PAULO E PLATÃO O Bem e a Salvação dos homens · que deixa de ser pessoal, no sentido...

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PAULO E PLATÃOO Bem e a Salvação dos homens

Américo Pereira

2008

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Covilhã, 2008

FICHA TÉCNICA

Título: PAULO E PLATÃO – O Bem e a Salvação dos homensAutor: Américo PereiraColecção: Artigos LUSOSOFIA

Direcção da Colecção: José M. S. Rosa & Artur MorãoDesign da Capa: António Rodrigues ToméComposição & Paginação: Ângelo MilhanoUniversidade da Beira InteriorCovilhã, 2008

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PAULO E PLATÃOO Bem e a Salvação dos homens

Américo Pereira∗

São Paulo não pode ser reduzido a um híbrido histórico formado pelasua composta origem de judeu e de grego e de romano, a que se acres-centa ainda o elemento, histórico, mas também imediatamente trans-histórico, da sua conversão divinamente provocada, que mais aumen-taria ainda a confusão etiológica da sua entidade própria. São Paulo éobviamente tudo isto e muito mais, mas é sobretudo um homem, istoé, um membro da espécie humana em que, na sequência semântica dasua vida, se dá uma verdadeira conversão a um novo kosmos e a um no-vo entendimento do modo como esta ordem ontológica funciona, nãoapenas na imediatez de um contacto sensível e político com os home-ns e as coisas, mas em seu mesmo primeiro e último fundamento. EmSão Paulo, o divino Alfa kai Omega toma posse de uma inteligênciaque deixa de ser pessoal, no sentido psicológico do termo, e passa a serpessoal, num sentido verdadeiramente transpessoal, em que Paulo é oprofeta do intervalo entre Alfa e Ómega.

Quer isto dizer que São Paulo não é fundamentalmente judeu ougentio qualquer, mas o homem só homem, eleito para paradigmatica-mente servir de angelos do verbo, do logos que medeia entre o Alfa e oÓmega. Ora, este verbo, que estava antes do princípio, está no princí-pio, no meio e no fim e em todos concomitantemente, não tem naçãoou raça ou cidade próprias: é verdadeiramente universal. O verbo é o

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único cosmopolita. Mais, não se limita a andar de cidade em cidade,é o que faz com que possa haver cidades, é o que faz com que pos-sa haver assembleias de homens, quaisquer; é o meio ontológico quepermite que haja comunicação entre pessoas, de outro modo incomu-nicáveis entre si. É o garante primeiro e último da possibilidade de umbem comum, de uma salvação também já histórica para a humanidadecomo um todo. 1

Este Logos não é judeu ou pagão: judeus e pagãos são no e pelo ver-bo. Se a Carne humana do Verbo se manifestou em terrenos judaicose no seio de um povo de tradição judaica, não o fez como privilégiopara tais terras ou gentes, mas como mesma manifestação universal deum universal Verbo, cuja finalidade é o bem de tudo, irrestritamente,não de uma qualquer restrita parte. O carácter híbrido de São Pauloserve perfeitamente este sentido de manifestação não restrita do Bemdos bens para o bem de tudo. Um specimen rácica ou tradicionalmentepuro não serviria de haste matriz para o enxerto de um profeta para odiverso dos povos. A ”impureza” política de Paulo é o novo índice deuma nova forma de pureza, forma em que todos os homens podem sersemelhantes, forma que ultrapassa todo o ruído ontológico da história,forma que imediatamente situa a humanidade num mesmo nível on-tológico e de ontológica dignidade: são todos homens, esses aos quaisPaulo vai pregar o Eu Angelion, que é mais do que uma qualquer ”boa-nova”, é o Bem Novo, o novo sentido do absoluto do bem, dito na vozdo absoluto Logos incarnado, isto é, marcando com a sua presença umtopos ontológico cujo absoluto de realidade necessitava ser salvo.

1A necessidade de uma possibilidade soteriológica presente já na vida biológicado homem marca as grandes formas de pensamento universal, mesmo aquelas queremetem para uma ”outra vida” o cumprimento soteriológico integral. Sem esta curaintegral do bem do homem, qualquer posição antropológica não passa de uma tira-nia: apenas a maldade própria do tirano pode querer a impossibilidade soteriológiado homem ”nesta vida”. Tal vontade é manifestamente "demasiado humana", sema grandeza divina da grácil dadivosidade. Propositadamente usamos termos do anti-cristão Nietzsche, que percebeu perfeitamente a grandeza divina da dádiva.

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Já é esta a lição presente no drama fundamental de um Job, sím-bolo ontológico maior que Cristo veio tornar real, não já apenas comorealidade simbólica, puramente semântica, mas como realidade plenaem verdadeira assunção lógica do bem presente na também por Deuscriada matéria. É no exercício deste serviço de e da salvação do tododo mundo de suas humanas imundícies que Paulo casa perfeitamentecom a vetusta tradição grega.

