Pedagogia prisional e reabilitação: um estudo de caso...2 O Programa Jovem Aprendiz é um programa...

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Pedagogia prisional e reabilitação: um estudo de caso Pablo Rodrigo Bes Oliveira[1] RESUMO A escrita deste artigo surge da pesquisa desenvolvida pelo autor como professor numa turma de educação profissionalizante no Presídio Central do município de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Este curso se realizou nos anos de 2014 e 2015 e estendeu-se pelo período de um ano e dois meses, atendendo aos jovens adultos (18 a 23 anos), num esforço conjunto intersetorial do Ministério do Trabalho, Superintendência de Segurança Pública, Brigada Militar e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC) e uma empresa privada, enquadrado dentro do Programa Jovem Aprendiz, de iniciativa do governo federal. O objetivo de tal curso era a preparação de jovens para o mundo do trabalho num primeiro momento, fornecendo-lhes uma formação profissional e também uma formação para a vida futura após o seu período de privação de liberdade. Este trabalho parte de uma crítica ao cenário carcerário nacional e suas dificuldades/ possibilidades para intervenções educativas para, então, analisar as pedagogias que operam para constituir, nas pessoas privadas de liberdade, certas disposições para o trabalho, visto como oportunidade de reabilitação social. Utilizam-se como principais operadores teórico-metodológicos os conceitos de identidade e diferença, uma vez que a pessoa privada de liberdade é vista como “o outro”, estando marcada com o signo da diferença. Estes conceitos são analisados sob a lente teórica dos Estudos Culturais em Educação que possibilitou novos olhares e problematizações sobre a temática. A metodologia da pesquisa sustenta-se, em especial, na observação em registros realizados no período de abril de 2014 a junho de 2015. Os resultados da pesquisa mostram que uma pedagogia prisional, no contexto observado, se estabelece através de duas estratégias principais: o controle dos corpos sustentado na disciplina, que se materializa em regras, rotinas e rituais propostos pelos setores de segurança do local aos detentos; a retórica da reabilitação social sustentada em propostas de formação para o trabalho. Evidencia-se também, existirem uma série de estratégias e mecanismos que reforçam as identidades criminosas em oposição às tentativas dos projetos educacionais de mudança deste quadro. Por fim, destaca-se a importância de que os cursos de Pedagogia e outras licenciaturas que atuam no ambiente carcerário incluam em suas grades curriculares um número maior de disciplinas voltadas para o contexto prisional, embasando teoricamente os acadêmicos para exercer suas atividades. Palavras-chave: Pedagogia prisional, diferença, disciplina. [1] Doutorando em Educação pela Universidade Luterana do Brasil, Mestre em Educação pela mesma universidade, MBA em Coaching, professor do Curso de Pedagogia do Centro Universitário UNICNEC de Osório E-mail:[email protected]

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Pedagogia prisional e reabilitação: um estudo de caso

Pablo Rodrigo Bes Oliveira[1]

RESUMO

A escrita deste artigo surge da pesquisa desenvolvida pelo autor como professor numa

turma de educação profissionalizante no Presídio Central do município de Porto Alegre,

no Rio Grande do Sul. Este curso se realizou nos anos de 2014 e 2015 e estendeu-se pelo

período de um ano e dois meses, atendendo aos jovens adultos (18 a 23 anos), num esforço

conjunto intersetorial do Ministério do Trabalho, Superintendência de Segurança Pública,

Brigada Militar e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC) e uma

empresa privada, enquadrado dentro do Programa Jovem Aprendiz, de iniciativa do

governo federal. O objetivo de tal curso era a preparação de jovens para o mundo do

trabalho num primeiro momento, fornecendo-lhes uma formação profissional e também

uma formação para a vida futura após o seu período de privação de liberdade. Este

trabalho parte de uma crítica ao cenário carcerário nacional e suas dificuldades/

possibilidades para intervenções educativas para, então, analisar as pedagogias que

operam para constituir, nas pessoas privadas de liberdade, certas disposições para o

trabalho, visto como oportunidade de reabilitação social. Utilizam-se como principais

operadores teórico-metodológicos os conceitos de identidade e diferença, uma vez que a

pessoa privada de liberdade é vista como “o outro”, estando marcada com o signo da

diferença. Estes conceitos são analisados sob a lente teórica dos Estudos Culturais em

