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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP Rogério Marcus Zakka O DIREITO DE PROPRIEDADE (Análise sob a ótica de sua convivência com a função social) MESTRADO EM DIREITO São Paulo 2007

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP

Rogério Marcus Zakka

O DIREITO DE PROPRIEDADE

(Análise sob a ótica de sua convivência com a função social)

MESTRADO EM DIREITO

São Paulo 2007

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP

Rogério Marcus Zakka

O DIREITO DE PROPRIEDADE

(Análise sob a ótica de sua convivência com a função social)

MESTRADO EM DIREITO

Tese apresentada à Banca Examinadora daPontifícia Universidade Católica de SãoPaulo, como exigência parcial paraobtenção do título de Mestre em Direitodas Relações Sociais, sob a orientação doProfessor José Manoel de Arruda AlvimNetto.

SÃO PAULO2007

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Banca Examinadora:

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Aos meus pais, Arab e Célia,

por todo amor que me dedicaram,

pelo suporte de sempre,

pelas lições de vida e de princípios.

Aos meus irmãos Michel e Jean,

por fazer sempre presente em minha vida,

o significado de fraternidade.

À Professora Thereza Alvim,

por todas as oportunidades,

pelos ensinamentos e pela amizade,

que é motivo de alegria e honra.

Ao Professor Arruda Alvim, meu orientador,

meu grande incentivador neste mister,

sempre cordial e amigo.

Ao Professor Everaldo Augusto Cambler,

responsável por minha formação, desde as noções de direito civil,

meu grande amigo, mestre e incentivador da vida acadêmica

Ao, igualmente amigo, Professor Francisco José Cahali,

sempre receptivo, pela amizade e pelas oportunidades de compartilhar

experiências profissioniais e acadêmicas.

A todos que, de alguma forma, contribuíram para minha vida,

me trazendo alegria e incentivo.

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RESUMO

A transição da sociedade moderna, na qual os países capitalistas adotaram o

Estado Liberal, para a sociedade contemporânea, em que vigora o Estado Social de

Direito marca, uma nova visão do direito, que tem sua premissa no homem, não

mais sob uma ótica do indivíduo, mas como integrante da sociedade.

Neste sentido, é que se reconhece uma função social do direito, a exigir uma

releitura dos institutos do Direito Privado, no qual se inclui a disciplina do Direito de

Propriedade.

A Constituição do México de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919 são

as primeiras a positivar o princípio da função social, estabelecendo deveres a serem

atendidos pelos proprietários, para que a propriedade atenda a uma função social.

Atualmente, o princípio da função social está presente, também, em nosso

ordenamento jurídico, assim como a garantia do direito de propriedade permanece

consagrada, entre nós, como direito fundamental do cidadão.

A coexistência da garantia do direito de propriedade e do princípio da função

social da propriedade pressupõe, a um só tempo, a intervenção do estado para que

a propriedade cumpra a sua função social e a para proteger o direito de propriedade.

A presente dissertação tem por objetivo o estudo da convivência do princípio

da função social da propriedade com o direito de propriedade. Pretende-se, portanto,

interpretar o conteúdo do princípio da função social da propriedade e determinar o

novo perfil do direito de propriedade.

Palavras Chave: Direito, Propriedade, Função, Social.

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ABSTRACT

The transistion of the modern society, in which the capitalist countries had

adopted the Liberal State, for the society contemporary, where it invigorates the

Welfare State mark, a new vision of the right, that has its premise in the human

being, not more under a optics of the individual, but as integrant of the society. In this

direction, it is that a social function of the right is recognized, to demand a new

reading of the institutes of the civil law, in which if it includes disciplines it of the Right

of Property.

The Constitution of Mexico of 1917 and the Constitution of Weimar of 1919

are the first ones to foresee the principle of the social function, establishing duties to

be taken care of for the proprietors, so that the property takes care of to a social

function.

Currently, the principle of the social function is present, also, in our legal

system, as well as the guarantee of the property right remains consecrated, between

us, as right basic of the citizen.

The coexistence of the guarantee of the right of property and the principle of

the social function of the property estimates, to one alone time, the intervention of the

state so that the property fulfills its function social and to protect the property right.

The present dissertation has for objective the study of the coexistence of the

principle of the social function of the property with the property right. It is intended,

therefore, to interpret the content of the principle of the social function of the property

and to determine the new profile of the property right.

Keywords: Right, Property, Fonction, Social

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SUMÁRIORESUMO 5

ABSTRACT 6

1. INTRODUÇÃO 8

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A EVOLUÇÃO HISTÓRICA E SOCIAL DO DIREITO DEPROPRIEDADE 10

2.1. DIREITO DE PROPRIEDADE NA ANTIGUIDADE 102.1.1. Considerações Preliminares 102.1.2. A propriedade no Direito Romano 17

2.1.2.1. Evolução histórica do Direito de Propriedade em Roma 182.1.2.2. Conceito, conteúdo e limitações do Direito de Propriedade no Direito

Romano 242.2. Direito de propriedade da Idade Média 292.3.Direito de Propriedade na Idade Moderna 342.4 Direito de Propriedade na Idade Contemporânea 40

3. ORIGEM E EVOLUÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE NO BRASIL 463.1. A PROPRIEDADE LUSITANA NA IDADE MÉDIA E AS SESMARIAS COMO ORIGEM

DA PROPRIEDADE NO BRASIL 463.2. AS SESMARIAS NO BRASIL 523.3. DIREITO DE PROPRIEDADE NO BRASIL-IMPÉRIO 623.4. DIREITO DE PROPRIEDADE NO BRASIL REPUBLICANO 73

4. DIREITO DE PROPRIEDADE 89

4.1. TEORIAS JUSTIFICADORAS DO DIREITO DE PROPRIEDADE 894.2. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA DO DIREITO DE PROPRIEDADE 92

4.2.1. Abrangência do Direito de Propriedade na Constituição Federal 99

5. DIREITO DE PROPRIEDADE NO CÓDIGO CIVIL 102

5.1. OBJETO DO DIREITO DE PROPRIEDADE 1025.2. CONTEÚDO DO DIREITO DE PROPRIEDADE 105

5.2.1. Conteúdo Mínimo do Direito de Propriedade 1075.3. CARACTERÍSTICAS DO DIREITO DE PROPRIEDADE 111

6. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE 116

6.1. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE COMO ELEMENTO ESTRUTURAL INTERNO DODIREITO DE PROPRIEDADE E SUA OPERACIONALIZAÇÃO 116

6.2. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE COMO ELEMENTO EXTERNO DO DIREITO DEPROPRIEDADE E SUA OPERACIONALIZAÇÃO 119

6.3. Abrangência do Princípio da Função Social Quanto aos Bens 1216.4. Nosso Posicionamento 122

7. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO 129

8. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO CÓDIGO CIVIL 138

8.1. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE 1458.2. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA; CONSTITUIÇÃO FEDERAL E

ESTATUTO DA CIDADE 1638.2.1. Considerações Gerais 1638.2.2. O Estatuto da Cidade e seus Instrumentos Urbanísticos para a Efetivação da

Função Social da Propriedade 1668.2.3. A Usucapião Especial Urbana no Estatuto da Cidade. 177

8.3. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL – CONSTITUIÇÃO FEDERAL EREFORMA AGRÁRIA.

182

9. CONCLUSÃO 187

10. BIBLIOGRAFIA 194

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1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por escopo a análise da configuração

contemporânea do Direito de Propriedade, bem como a forma como vem

absorvendo os valores atuais de sociabilidade, que se consubstanciam, sobretudo,

pela idéia de função social da propriedade.

Para tanto, pretende-se abordar, inicialmente, a evolução histórica e social

do Direito de Propriedade, a fim de evidenciar as modificações do conteúdo deste

direito real matriz no decorrer das sociedades antiga, medieval, moderna e

contemporânea, tanto na Europa, quanto no Brasil, para que seja possível

compreender as raízes do atual perfil do direito de propriedade.

Após termos nos debruçado sobre a questão histórica, buscaremos discorrer

sobre o conceito e a natureza jurídica do Direito de Propriedade, tema que, até em

decorrência da própria evolução histórica, tem encontrado solo fértil para os mais

variados entendimentos doutrinários.

Buscar-se-á, estabelecer uma distinção entre a abrangência do conceito de

Direito de Propriedade previsto na Constituição Federal e o Direito de Propriedade

que se encontra previsto em nosso Código Civil, sendo que este último merecerá

aprofundamento no que tange ao objeto, conteúdo e características.

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Pretende-se abordar o princípio da função social da propriedade. Sob este

aspecto pretendemos, num primeiro momento, discorrer sobre os principais

entendimentos doutrinários sobre o tema e repercussões no direito de propriedade.

Num segundo momento, buscaremos estabelecer uma correlação entre a

função social da propriedade e a função social do contrato, apontando, também,

algumas diferenças, sem, contudo, esgotar o tema da função social do contrato, o

que demandaria outro trabalho monográfico.

Após o deslinde das questões teóricas, cuidaremos de tecer nossas

considerações acerca dos diplomas e normas jurídicas que, nos dias atuais, se

prestam a tornar menos vago o conceito de função social da propriedade e a

diferenciá-lo, da função social da posse, que também influencia o atual contorno do

direito de propriedade.

Por fim, cumpre-nos esclarecer que, no decorrer dos nossos trabalhos,

serão necessárias considerações sobre alguns temas correlatos, tais como,

exemplificativamente, a Usucapião e os Instrumentos de Política Urbana previstos

no Estatuto da Cidade, que serão tratados incidenter tantum, sem a pretensão de

esgotá-los, até porque mereceriam monografias específicas.

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2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A EVOLUÇÃO

HISTÓRICA E SOCIAL DO DIREITO DE

PROPRIEDADE

2.1. DIREITO DE PROPRIEDADE NA ANTIGUIDADE.

2.1.1. Considerações preliminares.

Embora a relevância da propriedade para o direito venha a ter maior

significado a partir do direito romano, que se insere no período que se convencionou

denominar Antiguidade Clássica, não há como se negar que a sua noção surge,

mesmo antes do Império Romano.

Muito se discute a respeito da origem da propriedade ter sido privada ou

coletiva, nos tempos primitivos, sendo oportuna a síntese das duas posições a

respeito, nas palavras de RALPHO WALDO DE BARROS MONTEIRO FILHO1, que

esclarece:

1 Função Social, Propriedade e as Modalidades Sociais de Usucapião. Revista Autônoma de DireitoPrivado no 2, Jan/Mar2007, Coord. Arruda Alvim e Angélica Arruda Alvim, p. 130.

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“Realmente, difícil é descrever com precisão qual foi a formaoriginária da propriedade. Podemos dividir as opiniões sobre oassunto, basicamente, em duas correntes: (i) a dos socialistas,preocupados em demonstrar a existência inicial de um comunismode terras e (ii) a dos economistas clássicos, decididos pelaconfiguração primitiva de uma propriedade individual, de caráterabsoluto e uniforme”.

Alguns autores têm se posicionado no sentido de que a origem da

propriedade teria sido coletiva.

JOSÉ RUBENS COSTA2 sustenta que a propriedade, nos primórdios, era

coletiva, em razão de motivos místicos e religiosos, bem como no nomadismo, assim

afirmando:

“Nos tempos primitivos, os homens careciam de instrumentos dedefesa e bens c.e consumo, o que viria justificar o coletivismo dapropriedade imóvel, e, a seu lado, o misticismo reinante traria aexplicação do personalismo dos bens móveis.

Os tempos primitivos exigiam do homem um esforço comum paraenfrentar e dominar uma natureza hostil. As sociedades eramnômades, os homens viviam da caça e da pesca. Neste estágio,apenas os objetos de uso pessoal eram relevantes ao homem. ”3

2 Síntese Histórica da Propriedade Imóvel. Revista Forense, Volume 259, Editora Forense, BibliotecaForense Digital 2.0, p. 13.3 Em sentido semelhante, o posicionamento de Silvio de Salvo Venosa: “Antes da época romana, nassociedades primitivas, somente existia propriedade para as coisas móveis, exclusivamente paraobjetos de uso pessoal, tais como peças de vestuário, utensílios de caça e pesca. O solo pertencia atoda a coletividade, todos os membros da tribo, da família, não havendo o sentido de senhoria, depoder de determinada pessoa.(Direito Civil: Direitos Reais. Editora Atlas, 4º Edição, São Paulo, 2.004,p. 170).Também assim entende, embora reconheça a obscuridade do tema Washington de Barros Monteiro: “Parece que a propriedade, nos primórdios da civilização, começou por ser coletiva, transformando-se,porém, paulatinamente, em propriedade individual. Trata-se contudo de ponto obscuro na história do

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Entretanto, não podemos olvidar que podem ser objeto do direito de

propriedade, tanto os bens móveis e semoventes, quanto os bens imóveis, razão

porque o autor, embora justificando no misticismo e na religião, admite a existência

de uma propriedade individual, no que tange aos bens móveis.

Além disso, parece que se o homem, como se afirma, vivia da pesca e da

caça, imperioso admitir que adquirisse a propriedade dos animais que pescava ou

caçava4.

Por fim, em que pesem as opiniões em contrário, a própria noção de

propriedade imóvel, seja esta individual ou coletiva, pressupõe a fixação do homem

a terra, o que é incompatível com o nomadismo noticiado pelo doutrinador.

NUMA-DENYS FUSTEL DE COULANGES5 esclarece que “(...). Entre os

antigos germanos, de acordo com alguns autores, a terra não pertencia a ninguém;

todos os anos a tribo designava a cada um de seus membros um lote para cultivar,

lote que era trocado no ano seguinte. (...)”.

direito e sobre o qual ainda não se disse a última palavra. (Curso de Direito Civil, Direito das Coisas,3º Volume, Editora Saraiva, 34ª Edição, São Paulo, 1998, p. 79.)”4 É de se salientar que o Código de 1916 regulava a caça e a pesca como modos de aquisição dapropriedade e, embora o código em vigor não tenha repetido as normas específicas não se podenegar que se tratam de espécies de ocupação, esta sim, mantida como forma de aquisição dapropriedade no Código Civil de 2002.5 A Cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2004, p. 57.

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Por outro lado, esclarece o referido historiador, na mesma obra, que “O

germano era proprietário da colheita, e não da terra. O mesmo acontece ainda em

uma parte da raça semítica, e entre alguns povos eslavos”..

Assim, parece-nos que, mesmo que se admita que a propriedade sobre a

terra fosse coletiva na Antiga Germânia, não se pode negar a existência de

propriedade privada dos frutos dela obtidos, ou, ao menos, a despeito da falta de

sistematização, de uma espécie de usufruto individual e temporário.

JOSÉ RODRIGUES ARIMATEA, por sua vez, afirma sobre o mesmo fato

que “(...). É no precedente germânico que se aferram os defensores da origem

coletiva da propriedade privada que não são poucos. (...). 6”, pensamento que

entende ser errôneo, pois juntamente com esta propriedade denominada Mark

afirma coexistir “a terra sálica (Sazgut), que era propriedade privada”.

Em que pese a honrável posição daqueles que propugnam pela origem

coletiva da propriedade, preferimos adotar o entendimento de que a propriedade

nasceu individual, pois, antes mesmo das civilizações Grega e Germânica, o Código

de Hamurabi (Babilônia, Século XXI A.C.), embora não tenha se ocupado de

positivar um conceito de direito de propriedade, já possuía alguns dispositivos a

demonstrar o objetivo de proteger o proprietário. 7

6 O Direito de Propriedade: Limitações e Restrições Públicas. José Rodrigues Arimatea. Lemos &Cruz Livraria e Editora, São Paulo, 2.003, p. 19.7 No Código de Hamurabi, embora não houvesse um conceito do direito de propriedade, nem mesmouma diferenciação entre direitos reais e direitos pessoais, pode-se encontrar alguns dispositivos deproteção da propriedade, tais como o direito do proprietário da coisa perdida reivindicá-la daquele quea encontrou ou o dever de reparação do dano por aquele que, sem autorização do proprietário,

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Não se encontra no Código de Hamurabi, qualquer indicativo acerca da

existência de propriedade coletiva, mas sim uma admissão e proteção da

propriedade privada individual, operacionalizada por meio da concessão de

determinados direitos ao proprietário em face daquele que, sem a sua anuência,

retira utilidade daquilo que lhe pertence.

Mesmo na sociedade grega, há considerável divergência doutrinária sobre o

caráter coletivo ou individual da propriedade.

Aqueles que defendem que a propriedade coletiva predominava,

sustentando que a propriedade individual na Antiguidade Grega se limitava aos

pequenos objetos de uso pessoal8, se fundamentam nas concepções filosóficas de

Platão e Aristóteles, quanto ao tema. O primeiro idealizou o Estado ideal, onde todos

viveriam em comunhão permanente, inclusive com a propriedade comum, enquanto

o segundo observou a impropriedade da filosofia platônica, no que se referia aos

bens móveis de uso pessoal, baseando-se nas diferenças entre a constituição física

dos indivíduos.

Noutro extremo, encontramos os doutrinadores que entendem que, na

realidade a propriedade era individual, tal como NUMA-DENYS FUSTEL DE

COULANGES9, para o qual:

explora a utilidade de seus bens. Esta proteção pode ser percebida, por exemplo, nos artigos 9º, 57e 598 Conforme Silvio de Salvo Venosa na nota 3 supra e Darcy Bessone in Direitos Reais, EditoraSaraiva, São Paulo, 1.988, p. 18.9 Op. cit., p. 57.

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“(...) as populações da Grécia e das Itália, desde a mais remotaantiguidade, sempre conheceram e praticaram a propriedadeprivada. Nenhuma recordação histórica nos chegou, e de épocaalguma, que nos revele a terra ter estado em comum; e nadatampouco se encontra que se assemelhe à partilha anual doscampos, tal como esta que se praticou entre os germanos. Hámesmo um fato verdadeiramente digno de destaque. Enquanto asraças que não concedem ao indivíduo a propriedade do solo lhefacultam, ao menos, a dos frutos do seu trabalho, isto é, a colheita,com os gregos sucede o contrário. Em algumas cidades os cidadãossão obrigados a ter em comum as colheitas, ou, pelo menos, a maiorparte delas, devendo gastá-las em sociedade; portanto, o indivíduonão nos aparece como absoluto senhor do trigo por ele colhido; masmercê de notável contradição, já que tem propriedade absoluta dosolo. A terra era mais dele do que a colheita. Parece que aconcepção do direito de propriedade tinha seguido, entre os gregos,caminho inteiramente oposto àquele que se afigura como o maisnatural. Não se aplicou primeiro à colheita e depois ao solo. Seguiu-se a ordem inversa”.

Outra justificativa para o entendimento de que a origem da propriedade é

privada reside no fato de que a propriedade era concedida aos pater famílias, idéia

refutada pelos defensores do nascimento coletivo do instituto, sob o argumento de

que o uso da terra era comum, porque exercido pela sua família.

Neste particular, cabe esclarecer que o referido uso era exercido sob a

incontestável autoridade do pater família, sendo oportuna, a lição de LUIZ DA

CUNHA GONÇALVES10, que assim se manifesta acerca da questão:

10 Tratado Direito Civil, Volume 11, 2a Edição, Ed. São Paulo: Max Limonad, 1955, p. 181.

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“(...) a História documentada dos mais antigos povos do mundo nãonos revela a existência de tal comunismo primitivo da terra. Pelocontrário, o que por toda parte se verifica, na Ásia, na África e naEuropa antigas, é que a propriedade da terra não era reconhecida atodos os entes humanos; em cada país eram dela excluídos osestrangeiros, os escravos e os membros da família, mulheres efilhos, que eram eles próprios objeto da propriedade do chefe oupater família”.

Na Grécia Antiga, a posse da terra era negada aos estrangeiros, pois estava

ligada à idéia de cidadania, o que também se extrai do entendimento de outros

autores, de onde se extrai que somente cidadãos podiam possuir terras11 e aquele

que vendesse suas terras perdia os direitos de cidadão grego12.

A preocupação com a proteção das polis contra a invasão estrangeira,

também contribuiu, sobretudo em Esparta, para a concepção de propriedade

indivisível.

Além disso, há forte influência da religião, fundada, principalmente, na

crença de imortalidade da alma dos ancestrais mortos, que eram cultuados como

verdadeiras divindades pelos familiares, ensejando uma íntima ligação entre

propriedade, religião e família, a tal ponto que era impossível que a família se

desligasse da terra sem abandonar a religião, que antes professava.

11 Richard Pipes. Propriedade e Liberdade. Editora Record, Rio de Janeiro, 2001, p. 129.12 Numa-Denys Fustel de Culanges. Op. Cit., p. 213.

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PRISCILA FERREIRA BLANC13 esclarece que, na história da Grécia, a

morte não significava o fim de uma existência, mas sim uma mudança de vida,

explicando que:

“Dessa crença, vem o costume da necessidade da sepultura comoforma de fixar a alma à morada subterrânea; nesta época assepulturas sempre se localizavam dentro do terreno da própria casa.

(...).

Os mortos eram considerados entes sagrados e venerados pelafamília como verdadeiros deuses. Para essa veneração cada casaobrigatoriamente construía um altar (...).

O altar devia estar assentado sobre o solo e, uma vez colocado,nunca mais deveria mudar de local. O deus daquela família instala-senaquele altar não por um período curto de tempo, mas para sempre,enquanto restar alguém daquela família. (...). A família queobrigatoriamente se agrupa em redor do altar fixa-se também aosolo”.

Vê-se, pois, que a propriedade, na Grécia era sagrada, de modo que a sua

garantia não decorria da proteção legal, mas de seu fundamento na religião.

De qualquer forma, parece-nos que, assim como ocorria na Babilônia, na

Grécia, ainda não havia uma conceituação e sistematização da propriedade como

direito exclusivo.

13 Plano Diretor Urbano e Função Social da Propriedade, 1a Edição, 3a Tiragem, Juruá Editora, 2006,pp. 22/24.

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2.1.2. A propriedade no Direito Romano.

Mesmo na Roma Antiga, há quem defenda que a propriedade era coletiva,

com base na exploração da terra pela família e em seu benefício.

Entretanto, há que se ter em mente, que referidas famílias se estruturavam

em torno da figura dos pater famílias, aos quais se outorgava uma série de poderes

ligados à apropriação de bens e à direção da família famílias..

Neste sentido, afasta-se o entendimento de que a propriedade era coletiva,

porque, tomando emprestado o entendimento já transcrito de LUIZ DA CUNHA

GONÇALVES14, pode-se concluir que, na Antiguidade Romana, eram excluídos da

propriedade “os membros da família, mulheres e filhos, que eram eles próprios

objeto da propriedade do chefe ou pater família”.

No mesmo sentido, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA15 esclarece que

“somente o pater adquiria bens, exercendo a domenica potestas (poder sobre o

patrimônio familiar) ao lado e como conseqüência da pátria potestas (poder sobre a

pessoa dos filhos) e da manus (poder sobre a mulher)”.

A nosso ver, portanto, a propriedade em Roma nasceu privada (e assim se

consolidou), conforme se constata pela evolução histórica do instituto no Direito

Romano, tratada a seguir.

14 Op. Cit., p. 181.15 Instituições de Direito Civil, Volume V, 11a Edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2000, p. 18.

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2.1.2.1. Evolução histórica do Direito de Propriedade em

Roma.

No curso evolutivo da história romana, é possível identificar quatro

modalidades ou espécies de propriedade, a saber: a quiritária (ex jure quiritum), a

pretoriana ou bonitária (in bonis), a peregrina (ex jure gentium) e a provincial.