A Nova de que Paulo é cósmico arauto não é apenas a vulgar ”BoaNova”, que, sendo boa, não deixa de ser apenas uma notícia: Paulonão é o repórter ou o pregoeiro de uma qualquer nova que é boa, masapenas enquanto notícia. Não. Paulo vai manifestar a todos os home-ns, independentemente de suas peripécias históricas, que o Novo Bemaconteceu e permanece acontecendo, que a salvação do homem é pos-sível, não apenas a salvação de um povo histórico eleito pelo caprichoqualquer de um qualquer deus, mas a salvação de todo o homem quese deixar salvar. O Novo Bem da salvação do homem, não a mensagemde Cristo, mas o Acto de Cristo, Acto que é a sua mesma magna men-sagem, dado em suprema graça a todos os homens.

São Paulo é a figura de «todos os homens». Paulo é o modelo dooikomenos, da ecuménica soteriologia do Novo Bem anunciado. Trata-se de uma verdadeira nova «ecologia», em que o Logos do mundo é oacto salvador de Cristo, acto para todo o kosmos, acto cuja oikonomiaé realmente católica, não num sentido político, imperial, do estenderde um qualquer poder humano sobre a humanidade conhecida, mas nosentido de um acto de amor por toda a humanidade, não apenas a con-hecida, mas a que se estende desde o acto criador de Deus, até que hajahumanidade, onde quer que haja humanidade. Paulo é o literal anthro-pos katholikos, paradigma do ser humano universal, apenas humano,mas universal, universal em sua simples e básica humanidade. Mesmonas suas imperfeições, Paulo é o paradigma da humanidade de carne embusca da salvação. Mesmo na sua paixão, antes e depois da conversão;mesmo no risco de irracionalidade que todas as paixões em si inevitável

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e necessariamente comportam. Paulo é o homem perfeito como homemimperfeito.

Ora, é precisamente este homem que há que salvar: a salvação emCristo não veio ao mundo para Cristo; veio ao mundo por Cristo; nãoveio para o homem perfeito, mas pelo homem perfeito, para o homemimperfeito. Desde a retirada terrena do Perfeito, cabe apenas aos im-perfeitos, por seu mesmo esforço de aperfeiçoamento, dar testemunhoda perfeição, não porque a possuam em acto, mas porque - e é a pro-fundíssima lição do casal primeiro - são dela capazes; esforço que éinfinito, exactamente porque há uma perfeição possível no e para ohomem, possível, mas apenas em assimptótica aproximação, camin-ho que requer uma infinitude de possíveis actos de aperfeiçoamento.Mas perfeição que é desde sempre possível, sob pena de hereticamentese perspectivar Deus como estulto ou mau, mas também perfeição deque o homem nunca é realmente capaz. Uma humanidade em que abondade decorresse necessariamente de sua natureza potencial ou deladecorresse sem esforço (é a lição de Job) nunca teria precisado de En-carnação de Verbo algum. Se o Verbo incarna é porque o homem é, serevelou historicamente incapaz de tirar por si só o melhor de si mesmoenquanto possibilidade. É o possível, mas improvável Job que, em cadahomem, clama pela salvação operada por uma bondade de que suspeita,mas em que não confia o suficiente para a ela e nela se converter.

O papel evangelizador mais não é do que esta pedagogia de sal-vação pelo anúncio do Acto do Mestre, único pedagogo que pode pe-gar delicadamente na mão da criança auxiliando-a no caminho para acasa de Sofia, casa do Pai. O papel do híbrido Paulo é o deste paradig-mático pedagogo substituto que tem de persuadir a criança a querer serajudada, mas sem violência. As crianças são os homens todos de todoo mundo e de sempre. Só um homem grande e diverso como o mundopode ser escolhido para tal empresa. Assim Paulo foi. Reparemos comonão são necessários olhos de uma fé sobrenatural para perceber o queaqui está em causa. Com uma subtilíssima inteligência, quem escolhePaulo escolhe precisamente aquele que racionalmente está qualificado

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para o exercício do mister que dele se requer. Sem artificialismos oumanifestações que poderiam ser compreendidos como anti-naturais, ocarácter polimorfo de Paulo permite racionalmente o contacto com acomunidade também polimorfa extra-judaica. Ora, é precisamente nes-ta inteligência profunda que Paulo e os gregos se encontram, apesar dodesencontro, mais aparente do que real, do Aerópago.