Educação que possibilitou novos olhares e problematizações sobre a temática. A

metodologia da pesquisa sustenta-se, em especial, na observação em registros realizados

no período de abril de 2014 a junho de 2015. Os resultados da pesquisa mostram que uma

pedagogia prisional, no contexto observado, se estabelece através de duas estratégias

principais: o controle dos corpos sustentado na disciplina, que se materializa em regras,

rotinas e rituais propostos pelos setores de segurança do local aos detentos; a retórica da

reabilitação social sustentada em propostas de formação para o trabalho. Evidencia-se

também, existirem uma série de estratégias e mecanismos que reforçam as identidades

criminosas em oposição às tentativas dos projetos educacionais de mudança deste quadro.

Por fim, destaca-se a importância de que os cursos de Pedagogia e outras licenciaturas

que atuam no ambiente carcerário incluam em suas grades curriculares um número maior

de disciplinas voltadas para o contexto prisional, embasando teoricamente os acadêmicos

para exercer suas atividades.

Palavras-chave: Pedagogia prisional, diferença, disciplina.

[1] Doutorando em Educação pela Universidade Luterana do Brasil, Mestre em Educação pela

mesma universidade, MBA em Coaching, professor do Curso de Pedagogia do Centro

Universitário UNICNEC de Osório – E-mail:[email protected]

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1. INTRODUÇÃO

Existem algumas experiências em nossas vidas que podem ser consideradas únicas

ou especiais, que nos desafiam e colocam à prova todo o nosso conhecimento científico

e capacidade de adaptação. Cada pessoa tem as suas e uma destas minhas foi a de ser

professor dentro do Presídio Central de Porto Alegre pelo período de um ano e dois meses.

Este estabelecimento é reconhecido como um dos piores da América Latina 1 ,

principalmente devido ao fato de se encontrar superlotado, com, no mínimo, o dobro de

presos para os quais foi construído e, ainda, com uma galeria a menos que na sua

construção original e apresentar conflitos internos constantes entre as facções criminosas

que comandam o tráfico de drogas em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul.

O curso ministrado foi o de Assistente Comercial, enquadrado no programa

governamental intitulado Jovem Aprendiz2, que possuía como principais finalidades a

preparação de tais jovens para o mercado de trabalho e para a vida. O curso somente pode

ser realizado dentro desta organização pelo esforço conjunto do Ministério do Trabalho,

Superintendência de Serviços Penitenciários, Brigada Militar, Serviço Nacional de

Aprendizagem Comercial e Cia Zaffari, que contratou os aprendizes. Como os jovens não

podiam deixar o local para atuarem na prática no interior da empresa, foram criadas

estratégias para que as mil e duzentas horas de curso se cumprissem em sala de aula.

Durante este período ministrei inúmeras disciplinas do campo da administração

e gestão empresarial, pois se tratava de um curso preparatório para o trabalho, porém, ao

1 Para maiores informações sobre esta situação em que se encontra o presídio, acesse os links: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/policia/noticia/2017/02/faccoes-avancam-e-dominam-o-presidio-central-de-porto-alegre-9713182.html http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2017/02/acao-pede-retirada-de-membros-de-faccoes-do-presidio-central-no-rs.html http://www.correiodopovo.com.br/Noticias/Policia/2017/02/610896/Descoberto-tunel-de-50-metros-para-fuga-de-presos-do-Presidio-Central- 2 O Programa Jovem Aprendiz é um programa público federal que foi criado em 2005 visando atender o que determina a Lei 10.097, de 19 de dezembro de 2000. Visa a capacitação de jovens para o mercado de trabalho, estimulando, da mesma forma, sua escolarização formal. O programa se desenvolve em parceria com empresas que contratam estes aprendizes durante o período de sua formação, sendo esta executada de forma teórica pelos agentes de ensino, neste caso o Senac e prática na empresa contratante.