No período pré-clássico, existia apenas a propriedade nacional quiritária,

que era adquirida, exclusivamente, pelos quirites (cidadãos romanos), por meio da

mancipatio, no que se refere aos bens imóveis (res mancipi) e pela traditio, no que

tange aos móveis (res nec mancipi). Essa espécie de propriedade era garantida pela

rei vindicatio, ou seja, pela ação real de que se podia valer o proprietário, para

reaver a coisa16.

No pré-clássico, posteriormente à mancipatio e à traditio, surge, ainda, um

terceiro modo derivado de aquisição da propriedade, aplicável tanto para bens

móveis, quanto para bens imóveis, denominado in jure cessio, que consistia numa

cessão da propriedade em juízo, ou seja, no âmbito de uma ação reivindicatória

fictícia17, conforme ensinamento do professor JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES18,

que a seguir transcrevemos:

16 Nesse sentido a lição de José Cretella Junior ao esclarecer: “Nos últimos anos da república, paraque haja propriedade romana, são necessárias três condições: 1ª, que o proprietário seja cidadãoromano. 2ª, que o terreno seja romano ou itálico; 3ª, que tenha sido adquirido por um modoconvencional. (Curso de Direito Romano, 4ª Edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1970, p. 151).17 Alguns Autores refutam a idéia de que o in iure cessio fosse seja resultado de uma simulaçãoperante o pretor, sustentando que na verdade se trataria da um abandono da coisa diante do juíz.Neste sentido, o próprio MOREIRA ALVES, in Direito Romano, 14a Edição, Editora Forense, 2007,Biblioteca Forense Digital 2.0, p. 162, nota 90 e, também, JOSÉ CRETELLA JUNIOR, que assim

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20

“Embora haja muita controvérsia a respeito, a maioria dos romanistasjulga que a in iure cessio surgiu depois da mancipatio.

Como a própria denominação (in iure cessio) indica, trata-se demodo de aquisição da propriedade que se desenrola diante domagistrado. Segundo Gaio (Inst., II, 24) - no que é corroborado porUlpiano (Liher singularis regularum, XIX, 9 e 10) -, a in iure cessioconsiste num processo fictício de reivindicação: o adquirente, diantedo magistrado, reivindica a coisa que deseja adquirir; dada a palavraao alienante, ele não contesta a reivindicação feita pelo adquirente;diante dessa confissão simulada, o pretor adjudica a coisa aoadquirente, que, dessa forma, se torna proprietário ex iure Quiritium”.

No entanto, já na época clássica, situações surgiram em que o titular do

domínio, vendia a terra, mas sem a prática do ato formal (mancipatio), de forma que,

em razão de um vício formal, o adquirente, embora possuidor, não podia ser

reconhecido como proprietário pelo direito civil, exceto pela usucapião.

Nestas situações, até o transcurso de tempo para a usucapião, o proprietário

quiritário, ou um terceiro adquirente, caso o proprietário alienasse, por mancipatio ou

in iure cessio, o imóvel novamente, poderiam reivindicar o bem, o que resultava

numa situação de iniqüidade fática.

No sentido de conferir proteção ao comprador, impedindo a restituição do

imóvel ao vendedor e garantindo o uso ao adquirente, enquanto não preenchido o

define o instituto: “Além da mancipatio, outro modo convencional e solene de transferência dapropriedade é a ‘cessio in jure’ ou ‘in jure cessio’ – abandono do objeto diante do juiz. (Curso deDireito Romano, 30a Edição, Editora forense, 2007, Biblioteca Forense Digital 2.0, p. 182)”.18 Op. Cit., Biblioteca Forense Digital 2.0, p. 162.

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21

requisito temporal para a usucapião, a jurisprudência criou um meio de defesa, que

conduzia ao reconhecimento da chamada propriedade pretoriana ou bonitária do

comprador.

Entretanto, poderia ocorrer que aquele que adquiriu o bem com vício formal

perdesse a posse para o alienante ou para terceiro, o que ensejou que, além do

instrumento de defesa, os pretores conferissem ao proprietário bonitário, uma outra

ação para a recuperação da posse perdida.

Uma vez mais, esclarecendo a questão, socorre-nos JOSÉ CARLOS

MOREIRA ALVES: 19-20

“A propriedade bonitária ou pretoriana (os textos romanos ao sereferirem a ela empregaram as expressões in bonis esse ou in bonishabere) surgiu quando o pretor passou a proteger a pessoa que,comprando uma res mancipi, a recebia do vendedor por meio dasimples traditio. Ora, a propriedade quiritária da res mancipi só seadquiria com a utilização de uma das formas solenes de aquisição dapropriedade: a mancipatio ou a in iure cessio. Assim, a traditio nãotransferia ao comprador o domínio ex iure Quiritium sobre a resmancipi, e, em decorrência disso, o vendedor continuava a ter apropriedade quiritária sobre a coisa, podendo reivindicá-la docomprador. Essa situação era, sem dúvida, iníqua para este”.

19 Op. Cit., Biblioteca Forense Digital 2.0, p. 158.20 No mesmo sentido, discorre MAX KASER, em vários trechos, na obra Direito Privado Romano,Editora Fundação “Calouste Gubenkian”, Lisboa, 1999: “Se o alienante, que fez simples traditio dasua res mancipi e assim continuou a ser proprietário quiritário, reclamar posteriormente a coisamediante a rei vindicatio, o pretor concede ao adquirente demandado uma excepção, a exceptio reivenditae et traditae ou a exceptio doli. O pretor torna-o assim mais forte do que o proprietárioquiritário. (p. 139)”, “Pelo contrário, se aquele que recebeu por simples traditio uma res mancipi do proprietário quiritário,intenta uma actio Publiciana contra o proprietário quiritário e actual possuidor, o pretor concede aoautor a replicatio rei venditae et traditae (ou replicatio doli) contra a exceptio dominii.(p. 140)”.

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22

O pretor, então, passou a protegê-lo com a exceptio rei uenditae ettraditae (exceção de coisa vendida e entregue): quando o vendedor,alegando o domínio ex iure Quiritium, movia uma ação dereinvidicação contra o comprador, este paralisava o direito daquelecom a exceção que se referia à venda e à entrega da res mancipi.Tal proteção, no entanto, não tornava o comprador proprietárioquiritário da res mancipi, o que só se verificava quando decorria olapso de tempo necessário para que o comprador adquirisse apropriedade quiritária por usucapião (no direito clássico, um ano paraas coisas móveis; e dois, para as imóveis). Enquanto não ocorria ousucapião, havia duas espécies de propriedade sobre a coisa: aquiritária (que era a do vendedor, que, no entanto, não podia utilizar-se da coisa nem obter sua restituição por meio da rei uindicatio) e abonitária ou pretoriana (que era a do comprador, que usava da coisa,e que se defendia do vendedor, se preciso, mediante a exceptio reiuenditae et traditae).

Mas essa proteção só não bastava. Com ela, o comprador sedefendia apenas do vendedor ou de terceiro a quem este tornasse aalienar a coisa, transferindo-a pela mancipatio ou pela in iure cessio.E isso somente enquanto o comprador estivesse na posse da coisa.Ora, outra situação poderia ocorrer: o comprador perder a posse dacoisa, que passaria para as mãos ou do próprio vendedor ou deterceiro. Nesse caso, o comprador ficava desprotegido, pois aexceptio rei uenditae et traditae era apenas uma arma de defesa, enão de ataque, para a recuperação da posse da coisa. Essa situaçãofoi sanada por um pretor de nome Publício, que criou, no seu edito, aactio publiciana, que era uma ação fictícia, porque na sua fórmula seconsiderava, por ficção, como já tendo o proprietário pretorianoadquirido, por usucapião, o domínio quiritário. Com o emprego dessaficção, podia ele reinvidicar a coisa, ou do próprio vendedor, ou deterceiro”.

A propriedade provincial, ao contrário da propriedade quiritária, não recaía

sobre os solos itálicos ou romanos, mas sim sobre terras situadas nas províncias,

que pertenciam ao príncipe ou ao povo romano21.

21 Esclarece José Carlos Moreira Alves que: “Nessas províncias, o proprietário do solo é o povoromano (se se trata de província senatorial) ou o príncipe (se se trata de província imperial). (Op. Cit.,Biblioteca Forense Digital 2.0., p. 158)”.

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23

Com a expansão do império, o Estado Romano, com o propósito de tornar

produtivas, as terras provinciais, obtidas pela guerra, deferia aos particulares,

mediante pagamento22 de certa quantia, o direito de se estabelecerem nas terras

provinciais para o cultivo da terra.

Vale ressaltar que, ao que parece, a propriedade provincial tinha caráter

iminentemente econômico, pois, juridicamente, pertenciam ao Estado Romano ou ao

povo romano, sendo que os particulares detinham a posse e direitos de uso, gozo e

fruição, transmissíveis e protegidos por meio da ação real (actio in rem).

Sobre esta questão, ressaltamos o ensinamento de JOSÉ CRETELLA

JUNIOR23-24:

“(...). O direito que os ocupantes da propriedade provincial têm sobreas terras é, economicamente, uma propriedade, mas juridicamentenão se emprega essa denominação. Os jurisconsultos da épocaclássica falam em usus, fructus, possessio ou dizem possidere,habere, frui, licere. O direito dos particulares vai ao ponto depoderem alienar tais bens por simples tradição”.

A propriedade peregrina, por sua vez, teve por finalidade, permitir que o

Estado garantisse aos estrangeiros, a proteção de seus bens contra terceiros. Tal

22 Consoante José Carlos Moreira Alves, o pagamento exigido era denominado “stipendium (para opovo romano, se província senatorial) ou tributum (para o príncipe, se província imperial)”. (Op. Cit.,Biblioteca Forense Digital 2.0, p. 158).23 Op. Cit., Biblioteca Forense Digital 2.0, p. 153.

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proteção era conferida pelo pretor peregrino em Roma ou pelos governadores das

cidades, pela concessão aos titulares de ação real.

Entretanto, o fundamento desta espécie de propriedade era o direito das

gentes (jus gentium), uma vez que a propriedade baseada no jus civile romano, só

poderia ser deferida aos cidadãos romanos25.

No período pós-clássico, precisamente com Justiniano, ocorreu uma

unificação das diversas modalidades proprietárias, porque não mais se justificava a

mantença das formas solenes de aquisição da propriedade quiritária, bastando a

traditio para a sua transmissão.

As causas de extinção das várias espécies de propriedade e da unificação

do dominium ocorreram, sobretudo, em razão da extensão da cidadania romana a

todos os habitantes do império e da cobrança generalizada de impostos sobre os

imóveis, conforme JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES26 aponta:

“As causas que deram margem a essa unificação - com oconseqüente desaparecimento das várias espécies de propriedadedo direito clássico - foram as seguintes:

24 No mesmo sentido: Édouard Cuq, MANOEL des Institutions Juridiques des Romains, Paris,Librairie Plon Imprimeurs-Éditeurs, 1928, n. 5, p. 250-251.25 Segundo J. Cretella Junior: “A propriedade peregrina é aquela em que o proprietário não tem odominim ex jure quiritium por ser peregrino, isto é, estrangeiro, No entanto, ele tem um dominiumsancionado pelo direito peregrino local ou por autoridades romanas (pretor perefrino ougovernadores), como propriedade do jus gentium. (Op. Cit., Biblioteca Forense Digital 2.0, p. 151).26 José Carlos Moreira Alves. Direito Romano, Volume 1, 3º Edição, Editora Forense, Rio de Janeiro,1971, p.316: .

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a) a propriedade peregrina praticamente desapareceu quandoCaracala, em 212 d.C., estendeu a cidadania romana a quase todosos habitantes do Império Romano;

b) a propriedade provincial deixou de existir quando o imperadorDioclesiano (285 a 305 d.C.) estendeu os impostos aos imóveis queaté então gozavam de isenção por terem o jus ltalicum (o que lhesfazia suscetíveis de propriedade quiritária): e, a partir dessemomento, o imposto não mais significava que o Estado é oproprietário do imóvel e o particular apenas possuidor dele, mas, sim,que se trata de contribuição que todos têm de prestar ao Estado paraeste fazer face às suas despesas; e,

c) o desaparecimento das formas solenes de aquisição dapropriedade quiritária (mancipatio e in jure cessio) e a fusão do iuscivile com o ius honorarium, resultando de ambos esses fatos aextinção da propriedade pretoriana”.

Também contribuíram para a unificação aqui tratadas o agravamento das

limitações ao direito de propriedade nos períodos pré-clássico e clássico, bem como

a criação de novas limitações, que serão abordadas adiante, com mais vagar.

O sistema proprietário romano, embora já enfraquecido na última fase do

império, em razão da concentração da propriedade nas mãos de poucos

proprietários, sofreu, de fato, ruptura, com a invasão dos povos bárbaros.

2.1.2.2. Conceito, conteúdo e limitações do direito de

propriedade no Direito Romano.

A elaboração dogmática e tipicamente individualista do direito de

propriedade absoluto, exclusivo, perpétuo e oponível erga omnes do Direito

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Romano, mais tarde, veio a se tornar paradigma da noção de propriedade, que por

tanto tempo vigorou no Ocidente.

Nos fragmentos dos diversos escritos romanos, em especial nos escritos de

Gaio, já se podia encontrar uma distinção, realizada na sociedade romana, no plano

do direito processual, entre as ações reais (actio in rem) para a defesa dos poderes

de senhorio sobre as coisas e as ações pessoais para a defesa em face da conduta

de uma pessoa (actio in personam). Esta distinção serviu de ponto de partida, para

que os romanistas do período medieval formulassem a distinção entre os direitos

reais e os direitos pessoais.

Também coube aos comentadores suprir a omissão dos romanos em,

expressamente definir o direito de propriedade, a partir do conjunto de prerrogativas

do proprietário que se podia extrair dos escritos romanos, quais sejam: o jus utendi

(faculdade do proprietário de utilizar o bem para a satisfação de suas necessidades),

o jus fruendi (faculdade do proprietário de fruir, ou seja, de perceber ou aproveitar os

frutos e produtos produzidos pelo bem, tais como aluguéis e colheitas) e o jus

abutendi (faculdade conferida ao proprietário de, além de usar, livremente dispor da

coisa).

Daí porque, referidos doutrinadores conceituaram o direito de propriedade

como a faculdade que, ligando o homem à coisa, possibilita a seu titular extrair desta

toda utilidade que possa lhe proporcionar, ou, mais precisamente, uma faculdade

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natural do proprietário de fazer o que bem entendesse com a coisa, exceto o que lhe

fosse vedado pela lei ou pela força27.

No período Pré-Clássico, após mais de uma década de reivindicações dos

plebeus por igualdade de direitos e, sobretudo, pela maior publicidade das leis, até

então guardadas em segredos pelos patrícios, por volta dos anos de 451 e 450 a.C.,

foi promulgada a Lei das XII Tábuas, como primeira compilação de leis, trazendo em

seu bojo as primeiras limitações ao direito de propriedade.

Segundo Giuseppe Cugusi28, as limitações, desde então, estabelecidas

poderiam ser classificadas em limitações de ordem pública e limitações em favor dos

particulares.

Ao que parece, a conclusão do autor italiano, quanto à classificação das

limitações do direito de propriedade, estabelecidas no Direito Romano, é acertada,

sobretudo, se analisar as limitações, segundo elenco apresentado por JOSÉ

CARLOS MOREIRA ALVES29, separadas em razão dos períodos de evolução do

Direito Romano.

Segundo o referido jurista, as limitações estabelecidas desde a Lei das XII

tábuas até o final do período clássico em 285 d.C. são as seguintes:

27 Ibidem, p.311. 28 Teoria della proprietà, Napoli, Luigi Pierrô, 107, §§ 135 a 172.29 Op. Cit., Biblioteca Forense Digital 2.0, p. 159.

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“a) os proprietários de terrenos vizinhos, segundo a Lei das XIITábuas,não podem construir ou cultivar uma faixa de terra, em voltado imóvel, de dois e meio pés de largura, a qual - unida à deixadalivre pelo vizinho - constitui o ambitus (nas cidades) ou o iter limitare(no campo), com cinco pés de largura;

b) o dono de um terreno deve permitir que os galhos das árvores dovizinho se projetem sobre o seu imóvel à altura não inferior a quinzepés (se isso não ocorrer, pode exigir que se cortem os galhos queestão a menos de quinze pés, e, em se recusando o vizinho, elemesmo cortá-los);

c) o proprietário de um terreno pode entrar, dia sim, dia não (tertioquoque die), no imóvel do vizinho para recolher os frutos caídos desuas árvores;

d) é o proprietário obrigado a manter conservada a estrada queconfina com seu imóvel, sob pena de ter de permitir a passagem,inclusive de animais, pelo seu terreno;

e) o proprietário de um imóvel que seja o único meio de acesso alocal onde se encontra um sepulcro deve permitir a passagem (iterad sepulchrum), pelo seu terreno, das pessoas que para ali sedirijam;

f) o dono do imóvel superior não pode fazer obras que provoqueminvasão - portanto, immissio superior à normal -, no terreno inferior,das águas que correm de um para o outro, sob pena de o proprietáriodeste mover contra ele, para obter a demolição das obras, a actioaquae pluuiae arcendae; nem o dono do imóvel inferior pode impedira entrada natural das águas que vêm do terreno superior;

g) o proprietário de imóvel cortado por rio público está obrigado apermitir que qualquer pessoa se utilize das margens para passagemde barco ou para ancorá-lo;

h) senatus-consultos dos dois primeiros séculos d.C. proíbem, paraque as cidades não se enfeiem com ruínas, a demolição de casascom o fito de venda do material de construção; (clássico);

i) o proprietário de uma trave não pode - para que se evitemdemolições - retomá-la, se empregada em construção de outrem, anão ser depois de a construção ser posta abaixo; a jurisprudênciaestendeu a proibição a todo material destinado a obras;

j) constituições imperiais estabeleceram, para as cidades grandes, aaltura máxima dos prédios (setenta pés, no tempo de Augusto;sessenta, no de Trajano);

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l) não pode o dono de um imóvel, localizado dentro de uma cidade,sepultar, aí, mortos; e, fora dela, não pode até uma distância desessenta pés de qualquer edifício;

m) nas províncias, a propriedade - quer mobiliária, quer imobiliária - ésujeita a uma série de limitações impostas no interesse daadministração pública; assim, por exemplo, os móveis (alimentos,animais, veículos) podem ser requisitados pelo Estado, e os imóveisestão sujeitos ao ônus de alojar tropas; e,

n) uma constituição imperial de Antônio Pio estabeleceu que o donoque maltratasse um escravo estaria obrigado a vendê-lo. 30”

Em complemento, JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, após esclarecer que,

no período pós-clássico, houve um agravamento das limitações anteriormente

existentes, aponta as novas restrições impostas ao direito de propriedade, que ora

reproduzimos:

“a) enquanto, no período clássico, as minas pertencem aoproprietário do terreno, onde se encontram, no pós-clássico ele está

30 Segundo José Cretella Junior constituíam fontes do Direito Romano, no Alto Império, o costume, alei, os senatosconsultos, os editos dos magistrados, as constituições imperiais e as respostas dosprudentes.(Op. Cit., Biblioteca Forense Digital 2.0, p. 54).No elenco de limitações referidas por José Carlos Moreira Alves, há referências a senatus-consultos ea constituições imperiais, de modo que é importante esclarecer em que consistem.Segundo Thomas Marky:Os senatus-consultos (senatusconsulta) eram, juntamente com o costume, a lei, eram deliberaçõesdo senado, cuja função legiferante foi somente reconhecida no início do Principado (27 a.C. - 284d.C.). Na República, os senatus-consultos eram deliberações do senado, dirigidas mormente aosmagistrados. No Principado, eram propostos pelos imperadores e, no início, consistiam, também, eminstruções aos magistrados sobre o exercício de suas funções. Mais tarde, a partir do imperadorAdriano (117 - 138 d.C.), passou-se a aprovar simplesmente, por aclamação, a proposta doimperador (oratio principis), transformando-se, destarte, o senatus-consulto numa forma indireta delegislação imperial.As constituições imperiais eram disposições do imperador que não só interpretavam a lei, mas,também, a estendiam ou inovavam. As denominações variavam, conforme o conteúdo ou naturezadelas: edicta - ordenações de caráter geral, à semelhança das ordenações dos magistradosrepublicanos, de que trataremos logo a seguir; decreta - decisões do imperador, proferidas numprocesso; rescripta - respostas dadas pelo imperador a questões jurídicas a ele propostas porparticulares em litígio ou por magistrados; mandata - instruções dados pelo imperador, na qualidadede chefe supremo, aos funcionários subalternos. (Curso Elementar de Direito Romano, ed. Saraiva,6ª ed., 1992)

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30

obrigado a admitir escavações feitas por estranhos, cabendo-lhe umdécimo do produto obtido (igual proporção é devida ao Estado);

b) aumentam as limitações no que diz respeito a construções nascidades (por exemplo: uma não pode distar da outra menos de 12pés; e de 15, se se tratar de edifício público; 100 pés é a alturamáxima dos edifícios);

c) no direito justinianeu, a matéria relativa a águas que correm doterreno superior para o inferior sofre modificações; proíbe-se que oproprietário do imóvel superior faça construções que impeçam, alémdos limites de sua necessidade de água, que ela flua para o terrenoinferior, ou que se utilize da água em medida superior à dasnecessidades do imóvel;

d) o proprietário que não cultiva seu terreno perde a propriedadesobre ele em favor de quem o cultivou por mais de dois anos;

e) por motivos de ordem pública ou privada, surgem várias normasque impedem que se alienem certas coisas;

f) o proprietário de um imóvel não pode levantar construção queimpeça que o vento atinja o terreno vizinho”.

Por fim, resta salientar, ainda com apoio da doutrina de JOSÉ CARLOS

MOREIRA ALVES que é também no período pós-clássico que se disciplina, no

âmbito do Direito Romano, a desapropriação por utilidade pública, mediante

indenização.

2.2. DIREITO DE PROPRIEDADE NA IDADE MÉDIA.

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31

Inicialmente, é oportuno transcrever, a doutrina de JOSÉ MANOEL DE

ARRUDA ALVIM NETTO31, acerca dos tipos de propriedade existentes no regime

feudal, vigente durante a Idade Média:

“No período feudal conceberam-se várias formas de propriedade:

1ª) A propriedade comunal, que basicamente se constituía em umapropriedade comum, designada, em alemão, pelo termo Mark, sendoproprietária a tribo, com o uso e gozo para os seus membros.

2ª) A propriedade alodial, que se assemelha à propriedade livre,assimilável à que hoje concebemos como configuradora do perfil dodireito de propriedade contemporâneo, caracterizando-se pelapossibilidade de alienação por parte daquele que era proprietário eque fazia a terra produzir.

3ª) A propriedade beneficiária, que era cedida por reis ou nobres,para que fosse explorada pelo plebeu; àquele que explorava a terraconcedia-se o domínio direto ou útil, mas não a possibilidade dedisposição.

4ª) A propriedade censual, que cabia àquele que explorasse a terra ea fizesse produzir, desde que pagasse um “cânon” a alguém (que,sob a ótica moderna, seria o verdadeiro proprietário).

5ª) A propriedade servil era deferida aos servos, só enquanto ligadosà gleba o que marcou, pois, a concepção da propriedade, na épocamedieval, e o que podemos verificar desta breve exposição, foi aexistência constante de dualidade de sujeitos”.

31 O Livro do Direito das Coisas, 2007, no prelo. Veja-se, ainda, acerca de outros tipos proprietários ,José Luis de Los Mozos, El derecho de propriedad: crisis y retorno a la tradición jurídica, Madrid,1993, Ed. Edersa, p. 23 e segs.

