e construir

instrumentos, em alguns casos prenunciando a música eletrônica;

⇒ Microtonalismo – através de referências da música oriental (gamelão

javanês, ragas indianos, maqams árabes), alguns músicos passaram a pesquisar

a possibilidade de uso de intervalos menores que o semitom. Hába e Carrillo

projetaram instrumentos de teclado microtonais. Carrillo (que era músico, teórico e

inventor) chegou a registrar, em 1940, 15 projetos para fabricação de pianos com

afinações de 1/4 a 1/16 de tom;

⇒ Instrumentos de percussão – o uso abundante de instrumentos de

percussão está no mesmo nível de pesquisa com o ritmo, o timbre e a textura que

os primórdios da música eletrônica. Varèse foi o primeiro compositor europeu a

escrever uma peça exclusivamente para instrumentos de percussão;

⇒ Espacialização sonora – sendo a música considerada como “a arte de

modular o tempo”, alguns músicos experimentalistas esforçaram-se em empregar

a dimensão do espaço. Neste sentido, o espaço sonoro pode ser entendido em

um sentido real, através da disposição dos músicos em diferentes pontos do

espaço ultrapassando os limites do palco como sendo o “lugar do músico”, ou em

um sentido virtual, em que os sons de determinada composição são dispostos de

17 Na expressão de Apollinaire, que escreveu as notas para o programa da estréia, em 18 de maio de 1917, todo o contexto de Parade era “une sorte de surrealisme” (um tipo de surrealismo). 18 Satie foi preso por causa dos debates em torno de Parade. Em resposta a um crítico que depreciou a obra, escreveu um cartão em que dizia: “Senhor e Caro Amigo, você é apenas um ânus, e um ânus sem música”. Por essa ofensa, Satie foi processado e condenado a oito dias de prisão.

Page 81: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

79

forma e criar a impressão auditiva de espacialidade no tempo. Ives fazia com que

duas orquestras tocassem músicas diferentes, ao mesmo tempo;

⇒ Experimentos com a escrita musical – muitas vezes, têm sido questionados

os limites da escrita tradicional. Músicos inventaram diferentes formas de escrever

música, através de notação em forma de roteiro para improvisação, novos signos

para indicar intenções incomuns, notação gráfica, notação indeterminada ou

mesmo prescindindo da escrita musical. Essas experiências, contudo, foram mais

radicais no período posterior à Segunda Guerra;

⇒ Sobreposição de estilos – mesmo tendo sido mais comum a partir da

década de 1960, alguns músicos da primeira metade do século XX já trabalhavam

com colagens, citações e alusões a diferentes estilos musicais em uma mesma

obra;

⇒ Experiências integradas – alguns músicos buscaram integrar experiências

com outras artes, principalmente música, poesia, teatro e artes visuais. Já no final

do séc. XIX, Scriabin chegou a projetar um órgão de cores em que, ao serem

pressionadas, as teclas acionavam mecanismos que produziam sons e projetavam

cores que o compositor acreditava emitiam a mesma freqüência de som e luz.

Kaikhosru Sorabji Charles Ives

Page 82: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

80

Período Pós-Guerra

Após o final da Segunda Grande Guerra, artistas dos países que estiveram

mis envolvidos com a Guerra, como Alemanha, França, Polônia, Estados Unidos e

Japão, passaram a questionar o alto índice de racionalidade que envolvia a

criação e a produção artística na primeira metade do século XX. Acreditava-se que

o Racionalismo, que se desdobrava a partir de Descartes em várias direções do

conhecimento, sobretudo para o desenvolvimento da ciência moderna, era um dos

responsáveis pela destruição. Alguns artistas traçavam a história da humanidade

como o aperfeiçoamento das armas e a evolução da capacidade de destruição.

Com base nessas crenças, houve um grande contingente de artistas de

vanguarda que se propuseram a suprimir toda e qualquer referência às tradições

conhecidas. Propunha-se que a arte se tornasse uma tabula rasa. Na música, isso

significaria um retorno à pureza do som e suas relações psicoacústicas. Assim,

seria possível romper com a tradição da música ocidental e caracterizar estados

mentais primordiais, anteriores ao conhecimento formalizado e além das

experiências ordinárias.

Na prática, os meios para realizar esses preceitos estariam, antes de

qualquer procedimento, em uma atitude negativa: a rejeição dos elementos

considerados como essenciais à música. Desta forma, buscava-se, por um lado, a

criação de músicas em que não houvesse pulsação definida, ordenação rítmica ou

regularidade métrica; seriam músicas sem melodia, contraponto ou harmonia – ao

menos, no sentido tradicional desses termos. Por outro lado, os elementos da

música ocidental considerados secundários, ou que apenas tinham a função de

carregar melodias ou encadeamentos harmônicos, passaram a ser elaborados no

primeiro plano da composição. Entre esses elementos, estão o timbre e a textura

sonora.

Surgiram várias correntes de vanguarda, cada qual propondo suas próprias

maneiras de romper com a tradição da música ocidental. Entre essas tendências,

estão o Serialismo Integral, a Música Aleatória, Música Concreta e Eletroacústica.

Page 83: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

81

Serialismo Integral

A partir das pesquisas dodecafônicas desenvolvidas pelos músicos da

Segunda Escola de Viena, especialmente Anton Webern, um dos discípulos mais

próximos de Shoenberg, músicos como Pierre Boulez, Karlheinz Sctockhausen e

Milton Babbitt desenvolveram o que se passou a chamar de Serialismo Integral.

Se os músicos de Viena compunham séries de notas para a elaboração de

suas obras dodecafônicas, esses músicos da geração pós-guerra passaram a

serializar todos os elementos possíveis no intuito de evitar qualquer referência à

tradição da música ocidental e para eliminar o gosto individual do artista.

Se determinado compositor constrói uma série de notas, outra de ritmos,

outra de intensidades, outra de articulações, outra de timbres, etc., o processo

compositivo torna-se quase automático, quase eliminando por completo a

individualidade do músico. Em outras palavras, o que o compositor decide está no

período pré-compositivo, isto é, antes de iniciar a composição propriamente dita, já

que no momento da composição, ele deve apenas seguir o roteiro determinado

anteriormente. Naturalmente, esta é uma atitude anti-romântica.

Abaixo, está um exemplo de serialização da intensidade.

Digamos que fossem usados seis níveis diferentes de intensidade,

apresentados abaixo desde o som mais suave até o mais forte.

pp – pianíssimo (muito suave)

p – piano (suave)

mp – mezzo piano (meio suave)

mf – mezzo forte (meio forte)

f – forte (forte)

ff – fortissimo (muito forte)

Essas intensidades deveriam ser organizadas em alguma ordem, como

esta, que passaria a ser a Série Original:

mp f pp ff mf p

Page 84: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

82

O Retrógrado seria obtido ao executar essa seqüência de trás para frente:

p mf ff pp f mp Como, na série de notas, a Inversão é realizada através da mudança na

relação entre dois elementos contíguos da série, pode-se fazer o mesmo com a

série de intensidades. Tomam-se os elementos de dois em dois e inverte-se sua

ordem. Assim, os dois elementos da série original são: mp e f. Ao serem

invertidos, temos a ordenação: f mp. O mesmo se faz com os outros dois grupos:

pp ff inverte-se como: ff pp; e mf p inverte-se como: p mf. Tem-se, desta forma, a seguinte série invertida:

f mp ff pp p mf

O Retrógrado da Inversão é obtido com a Inversão tocada de trás para

frente:

mf p pp ff mp f

Temos, assim, as quatro formas seriais da música dodecafônica aplicadas

ao parâmetro intensidade. O, portanto, resultado é este:

Série Original: mp f pp ff mf p

Retrógrado: p mf ff pp f mp

Inversão: f mp ff pp p mf

Retrógrado da Inversão: mf p pp ff mp f

Com base nesta matriz serial, é organizada estrutura a dinâmica da peça. O

mesmo pode ser feito com qualquer outro elemento da composição.

Na prática, o Serialismo Integral não chegou a existir, pois nenhuma peça

de música foi integralmente escrita com base em séries. Sempre, em algum nível

da composição, algo não foi serializado e, portanto, deixou margem à

individualidade do autor. Os próprios criadores da música serial afirmaram,

Page 85: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

83

posteriormente, não ter criado nenhuma peça musical completamente serial.

Boulez chegou a afirmar que o Serialismo Integral nunca existiu.

De qualquer forma, foi um dos movimentos mais radicais de negação dos

valores do Romantismo oitocentista, tanto do ponto de vista estético-filosófico,

quanto do ponto de vista da sonoridade. Diferentemente de outros movimentos de

vanguarda, a negação serial veio através da extrema racionalização dos métodos

de composição.

Karlheinz Stockhausen Pierre Boulez

Page 86: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

84

Música Concreta e Eletroacústica

As pesquisas realizadas por Boulez e Stockhausen, entre outros, afastou

parte dos intérpretes da música de vanguarda, a qual exigia cada vez mais do

instrumentista em detalhes que não apareciam ao público. O repertório romântico

era muito mais propício ao exibicionismo virtuosístico, pois as dificuldades

enfrentadas apareciam claramente. Isso fez com que compositores de vanguarda

encontrassem dificuldade em encontrar instrumentistas interessados em suas

obras, que ficavam sem ser apresentadas publicamente. Por sua vez, o público

também havia se distanciado desse tipo de música, seu gosto permanecendo

anacrônico, na direção do repertório dos séculos XVIII e XIX.

Isso, associado ao desenvolvimento dos meios eletrônicos de captação e

reprodução sonora, no início da segunda metade do século XX, levou grande

parte dos músicos que estavam mais interessados na pesquisa musical e no

experimentalismo sonoro em uma nova direção: a música eletroacústica.