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iniciar as atividades educativas com dezoito jovens entre 18 e 23 anos de idade, observei

que seria necessário ampliar o escopo de discussão e incorporar outras dimensões,

voltadas para uma formação cidadã e humana.

Para além de uma atuação profissional, esta vivência me proporcionou

desenvolver pesquisa, e ao longo do período reuni e organizei materiais produzidos pelos

estudantes (textos, desenhos, gravações e linhas do tempo) anotações pessoais,

decorrentes de minhas observações, entrevistas individuais e pequenas filmagens, e foram

estes registros que me possibilitaram, neste momento, a escrita deste artigo.

Ciente da importância dos projetos educacionais e dos professores neste meio, ao

mapear todos os aspectos estruturais, os relacionamentos, as rotinas e modos de vida que

se encontram inseridos no presídio surge um primeiro ponto de atenção, que orienta este

estudo : para além de uma pedagogia institucional que opera dentro do presídio, existe

uma pedagogia cultural constituindo-se em prática diversas. Neste sentido, entende-se

que o próprio presídio (como espaço de reclusão, mas também como espaço no qual se

tramam relações sociais) atua “educando” sua população interna . O objetivo deste texto

é discutir as estratégias colocadas em operação no âmbito desta pedagogia prisional que

constituem e posicionam os sujeitos dentro de um presídio.

2. OS CAMINHOS INVESTIGATIVOS

A pesquisa surgiu no momento que me deparei com a (im)possibilidade de atuar

como educador dentro de uma unidade prisional, espaço que, a meu ver, coloca a prova

os conhecimentos da área pedagógica. Foi elaborada no intuito de auxiliar na condução

das tarefas educativas, bem como, para cumprir uma finalidade social explícita neste

programa, relacionada a ampliação das perspectivas e oportunidades àqueles jovens-

adultos encarcerados.

A pesquisa nasce sempre de uma preocupação com alguma questão, ela

provém, quase sempre, de uma insatisfação com respostas que já temos, com

explicações das quais passamos a duvidar, com desconfortos mais ou menos

profundos em relação a crenças que, em algum momento, julgamos

inabaláveis. Ela se constitui na inquietação (BUJES, 2002, p.16).

E a pesquisa foi fruto desta inquietação, colocando como o desafio maior as

múltiplas possibilidades de escrita em vários caminhos diferentes e ricos para análise.

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Estabeleci como instrumentos privilegiados de produção de dados o uso de linhas do

tempo, a produção de desenhos, os relatos escritos e algumas entrevistas individuais com

os detentos. Além desses instrumentos qualitativos, pude realizar cruzamentos com os

dados quantitativos fornecidos pelo Sistema de Informações Penitenciários do Ministério

da Justiça (INFOPEN).

Ao deparar-me com o rico material produzido, tive que educar o meu olhar e

minha sensibilidade (BUJES, 2002, p.31) e buscar autores pós-estruturalistas,

sustentando-me especialmente em teorizações foucaultianas e de autores do campo dos

Estudos Culturais em Educação. Concordo com Costa (2002, p. 148), quando afirma que

“pesquisar é um processo de criação e não de mera constatação. A originalidade da

pesquisa está na originalidade do olhar. Assim, meus olhares se constituíram e

produziram o presente texto.

Dessa forma, ao enveredar no campo desta pesquisa – e após eleger meus

principais conceitos teóricos como sendo o poder disciplinar, identidade e diferença –

delineei o objetivo do presente texto: perceber/ mapear como estes operavam no contexto

da pedagogia cultural/ prisional desta instituição.

3. A “CELA DE AULA”

Ao entrar no presídio segue-se a rotina diária das visitas e inspeções. Mochila

aberta e revistada, notebook somente o autorizado, nada de celular, nada de lanches para

depois, balas, chicles, nem pensar. Após a primeira revista da mochila, passagem pelo

detector de metais, tirar o cinto (se disparar o alerta sonoro ) e o sapato (de preferência já

usar um sem fivela). Entra-se no pátio.