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Embora se possa afirmar que tenham sido concebidas outras formas

jurídicas de apropriação de bens, foi a propriedade servil, que marcou a concepção

da propriedade, sobretudo, em razão de sua organização social estratificada e

baseada nas relações de dependência pessoal entre os homens, fundada na

propriedade da terra.

Segundo ensina LAFFAYETTE RODRIGUES PEREIRA32, o sistema feudal

é produto do enfraquecimento dos povos conquistados, em fusão com os

conquistadores, sendo que as alterações no regime proprietário, foram

conseqüências naturais da necessidade de apoiar no solo a dominação dos

senhores sobre as populações.

A utilização da terra como instrumento de dominação, de certo modo,

decorreu da própria concepção de propriedade dos povos bárbaros, sobretudo, os

germânicos, que não concebiam a propriedade como direito exclusivo, mas sim

como relação de gozo pertinente à coisa, a possibilitar, como de fato ocorreu, a

fragmentação do direito de propriedade em tantas relações de gozo quanto

possíveis. 33

Vale transcrever, o que escreve PAOLO GROSSI34, em relação a esta

fragmentação do direito de propriedade:

32 Lafayette Rodrigues Pereira. Direito das Coisas, Tomo I, Atualizado conforme o Código Civil 2002por Ricardo Rodrigues Gama, 1ª edição, 2.003, p. 17.

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33

“A propriedade medieval é uma entidade complexa e composta, tantoque parece até mesmo indevido o uso daquele singular: tantospoderes autônomos e imediatos sobre a coisa, diversos emqualidade segundo as dimensões da coisa que os provocou elegitimou, cada um dos quais encarna um conteúdo proprietário, umdomínio (o útil e o direto), e cujo feixe compreensivo reunido poracaso em um só sujeito pode fazer dele o titular da propriedadesobre a coisa. Fique bem claro que essa propriedade não é porémuma propriedade monolítica, a sua unidade é ocasional e precária, ecada fração leva em si a tensão a tornar-se autônoma e a força pararealizar o desmembramento; (...)”.

Segundo os historiadores, em troca de proteção contra invasões, a alta

nobreza, composta pelos antigos proprietários, confiava o domínio eminente de suas

terras ao soberano, jurando-lhe fidelidade, subordinação pessoal e prestação de

serviços. Em troca recebia o benefício, que, em regra, era a preservação da

titularidade do domínio útil sobre os feudos, bem como o poder político,

consubstanciado pelo direito de comandar, punir, aplicar a justiça e cobrar impostos

sobre a população local35.

Os senhores feudais, que haviam recebido feudos, diretamente, do

soberano, sendo seus vassalos diretos, como titulares de poder político sobre suas

terras, podiam dispor de parte destas em favor de nobres de menor escalão, o que

em regra ocorria mediante pagamento do Cânon, razão pela qual se formaram

hierarquias regionais de suserania e vassalagem.

33 Giuliano Martignetti. Propriedade in Dicionário de Política, Volume 2, 7ª Edição, 1995, Unb, p.1.032.

34 História da propriedade e outros ensaios. Trad. Luiz Ernani Fritoli. Editora Renovar, 2006, p. 66.35 Fábio Costa Pedro e Olga M.A. Fonseca Coulon. História: Pré História, Antiguidade e Feudalismo,1989.

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Além disso, podiam cedê-la aos plebeus, mediante pagamento do cânon ou

aos servos, enquanto ligados à gleba, ou seja, aos trabalhadores não proprietários,

que cultivavam a terra, em troca de alimento, roupa e moradia.

A fragmentação do direito de propriedade e as relações de dependência

entre senhores, vassalos e servos, constituíram importantes instrumentos de

dominação, uma vez que criaram uma hierarquia dos direitos sobre a terra, como

forma de manutenção da sociedade estamental.

Essa hierarquização aparece de forma clara na lição de JOSE MANOEL DE

ARRUDA ALVIM NETTO, ao esclarecer que:

“A transmissão de propriedade por herança se dava de senhor asenhor, e de proprietário beneficiário a proprietário beneficiário, poisa sociedade era marcadamente estratificada, composta por classessociais nitidamente segmentadas. O direito das sucessões “realiza-se” confinadamente dentro de uma classe social, em relação a bense coisas com significação econômica. Assim, por herança, um servoda gleba não poderia tornar-se senhor. Dificilmente, aliás, poderiasair desta condição, exceto por dois caminhos: o do clero e o dasarmas. (...) “. 36

Portanto, é possível concluir que a sociedade feudal se fundamentava em

quatro pilares essenciais, ou melhor, caracterizou-se por quatro elementos básicos,

a saber: as relações de dependência pessoal entre os indivíduos, o

36 Op. Cit., no prelo.

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35

desmembramento do direito de propriedade, a hierarquia dos direitos sobre a terra

em razão dos citados laços de dependência e o poder político, descentralizado e

regionalmente hierarquizado. 37

Segundo PAOLO GROSSI, em conferência proferida em Siena, no ano de

1985, no âmbito do Congresso Nacional da Sociedade Italiana de História do Direito,

o desmembramento do direito de propriedade revela uma concepção do instituto,

que não se centraliza no sujeito e suas volições, mas predominantemente na coisa,

ou melhor, na terra e nas formas organizativas de seu cultivo.

Desta sorte, vigora um princípio de efetividade econômica, segundo o qual

se reconhecem formas de propriedade, a partir da normativização de situações

fáticas exteriorizadas, repletas de conteúdos econômicos, que se sobrepõem à

titularidade, como vínculo formal e exclusivo, que conduzem PAOLO GROSSI38 a

qualificar a sociedade medieval, como civilização “possessória”, conforme se pode

constatar nas passagens que reproduzimos:

“A alta idade média é uma grande civilização possessória, em que oadjetivo possessório deve ser entendido não em sentido romanístico,mas na sua acepção finziana de conotação de um mundo de fatos

37 Nesse sentido socorre-nos François Louis Ganshof: , “Era uma sociedade cujos caracteresdeterminantes são um desenvolvimento, levado até muito longe, dos laços de dependência dehomem para homem, com uma classe de guerreiros especializados a ocupar os escalões superioresdessa hierarquia; um parcelamento máximo do direito de propriedade; uma hierarquia dos direitossobre a terra provenientes desse parcelamento e correspondendo à hierarquia dos laços de depen-dência pessoal a que se acaba de fazer referência; um parcelamento do poder público, criando, emcada região, uma hierarquia de instâncias autônomas que exercem, no seu próprio interesse, poderesnormalmente atribuídos ao Estado e, em épocas anteriores, quase sempre da efetiva competência des-te.Que é o Feudalismo? 4ª Edição, Editora Europa-América, 1968, p. 938 Op. Cit., p. 14.

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36

nem formal nem oficial, porém munido de efetividade e deincisividade. Sem presenças estatais estorvantes, sem hipotecasculturais, a oficina alto medieval reduz a propriedade a mero signocadastral e constrói um sistema de situações reais fundado não nodominium e tampouco nos dominia, mas em múltiplas posições deefetividade econômica sobre o bem.

É o reino da efetividade, enquanto desaparece o velho ideal clássicoda validade, isto é, da correspondência com modelos e tipos. Nãoarquiteturas e formas sapientemente pré-constituídas, mas um brotardesordenado e vivo de situações rústicas, não filtradas por nenhumapeneira cultural, que se impõe com base em fatos primordiais quesão a aparência, o exercício, o gozo. E, no centro do ordenamento edas suas atenções, não mais o sujeito com as próprias volições epresunções, mas a coisa com as suas naturais regras secretas, forçaque impressiona toda forma jurídica, aliás, constitutiva de toda formajurídica”.

É nítida, pois, que se está diante de um direito de propriedade, impregnado

por um princípio de operabilidade, que decorre da já mencionada fragmentação da

propriedade, atribuindo domínio (útil) àquele que, não sendo formalmente

proprietário, exerce poderes sobre a coisa, fazendo-a produzir.

Neste contexto de legitimação de domínio útil em razão do exercício e gozo

desvinculados do domínio decorrente da titularidade formal, conforme esclarece

PAOLO GROSSI39, tem lugar a discussão sobre um conteúdo mínimo da

propriedade, que não se mostra tão relevante na Idade Moderna, mas parece ser

pertinente nos dias de hoje, como adiante defenderemos.

Essa concepção medieval de propriedade, centrada na dominação efetiva da

terra como forma de manutenção dos laços pessoais de subordinação entre os

39 Op. Cit., p. 56.

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37

senhores e os vassalos e/ou servos, como fonte do poder político40, sucumbe com o

surgimento e crescimento da burguesia, das ideologias individualistas e, sobretudo,

com o trabalho doutrinário dos pandectistas na Idade Moderna.

2.3. DIREITO DE PROPRIEDADE NA IDADE MODERNA.

À margem da sociedade feudalista voltada à subsistência, desenvolveu-se

um processo de produção de riquezas, voltado para o mercado, impulsionado,

inicialmente, pelas relações de troca e, posteriormente, pela compra e venda de

bens, que proporcionaram a acumulação de riquezas pela burguesia.

Os laços de dependência típicos do medievo, que constituíam o principal

instrumento de manutenção da sociedade estamental, retiravam do indivíduo a

autonomia, não permitindo, destarte, a expansão da economia de mercado, em

razão da limitação dos agentes econômicos.

O desmembramento do direito de propriedade e a hierarquização dos

direitos sobre a terra impediam a consolidação dos poderes proprietários nas mãos

do indivíduo, excluindo ou, ao menos, dificultando a circulação dos bens imóveis, por

meio da venda e compra.

A pulverização do poder político na sociedade medieval não conferia a

segurança jurídica necessária para o desenvolvimento adequado das atividades

40 José Manoel de Arruda Alvim Netto. Op. Cit., no prelo.

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38

econômica e empresarial, na medida em que cada senhor feudal, conforme já se

esclareceu, comandava, punia e aplicava a justiça.

Mister se fazia a eliminação da pluralidade jurídica reinante, tanto no que se

refere às fontes do direito, quanto no que tange a sua interpretação, finalidade que

só se poderia atingir por meio da centralização do Poder Estatal e do direito,

garantindo-se, ao mesmo tempo, a liberdade e igualdade entre os indivíduos.

A segurança jurídica, no Estado Liberal, se concretiza, sobretudo, com a

consagração dos princípios da separação entre os poderes do Estado.

A separação dos poderes garante a cisão entre os momentos da elaboração

da lei e de sua aplicação. Em razão da primazia da lei, como única fonte autorizada

a emitir comandos normativos, ao aplicá-la ao caso concreto, o julgador estava

obrigado a se limitar à literalidade do texto.

A liberdade decorre da separação, entre as esferas, pública e privada,

assentada na atribuição ao indivíduo de direitos fundamentais, oponíveis a todos,

mas, inclusive e principalmente, ao Estado. Esses direitos subjetivos, portanto,

constituem, na sociedade liberal, garantia da liberdade de iniciativa (autonomia

privada) e, também garantia de liberdade do homem perante o Estado.

Por fim, a igualdade, no Estado Moderno, será fruto do princípio da

abstração e generalidade da lei. Não se trata de uma igualdade material, mas sim de

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39

uma igualdade formal que resulta da possibilidade, que a lei confere a todos os

indivíduos, de ser titular de direito. 41

As modificações política, social e jurídica privilegiaram a autonomia privada,

na exata medida em que todos os indivíduos eram formalmente iguais, já que

podiam contratar e livres, pois tinham autonomia para decidir por celebrar ou não um

contrato e, naquela hipótese, sobre o que contratar.

Se, por um lado, a autonomia privada era necessária para garantir o acesso

e a livre circulação dos bens, por outro, não era suficiente para garantir a segurança

jurídica necessária, para assegurar a exclusividade dos poderes proprietários e

afastar interferências alheias na liberdade de exercício do direito de propriedade.

Neste sentido, ensina o JOSÉ MANOEL DE ARRUDA ALVIM NETTO42, com

as seguintes palavras:

“Com a Revolução Francesa, a liberdade idealizada, praticamenteabsoluta, e que veio a ser largamente pregada e concretizada, nocampo do direito obrigacional, servia à burguesia, para o fim de lheproporcionar condições ideais ao desenvolvimento pleno de suaspotencialidades, isto é, ao lado da assunção do poder político, criaras condições necessárias à expansão de sua riqueza. No campo dodireito das coisas, igualmente servindo aos interesses da burguesia,a enfatizada estrutura rígida desse direito veio a proporcionarsegurança ao "novo" proprietário, personagem social, em grandeescala coincidente com o burguês. Isto é, se constitui, tal sistemarígido, informador do direito das coisas, um repositório de segurança,onde tal classe social podia alojar e manter o patrimônio de que era

41 Michel Miaille. Introdução Crítica ao Direito. Editora Estampa, Lisboa, 1994, p. 117.42 Op. Cit., no prelo.

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40

detentora, (acumulado, em escala acentuada, muito antes mesmo daRevolução Francesa)”.

Assim, com a Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e

do Cidadão de 1789, a propriedade ganha o status de direito inviolável e sagrado, do

qual o titular não poderia ser privado, senão em situações excepcionais de

comprovada necessidade pública, mediante correspondente indenização.

A ruptura da propriedade medieval, centrada na coisa e ligada ao mundo

fenomênico exterior ao sujeito, impunha uma modificação de concepção, razão

porque a propriedade moderna busca sua identificação no interior do próprio sujeito,

sendo, pois, compreendida como instrumento da soberania do homem sobre a coisa.

É neste sentido de vínculo com a unicidade do sujeito, que, sem negar a

exclusividade e o absolutismo da propriedade moderna, PAOLO GROSSI esclarece

que “(...) o moderno da propriedade está todo no descobrimento da sua

simplicidade”, que “não é um dado exterior, não é quantidade, mas qualidade

essencial” 43.

Outro traço tipificador da propriedade moderna, segundo este mesmo autor,

é a abstração, na medida em que não necessita de fatos externos, salvo para

manifestar-se sensivelmente, ou, em outros termos, constitui “uma relação pura, não

aviltada pelos fatos, mesmo que normalmente disponível aos fatos, em virtude da

43 Op. Cit., p. 67.

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41

carga de extroversão que lhe é própria, sem referência ao conteúdo, perfeitamente

congenial àquele indivíduo abstrato.44“.

Conclui, a nosso ver, acertadamente, PAOLO GROSSI45 que a simplicidade

e a abstração não constituem feições juridicamente pouco relevantes, mas sim “as

únicas que são inerentes à estrutura do direito e nos fornecem uma análise interna”.

Nesse panorama, surge o fenômeno da codificação, que, como instrumento

necessário à unificação de fontes e à juridicização ideológica da autonomia privada

no âmbito dos contratos e da estrutura rígida no direito das coisas, consolida toda a

ordenação das liberdades no âmbito civil.

A primeira positivação da propriedade moderna, como direito subjetivo,

individual e privado, ocorre, no Code de Napoleão, em 1804, na França, que, em

seu artigo 544, expressamente, prevê os poderes do proprietário, em caráter

absoluto, de gozar e dispor das coisas46, contanto que delas não faça uso proibido

pela lei ou pelos regulamentos, que eram extremamente escassos.

Embora o texto do Código Civil francês tenha irradiado sua influência sobre

a maioria dos Códigos Civis da Sociedade Mercantil Européia47, é contribuição dos

44 Op. Cit., p. 70.45 Ibidem, p. 73.46 Em seu texto original, prevê o artigo 544 do Código Civil Francês: “La propriété est le droit de jouiret disposer des choses de la manière la plus absolue, pourvu qu'on n'en fasse pas un usage prohibépar les lois ou par les règlements”... 47 O artigo 641, primeira parte, do Código Civil Suíço de 1907, dispõe: “Quem for proprietário de umacoisa pode dispor dela de acordo com a sua vontade, nos limites da ordem jurídica. No mesmo

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42

pandectistas, a precisão técnica deste direito de propriedade simples e abstrato, que

resultou na definição de direito de propriedade, com alto grau de abstração e

generalidade, sem o arrolamento expresso das faculdades do proprietário.

Nesta linha, o Código Civil alemão estabelece no § 903 que “O proprietário

de uma coisa pode, sempre que a lei ou o direito de um terceiro não se opuser,

dispor da coisa à sua vontade e excluir outros de qualquer intromissão”.

No entanto, a ligação incindível entre a autonomia privada e o direito

absoluto de propriedade, ao mesmo tempo em que propiciou a ascensão e

acumulação de riquezas pela burguesia, impunha, como efeitos colaterais a

exclusão de outros segmentos da sociedade.

Sobre a adequação jurídica do conceito alemão, em face do sistema social e

econômico vigente, emprestamos, uma vez mais, o discurso de PAOLO GROSSI48:

“(...). Aqui a propriedade se torna caricatura jurídica congenial aohomo economicus de uma sociedade capitalista evoluída: uminstrumento ágil, conciso, funcionalíssimo, caracterizado porsimplicidade e abstração. Simples como é o sujeito, realidadeunilinear sobre a qual se modela e da qual é como a sombra noâmbito dos bens; abstrata como o indivíduo liberado da nova cultura,do qual quer ser uma manifestação e um meio validíssimo de defesa.

sentido a primeira parte do artigo 348 do Código Civil Espanhol de 1889: “La propiedad es el derechode gozar y disponer de una cosa, sin más limitaciones que las establecidas en las leyes”. 48 Op. Cit., pp. 81-82.

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43

É nessa transcrição ao sujeito que ela reclama a sua unidade e a suaindivisibilidade: una e indivisível como ele, porque como ele é síntesede virtude, capacidade e poderes”.

Por fim, cabe salientar, que dada a unidade, plenitude e perpetuidade do

direito de propriedade da Idade Moderna, não há terreno fértil para a discussão

sobre o conteúdo mínimo, sendo possível vislumbrar a limitação de conteúdos

apenas em relação aos direitos reais, que são marcados, por sua vez, pela

temporariedade.

No início do século XX, salta aos olhos, o crescente abismo, entre a

igualdade formal e as desigualdades materiais, que servirá de mola propulsora da

reação, que propiciou a afirmação de Constituições, que ensejaram o surgimento do

Estado do Bem Estar Social e a conseqüente alteração do perfil do direito de

propriedade, sobre a qual debruçamos na seqüência.

2.4. DIREITO DE PROPRIEDADE NA IDADE

CONTEMPORÂNEA.

As desigualdades sociais e o conflito entre o Capital e o Trabalho, que

resultaram do Estado Moderno, foram responsáveis pela superação do modelo

liberal não intervencionista, na exata medida em que se fazia necessária a

instauração de uma nova ordem econômica que atendesse de alguma forma às

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44

necessidades de distribuição de renda e assistência às classes sociais excluídas ou

desfavorecidas.

Diante da nova realidade social, a Igreja Católica vem a exercer importante

papel na visão social da propriedade. Na encíclica do Quadragésimo ano da Rerum

Novarum, de PIO XI, tomando-se por partida a idéia de bem comum preconizada

pelo pensamento cristão medieval de SÃO TOMÁS DE AQUINO, constroem-se as

noções de produtividade e de uso destinado ao bem comum.

Oportuno salientar que a Doutrina Social da Igreja consagra o princípio da

primazia da destinação universal dos bens sobre a apropriação individual, segundo o

qual os bens criados se destinam a todos os homens.

No entanto, reconhece o direito de propriedade individual, como forma eficaz

de realizar melhor esta destinação, cabendo ao Estado protegê-lo e respeitá-lo,

limitando-se a estabelecer as obrigações sociais do proprietário frente a coletividade,

para a harmonização do uso com o bem comum. Portanto, a propriedade, à luz

deste princípio é entendida como responsabilidade social e não como privilégio

excludente.

Vejam-se alguns pensamentos preconizados pela Doutrina Social da Igreja,

em especial, pelo Papa Pio XI49:

49 Carta Encíclica do Quadragésimo Ano, Papa Pio XI, 15.05.1931. Disponível na Internet no sítio:<http://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19310515_quadragesimo-anno_po.html>. Acesso em 20.08.2006.

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45

“Obrigações inerentes ao domínio.

E a fim de pôr termo às controvérsias que, acerca do domínio edeveres a ele inerentes, começaram a agitar-se, note-se, em primeirolugar, o fundamento assente por Leão XIII, de que o direito depropriedade é distinto do seu uso.

Com efeito, a chamada justiça comutativa obriga a conservarinviolável a divisão dos bens e a não invadir o direito alheioexcedendo os limites do próprio domínio; que, porém os proprietáriosnão usem do que é seu, senão honestamente, é da alçada não dajustiça, mas de outras virtudes, cujo cumprimento ‘não pode urgir-sepor vias jurídicas’. Pelo que sem razão afirmam alguns que o domínioe o seu honesto uso são uma e a mesma coisa; e muito mais ainda éalheio à verdade dizer que se extingue ou se perde o direito depropriedade com o não-uso ou abuso dele.

Prestam, portanto, grande serviço à boa causa e são dignos de todoo elogio os que, salva a concórdia dos ânimos e a integridade dadoutrina tradicional da Igreja, se empenham em definir a naturezaintima destas obrigações e os limites com que as necessidades doconvívio social circunscrevem tanto o direito de propriedade, como ouso ou exercício do domínio. Pelo contrário, muito se enganam eerram aqueles que tentam reduzir o domínio individual a ponto de oabolirem praticamente.

Poderes do Estado

Efetivamente, que deva o homem atender não só ao própriointeresse, mas também ao bem comum, deduz-se da própria índole,a um tempo individual e social, do domínio a que nos referimos.Definir, porém, estes deveres nos seus pormenores e segundo ascircunstâncias, compete, já que a lei natural de ordinário o não faz,aos que estão à frente do Estado. E assim a autoridade pública,iluminada sempre pela luz natural e divina, e pondo os olhos só noque exige o bem comum, pode decretar mais minuciosamente o queaos proprietários seja lícito ou ilícito no uso de seus bens. Já LeãoXIII ensinou sabiamente que "Deus confiou à indústria dos homens eàs instituições dos povos a demarcação da propriedade individual".E, realmente, o regime da propriedade não é mais imutável quequalquer outra instituição da vida social, como o demonstra a históriae nós mesmos notamos em outra ocasião: "Que variedade de formasconcretas não revestiu a propriedade desde a forma primitiva dos

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46

povos selvagens, de que ainda há hoje vestígios, até à forma depropriedade dos tempos patriarcais, e depois sucessivamente desdeas diversas formas tirânicas (usamos esta palavra no seu sentidoclássico), através das feudais e logo das monárquicas, até às formasexistentes na idade moderna!" É evidente, porém, que a autoridadepública não tem direito de desempenhar-se arbitrariamente destafunção; devem, sempre, permanecer intactos, o direito natural depropriedade e o que tem o proprietário de legar dos seus bens. Sãodireitos estes que ela não pode abolir, porque "o homem é anteriorao Estado", e "a sociedade doméstica tem sobre a sociedade civiluma prioridade lógica e uma prioridade real". Eis porque o sábioPontífice declarava também que o Estado não tem direito de esgotara propriedade particular com excessivas contribuições.

"Não é das leis humanas, mas da natureza, que dimana o direito dapropriedade individual; a autoridade pública não a pode, portanto,abolir: o mais que pode é moderar-lhe o uso e harmonizá-lo com obem comum". Quando ela, assim, concilia o direito de propriedadecom as exigências do bem comum, longe de mostrar-se inimiga dosproprietários, presta-lhes benévolo apoio; de fato, fazendo isto,impede eficazmente que a posse particular dos bens, estatuída comtanta sabedoria pelo Criador em vantagem da vida humana, geredesvantagens intoleráveis e venha, assim, a arruinar-se: não oprimea propriedade, mas defende-a; não a enfraquece, mas reforça-a.

