Planeta perde terra cultivada pela primeira vez P2o · Planeta perde terra ... algumas em risco de...

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Planeta perde terra cultivada pela primeira vez P2o

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Planetaperde terracultivada pelaprimeira vez P2o

Renaturalização Já somos 7,6 mil milhões de habitantes mas estamosa usar menos terra para alimentar mais gente. Portugal é o único país da

Europa que está a perder terra agrícola e florestal

Terra cultivadano mundodiminui pelaprimeira vezTexto Virgílio Azevedo

Infografia JAIME FIGUEIREDO

\asmontanhas da China,

floresta espontânea e

mato começam a po-voar terras agrícolasesquecidas. No Irão, naAustrália e no Cazaquis-tão, animais selvagens"estão a tomar conta de

pastos abandonados".E em Portugal, no Chile e na Argentina,quintas deixadas ao abandono tornam--se "corredores de ligação entre terri-tórios fragmentados de vida selvagem".É assim que Joseph Poore, investigadordo impacto ambiental da agriculturana Universidade de Oxford, descreve,num artigo publicado recentemente narevista britânica "New Scientist", umanova tendência na paisagem mundial:pela primeira vez na história registada aárea de terras agrícolas e pastos cultiva-

dos está a encolher. E a Natureza está aocupar as áreas abandonadas.

São menos 2.000.000 km 2 desde

2000, uma tendência surpreendentenum mundo onde é preciso alimentaruma população que continua a crescerao ritmo de 70 milhões de habitantespor ano. E as terras que são roubadas àagricultura pela expansão das cidades?E a desflorestação das florestas tropi-cais para dar lugar às culturas intensivasde palma ou soja e a pastos cultivados

para o gado? A revista "Nature" revelavaem 2011 que a expansão da agriculturaem todo o mundo já tinha destruído ouconvertido 70% das pastagens naturais,50% da savana, 45% da floresta tem-perada e 27% da floresta tropical. Masas estatísticas da FAO, a Organizaçãodas Nações Unidas para a Agricultura e

Alimentação, foram analisadas por Jose-

ph Poore e os números são reveladores:"De dois em dois anos, uma área igual àdo Reino Unido é abandonada", ou seja,

242.495 km 2, o equivalente a 2,6 vezes a

área de Portugal. "Isto é particularmenteverdade em áreas de clima temperado e

de terras áridas, mas também nalgumaspartes dos trópicos."

Curiosamente, o investigador destaca

que um dos fatores que estão a contribuir

para esta tendência é a preferência dosconsumidores por roupa de algodão oufibra sintética em vez de lã, o que levou auma queda dos preços da lã no mercadomundial e ao abandono de pastos cul-tivados, em particular na Ásia Central,Austrália e Nova Zelândia. Só nestes dois

países, "que são dos maiores produtoresmundiais, mais de 600.000 km 2 de pas-tos foram abandonados desde 1990".

O exemplo do Vale do Coa

Portugal perdeu 5% da sua área agrícolaentre 1999 e 2009 (último recenseamen-to agrícola). Poore dá o exemplo do Valedo Coa, na região do Douro, "onde aagri-

DE DOIS EM DOISANOSÉABANDONADA UMAÁREA IGUALA DOREINO UNIDO OU2,6 VEZES A ÁREADE PORTUGALcultura de montanha foi gradualmen-te abandonada depois de se tornar nãocompetitiva". E houve organizações de

conservação da Natureza "que adquiri-ram terras quando não apareciam outros

compradores no mercado". Para os queficaram, "emergiram novas oportunida-des com a chegada de turistas, atraídospela paisagem natural e pela observaçãode veados, lobos e abutres negros, queocuparam as terras abandonadas". As

organizações são a Rewilding Europe e

a Associação Transumância e Nature-za, que criou a Área Protegida PrivadaFaia Brava — a primeira do país — para aconservação de aves e da biodiversidade,depois de ter comprado 526 hectares nosconcelhos de Figueira de Castelo Rodrigoe de Pinhel. Contactado pelo Expresso,Joseph Poore diz que para já não querfalar mais sobre o tema, porque precisade tempo para desenvolver a sua tese.

"O abandono de terras cultivadas é

mais complexo e não se pode dizer gene-ricamente que o seu impacto é positivoou negativo", afirma Francisco Ferreira,presidente da organização ambientalis-ta ZERO. "Há casos de abandono dossolos agrícolas que não resultam do seu

esgotamento mas do despovoamento,migrações, seca, falta de água e nutrien-tes ou artificialização com construçõesurbanas". E nestas situações, "o aban-dono não vai contribuir para a sua rena-turalização". A invasão da Natureza "é

um processo mais ou menos lento mas

é bem-vinda, porque há um conjuntode serviços de ecossistemas com valoreconómico que passam a ser fornecidosàs populações, desde que a degradaçãodos solos não seja irreversível, comoacontece em certas zonas do Alentejo ouda Austrália, por exemplo". FranciscoFerreira diz que "com a população mun-

dial a crescer é necessário intensificar aprodução agrícola, passar de um regimeextensivo para intensivo sem rotação de

terras, o que é dramático, porque acaba

por penalizar as áreas cultivadas em ter-mos ambientais e sociais — cria menosemprego com mais maquinaria". Mas aomesmo tempo, com mais população nascidades "ficam mais áreas rurais abando-nadas disponíveis".