Caminhando uns cinquenta metros chega-se ao primeiro grande portão, de grades

grossas e muito bem fechadas, imponente, e, do lado de dentro, dois guardas fortemente

armados abrem o mesmo. Entra-se no primeiro bloco, ao caminhar mais uns dez metros

abrem-se novas grades (sempre após fechar a anterior), passa-se por estas e se enxerga

um longo corredor dividido ao meio por uma tela de aço, onde os detentos podem circular

sem ter contato com aquele que entra. Depois de caminhar mais alguns metros, nova

grade, dessa vez menor, porém fortemente fechada com trancas e cadeados, e enfim se

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chega ao NEJA3 (Núcleo de Educação de Jovens Adultos) que cede uma sala para que o

curso seja realizado.

Abre-se uma nova grade e, em frente a esta, uma porta de madeira com vigia em

vidro: é a sala, ou melhor, a “cela de aula”. Ao entrar, observa-se que a sala é gradeada

por fora e cadeada, permanecendo o professor ali com seus alunos durante as quatro horas

do curso. Ao fundo desta sala, emoldurado em meio a uma cortina escura que impede a

visualização externa, vê-se um banner da entidade educacional que proporciona o curso,

com os seguintes dizeres: “Educação para o trabalho e para a vida”.

Durante este deslocamento, muitos olhares me acompanham e posso “ler” em

alguns deles certa rejeição ou desprezo Os presos “não merecem”, “são marginais”, “são

a escória da sociedade”, “não tem volta” estes são alguns dos conselhos4 que este

professor recebe, sobretudo daqueles que desempenham suas funções na segurança do

estabelecimento e na condução destes jovens no interior do presídio. “Nunca esqueça

onde você está!”, “Nunca esqueça quem são seus alunos!” - este e outros avisos foram

reiterados durante os primeiros dias de desempenho das atividades educacionais com a

turma.

A privação da liberdade é acompanhada do estigma da marginalidade e da

criminalidade. Os alunos chegavam, nos primeiros meses do curso, humilhados,

revoltados com o tratamento e com a forma como eram vistos e com as piadas a que eram

submetidos diariamente em suas galerias e nos deslocamentos por terem aceitado realizar

este curso profissionalizante. Constantemente a expressão da “construção de um ser

humano dócil” (Dreyfus e Rabinow, 1982, p.135) e os estudos sobre o poder disciplinar

de Michel Foucault eram materializados nas ações e nas estruturas locais.

Os esforços constantes em busca de estratégias de controle sobre os encarcerados

faz com que se perceba o esquadrinhamento do tempo, espaços e movimentos no presídio.

A rotina apresenta horários e normas rígidas. Os deslocamentos de uma ala para outra são

marcados por cuidadoso ritual, no qual o corpo deve se habituar (braços cruzados e

3 Esclareço que funciona neste presídio uma escola estadual que procura fornecer a Educação Básica aos detentos conforme preconizam os documentos legais. 4 Estes conselhos foram recebidos tanto dos agentes responsáveis pela segurança do local quanto dos demais professores e profissionais que neste local desenvolviam suas atividades.

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cabeça baixa), e os são espaços delimitados os apenados caminham onde podem/devem

caminhar, sem qualquer tipo de aproximação com os visitantes ou demais profissionais

do local. Os movimentos devem sempre ser contidos, a voz baixa ou, de preferência,

omissa. E aqueles que tentam escapar a estes comandos ou codificações estão sujeitos a

sanções ou “castigos” materializados através de boletins de ocorrência que acabam por

prejudicar o cumprimento da pena dos mesmos. Este mecanismo faz com que os “corpos”

acabem por conter a rebeldia e revolta e aceitar o disciplinamento que é imposto.

Michel Foucault ao escrever sua obra Vigiar e Punir, afirmou que

Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa

quando não inútil. E, entretanto não “vemos” o que pôr em seu lugar. Ela é a

detestável solução, de que não se pode abrir mão. [...] depois de sair da prisão,

se tem mais chances que antes de voltar para ela. (FOUCAULT, 1987, p. 196).

Ao refletirmos sobre esta afirmação nos deparamos com a primeira inquietação

sobre se, de fato, conforme atualmente constituído o sistema prisional brasileiro, e mais

especificamente relacionado à área educacional, este se aproxima de atender o que

preconiza a Lei de Execução Penal (Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984) quando diz que é

dever do estado prover à pessoa privada de liberdade assistência educacional, com o

objetivo de prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.