Inicialmente, artistas como Pierre Schaeffer e Pierre Henri, já no final da

década de 1940, registravam sons naturais e posteriormente manipulavam essas

gravações em laboratório. Assim, surgiu a música concreta, chamada assim

porque os sons eram gravados da realidade concreta. Poderiam ser sons da

Natureza, como canto de pássaros, ruído do marulho das águas, vozes de

animais, etc.; também poderiam ser gravados os sons urbanos, como buzinas de

automóveis, sons da multidão ou sons produzidos por instrumentos musicais,

entre outros.

Esses sons, previamente registrados, posteriormente eram manipulados em

estúdios, através de instrumentos eletrônicos, como osciladores, que permitiam

modificar a natureza própria do som, isto é, tornou-se possível transformar

internamente cada som, o que anteriormente era impossível, sem o uso de

aparelhos eletrônicos. Por essa razão, na música concreta, os sons registrados da

natureza, geralmente não são reconhecíveis, pois são manipulados ao ponto de

serem completamente modificados.

Page 87: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

85

A criação de sintetizadores sonoros também possibilitou outro tipo de

atitude perante a criação musical: o músico finalmente poderia criar os sons para

sua composição, e não apenas combinar sons já existentes, como no caso de

uma peça para piano ou para orquestra. Assim, surgiu a música eletroacústica,

isto é, aquela em que todos os elementos de determinada obra são criados pelo

próprio compositor, desde um único som até infinitas possibilidades de

combinações sonoras.

Com isso, tem-se uma diferença essencial entre música concreta e música

eletroacústica. Esta é produzida através da síntese sonora, isto é, da criação e

manipulação de sons por meios eletrônicos; aquela é produzida a partir de sons

registrados da realidade concreta, que são, posteriormente, manipulados por

meios eletrônicos.

Atualmente, há um grupo de músicos dedicados à música ligada à

eletrônica e à informática que prefere utilizar a expressão música acusmática. Este

termo surge na publicação de 1966 do Tratado dos Objetos Musicais de Pierre

Schaeffer, um dos pioneiros da música concreta. Neste livro, o autor emprega o

termo acusmático, definindo-o como “um som que se escuta sem perceber quais

são as causas que estão por trás de sua formação”. O músico refere-se ao fato de

não haver músicos no palco, sendo que os sons são emitidos através de caixas

acústicas. Neste texto, o autor pretende que a música produzida por alto-falantes

– que, portanto, prescinde de executantes ao vivo – dirija-se diretamente à

percepção do ouvinte, sem a interferência de aspectos cênicos ou visuais

existentes em concertos convencionais.

Com base nessa redução fenomenológica, proposta por Schaeffer, vários

autores posteriores propõem o direcionamento da percepção musical para a

natureza do som em si mesma, de forma a tornar o ouvinte consciente do campo

perceptivo que está em primeiro plano: a audição.

A expressão música acusmática surgiu, como metáfora, da divisão dos

discípulos de Pitágoras em dois grupos: o círculo dos iniciados (mathēmatikoi),

que participavam diretamente dos debates e discussões com o mestre; o círculo

Page 88: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

86

dos ouvintes (akousmatikoi), que apenas escutavam as preleções do mestre, que

permanecia atrase de uma cortina.

Deste segundo círculo, os akousmatikoi, que apenas escutavam Pitágoras,

sem vê-lo, Schaeffer elaborou a expressão música acusmática, isto é, aquela em

que a fonte sonora permanece velada pela cortina dos alto-falantes, direcionando

a percepção seus aspectos puramente audíveis da música. O compositor e

multiartista Michel Chion foi quem difundiu essa expressão, nas últimas décadas.

Pierre Schaeffer Michel Chion

Page 89: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

87

Música Aleatória

Hans Joachim Koellreutter (1915-2006), compositor alemão radicado no

Brasil desde 1937, contava uma história interessante sobre John Cage.

Em uma das edições do Festival de Darmstadt19, na década de 1950,

quando a música serial integral era considerada o auge da produção musical de

vanguarda, apareceu um grupo de músicos norte-americanos liderados por John

Cage. Esses músicos sentaram-se no palco e tocaram uma peça de John Cage

extremamente complexa e intrincada.

Quando terminou a apresentação, outros compositores estavam

interessados em ver a partitura e saber quais os métodos que Cage havia

empregado para escrever aquela música. Quando Cage mostrou a partitura, não

passava de um monte de rabiscos, sem notas ou ritmos escritos. A partitura

escrita era apenas um roteiro geral que servia de guia para os músicos

improvisarem. Isso foi decepcionante para os músicos europeus, interessados em

processos sofisticados de composição. Por outro lado, vários músicos perceberam

como seria possível elaborar músicas de aparência extremamente complexa a

partir de princípios perceptivos diretos e com músicos bem treinados em realizar

aquele tipo de música.

Desde então, difundiu-se ao longo das décadas de 1950 a 1970 a música

aleatória. A expressão foi criada por Pierre Boulez para diferenciar sua própria

música, organizada nos mínimos detalhes, daquela de John Cage, muitas vezes

embasada em princípios de probabilidade, como jogo de dados20 e I-Ching, para

definir os elementos da composição. Neste sentido, apesar da grande diferença

entre o Serialismo Integral e o Aleatorismo, há um fator que os aproxima: a busca

da eliminação do gosto pessoal do autor. O que distancia essas duas tendências é

o método pelo qual isso se realiza: na música serial, por meio da elaboração

detalhista dos elementos sonoros; na música aleatória, através da presença do

19 O Festival de Darmstadt foi um dos o mais importantes festivais de música de vanguarda da segunda metade do século XX. 20 A etimologia termo “aleatório“ indica sua origem na palavra latina “alea”, que significa jogo de dados ou qualquer outro jogo de azar.

Page 90: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

88

acaso. Uma das primeiras peças de Cage a empregar o I-Ching na composição foi

Music of Changes, de 1951, para piano solo.21

A idéia de escrever uma partitura que sirva apenas como um roteiro para a

improvisação não era novidade na década de 1950, já que os tecladistas

franceses do século XVIII, como François Couperin, praticavam esse tipo de

escrita em um gênero chamado prélude non mesuré (prelúdio sem medida), em

que apenas esboçavam algumas notas e escreviam linhas que indicavam

vagamente como a música deveria ser executada.

Entre os tipos de aleatoriedade, os mais comuns nas décadas de 1950-70

foram:

Indeterminação no ato da composição

A partitura final aparece escrita em detalhes, com indicação de notas,

ritmos, articulações, dinâmica e outros elementos. O processo aleatório ocorre

durante a composição, quando o compositor não decide por sua própria conta o

que irá acontecer, mas emprega algum método randômico para elaborar a obra.

Este é o caso de Musico of Changes, em que Cage jogava I-Ching para definir os

elementos da composição. Para o intérprete, porém, a música está escrita de

maneira convencional.

Indeterminação na interpretação musical

O compositor define precisamente o que pretende, desde o tipo de som que

quer (grave, médio, agudo), sua intensidade (forte, média ou suave), sua

articulação (legato, staccato, etc.), seu timbre, etc. Ao ter definido para si o que

pretende que ocorra na música, busca uma forma de escrever a música que

permita ao intérprete improvisar. O nível de improvisação por parte do intérprete

pode ser relativamente reduzido, como ocorre no aleatorismo controlado de Witold

Lutoslawiski, como pode ser completo, como nos ensaios sonoros de Koellreutter.

21 Não é casual o fato de que I-Ching significa, em chinês, Livro das Mutações e a peça de Cage se chama Música das Mutações.

Page 91: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

89

Indeterminação na composição e na execução

Os métodos aleatórios também podem aparecer tanto na composição

quanto na execução, quando o compositor deixa o intérprete completamente livre

para tomar decisões quanto a como executar a música. Neste caso, a partitura

pode ser considerada como sendo prescindível, pois o músico poderia

perfeitamente realizar aquela música mesmo sem ler o que está escrito na

partitura. De qualquer forma, este tipo de partitura atua como estímulo para a

criatividade dos músicos.

Um exemplo de aleatorismo em todos os níveis está na peça Stripsody de

Cathy Berberian, em que há desenhos e grafismos na partitura que apenas

servem de inspiração visual à fantasia do intérprete. A compositora não apresenta

qualquer restrição quanto ao que pode ou não pode ser feito para realizar a

música.

Entre os tipos de escrita musical aleatória, podem ser reconhecidos três

tipos básicos:

1. Notação em módulos, em que os detalhes da composição são

precisamente grafados, sendo que a ordem das ocorrências fica a cargo do

intérprete. Assim, a música é escrita em módulos e a forma geral da música, ou

seja, ordem em que os módulos irão aparecer é deixada à escolha dos

executantes;

2. Notação em forma de roteiro, na qual os detalhes da composição são

escritos de forma imprecisa e deixados à vontade do intérprete, sendo que a

estrutura geral da música é predeterminada pelo compositor;

3. Combinação dos dois métodos anteriores, em que tanto os elementos

particulares quanto sua justaposição no tempo são deixados à escolha dos

executantes.

Page 92: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

90

Earle Brown John Cage

Page 93: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

91

MÚSICAS DA ATUALIDADE

A definição do que se entende por música contemporânea sempre está

sujeita a discussões. Atualmente, alguns autores preferem considerar por música

contemporânea aquela que compreende o período desde o final da Segunda

Guerra, outros preferem considerar desde a década de 1960, outros ainda

demarcam a música contemporânea a partir da década de 1980. Cada autor

define critérios distintos e, com base nesses critérios, delimita um período de

tempo mais amplo ou mais estrito para o que entende como sendo a música atual.