Abandono diminui biodiversidade?

Paradoxalmente, o abandono de terrascultivadas nos países mediterrânicos

pode diminuir a biodiversidade. "Háexemplos de renaturalização com perdade biodiversidade, porque nas regiões declima mediterrânico (7% da superfícieterrestre) esta está associada a interven-

ções humanas muito antigas na paisagemligadas ao trabalho dos solos, ao corte de

vegetação, ao pastoreio e ao fogo", expli-ca José Lima Santos. O investigador doCentro de Estudos Florestais (CEF) e doInstituto Superior de Agronomia de Lis-boa (ISA) sublinha que um dos exemplos"é a estepe cerealífera do Alentejo, ondeo abandono de terras marginais com sis-

temas agrícolas não muito intensivos e asubstituição natural pelo azinhal reduziuo número de efetivos de aves estepárias,algumas em risco de extinção, como aabetarda, o sisão, a calhandra real, o pe-neireiro das torres, os cortiçóis, o alcara-vão, a águia imperial ou o abutre".

São sistemas agrícolas "em que o ser-

viço principal já não é a produção de ali-mentos mas a biodiversidade, o controlodos fogos e a preservação da paisagem".Em contrapartida, em ecossistemasmuito estáveis, com pouca intervençãohumana, como as florestas tropicais, "o

lema 'quanto mais natural melhor para abiodiversidade' faz todo o sentido".

Cibele Queiroz, investigadora portu-guesa do Stockholm Resilience Centrena Universidade de Estocolmo, com umatese de doutoramento e artigos científi-cos publicados sobre abandono agrícolae impacto na biodiversidade, argumentaque "o abandono tem sempre consequên-cias negativas para algumas espécies e

positivas para outras, ou seja, há semprevencedores e perdedores". E concorda

que na Europa "as práticas agrícolas têmalterado os ecossistemas nativos desde há

milhares de anos", sendo as paisagens

agrícolas que conhecemos hoje "o resul-tado de uma permanente interação entreo Homem e a Natureza".

Algumas espécies evoluíram com esta

interação e "adaptaram-se a coexistircom práticas agrícolas de intensidademoderada, ou seja, não estamos a falarde paisagens com práticas agrícolas in-

tensivas, produto da Revolução Indus-trial", esclarece a investigadora. Essas

espécies "são obviamente afetadas peloabandono agrícola". Mas este "constituitambém uma oportunidade para a re-generação de habitais naturais que nopassado sofreram uma redução de áreasignificativa devido à conversão de terrapara a agricultura, como florestas de ca-ducifólias no caso português (nogueirase outras árvores de folhas caducas), o quebeneficia mamíferos de médio e grandeporte". Assim, se o abandono aconteceem áreas adjacentes a uma área prote-gida, "o potencial para a regeneração dehabitais com alto valor de conservaçãoserá elevado", tendo um impacto positivopara a biodiversidade.

"O abandono de terras em Portugal jáé antigo", constata José Lima Santos. "O

pico da ocupação agrícola foi na déca-da de 1960 (ver gráfico) e depois veio aemigração, a urbanização e o abandono

COM A POPULAÇÃOMUNDIAL ACRESCER E ACONCENTRAR-SENAS CIDADES HÁMAIS ÁREAS RURAISVAZIAS DISPONÍVEIS

NO MEDITERRÂNEOA BIODIVERSIDADERESULTA DE UMAINTERAÇÃOPERMANENTEENTRE O HOMEME A NATUREZA

de solos marginais, pouco rentáveis, quemesmo para floresta eram fracos". HojePortugal é um dos países europeus "commenor percentagem de solos bons usan-do a tecnologia atual". E este problema"aumenta a tendência para o abandono".Mas há mais: "Se excluirmos os 60% a70% de área agrícola nacional poucoprodutiva não perderíamos muito, por-que representam apenas 5% a 10% daprodução agrícola total."

Subsídios da PAC travam processo

O que mantém esta área marginal "sãoos subsídios da Política Agrícola Comum"e grande parte das políticas de conser-vação da natureza "concentra-se nestes60% a 70%, onde o pastoreio permanenteé o uso dominante", salienta o investiga-dor. Haveria, no entanto, "um impactoimportante nos fogos" se esta vasta áreafosse excluída de qualquer uso agrícolae invadida por floresta natural e matos,ressalva o professor do ISA. Há, na ver-dade, "um ciclo em Portugal que ligabaixa rentabilidade agrícola, abandonodos solos e número de fogos".

As regiões onde a produtividade dotrabalho agrícola é mais baixa são as mais

atingidas pelos incêndios florestais, "o

que significa que o que comanda a reten-ção do território nacional para a agricul-tura é o rendimento do trabalho agrícola"(ver mapa). Quando os pinheiros ardidosnão são replantados, "vêm as acácias —

uma praga —, os matos e os carvalhos,

ou são plantados eucaliptos". Portanto,"o ciclo do fogo evolui para uma paisa-gem com muito pouca biodiversidadeem comparação com a paisagem humana

que a precedeu", conclui Lima Santos.

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