PAULO NETTO, J. - De Como Não Ler Marx Ou o Marx de Sousa Santos

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    De como não ler Marx ou o Marx de Sousa Santos**

    Sousa Santos, um sociólogo erudito e prolixo, cultiva uma imagem progressistafundamentalmente enganadora. A sua influência suporta-se em retórica em circuitofechado no seio académico, e em suposta sabedoria transcendente na arena docircuito dos movimentos sociais. É um sociólogo que fez a sua opção de classe enela milita, do lado dos opressores, supostamente eruditos, contra os oprimidos,supostamente intelectualmente destituídos. Neste ensaio, o Prof. brasileiro JoséPaulo Netto arranca-lhe a máscara.

     José Paulo Netto* - 17.09.08

    Professor Doutor Boaventura de Sousa Santos, doutor emSociologia do Direito pela Universidade de Yale e catedrático daFaculdade de Economia da Universidade de Coimbra é, atualmente, a personalidademais internacional dentre os intelectuais portugueses vivos (mais conhecido do queele, apenas o escritor comunista José Saramago).

    O renome de Sousa Santos não é fruto do acaso: se tem a ver com a sua intervençãocívica no interior do campo democrático e progressista, seja no marco de movimentossociais, seja noutros espaços políticos (comenta-se que, no seu segundo mandatopresidencial, Mário Soares o tinha como conselheiro pessoal), é sobretudo resultadode um intenso e múltiplo exercício teórico e analítico. Figura central na

    institucionalização da Sociologia no Portugal pós-salazarista, pesquisador incansável eorganizador científico, Sousa Santos vem contribuindo significativamente no debatecontemporâneo das ciências sociais, percorrendo um leque temático extremamenteamplo, que envolve da discussão epistemológica à abordagem renovada de complexoscomo os da cidadania e do Direito. Sua obra, ensaística e sistemática, divulgada emrevistas especializadas de vários países (inclusive do Brasil, onde já fez investigações etem estado com freqüência) e em livros (publicados em vários idiomas), é ponderável -cf., entre outros, Santos, 1988, 1989, 1990, 1991 e 1995a -, e carrega uma marcamuito peculiar: a erudição de que se satura vincula-se a uma prosa clara, meridianatransparente, vinculação (diga-se de passagem incomum no universo contemporâneodas ciências sociais) que, para além dos seus méritos inerentes, garante-lhe uma

    comunicabilidade excepcional. Prova incontestável desta qualidade foi o êxito de Pelamão de Alice. O social e o político na pós-modernidade - livro que, absoluto sucessode vendas em Portugal [1], viu-se em seguida editado no Brasil (Santos, 1995) [2].

    Trata-se de um instigante conjunto de ensaios, reunindo, ademais de trabalhosinéditos, estudos publicados em periódicos (de vários países: Portugal, Brasil, Itália,Estados Unidos, Uruguai) entre 1985 e 1993 - porém, se cada texto pode ser tomadoem sua singularidade, claramente demarcada pela imediata diversidade de objetos (darealidade portuguesa à crise mundial da instituição universitária, da relaçãoEstado/sociedade civil às questões da cidadania, subjetividade e emancipação, dafunção utópica à pós-modernidade, da sociologia dos tribunais à globalização da

    economia), nenhum deles é escrito de ocasião: todos expressam momentosconstitutivos da reflexão sistemática de Sousa Santos.

    Esta reflexão sistemática incide sobre o que o autor considera a transição

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    paradigmática própria do fim do século XX, envolvente de dois processos,naturalmente conectados: a transição epistemológica (vale dizer: do paradigma da"ciência moderna" ao da "ciência pós-moderna") e a transição societal (vale dizer: entrediferentes modos básicos de organizar e viver a vida em sociedade). Se o primeiro detais processos, que parece a Sousa Santos mais evidente e explícito, ocupou-opredominantemente até a entrada dos anos 90, em Pela mão de Alice ... ele nosapresenta os resultados iniciais de suas pesquisas sobre o segundo. Tais resultados,diz-nos o autor, "apesar de fragmentários, têm alguma consistência global",resumindo "a investigação e a reflexão que foram sendo feitas ao longo dos últimosanos" (Santos, 1995: 9).

    Vê-se, pois, que este é um livro de importância particular na dinâmica intelectual doautor - e, nele, a discussão do legado de Marx tem uma relevância específica, aindaque o espaço a ela dedicado seja dos mais econômicos [3]; entretanto, e a despeitodessa economia, Sousa Santos julga haver procedido aí “a um balanço geral daproposta de Marx" (idem: 243) e, já por isto,um "balanço" merece especial cuidado.

    Uma leitura muito simplória do marxismo 

    Pela mão de Alice ... compreende três partes: na primeira, intitulada Referências,Sousa Santos, em dois compactos capítulos, faz "uma reflexão sobre das referênciasteóricas que têm pautado a [sua] investigação" (idem:10). Na segunda, Condições deinteligibilidade, composta de quatro capítulos, o centro é a "análise de alguns dosaspectos da crise da modernidade enquanto paragdima societal" (idem, ibidem). Enfim,na terceira parte, Cidadania, emancipação e utopia, ordenada também em quatrocapítulos, "a análise combina-se com a prospectiva" (idem: 11).

    A riqueza temática do livro, já assinalada, distribui-se equilibradamente pela segunda eterceira partes e de modo tão orgânico que ao leitor mais atento pode mesmo escaparo fato de elas se constituírem de ensaios originalmente autônomos - o que, além domais, testemunha a coerência intelectual de Santos, bem como atesta sua castigadaartesania formal.

    Mas é indubitável a importância da primeira parte, com seus dois densos e econômicoscapítulos. Se o sugere o próprio título (Referências), comprova-o o sentido que SousaSantos lhes confere: sobre o primeiro (“Cinco desafios à imaginação sociológica"), dizo autor que, nele, "formulo algumas das minhas perplexidades analíticas perante astransformações sociais neste final do século e enuncio as vias por que se podemtraduzir em motivos de criatividade sociológica" (idem: 10); quanto ao segundo("Tudo que é sólido se desfaz no ar: o marxismo também?"), Sousa Santos não émenos direto - afirma ele:

    "No segundo capítulo, procedo a uma avaliação do marxismo enquanto tradiçãoteórica da sociologia com o objetivo de distinguir as áreas ou dimensões em quecontinua atual, e eventualmente mais atual que nunca, daquelas em que estádesatualizado e deve, por isto, ser profundamente revisto, senão mesmoabandonado" (idem, ibidem).