Na esfera jurídica, a idéia de função social da propriedade é preconizada por

LEON DUGUIT, para o qual, em razão da socialização do direito, a concepção de

liberdade, não mais corresponde ao direito de fazer ou não fazer o que se bem

entende, desde que não cause dano a outrem. Para ele, todo homem tem o dever

de desempenhar uma função social, que decorreria da própria posição que ocupa na

sociedade.

Neste sentido, o proprietário, pelo fato de possuir a riqueza, tem de cumprir

a função social de empregá-la com a finalidade de manter e aumentar a

interdependência social e enquanto cumpre essa missão, seus atos de proprietário

são protegidos.

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47

Afirma JOSE MANOEL DE ARRUDA ALVIM NETTO, comentando as

conseqüências das influências da Doutrina Social da Igreja e do pensamento de

Duguit que:

“A partir, então desta nova ótica, que passa necessariamente peloóculo da significação do direito de propriedade em relação àsociedade, o proprietário passou a ter, cada vez mais, ao lado de umfeixe de poderes, também um somatório de ‘deveres’, dualidade estadificilmente visualizável precedentemente, quando o direito depropriedade era expressão do mais amplo e ilimitado poder”. 50

Sob esta influência, a Constituição do México de 1917 foi a primeira a

positivar o princípio da função social da propriedade, assim prevendo, no terceiro

parágrafo do seu artigo 27:

"La Nación tendrá en todo tiempo el derecho de imponer a lapropiedad privada las modalidades que dicte el interés público, asícomo el de regular, en beneficio social, el aprovechamiento de loselementos naturales susceptibles de apropiación, con objeto dehacer una distribución equitativa de la riqueza pública, cuidar de suconservación, lograr el desarrollo equilibrado del país y el de suconservación, lograr el desarrollo equilibrado del país y elmejoramiento de las condiciones de vida de la población rural yurbana. En consecuencia, se dictarán las medidas necesarias paraordenar los asentamientos humanos y establecer adecuadasprevisiones, usos, reservas y destinos de tierras, aguas y bosques, aefecto de ejecutar obras públicas y de planear y regular la fundación,conservación, mejoramiento y crecimiento de los centros depoblación; para preservar y restaurar el equilibrio ecológico; para elfraccionamiento de los latifundios; para disponer en los términos de

50 Op. Cit., no prelo.

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la ley reglamentaria, la organización y explotación colectiva de losejidos y comunidades; para el desarrollo de la pequeña propiedadagrícola en explotación; para la creación de nuevos centros depoblación agrícola con tierras y aguas que les sean indispensables;para el fomento de la agricultura y para evitar la destrucción de loselementos naturales y los daños que la propiedad pueda sufrir enperjuicio de la sociedad. Los núcleos de población que carezcan detierras y aguas o no las tengan en cantidad suficiente para lasnecesidades de su población, tendrán derecho a que se les dote deellas, tomándolas de las propiedades inmediatas, respetandosiempre la pequeña propiedad agrícola en explotación".51

Entretanto, parece que o mais forte marco da positivação da função social

da propriedade foi a sua positivação na Constituição de Weimar de 1919, que previu

na parte final do artigo 153 que: “A propriedade é garantida pela Constituição. Seu

conteúdo e seus limites são fixados em lei. A propriedade acarreta obrigações. Seu

uso deve ser igualmente no interesse geral” 52.

51 O texto transcrito é o de 1917. Referido dispositivo foi ligeiramente alterado, passando a vigorarcom o seguinte texto, publicado no Diário Oficial da Federação de 06.01.1992: “La Nación tendrá entodo tiempo el derecho de imponer a la propiedad privada las modalidades que dicte el interéspúblico, así como el de regular, en beneficio social, el aprovechamiento de los elementosnaturales susceptibles de apropiación, con objeto de hacer una distribución equitativa de lariqueza pública, cuidar de su conservación, lograr el desarrollo equilibrado del país y elmejoramiento de las condiciones de vida de la población rural y urbana. En consecuencia, sedictarán las medidas necesarias para ordenar los asentamientos humanos y estableceradecuadas provisiones, usos, reservas y destinos de tierras, aguas y bosques, a efecto deejecutar obras públicas y de planear y regular la fundación, conservación, mejoramiento ycrecimiento de los centros de población; para preservar y restaurar el equilibrio ecológico; para elfraccionamiento de los latifundios; para disponer, en los términos de la ley reglamentaria, laorganización y explotación colectiva de los ejidos y comunidades; para el desarrollo de lapequeña propiedad rural; para el fomento de la agricultura, de la ganadería, de la silvicultura yde las demás actividades económicas en el medio rural, y para evitar la destrucción de loselementos naturales y los daños que la propiedad pueda sufrir en perjuicio de la sociedad”.52 Na Constituição Alemã de 1949, vigente atualmente, eis o texto da segunda alínea do artigo 14: “Apropriedade obriga. O seu uso deve ao mesmo tempo servir ao bem geral.

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49

Os dispositivos constitucionais a que acabamos de nos referir, sem sombra

de dúvidas, serviram de inspiração para outras Constituições Ocidentais53, exceção

feita à França.

Adiante, dedicaremos um capítulo para tratarmos acerca dos entendimentos

doutrinários a respeito da função social da propriedade, dispondo, com mais vagar,

sobre entendimentos doutrinários de autores pátrios e estrangeiros.

53 Constituição Italiana da República Italiana de 1947: “Art. 41, alínea 2: La proprietà privata èriconosciuta e garantita dalla legge, che ne determina i modi di acquisto, di godimento e i limiti alloscopo di assicurarne la funzione sociale e di renderla accessibile a tutti.; Constituição Espanhola de1978, “Art. 33: 1. Se reconoce el derecho a la propiedad y a la herencia 2. La función social de estosderechos delimitará su contenido, de acuerdo com lãs leyes”.

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50

3. ORIGEM E EVOLUÇÃO DO DIREITO DE

PROPRIEDADE NO BRASIL

3.1. A PROPRIEDADE LUSITANA NA IDADE MÉDIA E

AS SESMARIAS COMO ORIGEM DA PROPRIEDADE NO

BRASIL.

Com a invasão dos muçulmanos à Península Ibérica, inicia-se o período que

se convencionou denominar de Reconquista, que se estendeu desde o Século VIII

até o Século XIV.

No decorrer do período de reconquista cristã, surgiram, na Península Ibérica,

os Reinos de Astúrias, Leão, Castela, Galiza, Navarra, Aragão e Portugal.

O Reino de Portugal se origina de uma região, inicialmente, integrante do

Reino de Leão, conhecida por terras portucalenses54, tendo como seu primeiro Rei

54 O primeiro reconhecimento sobre a existência das terras portucalenses, que depois viriam aoriginar o Reino de Portugal, ocorre em 925, quando Ramiro II, então disputando o trono de Leão

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51

D. Afonso Henriques, que assim se declara em 1139, embora, somente no reinado

de Afonso VII, haja o reconhecimento desta independência, com a assinatura do

Tratado de Zamora em 1143, época em que conseguiu, também reconquistas

importantes em face dos muçulmanos.

Como resultado deste período de lutas para a reconquista dos territórios

ocupados, as terras reconquistadas eram consideradas propriedade régia, sendo

que o rei reconhecia a legitimidade do apossamento de terras pelas armas

(presúria), em virtude da necessidade de povoamento e ocupação econômica de

terras reconquistadas.

Sobre a legitimação da posse pelas armas, é oportuno transcrever o que

escreve LUIZ ABLAS55, tratando das presúrias portuguesas e das encomiendas

espanholas:

“Nos dois casos, embora a presúria se constituísse em um ato detomada de posse pelas armas, havia, na maioria dos casos, umaespécie de "autorização real", tomada quase no sentido deintervenção, que servia para reconhecer como legítimas as presúrias,isso tanto para o território astur-leonês como para o de Portugal.Esse sistema de aquisição de terras só foi possível em épocas eregiões em que prevalecia, por um lado, o estado de guerra, dandoorigem à possibilidade de uma "reivindicação" territorial por parte dosconquistadores, e, por outro, uma baixa densidade populacionaloriginando certa porção de terras ociosas passíveis de seremocupadas”.

com o rei Afonso IV, declara-se rei das terras portucalenses. Em 931, Ramiro II sobe ao trono deLeão, abrangendo ao território deste reino, as referidas terras.55 Sesmarias e Encomiendas como pré-requisitos da propriedade fundiária na colonização ibérica naAmérica. Disponível na internet no sitio: <http://www.eco.unicamp.br/nea/mterras/ablas.doc>. Acessoem 23.07.2007.

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52

Os Senhores Lusitanos, por sua vez, concediam as terras já conquistadas

aos camponeses, para que as cultivassem, mediante a paga de rendas, o que

possibilitava aos referidos senhores, manter os direitos sobre as terras já

conquistadas e, ao mesmo tempo, partir em busca de novas conquistas.

Portanto, também em Portugal, na Idade Média, o direito de propriedade não

se centrou no sujeito, mas sim na res, baseando-se num princípio de efetividade,

elevando a utilização econômica da coisa como fato legitimador das diversas formas

de domínio.

A manutenção dessa estrutura de propriedade sobre a terra era garantida

pela transmissão dos direitos sobre a terra por herança, ou seja, os descendentes

recebiam causa mortis os mesmos direitos que os ascendentes falecidos.

A esse respeito, vale ressaltar o ensinamento de ERIVALDO FAGUNDES

NEVES56:

“Em Portugal, a partir do século X, as propriedades mantiveram oprincípio de herança, permanecendo o domínio da terra com oocupante e seus descendentes. (...). Além desse recurso, também ocultivo originava domínio sobre a gleba, distinguindo-se, portanto, naIdade Média Peninsular, pelo menos dois fundamentos de DireitoAgrário. (...)”.

56 Sesmarias em Portugal e no Brasil. Revista Politéia: História e Sociedade, Vol. 1, Departamento deHistória da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista, 2001, p. 114.

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Encerradas as reconquistas portuguesas em 1249, a independência do reino

é colocada em risco, em razão dos seguidos embates com o Reino de Castela57,

exigindo o recrutamento dos homens do campo para a batalha. Nesta mesma época,

a epidemia de peste bubônica, contribui para a dizimação da população.

Tais circunstâncias acarretam crises sociais e econômicas, em especial, a

desocupação e falta de cultivo das terras e, por conseguinte, o desabastecimento e

a fome.

Essa é a conjuntura que conduz o rei D. Fernando I a promulgar a Lei das

Sesmarias, datada de 28.05.1375, conforme se depreende do texto de ERIVALDO

FAGUNDES NEVES58, que reproduzimos:

“Apesar do seu longo alcance, a lei posteriormente denominada dassesmarias resultou de circunstâncias caóticas e, por conseguinte, deação emergencial. O Reino de Portugal se debatia, desde início doséculo XIV, com repetidas epidemias de pesre, que dizimavam apopulação; sucessivas guerras contra Castela (1334-1339, 1369-1370; 1372-1374, 1381-1382); conflitos sociais internos; depressõeseconômicas e desabastecimentos, nos quais segmentos sociais deparcos recursos sofriam com a fome, que ceifava muitas vidas porinanição”.

57 As sucessivas guerras com o Reino de Castela encerram-se com o triunfo na Batalha deAljubarrota em 1385.58 Op. Cit., p. 112.

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Por esta razão, encontramos as sesmarias como modo de apropriação da

terra, através de concessão dominial das terras reais e eclesiásticas, fundada na

obrigatoriedade do cultivo, sob pena de expropriação, que visava suprir a crise de

abastecimento e mão de obra decorrente das guerras e da peste.

Para ROBERTO SMITH59 a lei das Sesmarias “visava a regular o uso e

exploração das extensas terras estatais e da Igreja” e “deve ser entendida, portanto,

dentro do quadro geral de um sistema produtivo que o Estado pretendia organizar, a

partir de uma forma de domínio condicionado”.

Com apoio no que leciona VIRGINIA RAU60, podemos afirmar que a Lei das

Sesmarias, composta de 19 (dezenove) artigos, continha normas voltadas a facilitar

o acesso à terra aos lavradores, priorizar a agricultura em detrimento da pecuária e

aumentar a disponibilidade de mão de obra para trabalhar no campo.

Ao impor ao proprietário, ou quem tivesse a terra por qualquer outro título, a

obrigatoriedade de plantar, sob pena de expropriação (Artigos 2 e 4), significava, a

um só tempo, fomentar a agricultura e facilitar o acesso à terra, na medida em que,

ou bem os seus titulares promoviam a sua utilização econômica, para o cultivo de

gêneros alimentícios com objetivo de prover o sustento da população (p. ex. trigo,

cevada e milho), ou a concediam para quem o fizesse.

59 Propriedade da Terra e Transição: estudo da formação da propriedade privada da terra e transiçãopara o capitalismo no Brasil, Brasiliense, São Paulo, 1990, p. 117.60 Sesmarias Medievais Portuguesas, Editora Presença, Lisboa, 1946, pp.90-91.

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Além disso, a fim de evitar que os senhores (nobres e clérigos) dificultassem

a concessão ou a condicionassem ao pagamento de rendas e pensões abusivas, a

legislação criou a figura dos “homens bons” ou sesmeiros, aos quais cabia julgar a

equitatividade das referidas pagas, em razão da extensão de terras a ser concedida

(artigo 13).

Para a priorização da atividade agrícola, ao mesmo tempo em que se

obrigou o lavrador que não possuía gado necessário ao emprego na produção

agrícola a adquiri-lo, impôs-se àqueles que quisessem vendê-los, preços pré-

fixados, em valor razoável, proibindo-se, igualmente, o desenvolvimento da pecuária,

exceto quanto à quantidade de bois necessários para a lavoura das próprias

herdades (artigos 3,18 e 19).

Já para fomentar a mão de obra disponível no campo, a Lei de Sesmarias

previu medidas voltadas ao aumento quantitativo de mão de obra rural disponível e

ao controle do valor da remuneração dos servidores.

Assim, como forma de evitar o aumento de valor do trabalho agrícola

remunerado, estabelecendo taxas salariais e impondo multas para o caso de

remuneração superior à fixada (Artigos 6, 7, 15 e 16).

Já para aumentar o contingente de mão de obra para a agricultura, compeliu

ao trabalho na lavoura: todos os filhos e netos de lavradores; aqueles que não

possuíssem bens avaliados até quinhentas libras e não tivessem ocupação útil ao

bem comum, nem senhor certo que necessitasse do seu trabalho para obra de

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serviço proveitoso; e, os ociosos, os vadios e os mendigos, exceto os fisicamente

inaptos (Artigos 6 e 8 a 11).

No reinado de D. João I, precisamente através da Carta de 25/02/1427

regularam-se alguns procedimentos a serem seguidos pelos sesmeiros, para a

outorga de terras improdutivas reivindicadas, determinando que se lançasse pregão

ou edital por quatro ou cinco dias, para que os senhores, conferissem utilização

econômica à terra, no prazo de um ano, sendo que se este não o fizesse, as terras

eram transferidas àquele que se comprometesse a cultivá-las.61

As normas sobre as Sesmarias foram incorporadas às Ordenações

Afonsinas, Manoelinas e Filipinas, sendo que, nesta última, já é possível encontrar

dispositivos condenando não só o abandono, mas a subutilização do solo.

O advento do mercantilismo impulsiona a economia para exportação e

promove um movimento de urbanização de mão de obra, com o êxodo de servos r

pequenos proprietários rurais para as cidades, em busca de atividades assalariadas

ou autônomas, iniciando-se um processo de descumprimentos da legislação das

sesmarias, em detrimento do abastecimento interno.

Entretanto, quando do descobrimento do Brasil, Portugal transfere o sistema

de sesmarias para a sua recém descoberta colônia, com algumas diferenças de

aplicação e finalidade que serão objeto de nossas considerações a seguir.

61 Neste sentido, Erivaldo Fagundes Neves in Sesmarias em Portugal e no Brasil. Revista Politéia:História e Sociedade, Vol. 1, Departamento de História da Universidade Estadual do Sudoeste daBahia, p. 117.

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3.2. AS SESMARIAS NO BRASIL.

De certa forma a evolução do Direito de Propriedade no Brasil sofreu a

influência das ideologias sociais, políticas e jurídicas que predominaram nas Nações

Européias no decorrer dos tempos, após o descobrimento.

Segundo CLÓVIS BEVILÁQUA62, o sistema de capitanias hereditárias,

vigente no Brasil instituído no início do período colonial, teria, por influência do

sistema proprietário da Idade Média, assumido algumas características do sistema

Feudal, tais como o caráter hereditário e a delegação do Poder Político aos

Donatários, normalmente, nobres de função influente, mas não preponderante em

Portugal e a criação de uma escala de direitos sobre a terra, como conseqüência

natural das sesmarias, concedidas aos colonos.63

RUY CIRNE LIMA64, afirma, sobre a questão da delegação de poderes

políticos ao donatário, que, “no feixe de poderes administrativos e políticos atribuídos

ao capitão na respectiva carta de doação, incluía-se o aludido poder de conceder

sesmarias, sendo o titular da capitania o primeiro agente da transposição do modelo

sesmarial ao Brasil”.

62 Direito das Coisas, Volume I, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1956, p. 102.63 História do Brasil no contexto da História Ocidental. Denise Manze Frayze Pereira e Luiz Koshiba,Editora Atual, 8ª Edição, 2.003.64 Pequena História Territorial do Brasil: Sesmarias e Terras Devolutas, 2a Edição, Porto Alegre,Livraria Sulina, 1954, p. 33.

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ERIVALDO FAGUNDES NEVES65 nos traz notícias do início do sistema de

capitanias hereditárias no Brasil, assim escrevendo:

“Martim Afonso de Souza chegou ao Brasil com três cartas régias: aprimeira o autorizava a apossar-se das terras que descobrisse eorganizar o respectivo governo com administração civil e militar, asegunda lhe conferia os títulos de capitão mor e governador doBrasil; a terceira lhe dava permissão para conceder semarias”.

Segundo este sistema, as terras brasileiras pertenciam à Coroa Portuguesa,

reservando-se à Ordem de Cristo, responsável pela atividade de catequese, para a

propagação do cristianismo na colônia, apenas a jurisdição espiritual66, prevista,

inclusive, nas Cartas Pontífices67.

A jurisdição espiritual distinguia-se da propriedade de jure, até mesmo,

porque as Ordenações proibiam que a Igreja se assenhoreasse destas terras

virgens, exceto se possuídos por título apropriado68.

A razão da dispensa da cobrança do sesmo original e da isenção de

pagamento de rendas e foros se explica pela necessidade de ocupação do vasto

território, para evitar a existência de produtores autônomos, a concorrer com a

economia metropolitana.

65 Op. Cit., p. 124.66 Carta Régia de D. Afonso V, de 7 de Junho de 1454.67 Bula do Papa Xisto IV de 21 de Dezembro de 1481.

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Entretanto, a Ordem de Cristo, inicialmente, realizava a cobrança de dízimos

para custear os gastos com a catequização, bem como, a título de recompensa

pelos investimentos no empreendimento ultramarino69.

Em 1534, houve, por determinação régia, a divisão do território em

capitanias hereditárias concedidas aos capitães donatários, que se constituíram,

pois, nos primeiros Sesmeiros.

Neste sentido, vale ressaltar, inicialmente, algumas diferenças conjunturais,

que demonstram que a sesmaria, no Brasil, não constituiu uma propriedade do tipo

feudal.

Dentre os principais fatores, é oportuno citar que: (i) no Brasil, em 1500,

inexistia a figura do camponês, como destinatário de um domínio útil; (ii) a

colonização de exploração, voltada aos anseios de uma metrópole mercantilista, não

se compatibilizava com a produção agrícola voltada para abastecimento interno,

como ocorreu em Portugal.

Assim, algumas das normas constantes das Ordenações, como, por

exemplo, a limitação da atividade agropecuária ao necessário à produção agrícola,

bem como a imposição de preços tabelados para a venda de gado, fazem sentido.

68 Ordenações Manoelinas, livro IV, título 67, § 14 e Ordenações Filipinas, livro IV, tíıtulo 43, § 15.

69 Posteriormente, o monarca, invocando a condição de Grão Mestre da Ordem de Cristo avocou paraa Coroa o Direito ao tributo.

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60

Do mesmo modo, inaplicável a taxação das rendas dos trabalhadores do

campo, sobretudo, porque, uma vez frustrada a tentativa de utilizar a mão de obra

indígena, adotou-se a mão de obra do escravo africano para o cultivo, a ponto de

escravo não ser sujeito de direito, mas sim objeto de propriedade de seus senhores.

Neste contexto, a propriedade do escravo se mostrava mais importante que

a posse da terra, já que, enquanto a terra se adquiria por doação, os escravos

constituíam verdadeiras mercadorias, adquiridas, a título oneroso, e, necessárias ao

cultivo da terra, como instrumentos de produção70.

Aos poucos, a partir da instituição dos Governos Gerais em 1548, embora

ainda vigentes as ordenações, as adaptações necessárias para uma estrutura

fundada na economia de exploração, movida pela mão de obra do escravo africano,

começam a se fazer sentir, nas cartas de concessão das sesmarias.

Neste diapasão, enquanto as Ordenações limitavam a extensão de terras a

ser concedidas à capacidade de aproveitamento, em 1548, o Regimento de Tomé

de Souza autoriza a concessão de terras de sesmarias adicionais àqueles que

tivessem posses para a construção de engenhos de cana de açúcar, sob a condição

de que também edificassem torres ou casas fortes, destinadas à defesa do

território71.

70 As exigências de que os senhores possuíssem escravos para que lhes fosse concedida a terra semostram presentes em várias Cartas e Alvarás Régios, tais como o Alvará de 08.12.1590, a CartaRégia de 1753 e o Alvará de 05.10.1795. Este último, por exemplo, estabelece a venda ou alienaçãocompulsória de terras, pelo senhor que, no prazo de 2 (dois) anos, não tivesse meios e escravatura,para promover o seu cultivo.71 Neste sentido RUY CIRNE LIMA, Op. Cit., p. 35.

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Estas disposições regimentais significavam, evidentemente, o

direcionamento da destinação das sesmarias à monocultura canavieira e a

atribuição, ao titular das terras concedidas, do dever de zelar pela proteção das

terras, que, em última instância, pertenciam à Coroa.

Já neste Regimento inaugural há a consagração da obrigação de cultivo,

como condição de legitimação da doação de sesmaria, sob pena de reversão da

terra à Coroa, preocupação esta que perdurou, durante todo o tempo em que

subsistiu o modelo de sesmarias no Brasil72.

A obrigatoriedade de cultivo, aliás, é ponto de aproximação com as

sesmarias lusitanas, embora haja diferença quanto às finalidades perseguidas aqui

no Brasil e lá em Portugal.

A estrutura necessária a esta atividade econômica de engenho da cana de

açúcar, entretanto, exigia grande extensões de terra, o que tornou o latifúndio,

elemento essencial da economia colonial.

Entretanto, podemos afirmar que a excessiva demanda por terras na colônia,

as imprecisões quanto às efetivas extensões de terra e o crescimento dos conflitos

possessórios conduziram a Metrópole a reiterar o cultivo como condição de

72 Outras normas orientadas ao dever de cultivo, sob pena de se considerar as terras devolutas: (i) naProvisão de 25.10.1571, prescrevendo que seriam consideradas devolutas as terras que não fossemaproveitadas; (ii) no Alvará de 21.08.1587, ordenando a doação em sesmaria para o gentio, vindo dosertão, para fazer lavoura; (iii) no Alvará de 08.12.1590, afirmando que as doações são destinadasao plantil de mantimentos e roças de canaviais; (iv) as ordens de revogação de sesmarias incultas,expedidas a partir de 1682; e, (v) o Alvará de 05.01.1785, consagrando que o cultivo das terras econdição essencialíssima da concessão de sesmarias. As Ordenações Filipinas, a seu turno,

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legitimação da doação de sesmaria, a estabelecer tributos, a reduzir e estabelecer

limites o tamanho das glebas, obrigar a medição e demarcação de terras, bem como

a realização dos atos de confirmação da sesmaria.