Em que medida este tipo de sistema pode possibilitar retorno à convivência em

sociedade se, durante todo o período em que o sujeito esteve privado de sua liberdade, se

estabelece a marca da irrecuperabilidade?

4. O PANORAMA CARCERÁRIO NACIONAL

Os dados do Sistema Carcerário Nacional são assustadores, principalmente devido

ao aumento do número de presos ocorrido nos últimos anos. Segundo os dados estatísticos

mais recentes, no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - INFOPEN, de

junho de 2014, o Brasil possuía em junho de 2014, 607.731 presos, para 376.669 vagas,

ou seja, uma taxa de ocupação de 161%. Isto significa dizer que um espaço projetado para

dez pessoas exista dezesseis, o que acaba se tornando um dificultador, pois gera a

chamada superlotação. Temos ainda 300 presos para cada 100.000 habitantes no Brasil.

Os dados anteriores abrangem somente aquelas pessoas presas em instituições

penais, desconsiderando as prisões domiciliares que, nesta mesma época somavam

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147.937 pessoas. De todo este contingente encarcerado, temos que 41% ainda não

possuem condenação judicial, chamados de “presos provisórios” permanecendo presos

aguardando que seus processos sejam de fato julgados podendo ser condenados ou, até

mesmo, absolvidos. O próprio relatório organizado pelo Ministério da Justiça afirma em

suas primeiras linhas que “A situação carcerária é uma das questões mais complexas da

realidade social brasileira” (INFOPEN, 2014, p.6).

Em números absolutos, o Brasil tem a quarta maior população prisional, ficando

atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia. E a variação de sua taxa de

aprisionamento tem se modificado muito nos últimos anos. Ao contrário dos demais

países citados que decresceram seus índices, o nosso país entre 2008 e 2013 cresceu 33%

no número de encarcerados.

A grande maioria das pessoas privadas de liberdade (56%) enquadra-se na

categoria jovens adultos, de acordo com o Estatuto da Juventude, pois estão entre 18 e 29

anos e os crimes mais recorrentes são o tráfico de drogas, roubo e homicídio.

Considerando que muitos destes homicídios e roubos giram em torno das questões

envolvendo a drogadição, destaca-se mais ainda a importância de uma educação

preventiva, desde a infância, bem como ações educativas durante o período na prisão e

uma ação integrada, posterior a este período, para permitir uma reinserção social.Vem

daí a necessidade de uma ação conjunta entre vários setores como os educacionais,

sociais, de assistência entre outros para que isto se efetive.

5. IDENTIDADES CONTRADITÓRIAS

Ao escrevermos sobre a questão da identidade da pessoa privada de liberdade,

temos que compreender, conforme Stuart Hall (2006) que o sujeito constrói sua

identidade historicamente e que, dentro deste processo de construção, podem existir

identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal forma que estas

estão sendo continuamente deslocadas. Estas contradições e deslocamentos identitários

foram percebidos cotidianamente no presídio, quando os alunos presos oscilavam entre

afirmarem-se como criminosos, mantendo, com isso, certa condição de status no grupo

ou, por outro lado, como alguém que gostaria de abandonar esta fase da vida de crimes.

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Independente dos tipos de crimes praticados, e acima de quaisquer questões de

classe econômica ou étnicas, o que ocorre é que todos acabam sendo vistos como

“ladrões”, “criminosos” ou “bandidos” Neste sentido, o conceito de estereótipo pode ser

útil para um entendimento desta questão. Estereótipo, para Tomaz Tadeu da Silva (2000,

p.54) diz respeito a “opinião extremamente simplificada, fixa e enviesada sobre as

atitudes, comportamentos e características de um grupo cultural ou social que não aquele

ao qual se pertence”.

Existe no presídio uma cultura prisional que procura unificar a todos dentro de

uma mesma representação. Representação esta entendida como um processo cultural, que

estabelece identidades individuais e identidades coletivas e os sistemas simbólicos nos

quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem eu sou? O que eu

poderia ser? Quem eu quero ser? WOODWARD (2008, p. 17).