    Parece inteiramente legítimo inferir, então, que a "avaliação" efetuada por SousaSantos determina a sua posição relativamente a incorporar, e em que medida, ou não

    as referências marxistas ao seu instrumental heurístico e/ou, eventualmente, às suasprospecções sócio-interventivas (como veremos adiante, Sousa Santos sustenta adiferencialidade do estatuto dessas duas operações). Ora, a "avaliação" em tela, SousaSantos realiza-a em dois movimentos diversos: o primeiro consiste em um excurso

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    sobre a história do marxismo [4] e o segundo numa interlocução com o que se lheafigura o núcleo central da obra marxiana. Comecemos pelo primeiro movimento.

    Sousa Santos traça o que se poderia chamar, com excessiva boa-vontade, de umasinopse crítica do desenvolvimento do marxismo, do final do século XIX à década de80 do século XX, organizando-a em quatro períodos, aos quais oferece tratamentobem diferenciado.

    O primeiro cobriria os anos de 1890 a 1920, configurando o que "pode serconsiderado a idade de ouro do marxismo" (idem: 24) [5]; o autor crê, repetindopalmar constatação, que "a riqueza da reflexão marxista tem obviamente a ver com apujança do movimento socialista neste período" (idem: 25). Ele destaca duas grandescisões do período: a política, inaugurada com o debate acerca das proposições deBernstein, e a epistemológica, sinalizada pelo neokantismo dos austro-marxistas(aliás, bastante valorizados por Sousa Santos), cuja "concepção cientista esociologizante do marxismo foi fortemente contestada [depois de 1917] por teóricostão diversos como Korsch, Lukács e Gramsci" (idem: 25-26) [6].

    Os anos 30 e 40 constituem, na seqüência, "um período negro para o marxismo"(idem: 26). A combinação fascismo/stalinismo responderia, de um lado, pela difícilsobrevivência, na clandestinidade e no exílio, dos austro-marxistas e da Escola deFrankfurt e, de outro, pelo fim da reflexão teórica "com a liquidação de Plekhanov,Bukharin, Riazanov, Trotsky" (idem, ibidem) [7]. No imediato seguimento destaafirmação, Sousa Santos acrescenta, evidentemente referindo-se ao marxismo noLeste europeu, que aquela reflexão teórica nunca mais renasceu.

    O terceiro periodo, conforme o sociólogo português, envolveria os anos 50-70 - eleentende que, "a partir dos anos 50, o pensamento marxista renasce com vigor,iniciando uma fase brilhante que se prolonga até o final da 70" (idem, ibidem).Tangenciando os processos sociais que sustentam tal renascimento, Sousa Santosaponta seus frutos nos países periféricos [8]," lista seus desdobramentos nos paísescapitalistas avançados - com o desenvolvimento de “uma sociologia marxista demuitos matizes"? [9] e de "uma historiografia brilhante de inspiração marxista" (idem:28) [10] – e, na área continental da Europa Ocidental, destaca que esse movimento seexpressa no "marxismo ocidental", que se evidenciaria em "duas grandes orientações":a "teoria crítica da Escola de Frankfurt" e o "marxismo estruturalista francês" (idem:27) [11].

    Finalmente, o quarto período, referido aos anos 80, marcaria "a década o pós-marxismo": para Sousa Santos, "a solidez e a radicalidade do capitalismo ganhou [sic]ímpeto para desfazer o marxismo no ar" (idem: 29). Depois e arrolar os debates quelhe parecem os fundamentais do decênio [12], ele considera que ocorre nos paísescentrais "a dissolução do marxismo", enquanto, na periferia, "a sociologia deinspiração marxista continuou a produzir reflexões e análises valiosas" (idem:31) [13].Arrematando, o autor constata que "o perfil pós-marxista da década de 80 tem umtraço fundamental: é anti-reducionista, antideterminista e antiprocessualista" (idem,ibidem) [14] – perfil este que, destacando do "interior da teoria marxista" o debatesobre "a tensão ou equilíbrio entre estrutura e ação", acabará por privilegiar, nestesanos, uma "leitura antiestrutural", claramente oposta àquela predominante na décadade 60 (privilégio visível, por exemplo, no marxismo analítico de um J. Elster) [15].

    Aqui, Sousa Santos suspende o seu "breve excurso pela tradição teórica marxista"(idem: 32), para – depois interpelando ao próprio Marx – avançar no sentido deindagar se o legado de Marx tem algum futuro. Trata-se mesmo de um breve excurso

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    – e seria tolice, senão mesquinhez, reclamar do que "falta" numa sinopse que não sealonga por mais de dez páginas. Com efeito, não teria o menor cabimento exigir doautor o que ele não se propôs a oferecer – Sousa Santos não prometeu uma síntesehistórico-crítica do marxismo, absolutamente inviável, mesmo em suas linhasfundamentais, no espaço de que se valeu e na direção dos seus interesses.

    Todavia, ainda que nos situemos no interior dos quadros dessa sinopse – com seuslimites explícitos, formais e temáticos –, não há como ladear o seu caráter tosco einsuficiente para subsidiar mesmo a mais esquemática "avaliação do marxismoenquanto tradição teórica da sociologia" (idem: 10). Realmente, como entender que:a) ao abordar a "idade de ouro" (1890-1920), Sousa Santos não diga uma só palavrasobre os impactos da Revolução Russa no movimento socialista, sem os quais adinâmica da reflexão teórica nos anos 20 (e não só) é incompreensível?b) nessa mesma abordagem, Sousa Santos não se atenha minimamente sobre o querepresentaram os trabalhos (que, aliás, cita) de Korsch, Lukács e Gramsci, largandode mão, precisamente, a base de grandes polêmicas dos anos 20 (e, também, não sódeles), cujos núcleos problemáticos percorreriam boa parte do marxismo posterior?[16]c) ao mencionar (nos anos 30-40) a razia efetuada pelo stalinismo, Sousa Santosafirme que a reflexão marxista no Leste europeu tenha sido ferida a ponto de "nuncamais renascer", equalizando tudo sob "o pesadelo stalinista" (idem: 26) e descurandopor completo certos desenvolvimentos particulares, como, por exemplo, na Hungria ena Polônia e, ainda, nas então Iugoslávia e Tchecoslováquia? [17]d) com sua ênfase sociológica, Sousa Santos não se refira absolutamente, ao cuidardo terceiro período (anos 60-70), à contribuição essencial que, nesta etapa e nestaárea, foi oferecida por Henri Lefebvre ou pelos marxistas italianos?