A extensão das sesmarias foi limitada, inicialmente, através da Carta Régia

de 27.12.1695, recomendava que as sesmarias possuíssem, no máximo 4 (quatro)

léguas de sesmarias73 de comprimento, por 1 (uma) légua de sesmaria de testada,

perfazendo uma área total de 17.424 hectares.

Determinava, ainda, a mencionada carta que aquelas sesmarias, que

ultrapassassem este limite extensão, ainda que anteriores, se não cultivadas,

fossem declaradas ociosas e doadas a quem as cultivasse.

A Carta Régia de 07.12.1697, por sua vez, limitou a extenso das sesmarias

a 3 (três) léguas de comprimento, por 1 (uma) légua de largura, extensão esta

confirmada pela Provisão Régia de 20.01.1699, a qual se refere ERIVALDO

FAGUNDES NEVES74, alicerçado em ARMANDO CASTRO, nos termos que

seguem:

“Uma Provisão Régia, de 20 de janeiro de 1699, deliberou tambémmanter as sesmarias, ainda que de muitas léguas, quando cultivadaspelo donatário diretamente ou através de arrendatários, transferindoao denunciante, breve e sumariamente, as áreas incultas, contanto

concediam prazo para aproveitamento das terras dadas de sesmarias, de 5 (cinco) anos, sob pena deanulação.73 Uma légua de sesmaria equivale a 6.600 m2.74 Op. Cit., p. 126.

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que tal sítio não excedesse a três léguas de comprimento e uma delargo ou légua e meia em quadro (Castro, 1989, p. 97), áreacorrespondente a 6.534 hectares”.

A Provisão de 20.10.1753, por sua vez, objetivando uniformizar

definitivamente a tendência das anteriores, manteve a extensão máxima das

sesmarias em 3 (três) léguas.

A despeito da legislação restritiva, no que se refere à extensão de terras, em

muitos casos, ocorriam concessões, segundo diversos critérios de favorecimento,

dentre os quais, LINHARES DE LACERDA75 aponta, exemplificativamente, a

“capacidade colonizadora do titular”, o “prêmio por serviços prestados à Coroa e

ainda, como simples liberalidade”.

Contribuíam, também, para o surgimento de enormes propriedades

latifundiárias, mesmo na vigência das normas restritivas, a inobservância dos

deveres de informação à coroa, que acarretavam imprecisões dos limites territoriais

das concessões.

Uma vez mais, transcrevemos ERIVALDO FAGUNDES NEVES76, que,

fazendo referência a LIGIA OSÓRIO SILVA, posiciona a questão da imprecisão das

extensões e limites das propriedades fundiárias, como fator de formação de grandes

latifúndios, no Brasil - Colônia:

75 Tratado das Terras do Brasil, Volume 1, Alba, Rio de Janeiro, 1960, p.11676 Op. Cit., pp. 130-132.

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“(...). A elevada incidência de limites imprecisos decorre dasonegação de informações – pelos donatários, seus herdeiros esucessores, mais ainda das terras distantes e de difícil acesso – aosagentes dos poderes públicos, encarregados de inspecionartitularidades e aferir dimensões.

Com freqüência se ocupavam terras sem titulação para, em seguida,formularem pedidos de sesmarias ou legalização da posse, queantecipava à propriedade, com o uso parcial do terreno.Mesmascircunstâncias que possibilitavam ocupações ilícitas e descontrolenas proporções de sesmarias, proporcionando aos posseiros,oportunidades para definirem seus próprios limites (Silva, 1996, p.60). Por isso, as cartas de sesmaria não indicavam confrontaçõesnem áreas com precisão. Reproduziam vagas referênciasapresentadas pelos requerentes, conhecedores ou ocupantes dosterrenos pretendidos”.

Evidente, que este quadro ensejava uma enorme quantidade de demandas

possessórias, apesar dos esforços que a coroa sempre realizou, no sentido de

exercer um controle sobre as terras de sesmarias.

Com esse intuito é que na Carta Régia de 13.12.1697 mandou intimar

titulares de grandes áreas a demarcar suas terras no prazo de um ano, sob pena de

se tornarem devolutas.

Também com este intuito, determinou-se, através das Cartas Régias de

03.03.1702 e 08.03.1704, que todos os titulares de sesmaria apresentassem as

cartas de doações e confirmações correspondentes, no prazo de 6 (seis) meses,

com notificação para demarcá-las judicialmente, sob pena de perdê-las, em 2 (dois)

anos.

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A já mencionada Provisão de 20.10.1753, que uniformizou a extensão das

terras de sesmarias em 3 (três) léguas, impôs o dever de medição e demarcação,

antes da confirmação, bem como permitiu a revalidação, restrita aos terrenos

arrendados.

Entretanto, a medida mais enérgica neste sentido, além de tardia, foi

suspensa um ano após a sua vigência. Trata-se do Alvará Régio de 05.10.1795 que,

segundo ERIVALDO FAGUNDES NEVES77 “reafirmou a necessidade de não se

doar terras já ocupadas, aplicando-se esta norma com efeitos retroativos”.

Neste mesmo Alvará, também se determina que a posse das terras de

sesmarias só ocorreria, após a devida e obrigatória medição e demarcação, bem

como que estas terras somente estariam habilitadas à confirmação, se

preenchessem as condições exigidas pelas normas em vigor78.

No que tange a cobrança de foros, coube à Carta Régia de 27.12.1695

revogar a isenção do foro, instituindo, além do dízimo à Ordem Cristã e as taxas, um

foro relacionado à extensão ou à produtividade da terra.

Mais tarde, como já mencionamos anteriormente, o monarca, avocando sua

condição de grão mestre para reverter o dízimo, também em seu favor, sendo que

por Resolução do Conselho Ultramarino de 26.11.1711 e Carta Régia de

77 Ibidem, 133.78 Alvará de 5 de outubro de 1795. Antonio Delgado da Silva (Comp.). Colleção da legislaçãoportuguesa, desde a última compilação das Ordenações, Vol. 4. Lisboa, Typ. De Luis Correa daCunha, 1860.

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27.11.1711, revoga-se a impossibilidade inicial da corporação religiosa se

proprietária.

Por fim, antes de adentrarmos nas considerações sobre a crise do sistema

de sesmarias, considerando a temática desta monografia, ressaltamos que é

possível identificar nas Sesmarias, alguns dispositivos que constituem limitação em

favor do bem comum.

Nas Ordenações Filipinas, no Capítulo das Sesmarias, estabeleceu-se que

onde se edificassem vilas e sedes municipais, era obrigatória a reserva de áreas

suficientes para os moradores criarem, plantarem e para os logradouros.

Com a descoberta das Minas Gerais, por exemplo, a Provisão Régia de

11.03.1731 estabeleceu que as sesmarias que contivessem minas ou estivesse no

caminho destas deveriam ter as suas dimensões limitadas a meia légua em

quadrado.

A Provisão Régia de 11.03.1754 determinou o livre acesso aos caminhos

públicos ou privados, fontes, pontos, portos e pedreiras situadas dentro de

sesmarias, bem como a preservação de faixa de meia légua em quadro, nas

margens de rios navegáveis.

Quando da chegada da Coroa ao Brasil, o excesso de exigências para a

formalização das sesmarias e a quantidade de terras de sesmarias que, não

cumprindo as determinações normativas, reduziam grande parte das sesmarias a

posse produtiva.

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De todo modo, as últimas tentativas de ordenação do uso e ocupação do

solo, através da demarcação, e, de impor a obediência das normas, parecem

ocorrer, em 1808, com a chegada e instalação da Coroa Portuguesa no Rio de

Janeiro, mais especificamente, com a criação do Desembargo do Paço, atribuindo-

lhe, a competência para proceder à confirmação das sesmarias.

Nestes termos, assim dispôs o Decreto de 22.06.1808:

“Sendo-me presente, que se não tem continuado a concederSesmarias nesta corte, e Província do Rio de Janeiro, que até agoraerão dadas pelos Vice-Reis do Estado do Brasil; e que muitas outrasjá concedidas pelos Governadores, e Capitães Generaes de diversasCapitanias estão por confirmar por causa da interrupção decommunicação com o Tribunal do Conselho Ultramarino, a quemcompetia fazello: E Desejando estabelecer normas fixas nestaimportante materia, de que muito depende o augmento daAgricultura, e Povoação, e segurança do Direito de Propriedade: Heipor bem Ordenar, que daqui em diante continuem a dar asSesmarias nas Capitanias deste Estado do Brazil os Governadores,e Capitães Generaes dellas; devendo os Sesmeiros pedir acompetente confirmação á Meza do Desembargo do Paço.”.

O Alvará de 25.11.1809, preocupado em reafirmar o dever de demarcação,

para evitar violações a direitos de terceiros sobre terras desocupadas, proibiu a

concessão sesmarial, sem que houvesse medição judicial por sentença transitada

em julgado79.

79 Colleção de legislação portugueza: 1802-1820, p. 721.

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Finalmente, pouco antes da independência, o príncipe regente promulga a

Resolução de 17.07.1822, suspende a expedição das cartas de doações de

sesmarias, até a instalação das Assembléia Geral Legislativa..

3.3. DIREITO DE PROPRIEDADE NO BRASIL-IMPÉRIO.

À suspensão da concessão das sesmarias futuras, sucedeu a

Independência do Brasil em relação a Portugal, numa época em que se iniciava a

economia cafeeira.

A Inglaterra, que já constituía, de há muito um parceiro comercial, exigia o

final do tráfico negreiro.

Esses fatores vão exigir uma reorganização do sistema produtivo e, por

conseqüência, da propriedade privada, capaz de produzir com intuito de lucro, com o

emprego de mão de obra livre e assalariada.

Por outro lado, extintas as sesmarias, a posse de terras devolutas para o

efetivo cultivo e criação de gado passa a ser um costume jurídico legitimador da

aquisição do domínio, diante da falta de disciplina jurídica acerca da propriedade

privada.

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A posse pro labore, ou seja, qualificada pelo cultivo efetivo e pela morada

habitual passa a servir de contraponto às cartas de concessão de terras de

sesmarias.

Paralelamente, a influência dos ideais liberais, fundada, como se mencionou

anteriormente, na liberdade individual e na igualdade formal, já pode ser sentida em

nosso direito, em nível Constitucional, na medida em que a Constituição de 1824

estabelece uma garantia do direito de propriedade, sob a concepção de direito

individual e absoluto do proprietário, consagrando a garantia do direito de

propriedade em sua plenitude.

O texto constitucional previa, expressamente, como exceção, a possibilidade

de imposição de limitações ao direito de propriedade do cidadão, quando o bem

público, exigir seu uso ou emprego, exige a prévia previsão da hipótese excepcional

na lei, a verificação legal da ocorrência da hipótese e a indenização do proprietário

do valor da coisa.

Este era o teor da garantia ao direito de propriedade na Constituição Federal

de 182480:

80 Além da garantia do direito de propriedade assim expressa, o artigo 133 da Constituição Federal de1824 trouxe dispositivo que, bem demonstra, o ideário não intervencionista, ao responsabilizar osMinistros de Estado, “V. Pelo que obrarem contra a Liberdade, segurança, ou propriedade dosCidadãos”.Também já se faz sentir, na primeira Magna Carta do Brasil independente, a preocupação emproteger a propriedade intelectual, assim prevista no artigo 179, XXVI: Os inventores terão apropriedade das suas descobertas, ou das suas producções. A Lei lhes assegurará um privilegioexclusivo temporario, ou lhes remunerará em resarcimento da perda, que hajam de soffrer pelavulgarisação.

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“Constituição Federal de 1824:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos CidadãosBrazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e apropriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneiraseguinte.

(...)

XXII. É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude.Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego daPropriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valordella. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unicaexcepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação”.

Entretanto, no momento da promulgação, o dispositivo ainda carecia de

condições de aplicabilidade, diante da situação fundiária brasileira, em que

coexistiam: as terras de sesmarias cultivadas e integralmente legitimadas segundo a

legislação; as terras de sesmarias cultivadas, mas não confirmadas, por falta de

cumprimento de exigências legais; as terras ocupadas com simples posse,

exploradas ou não; e, as terras devolutas, ou seja, tanto aquelas vacantes, quanto

aquelas dadas de sesmarias, já revertidas pelo não atendimento dos preceitos

legais.

Coube, primeiramente, à Lei no 601/1850 (Lei de Terras), regulamentada

pelo Decreto no 1.318/1856, enfrentar a questão, buscando criar condições para uma

nova propriedade privada, fundada nos ideais oitocentistas da sociedade européia.

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As principais medidas contidas na Lei de Terras foram a criação de um

registro, a definição de terras devolutas e o procedimento de sua demarcação, a

forma de alienação das terras devolutas para o particular e a aplicação dos

respectivos recursos, objetivando romper com o sistema anterior e criar condições

para a migração para o direito de propriedade absoluto e único, nos moldes liberais.

A fim de encerrar um processo de legitimação pelo apossamento de terras

devolutas, a legislação cuida de conceituar terras devolutas, sancionar seu

apossamento e criar meios para sua individualização.

A Lei de Terras definiu as terras devolutas por um método de exclusão81, de

modo que não são consideradas terras devolutas:

(i) as terras aplicadas ao uso público,

(ii) terras que se encontrarem no domínio particular por qualquer título, por

sesmarias ou concessão do Estado, desde que não tenham perdido o direito

por falta do cumprimento do dever de medir, confirmar e cultivar;

(iii) terras dadas por sesmarias que, embora sancionadas pela perda do

direito, sejam revalidadas, segundo os critérios da nova lei; e,

81 “Art. 3º São terras devolutas:§ 1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional, provincial, ou municipal.§ 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas porsesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por faltado cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apezar deincursas em commisso, forem revalidadas por esta Lei.

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(iv) terras que forem objeto de posse, se não legitimadas na forma da lei.

Não teria sentido a fixação dos critérios para se distinguir o que viria a ser

propriedade privada das terras devolutas, se permanecesse o sistema de

apossamento de terras ermas, ou mesmo, por meio de esbulhos.

Por este motivo a Lei no 601/1850 estabeleceu duras sanções a quem se

apossasse de terras, fossem devolutas, fossem de terceiros particulares, impondo

ao esbulhador, cumulativamente ao despejo, a perda das benfeitorias, a prisão, o

pagamento de multa, sem prejuízo, ainda, da indenização pelos danos que sua

posse tenha causado82.

Para a legitimação das sesmarias que não houvessem cumprido as

determinações da legislação anterior e da posse, parece-nos que o legislador

conferiu relevância, por paradoxal que possa parecer numa norma que objetivava

consagrar o direito de propriedade absoluto previsto na Constituição de 1824, à

posse pro labore, ou seja, ao uso da terra para o cultivo ou para moradia.

Entretanto, esta legitimação pela posse é pontual, pois aplicável somente às

posses e sesmarias carentes de revalidação existentes, quando da promulgação da

lei, criando condições, a partir de então, para a estruturação da propriedade privada,

segundo a concepção moderna.

§ 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se fundarem em titulo legal,forem legitimadas por esta Lei”.

82 “Art. 2º Os que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nellas derribarem mattos ou lhespuzerem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de bemfeitorias, e de mais soffrerão a pena de

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No que se refere às sesmarias ou concessões, desde que efetivamente

cultivadas83 ou servissem à moradia habitual de seus titulares, dispensou-se, para a

revalidação, o cumprimento das demais exigências de concessão não cumpridas84.

Este mesmo critério de utilização pra cultivo ou moradia, também constituiu requisito

para legitimação das situações possessórias.

Entretanto, além do cultivo ou moradia, impunha-se que: (i) a posse fosse

mansa e pacífica; (ii) a aquisição por ocupação originária ou o recebimento do

possuidor primário.

No que tange à extensão das terras a serem adquiridas por legitimação da

posse pro labore, a Lei de Terras abrangeria, além da área utilizada para a

agropecuária e/ou moradia, extensão adicional de terras absolutas contíguas, se

houvesse, até o limite de extensão igual às últimas concessões de sesmarias locais.

Neste artigo, ainda, se faz sentir a concepção de propriedade que se

objetivava, pois se estabelece que as posses sobre sesmarias e concessões

legítimas, ou seja, que tivessem cumprido todas as exigências legais, ensejariam,

em regra, apenas a indenização do posseiro por benfeitorias.

dous a seis mezes do prisão e multa de 100$, além da satisfação do damno causado. Esta pena,porém, não terá logar nos actos possessorios entre heréos confinantes”. 83 “Art. 6º Não se haverá por principio do cultura para a revalidação das sesmarias ou outrasconcessões do Governo, nem para a legitimação de qualquer posse, os simples roçados, derribadasou queimas de mattos ou campos, levantamentos de ranchos e outros actos de semelhante natureza,não sendo acompanhados da cultura effectiva e morada habitual exigidas no artigo antecedente”.84 “Art. 4º Serão revalidadas as sesmarias, ou outras concessões do Governo Geral ou Provincial, quese acharem cultivadas, ou com principios de cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro ouconcessionario, ou do quem os represente, embora não tenha sido cumprida qualquer das outrascondições, com que foram concedidas”.

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As exceções ficaram por conta da existência de sentença definitiva em favor

do possuidor contra os concessionários ou sesmeiros, bem como, por duas espécies

de usucapião, que tinham como requisito comum a posse mansa, agregada a

requisitos temporais diferentes, de acordo com a anterioridade ou superveniência da

posse em relação à medição, a saber: 5 (cinco) anos, se iniciada antes da medição,

e10 (dez) anos, se iniciada após a medição.85

Cabia aos titulares de terras de sesmarias sujeitas a revalidação e aos

posseiros a serem legitimados proprietários por efeito da Lei de Terras promover-

lhes a medição, nos prazos assinalados, sobretudo, porque a lei lhe impede, em

caso de descumprimento, a aquisição pelo título ou por efeito da lei, preservando-

lhe, apenas, a posse, condicionada ao cultivo86.

85 Art. 5º Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por occupação primaria, ouhavidas do primeiro occupante, que se acharem cultivadas, ou com principio de cultura, e morada,habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente, guardadas as regras seguintes:§ 1º Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação, comprehenderá, além do terrenoaproveitado ou do necessario para pastagem dos animaes que tiver o posseiro, outrotanto mais deterreno devoluto que houver contiguo, comtanto que em nenhum caso a extensão total da posseexceda a de uma sesmaria para cultura ou criação, igual ás ultimas concedidas na mesma comarcaou na mais vizinha.§ 2º As posses em circumstancias de serem legitimadas, que se acharem em sesmarias ou outrasconcessões do Governo, não incursas em commisso ou revalidadas por esta Lei, só darão direito áindemnização pelas bemfeitorias.Exceptua-se desta regra o caso do verificar-se a favor da posse qualquer das seguintes hypotheses:1ª, o ter sido declarada boa por sentença passada em julgado entre os sesmeiros ou concessionariose os posseiros; 2ª, ter sido estabelecida antes da medição da sesmaria ou concessão, e nãoperturbada por cinco annos; 3ª, ter sido estabelecida depois da dita medição, e não perturbada por 10annos.(...).86 Art. 8º Os possuidores que deixarem de proceder á medição nos prazos marcados pelo Governoserão reputados cahidos em commisso, e perderão por isso o direito que tenham a serempreenchidos das terras concedidas por seus titulos, ou por favor da presente Lei, conservando-osómente para serem mantidos na posse do terreno que occuparem com effectiva cultura, havendo-sepor devoluto o que se achar inculto.

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Além disso, a Lei de Terras impõe a necessidade dos possuidores obterem

título, junto à repartições públicas indicadas, para alienar e hipotecar87, dispositivo

bastante relevante, em razão do projeto de mercantilização da terra e da produção e

da importância da obtenção de crédito, impulsionada pela Lei no 1.237/1864, que

será objeto de comentários, mais adiante.

A Lei, ora comentada, previa a organização de um sistema de registro das

terras possuídas88, que veio a ser instituído pelo Decreto 1.318/1854, surgindo o

denominado Registro do Vigário, cabendo aos vigários de cada freguesia receber e

registrar as declarações dos possuidores, estando, estes últimos, sujeitos às multas

e penas pela inobservância de prazos de prestação das informações ou por sua

inexatidão.

Este registro, entretanto, até porque baseado nas informações do próprio

possuidor não lhe conferia quaisquer direitos, tampouco constituía prova de

domínio89, conforme esclarece AUGUSTO TEIXEIRA DE FREITAS90, no trecho a

seguir:

87 Art. 11. Os posseiros serão obrigados a tirar titulos dos terrenos que lhes ficarem pertencendo poreffeito desta Lei, e sem elles não poderão hypothecar os mesmos terrenos, nem alienal-os porqualquer modo.Esses titulos serão passados pelas Repartições provinciaes que o Governo designar, pagando-se 5$de direitos de Chancellaria pelo terreno que não exceder de um quadrado de 500 braças por lado, eoutrotanto por cada igual quadrado que de mais contiver a posse; e além disso 4$ de feitio, sem maisemolumentos ou sello. 88 Art. 13. O mesmo Governo fará organizar por freguezias o registro das terras possuidas, sobre asdeclaracões feitas pelos respectivos possuidores, impondo multas e penas áquelles que deixarem defazer nos prazos marcados as ditas declarações, ou as fizerem inexactas. 89 LINHARES DE LACERDA, Op. Cit., p.179.90 Consolidação das Leis Civis, 2a Edição, Rio de Janeiro, Laemmert, 1865, p. 533-534.

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“Com esse registro nada se predispõe, como pensão alguns, para ocadastro de propriedade immovel, base do regime hypothecariogermanico. Teremos uma simples descripção estatística, mas nãouma exacta conta corrente de toda a propriedade immovel no paiz,demonstrando sua legitimidade, e todos os seus encargos. (...)”.

No que tange à medida e demarcação de terras devolutas, a fim de extremar

as terras devolutas das propriedades privadas91, criou-se a possibilidade do Governo

medir as terras devolutas, respeitadas as terras oriundas de sesmarias revalidadas

ou posses legitimadas.

Além disso, o Regulamento (Artigos 30 a 36 do Regulamento), criou a figura

do Juiz Comissário e um procedimento contencioso administrativo de medição, que

deveria ser provocado pelo particular e que resultava a criação de um título sui

generis (Artigos 30 a 36 do Regulamento).

Estas medidas, entretanto, inseriam-se num contexto maior, em que se fazia

necessária a colonização da terra, ou seja, com o fim do tráfico negreiro desde a lei

de Regente Feijó em 1831, a reestruturação da economia pressupunha um modelo

de produção fundado em mão de obra livre.

O Estado, além de consolidar a sua soberania sobre as suas terras, planejou

utilizá-la, juntamente com os valores pagos para a obtenção dos títulos necessários

91 Art. 10. O Governo proverá o modo pratico de extremar o dominio publico do particular, segundo asregras acima estabelecidas, incumbindo a sua execução ás autoridades que julgar maisconvenientes, ou a commissarios especiaes, os quaes procederão administrativamente, fazendodecidir por arbitros as questões e duvidas de facto, e dando de suas proprias decisões recurso para oPresidente da Provincia, do qual o haverá tambem para o Governo.