Em sentido lato, o vocábulo ‘contemporâneo’ refere-se àquilo que convive

no mesmo período de tempo. Esse seria o sentido mais adequado para

considerarmos o que é a música contemporânea e qual o período de tempo que

abrange. Entretanto gera certa dificuldade, pois, um músico vivo e atuante em

2008, como Elliott Carter, nascido em 1908, conviveu, na juventude, com a criação

do Dodecafonismo (1924) ou, mais tarde, viu os primeiros passos da música

concreta (1948). Para um jovem estudante nascido em 1990, porém, o surgimento

do método dodecafônico está mais distante no tempo do que a ópera Tristão e

Isolda (1854), de Wagner, está com relação ao nascimento de Carter22. Em outras

palavras, nem tudo que é contemporâneo em relação a uma pessoa de cerca de

100 anos, seria para outra pessoa de cerca de 20 anos.

Isso conduz à necessidade de definir algum critério extratemporal para

delimitar a contemporaneidade musical. Por isso, consideraremos, como música

contemporânea, aquela produzida a partir da década de 1960, pelo fato de que é

nesta época que surgem princípios, métodos e valores que se distinguem da

música anterior e que são comuns à maior parte dos músicos da atualidade.

Entre esses princípios, estão a crítica ao Historicismo, a descrença em

relação às vanguardas históricas e seus experimentos, a pesquisa de novos

processos narrativos, a busca de novas formas de comunicação, a simplificação

22 A ópera Tristão e Isolda estreou em 1854, isto é, 54 anos antes no nascimento de Elliott Carter (1908). A primeira peça dodecafônica de Arnold Schoenberg, a Suíte Op. 25, foi criada em 1924, 66 anos antes do nascimento desse jovem hipotético em 1990.

Page 94: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

92

de meios e métodos de composição, a investigação de todo tipo de manifestação

musical e sua incorporação na produção hodierna e a valorização da diversidade

em vários níveis da produção cultural.

Neste sentido, podem-se considerar certos movimentos da década de 1960,

como o Minimalismo, tipos de manifestação musical que estão no limiar entre o

moderno e o contemporâneo, pois assim como mantêm valores modernistas,

como a originalidade e a valorização da estrutura acima de outros aspectos

musicais, apresentam-se com características pós-modernas como a reintegração

da simplicidade e o interesse nos processos auditivos explícitos.

O que está posto acima não significa que os valores modernos tenham sido

superados, pois há um grande contingente de músicos contemporâneos que

permanecem atuando no âmbito desses princípios. Alguns teóricos têm chamado

esses artistas de Ultra-Modernos e sua prática pode ser considerada como Pós-

Vanguarda ou Neo-Vanguarda.

Os movimentos da música contemporânea podem ser compreendidos entre

aqueles que dão continuidade à experiências da Modernidade, outros que se

esforçam por retomar tradições recentes ou afastadas no tempo e as tendências

pós-modernas que incorporam outros elementos ao Modernismo histórico. Alguns

desses movimentos tiveram seu surgimento no decênio de 1960, juntamente com

a Contracultura, outros foram surgindo ao longo dos anos 1970, 1980 e 1990.

Entre eles, destacam-se a Música Espectral, a Nova Complexidade, a Nova

Simplicidade, o Ultrarromantismo, o Pós-Minimalismo, a Poliestilística e as

experiências multimídia.

Page 95: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

93

Movimentos da Década de 1960

A década de 1960 caracterizou-se por diversos movimentos de contestação

social, política e cultural. Em todos os campos da sociedade ocidental houve

alguma transformação no nível do comportamento e das relações sociais. Em

geral, pode-se chamar a soma desses movimentos de Contracultura.

A Contracultura é freqüentemente associada ao movimento Beatnik da

década de 1950, que contestava a multidão de cidadãos de classe média

satisfeitos e a ausência de pensamento crítico, na sociedade norte-americana, e

ao movimento Hippie da década de 1960, que deflagrou manifestações

antibelicistas e libertárias em vários países, como a luta contra a Guerra do Vietnã

nos Estados Unidos, a Primavera de Praga na Tchecoslováquia e Maio de 68 na

França. Se esses movimentos estão entre os mais destacados da Contracultura,

ela não permaneceu apenas no nível da cultura popular e dos meios de

comunicação de massa, como o conhecido Festival de Woodstock.

Artistas e pensadores de várias áreas do conhecimento também

participaram e estiveram à frente de alguns movimentos, nesse período. Um

exemplo é o grupo Fluxus, que reuniu artistas de várias áreas em torno da crítica

aos meios de produção, apresentação e divulgação da arte tradicional. Entre os

membros do Fluxus estavam artistas contestadores como o lituano George

Maciunas e o alemão Joseph Beuys, o videomaker coreano Nam June Paik, o

músico norte-americano John Cage e a artista plástica japonesa Yoko Ono.

Entre os pensadores que trabalharam nessa linha de atuação, está o

historiador Theodore Roszak (1933), que cunhou a expressão ‘contracultura’ em

sua obra The Making of a Counter Culture (1968), o filósofo alemão Herbert

Marcuse (1898-1979), ligado à Escola de Frankfurt e uma espécie de ideólogo do

movimento contracultural na Europa, o sociólogo canadense Marshall McLuhan

(1911-1980), que foi um dos primeiros teóricos a destacar a importância que os

meios de comunicação de massa poderiam assumir nas transformações sociais e

comportamentais. Já na década de 1960, McLuhan criou expressões como “o

meio é a mensagem” e “aldeia global” para referir-se às características das

Page 96: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

94

sociedades pós-modernas que poderiam ser aproximadas através de novas

formas de comunicação.

A soma desses movimentos e formas de pensamento terminou por

influenciar profundamente as artes, o comportamento, as relações interpessoais e

inclusive o vestuário, nas últimas décadas. No campo específico da música de

concerto, tem início a busca pela diversidade de materiais sonoros, oriundos de

diferentes fontes: músicas antigas, orientais, africanas e populares. Isso revela o

afastamento com relação ao purismo das vanguardas do pós-guerra, que

evitavam qualquer referência externa e sustentavam que a produção artística

deveria primar pela originalidade e tornar-se independente da tradição cultural.

Minimalismo

O termo ‘Minimalismo’ associado à música foi empregado pela primeira vez

em 1968, em um artigo do compositor inglês Michael Nyman23. A música

minimalista originou-se de músicos que tinham fortes relações com artistas de

outras artes, principalmente cinema, o teatro e as artes visuais. Os dois músicos

mais destacados dessa tendência, Philip Glass e Steve Reich, iniciaram suas

trajetórias compondo peças para serem apresentadas em aberturas de exposições

dos novos artistas de Nova York, como Carl Andre e Sol Le Witt, e tocando nessas

mesmas exposições.

Extremamente influentes na gênese do minimalismo, estão dois músicos

nascidos em 1935: La Monte Young e Terry Riley. Alguns dos processos

peculiares da música minimalista foram absorvido de métodos utilizados por esses

dois compositores, que influenciaram profundamente Glass e Reich.

Entre as características mais evidentes do Minimalismo estão a valorização

do processo, a importância do aspecto conceitual na arte e a primazia pela

construção maquinal ou automática. Para o artista minimalista Sol Le Witt, criador 23 Há um fato de terminologia que ocorre em inglês, língua na qual a arte minimalista aparecia originalmente como “minimal art” (arte mínima), sendo que foi na música que a expressão Minimalism apareceu, no artigo de Nyman. É interessante notar que, assim como Philip Glass, Nyman tornou-se internacionalmente conhecido através de sua música para cinema, principalmente nos filmes de Peter Greenaway e nas trilhas para os filmes O Piano (Jane Campion, 1993), Gattaca (Andrew Niccol, 1997) e Fim de Caso (Neil Jordan, 1999).

Page 97: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

95

da expressão “arte conceitual”, a idéia deveria ser a “máquina que executa o

trabalho artístico”, que para ele resultaria em uma “arte de idéias” e em objetos

artísticos, porém não necessariamente em obras de arte. Os objetos da arte

mínima são construídos em escala industrial, pondo em xeque o enaltecimento do

das técnicas artísticas tradicionais e as habilidades de execução artesanal. Com

isso, também se exclui o gosto pessoal e o traço característico realizado pela mão

do artista.

Na música, esses aspectos são evidenciados através do foco na

transformação sonora efetivada ao longo de determinado período de tempo. Isso

leva a mudanças lentas e gradativas que tornam o processo musical claramente

perceptível. Assim, o tempo musical não se divide em partes, mas é organizado

como um fluir constante, uma estrutura estável que produz o que se costuma

chamar de continuum sonoro. Outras características da primeira fase minimalista

são: organização rítmica periódica e regular, construção de linhas melódicas

simétricas e estrutura harmônica simples, sem progressões, em que os acordes

apenas se sucedem uns aos outros sem gerar progressões.

Uma das técnicas mais importantes da música minimalista chama-se

phasing, que se realiza através da justaposição de períodos de sincronia e

assincronia, na sobreposição das diferentes partes que constituem a textura

sonora. Os elementos simultâneos são colocados, ora em fase, ora em

defasagem, gerando pequenas nuanças de contraponto, muitas vezes com base

em uma única melodia que percorre todas as vozes. Segundo Steve Reich, este

método veio à sua mente na elaboração de sua primeira composição, It’s Gonna

Rain. Após gravar um discurso do pastor Brother Walter dizendo as palavras "it's

gonna rain", Reich as reproduziu em dois gravadores com rotações distintas. A

declamação do texto iniciaria nos dois gravadores em fase que, pouco a pouco,

entrariam em defasagem, gerando combinações rítmicas complexas e texturas tão

densas que o sentido do texto deixaria de ser compreendido.