    Observe-se que não estou, reitero, questionando omissões - exceto na indagaçãocontida em d) [18] – explicáveis e compreensíveis num "breve excurso". O que colocoem causa é, em a), um viés analítico que não contempla absolutamente nenhumadimensão do processo que, instaurando a fratura de maior magnitude no movimentosocialista, condicionaria largamente os rumos posteriores da tradição marxista; em b),a incrível superficialidade no trato de autores e obras emblemáticos e paradigmáticosdos dilemas da tradição marxista a partir do primeiro pós-guerra; em c), umaafirmação factualmente insustentável acerca do evolver do pensamento marxista nointerior dos países anteriormente ditos socialistas.

    Em suma, a minha crítica não incide sobre as escolhas, os cortes, enfim a seleção aque Sousa Santos obrigou-se pela natureza sinótica do seu "breve excurso": o que édébil e frágil é o tratamento teórico-crítico que conferiu ao objeto desse excurso – doqual resulta uma leitura vulgar e muito simplória da tradição marxista. Resultado nãosó injustificável, quando se conhece o talento do autor e se reconhece a riqueza doobjeto, mas sobretudo inepto para fundar qualquer apreciação séria do legadomarxiano no século XX.

    Mas o traço de vulgaridade que recobre todo esse primeiro movimento da "avaliação"de Sousa Santos não pode ser posto na conta de um eventual deslize do autor – eleme parece remeter a algo mais substantivo, a que retornarei adiante. Por agora,ocupo-me do segundo movimento de Sousa Santos, quando ele se dirige ao próprioMarx.

    O Marx de Sousa Santos: receita nova, pudim velho

    Sousa Santos interpela a obra de Marx – num espaço em que, de novo, há que

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    conceder excessivamente à capacidade de síntese do autor, uma vez que não gastamais de treze páginas com objeto de tamanha magnitude – a partir da "condição dopresente" (idem: 33). Já assinalei que, para Sousa Santos, essa condição secaracteriza por uma dupla transição paradigmática, a epistemológica e a societal – e énessa dupla dimensão que ele apreciará a obra marxiana.

    No campo dos que sustentam a exaustão do "paradigma da Modernidade", SousaSantos distingue (numa operação que, aliás, se encontra em outros analistas) duasconcepções diferentes: de um lado, há aqueles para os quais o exaurimento daModernidade significa o colapso final de suas promessas, de quaisquer objetivostransistóricos, com as práticas sociais das sociedades contemporâneas não tendomais qualquer alternativa – está aqui o "pós-modernismo reconfortante ou decelebração" (idem: 35), seguramente portador do neoconservadorismo outroradenunciado por Habermas; doutro, localizam-se os que argüem a Modernidade sejacultural, seja sociopoliticamente, verificando "que as promessas da Modernidade,depois que essa deixou reduzir suas possibilidades às do capitalismo, não foram nempodem ser cumpridas (idem, ibidem), porém demandando uma nova epistemologia euma nova socialidade – tem-se aí o "pós-modernismo inquietante ou de oposição"(idem, ibidem), no qual Sousa Santos se vê inscrito. É claro que, para o "pós-modernismo de celebração", não se põe o problema de um projeto societário distintoao do capital (nele, a história chegou, fukuyamamente, ao fim); assim, a dupladimensão da transição paradigmática só se coloca para a vertente "inquietante".

    Curiosa, mas explicavelmente, a distinção entre as duas vertentes – Sousa Santosassevera, expressamente, que são antagônicas (idem, ibidem), posição que está longede ser inteiramente fundada [19] – se esbate inteiramente no nível da teoria doconhecimento quando se trata de apreciar Marx. Segundo Sousa Santos, para o "pós-modernismo de celebração", "o marxismo nada tem a contribuir" (idem, ibidem); mas,também para o próprio autor, "no plano epistemológico, o marxismo pouco podecontribuir para nos ajudar a trilhar a transição paradigmática" (idem, ibidem). Tem-se,aqui, um "antagonismo"... relativo! A explicação reside, a meu ver, não apenas numviés irracionalista que permeia ambas as posições, [20] mas na concepção, de fatoesposada pelos dois "pós-modernismos", do "paradigma da ciência moderna" com queoperam [21].

    O conceito de paradigma, se pode ter alguma valia quando se trata de abordar odesenvolvimento das ciências que têm por objeto a realidade do ser natural, enfermade inteira imprestabilidade quando é deslocado para a apreciação do evolver doconhecimento do ser social (recorde-se, aliás, que o responsável pela divulgação doconceito no conhecido A estrutura das revoluções científicas, Kuhn (1972), mostrou-se muito cético quanto à sua aplicabilidade nas ciências sociais, consideradas por elecomo "pré-paradigmáticas") [22]. Ora, Sousa Santos desenvolve urna elaboradaversão do "paradigma da ciência moderna" que estende tranqüilamente da análise das"ciências duras" às ciências sociais e, nessa translação, tal "paradigma" se convertenum instrumento de redução indiferenciada que equaliza todo o século XIX, enfiandono mesmo saco da "ciência moderna" seja a lógica hegeliana, o sistema categorial deMarx ou as tipologias durkheimianas (Weber, naturalmente, tem aí um enquadramentodifícil, até porque, na corrosiva ironia de Mészáros [1996: 198 e ss.], é um homempara todas as estações). Nesse reino de absoluta indiscriminação, praticamente todaconstrução teórica (insista-se nesta qualificação: teórica) do século XIX, e não só, é

    subsumida na razão puramente instrumental – e, pois, repugna à "sensibilidade pós-moderna", seja ela "reconfortante" ou não.

    A determinação fundamental da qual parte Sousa Santos para interpelar Marx situa-se

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    neste marco. Afirma o autor:"Marx demonstrou uma fé incondicional na ciência moderna e no progresso eracionalidade que ela poderia gerar. Pensou mesmo que o governo e a evolução dasociedade podiam estar sujeitos a leis tão rigorosas quanto as que supostamenteregem a natureza, numa antecipação do sonho, mais tarde articulado pelo positivismo,da ciência unificada" (idem, ibidem).

    Este é o Marx de Sousa Santos -- um positivista avant la lettre, um pré-Durkheimedulcorado por uma perspectiva "utópica" (e de um "utopismo" insuficientementeradical') [23], este é o Marx que, com a facilidade viabilizada pelo desprezo àtextualidade e à documentação, todos os pós-modernos consideram um personagemdo Jurassic Park.

    Para esse gênero de consideração reducionista e equalizadora, as reiteradas eenfáticas notações marxianas sobre o caráter tendencial e histórico das leis histórico-sociais (sistematicamente constitutivas do pensamento de Marx e explicitadas, pelomenos, a partir da Miséria da filosofia) são desimportantes. É desimportante que adeterminação da "ciência única" – a história – apareça num contexto (a célebrepassagem de A ideologia alemã) onde está subjacente a problemática da humanizaçãoda natureza [24]. Igualmente, a complexa noção marxiana de progresso éconvenientemente vinculada às concepções positivistas de determinismo e evolução,como se nota no conjunto da “avaliação” de Sousa Santos – e aqui devemos nosdeter minimamente.