Sem uma fundamental profunda consonância ontológica nunca oBem Novo do Evangelho teria tido o encontro que teve com o que demais grandioso o pensamento helénico possuía. E, no entanto, esse en-contro deu-se, esse encontro dá-se. Mas não é da real, mas pouco pro-funda convergência histórica que aqui se cuida: numa lógica causalistapositivista e historicista, a anedota do Aerópago deveria marcar comferros de necessidade a relação entre o pensamento helénico e a No-va que Paulo carrega. Este desencontro, nos absolutos inícios do No-vo Tempo da Boa Nova, deveria ter triunfado, se apenas uma lógicahistorialista estivesse em causa: «depois te ouviremos», isto é, nuncate ouviremos, homenzinho que nada de racional trazes à colação doshomens da razão da racional Atenas. Num regime de superficialidadesocial e cultural de circunstância, isso que Paulo tem para anunciar nãoteria podido criar raiz que fosse mais do que efémera radícula, leva-da pela primeira intempérie lógica que fustigasse sua insubstante radi-cação. É o que acontece com todas as realidades históricas, no sentidosuperficial, a que nos habituaram séculos de racionalismo sem razão ede positivismo sem radicalidade ontológica: surgem, agitam as loucaságuas psicológicas de homens sem abismo interior e ondulam moribun-das para as margens do esquecimento. Espuma cultural.

Ora, o que Paulo tem para dizer não é espuma cultural, como nãoera espuma cultural o que os antigos helenos, muito mais próximosde Deus em seu paganismo do que muitos de nós neste mundo que jánem pagão sabe ser, tinham a dizer e disseram acerca precisamente dosmesmos grandes problemas que a Boa Nova visita revisitando. A pre-ocupação com o bem ontológico do que é é a marca que distingue osanto, independentemente do modo cultural histórico como é caracter-

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izado. Esta preocupação, que é um dado ontológico, isto é, faz partedo modo de ser possível do homem - poderia não fazer - é verdadeira-mente o anjo, o mensageiro ontológico que liga o homem à sua origem:sem esta preocupação, o homem seria apenas um qualquer vivente semcapacidade de ligação profunda - ontológica - com o demais, poderia,até, ser feliz, num sentido muito moderno e burguês do termo, mas nãopossuiria qualquer profundidade; seria mais um animal, mas não se-ria o animal racional de que ainda se vai orgulhando ser, pelo menosalguns...

Por outras palavras, é esta ligação não material com a realidade dasoutras coisas, dos outros seres que faz do homem homem. Esta pre-ocupação é a mesma definição do espírito. Logos, nous ou pneuma,pouco interessa, para o que aqui está em causa, a sua definição erudita.O anjo do homem e de cada homem é este espírito, que é concomi-tantemente logos, nous e pneuma. É para a salvação deste ser, que éesta preocupação em carne, que o melhor do pensamento grego empre-ga os seus esforços; não é outra a finalidade da incarnação do Logos.Se Paulo, inicialmente derrotado no Aerópago, consegue, por meio daposteridade das sementes que lança em vida, triunfar de todos os Aeró-pagos helenos suficientemente atentos, é porque, embora com algumademora, as notas dos cânticos ao ser dos pagãos helenos e seus filhose as notas dos cânticos dos filhos de Emmanuel acabam por encontrarfundamental harmonia. E não há harmonias falsas.

Mesmo procurando muito bem e com muita atenção, não é fácil en-contrar em patentíssima manifestação presenças claras de pensamentogrego nos escritos de Paulo. À maneira de um Nietzsche, poderíamosmesmo considerar Paulo uma verdadeira antítese cultural e humanado homem helénico: se bem que sempre fruto de néscias generaliza-ções, este último aparece como a encarnação das humanas virtudes dehumana grandeza, tão grande grandeza que acaba por emprestar aosdeuses esta sua mesma grandeza, criando deuses imensos, feitos à suaimagem e semelhança - é a tese de Xenófanes (n. Colofon, c. 570 a.C.), paradigmática de todos os reducionismos moralistas da ontologia

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própria do divino -, homem helénico que não tem medo de coisa algu-ma, é sempre senhor de si mesmo, é racional, activo, positivo, alegre,etc.

Paulo passa grande parte do seu escrito tempo a recriminar algo oualguém, parece ser um fraco sem grande iniciativa ou mesmo sem ini-ciativa própria, pois só faz o que lhe é ordenado por um deus, deus que,ainda por cima, é de difícil caracterização, que não se consegue ver outocar, que se manifesta apenas ao modo do velho demónio socrático:pessoal e talvez anti-político, misterioso, mas sem a grandeza frenéti-ca e quente dos órficos, bacantes e demais deuses tradicionais. Paulonão será mesmo um cidadão romano e grego que resolve prescindir danobreza humana e cívica de sua cidadania, concreta e eficaz, em favorde um miserabilismo próprio de escravo, coisa de ”judeus”? Há ou nãouma grandeza própria do discurso de Paulo que possa explicar o seutriunfo, em termos humanos e sem ter de se recorrer a um Deus quese impõe não por meio da possível persuasão histórica e cultural, únicapedagogia de que o homem é capaz, mas apenas por meio de uma vi-olência sobre as convicções dos homens, pior das violências, pois, aocontrário da física, é subtil e perigosamente insensível?

Paulo é ou não um bom anjo humano deste angelion divino? Há ounão grandeza na sua palavra? Trata-se de um mísero escravo tentandoressentidamente levar os outros homens a tornar-se como ele tambémescravos ou é uma voz de libertação e, portanto, de liberdade?