Outro método característico da música minimalista é o processo aditivo, que

ocorre através da justaposição de elementos no tempo. Para Philip Glass, há dois

tipos de processo aditivo: linear e em grupo.

Page 98: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

96

No Minimalismo, é comum o crescimento da música ser realizado através

do acréscimo de notas, uma a uma, para construir uma linha melódica. O

processo aditivo linear ocorre pela adição das notas de determinada melodia, na

ordem em que essas notas irão aparecer no resultado final. Em uma melodia de

seis notas, por exemplo, toca-se a primeira nota e deixa-se passar o restante do

tempo que completaria as seis notas, com pausas. Em seguida, tocam-se as duas

primeiras notas e espera-se o restante do tempo; tocam-se as três primeiras

notas, e assim por diante.

O exemplo abaixo, realizado com números que indicam a ordem das notas,

em um conjunto de seis notas, demonstra o processo (os números indicam as

notas da melodia e os traços indicam pausas).

1 - - - - - 1 2 - - - - 1 2 3 - - - 1 2 3 4 - - 1 2 3 4 5 - 1 2 3 4 5 6

Digamos que essas seis notas fossem um baixo de milonga. O processo

seria construído desta maneira:

Page 99: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

97

O processo aditivo em grupo é realizado pela adição das notas que formam

a melodia de forma aleatória, isto é, fora da seqüência das notas que formam a

melodia. Assim, pode iniciar com a segunda nota, depois entra a sexta, em

seguida, a quarta, e assim por diante. O exemplo abaixo demonstra esse

processo.

- 2 - - - - - 2 - - - 6 - 2 - 4 - 6 1 2 - 4 - 6 1 2 3 4 - 6 1 2 3 4 5 6

Se o mesmo baixo de milonga anterior fosse construído com base no

processo aditivo em grupo conforme o quadro acima, o resultado seria este:

A partir da década de 1960, os músicos minimalistas passaram a incorporar

outros métodos, derivados principalmente da música indiana e da música africana.

Isso certamente foi o resultado das experiências vividas por Steve Reich, que

passou dois anos em Gana, e Philip Glass que manteve contato com a música

indiana através de Ravi Shankar. Atualmente, esses músicos afirmam não mais

praticarem música minimalista. Os que eles e outros que seguem seus passos

realizam atualmente costuma ser denominado como Pós-Minimalismo.

Page 100: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

98

John Adams, um dos principais compositores pós-minimalistas, afirma que

incorpora, aos métodos minimalistas utilizados em suas obras, aspectos da

música tradicional européia juntamente com elementos de jazz e música pop

norte-americana. Além disso, alguns compositores atuais estão estudando e

integrando elementos do Extremo Oriente, especialmente da música tradicional

chinesa, em obras de caráter minimalista.

Entre os compositores minimalistas e pós-minimalistas, estão: La Monte

Young (EUA, 1935), Terry Riley (EUA, 1935), Arvo Pärt (Estônia, 1935), Steve

Reich (EUA, 1936), Philipp Glass (EUA, 1937), Michael Nyman, (Inglaterra, 1944),

John Adams (EUA, 1947), Dave Heath (Inglaterra, 1956) e Dimitri Cervo (Brasil,

1968).

Steve Reich Philip Glass

Page 101: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

99

Poliestilística

A Poliestilística é uma técnica empregada por músicos pós-modernistas que

buscam hibridismo estilístico, o que é realizado através de entrecruzamento de

referências estéticas, materiais sonoros díspares e processos de composição

derivados de diferentes épocas e lugares. Algumas das práticas pós-minimalistas

e outras tendências pós-modernas têm sido influenciadas pelos métodos da

Poliestilística, que propõe rupturas com o dualismo que propagava diferenças

entre estilos considerados elevados e baixos, estruturas simples e complexas,

gêneros eruditos e populares, música do passado e música atual, música regional

e universal, alta tecnologia e baixa tecnologia, etc.

A obra de referência para a poliestilística é a Sinfonia (1969), de Luciano

Berio (1925-2003), que enumerou, entre as citações existentes na Sinfonia,

trechos musicais de Bach, Berlioz, Brahms, Strauss, Mahler, Stravinsky,

Schoenberg, Boulez e Stockhausen, fragmentos de Lévi-Strauss (O Cru e o

Cozido) e Beckett (O Inominável), além de excertos de um discurso de Martin

Luther King, pronunciado pouco antes de seu assassinato. A citação mais

importante, porém, é o Scherzo da Sinfonia Nº 2 de Mahler, que aparece na

terceira parte da obra como “um esqueleto que sempre surge de corpo inteiro

cuidadosamente vestido e depois desaparece e torna a aparecer... mas nunca

está sozinho: acompanha-o a ‘história da música’ que ele próprio desperta em

mim, com toda a sua pluralidade de níveis e abundância de referências” (Berio).

Um dos procedimentos fundamentais da Poliestilística é a técnica de

colagem, que existe na pintura desde o Cubismo Analítico, quando artistas como

Pablo Picasso, Georges Braque e Juan Gris, a partir de 1912, passaram a colar

objetos sobre suas telas, em vez de somente pintá-las. Os objetos colados eram

aproveitados da vida cotidiana, como recortes de jornal e anúncios publicitários,

texturas apropriadas de objetos como cadeiras, etc. Em música, o conceito de

Poliestilística foi elaborado pelo compositor russo Alfred Schnittke (1934-1998),

que o divulgou em seu ensaio As Tendências Poliestilísticas na Música Moderna

(1989). Assim, cria-se uma nova peça de música na qual são justapostos e

Page 102: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

100

sobrepostos diferentes materiais sonoros, que podem ser oriundos de épocas, de

regiões ou de estilos diferentes.

Para Schnittke, há dois métodos de colagem: a citação e a alusão. A

citação ocorre quando um trecho de uma obra musical existente é literalmente

citado em outra obra, o que pode ocorrer através de elementos reconhecíveis,

principalmente a melodia ou o ritmo, ou por características menos salientes,

porém importantes em certos estilos, como a harmonia, a textura e o timbre. A

alusão é realizada através da simulação de elementos estilísticos característicos

de uma peça musical, da obra de um compositor, de uma escola ou de uma

época, sem, contudo, empregar qualquer melodia ou ritmo preexistente.

Outra forma possível de aproveitamento de elementos de trechos de peças

da tradição é a apropriação. Em artes visuais, esta é uma atitude relativamente

comum. Sherry Levine faz fotografias de obras de outros fotógrafos e expõe como

sendo apropriação, isto é, um trabalho seu com base na obra de outro artista.

Inclusive, este pode ser um interessante ato subversivo, de crítica ao sistema

sócio-econômico que rege o mercado de arte, pois dessacraliza a aura que

envolve a autoria de uma imagem e a reduz a um mero objeto que pode ser

livremente reproduzido. Um bom exemplo de apropriação musical aparece na

Sinfonia de Berio, já mencionada, em que o Scherzo da Segunda Sinfonia de

Mahler é inteiramente apropriado, no terceiro movimento, sobre o qual são

acrescentadas outras camadas de significação.

Essas atitudes e procedimentos têm conduzido à diluição do conceito de

autoria, pois uma peça musical pode ser apenas o resultado da combinação de

elementos oriundos de outras obras, o que pulveriza a condição do autor. Assim,

também se retorna ao conceito originário de composição. Em um sentido lato,

compor significa dar forma a uma estrutura por meio da combinação de elementos

diferenciados entre si. Foi nesse sentido que o vocábulo composição passou a ser

empregado na criação musical. Na Idade Média, época em que não se conhecia,

ou não se valorizava o princípio da originalidade, considerava-se que um músico

era tão melhor compositor quanto mais elementos preexistentes ele aproveitava

em sua obra. Nesse período, toda a música polifônica era escrita a partir de um

Page 103: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

101

cantus firmus, uma melodia tradicional que servia de base para a composição e

sobre a qual eram escritas outras vozes em contraponto.

No século XII, músicos da Escola de Notre Dame de Paris, como Perotinus

Magnus, tornaram-se conhecidos por sua técnica de composição altamente

refinada, pois eram capazes de aproveitar trechos musicais com duas ou três

vozes, previamente escritos por outros músicos, e acrescentar uma nova voz tão

elaborada quanto aquelas já existentes. Isso era o máximo, no domínio da

composição de partes sobrepostas, pois, do ponto de vista das rigorosas técnicas

de contraponto da época, era mais difícil aproveitar uma música preexistente e

acrescentar uma nova parte polifônica do que escrever uma peça inteiramente

nova, onde seria possível escolher livremente a combinação das partes em

contraponto. O que importava, na época, era o resultado alcançado, do ponto de

vista da sonoridade e funcionalidade social, o que parece estar sendo retomado

pelos músicos contemporâneos que se dedicam às práticas da Poliestilística.

Entre os músicos atuais que incorporam elementos da Poliestilística, estão:

Louis Andriessen (Holanda, 1939), John Adams (EUA, 1947), Michael Daugherty

(EUA, 1954), Eduardo Seincman (Brasil, 1955), Tan Dun (China, 1957), Osvaldo

Golijov (Argentina, 1960), Benjamin Yusupov (Tajikistão, 1962), Aliosha Solovera

(Chile, 1963) e Thomas Adès (Inglaterra, 1971), entre outros.

Alfred Schnittke

Page 104: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

102

Movimentos das Décadas de 1970-80

Música Espectral

A expressão Música Espectral foi usada pela primeira vez em um artigo de

Hughes Dufourt: Música espectral: por uma prática das formas de energia (1979).