As identidades dos apenados vão sendo constituídas em relações de poder, quase

sempre em contrate com “pessoas boas da sociedade”, o que reforça as ideias de

Woodward (2008, p. 49) ao afirmar que elas (as identidades) são constituídas a partir da

diferença, pois “elas são formadas relativamente a outras identidades, relativamente ao

‘forasteiro’ ao outro, isto é, relativamente ao que não é”. Essa visão da pessoa privada de

sua liberdade associada como o “outro” segue a lógica proposta por Skliar como aquele

“outro” que não queremos ser.

Para Skliar (2004, p. 86)

O outro é um outro que nós não queremos ser, que odiamos e maltratamos, que

separamos e isolamos, que profanamos e ultrajamos, mas que utilizamos para

fazer de nossa identidade algo mais confiável, mais estável, mais seguro; é um

outro que tende a produzir uma sensação de alívio diante unicamente de sua

invocação – e também, diante de seu simples desaparecimento; é um jogo –

doloroso e trágico, por certo – de presenças e ausências, de luzes e de sombras

.

Essa marca da diferença se mostrou muito evidente no interior deste presídio, uma

vez que ao serem marcados como sendo os “bandidos”, os “marginais”, acabavam

também definindo aqueles que seriam os “bons sujeitos”.

Uma das primeiras intervenções que se fez necessária, neste caso ao desenvolver

o projeto educativo neste presídio foi desconstruir, “colocar luz” sobre estes conceitos e

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procurar maneiras de mudar este olhar por parte dos detentos e, também, por parte de

todos aqueles que exerciam suas funções profissionais no presídio. Tarefa árdua que se

fez através de inúmeras reuniões, almoços e conversas formais e informais com várias

pessoas durante este período. Da mesma maneira, os jovens detentos que fizeram o curso

sofreram uma pressão dos grupos onde habitavam (galerias) que variaram de ofensas

verbais até mesmo a agressões, pois começaram a desviar-se da cultura instituída e

mudarem suas formas de pensar (representação) a própria vida e, principalmente seu

futuro.

6. A ANDRAGOGIA EM XEQUE

Durante o curso de Licenciatura em Pedagogia, inúmeras são as disciplinas no

interior das matrizes curriculares que procuram tratar de assuntos relacionados às

questões da escolarização inicial e da educação formal, esta que ocorre no interior das

escolas, de forma sistemática e institucionalizada. Já, em contrapartida são muito poucas

disciplinas que procuram desenvolver seus conteúdos focando os chamados espaços não

escolares e as áreas da educação não formal. Ao trabalhar com adultos, sabemos ser o

mais apropriado utilizarmos os princípios da andragogia para que o processo de

aprendizagem ocorra da forma mais coerente e, de fato atinja os seus objetivos. Claro que

reconhecemos que o surgimento da Andragogia deu-se em contraposição à Pedagogia,

procurando destinar a esta um campo onde somente abrangesse as crianças e adolescentes.

Um dos precursores da utilização do termo foi o norte-americano Malcom

Knowles, o qual, em 1970, passou disseminar as ideais geradas por Eduard C. Lindeman,

em 1926, de que a andragogia é a arte e a ciência de orientar os adultos a aprender.

Dentre os princípios andragógicos, destaca-se o deslocamento do sujeito da

aprendizagem de dependente para independente. Além disso, os adultos são vistos como

indivíduos autodirecionados para aprender. Procuram, dessa forma, ao buscar

aprendizado que venha a desenvolver habilidades úteis a sua vida profissional ou social,

na hora imediata, não em projeção ao futuro. Sendo que um dos princípios de maior

importância na andragogia seria a utilização e o envolvimento das aprendizagens

advindas com a experiência acumulada dos alunos ao estabelecerem-se as discussões que

envolvem o seu processo de aprendizagem.

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Sabemos que nossas vidas são pautadas e direcionadas através de um paradigma

ou modelo de vida que possuíamos e, através do qual, pensamos, agimos e decidimos,

enfim, realizamos nossas escolhas, inclusive, através desta matriz ou rede paradigmática.