Depois de se ler Paulo, algo é manifesto: Paulo não ajuda... Psico-logicamente marcado, gasta efectivamente muito tempo com insignificân-cias e aparentemente grande parte do discurso assemelha-se muito aum exercício de humilhação e auto-humilhação política. Mesmo de-scontando as questões culturais e históricas, há uma atitude de Pauloque parece situá-lo mesmo nos antípodas do homem e do pensamen-to helénicos. Mas, então, como foi possível o encontro entre isso quePaulo diz anunciar e a matriz maior do pensamento grego? Deu-se in-dependentemente de Paulo?; contra Paulo?

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Não. Nem independentemente nem contra. Os grandes progressosespirituais e intelectuais da humanidade não se dão com acompan-hamento de fanfarra, mas por meio de saltos imperceptíveis em seuincoativo momento, mas que, depois, vão ganhando presa, campo, al-tura, vigor, não por causa de qualquer fanfarra, mas porque correspon-dem a momentos de cairóticas intuições acerca do que as coisas são emseu mesmo fundamento. O que Paulo anuncia fundamentalmente nãosão as coisinhas mesquinhas que povoam seus escritos: essas morreramcom os homens mesquinhos que as provocaram; Paulo anuncia exac-tamente aquilo por que foi derrotado politicamente no Aerópago: queo princípio ontológico de tudo incarnou e veio, feito homem, travaramizade, de outro modo impossível, com os homens.

Ora, sem mais, e na sua superficialidade de coisa dita e não pensa-da, tal mensagem pode ser imediatamente imperceptível para a assem-bleia dos representantes dos helenos de Atenas, mas, na profundidademeditada do que tais palavram carregam, um grego bem treinado emfilosofia platónica tem muito que perceber e numa linguagem que podeperceber. Paulo limita-se a ser Paulo, isto é, aquele que transporta, emlinguagem e língua grega, em mundividência grega, a Boa Nova queaconteceu num mundo cultural e histórico muito diferente, que foi ditanuma linguagem muito diferente, imperceptível para os helenos, nãoporque não soubessem traduzir as palavras, mas porque não tinhammundo para lhes poder acrescentar o sentido e as palavras só ganhamsentido pelo sentido que transportam e em que vivem, não possuemsentido em si mesmas, em seu mesmo ser material.

Paulo é o anjo político que faz a mediação entre dois mundos,casando-os definitivamente, ainda que tal pareça não acontecer a umaprimeira e descuidada vista. Se é famosa a «tradução dos setenta», adiscreta «tradução do um» é a fundamental: Paulo, em quem quatromundos coexistiam - lembremos: helénico, romano, judaico e cristão -,é a única síntese viva possível capaz de fazer a ponte literalmente on-tológica entre o mundo do pensamento clássico - que ele era - e o novomundo - que ele também era - composto pela antiga tradição hebraica

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e pela emergente tradição cristã. Há aqui uma interessante ironia (div-ina ironia): o primeiro aerópago a converter não era o de Atenas, quesemanticamente não tinha grande importância, mas o aerópago interiorde Paulo, a sua assembleia interior de mundos. Uma vez operada estaconversão, de que não há manifestação brilhante em damascena estra-da, estão lançadas as bases de possibilidade do que se pode chamar aevangelização do grande pensamento helénico.

Não se trata de um mero encontro cultural, mas da entrada em sin-tonia, por meio de uma série de conversões, isto é de reais metanóias,do que há de fundamental no logos do mundo cristão emergente com oque há de fundamental no logos do mundo helénico, então em manifes-ta decadência. Este encontro não dotou apenas a mensagem cristã comferramentas intelectuais de que não dispunha, dado que Cristo não erapropriamente um profissional da filosofia ou da teologia, mas permi-tiu literalmente salvar da perdição da e na voragem histórica - que nãosabe distinguir o trigo do joio em termos do valor intrínseco de cadaproposta de leitura da realidade - do que havia de melhor no pensa-mento grego, precisamente tudo o que dizia respeito à grande tradiçãopolarizada em Platão.

É nos temas fundamentais da preocupação soteriológica da filosofiaplatónica que pensamento helénico e Paulo se vão encontrar, encontroque não é casual, mas releva de um semelhante interesse soteriológicopor parte de uma tradição e outra ou, para ser mais fiel à realidade dascoisas, do interesse soteriológico da tradição que atinge seu ponto maisalto com Platão e do interesse soteriológico do acto de incarnação doVerbo. E é este casamento que vence, desde há cerca de dois mil anos,todos os aerópagos do mundo.