    O fulcro desta "avaliação" encontra-se numa passagem de Pela mão de Alice… situadafora do capítulo que é objeto do meu rápido exame polêmico, mas que subsidia ecomplementa admiravelmente. Nela, Sousa Santos afirma, com a sua prosa sempreclara e inequívoca, que

     “o erro de Marx foi pensar que o capitalismo, por via do desenvolvimento tecnológicodas forças produtivas, possibilitaria ou mesmo tornaria necessária a transição parasocialismo. Como se veio a verificar, entregue a si próprio, o capitalismo não transitapara nada senão para mais capitalismo. A equação automática entre progressotecnológico e o progresso social desradicaliza a proposta emancipadora de Marx etorna-a, de fato, perversamente gêmea da regulação capitalista" (idem: 243).

    Nesta passagem, a única referência verdadeira é a que diz respeito a que, domovimento do capitalismo, entregue a si mesmo, só pode derivar mais capitalismo –como, aliás, sobejamente o sabia Marx (não fosse por outra razão, ele considerava aorganização da vontade política dos proletários absolutamente indispensável para atransição socialista e, conseqüente com esta convicção, foi um incansável organizadordos trabalhadores) –; todo o resto da passagem é falso:

    1. não se pode sustentar seriamente, a partir de uma leitura rigorosa de Marx, ahipótese de um desenvolvimento "automático", "natural" e/ou "espontâneo" da forçaprodutiva engendrada pelo "desenvolvimento tecnológico". De 1847 a 1867 (passandopelas longas disquisições dos Gründrisse...), Marx insistiu suficientemente em que ocaráter revolucionário do capitalismo – designação, aliás, pouco utilizada por ele – noque toca ao desenvolvimento das forças produtivas vincula-se às lutas entre capital etrabalho: é esse antagonismo radical, cuja solução socialmente progressista depende

    do nível de consciência e intervenção sociopolítica dos trabalhadores, que leva o capitalà inovação científico-tecnológica. Vê-se como o Marx real se distingue do Marx deSousa Santos: nas mãos deste, o primeiro teórico socialista a pensar ocondicionamento sociopolítico do desenvolvimento científico-tecnológico se converte

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    num vulgar apologista do "determinismo tecnológico";

    2. leitura similar desautoriza liminarmente imputar a Marx uma pretensa "equaçãoautomática entre o progresso tecnológico e o progresso social". Bem ao contrário, noconjunto da obra marxiana o que é enfaticamente destacado é que, nos quadros deuma sociedade dinamizada por contradições de caráter antagônico, o desenvolvimentosocial (que, isto me parece incontroverso, para Marx supõe desenvolvimento de forçassociais produtivas) implica sistematicamente componentes de barbarização [25]. Anoção de progresso no Marx dos textos autógrafos, ao contrário do que nos propõea visada de Sousa Santos, contempla sempre, numa ordem social como a capitalista,uma contraface que a divorcia de qualquer visão unidimensional."

    Por isto, seja a "fé incondicional na ciência moderna", que Sousa Santos atribui aMarx, seja a "fraternidade" que vê entre sua proposta de emancipação e a regulaçãocapitalista mostram-se, tal como as concebe o ilustrado sociólogo lusitano,completamente insustentáveis.

    Sumario, antes de prosseguir. No marco da transição paradigmática, do ponto devista epistemológico, Marx – e, no fim das contas, segundo Sousa Santos, isto valepara qualquer pós-modernismo, seja o "reconfortante", seja o "inquietante" – sedesfez no ar. Cabe avançar, então – e, como vimos, esse avanço só tem cabimentopara o pós-modernismo esposado por Sousa Santos, isto é, o "inquietante" – para aconsideração de Marx do ponto de vista da transição societal. No capítulo de Pela mãode Alice ... de que me ocupo, Sousa Santos afirma que, ao contrário do que ocorre nointerior do "pós-modernismo de celebração", para a sua posição pós-moderna cabeinterpelar a Marx, posto que ao "pós-modernismo de oposição" torna-se

    "essencial a idéia de uma alternativa radical à sociedade atual, e Marx formulou, maiscoerentemente que ninguém, uma tal alternativa. A questão está, pois, em saber emque medida a alternativa de Marx, que é tão radicalmente anticapitalista quanto émoderna, pode contribuir para a construção de uma alternativa assumidamentepós¬moderna" (idem: 36).

    Um crítico inscrito ainda no "decadente" paradigma moderno poderia indagar se vale apena, para Sousa Santos, debruçar-se sobre a prospecção societal de um analistacujos referenciais teórico-metodológicos o anacronizam face da transiçãoepistemológica – pois é este, justamente, o caso de Marx para o sociólogo deCoimbra. Mas o problema não se coloca para Sousa Santos: como antecipeirapidamente, ele também aqui se opõe às "ciências sociais da modernidade”, que, deacordo com ele, tenderam a situar num mesmo campo gnosiológico as operações deexplicação/compreensão da sociedade e de detecção da direção da transformaçãosocial; conseqüentemente, o autor acredita que "a sociologia [sic] de Marx é, em geral,coerente com a utopia [sic] de Marx, mas não se confunde com ela" (idem, ibidem).Assim, Sousa Santos se põe a buscar a resposta sobre a eventual atualidade de Marxpara uma alterna¬tiva societal.

    E fá-lo questionando a contribuição de Marx em três "áreas temáticas: processos dedeterminação social e autonomia do político; ação coletiva e identidade; direção datransformação social" (idem, ibidem). Nas "três áreas", que a reflexão de SousaSantos procura explorar (idem: 33-45), a "avaliação" procedida pouco salva além de

    um Marx utópico (aliás, repita-se, insuficientemente utópico...):1. no que tange aos processos de determinação social, para além de protocolaresreverências ao tônus da análise marxiana, Sousa Santos considera (sem deixar aquide mão o "determinismo" e o "evolucionismo") que ela enferma de um insustentável

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    "reducionismo econômico" (idem: 38). É claro que, tomando a teoria social de Marxcomo uma teoria fatorialista (o "econômico", o "político", o "cultural") – e, emresumidas contas, é assim que Sousa Santos a visualiza (idem, ibidem) –, ficarelativamente fácil tergiversar e escamotear a concreta análise marxiana dasdeterminações econômico-políticas que é simplificada em termos de"base/superestrutura". Evidentemente, para argumentar em torno desse"reducionismo econômico", Sousa Santos elude o rico arsenal heurístico que Marxapurou ao largo de seu itinerário de pesquisa (se, para um pós-moderno,compreende-se que totalidade cheire a "totalitarismo", é menos compreensível anenhuma alusão ao conceito, aliás operativo, de formação econômico-social);