De acordo com Veiga Neto (2007), o paradigma pode ser visto como algo que funciona

como uma imagem de fundo, qual uma imagem de um quebra-cabeça, a partir da qual se

vê e se compreende aquilo que se pode ver e compreender do mundo.

Neste momento surge a grande e polêmica questão do desenvolvimento do

trabalho do educador no ambiente prisional, pois, na maioria das vezes, os adultos

encarcerados possuem um modelo de vida construído em cima das experiências que

tiveram no decorrer de suas vidas, desde a infância, atrelados a uma vida criminosa,

podemos considerar até mesmo que suas vivências foram pautadas por uma cultura do

crime. Poderíamos dizer que seu paradigma de vida é outro, pautado por experiências

cruéis aos nossos olhares. Constituído por uma ausência da infância idealizada em nossas

mentes e, principalmente, reforçada pelas lógicas do crime, que envolvem características

naturalizadas como a desonestidade, falsidade, violência, entre outras.

Estes paradigmas ou modelos de análise da vida foram percebidos através das

linhas do tempo dos alunos, onde foi constatado um grande envolvimento dos mesmos na

criminalidade desde a sua infância. Ao serem entrevistados individualmente muitos

afirmaram já serem a terceira e, até mesmo a quarta geração da família a ter envolvimento

com o crime organizado, mais especificamente com o tráfico de entorpecentes.

Ao me deparar com a primeira disciplina no curso neste estabelecimento prisional,

Educação Financeira e Matemática Comercial, procurei preparar um material que fosse

interessante, que envolvesse uma prática de sondagem e revisão inicial, começando com

as operações básicas da matemática e a tabuada. Nos primeiros minutos de aula, após

várias tentativas sem sucesso em minha verificação destes conceitos sobre a tabuada, um

dos alunos levantou a mão e, meio acanhado, pediu para fazer uso da palavra. Achei

interessante e consenti. Então o mesmo parou em frente à turma e perguntou:

- Se eu tenho dez pila, quantas petecas dá?

E a turma respondeu?

- Duas

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E o aluno voltou a perguntar:

- E se eu tenho 20 quantos fino dá?

E a turma responde:

- Cinco

- E um galo, quantas petecas dá?

- Dez.

(BES OLIVEIRA, 2015, excerto da pesquisa)

No momento deste diálogo com os colegas pôde-se perceber que o conhecimento

matemático existia, porém intrinsecamente relacionado ao tráfico de drogas, de onde a

grande maioria era afiliada e, por essa razão cumpriam suas penas. Em busca dos

significados das gírias utilizadas, descobriu-se, em seguida que “peteca” era uma espécie

de trouxinha de plástico com cocaína e que o “fino” era um cigarro de maconha. Nesta

hora tomou-se a decisão de que não se poderia utilizar a bagagem de experiências que

eles tinham acumulado até o momento de suas vidas para reforçar ou estimular o

aprendizado, contrapondo a um dos princípios andragógicos tão utilizados com outros

públicos adultos anteriormente. Uma vez que, antes de qualquer outra coisa, tinha que

fazer com que os alunos tivessem contato com outros modelos de vida que não fossem

relacionados ao crime! Afinal, todos os documentos e leis que embasavam o programa

que vinha desenvolvendo neste local me impunha constantemente a retórica da

preparação e formação para a vida, porém , uma vida que deveria ser transformada.

Como poderia eu construir junto com o grupo algum tipo de conhecimento

baseado nas suas experiências anteriores? Decidi que não poderia me apropriar destas

experiências e, assim foi feito, procurei a utilização de outros recursos que estes também

conhecessem e o seu afastamento de qualquer tipo de discussão que reavivasse ou

reafirmasse em suas memórias a vida criminosa que os envolvera até aquele momento.

Lindemann (1926) afirma que a fonte de maior valor na educação de adultos é a

experiência do aprendiz e, prosseguindo diz que, se educação é vida, vida é educação.

Neste caso específico desse público abordado, essas palavras soam de forma incoerente

ou inaplicável, pois não podemos esquecer e desconsiderar que as vidas se constituem de

formas muito diferentes e que, em todos os cenários também se educam e ensinam coisas,

sejam para o “bem” ou para o “mal”.