Esta é uma tendência que surge em oposição à extrema racionalização de certos

grupos de vanguarda do período Pós-Guerra, como o Serialismo Integral e a

construção musical embasada em cálculos que prescindem de fundamentos

acústicos, na elaboração das relações entre os sons da composição.

Os proponentes de música espectral queriam retornar à análise das

relações acústicas básicas existentes em um único som, geralmente com o auxílio

de programas de computador e analisadores eletrônicos do espectro harmônico a

partir de sons fundamentais. Buscaram suas referências em autores antigos e

modernos que analisaram a formação do som, desde Pitágoras, Mersenne e

Helmholtz, até Busoni, Hindemith e Cowell. Os espectralistas fazem crítica tanto

aos princípios da música tonal tradicional quanto da música serial, ambas

embasadas na divisão arbitrária da oitava em 12 partes. Defendem a divisão da

oitava em tantas partes quantas possam ser audíveis e propõem a organização

desse material com base na análise do som propriamente dito, e não de sistemas

ou cálculos exteriores à natureza sonora.

Com isso, ampliam as possibilidades de experiência com elementos

microtonais existentes no espectro sonoro e muitas vezes utilizam recursos

eletrônicos para análise, ordenação e manipulação dos sons considerados

“naturais”.

Entre os compositores de música espectral estão: Horatiu Radulescu

(Romênia, 1942-2008), Iancu Dumitrescu (Romênia, 1944), Gérard Grisey

(França, 1946-1998), Tristan Murail (França, 1947), Michaël Levinas (França,

1949), Kaija Saariaho (Finlândia, 1952) e Joshua Fineberg (EUA, 1969).

Page 105: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

103

Nova Simplicidade

As tendências de simplificação de materiais sonoros e de processos de

elaboração musical têm levado parte dos compositores atuais a empregar

indiscriminadamente elementos derivados da música minimalista, tradições tonais

(séc. XVII-XIX) e recursos modais existentes em músicas antigas e medievais,

práticas orientais, culturas autóctones e do Leste europeu, para a criação de

novas narratividades musicais através da combinação de sonoridades díspares ou

conhecidas em novos contextos de significação.

A Nova Simplicidade, um dos movimentos que se destaca neste contexto, é

uma tendência de caráter subjetivo-intuitivo que se rebelou contra as correntes de

vanguarda das décadas de 1950-60, nas quais predominavam a objetividade, o

cálculo e a construção serial. O movimento surgiu em finais da década de 1970,

em Colônia, na Alemanha, e permanece como uma das tendências mais fortes da

música contemporânea.

Os dois músicos que deram o impulso inicial à Nova Simplicidade são

Walter Zimmermann e Wolfgang Rihm, que, nesta época, praticavam uma espécie

de atonalismo lírico, ou seja, incorporaram, à tradição atonal da música germânica

do início do século XX, elementos de forte variedade expressiva, com melodias

amplas e ritmos mais regulares, retorno a um contraponto claro e transparente e

reincorporação de aspectos derivados da música tonal, como o uso de tríades em

sua conformaçã pura.

Outros músicos, não necessaramente ligados ao movimento da Nova

Simplicidade, têm praticado a simplificaçõa de materiais sonoros e sua construção

de forma mais ou menos ordenada, assimilando sonoridades do passado, suas

técnicas de construção e seus meios expressivos. Entre os movimentos que têm

enveredado por este terreno, estão o Pós-Minimalismo, o Neotonalismo, o

Neomodalismo, o Ultrarromantismo e a Nova Expressividade. Um dos

compositores mais destacados, neste campo, é o estoniano Arvo Pärt, que

assimila elementos minimalistas a métodos da música medieval e ao modalismo

do Leste europeu em peças corais de caráter solene e religioso.

Page 106: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

104

Os praticantes da Nova Simplicidade ou compositores que embasam sua

obra na simplificação dos meios sonoros são, entre outros, Einojuhani Rautavaara

(Finlândia, 1928), Arvo Pärt (Estônia, 1935), Frederic Rzewski (EUA, 1938), Leo

Brower (Cuba, 1939), Klarenz Barlow (Índia, 1945), Walter Zimmermann

(Alemanha, 1949), Wolfgang Rihm (Alemanha, 1952), Régis Campo (França,

19??), Thomas Adès (Inglaterra, 1971), Lera Auerbach (Rússia, 1973)

Wolfgang Rihm John Admas

Nova Complexidade

Corrente ultramodernista que surgiu na Inglaterra, no início dos anos 1980,

em reação direta às novas tendências de simplificação do material sonoro e das

estruturas musicais, como o Minimalismo, o Neotonalismo e a Nova Simplicidade.

Daí o nome dado ao movimento. Acredita-se que a expressão “nova

complexidade” tenha sido empregada pela primeira vez por Nigel Osborne, sendo

que aparece escrito pela primeira vez no artigo Quatro Facetas da Nova

Complexidade (1988), do musicólogo Richard Toop.

Os pioneiros da Nova Complexidade são os compositores Brian

Ferneyhough e Michael Finnissy, que buscavam novos meios de seguir no

Page 107: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

105

caminho aberto pelo Atonalismo e pelo Serialismo, com base na chamada música

estocástica de Xenakis e no princípio de modulação métrica de Carter. Suas

principais referências são a música de Elliott Carter (EUA, 1908), Iannis Xenakis

(Grécia, 1922-2001), Pierre Boulez (França, 1925) e Luciano Berio (Itália, 1925-

2003), entre outros.

A Nova Complexidade caracteriza-se pela escrita musical extremamente

rica e complexa, muitas vezes quase impossível de decifrar. Esta é uma das

intenções desses compositores: fazer com que os intérpretes dediquem-se

exaustivamente às suas obras e descubram maneiras pessoais de resolver os

problemas de execução e interpretação colocados nas partituras. Em alguns

casos, por exemplo, são escritas mais notas do que é possível tocar em

determinado período de tempo, ou um acorde tem mais notas do que a

possibilidade do instrumento para o qual é escrito. Isso faz com que o músico

tenha que escolher quais, dentre as notas escritas, irá realmente tocar e quais terá

que deixar de fora da execução. Dessa maneira, o intérprete torna-se uma espécie

de co-autor da obra, pois se vê obrigado a tomar decisões geralmente

consideradas como sendo do campo da composição.

Em termos de sonoridade, este tipo de música mantém vários elementos

derivados das vanguardas do Pós-Guerra, tais como: técnicas instrumentais

expandidas, ausência de linhas melódicas, ritmos irregulares e aperiódicos,

combinações incomuns de instrumentos, valorização da textura e do timbre,

contraponto intrincado e estruturas assimétricas, entre outras características.

Considera-se que, entre os compositores mais jovens, há duas tendências

derivadas da Nova Complexidade da década de 1980:

Atenção aos mínimos detalhes e às microestruturas, a partir das

experiências de Ferneyhough;

Atenção à macroestrutura e à forma geral, tomada como um todo, com

base nos ensinamentos de Finnissy;

No mesmo campo da Nova Complexidade, está uma tendência que vem se

colocando diretamente contra o Minimalismo e, por isso, frequentemente chamada

Page 108: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

106

de Maximalismo. Um dos principais propagadores desse movimento é o brasileiro

Florivaldo Menezes Filho, que tem publicado textos e divulgado suas composições

sob o pseudônimo de Flo Menezes.

Para ele, “o maximalismo refere-se a toda e qualquer escuta da complexidade, a uma condição labiríntica ou, para falarmos com Luciano Berio [...] ‘laboríntica’ da escuta. A um labirinto decorrente de duro ‘labor’ e, no qual, como quer Pierre Boulez, possamos nos perder. [...] Em suma: toda obra fenomenologicamente complexa implica maximalismo, e isto se estende [...] a todos aqueles que, em seus respectivos tempos, constituíram a vanguarda mais autêntica da composição. Determinadas condições históricas, das quais se originam proposições tão inevitáveis quanto necessárias, acabam por gerar conseqüências especulativas que enveredam por outros caminhos (ou até mesmo descaminhos), mesmo que as portas dos sistemas anteriores insistam em permanecer abertas, principalmente para espíritos menos arrojados e mais conservadores.

Entre os compositores mais destacados da Nova Complexidade, estão:

Brian Ferneyhough (Inglaterra, 1943), Michael Finnissy (Inglaterra, 1946), Nigel

Osborne (Inglaterra, 1948), James Dillon (Escócia, 1950), Franklin Cox (EUA,

1961), Florivaldo Menezes Filho (Brasil, 1962), Liza Lim (Austrália, 1966) e Aaron

Cassidy (EUA, 1976).

Gérard Grisey Brian Ferneyhough

Page 109: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

107

Últimas décadas

As últimas décadas, de 1990 até o final da primeira década do século XXI,

têm-se caracterizado pela diversidade de abordagens estéticas sobre a música e

as artes em geral.

Há um grande contingente de músicos que está se dedicando à pesquisa

de correlações entre a música e outras artes, não apenas no sentido do uso da

música em outros campos, como trilha sonora para teatro, vídeo ou cinema, como

também se expandem as possibilidades de colaboração entre diferentes artistas,

no sentido de criarem obras conjuntas. Com isso, também se dilui a noção de

autoria, que passa a ser coletiva ou colaborativa.

Com a expansão tecnológica dos meios de comunicação, como a Internet,

atualmente há vários artistas que se limitam a dar o impulso inicial para a criação

de uma obra, a qual vai sendo elaborada e transformada por outros inúmeros

agentes, de várias partes do mundo, sendo eles também artistas, ou não. Assim,

com base naquele passo dado pela música aleatória dos anos 1950-60, em que o

compositor escrevia a partitura de forma indeterminada, como um roteiro que viria

a tornar o intérprete uma espécie de co-autor, ou na Nova Complexidade, que

também exige a participação ativa do intérprete na tomada de decisões

compositivas, os meios tecnológicos atuais possibilitam que essa noção de autoria

colaborativa seja expandida de maneira impensável há algumas décadas,

ultrapassando os limites da tríade criador → intérprete → ouvinte.