    2. quanto ao nó ação coletiva e identidade, a problematização de Sousa Santos (idem:39-42) é pertinente e merece uma análise cuidadosa, que não cabe nos limites destanota polêmica. Ainda que se discorde da sua interpretação sociopolítica acerca doprotagonismo da classe operária no processo de transformação da ordem burguesa eda sua apreciação sobre a precisão das antecipações de Marx quanto ao destino dasclasses no evolver do capitalismo, as questões que coloca – referentes tanto à ênfasemarxiana nas classes como princípio "explicativo" e como princípio "transformador" –são inegavelmente legítimas e instigantes [27], na medida em que assinalam dilemasainda em aberto e para os quais o recurso a Marx freqüentemente se revela umaforma de ladear o impóstergável exame de realidades novas [28];

    3. no que se refere à direção da transformação social, Sousa Santos anota que a

    "idéia de Marx de que a sociedade se transforma pelo desenvolvimento decontradições é essencial para compreender a sociedade contemporânea, e a análiseque fez da contradição que assegura a exploração do trabalho nas sociedadescapitalistas continua a ser genericamente válida. O que Marx não viu foi a articulaçãoentre a exploração do trabalho e a destruição da natureza e, portanto, a articulaçãoentre as contradições que produzem uma e outra" (idem: 44 - grifo não original; cf.,supra, notas 24 e 25).

    Eis por que, segundo Sousa Santos, entre outras razões, a "utopia" que atribui aMarx é insuficientemente radical e, pois, inadequada para subsidiar a transiçãoparadigmática societal – esta exige a "utopia ecológica e democrática" (idem: 43), coma qual se alinha o autor [29].

    Ao fim de sua "avaliação", Sousa Santos nos oferece um Marx que, referência dasciências sociais (aqui, não se esqueça, a impostação é sociológica) e objeto deevidente respeito e simpatia, não passa pelo crivo crítico do "pós-modernismo deoposição" também no território sociopolítico, enfermado que está seu pensamento de"determinismo", "evolucionismo" e "reducionismo". E, emblematicamente, não seconcede ao infeliz Marx qualquer benefício de dúvida ou ambigüidade – sequer aexistência de tensões internas no seu pensamento, como as explorou, por exemplo,Alvin W. Goudner –: Sousa Santos provavelmente considera como residuais possíveisambiguidades ou tensões na obra marxiana [30].

    Ora! o fato é que, à parte aqueles respeito e simpatia, a leitura de Marx por SousaSantos, aparentemente sofisticada e reveladora de interesses analíticos renovados,apresenta resultados extremamente similares aos já centenariamente divulgados pela

    grossa maioria dos cientistas sociais que, entre outras coisas, notabilizam-se pela suaplena integração ao establishment. Correndo o risco de cometer uma indelicadezaformal, a leitura de Marx por Sousa Santos pode ser caracterizada como uma receitanova - com ingredientes como Modernidade, paradigma etc. – que culmina na feitura

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    de um pudim cujo gosto se conhece há muito – determinismo, evolucionismo,reducionismo econômico. Os habituados aos velhos confeitos da Teoria Sociológica deterno e gravata sabem que as guloseimas oferecidas por N. Timasheff não tinhamoutro sabor.

    Em síntese: uma análise incompetente

    Não é necessária nenhuma argúcia especial para concluir, a partir dessa "avaliação domarxismo enquanto tradição teórica da sociologia", ou deste "balanço geral daproposta de Marx,” que a contribuição marxiana e/ou marxista para o enfrentamentoda "transição paradigmática" contemporânea configura um aporte pouco mais quemedíocre – Sousa Santosnão o diz expressamente, mas há passagens, em Pela mãode Alice..., das quais se pode inferir que o pobre Marx, para além da sua "utopia"(que, como vimos, nem suficientemente "radical" é)! Não tem serventia maior queWeber e Durkheim [31].

    É preciso deixar muito claro que são secundárias, a esta altura, as opiniões eapreciações de Sousa Santos sobre Marx e a tradição marxista; que ele, como todos equalquer um de nós, é livre para emitir quaisquer juízos de valor sobre ambos, sejaenquanto cidadão, seja enquanto intelectual – papéis que, como sabemos, seentrecruzam sem se confundir. Mas parece não haver muita dúvida de que o papel dointelectual exige modos de argumentação mais rigorosos para validar tais juízos. E éexatamente aqui que se põe o problema da "avaliação" de Sousa Santos: a sua análiseda teoria marxiana é de todo incompetente para fundar uma interpretação que dêconta, minimamente, da fecundidade ou não daquela teoria para enfrentar os grandesdesafios contemporâneos. Com efeito, o Marx de Sousa Santos justifica a tese deque,

    "se a modernidade se torna hoje mais do que nunca problemática, o marxismo serámais parte do problema que defrontamos do que da solução que pretendemosencontrar" (idem: 35).

    Entretanto, já salientei quão distintos são o Marx de Sousa Santos e o Marx real,verificável nos textos autógrafos.

    Com franqueza, repito: independentemente dos limites a que se impôs, a análise que,em Pela mão de Alice..., Sousa Santos nos oferece de Marx e sua tradição é umaanálise incompetente: se apanha alguns elementos significativos e lacunas reais dateoria marxiana (como indiquei), repete lugares-comuns insustentáveis (dos quais omais tolo é a acusação acerca do "reducionismo")." faz afirmações completamenteabsurdas (como aquela sobre "a equação automática entre progresso tecnológico eprogresso social") e elude convenientemente importantes tematizações marxianas(como as referidas à relação sociedade/natureza). Presta, com isto, dois enormesdesserviços à investigação: de um lado, reforça preconceitos ignorantes em face dateoria marxiana; de outro, não contribui para que a pesquisa identifique o que, nessateoria, efetivamente perdeu atualidade e validez. No fim das contas, é quaseinacreditável que um intelectual do nível e da qualidade de Sousa Santos – que, poroutra parte e como assinalei, revela-se capaz de análises finas e sugestivas – possanos apresentar um Marx tão deformado e empobrecido e um marxismo tão miserável.

    Mas quando um autor competente como Sousa Santos tanto se expõe numa análiseassim incompetente, há que buscar razões de fundo para isto.

    Se se podem invocar causas e motivos de ordem episódica e pessoal (pressa em

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    publicar textos? passageira ausência de autocrítica?), eles não parecem procedentesem referência a um acadêmico responsável como o pesquisador em tela. Aqui devehaver algo mais substantivo que meras idiossincrasias, mais relevante que um ououtro preconceito, mais importante que um controle maior ou menor sobre tal ou qualobra de Marx. E quer-me parecer que o busílis da questão (para retomar a expressãotão cara ao velho Florestan) reside no tratamento teórico-crítico que Sousa Santosdedica a Marx e à tradição marxista.