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7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa realizada evidenciou a existência de inúmeros projetos desenvolvido

neste estabelecimento prisional, onde se inter-relacionam questões das práticas

disciplinares com os aspectos educacionais, visando uma reinserção social dessa pessoa

privada de liberdade. Porém, ao mesmo tempo em que os discursos relacionados à

reabilitação/ recuperação são incentivados em tais projetos, também os discursos

relacionados ao mundo do crime são reiterados e reforçados em práticas a que estes

presos/ alunos se expunham no dia a dia dentro do presídio.

No interior do presídio observou-se a existência de duas pedagogias em

funcionamento. Uma pedagogia prisional/criminal que funciona através de estratégias e

artimanhas onde o crime procura capturar e manter os seus “soldados” fiéis e produtivos.

Fato este evidenciado com os alunos pesquisados, uma vez que todos eram oriundos do

tráfico de drogas, de onde tiravam o seu sustento e o de seus familiares. A outra é a própria

pedagogia prisional, onde os discursos em torno da reabilitação/ recuperação/ reinserção

social se aliam aos projetos multidisciplinares desenvolvidos, como este analisado na

presente pesquisa. Este embate de posicionamentos, materializado nas práticas e nos

discursos no interior deste estabelecimento desafiam diariamente aqueles que se dispõem

a serem alunos e professores neste espaço.

Percebeu-se que a causa do grande número de jovens envolvidos com a

criminalidade e, mais especificamente com o uso de drogas se relaciona com os

paradigmas que os constituem, fazendo com que ajam, decidam e planejem pela lógica

de uma cultura criminosa. Muitos nasceram nessa lógica, alguns se encontram na segunda

ou terceira geração familiar no mundo do crime, o que faz com que este modelo de vida

se naturalize e se coloca em cheque quando outros caminhos são apresentados em sala de

aula.

Como, no interior dos presídios e penitenciárias a comercialização e,

consequentemente o uso de drogas é muito elevado, necessitou-se haver um trabalho

conjunto de vários setores, como da educação, saúde, psicologia e assistência social para

que pudéssemos resgatar alguns desses jovens. Para essa finalidade, os jovens passavam

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por um processo de desintoxicação, onde ficavam hospitalizados pelo período de vinte

dias, e a sua troca de galeria no presídio para uma galeria considerada “limpa”, ou seja,

livre de drogas. A partir daí, começava-se a acreditar que o trabalho de humanização e

resgate proposto poderia ter resultados, caso houvesse um acompanhamento no momento

que este jovem deixasse o presídio.

Dentro da lógica da reabilitação e reinserção social que se opera dentro de um

presídio ou penitenciária, as atividades educacionais são muito importantes, sendo vistas

como ferramenta para o resgate de valores e autoestima dos detentos, apresentando um

caráter emancipatório muito evidente em seus discursos e práticas.

Nas condições atuais em que estes estabelecimentos se encontram o pedagogo ou

educador que nestas venha a desenvolver suas atividades deve possuir uma formação

diferenciada onde as questões sociais se encontrem solidificadas. Da mesma maneira se

percebe necessária que nos currículos dos cursos de Pedagogia seja dada uma ênfase

maior nestas questões, ou, até mesmo, sejam criados cursos de pós-graduação em

Pedagogia Prisional que pudesse habilitar com maior precisão estes profissionais.

Da mesma maneira, ao desenvolverem-se este tipo de ações educativas no cárcere,

destaca-se como imprescindível a atuação e envolvimento de inúmeros atores neste

universo. Os responsáveis pelas áreas da segurança, assistência social, saúde (médicos,

dentistas, psicólogos), os educadores, professores da escola regular e dos inúmeros

projetos, os profissionais da área jurídica, o comando e todos os demais profissionais das

áreas administrativas, devem estar envolvidos, pois estas ações somente funcionam bem

quando são vistas como interdependentes ou sistêmicas. Da mesma forma, as maneiras

como estes públicos de alunos são vistos e suas identidades reforçadas/ estigmatizadas,

deve ser trabalhada em todos estes setores, não somente no educacional.

Referências

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