Foi este casamento que permitiu alguns dos desenvolvimentos qual-itativamente mais importantes da história da humanidade, é, por exem-plo, este casamento que vamos encontrar como fundamento das grandespeças jurídicas surgidas na sequência dos trágicos eventos da Segun-da Guerra Mundial, na forma de várias declarações acerca de invio-láveis direitos do Homem, impensáveis, isto é, sem qualquer funda-

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mento racional fora deste casamento espiritual. Notemos, aliás e comopropositada nota contemporânea, que o enfraquecimento das garantiasconsignadas nestes documentos a que temos vindo a assistir nos últi-mos anos corresponde precisamente ao enfraquecimento das forças vi-tais deste longo e benfazejo consórcio. Procure-se à vontade na históriada humanidade que não se encontrará outro fundamento tão univer-sal, tão profundo e tão consonante com a ontológica realidade humanaquanto aquele que subjaz, melhor, que incarna como espírito destesdocumentos. Documentos que foram pensados pela talvez última ger-ação de cristãos inteligentes com real poder na oligarquia mundial dom-inante.

Mas estes desenvolvimentos não teriam ocorrido se não houvesseuma qualquer real substância na essência una, mas ricamente vária,das contribuições de ambos os membros do par. Mais uma vez sub-linhamos, pela sua inerente importância, o facto de o encontro se darpor causa não de factores exteriores, mas de factores interiores à mes-ma substancial essência da grande tradição metafísica helénica e danascente grande nova tradição cristã.

Há que concretizar. Este ponto nodal de relação íntima entre pensa-mento helénico fundamental e nova tradição veiculada por Paulo resideem diferentes, mas fundamentalmente consonantes intuições ou reve-lações do absoluto do bem: sem esta intuição - do lado do homem - erevelação - por parte de isso que como tal se revela e a que damos onome de Deus -, não seria possível quer a existência da tradição he-braica quer da helénica. A paradigmática história de Job serve para quese manifeste a intuição de um bem absolutamente bom, bem que se rev-ela como um em si transcendente, mas de que o homem é capaz: capazde intuir, capaz de procurar, capaz de assumir, capaz de invocar, capazde usar como absoluta bitola ontológica para avaliar de tudo, mesmodas imagens de Deus. Job, que é, em acto, a inteligência contemplativae profética de quem escreveu o que escreveu - e de nada interessa saberse foi um só homem se um colégio de homens -, é o acto de contem-plação e de transmissão política do sentido, já revelado no início do

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Génesis, mas não compreendido, porque não incarnado em carne queinfinitamente sofre, do absoluto do acto de ser. Quem compreenda issoque Job compreende e em nome de que se debate, compreende o que éo Bem platónico e todos os seus derivados, maiores ou menores.

Cristo, em seu humilde papel de Deus incarnado, é o Job divino, acarne real - já que a de Job é literária - em que o drama do sentido doabsoluto se vai efectivamente jogar, sendo-lhe pedido, como a Job, quenão se atraiçoe, isto é, que não atraiçoe Deus em si, ainda melhor, quenão se atraiçoe como Deus que, em si, é. Assim, o absoluto, absoluta-mente usando de seu livre arbítrio para decidir, decide - e cada decisãode homem, divino ou não, é um acto absoluto, logo, divino - assumir oamor pela criação na precisa ordem de grandeza do criado: na ordem degrandeza do absoluto que tudo o que é, por ser, é; ordem que apenas amorte, com tudo o que de absoluto manifesta no tempo, pode mostrar.Foi esta relação que os membros do Aerópago não compreenderam,não poderiam compreender, pois, nem do sentido do absoluto do serda tradição helénica dispunham já. Mas Paulo dispunha ou nunca teriapodido cumprir a sua missão, cujo fundamento reside exactamente naaproximação destas duas intuições do absoluto.

Cristo veio mostrar no tempo, no lugar da sucessão dos actos finitos,como pode o absoluto assumir a forma do relativo, não se relativizan-do, mas absolutizando o relativo, isto é, pela última vez e por meio domeio mais potente, foi mostrado o que há de absoluto em cada acto, emcada ser, em cada homem; tão absoluto quanto o acto criador de Deusque o criou. E é este acto de criação que torna tudo amável ao criador,tão amável que mesmo a pobre matéria é amada, ressuscitando o Lo-gos incarnado não apenas como espírito, mas como espírito e corpo,elevando a matéria a uma dignidade formal inaudita, mostrando que amesma matéria também tem uma forma que lhe corresponde, exacta-mente a forma como Deus a criou, presente no Verbo em acto eterno.Tudo é amado por Deus, pelo que tudo deve ser amado pelo homem.Assim o acto do Cristo na terra.

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Quem acusa a tradição judaico-cristã de não possuir relevo intelec-tual não percebe a grandeza do sentido desta nova forma de perceber atotalidade da realidade, em que não há criaturas indignas, necessaria-mente criadas por um deus mau - raiz de todo o maniqueísmo -, mas emque todas as criaturas, na infinita riqueza da obra criadora, que todas asformas pode criar, são boas, no acto de criaturas que são, porque são,em tal acto, obra de Deus. A própria possibilidade do mal é um bem,que seria para sempre um bem, se ninguém a usasse: seria eternamentepossível, sem que houvesse alguma vez mal algum, e todo o homemseria uma verdadeira «imagem» de Cristo, tal a «cidade de Deus» deAgostinho.