    Nas páginas de Pela mão de Alice... o que é fundante na análise que Sousa Santos fazda teoria marxiana (e da tradição marxista) é uma concepção convencionalíssima daobra de Marx, que teria criado, "ainda que de modo não sistemático, uma nova teoriada história, o materialismo histórico" (idem: 36), a partir do qual se viabilizariam cortescientíficos e ideais particulares – donde Sousa Santos possa referir-se à "sociologia" eà "utopia" de Marx, como poderia referir-se a uma "filosofia", a uma "economia" etc.Ou seja: a concepção de Sousa Santos projeta sobre a obra marxiana a divisão das"ciências sociais oitocentistas", apanhando nela os recortes teórico-científicos que maislhe convêm (no caso, a ênfase numa "sociologia"). Está claro que, com esteprocedimento, o que não se resgata da teoria social de Marx é justamente aquilo quelhe é mais visceral e medular: seu caráter unitário e totalizante/totalizador, embasadonuma ontologia do ser social – a partir da crítica da economia política – historicamenteconstituído no mundo do capital.

    O procedimento é tão velho quanto a própria sociologia (como disciplina científicainstitucionalizada). E vem sendo histórica e sistematicamente reiterado (inclusive pormarxistas) – mas nada disto o torna legítimo, ainda que coberto de créditosacadêmicos. Que os sociólogos (bem como outros cientistas sociais especializados)dos mais diversos matizes tenham se inspirado em Marx e/ou nele recolhido indicaçõesteóricas e analíticas e que, no interior mesmo da tradição marxista, se tenham geradocorrentes sociológicas não afeta a substância da questão que, como Lukács indicou jáem 1923, consiste na relação de excludência entre a teoria marxiana da sociedadeburguesa e o discurso de uma ciência social especializada qualquer. Numa formulaçãomais precisa, o mesmo Lukács (1968, cap. VI) esclareceu o fulcro da questão: oestatuto original da sociologia repousa no corte entre relações sociais/relaçõeseconômicas, com a explicação sociológica das primeiras prescindindo da análise dassegundas (que, então, se remetem a outra ciência especializada, a economia) [33].Ainda que os praticantes do que Florestan chamou de "sociologia crítica" (ou "radical")tenham e venham procurando romper com este corte – e esta procura é sensível emSousa Santos [34] –, o quadro estrutural-categorial próprio da reflexão sociológica(como de qualquer ciência social especializada) os compele a encontrar na crítica daeconomia política e na crítica das relações econômicas empiricamente dadas quandomuito as famosas (e engelsianas) "determinações em última instância".

    Sousa Santos, indiscutivelmente, é um sociólogo "crítico" (ou "radical") e, como todosos sociólogos "críticos", procede sobre a estrutura categorial própria à sociologia –donde a inapreensão do caráter unitário da teoria social marxiana com a(pres)suposição dos seus níveis "sociológicos", "econômicos", "utópicos" etc., postoque a pense à moda das "ciências sociais oitocentistas" (idem: 38). É por esta razãoque ele pode fazer um "balanço" do marxismo como tradição sociológica sem discutirminimamente o estado da crítica da economia política marxista (que, obviamente, ématéria da "economia", não da "sociologia…) [35]. É esta a razão que faz este "olhar

    sociológico" converter a teoria social de Marx numa enciclopédica teoria fatorialista do"econômico", do "social", do "político" etc.. E é evidente que, sob tal luz, asdeterminações complexas, bem como os seus igualmente complexos sistemas demediações, que articulam a totalidade concreta que é a sociedade burguesa passam a

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    oferecer o espaço ideal seja para a construção reflexiva de determinismos simplistas,seja para a postulação, também puramente reflexiva, de autonomias relativas("regionais"?) que terminam por se hipostasiar [36], Assim, é óbvia a dificuldade pararecuperar, no plano do pensamento, as concretas interdeterminações e mediaçõesentre os vários níveis, instâncias e esferas constitutivos da sociedade – dificuldadeque, às vezes, se converte mesmo em impossibilídade [37].

    É este trato sociológico da teoria marxiana que responde substantivamente (ainda quenão exclusivamente) pela flagrante debilidade do "balanço geral" – com suasconseqüências na decorrente "avaliação" – que, em Pela mão de Alice…, Sousa Santosexercita pobre e esquematicamente. Trato que está longe de comprometer a Marx e àtradição (teórico-prática) a ela afeta. Antes, pela enésima (mas não última) vez,comprova que o "olhar sociológico", ao vestir a obra de Marx com a mesmasobrecasaca de Durkheim e Weber, comporta-se diante dela como o vermedrummondiano que, partilhando da "alegria de zombar dos mortos",

    só não roeu o imortal soluço de vida que rebentavaque rebentava daquelas páginas(Andrade, 1977: 105).

    Notas:[1] Publicado pela Afrontamento (Porto) em 1994, 0 livro esgotou a primeira ediçãoem Maio e a segunda em Setembro, fazendo com que a editora colocasse nomercado a terceira em Novembro.[2] Todas as citações que farei de Pela mão de Alice... serão extraídas dessa edição.[3] Embora as referencias a Marx e a tradição marxista estejam presentes em varias

     passagens, esta discussão, como se verá, ocupa somente um capítulo do livro, 0segundo (Santos, 1995: 23-49).[4] A alusão ao marxismo não implica a existência de "um cânon marxista. Não háuma versão ou interpretação autorizada do que Marx verdadeiramente disse ou quisdizer. Não há uma ortodoxia a que se tenha de prestar lealdade incondicional, neminversamente fazem muito sentido protestos de renegação ou abjuração [...]. Numa

     pincelada de sociologia do marxismo pode dizer-se que canonização e ortodoxia são próprios de universos de conhecimento que se pretendem diretamenteconformadores da prática social como é o caso, por exemplo, da teologia ou da

     psicanálise" (idem: 33). Parece claro que, aqui, a noção de ortodoxia nada tem a ver com o sentido que Lukacs, no primeiro ensaio de História e consciência de classe(que Sousa Santos conhece), Ihe atribuiu.[5] Sousa Santos reproduz aqui, literalmente, a apreciação de Kolakowski, para quem"o periodo da Segunda Internacional (1889-1914) pode ser denominado, semexagero, a idade de ouro do marxismo" (Kolakowski, 1982: 9).[6] Aqui, Sousa Santos simplesmente remete às obras desses três autores (emreferencias bibliográficas que suprimimos nesta citação), com um comentárioesquemático, ao qual retornaremos adiante, de exatas seis linhas (idem: 26).[7] E inteiramente falsa essa menção a Plekhanov: o "pai do marxismo russo" não foi liquidado, mas faleceu num hospital finlandês em 30 de Maio de 1918.[8] Rememorando, a esta altura, o impacto do maoismo, a argúcia de Fannon e a"teoria da dependência", de Fernando Henrique Cardoso et alii.[9] Sousa Santos arrola, aqui, inúmeros analistas, entre os quais Mills, Poulantzas,Miliband, Touraine, E. O. Wright, G., Theborn, Marcuse, R. Williams, Habermas e

    Bourdieu.[10] Neste passo, Sousa Santos evoca Braudel, Hobsbawm e Thompson. Entre a"sociologia" e a "historiografia", menciona ainda uma "investigação sociológicahistórica de grande criatividade", lembrando os trabalhos de B. Moore Jr. e I.