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a hipotecar e alienar os bens (Art. 11 da referida lei), como fonte de renda para

custear a vinda de mão de obra assalariada, razão porque a um só tempo:

(i) proibiu a aquisição de terras devolutas por particulares, senão pela

compra92-93;

(ii) possibilitou que o Governo, segundo um critério de conveniência e

oportunidade, vendesse estas terras, em hasta pública a preço pré-fixado e

à vista, ou fora dela, por qualquer valor, observado o preço mínimo94-95; e,

(iii) destinou os recursos ao custeio da vinda de colonos livres para

trabalharem como empregados na lavoura96.

92 Art. 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o decompra. 93 Embora houvessem posições diversas, prevaleceu a posição de LAFFAYETTE RODRIGUESPEREIRA e CLÓVIS BEVILACQUA de que o artigo 1o da Lei de Terras, não obstava a aquisição deterras devolutas, através da usucapião quadragenária, prevista na lei civil da época, que incidia sobreos bens públicos dominicais.94 Art. 14. Fica o Governo autorizado a vender as terras devolutas em hasta publica, ou fóra della,como e quando julgar mais conveniente, fazendo previamente medir, dividir, demarcar e descrever aporção das mesmas terras que houver de ser exposta á venda, guardadas as regras seguintes:§ 1º A medição e divisão serão feitas, quando o permittirem as circumstancias locaes, por linhas quecorram de norte ao sul, conforme o verdadeiro meridiano, e por outras que as cortem em angulosrectos, de maneira que formem lotes ou quadrados de 500 braças por lado demarcadosconvenientemente.§ 2º Assim esses lotes, como as sobras de terras, em que se não puder verificar a divisão acimaindicada, serão vendidos separadamente sobre o preço minimo, fixado antecipadamente e pago ávista, de meio real, um real, real e meio, e dous réis, por braça quadrada, segundo for a qualidade esituação dos mesmos lotes e sobras.§ 3º A venda fóra da hasta publica será feita pelo preço que se ajustar, nunca abaixo do minimofixado, segundo a qualidade e situação dos respectivos lotes e sobras, ante o Tribunal do ThesouroPublico, com assistencia do Chefe da Repartição Geral das Terras, na Provincia do Rio de Janeiro, eante as Thesourarias, com assistencia de um delegado do dito Chefe, e com approvação dorespectivo Presidente, nas outras Provincias do Imperio. 95 O objetivo do preço mínimo era evitar o acesso à terra aos colonos assalariados, pois istosignificaria obstáculo para o modelo idealizado.96 Art. 18. O Governo fica autorizado a mandar vir annualmente á custa do Thesouro certo numero decolonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos agricolas,ou nos trabalhos dirigidos pela Administração publica, ou na formação de colonias nos logares emque estas mais convierem; tomando anticipadamente as medidas necessarias para que taes colonosachem emprego logo que desembarcarem.

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Nesta venda de terras devolutas, uma vez mais, se faz presente a

valorização do cultivo, pois se conferia direito de preferência na aquisição, os

possuidores de terras contíguas, desde que, de fato, demonstrassem ter os meios

necessários para aproveitá-las97.

Estava aberto, pois, o caminho para um conceito abstrato e unitário do

direito, pois se o cultivo foi critério para revalidação e legitimação da propriedade,

não constituía, a partir de então, critério para a sua manutenção.

Em outras palavras, a falta de cultivo não ensejaria, a partir de então, a

perda das sesmarias já confirmadas antes da lei, daquelas anteriores devidamente

revalidadas e, bem assim, das posses pro labore já existentes antes da lei de 1850 e

legitimadas segundo os seus termos.

Também contribui para esta transição, a Lei no 1.237/1864, regulamentada

pelo Decreto no 3.453/1865, que, além de criar o Banco Rural Hipotecário e as

sociedades de crédito real, instituiu o registro para a transcrição dos títulos de

transmissão de imóveis inter vivos e de constituição de ônus reais e hipotecas98, que

deveria ser realizado na comarca de localização dos bens.

Aos colonos assim importados são applicaveis as disposições do artigo antecedente.Art. 19. O producto dos direitos de Chancellaria e da venda das terras, de que tratam os arts. 11 e 14será exclusivamente applicado: 1°, á ulterior medição das terras devolutas e 2°, a importação decolonos livres, conforme o artigo precedente. 97 Art. 15. Os possuidores de terra de cultura e criação, qualquer que seja o titulo de sua acquisição,terão preferencia na compra das terras devolutas que lhes forem contiguas, comtanto que mostrempelo estado da sua lavoura ou criação, que tem os meios necessarios para aproveital-as. 98 Art. 7o O registro geral comprehende:1o A transcripção dos títulos da transmissão dos immoveis susceptíveis de hypotheca e a instituiçãode onus reaes.2o A inscripção das hypothecas.

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O texto da referida lei, conduz ao entendimento de que o registro, ainda

aqui, não era constitutivo do direito de propriedade, tanto que, expressamente, era

desqualificado como prova de domínio99, o que se justificaria, considerando que se

trata de uma legislação de transição.

Entretanto, a exigência de registro para que a alienação ou hipoteca do

imóvel gere efeitos perante terceiros, parece ter efeitos meramente publicísticos, no

sentido de se evitar fraudes, não conferindo qualquer presunção de propriedade,

nem mesmo relativa.

Entretanto, esse entendimento conduz à interpretação de que o registro seja,

então, facultativo, não afetando o ato jurídico de alienação, tampouco a garantia

constituída, no que tange às partes, sendo indispensável, somente se pretendido o

efeito perante terceiros.

LAFAYETTE RODRIGUES PEREIRA100, no entanto, manifesta-se, à época,

em defesa da obrigatoriedade do registro, nos termos que seguem:

§ 1o A transcripção e a inscripção devem ser devem ser feitas na comarca ou comarcas onde foremos bens situados.(...).99 Art. 8o A transcripção intervivos por título oneroso ou gratuito dos bens susceptíveis de hypothecas(art. 2o § 1o) assim como a instituição de onus reaes (art. 6o) não operão seus effeitos á respeito deterceiros, senão pela transcripção, e desde a data d’ella,(...)§ 4o A transcripção não induz a prova do domínio, que fica salvo a quem fôr”. 100 Direito das Cousas, Vol. 1, Garnier Editora, Rio de Janeiro, p. 1877, § 43, p. 122.

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“Antes pois de preenchida a formalidade da transcripção do título detransmissão, o domínio sobre immoveis não passa do alienante parao adquirente.

O princípio firmado se acha consagrado naquelles artigos de umamaneira que exclue toda duvida. A lei se exprime assim: ‘Atransmissão...não opéra seus effeitos a respeito de terceiro, senãopela transcripção e desde a data della’.

A lei diz, á respeito de terceiro, em sentido absoluto, sem restrição oucondição, - quem quer que seja o terceiro. Assim, antes datranscripção, o adquirente não póde reivindicar o immovel deterceiro, ou esse terceiro possua por justo titulo, ou seja um merousurpador”.

Com todo respeito e acatamento sempre devidos, ousamos discordar do

posicionamento adotado pelo autor, pois o texto do § 4 da Lei no 1.237/1864, parece

permitir a reivindicação perante terceiros, mediante prova de propriedade, por outros

meios, que não o registro instituído.

Concluídas estas considerações, extensas em razão da importância da Lei

no 601/1850, como marco na propriedade brasileira, passamos a tratar da evolução

do Direito de Propriedade, no decorrer da República, até os dias atuais.

3.4. DIREITO DE PROPRIEDADE NO BRASIL

REPUBLICANO.

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A Constituição Republicana de 1891 manteve, no parágrafo 17 do artigo

72101, a plenitude do direito de propriedade102, apesar de ter estruturado melhor a

questão da desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante prévia

indenização.

Com o advento da Emenda Constitucional de 03.09.1926, a parte final do

parágrafo 17 do artigo 72103 passou a consagrar a titularidade do dono do solo

também sobre as minas104, prevendo, em caráter excepcional, a possibilidade de se

estabelecer limitações em relação às minas, a bem da exploração industrial105.

A mesma influência recebeu o Código Civil de 1916, como se evidencia pela

leitura do artigo 524:

Código Civil de 1916:

101 Art 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidadedos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:§ 17 - O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriação pornecessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. 102 Também estabelece proteção à propriedade intelectual, especificamente às marcas, no parágrafo27, nos seguintes termos: “§ 27 - A lei assegurará também a propriedade das marcas de fábrica”. 103 Este é o texto inserido pela referida emenda: “As minas pertencem aos proprietários do solo,salvas as limitações que forem estabelecidas por lei a bem da exploração deste ramo de indústria”. 104 Em nossa Constituição Atual, por força do artigo 20, inciso IX os recursos minerais, incluindo os dosubsolo, são bens da União, nos termos do artigo 20, IX da Constituição Federal, cuja exploraçãopelo proprietário do solo só é admitida, nos termos do parágrafo único do artigo 1.230 do Código Civil,para emprego imediato na construção civil e desde que não submetidos a transformação industrial. 105 Em nosso entendimento, a limitação criada quanto à propriedade das minas reveste-se de funçãoeconômica e não social, já que visa fomentar a exploração industrial, como forma de produção ecirculação de riqueza. Outrossim, embora referido artigo não tenha feito qualquer menção ao direitode indenização, houve previsões nesse sentido, em nível infra-constitucional, nas legislações que seseguiram, em específico, nos Decretos 2.933/15, 4.265/21 e 15.211/21.

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82

“Artigo 524. A lei assegura ao proprietário, o direito de usar, gozar edispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer queinjustamente os possua”.

À semelhança da técnica, que foi adotada no artigo 544 do Código

Napoleônico, nosso legislador não se ocupou de definir, quanto à natureza ou

estrutura, o direito de propriedade, preferindo elencar, de forma analítica, as

prerrogativas que a lei assegura ao proprietário. Esta opção, a nosso ver, revela a

preocupação de, ao mesmo tempo, maximizar a liberdade do proprietário no

exercício de suas prerrogativas legais e, garantir-lhe a segurança contra as

ingerências de terceiros e do próprio Estado.

Coube ao Código Civil de 1916 estabelecer, pela primeira vez, o registro

como elemento constitutivo do direito de propriedade, bem romper com a legislação

imperial, delineando o direito de propriedade, no Brasil, segundo as concepções

liberais, tendo se seguido, em matéria registrária, às Leis nº 4.827/24, 4.857/39 e,

finalmente, a Lei no 6.015/73, vigente até os dias atuais.

No que se refere à usucapião, o Código Civil de 1916 tratava da usucapião

nos artigos 550 e 551, prevendo, respectivamente, a usucapião extraordinária e a

usucapião ordinária, sendo, originalmente, a primeira trintenária e a segunda

vintenária entre ausentes e, decenal, entre presentes106.

106 Esses prazos viriam a ser reduzidos, posteriormente, na vigência da Constituição Federal de 1946,conforme trataremos oportunamente.

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Na Constituição Federal de 1934, já sob os ventos das Constituições,

Mexicana de 1917 e Alemã de 1919, embora não se tenha mencionado,

expressamente, a idéia de função social da propriedade, pela primeira vez, conforme

esclarece LIANA PORTILHO MATTOS107, o direito de propriedade108-109 tem o seu

exercício subordinado à observância, por parte do proprietário, do interesse social ou

coletivo.

A Constituição de 1934, além disso, deixou bastante claro que o exercício do

direito de propriedade em consonância com o interesse social e coletivo não era

uma limitação ao direito de propriedade, mas sim condição para a sua legitimação e

garantia, possuindo natureza e fundamentos distintos da desapropriação por

necessidade ou utilidade pública e da requisição administrativa110.

107 “Assim, a partir de 1934, a noção da função social da propriedade passou a ser incorporada a umtexto constitucional brasileiro e, nesse sentido, a Constituição de 1934 representa um marco inauguralde uma mentalidade nova que passa a se formar no país, mesmo que muito lentamente, pela qual oexercício do direito de propriedade, para ser legitimo, deve andar pari passu com o interesse dasociedade, não podendo sobrepor-se a esse. (A Efetividade da Função Social da Propriedade Urbanaà Luz do Estatuto da Cidade, Temas & Idéias Editora, Rio de Janeiro, 2.003, p. 55)108 A Constituição Federal de 1934, prevê no artigo 113: A Constituição assegura a brasileiros e aestrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, àsubsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...) 17) É garantido odireito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na formaque a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos dalei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoçãointestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem públicoo exija, ressalvado o direito à indenização ulterior. 109 Na seara da propriedade intelectual, nota-se a preocupação com a marca, o invento e a obraliterária, nos parágrafos 18 a 20 do artigo 113: “18) Os inventos industriais pertencerão aos seusautores, aos quais a lei garantirá privilégio temporário ou concederá justo prêmio, quando a suavulgarização convenha à coletividade.19) É assegurada a propriedade das marcas de indústria ecomércio e a exclusividade do uso do nome comercial. 20) Aos autores de obras literárias, artísticas ecientíficas é assegurado o direito exclusivo de produzi-Ias. Esse direito transmitir-se-á aos seusherdeiros pelo tempo que a lei determinar”. 110 Tanto para a desapropriação, quanto para a requisição administrativa, esta última prevista, pelaprimeira vez, em nível constitucional, na Carta Política de 1934, existe a exigência de indenização doproprietário, prévia, no primeiro caso e ulterior na segunda hipótese. A exigência de indenização dosprejuízos sofridos pelo dominus em razão da limitação ao seu direito de propriedade fundado nautilidade ou necessidade pública não é, senão, corolário da própria garantia constitucional.

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Na prática, entretanto, a vedação do exercício do direito de propriedade

contra o interesse social ou coletivo não teve efetividade, porque o papel de

regulamentar o dispositivo, foi reservado, pelo Constituinte, à legislação

complementar, que jamais foi editada.

Nesta Constituição, ainda, expressamente, se estabelece que a propriedade

do solo é diversa da do subsolo, fazendo depender, a exploração das minas, ainda

que situadas no âmbito de propriedades privadas, de autorização do Poder Público,

como evidenciam os artigos 118 e 119, que transcrevemos, a seguir:

“Constituição de 1934:

Art 118 - As minas e demais riquezas do subsolo, bem como asquedas d'água, constituem propriedade distinta da do solo para oefeito de exploração ou aproveitamento industrial.

Art. 119 - O aproveitamento industrial das minas e das jazidasminerais, bem como das águas e da energia hidráulica, ainda que depropriedade privada, depende de autorização ou concessão federal,na forma da lei”.

Esta Constituição Federal de 1934, também é a responsável por prever pela

primeira vez, a usucapião constitucional, isto é, a usucapião pro labore de imóveis

rurais, para áreas de até 10 (dez) hectares, nos termos a seguir:

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“Constituição de 1934:

Art. 125 - Todo brasileiro que, não sendo proprietário rural ou urbano,ocupar, por dez anos contínuos, sem oposição nem reconhecimentode domínio alheio, um trecho de terra até dez hectares, tornando-oprodutivo por seu trabalho e tendo nele a sua morada, adquirirá odomínio do solo, mediante sentença declaratória devidamentetranscrita”.

A Constituição de 1937, praticamente, manteve as mesmas feições de sua

antecessora, quanto ao direito de propriedade, na medida em que manteve: a

garantia ao direito de propriedade e a desapropriação, mediante prévia indenização,

por utilidade ou necessidade pública111; a usucapião rural pro labore112; a distinção

entre a propriedade do solo e do subsolo113.

Entretanto, de forma surpreendente, não fez qualquer referência ao princípio

da função social, nem repetiu o preceito que vedava o exercício do direito de

propriedade, de forma contrária ao interesse social e coletivo, deixando para a

legislação ordinária a missão de definir seus limites e conteúdos. Por esta razão, é

111 Art. 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito àliberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...)14) o direito depropriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenizaçãoprévia. O seu conteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o exercício; 112 Art. 143 - As minas e demais riquezas do subsolo, bem como as quedas d'água constituempropriedade distinta da propriedade do solo para o efeito de exploração ou aproveitamento industrial.O aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica,ainda que de propriedade privada, depende de autorização federal. 113 Art. 148 - Todo brasileiro que, não sendo proprietário rural ou urbano, ocupar, por dez anoscontínuos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, um trecho de terra até dezhectares, tornando-o produtivo com o seu trabalho e tendo nele a sua morada, adquirirá o domínio,mediante sentença declaratória devidamente transcrita.

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possível afirmar, com FRANCISCO EDUARDO LOUREIRO114, que, no âmbito

Constitucional, houve um retrocesso.

No âmbito infraconstitucional, foi promulgado o Decreto lei nº 25/37, que

instituiu normas sobre o tombamento, a caracterizar, caso de intervenção do Estado

na propriedade particular de coisas, móveis ou imóveis, fundada no interesse social

de preservação do patrimônio histórico e artístico nacional.

A constitucionalidade do referido Decreto foi questionada. Ao julgar argüição

de inconstitucionalidade, que adiante comentaremos, destacamos a posição exarada

pelo Ministro Laudo de Camargo, no voto, que apesar de vencido, acabou por servir

base para o entendimento que hoje vigora, negando a diferença de natureza e

fundamento distintos da desapropriação115.

O Decreto Lei nº 58/37, por sua vez, tratou do loteamento e da venda de

terrenos para pagamento em prestações que, a nosso ver, objetivava o atendimento

da função social tanto no aspecto referente ao desenvolvimento rural ou urbano,

quanto no aspecto da proteção que conferia ao compromissário.116

114 A Propriedade como Relação Jurídica Complexa, Biblioteca de Teses, Editora Renovar, SãoPaulo, 2.003, pp.93-94.115 Na referida decisão do Supremo Tribunal Federal, publicada na RDA, Volume 2., o referido votopropugnou que o tombamento implicava desapropriação, afirmando que não, em linghas gerais, quea elasticidade para a definir os limites e condições ao direito de propriedade deve ser tal que nãoinutilize o direito de propriedade garantido constitucionalmente. 116 Decreto-Lei 58/37. Exposição de Motivos: Considerando o crescente desenvolvimento daloteação de terrenos para venda mediante o pagamento do preço em prestações; Considerando queas transações assim realizadas não transferem o domínio ao comprador, uma vez que o art. 1.088 doCódigo Civil permite a qualquer das partes arrepender-se antes de assinada a escritura da compra evenda; Considerando que esse dispositivo deixa praticamente sem amparo numerosos compradoresde lotes, que têm assim por exclusiva garantia a seriedade, a boa fé e a solvabilidade das empresasvendedoras; Considerando que, para segurança das transações realizadas mediante contrato decompromisso de compra e venda de lotes, cumpre acautelar o compromissário contra futuras

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Por fim, não podemos deixar de mencionar o Decreto-lei nº 3.665/41 que, no

âmbito das limitações ao direito de propriedade, regulamentou a hipótese de

desapropriação em razão de necessidade ou utilidade pública.

Retoma, a Constituição Federal de 1946, a preocupação em conciliar a

garantia do direito de propriedade aos interesses da coletividade117, na medida em

que, ao tratar da propriedade como garantia individual, além de manter, como

exceção, a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, cria a

desapropriação fundada no interesse social, sendo todas as modalidades,

condicionadas a prévia e justa indenização em dinheiro.

Neste sentido, assim estabelece o artigo 141 da Constituição Federal de

1946:

“Art. 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeirosresidentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida,à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termosseguintes:

alienações ou onerações dos lotes comprometidos; Considerando ainda que a loteação e venda deterrenos urbanos e rurais se opera freqüentemente sem que aos compradores seja possível averificação dos títulos de propriedade dos vendedores;Além disso, o artigo 1º da mesma lei estabelecia a aprovação pela Municipalidade e arquivamentoem cartório de memorial com o plano de loteamento e o programa de desenvolvimento urbano,industrial ou agrícola e da planta do imóvel, individualizando não só os lotes, como também as vias decomunicação e espaços livres, estes últimos inalienáveis após a inscrição (Art. 3º do Dec. 58/37); Noartigo 5º é consagrada a oponibilidade contra terceiros, pelo titular do compromisso de compra evenda registrado na matrícula do imóvel. 117 A preocupação com a compatibilização da propriedade privada com o interesse coletivo, tambémse nota, em termos de propriedade intelectual, em especial, quanto aos inventos, na forma previstano artigo 141, § 17: “Os inventos industriais pertencem aos seus autores, aos quais a lei garantiráprivilégio temporário ou, se a vulgarização convier à coletividade, concederá justo prêmio”.

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§ 16 - É garantido o direito de propriedade, salvo o caso dedesapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou porinteresse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro.Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, asautoridades competentes poderão usar da propriedade particular, seassim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito aindenização ulterior”.

Mas talvez, a grande novidade do texto constitucional tenha sido prever, pela

primeira vez, no campo da ordem econômica e social, o condicionamento da

propriedade ao bem estar social, no artigo 147, que reproduzimos:

“Art. 147 - O uso da propriedade será condicionado ao bem-estarsocial. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16,promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidadepara todos”.

Para JOSÉ DINIZ DE MORAES, “o condicionamento do uso da propriedade

ao bem estar social era, inegavelmente, o reconhecimento explícito do princípio da

função social da propriedade” 118, na medida em que apontou uma diretriz para o

legislador ordinário, no sentido de assegurar a justa distribuição e eqüitativa

oportunidade de acesso à propriedade.

118 A Função Social da Propriedade e a Constituição Federal de 1988. Malheiros Editores, 1999, p.39.

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É mantida a distinção entre a propriedade do solo e do subsolo119, bem

como retorna ao texto constitucional, também, o instituto da requisição administrativa

de uso de bem particular, mediante ulterior indenização, em caso de guerra ou

perigo iminente.

Houve, ainda, uma intensificação do objetivo de que a terra rural cumprisse,

com a sua função social, com a fixação do homem à terra, inclusive com a

ampliação da área que poderia ser objeto de usucapião pro labore que, até então,

era de 10 (dez) hectares, para 25 (vinte e cinco) hectares, conforme se depreende

da redação do artigo 156 da referida Carta Maior de 1946:

“Constituição Federal de 1946:

Art. 156 - A lei facilitará a fixação do homem no campo,estabelecendo planos de colonização e de aproveitamento das terraspública. Para esse fim, serão preferidos os nacionais e, dentre eles,os habitantes das zonas empobrecidas e os desempregados.

(...)

3º - Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano,ocupar, por dez anos ininterruptos, sem oposição nemreconhecimento de domínio alheio, trecho de terra não superior avinte e cinco hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendonele sua morada, adquirir-lhe-á a propriedade, mediante sentençadeclaratória devidamente transcrita”.

119 Constituição de 1946: Art 152 - As minas e demais riquezas do subsolo, bem como as quedasd'água, constituem propriedade distinta da do solo para o efeito de exploração ou aproveitamentoindustrial.

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Pela Emenda Constitucional no 10 de 09.11.1964, a extensão de terra

passível de usucapião constitucional rural foi elevada para 100 (cem) hectares.

Sob a égide desta Constituição, foi promulgada a lei no 2.437/55, que,

alterando a redação dos artigos 550 e 551 do Código Civil de 1916, atrofiou os

prazos da usucapião, reduzindo estes prazos para 20 (vinte) anos, em se tratando

de usucapião extraordinária e, no caso da usucapião ordinária, 15 (quinze) anos

entre ausentes e 10 (dez) anos, entre presentes.

Lastreado nos mandamentos Constitucionais, os legisladores editaram a Lei

nº 4.132/62 que, além de prever as hipóteses de desapropriação por interesse

social, expressamente, a consagrou como instrumento para a justa distribuição da

propriedade e o condicionamento de seu uso ao bem-estar social.