Naturalmente, novas possibilidades levam artistas a reagirem aos meios de

produção e divulgação, gerando transformações em todos os parâmetros da

criação. Um bom exemplo disso é a nova sinfonia do chinês Tan Dun, intitulada

Sinfonia Internet Nº. 1 (Heróica), com cerca de cinco minutos de duração, escrita

para uma orquestra virtual montada pela equipe do You Tube. Essa orquestra está

sendo chamada de You Tube Symphony Orchestra e contará com músicos de

todas as partes do globo que se encontrarão on-line e, posteriormente, realizarão

concertos em salas internacionais, como o Carnegie Hall de Nova Iorque. O

Page 110: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

108

regente será Michael Tilson Thomas, reconhecido intérprete de música moderna e

contemporânea.

Além dessa, há várias outras experiências colaborativas com auxílio de

meios tecnológicos, das quais tomam parte músicos como Philp Glass, Meredith

Monk, Osvaldo Golijov e Thomas Adès, entre outros.

Tendências Pós-Modernas

O conceito de pós-moderno, no sentido em que tem sido empregado nos

últimos 30 anos, foi formulado pelo filósofo francês Jean-François Lyotard, em seu

texto O Pós-Moderno (1979). O autor percebe uma mudança de atitude em

relação aos sistemas tradicionais, que permeia a práxis ocidental desde a década

de 1960. Para ele, os métodos de explicação da realidade entraram em processo

de crise ou declínio nas últimas décadas. Em primeiro lugar, o pensador entende

que o conhecimento científico é apenas uma das formas de compreensão do

mundo, que convive com outras formas de saber (mitológico, artístico, etc.), isto é,

o conhecimento científico é considerado como mais um dentre os discursos

acerca da realidade.

Este ponto de vista de que o conceito de ciência pode mudar de geração a

geração, conforme os critérios da comunidade científica, já havia sido apresentado

pelo filósofo da ciência Thomas Kuhn, em sua obra Estrutura das Revoluções

Científicas (1962). Karl Popper, que discutia com Kuhn na década de 1960,

também elaborou conceitos sobre filosofia da ciência que se tornaram bastante

difundidos, como a noção da falibilidade da teoria científica, segundo a qual, uma

teoria para ser considerada científica deve ser limitada a determinadas

circunstâncias e necessita ter seus pontos frágeis explicitados. Para Popper,

qualquer teoria que pretenda abarcar a totalidade da realidade, sem qualquer

possibilidade de falha, é mito, fabulação ou pseudociência.

Sendo assim, o conhecimento está sujeito a critérios de legitimação que

podem mudar de geração a geração, de acordo com os valores de cada grupo ou

comunidade científica. Com isso, a noção de sistemas totalizantes de explicação

da realidade, como o Racionalismo, a Mecânica ou o Historicismo, terminaram

Page 111: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

109

cedendo espaço a explicações contextuais, localizadas em situações específicas e

existentes conforme as condições do que é possível em cada situação. Isso

significa a decadência dos sistemas universais em função da valorização do

circunstancial e sua multiplicidade, das características do particular e do que lhe é

peculiar.

Nas artes, esses conceitos estão ligados ao declínio das grandes formas e

gêneros tradicionais e à queda dos grandes sistemas de elaboração e construção

artística, como a Perspectiva na pintura, o Romance na literatura e o Tonalismo na

música. Percebe-se a pureza de estilo sendo substituída por uma profusão gostos

que prima pela fusão de gêneros e formas derivados de diferentes tradições. Se,

no Modernismo, cada artista praticava e defendia valores particulares, o pós-

moderno caracteriza-se pela diversidade de valores em um único artista e muitas

vezes em uma única obra. Assim, o amplo debate entre os expressionistas, que

praticavam música atonal e dodecafônica, e os neoclássicos, que aproveitavam

elementos tonais ou modais de culturas populares, seria resolvido por um

compositor pós-moderno através de uma obra em que partes atonais seriam

alternadas com trechos tonais e sobrepostas a ritmos e melodias autóctones. Isso

é o que acontece, por exemplo, na Paixão Segundo São Marcos (2000), do

argentino Osvaldo Golijov.

Para Jonathan Kramer (EUA, 1942-2004), pós-moderno, em música,

significa mais uma atitude sócio-cultural do que um estilo ou um período histórico

propriamente dito. O autor enumera 16 características da música pós-moderna:

1. não é simplesmente um repúdio ao modernismo, pois possui tanto aspectos

de ruptura quanto de continuidade;

2. é irônico, de alguma forma e em algum nível;

3. não respeita fronteiras entre sonoridades e procedimentos do passado e do

presente;

4. desafia as barreiras entre estilos elevados e estilos baixos;

5. demonstra desdém em relação ao valor inquestionável da unidade

estrutural;

6. questiona a exclusividade mútua entre valores populistas e elitistas;

Page 112: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

110

7. evita formas totalizantes, isto é, não espera que uma peça seja inteiramente

tonal ou serial, por exemplo, nem se preocupa com moldes formais

preestabelecidos;

8. não considera música como uma atividade autônoma, mas como parte

relevante de contextos culturais, sociais e políticos;

9. insere citações ou referências a músicas de diferentes tradições e culturas;

10. considera a tecnologia não apenas como um meio de preservar ou

transmitir a cultura, mas como estando profundamente implicada na

produção e na essência da música;

11. inclui contradições;

12. despreza oposições binárias;

13. envolve fragmentos e descontinuidades;

14. engloba pluralismo e ecletismo;

15. sustenta a possibilidade de múltiplos significados e múltiplas

temporalidades;

16. situa significados e estruturas nos ouvintes, mais do que nas partituras e

suas execuções, ou nos compositores;

Em sentido estrito, costuma-se chamar de pós-moderno aos processos ou

práticas artísticas que se desenrolaram nas décadas de 1980 e 1990 com

algumas das características citadas acima. Em sentido amplo, os movimentos

artísticos que buscam a superação das vanguardas ou que se colocam fora do

tempo histórico, isto é, desprezam ou transcendem a noção de um evolucionismo

cultural linear, podem ser considerados pós-modernos. Pode-se dizer que a

atitude pós-moderna tem um caráter extemporâneo, no sentido de não pertencer

exclusivamente à sua época, mas a qualquer tempo concebível.

Assim, o movimento dadaísta, que primava pela ironia e pelo non sense,

pela paródia de manifestações do passado e do presente, pode ser entendido

como precursor das tendências pós-modernas. Também estariam neste campo,

músicos como Erik Satie, Charles Ives e John Cage, considerados por muitos

como prenunciadores da atitude pós-moderna em música. Entretanto, como esses

Page 113: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

111

músicos eram considerados excêntricos em suas épocas e seu comportamento

tornou-se mais frequente somente a partir da prolificação do período da

Contracultura, pode-se entender que o período pós-moderno teria sua origem

histórica na década de 1960 e se desdobra até os dias atuais.

Alguns músicos atuais trabalham em diferentes esferas de ação e transitam

entre diversas correntes estéticas. Este é o caso dos músicos da Nova Escola de

Nova Iorque, que organizam o Festival Bang on a Can e mantêm o Bang on a Can

All Stars, grupo de instrumentistas com formação em vários campos de atuação

(música erudita, música pop e jazz). Os compositores mais destacados do grupo

são Michael Gordon, David Lang e Julia Wolfe. Além de escreverem peças de

concerto, no sentido tradicional, esses músicos compõem canções em estilo pop

experimental e realizam improvisos de caráter jazzístico. Em um espetáculo do

Bang on a Can All Stars, podem ser apresentadas algumas peças de John Cage e

Steve Reich, uma peça de Tan Dun escrita especificamente para o grupo, um

arranjo de uma canção de Jimi Hendrix e uma adaptação de música do brasileiro

Hermeto Pascoal, entre outras possibilidades.

Além desses músicos, há vários outros, como Michael Daugherty, Tan Dun

e Osvaldo Golijov, que experimentam elementos derivados de correntes distintas

da música erudita contemporânea, como Minimalismo, Serialismo e Neotonalismo,

combinados a elementos de música popular ou autóctone. Daugherty compôs uma

peça para o Quarteto Kronos, chamada Elvis Everywhere, em que combina

elementos típicos da música para quarteto de cordas misturados a citações de

canções gravadas por Elvis Presley, interpretadas por cantores que o compositor

escolheu quando assistiu a um Congresso Internacional de Imitadores de Elvis.

Por essas razões, é comum que o mesmo músico atue em diversas áreas e, por

isso, possa estar presente em mais de um dos movimentos artísticos

mencionados acima.

Entre os músicos que têm produzido esta nova música, estão: Sofia

Gubaidulina (Rússia, 1931), Andrei Volkonsky (Suíça, 1933-set. 2008), John Zorn

(EUA, 1953), Michael Daugherty (EUA, 1954), Hélio Ziskind (Brasil, 1955), Michael

Gordon (EUA, 1956), David Lang (EUA, 1957), Tan Dun (China, 1957), Julia Wolfe

Page 114: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

112

(EUA, 1958), Osvaldo Golijov (Argentina, 1960), Régis Campo (França, 1968),

Ciarán Farell (Irlanda, 1969), Yitzhak Yedid (Israel, 1971), Thomas Adès

(Inglaterra, 1971) e Lera Auerbach (Rússia, 1973), entre outros.