Ora, esta nova intuição da criação, oferecida no e pelo discurso deJesus, mas oferecida à humana contemplação sobretudo nos seus actosnão coloquiais, é de tal modo radical que nem mesmo Paulo a percebena sua real dimensão: se o tivesse percebido, o seu discurso seria umcontínuo louvor a Deus, mesmo quando tivesse de admoestar alguém, enão é manifestamente isso que acontece. Mas são poucos os que perce-beram o que está em causa e, assim, Paulo está em humana ilustre com-panhia... Foi necessário o génio de um Agostinho para se perceber apossibilidade de uma cidade de Deus, que não é utopia, mas realizaçãoplena da natural possibilidade de bondade posta por Deus no homem,nada mais natural, portanto. O que o homem não sabe é ser fiel ao bempossível de sua natureza, como, aliás, Agostinho bem sabia.

É óbvio que é Francisco de Assis quem tira, em homem de estaturaontológica inteira, a conclusão da mensagem de Cristo acerca do bempossível, manifestando-o em toda a sua acção, norteada pelo sentido deuma absoluta bondade intrínseca a tudo, fazendo com que tudo mereçaser amado não apenas pelos homens, mas e sobretudo, por Deus, quesumamente o sabe. A necessária ecologia franciscana não é uma per-cepção superficial de uma qualquer genealogia segundo uma qualquerGaia, terra material, mas o sentido profundíssimo de uma também pro-fundíssima irmandade entre todos os seres, irmandade que radica pre-cisamente no absoluto ontológico que o seu criador neles pôs e que é

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bom, como diz a narração genética do Génesis. É esta a bondade on-tológica matricial, matricial presença de Deus, por meio de seu actocriador nas coisas, que os homens teimam em não querer ver, cegueiraque os mata ainda em vida, fazendo da sua vida madrasta e da sua mortea antítese de uma irmã. A irmandade com a morte invocada por Fran-cisco nada de estranho possui, pois tudo, ser, vida e morte, está sob oabraço dos caridosos raios do sol, figura brilhante do sentido criadorirradiante do amor de Deus, que tudo congrega num mesmo amplexode ser e de inteligência.

É em nome deste amplexo, que Paulo não pode ainda compreendercomo um Agostinho ou um Francisco, que a evangelização dos gentiosé feita e o primeiro gentio é exactamente Paulo. Ora, o simples gentioque já tinha, a seu tópico e cultural modo, compreendido este sentidoinfinitamente universal de isso que é o divino, que a tudo abraça co-mo o sol abraça a terra, erguendo o edifício da metafísica fundamentaldo pensamento helénico, foi Platão. É com Platão que, ainda que nãopareça a uma primeira vista e mesmo que disso não tivesse consciência,Paulo se vai encontrar.

As grandes questões, que são sempre questões perenes, da humanidadenão se compadecem com modas ou outros fenómenos, por vezes espec-taculares, de índole superficial. A teofania crística não se destinou a in-troduzir mais uma moda de pensamento ou de comportamento, mas aosupremo auxílio do homem no sentido do seu labor salvífico próprio,labor em que nada o pode substituir. Paulo é o arauto cosmopolita destapresença soteriológica, a sua preocupação fundamental reside no anún-cio desta nova forma de relacionamento com a possibilidade da sal-vação, possibilidade que foi demonstrada em carne e de que já não épossível, para quem a tenha entendido, duvidar. É a salvação do homemque está em causa: a salvação do homem individual, pessoal, mas tam-bém a salvação do homem como espécie, como comunidade. Para alémdo papel experiencial paradigmático da presença real de Cristo, a quejá não há acesso directo, mas meramente testemunhal, questão de fé,irredutível a qualquer outra dimensão, há o conteúdo noético da men-

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sagem do Logos incarnado, isto é e propriamente, há a parte verdadeira-mente lógica da presença de Cristo - parte que, aliás, tão desprezada é- e que não requer qualquer esforço de fé, apenas um esforço de in-teligência. E esta presença noética de uma semântica pró-escatológicae pró-soteriológica não só não é destituída de importância como é defundamental importância.