No mesmo sentido, é que se promulgou a Lei nº 4.504/64, denominada

Estatuto da Terra, na qual se estabeleceram, como critérios para o reconhecimento

de atendimento da função social, o uso que propicie, conjuntamente: o bem-estar

dos proprietários, trabalhadores e respectivas famílias, a produtividade em níveis

satisfatórios, a conservação dos recursos naturais e as justas relações de trabalho.

A Constituição de 1967, a despeito de ter sido promulgada, sob a égide da

ditadura militar, manteve, no âmbito dos direitos individuais, a garantia de

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propriedade120 e as mesmas hipóteses de requisição e de desapropriações previstas

na Constituição de 1946, inclusive, aquela fundada no interesse social.

Entretanto, foi a primeira a fazer menção ao no princípio da função social da

propriedade, como base da vocação da ordem econômica de realizar a justiça social,

nos termos seguir:

“Constituição Federal de 1967:

Art. 157 - A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social,com base nos seguintes princípios:

III - função social da propriedade;”

Ainda maior surpresa, adveio da Emenda Constitucional de 1969 que, sem

desfigurar o perfil de propriedade anteriormente configurado pela Constituição de

1967, criou a possibilidade de desapropriação de latifúndios rurais, mediante

indenização com títulos da dívida pública, de recebimento diferido no tempo,

conforme segue:

120 “Art. 150 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais ainviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termosseguintes:(...)§ 22 - É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ouutilidade pública ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, ressalvadoo disposto no art. 157, § 1º. Em caso de perigo público iminente, as autoridades competentespoderão usar da propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior”.

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“Art. 157 - (...)

§ 1º - Para os fins previstos neste artigo a União poderá promover adesapropriação da propriedade territorial rural, mediante pagamentode justa indenização, fixada segundo os critérios que a leiestabelecer, em títulos especiais da dívida pública, com cláusula deexata, correção monetária, resgatáveis no prazo máximo de vinteanos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação, aqualquer tempo, como meio de pagamento de até cinqüenta porcento do imposto territorial rural e como pagamento do preço deterras públicas. (Redação dada pelo Ato Institucional nº 9, de 1969)”.

Mantém-se na Constituição de 1967, mesmo após a Emenda Constitucional

de 1969, a cisão entre a propriedade do solo e a do subsolo, reconhecendo-se,

entretanto o direito do proprietário a participação no resultado da lavra das minas121.

A Constituição Federal de 1967 não traz dispositivo que referente à

usucapião pro labore, mas quanto às terras devolutas, prevê a denominada

legitimação da posse, deixando, entretanto, a sua aplicabilidade sujeita a edição de

norma infraconstitucional regulamentadora:

“Constituição Federal de 1967:

121 Art. 161 - As jazidas, minas e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulicaconstituem propriedade distinta da do solo para o efeito de exploração ou aproveitamento industrial.(...)§ 2º - É assegurada ao proprietário do solo a, participação nos resultados, da lavra; quanto às jazidase minas cuja exploração constituir monopólio da União, a lei regulará a forma da indenização.(...)”

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Art. 164 - A lei federal disporá sobre, as condições de legitimação daposse e de preferência à aquisição de até cem hectares de terraspúblicas por aqueles que as tornarem produtivas com o seu trabalhoe de sua família”.

Regulamentou o dispositivo constitucional em questão, a lei no 6.383/76, que

assim disciplinou a questão, nos seus artigos 29 a 31, que entendemos ter sido

recepcionada pela Constituição em vigor.

Ainda sob a vigência da Constituição Federal de 1967 foi promulgada a lei no

6.969/81, que previa a usucapião especial rural, que tinha como requisitos: (i) que o

proprietário não possuísse outro imóvel rural ou urbano; (ii) a posse ininterrupta, sem

oposição de área rural não excedente a 25 (vinte e cinco) hectares; (iii) que a tivesse

tornado produtiva com seu trabalho e nela tivesse sua morada.

Vale mencionar, ainda, que nos termos da referida lei, tanto terras

particulares, como terras devolutas, poderiam ser objeto hábil a serem usucapidos.

Certamente, a lei pode ser aplicada naquilo que não confronte com as

alterações trazidas pela Constituição Federal de 1988, o que será abordado, ao

tratarmos da função social da propriedade rural, no capítulo oportuno.

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A Constituição de 1988122 manteve, no seu artigo 5º, inciso XXII, a garantia

do direito de propriedade, inovando, no entanto ao prescrever, logo em seguida, no

inciso XXIII, que “a propriedade atenderá a sua função social”.

No inciso XXIV do artigo 5o acima mencionado, foram mantidas as previsões

de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social,

segundo procedimento estabelecido pela lei, mediante justa e prévia indenização em

dinheiro. Cumpre salientar, no entanto, que neste mesmo inciso, há referência a

possibilidade de exceção quanto ao tempo e a forma de pagamento da indenização,

em outros casos previstos em nível Constitucional.

Prevaleceu, ainda, no inciso XXV do mesmo dispositivo, a previsão

constitucional de requisição administrativa, em caso de iminente perigo público,

mediante indenização posterior, se, por ventura houver dano.

Também se manteve, em relação à Constituição anterior, a distinção entre a

propriedade do solo e do subsolo, bem como o direito de participação do proprietário

do solo nos resultados da exploração das jazidas, conforme previsão do artigo 175

da Constituição em vigor.

No artigo 170 da Constituição, dentre os princípios a serem atendidos na

consecução dos fins a serem assegurados pela ordem econômica, manteve, em

122 Deixamos de reproduzir os dispositivos da Constituição de 1988, referidos no restante do presentecapítulo, primeiramente, por se tratar de legislação em vigor. Ademais, no decorrer do trabalho,cuidaremos de inserir em notas ou no corpo de texto, aqueles que se mostrem oportunos aos nossostrabalhos.

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relação à Constituição anterior, a função social da propriedade, incluindo-se, no

entanto, o princípio da propriedade privada.123

Todavia, entendemos que a maior virtude do texto constitucional vigente é

fornecer elementos para tornar menos vaga a noção de função social da

propriedade, em diversos dispositivos.

No próprio Título da Ordem Econômica e Financeira, parece estar a maior

contribuição a este respeito. Neste aspecto, a Constituição dedicou capítulos

separados para a Política Urbana (Artigos 182 e 183) e para a Política Rural e

Reforma Agrária (Artigos 184 a 191), sendo que os seus principais aspectos serão

objeto de nossa análise mais aprofundada, nos capítulos dedicados à função social

da propriedade.

Por ora, cumpre-nos apenas ressaltar os aspectos que motivaram a

produção legislativa infraconstitucional.

A competência para a execução da política de desenvolvimento urbano, em

atendimento ao disposto no artigo 30, inciso VIII da Constituição Federal, foi

reservada aos Municípios que, por sua vez, segundo consta do caput do artigo 182

da Constituição Federal, teria de guardar conformidade com as diretrizes gerais

fixadas por lei ordinária.

123 Parece-nos que, de certa forma, o legislador constituinte de 1988 realizou uma contrapartida. Naseara dos direitos fundamentais se, por um lado se garante o direito de propriedade, por outro, impõe-se lhe o dever de atender a sua função social. Assim também ocorre no âmbito da ordem econômica,pois, na consecução de suas finalidades, deverá proteger e respeitar a propriedade privada e zelarpela efetividade de sua função social.

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As diretrizes gerais, para a atuação dos Municípios, foram definidas, apenas

recentemente, com a promulgação da Lei nº 10.257/2001, instituindo o Estatuto da

Cidade.

Já no que se refere à legislação infraconstitucional a respeito da Política

Rural e Reforma Agrária, cuja execução é de competência da União, nos termos do

artigo 184 da Constituição Federal, foram promulgadas: as Leis Complementares nº

76/93 e 88/96, estabelecendo o procedimento contraditório sumário para o processo

de desapropriação por interesse social previsto no § 3º do mesmo artigo 184 e a Lei

nº 8.629/93, regulamentando a Reforma Agrária.

Por derradeiro, é mister mencionar que a função social da propriedade não

se esgota nos dispositivos contidos no Título da Ordem Econômica e Financeira,

sobretudo, pela consagração dos chamados direitos trans-individuais, no Título da

Ordem Social, em especial, o direito à proteção do patrimônio cultural, prevista no

artigo 216 da Constituição Federal e o direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado, prescrito pelo artigo 225 da Lei Maior.

Quanto ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,

ressaltamos que a Constituição de 1988 é o marco inicial de sua positivação em

nível constitucional, mas que mesmo antes de sua vigência, já existiam, no âmbito

da legislação ordinária, normas estabelecendo deveres para o proprietário, com a

finalidade de preservação ambiental, tais como a Lei nº 4.771/65, 7.803/89 (Código

Florestal e modificações) e a Lei nº 6.938/81, que define a Política Nacional do Meio

Ambiente.

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Por fim, na Lei nº 10.406/02, que institui o Código Civil vigente, já sob os

ares do novo perfil do direito de propriedade, é possível perceber a preocupação

com a função social da propriedade, em vários de seus dispositivos124, que serão

objeto de nosso comentário, no momento oportuno.

124 Como manifestações da preocupação do legislador com a função social da propriedade. Talmanifestação pode ser constatada sobre três diferentes aspectos, a saber: a)inclusão de dispositivos,sem correspondência no anterior código civil; b) modificações no conteúdo de alguns dispositivos emrelação ao Código Anterior; c) dispositivos, também sem correspondência no Código anterior, que,sancionam o proprietário inerte, propiciando a consolidação da situação proprietária nas mãos dopossuidor que a cumpre, em menor espaço temporal e;. Como exemplos do primeiro caso, citamos:os §§ 1º e 2º do artigo 1228 do Código Civil vigente, o § 2º do artigo 1.276, o parágrafo único doartigo 1.255, os artigos 1.258 e 1.259, o parágrafo único do artigo 1.277 e o artigo 1.278, os artigos1.286 e 1.287, o artigo 1.311 e o artigo 1.313, inciso II combinado com o §2º do mesmo dispositivo.Na segunda hipótese, enquadram-se: as reduções dos prazos para a usucapião ordinária eextraordinária, respectivamente, no caput dos artigos 1.242 e 1.238 do Código Civil. Na terceira

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4. DIREITO DE PROPRIEDADE

4.1. TEORIAS JUSTIFICADORAS DO DIREITO DE

PROPRIEDADE.

No decorrer dos tempos, têm os autores se debatido acerca da justificativa,

para que o Estado tenha reconhecido o direito de propriedade, ou, em outros

termos, tem-se buscado as razões que legitimaram o direito de propriedade.

Segundo a Teoria da Ocupação, idealizada por HUGO GRÓCIO, o

fundamento da propriedade seria o assenhoreamento das coisas sem dono (res

nullius), pois a ocupação de bens não apropriados por ninguém é instrumento de

dominação do homem sobre a natureza, que permitiria transformar os objetos

naturais em valores econômicos e culturais.

Esta teoria, no dizer de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO125, esta

teoria é a mais antiga e a mais errônea, já que se limita a afirmar um fato, de modo

que “A propriedade só pode surgir sob o império da legislação que já pressuponha a

propriedade individual, que a organize e inclua a ocupação entre os respectivos

modos de adquiri-la”.

Já a Teoria da Lei, foi construída por MONTESQUIEU, tendo sido apoiado

por HOBBES, BOSSUET, MIRABEAU e BENTHAM.

situação, podem ser encaixados: os §§ 4º e 5º do artigo 1.228 e os artigos 1.239 e 1.240, embora os

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Defende, MONTESQUIEU126, que, se os homens renunciaram à sua

independência natural para viver sob as leis políticas, de forma que a propriedade só

se justifica, na medida em que é criação da lei, que também a garante.

Entretanto, a fragilidade da teoria reside em que a propriedade não pode

estar fundada tão somente na vontade humana, pois esta mesma vontade estaria

legitimada a suprimir o direito de propriedade, o que não seria admissível ao

legislador, que deve tão só regular-lhe o exercício127

Busca, também, explicar o fundamento da proteção ao direito de

propriedade, a Teoria da Especificação, defendida por LOCKE, GUYOT e MAC

CULLOCH, sustenta que não é a simples apropriação que submete os bens ao

domínio do homem, mas aquilo que este agrega à matéria bruta, através do

trabalho128.

A crítica a esta teoria, realizada por WASHINGTON DE BARROS

MONTEIRO129, com apoio em PLANIOL, reside em que o trabalho do homem sobre

a coisa deve ser remunerado por salário e não com a própria coisa, sob pena de se

dois últimos já estivessem previstos na Constituição Federal.125 Op. Cit., p. 76. 126 Neste sentido se manifesta Montesquieu in De l’Esprit des Lois, Livre XXVI, Chapitre XV, Paris,1831, p.394 : “Comme les hommes ont renouncé à leur indépendance naturelle pou vivre sous deslois politiques,ils ont renouncé a la communauté naturelle des biens pour vivre sou les lois civiles. Cespremières lois leur acquièrent la libertè; les secondes, la proprietè”.127 Washington de Barros Monteiro, Op. Cit., p. 77.128 Esta concepção é cristalina, no pensamento de John Locke, in Two Tratises of Government, ANew Edition, London,1824, pp. 145-146: “Though the earth, and all inferiour creatures, be commom toall men, yet every man has a property In his own person: this nobody has any right to but himself. Thelabour of his body, and the work of his hands, we may say, are properly his. Whatsoever then heremoves out of the state that nature hath provided, and left it in, he hath mixed his labour with, andjoined to it something that is his own, and thereby makes its his property”. 129 Ibidem, p. 77-78.

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100

negar o direito de propriedade, nos casos de divisão do trabalho, permitindo a

justaposição de várias propriedades sobre um mesmo objeto.

Ademais, quer-nos parecer que o trabalho do homem sobre a coisa, assim

como a ocupação constitui um fato, cujas conseqüências, em termos de modo de

aquisição de propriedade, devem provir da lei.

Segundo a Teoria da Natureza Humana, a propriedade representa

condição para a existência humana, para a sua liberdade e para o seu

desenvolvimento intelectual e moral130.

Em outros termos, a proteção conferida à propriedade pelo direito se

justifica, na medida em que a apropriação das coisas com valor econômico pelo

homem é condição sine qua non de sua própria sobrevivência e de sua liberdade.

Esta teoria vem sendo criticada pelos defensores da Teoria da Função

Social da Propriedade que entendem que o fundamento do direito de propriedade

repouse sobre o cumprimento de suas finalidades sociais, ou seja, nos benefícios

que esta deve proporcionar ao progresso e ao bem de toda a sociedade.

Parece-nos, entretanto, que a Teoria da Natureza Humana e a Teoria da

Função Social da Propriedade não são excludentes, mas complementares, pois se

não se pode conceber a vida em sociedade sem o ser humano, também não é

possível conceber vida humana destacada da sociedade.

130 Washington de Barros Monteiro, Op. Cit., p. 77.

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101

No entanto, em nosso sentir, a natureza humana é a razão pela qual se

institui o do direito de propriedade, pois foi criado para atender, primordialmente, aos

interesses individuais do proprietário, ao passo que o cumprimento da função social

é o fundamento para a conformação de seu exercício aos interesses sociais.

4.2. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA DO DIREITO

DE PROPRIEDADE.

Inicialmente, as concepções sobre o direito de propriedade se construíram,

tomando-se por base as definições abstratas e analíticas dos códigos civis, que,

impregnados pelos ideais burgueses de liberdade e igualdade, se fincavam nos

poderes do proprietário em relação à coisa, ou seja, nas faculdades, atribuídas ao

dominus, de usar, gozar e dispor do bem corpóreo, de forma absoluta e ilimitada.

Dentre estas concepções, destacamos a lição de LAFAYETTE RODRIGUES

PEREIRA131, segundo a qual “domínio é o direito real que vincula e legalmente

submete ao poder absoluto de nossa vontade a coisa corpórea, na substância,

acidentes e acessórios”.132

131 Op. Cit., p. 96.132Fixando a noção, em termos analíticos, e mais sucintos, dizemos, como tantos outros, que apropriedade é o direito de usar, gozar e dispor da coisa, e reivindicá-la de quem injustamente adetenha, Caio Mário da Silva Pereira, Op. Cit., p. 72.No mesmo sentido Silvio Rodrigues in Direito Civil. Volume 5. Direito das Coisas.Editora Saraiva,28ª Edição, São Paulo, 2.003, p. 77”.

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102

Tais concepções conduziram parte da doutrina a atribuir ao direito de

propriedade a natureza jurídica de direito subjetivo, ou seja, um interesse, que o

ordenamento jurídico protege, por meio da atribuição ao titular, de um conjunto de

poderes de ação (usar, gozar e dispor) em relação à coisa.

Na definição de VICENTE RAO, "direito subjetivo é a faculdade concedida

aos indivíduos de agir de conformidade com a norma garantidora de seus fins e

interesses, bem como de exigir de outrem, aquilo que, por força da mesma norma,

lhes for devido".133

Assim, o direito de propriedade constitui uma relação jurídica entre o

proprietário e a generalidade das pessoas, sendo que aquele tem o direito subjetivo

de usar, gozar e dispor da coisa134, enquanto estes têm o dever jurídico de se

absterem da pratica de quaisquer atos que constituam ofensa ao direito daquele.135

As críticas à teoria do direito subjetivo de propriedade, fundadas,

principalmente, em que referida teoria não prevê qualquer dever dos proprietários

para com a coletividade, ganharam intensidade, com o surgimento da Doutrina

Social da Igreja, a defender o exercício do direito de propriedade, não só para a

satisfação dos interesses individuais do senhorio, mas também para o atendimento

133 O direito e a vida dos direitos, Anotada e atualizada por Ovídio Rocha Barros Sandoval, 5ª edição.Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 191134 Importa esclarecermos que admitir a propriedade como direito subjetivo não significa admiti-lacomo relação entre o seu titular e a coisa, tal como o fizeram os defensores da teoria realista,fundamentados, sobretudo, na alegada impossibilidade de determinação do sujeito passivo. Admite-se, sim, a teoria dualista, que entende a propriedade como relação jurídica entre o proprietário etodos os membros da coletividade (sujeição passiva universal), em que a determinação do sujeitoocorre, justamente, no momento da ofensa ao direito subjetivo do proprietário. 135 Para Hans Kelsen o direito subjetivo nada mais é do que reflexo do dever jurídico e, assim serefere à propriedade em sua obra, Teoria geral do direito e do estado, Tradução de Luís CarlosBorges, 3ª edição. Martins Fontes Editores, 2000, p. 122.

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103

de interesses sociais e da Teoria de DUGUIT, segundo a qual a propriedade

constitui função social do detentor da coisa e, portanto, objeto do direito a ser

empregado para determinada finalidade.

ROSALINDA P. C. RODRIGUES136 ensina que segundo LEON DUGUIT:

“(...), todo o indivíduo tem a obrigação de cumprir na sociedade certafunção social que decorre do lugar que ocupa. O proprietário, pelofato de possuir a propriedade, tem de cumprir a finalidade social quelhe é implícita e somente assim estará socialmente protegido, porquea propriedade não é direito subjetivo do proprietário, mas funçãosocial de quem a possui”.

Na Itália e na Espanha, parte da doutrina refuta as críticas, sustentando que,

o direito subjetivo de propriedade não se descaracteriza, nem em razão das

limitações impostas ao seu exercício, nem em consequência do princípio da função

social, elementos que lhe seriam externos.

Concordamos com as considerações de RALPHO WALDO DE BARROS

MONTEIRO FILHO137, a respeito dessa corrente:

136A teoria da função social da propriedade rural e seus reflexos na acepção clássica da propriedade,(Org.) Juvelino José Strozake, in A questão agrária e a Justiça, Editora Revista dos Tribunais, SãoPaulo, 2000, p. 97. 137 Op. Cit., p. 137.

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104

“O que nos parece é que, para essa corrente, o indivíduo-proprietárioconstitui-se, na verdade, em mero instrumento para que, atravésdele, o direito objetivo coloque em prática o que entende melhor parao interesse social. Eis aí o exagero dessa doutrina, na medida emque o direito existe para o homem, em razão da sua organização emsociedade, e não o contrário, é dizer, o ser humano não vive paraconcretizar a ‘vontade’ da lei; ele assim procede porque isso(concretizar o direito) é um meio necessário para a sua própriaexistência. É diferente de se afirmar que o homem existe com o fimde tornar efetiva uma norma jurídica. Ela realmente se efetiva peloindivíduo, mas não porque esse seja seu mister, mas sim para quese torne possível a existência harmoniosa entre a coletividade”.

Na França, coube a JEAN DABIN criticar a teoria de LEÓN DUGUIT,

negando a funcionalização, mas admitindo a socialização, que não desnatura o

caráter de direito subjetivo do direito de propriedade.

Na conclusão de JEAN DABIN138, na medida em que o direito objetivo

consagra o direito subjetivo de propriedade, ao tutelar a utilização livre e plena das

coisas materiais, em proveito de um sujeito determinado, sendo que, ao limitar esta

liberdade de utilização, estabelecendo encargos ou obstando-a de se voltar contra

outrem ou contra a comunidade, ele o direciona para a linha do "social", nada

havendo, de contraditório, nas idéias de "socialização" (lato sensu) do direito

subjetivo e de autonomia limitada segundo as exigências, além do mais, variadas e

variáveis da vida social.

138 Le droit subjectif, Paris, 1952, pág. 19.

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105

Neste mesmo sentido, são as críticas de ACCHILLE MESTRE139, centrada

no argumento de que a atribuição de deveres ao proprietário, não transmuda a

propriedade em obrigação:

"Il est en effet constant que la conception de la propriété est en voiede modification, que l'idée de fonction sociale y a pénétré commedans tous les droits, mais elle n'a point cessé pour cela d'être undroit.

(...)

La fonction sociale, l'utilité sociale de la propriété privée, sontaujourd'hui reconnues par tous et à cet égard, la pensée de DUGUITest certainement dans le sens des tendances juridiques etéconomiques contemporaines. Mais, l'éxagération de ses formulesnous semble manifeste. De ce que la propriété comporte à la chargede son titulaire certains devoirs, il n'en resulte pas qu'elle est uneobligation".

Dentre os autores italianos, destacamos SALVATORE PUGLIATTI140 afirma

que a propriedade é direito real fundamental que não prescinde de tipificação legal.

Por essa razão, segundo esse autor, a imposição, pela lei, de obrigações ao

proprietário, não descaracteriza a natureza de direito subjetivo de que se reveste a

propriedade, porque não se pretende a realização de um interesse público contra o

interesse do proprietário, mas sim, juntamente e por meio dele.

139 Remarques sur la notion de propriété d'après DUGUIT, in Archives de Philosophie du Droit, ns. 1 e2, 1932, p. 166.140 La proprietá nel nuovo diritto. Milano, Giuffrè Editore, 1964, pp. 135-138

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106

Na Espanha, JOSÉ CASTAN TOBEÑAS critica o entendimento de que a

propriedade tem natureza de função social, reafirmando o seu caráter de direito

subjetivo, que não constitui impedimento para a agregação de elementos sociais,

para que cumpra uma finalidade social141.

Embora retirando os fundamentos da doutrina dos autores citados, outros

doutrinadores, concluem que, na verdade, o direito de propriedade não mais seria

um direito subjetivo, mas sim, uma situação jurídica complexa.

A construção deste pensamento, sem dúvida, teve como maior expoente

PIETRO PERLINGIERI, para o qual, com a positivação constitucional do princípio da

função social da propriedade, passa a existir multiplicidade de situações jurídicas

subjetivas, ou seja, de centros de interesse.