Julia Wolfe Michael Daugherty

Page 115: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

113

Experiências Multimídia

As hibridizações levadas a cabo pelos músicos da Nova Escola de Nova

Iorque, Osvaldo Golijov, Tan Dun, Michael Daugherty e outros, geralmente estão

associadas a experiências com outras artes, em situações que não se resumem a

meras apresentações musicais, mas se manifestam como espetáculos multimeios,

com iluminação artisticamente elaborada, projeções de vídeo, seqüências

coreografadas e ações cênicas que projetam a experiência estética para além

daquela vivenciada em um concerto tradicional.

Tan Dun e o Quarteto Kronos têm desenvolvido, em conjunto e cada um ao

seu modo, um conceito a que chamam de Música Visual. Para David Harrington,

violinista do Quarteto Kronos,

o que estamos tentando fazer com Música Visual é dar a cada peça um cenário, um ambiente visual onde possa viver e respirar. Prevemos uma experiência que se desdobra continuamente, que é estranha e inesperada, onde os blocos construídos se transformam de modos imprevistos. Música Visual representa múltiplos pontos de vista sobre as relações entre música e percepção visual. Esperamos que os processos de ampliação, interpretação em vídeo e o uso de diferentes ângulos e pontos de vista permitam ao nosso público questionar sobre as mesmas perguntas que fazemos – o que é um instrumento, o que é uma nota, o que é um quarteto, onde a música começa e onde termina?

Nas últimas décadas, músicos de várias origens e tendências têm

trabalhado com música e multimeios. Por multimeios (ou multimídia), atualmente

entende-se a realização experimentos artísticos multíplices, tanto pelo uso de

ferramentas tecnológicas, especialmente vídeo e informática, quanto através da

criação transdisciplinar entre diferentes áreas do conhecimento. Assim, de alguma

forma, expande-se a noção de Poliestilística dos anos 1960-1980, que se dá não

somente pela hibridização de estilos e gêneros musicais, como também através

do cruzamento das diversas artes para alcançar um resultado peculiar. Rompe-se,

assim, mais uma daquelas oposições binárias, que vêm sendo desconstruídas ao

longo do último século: a dissociação das artes. Desde o teórico tcheco Eduard

Hanslick, em meados do século XIX, artistas e teóricos da tradição formalista vêm

propagando a impossibilidade de comunhão entre as artes ou de tradução de uma

Page 116: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

114

arte na outra. Aparentemente, esta é mais uma barreira que se vem rompendo nos

últimos anos por meio das experiências multimeios.

Esta é outra história que poderia ser contada sobre a música dos últimos

cem anos: a superação das dualidades, no campo musical. Pode-se começar com

Schoenbeg, que se propunha a realizar duas tarefas: a prosa musical e a

emancipação da dissonância. Com isso, o compositor vienense rompeu com três

conceitos da arte oitocentista: a separação entre poesia e prosa, a divisão do juízo

de gosto entre sonoridades consonantes e dissonantes e, o mais importante, a

quebra do conceito tradicional de Belo artístico. Para Schoenberg, o princípio do

Belo como critério de juízo estético seria substituído pela noção de Comunicação.

Arte comunica e é neste campo que pode ser considerada. Isso foi escrito em um

ensaio de 1946, intitulado Música Nova, Música Ultrapassada, Estilo e Idéia.

Outra ruptura importante para a música do último século foi a superação

dos conceitos de som musical e ruído. Já em 1913, o músico futurista Luigi

Russolo escrevia um ensaio intitulado A Arte do Ruído, em que propunha a

incorporação do ruído como som musical. O autor chegou a construir um

instrumento musical, ao qual chamava de intonarumori (entonador de ruídos).

Entretanto, foi somente com o advento da música concreta e eletroacústica que as

idéias de Russolo se propagaram com maior intensidade. A possibilidade de

manipular eletronicamente os elementos constituintes de um único som

fundamental fez com que qualquer tipo de sonoridade fosse incorporado à criação

musical.

Assim, modificou-se o conceito anterior, em que som musical e ruído eram

considerados incompatíveis. Atualmente, considera-se que som é tudo o que soa,

sendo que todo o som natural é complexo, ou seja, é constituído por várias partes

(fundamental e uma série de sons harmônicos). Há dois tipos de som: tom, que é

o som com altura determinada, isto é, aquele em que a fundamental se destaca do

restante do complexo sonoro e, por isso, pode-se reconhecer a nota (dó, ré, mi,

etc.) produzida por instrumentos tradicionais, como o violino ou o piano; ruído é

aquele som em que não há apenas uma fundamental que se destaca, mas no qual

se fundem diferentes fundamentais, revelando um som de altura indeterminada

Page 117: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

115

que pode ser produzido por instrumentos de percussão, como chocalhos e

tambores, ou por meios eletroacústicos. Há vários tipos de ruído, dos quais se

destacam o ruído branco, em que todas as freqüências de som concorrem como

fundamental ou, em outras palavras, não há qualquer fundamental perceptível,

como ocorre na cor branca, em que todas as freqüências de luz estão presentes; e

o ruído rosa, em que uma ou algumas poucas notas se destacam como

fundamentais em meio a um amálgama sonoro. Um exemplo de ruído branco é o

chiado de um rádio fora de sintonia, o ruído rosa pode ser percebido no som de

um aparelho de ar condicionado.

Posteriormente, na década de 1960 inicia-se um processo de superação

conceitual da estratificação da prática musical em camadas socialmente

diferenciadas. A estratificação convencional tem sua origem no século XVIII,

quando se discriminavam três camadas estilísticas: o estilo elevado, de caráter

afirmativo e enfático, representado pela música cortesã através de danças como o

minueto e a gavota; o estilo médio, de caráter ingênuo e agradável, que era a

representação da classe média e da burguesia através de danças ligeiras como a

giga e a bourrée; e o estilo baixo, de caráter rústico e despojado, representado por

danças populares ou de origem camponesa, como o ländler, gênero austríaco que

está na origem direta da valsa.

As noções de música popular e música erudita24 têm sua origem nessa

estratificação social da música, comum no século XVIII, que estava mais ou

menos associada aos três estados da sociedade francesa25. Schnittke refere-se a

essa estratificação social da música, em sua teoria da Poliestilística, quando diz

que

24 Há outras formas de distinguir os tipos musicais, como se faz, por exemplo, em francês: musique leggère (música ligeira), musique de varietés (música de variedades), musique classique (música clássica) ou musique savante (música erudita). Em alemão, chegou-se a criar um termo pela mudança de uma única letra da palavra Musik (música). Trata-se do vocábulo Musak, que se refere a um tipo de música comercial de caráter leve, geralmente feita como arranjo instrumental de canções conhecidas para ser tocada como música de fundo em ambientes públicos, como centros comerciais, aeroportos e consultórios médicos. Em inglês, costuma-se chamar este tipo de música de elevator music; em português, é comum chamar-se de música ambiente. 25 Na França do século XVIII, o Primeiro Estado era constituído pelo clero, o Segundo Estado, pela nobreza e o Terceiro Estado, pela população em geral, incluindo burgueses, trabalhadores urbanos, servos e camponeses.

Page 118: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

116

apesar de todas as dificuldades e todos os perigos que encerram a poliestilística, seus benefícios indiscutíveis já são evidentes. Estes residem no alargamento da expressão musical, em uma maior facilidade para integrar os estilos ‘nobres’ e os estilos ‘comuns’, os estilos ‘banais’ e os estilos ‘refinados’, ou, em uma palavra, em um universo alargado e em uma democratização de estilos.

Assim, tem-se, pelo menos em certos meios artísticos e em um nível

conceitual, a superação da estratificação social da música com a Poliestilística e

suas derivações. Com isso, também os gêneros tradicionais (sonata, suíte,

sinfonia, etc.) são reavaliados e combinados de forma a produzir um amálgama de

formas, gêneros e tipos de música em que as fronteiras convencionais se alargam

ou se diluem. Na década de 1980, o compositor alemão radicado no Brasil Hans

Joachim Koellreutter considerava ser necessário entender que elementos

aparentemente opostos podem não ser contrários, mas complementares.

Na atualidade, outras dualidades inconciliáveis parecem se fundir: a noção

histórica de ‘passado versus presente’ e a noção geográfica de ‘regional versus

universal’. As noções de períodos históricos que se sucedem de forma inelutável

dissolvem-se quando artistas fazem releituras de obras do passado ou retomam

aspectos característicos das artes de outras épocas ou lugares em suas criações.

Também a regionalização das práticas artísticas parece estar sendo

redimensionada pela noção de identidade móvel proposta por sociólogos como

Stuart Hall, que passam a entender o conceito de estado-nação como um

constructo das formas de poder dos últimos séculos, e não como uma

característica espontânea ou natural das sociedades humanas.

Diz Hall que “em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas,

deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa

a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas

divisões e diferenças internas, sendo unificadas apenas através do exercício de

diferentes formas de poder cultural”. Além disso, costuma-se esquecer que, muitas

vezes, as nações foram construídas pela aniquilação de minorias ou pela

dominação de grupos étnicos que foram sobrepujados. O que traz à tona a noção

de diferença proposta por Michel Meyer, em sua Pequena Metafísica da Diferença:

Page 119: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

117

Cada um tem o direito de ser diferente, de realizar sua diferença, contanto que a igualdade de direitos da [outra] pessoa seja respeitada. Inversamente, a universalidade é imperativa, mas não pode sê-lo em detrimento das diferenças que constituímos e que nos faz ser [aquilo que somos]. Cada um tem o direito à sua história, e o dever de cada um é respeitar esse direito nos outros. A universalidade sem diferença é tão totalitária quanto a diferença sem universalidade.