E Paulo é o organon, o instrumento próprio e adequado para a faz-er passar para a comunidade que não tem qualquer possibilidade depoder ter fé em actos para os quais nada na sua experiência própriaa pode ter preparado: eis o grande condicionamento da atitude doshomens, sem dúvida inteligentes, do Aerópago aquando da visita dePaulo. O primeiro contacto com o povo, cuja experiência ética e políti-ca se deu milenarmente fora de qualquer contexto judaico, não podeser feito por meio de uma fé para a qual não há objecto possível, masatravés de um acto de inteligência, único que pode abrir para a possi-bilidade de um novo tipo de experiência, radicalmente diferente daque-la a que estavam acostumados. Será a inteligência a abrir o camin-ho para a fé dos pagãos ou não será coisa alguma.2 A luz fulgurantedo acontecimento da metanóia paulina no caminho de Damasco nãopode significar fundamentalmente senão isto mesmo: que, para quemnão teve o privilégio de contactar directamente com Cristo e de fazersua a experiência comum da nova Páscoa, o único modo de possi-bilitar a possibilidade da fé é através da luz da inteligência, de umainteligência que não é coisa representacional, mas acto e símbolo datotalidade do homem, recolhendo, assim, fulgurantemente, em seu ac-to, cabeçaë coração"(distinções que abominamos, pois dilaceram irre-mediavelmente o homem). O primeiro "gentionão cristão a ser con-vertido pelo fulgor da inteligência divina foi o próprio Paulo. Paulo é,assim, o apóstolo da inteligência, da luz, de uma fé que tem de neces-sariamente ser inteligência daquilo de que é fé. Verdadeiramente, com

2É, aliás, esta uma fundamental lição estratégica para a contemporânea evange-lização.

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Paulo, nasce a magna tradição da fé em busca da inteligência", quemarcará os maiores do pensamento cristão.

Mas é aqui que a missão do neo-inteligente Paulo se encontra coma missão do vetero-inteligente Platão: na cura da, no cuidado, que raiaquase o fanatismo, com a salvação do homem. Não é possível com-preender não apenas a filosofia, mas a filosofia e a vida de Platão sementender a amorosa paixão que dedicou ao bem comum humano - comas inevitáveis limitações topo-cronológicas de que ninguém se podelibertar - e à busca ininterrúpta de um inabalável fundamento inteligente,ou, se se quiser, racional para tal bem comum. Não há Platão sem aintuição - fundamental para o destino da humanidade - de um bem ab-soluto. Apenas este bem absoluto e a inteligência que dá o seu mesmosentido podem servir de fundamento objectivo para o bem comum, que,deste modo, não é um bem imposto de uma qualquer forma, sempre nãoobjectiva e, assim, tirânica, mas o natural bem universal de tudo.

Aprendera do mestre Sócrates que apenas uma vida inteligente nosentido do bem era uma vida digna de um homem, sem o que o homemmais não é do que um bicho entre outros, bicho um pouco mais sofisti-cado, mas sem nobreza própria e próprio mérito. O bem de um só,o bem de alguns ou ou bem de uma maioria não é necessariamenteo bem comum, que é um bem de todos e para todos. Ora, para mal detiranos, oligarcas e democratas mecânicos, o bem comum não pode nãoser senão um bem objectivo, independente de psicológicos quereres oude eficazes violências. Nenhum homem singular ou grupo de homenspode ditar o que o bem seja, o que o bem é. O bem não é fundamental-mente uma questão ética, é fundamentalmente uma questão ontológicae a ele se vai através de uma literal ontologia, isto é, através da in-teligência do que as coisas são, no que são, no que são totalmente, nassuas mesmas relações, em seu mesmo necessariamente comum funda-mento, fundamento que necessariamente as habita individualmente, ounão seriam em absoluto, mas que as habita a todas também, ou seria ca-da uma delas um universo à parte, não constituindo um mesmo comumuniverso.

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O bem, ontologicamente entendido, é isto, cujo nome, aliás, é se-cundário, que faz com que tudo seja e com que tudo seja um todo.Platão, sem necessidade de uma fé extra-racional, tinha já deparadocom a providência (o nome, como se disse, é irrelevante, interessa acoisa substantivamente). E isto em que Platão desembocou não é ob-jecto de fé religiosa, mas fundamento inteligente para a inteligibilidadede qualquer fé religiosa. É este grandioso resultado de um humilde es-forço noético que vai constituir a ferramenta necessária - poderosíssi-ma - para tornar inteligível a parte noética da mensagem do Crucifi-cado: sem ela, esta mensagem, que contém, em si, numa outra formade linguagem, a mesma possibilidade de intuição, teria permanecidocomo mera forma de relação psicológica com um homem especial,reduzindo irremediavelmente a dimensão universal da mensagem deCristo, que não se dirige a uma qualquer psicologia, sempre limita-da por espaço e tempo, mas ao espírito, que funciona trans-espaciale trans-temporalmente, isto é, em registo universal, verdadeiramentecomo ciência. Sem o encontro com a metafísica do absoluto do bemde Platão, o cristianismo emergente teria sido mais uma pequena ougrande seita fideísta e daí não teria passado.

É a possibilidade de expansão universalista e independente de con-strangimentos culturais que permite que o sumo noético soteriológicoda mensagem de Cristo seja acedido não apenas por circuncidados ououtras minorias políticas quaisquer, mas por todo o filho de homem,trabalho semântico do Filho do Homem. A metafísica real, por ser uni-versal e incondicionada, une e liberta, na união, os homens (ao con-trário das néscias disputas entre escolas metafísicas, que de «metafísi-cas» apenas possuem o nome), permitindo o seu encontro transculturale transtemporal, num outro topos, apenas logikos, em que apenas contaa sua inteligência, essa ponta do espírito que nos distingue dos demaisseres e em que nos confundimos com a aresta cortante de nosso mesmoavançar vivente.