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    Wallenstein.[11] Esta passagem do texto de Sousa Santos é particularmente equivoca; de umlado, referir o "marxismo ocidental" como próprio deste período (anos 50-70) é, paradizer o mínimo, uma tolice historiográfica. De outro, situar, como ele a faz, LucienGoldmann no marco do "marxismo estruturalista francês", "devedor da reflexãofilosófica de Althusser e da antropologia de Levi-Strauss" (idem: 27), é ignorar completamente a concepção goldmanniana de estruturalismo genético.[12] Curiosamente, a autor anuncia a relevância de quatro dentre os debatesimportantes da década, mas, ao discrimina-los, menciona cinco (idem: 30)incidentes sobre: 1) processos de regulação social nas sociedades capitalistasavançadas (Aglietta, Brender, Boyer); 2) processos de formação e de estruturaçãodas classes nas sociedades capitalistas, considerando as novas classes e seus lugarescontraditórios (E. O. Wright); 3) primazia ou não da economia, das relações de

     produção ou das classes na explicação dos processos de transformação social (Offe,M. Mann, N. Mouzelis, 1. Sckopol, p. Evans); 4) natureza das transformaçõesculturais do capitalismo (F. Jameson); 5) avaliação do desempenho politico dos

     partidos socialistas e comunistas e, em geral, do movimento operário europeu(W.Korpi, A. Przeworski).[13] Sousa Santos ilustra: "A título de exemplo, refiram-se os estudos sobre os novosmovimentos sociais e sobre os processos de transição democrática na AméricaLatina e os estudos de sociologia histórica sobre o contexto colonial e pós-colonial daÍndia […]" (idem: 31).[14] É interessante observar que Sousa Santos identifica dois "pós-marxismos": o dadécada de 80, aí referido, e o da década anterior, "pós-estruturalista […], fortementetributário de Foucault e da reflexão teórica na lingüística, na semiótica, na teorialiterária e mesmo na psicanálise" (idem: 31).[15] A propósito da "articulação ação/estrutura tal como ela foi se constituindo etransformando na tradição marxista", Sousa Santos (idem: 32) realça a crítica a"mais aguda e mais inovadora", oriunda da "sociologia feminista" e a recusa "dessadualidade no seu todo", expressa na obra de E. Laclau e C. de Mouffe, Hegemony and Socialist Strategy. Toward a Radical Oemocratic Politics (London, Verso, 1985); num

     passo posterior, Sousa Santos sugere sua discrepância com esses dois autores (idem:37).[16] Mencionamos atrás (nota 6) que, com eles, Sousa Santos gasta seis linhas; valea pena transcrever sua notação: "Convergiam estes pensadores na idéia de que aconversão do marxismo numa ciência positiva desarmava o seu potencial revolucionário. As raízes do marxismo eram hegelianas e faziam dele uma filosofiacrítica, uma filosofia da práxis, mais virada para a construção de uma visãolibertadora e emancipadora do mundo do que para uma análise sistemática eobjetiva da sociedade capitalista" (idem: 26). Deixando de lado as substantivasdiferenças entre os três autores, o que Sousa Santos não assinala concretamente é oconteúdo antipositivista e anti-reducionista que especialmente Lukács, batendo fortecontra o marxismo vulgar da Segunda Internacional, introduz no debate; a ausênciadessa sinalização contribui para explicar por que Sousa Santos parece ignorar que ocombate aos vários reducionismos (de natureza econômica, notadamente) surge

     precisamente nos anos 20, bem antes de qualquer "pós-marxismo"; sua chave,formulou-a Lukács na frase de abertura do ensaio sobre Rosa Luxemburgo (1921): "É o ponto de vista da totalidade e não a predominância das causas econômicas naexplicação da história o que distingue de forma decisiva o marxismo da ciênciaburguesa" (Lukács, 1965: 47).

    [17] É assombroso, para quem se preocupa com o desenvolvimento da sociologia, aausência, aqui, da menor referência aos autores da Escola de Budapeste, reunidosem torno de Lukács (quando se sabe, ademais, que Sousa Santos conhece ostrabalhos de Agnes Heller, Ferenc Féher e G. Markus), aos empenhos de um S.

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    Ossowsky – sem falar de nenhuma alusão ao grupo Práxis e a Kosik.[18] Mas, nesse caso específico, as duas omissões são verdadeiramente graves - seum sociólogo culto não pode deixar de considerar a obra multifacética de Lefebvre,nenhum balanço, por mais sumário que seja, do marxismo nos anos 50-70 pode ser levado a sério se não consigna a produção peninsular da época (quanto aos italianos,Sousa Santos limita-se a protocolares citações de Labriola e Gramsci).[19] Para um pensador marxista contemporâneo, essa distinção já convencional ("pós-modernismo de celebração/pós-modernismo de oposição"l no interior do"campo pós-moderno" é inteiramente desprovida de fundamentação (Mészáros,1996: 27-70).[20] Muito mais evidente no caso do "pós-modernismo reconfortante". Parece-meque Sousa Santos recusaria de plano esta observação, que não posso desenvolver aqui; contudo, uma análise mais cuidadosa de seu pensamento – ao qual, como elemesmo reconhece, não é alheia a influência de Heidegger (idem: 76) – apontariaeste viés, presente inclusive em não poucas passagens de Pela mão de Alice... (cf.esp. as notações sobre "Conhecimento e subjetividade", pp. 328 e ss.).[21] Sousa Santos debateu amplamente a questão em Santos (1989l.[22] O próprio Habermas, cuidadoso como sempre, já advertira que este é um"conceito que só se pode aplicar com certas reservas às ciências sociais" (Habermas,1988, I: 157, nota).[23] Numa passagem de Pela mão de Alice..., discutindo o "pilar da emancipação" do