Em posse de concepções como essas, artistas de diversas áreas têm-se

empenhado em praticar essa ‘filosofia da diferença’ e expressar a diversidade que

caracteriza a sociedade contemporânea em todos os níveis. Isso é o que faz um

músico como Tan Dun em dois de seus trabalhos mais importantes: O Mapa e

Ópera Fantasma. Ambos são eventos multimídia, com a convergência de músicos

e músicas de diferentes tradições e realizados pela mistura de elementos cênicos,

vídeos, imagens projetadas e gesticulações coreografadas que revelam a

experiência artística em diversos planos sócio-culturais, sensoriais e afetivos.

A Ópera Fantasma é um exemplo de música visual procedente da

colaboração ente o compositor e o Quarteto Kronos. A peça foi inspirada em uma

tradição rural chinesa, da região de Hunan, em que os funerais são

acompanhados por um coro feminino que caracteriza o luto e auxilia na travessia

da alma ao novo mundo. Diz o compositor: “em Hunan, onde cresci, as pessoas

acreditam que serão recompensadas, após a morte, pelos seus sofrimentos. A

morte era a ‘felicidade branca’ e os rituais musicais lançavam o espírito no

território de uma vida nova”. Para alcançar esse ambiente mítico, Tan Dun

combina os instrumentos do quarteto de cordas com a pipa (tradicional

instrumento de cordas chinês), mistura um coral de Bach, uma melodia tradicional

chinesa e sons produzidos por instrumentos feitos de elementos naturais, como

água, pedra, metal e papel. O compositor explicitou suas intenções em um ensaio

que escreveu sobre a música:

No primeiro movimento (intitulado Bach, Monges e Shakespeare Encontram-se na Água), o violinista fricciona um arco em um gongo que está na água e bate com a mão na água; os outros instrumentistas do quarteto de cordas tocam Bach; ouvem-se as exalações de um monge fantasmagórico; Wu Man [musicista chinesa] toca pipa. O som de uma canção tradicional chinesa se mistura a Bach.

Page 120: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

118

[Para terminar a música, no quinto movimento,] um violinista recita o texto final e aparece um grande instrumento de papel, que é tocado. Bach retorna, mas é partido em pedaços, combinado com os gongos de água, submergindo na água e desaparecendo.

A descrição acima deixa clara a intenção do compositor de aproveitar uma

prática específica da cultura popular de sua região natal e combiná-la a aspectos

estilísticos, narrativos, dramáticos e visuais de manifestações culturais de outros

povos, épocas e localidades, como o sentido religioso da figura do monge

fantasmagórico e de um coral de Bach associados à força telúrica dos elementos

da natureza, como a água, o metal, o mineral (pedra) e a madeira (papel). É

interessante lembrar que, para os chineses, são cinco os elementos da Natureza:

água, fogo, terra, água e madeira. Assim, Tan Dun parece dar mais um passo

conceitual no sentido da fusão das noções de Oriente e Ocidente.

Olvaldo Golijov Tan Dun

Page 121: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

119

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando se busca organizar um panorama histórico da música, os passos

mais difíceis, por razões distintas, são as produções mais antigas e as mais

recentes. A música antiga torna-se difícil de organizar devido à falta de

informações e porque, muitas vezes, mesmo havendo textos escritos sobre sua

teoria ou como ela era praticada, eles são esparsos e tem-se pouca ou nenhuma

referência sobre como esta música realmente soava. A música recente torna-se

difícil de ser elaborada por ainda não ter sido sistematizada e por ainda estarmos

mergulhados em seus debates e discussões, o que nos deixa em uma posição de

parcialidade em relação às diversas tendências e práticas musicais

contemporâneas.

Naturalmente, é mais fácil para um músico ou teórico atual dedicar-se de

maneira imparcial à obra de um compositor do século XVIII ou XIX do que à

produção contemporânea, sobre a qual ele tem juízos que inclusive podem

influenciar práticas artísticas e transformar resultados estéticos. Isso não impede,

porém, que se busque uma leitura ampla e aberta da realidade musical de cada

época, mesmo com a consciência de que se deve levar em consideração e

explicitar essa parcialidade inerente a qualquer um que se dedique ao estudo de

alguma forma de produção cultural, seja ela próxima ou remota no tempo ou no

espaço.

A intenção deste texto é apresentar uma visão panorâmica e, portanto,

geral da música ocidental, especialmente da música de concerto, que vem se

desdobrando desde as cameratas do Renascimento italiano até os dias de hoje.

Mesmo que tenha havido transformações e mudanças abruptas de rumos, em

determinados períodos ou em certos lugares, pode-se dizer que todas essas

realizações fazem parte de um mesmo recorte da vasta produção cultural da

Humanidade. Esse recorte, naturalmente, poderia ser diferente, porém escolheu-

se utilizar o ponto de vista geralmente adotado pelos musicólogos e historiadores

da música que se dedicam ao assunto, pois a intenção é, por um lado, introduzir

os leitores ao assunto da forma mais direta possível e, por outro lado, incentivá-los

Page 122: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

120

a procurar bibliografia mais específica e especializada sobre aqueles tópicos que

lhe causaram maior interesse.

Por isso, acrescentou-se a seguir, uma pequena lista bibliográfica.

Partitura de Stripsody (1966), de Cathy Berberian (1925-1983).

Page 123: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

121

BIBLIOGRAFIA

ADAM, Joselir e VALLE José Nilo. Linguagem e estruturação musical. Curitiba: s.n., s.d.

ANDRADE, Mário. Pequena história da música. São Paulo: Marins, 1980. BAUR, John. Music theory through literature. New Jersey: Prentice Hall, 1985. BENNETT, Roy. Forma e estrutura na música. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. BENNETT, Roy. Uma breve história da música. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. BERRY, Wallace. Form in music. New Jersey: Prentice Hall, 1966. BRINDLE, Reginald Smith. The New Music: The Avant-Garde Since 1945. CANDÉ, Roland de. História universal da música. 2v. São Paulo: Martins Fontes,

2001. COPLAND, Aaron. Como ouvir e entender música. Rio de Janeiro: Artenova,

1974. DART, Thurston. Interpretação da música. São Paulo: Martins Fontes, 1990. GREEN, Douglass. Form in tonal music. New York: Holt, Rinehart and Winston,

1979. GROUT, Donald; PALISCA, Claude. A history of western music. New York: Norton,

1988. HENRY, Earl. Music theory. New Jersey: Prentice Hall, 1985. HODEIR, André. Les formes de la musique. Paris: PUF, 1998. HOLST, Imogen. ABC da música. São Paulo: Martins Fontes, 1987. KATZ, Adele. Challenge to musical tradition. New York: A. Knopf, 1945. KERMAN, Joseph. Musicologia. São Paulo: Martins Fontes, 1987. KIEFER, Bruno. História e significado das formas musicais. Porto Alegre:

Movimento, 1976. ____________. Elementos da linguagem musical. Porto Alegre: Movimento, 1984. LARUE, Jean. Análisis del estilo musical. Barcelona: Labor, 1989. LEIBOWITZ, René. Schoenberg and his school. New York: Philosophical Library,

1949. _______________. Schoenberg. São Paulo: Perspectiva, 1981. LUSSY, Mathis. El ritmo musical: su origen, funcion y acentuacion. Buenos Aires:

Ricordi Americana, 1945. MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1983. MASSIN, Jean; MASSIN, Brigitte. Histoire de la musique occidentale. Paris:

Fayard, 1987. MENEZES FILHO, Florivaldo. Apoteose de Schoenberg. São Paulo: Nova Stella,

Page 124: PANORAMA_DA_MÚSICA_OCIDENTAL

122

1987. MICHELS, Ulrich. Atlas de música. 2 v. Madrid: Alianza, 1987. MOLINO, Jean. Fait musical et sémiologie de la musique. Musique en Jeu, n. 17,

p. 37-62, 1975. MORAES, J. J. O que é música. São Paulo: Brasiliense, 1983. ____________. Música da modernidade. São Paulo: Brasiliense, 1983. MORRIS, R. O. The structure of music. London: Oxford University Press, 1950. NATTIEZ, Jean-Jacques. Fondements d’une semiologie de la musique. Paris:

Union Générale d’éditions, 1975. ____________________. Music and discourse - toward a semiology of music.

Princeton: Princeton University Press, 1990a. NEVES, José Maria. Música contemporânea brasileira. São Paulo: Ricordi, 1981. RATNER, Leonard. Classic music – expression, form and style. New York:

Schirmer, 1980. RÉTI, Rudolph. The thematic process in music. Westport: Greenwood Press, 1978. ____________. Thematic patterns in sonatas of Beethoven. New York: Da Capo,

1992. RIEMANN, Hugo. El fraseo musical. Barcelona: Labor, 1936. _______________. Composición musical. Barcelona: Labor, 1943. ROSEN, Charles. Formas de sonata. Barcelona: Labor, 1987. _____________. El estilo classico. Madrid: Alianza, 1986. SALZER, Felix. Structural hearing. New York: Dover, 1982. SCLIAR, Esther. Fraseologia musical. Porto Alegre: Movimento, 1982. STEFANI, Gino. Compreender a música. Lisboa: Presença, 1987. TARASTI, Eero. A theory of musical semiotics. Bloomington: Indiana University

Press, 1994. TARASTI, Eero et al. Musical semiotics in growth. Bloomington: Indiana University

Press, 1996. TATIT, Luiz. Semiótica da canção. São Paulo: Escuta, 1994. TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de Janeiro: Zahar,

2000. WARD, W. R. Examples for the Study of Musical Style. Dubuque: Brown, 1970. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras,

1989. ZAMACOIS, Joaquín. Curso de formas musicales. Barcelona: Labor, 1979.