É, pois, apenas num Paulo metafísico, que talvez o próprio Paulodesconhecesse, que encontramos o grande arauto da salvação de Deus

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PAULO E PLATÃO - O bem e a salvação dos homens 19

para os homens: é o Paulo que Nietzsche não viu ou não quis ver, oPaulo que sobe acima da mesquinhez do discurso ressentido e menor,dos recadinhos e queixas, mas que, através disto tudo, se move, comoque impulsionado por uma força de atracção magnética de um fim tãogrande e bom que nada pode mover obstáculo ao seu encontro, forçade que conhece concomitantemente a necessária violência - lembremoso prisioneiro eleito na caverna platónica para ir ver o sol, arrastadocaverna acima até à abertura - e o doce sabor, já antecipação do saborpleno de um bem infinito, revelado na luz que cega de Damasco.

Platão foi vendido como escravo, Paulo parece que escreve para es-cravos e tem, por vezes, atitudes de escravo - ainda não entende a bon-dade infinita de Deus, não é um Francisco de Assis, mas também não opode ser ainda -, mas num e no outro caso a grande preocupação con-siste em trabalhar no sentido de emancipar o homem de todas as formasde escravidão. E o único modo de conseguir esta libertação é permitirque cada homem descubra o absoluto do bem. Apenas esta descobertapode dar verdadeira autonomia ao homem, verdadeira liberdade, pois,então, não dependerá de qualquer outro homem, de si mesmo enquan-to tirano psicológico de si próprio ou mesmo de um deus tirano, deusparasita do bem do homem, como o deus medial do drama de Job.

No fundo, com aquilo a que poderemos chamar «o evangelho dePaulo», evangelho noético, fecha-se um triângulo, que é mais do que te-ofânico, num sentido vulgar e cultural, que é verdadeiramente «ontofâni-co», no sentido da revelação do absoluto do ser, isso que é o verdadeirodivino, independentemente do nome que se lhe dá ou da relação quecom ele se estabelece. A revelação está dada religiosamente, mas comtotal grandeza intelectual e racional, no Livro de Job, onde, de formadefinitiva, o homem é instruído acerca do absoluto do bem imanente-mente presente em si e transcendentemente presente fora de si, masmanifestado em sua mesma imanência.

O mesmo trabalho, por meios diferentes, é realizado por Platão,ficando a parte noética do trabalho semântico realizada. Faltava unira revelação religiosa à revelação puramente noética: esta tarefa não é

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humana, dado que a parte transcendente real não lhe é acessível, e foicumprida pela mesma incarnação precisamente do Logos. Mas esta nãoé noeticamente mágica, pelo que foi necessário alguém que fizesse aponte entre o mundo da pura noética do bem e o mundo do bem reve-lado religiosamente: esta figura foi Paulo. Cultural e intelectualmente,Paulo procedeu ao casamento entre a sabedoria de Job e a de Platão,permitindo ao homem de boa vontade possuir o instrumento noéticototal para poder acreditar no instrumento real de libertação, o próprioCristo. O que Paulo não pode fazer é substituir-se a esses no trabalhode inteligente adesão ao homem salvador. Mas é o velho drama, porvezes trágico, de nossos míticos pais Adão é Eva: criados inteligentes,dotados de um mundo para contemplar com a sua mesma inteligência,contemplação que os poderia levar à relação com o Criador, mas quepreferiram menorizar-se num acto de poder tópico, mortal, selando umfuturo de essencial estupidez actual de uma humanidade criada divina-mente inteligente em potência.

Ora, Paulo, nas e com todas as suas limitações profundamente hu-manas, é o paradigma perfeito do homem que pode, ainda assim, perce-ber, mesmo que com a forçada ajuda de Deus, o que o bem é, trabalhan-do no sentido de anular realmente a tendência para a fuga a este sentidoque o mito adâmico nos dá. Se há apenas um «único necessário», ape-nas uma tarefa necessária, Paulo é o homem comum que comummentetransmite ao homem comum o que esse único é: o bem, Deus como oabsoluto do bem. Num mundo em que o sentido actual do bem parececada vez mais ameaçado, requere-se um renovado esforço de revital-ização das energias deste humilde trabalho da inteligência humana emhumana ascenção para o bem, na recolha de um Logos universal infini-to por um logos finito, que só se constrói como acto humano porqueacto de sentido. O convite consiste em que cada um de nós, Paulos nasnossas grandezas e misérias, assumamos a possibilidade da construçãode um bem comum, apenas possível a partir da contemplação do únicogrande Bem, única fonte que dessedenta todas as sedes, infinitas sedesde um infinito bem, sede que é o homem, sede de Deus.

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