     projeto da Modernidade, no "período do capitalismo liberal" (século XIX), SousaSantos considera que "o socialismo dito utópico é, nos seus objetivos, mais radical que o socialismo dito científico" (p. 83).[24] Sousa Santos, justamente preocupado com os desastres provocados peloestatuto (com as suas incidências prático-sociais) meramente objetual de que anatureza desfruta no "paradigma da ciência moderna", atribui a Marx concepçãoidêntica à desta última, passando inteiramente por alto as páginas que, nosManuscritos econômico-filosóficos de Paris, ele dedicou à relação sociedade/natureza.[25] Apenas duas passagens, para atestar a notação: "A um certo estágio daevolução das forças produtivas, vê-se o surgimento de forças de produção e meiosde comércio que, nas condições existentes, apenas causam malefícios. Não são maisforças de produção, mas de destruição […]”; "[…]”. As coisas chegaram hoje ao

     ponto em que os indivíduos se vêem obrigados a se apropriarem da totalidadeexistente das forças produtivas não só para se afirmarem, mas, sobretudo, pararesguardar a sua existência" (trechos de A ideologia alemã, in Marx, 1982, /11: 1120,1122).[26] Não cabe aqui mostrar como, nesse aspecto, Marx é um herdeiro direto deHegel, cuja noção de progresso é diversa das "ilusões heróicas" da Ilustração doséculo XVIII.[27] Noutro passo de Pela mão de Alice... tematizando a "transformação nãocapitalista" da sociedade atual, Sousa Santos faz uma observação que certamente odistingue de boa parcela dos sociólogos contemporâneos: assevera que "se tal transformação não pode ser feita só com o operariado, tão pouco pode ser feita semele ou contra ele" (idem: 272).[28] No exame dessas novas realidades, fundamentalmente as que são postas pelacrescente complexidade concreta da ordem tardo-burguesa, algumas contribuiçõesde Sousa Santos merecem particular atenção - e muitas delas comparecem em Pelamão de Alice...[29] A esta "utopia" - que, noutro desenvolvimento, Sousa Santos chamará de

    heterotopia – corresponderia o "Paradigma Eco-Socialista" (idem: 336 e ss.). Quantoà noção de socialismo de Sousa Santos, ela aparece lapidarmente quando discute as"mini-racionalidades pós-modernas" (idem: 111).[30] É fato que assinala umas poucas delas (cf., por exemplo, idem: 37-38, 241),

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    mas não as explora minimamente.[31] "Marx deve ser posto no mesmo pé que os demais fundadores da sociologiamoderna, nomeadamente Max Weber e Durkheim. [ ... ] Apesar de se guardarem deuma tradução organizada das suas idéias em processos de transformação social, Max Weber e Durkheim não se coibiram de fazer previsões e de apontar direçõesdesejáveis ou indesejáveis de transformação social. O que os distingue de Marx é,neste domínio, o íato de suas previsões se manterem dentro do quadro docapitalismo […]. Porque se limitaram a prever variações do presente, Max Weber eDurkheim falharam menos estrondosamente que Marx em suas previsões. Mas, por outro lado, ao tentar prever mais longe e mais radicalmente, Marx apresentou, talvez contra sua vontade, uma das últimas grandes utopias da modernidade: é hoje claroque todo socialismo é utópico ou não é socialismo" (idem: 33-34).[32] O "reducionismo economicista" que Sousa Santos atribui a Marx - expressa eobliquamente (idem: 36 e 120) - é uma inteira ficção, como Mészáros, entre muitos,

     já demonstrou sobejamente (Mészáros, 1993, parte 111).[33] Recorde-se que Marcuse, no seu estudo de 1941 - Razão e revolução. Hegel e oadvento da teoria social (Marcuse, 1969) -, pensa no mesmo compasso(desistoricização e deseconomicização) a constituição da sociologia.[34] Cf. esp. os dois últimos capítulos de Pela mão de Alice... É de notar, porém,que, nessas páginas, o trato dos processos econômicos é muito mais de naturezaconstatativa que analítica.[35] Certamente que, no seu "balanço", ele menciona Hilferding e um que outro"economista"; mas a contribuição e/ou as polêmicas derivadas dos trabalhos, apenas

     para citar alguns exemplos notáveis, de Varga, Crossmann, Sweezy, Baran, Dobb,Boccara e Mandei seguramente lhe parecem pertencer a outro continente teórico.[36] Prova-o, por exemplo, a própria concepção que o sociólogo português vemapresentando da Modernidade. Sousa Santos tem sabido evitar, ao longo de suaobra, a visão simplória, chapada e apologética da Modernidade que comparece namaior parte dos ideólogos pós-modernos. Muito especialmente, ele tem procurado,no plano histórico-sistemático, discernir o Projeto da Modernidade do capitalismo(idem: 76), inclusive investigando os rebatimentos do evolver deste último sobreaquele projeto (idem: 80-93). É interessante, assinale-se, na sua análise daModernidade, a conexão que estabelece entre o "pilar da regulação" e o "pilar daemancipação", com seus respectivos "princípios" e "lógicas de racionalidade" e com aexpressa admissão de que o projeto sociocultural moderno é "muito rico, capaz deinfinitas possibilidades e [...] sujeito a desenvolvimentos contraditórios" (idem: 77).Todavia, e como se verifica em praticamente toda a literatura que tematiza aModernidade de um ponto de vista pós-moderno, Sousa Santos tem as maioresdificuldades para explicitar concretamente tais "desenvolvimentos contraditórios": no

     plano crítico-analítico, acaba por caucionar um "paradigma da Modernidade" inteiramente enquadrado pela lógica do capital - assim é que, considerando oscontemporâneos "problemas com que nos defrontamos" (conversão dos problemasético-políticos em problemas técnicos, legitimidade da propriedade privadaindependentemente do seu uso, obrigação política vertical do cidadão frente aoEstado, crença produtivista no progresso), Sousa Santos não vai à caça dasmediações que propiciem articulá-los à dinâmica e à lógica atuais do capital, mas vêna "base" de tais problemas ... "quatro axiomas fundamentais da modernidade"!(idem: 321). A tensão irresoluta nessa concepção de Modernidade é indescartável: deuma parte, teoricamente, Sousa Santos substancializa o Projeto da Modernidade,autonomizando-o das concretas conexões que mantém com a ordem do capital e,

    de outra, analiticamente, termina por estabelecer entre Modernidade e capitalismouma relação unívoco-funcional.[37] Quanto a isso, são ilustrativas as páginas que Sousa Santos dedica à análise darelação Estado/sociedade civil, que ele pensa como "dualismo" (idem: 115 e ss.).

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