De um lado, existe a situação jurídica subjetiva de proprietário e, de outro, as

situações jurídicas subjetivas de terceiros, que se contrapõem, ou melhor, que se

opõem à situação jurídica subjetiva do proprietário142.

Para PIETRO PERLINGIERI, o direito de propriedade é, na realidade, uma

relação jurídica, tanto no aspecto estrutural quanto no aspecto funcional. No aspecto

estrutural, porque entre as situações jurídicas subjetivas contrapostas, estabelece-se

141 La Propriedad y sus Problemas Actuales, Instituto Editorial Réus, Madri, 1963, p. 111. 142 Os titulares das situações jurídicas subjetivas que se contrapõem à situação jurídica subjetiva doproprietário poderão ser outros proprietários, ou não-proprietários.

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um liame objetivo. No aspecto funcional, porque sintetiza a disciplina ditada pela lei

para solucionar os conflitos de interesses.143

Surge, quanto à teoria, a celeuma fundada na indeterminação do sujeito

passivo, como aspecto impeditivo da qualificação do direito de propriedade como

relação jurídica. Para PIETRO PERLINGIERI a objeção não é relevante, por que:

“Correlativamente a um sujeito que é titular de uma situação ativa depropriedade, existe não um sujeito determinado, mas a coletividade,que se encontra na condição de dever respeitar aquela situação e denão se ingerir na esfera do titular. No perfil estrutural, a relação depropriedade é ligação (relazione) entre a situação do proprietário eaqueles que entram em conflito com esta e constituem centros deinteresses antagônicos. A situação do proprietário é relevantesomente enquanto pressupõe a obrigação de comportamento, deabstenção, às vezes a cooperação dos outros sujeitos, que podemtornar-se, de fato, e concretamente, titulares da situaçãoantagônica”.144

A concepção de PIETRO PERLINGIERI, não desconsidera a existência de

direitos subjetivos, como parte integrante da situação jurídica subjetiva do

proprietário, que, em contraposição com as situações jurídicas de terceiros,

caracterizam uma relação jurídica complexa.

143 Introduzione alla problematica della proprietà, Nápoles, Scuola di Perfezionamento in Diritto Civile,1982, pp. 98-100144 Perfis do Direito Civil (“P.D.C”.) – Introdução ao Direito Civil Constitucional, trad. Maria Cristina deCicco. Editora Renovar, 2ª Edição, Rio de Janeiro, 1999, p. 221

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Essa relação jurídica complexa, que não resulta da soma, mas sim da

síntese do encontro entre a situação jurídica do proprietário e a situação jurídica dos

demais membros da coletividade é que constituem o direito de propriedade.

Portanto, para esse doutrinador145, as limitações impostas ao proprietário,

em razão da função social da propriedade, não são aspectos externos ao conteúdo,

mas sim aspecto interno, implicitamente, abarcado por seu conteúdo, conforme se

conclui da passagem que a seguir transcrevemos:

"La teoria dei limiti non é qualcosa che sta al di fuori della structuradella proprietà, non è un profilo esterno ala proprietà, ma constituisceuno dei più pregnanti contenuti del diritto di proprietà. Questo stessodiscorso può esser fatto, del resto, per qualsiasi diritto soggettivo:anche altre situazioni giuridiche soggettive hanno limiti, vincoli, oneri,i quali fanno parte di quella situazione giuridica soggettiva complessa,incidindo sul contenuto dall´interno e non dall´esterno”.

Explicadas as principais teorias a respeito da natureza do direito de

propriedade, expressamos nosso entendimento de que as limitações, bem como as

obrigações, estabelecidas para o cumprimento da função social da propriedade, são

externas ao direito de propriedade.

A nosso ver, a propriedade, como direito garantido ao seu titular pelas

constituições, possui um conteúdo mínimo, ou, como preferem alguns, um núcleo

145 Op. Cit., p.121.

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essencial, intangível, que não pode ser suprimido, nem mesmo por meio de

limitações estabelecidas pelo legislador.

Admitimos, de outro lado, que não se pode mais cogitar a conceituação

analítica do direito de propriedade, baseada, apenas e tão somente, nos poderes do

proprietário em face de terceiros.

Neste sentido, ousamos definir propriedade, como o direito exclusivo de

usar, gozar e dispor da coisa, conferido e garantido ao seu titular pelo ordenamento

jurídico, que deve ser exercido pelo proprietário, com a observância dos limites e o

cumprimento das obrigações que o mesmo ordenamento lhe imponha para o

cumprimento da função social.

4.2.1. Abrangência do direito de propriedade na

Constituição Federal: patrimonialidade e tipo de

propriedade.

Antes de iniciarmos a análise do direito de propriedade sob o âmbito do

direito civil, cumpre-nos tecer algumas considerações sobre a amplitude do direito de

propriedade, no âmbito constitucional.

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Segundo esclarece PINTO FERREIRA146, “o conceito constitucional de

propriedade é amplo, abrangendo o complexo de direitos patrimoniais traduzíveis

economicamente,” portanto, compreendendo, como bem esclarece JOSE MANOEL

DE ARRUDA ALVIM NETTO147, “não apenas aos bens imóveis e aos móveis, senão

que a todo e qualquer bem de valor econômico”.

O enfoque do direito de propriedade, na Constituição Federal é, portanto,

mais amplo do que aquele que se concebe no âmbito do Código Civil, o que se

justifica, segundo CELSO RIBEIRO BASTOS148, porque, no próprio desenvolvimento

da civilização, os bens de interesse para o homem, não se limitam aos corpóreos,

motivando, destarte, a extensão da proteção constitucional à titularidade da

exploração de bens incorpóreos e até mesmo a direitos em geral.

No entanto, ora em razão das diferenças de destinação149 entre os bens que

se circunscrevem ao conceito Constitucional, ora em virtude da condição especial do

sujeito titular do direito, a exigir uma diversificação dos regimes jurídicos, tem-se

sustentado a inexistência de conceito unitário de propriedade, referindo-se, destarte,

ao termo “propriedades”.

146 Curso de Direito Constitucional, 8ª Edição, Editora Saraiva, São Paulo, 1996, p.107147 Op. Cit.., no prelo.148 Curso de Direito Constitucional, 18ª Edição, Editora Saraiva, 1997, pp. 207-208.149 Fabio Konder Comparato em seu artigo “Função Social da Propriedade dos bens de produção”,Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, Revista dos Tribunais,volume 63, 1986, p. 72, ressalta a destinação, como fator determinante do regime de propriedade dosbens de produção.

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111

Vale destacar, a respeito das novas configurações de propriedade o

entendimento de JOSÉ MANOEL DE ARRUDA ALVIM NETTO150:

“Cumpre-nos ter em mente novas configurações do direito depropriedade, como a da alienação fiduciária de bem móvel (art. 66,Lei 4.728/65, tal como resulta do decreto-lei 991/69) e a da Lei9.514/97, o que torna evidente que o conceito de propriedade nãoé um só, mas acaba assumindo outro(s) significado(s), com vistas afinalidades próprias e decorrentes do perfil que tais leis imprimem noque designam como direito de propriedade”

Neste particular, também merece destaque o entendimento de PIETRO

PERLINGIERI:

“In altre parole, le diverse forme di proprietà sono differentementedisciplinate o per il fatto che titolare di quella proprietàoccasionalmente o istituzionalmente è um particolare soggetto, o peril fatto che oggetto di quella proprietà sono beni che hanno unaparticolare funzione sociale e giuridica reconosciuta dal nostroordenamento”.151

Parece-nos verdadeira a assertiva do jurista italiano, sob o ponto de vista da

Constituição Federal de 1988, que prevê: nos incisos XXVII e XXVIII a proteção dos

150 Op. Cit., no prelo.151 Op. Cit., pp. 138-139.

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direitos de autor sobre as criações do espírito; no inciso XXIX a proteção dos direitos

de propriedade industrial, das marcas e dos nomes empresariais.

Tratam-se dos chamados novos direitos, sujeitos a um regime de

propriedade específico, que se diferencia do regime de propriedade tal como

regulado no Código Civil, assumindo inclusive características diversas.

5. DIREITO DE PROPRIEDADE NO CÓDIGO

CIVIL.

5.1. OBJETO DO DIREITO DE PROPRIEDADE.

Enquanto o direito de propriedade, no sentido da Carta Maior, como já

salientamos abarca o patrimônio, inclusive os bens incorpóreos, o direito real de

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propriedade, regulado pela legislação civil tem objeto imediato, mais restrito,

abarcando, as coisas corpóreas.

Neste sentido esclarece LAFAYETTE RODRIGUES PEREIRA que “o direito

de propriedade é tomado em sentido mais restrito, como compreendendo tão

somente o direito que tem por objeto direto ou imediato as coisas corpóreas”.152.

Na definição de JOSE MANOEL DE ARRUDA ALVIM NETTO153, “são, as

coisas, objetos corpóreos, isto é, não só existem no mundo físico, como também se

apresentam formando um corpo, donde hão de ser tangíveis pelo homem e devem

ter consistência”.

Contudo, ensina EDMUNDO GATTI154, que nem tudo que existe no mundo

físico pode ser enquadrado no conceito de coisa como objeto imediato dos direitos

reais do direito civil, que deve ser construído sob o ponto de vista jurídico,

considerando-se não só a materialidade da coisa, mas também a sua utilidade e a

sua suscetibilidade de apreciação pecuniária.

As coisas corpóreas que constituem objeto imediato do direito de

propriedade poderão ser móveis ou imóveis, sendo que, em regra, a propriedade

compreenderá não só a coisa em toda a sua substância e atributos, mas também, os

frutos e demais riquezas materiais, a ela inerentes (Art. 1.232 do Código Civil).

152 Op. Cit., p. 96153 Op. Cit., no prelo.154 Teoria General de Los Derechos Reales, Abeledo-Perrot, Buenos Aires, s.d., p. 197.

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Oportuno comentar neste momento sobre os artigos 1.229 e 1.230, caput do

Código Civil em vigor, pela pertinência com a questão de delimitação do objeto da

propriedade sobre o solo.

O artigo 1.229 não foge à regra de que a propriedade não recai apenas

sobre o objeto em sua substância, mas se estende às coisas que lhe são acessórias,

na medida em que estabelece que a propriedade do solo abrange o espaço aéreo e

o subsolo.

No entanto, o legislador adota, para a delimitação dessa extensão do objeto,

um critério de utilidade para o titular do direito, de resto compatível com a idéia de

que no conceito jurídico de coisa, para efeitos do direito de propriedade, há que se

considerar os fatores utilidade e necessidade.

MARCO AURÉLIO S. VIANA155, após afirmar que o dispositivo assegura ao

proprietário o poder de expansão da propriedade sobre o subsolo e espaço aéreo,

estabelecendo, entretanto, um limite segundo o critério de utilidade, lembra que

IHERING dizia que a propriedade se estendia até onde houvesse interesse prático.

Já o artigo 1.230 caput do atual Código Civil, prevê que a propriedade do

solo não abrange as jazidas, minas e demais recursos minerais, os potenciais de

energia hidráulica, os monumentos arqueológicos e outros bens referidos por leis

especiais.

155 Comentários ao Novo Código Civil. Dos Direitos Reais. Volume XVI, Editora Forense, Rio deJaneiro, 2003, p. 56.

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115

O dispositivo fundamenta-se no artigo 176 da Constituição Federal que

estabelece que tais riquezas constituem propriedade distinta da do solo e pertencem

à União. No entanto, o próprio legislador constitucional, de certa forma, reconhece o

caráter excepcional da norma, ao assegurar a participação do proprietário do solo

nos resultados da lavra (At. 176, § 2º da Constituição Federal).

Também no que se relaciona aos bens móveis, há, atualmente, controvertida

questão acerca da extensão do regime do direito das coisas, a determinados bens,

que não se inserem no conceito de coisas móveis propriamente ditas.

A celeuma em torno da questão, de certa forma já existente, em razão da

equiparação da energia à coisa móvel para efeitos de tipificação do crime de furto

(Artigo 155, § 3º do Código Penal), ganha força, com a entrada em vigor do novo

Código Civil, sobretudo, em razão do artigo 83, inciso I, que considera coisas móveis

para os efeitos legais, as energias que tenham valor econômico.

Por tudo que já expusemos, não resta dúvida de que as energias, dada a

importância para a sociedade atual e o valor econômico que lhes é agregado,

integra o conceito de patrimônio, que é objeto da propriedade, na sua concepção

mais ampla, garantida pelo texto constitucional.

No entanto, os novos bens ou bens semi-corpóreos, denominação que se

tem adotado para designar as energias, não são considerados coisas móveis,

portanto, corpóreas, propriamente ditas, sobretudo, pela impossibilidade de

apreensão física.

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116

Note-se que o artigo 83 determina que as energias sejam consideradas

coisas móveis para os efeitos legais, conduzindo à interpretação, de que na

realidade não o são, propriamente ditas, já que, se o fossem, o dispositivo legal sob

comentário seria dispensável.

GUILLERMO L. ALLENDE156 nega a possibilidade de aplicação às energias,

das mesmas normas jurídicas aplicáveis às coisas, fundamentando-se não só na

impossibilidade de constituir objeto de posse e reivindicação, como também pelo fato

de que não há possibilidade de uso da energia, senão mediante a prestação daquele

que a produz, o que afronta, violentamente, a concepção de relação direta do titular

com a coisa, típica dos direitos reais157.

Portanto, não vislumbramos a possibilidade de aplicação integral do regime

de propriedade previsto no Código Civil às energias, mas admitimos, a aplicação da

disciplina dos direitos reais à propriedade de tais bens, no que couber, diante da

ausência de um particular regime de propriedade das energias que se mostraria

mais adequado.

5.2. CONTEÚDO DO DIREITO DE PROPRIEDADE.

156 Panorama de Derechos Reales. La Ley Sociedade Anônima Editora e Impressora, Buenos Aires,1967, p. 186-189.157 No mesmo sentido: Llambías Alterini, Código Civil Anotado, tomo IV-A, p. 13. Contrariamente:López de Zavalía, Fernando, Derechos Reales, tomo 1,Zavalía, p. 241 e ss.

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117

O Artigo 1.228, caput, não define propriamente o direito de

propriedade, mas sim, especifica as faculdades que o ordenamento jurídico concede

ao proprietário.

Entretanto, é oportuno destacar que o direito de propriedade não há de

ser entendido como uma soma das faculdades que a lei atribui ao proprietário, mas

sim uma fusão de todos os direitos que, ressalvadas as exceções previstas na lei,

possa exercer como titular das utilidades todas da coisa, bem como se opor às

intromissões alheias.

Posto isto, deve-se atentar que, de forma bastante semelhante ao

artigo 524 do Código Civil de 1916, o caput do artigo 1.228 do Código Civil

estabelece que o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, o

direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a detenha.158

As faculdades arroladas no Código Civil conduzem à conclusão de que

o conteúdo do direito de propriedade compreende o direito de usar (ius utendi), o

direito de gozar (ius fruendi) e o direito de dispor (jus disponendi), atribuído pelo

ordenamento jurídico, ao proprietário.

O direito de usar consiste na prerrogativa de retirar da coisa, em

benefício próprio ou de terceiro, toda a utilidade que a coisa possa lhe oferecer, sem

158 A nosso ver a definição da propriedade através do arrolamento das faculdades do proprietário, deforma analítica, contida no Código Civil, que não é suficiente para exaurir as possibilidades de relaçãoque o indivíduo pode ter com a coisa, presta-se a fornecer um conteúdo essencial mínimo do direitode propriedade, a ser respeitado por terceiros e também pelo Estado.

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118

modificar sua substância, que na concepção contemporânea, não implica,

necessariamente, na faculdade de não usar.

O direito de gozar compreende a faculdade, que é deferida, pelo

ordenamento jurídico, ao proprietário, de perceber os frutos, tanto naturais quanto

civis, bem como de explorá-la economicamente, aproveitando seus produtos.159

O direito de dispor compreende a prerrogativa, que o sistema

normativo confere ao proprietário, de alienar e auto-delimitar os direitos sobre a

coisa, gravando-a com ônus ou submetê-la ao uso e/ou gozo de outrem160.

A faculdade de destruir a coisa, só será vedada ao proprietário, pela lei

ou se tal destruição se revestir de caráter emulativo.

Nos casos em que a propriedade recaia sobre bens consumíveis não

destinados à alienação, por exemplo, a destruição imediata da substância pelo uso,

decorre da própria natureza da coisa. Outro exemplo afigura-se, na hipótese em que

o proprietário promove a demolição de seu imóvel a fim de construir outro em seu

lugar.

Por fim, para assegurar o direito de propriedade, a lei confere ao

proprietário o direito de reivindicar a coisa, das mãos de quem, injustamente a

possua ou detenha, pois, conforme esclarece CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA161,

159 Silvio Rodrigues, Op. Cit.., p. 78.160 Rubens Limonge França. Manual de Direito Civil, 3º Volume, Editora Revista dos Tribunais, SãoPaulo, 1971, p. 101.161 Op. Cit.., p. 75.

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“de nada valeria ao dominus, em verdade, ser sujeito da relação jurídica dominial e

reunir na sua titularidade o ius utendi, fruendi e abutendi, se não lhe fosse dado

reavê-la de alguém que a possuísse injustamente, ou a detivesse sem título”.

5.2.1. Conteúdo mínimo do direito de propriedade.

A Constituição Federal prevê no artigo 5º, inciso XXII, a garantia do direito

de propriedade, em sentido amplo, que abrange a propriedade de todos os bens e

direitos que compõem o patrimônio do indivíduo, inclusive a propriedade sobre as

coisas corpóreas, regulada pelo Código Civil.

Em seguida, no inciso XXIII estabelece que a propriedade atenderá a sua

função social, o que conduz parte da doutrina ao entendimento de que a função

social da propriedade é elemento interno e, portanto, estrutural do próprio direito de

propriedade.162

Ousamos dissentir deste posicionamento, por entender que, ao regular o

conteúdo estrutural do direito de propriedade, não pode o legislador, em nome da

função social, livremente definir os elementos que o compõem, sob pena de se

permitir a transformação do direito de propriedade em função social, no sentido de

atribuição de um dever-poder, dirigido a exercer uma função, voltada, exclusiva e

diretamente, a um interesse social ou público.

162 v. item 4.1. e 6 do presente trabalho

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120

Encontramos apoio, no entendimento de ACCHILLE MESTRE163, que

parece reconhecer o conteúdo mínimo do direito de propriedade afirmando que "Au

contraire, en l'état actuel de notre droit privé, il y a dans le droit de propriété un

residu individuel inéluctable qui laisse une place considérable à la satisfaction des

intérêts purement privés de son titulaire".

Portanto, o direito fundamental de propriedade não é definido pela função

social, mas sim pelas prerrogativas de utilização privada e de disposição, deferidas

ao seu titular, que constituem seu núcleo essencial, cujo conteúdo não pode ser

esvaziado, mediante estabelecimento de restrições descabidas, desmesuradas ou

desproporcionais.164

Se fosse dado ao legislador ordinário, em nome da função social, suprimir

este conteúdo mínimo e constante do direito de propriedade, esvaziada estaria a

garantia prevista no inciso XXII do artigo 5º da Constituição Federal, pela absoluta

ausência de direito subjetivo fundamental a se assegurar165.

Segundo a lição de JOSE MANOEL DE ARRUDA ALVIM NETTO166:

163 Op. Cit.., p. 168.164 Sobre o princípio da proteção do núcleo essencial, consultar: “A doutrina constitucional e ocontrole de constitucionalidade como garantia da cidadania – Necessidade de desenvolvimento denovas técnicas de decisão: Possibilidade da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia denulidade no Direito Brasileiro. Gilmar Ferreira Mendes, Revista da Procuradoria-Geral da República;na Advocacia Dinâmica: Seleções Jurídicas, pp. 11/25”.165 A nosso ver, o núcleo essencial do direito de propriedade também não pode ser suprimido pelolegislador constituinte derivado, porque a garantia do direito de propriedade é cláusula pétrea daConstituição Federal, não podendo ser objeto de deliberação qualquer proposta de Emenda quetenda a aboli-la (Artigo 60, § 4º, inciso IV).166 Op. Cit., no prelo.

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“(...) ainda que a função social da propriedade se encontre previstano texto da mesma Constituição, não será possível reconhecer nessafunção um espectro que conduza à ignorância de elementosessenciais do direito de propriedade, mesmo porque não é a funçãosocial que define e protege o direito de propriedade. Assevera Odireito de propriedade é direito fundamental, assim denominado noplano do direito constitucional, e, é enquadrável na categoria dosdireitos subjetivos, no patamar do direito civil. Neste sentido, diz-seque a previsão constitucional, ao lado de constituir-se em direitofundamental, disciplina o direito de propriedade e a situação doproprietário em relação ao Estado”.

Dois institutos merecem análise em face da garantia do direito de

propriedade, como direito fundamental: a desapropriação e a usucapião.

Todas as hipóteses de desapropriação previstas no texto constitucional

(Artigos 5º, inciso XXIV, Artigo 182, §§ 3º e 4º e Artigo 184) constituem vulneração

do conteúdo mínimo do direito de propriedade, porque a transferência do bem

particular ao domínio público implica na supressão dos direitos de usar e dispor do

particular.

No entanto, em todas as hipóteses de desapropriação previstas na

Constituição, é assegurado ao proprietário o pagamento de indenização justa, que

constitui, de certa forma, uma garantia de proteção ao seu patrimônio, que será

paga em dinheiro e previamente nos casos previstos no artigo 5º, XXIV e 182 § 3º

da Lei Maior e à prazo, com garantia de preservação do valor real, nas denominadas

desapropriações-sanções (Artigo 182, § 4º, inciso III e Artigo 184 da Constituição

Federal).

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122

Oportuna a reprodução da lição de PAULO TORMINN BORGES167 sobre o

tema:

"Pode parecer aos mais afoitos que a desapropriação seja um meiode se negar o direito de propriedade. Mas não é. Ao contrário, éconfissão de respeito ao direito de propriedade, pelo reconhecimentode que o Poder Público só pode subtrair a propriedade ao particularobedecendo a regras jurídicas precisas. No fundo, o instituto dadesapropriação não atinge o direito de propriedade em suacaracterística mais avultada, que é o seu valor econômico. Háapenas uma permuta de valores: substitui-se um bem - o objeto dodireito de propriedade - por outro bem - o seu preço em dinheiro ouequivalente. Não é a coisa em si que se garante: é a sua expressãoeconômica, de molde a permanecer íntegro o patrimônio da pessoa,apesar da desapropriação”.

A usucapião, por sua vez, constitui hipótese em que o princípio da função

social da propriedade se sobrepuja ao direito de propriedade do proprietário estático,

o que não constitui afronta ao núcleo essencial do direito de propriedade, garantido

pela Constituição.

A garantia constitucional assegura, como elemento essencial do direito de

propriedade, além do poder de disposição, a utilização privada do bem, o que não

significa que a proteção seja admitida em face da ausência de utilização pelo

proprietário.

167 Institutos Básicos do Direito Agrário. 11ª edição. Editora Saraiva, São Paulo, 1998. p. 61.

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123

5.3. CARACTERÍSTICAS DO DIREITO DE

PROPRIEDADE.

A doutrina tem se posicionado, de forma mais ou menos uniforme, quanto

aos caracteres de que se reveste o direito de propriedade, sob a ótica do direito civil.

O artigo 1.231 do Código Civil em vigor evidencia duas destas

características, ao estabelecer presunção juris tantum de que a propriedade se

presume plena e exclusiva.168

A plenitude, segundo ensina MARCO AURÉLIO S. VIANA169 refere-se às

faculdades que estão englobadas, nas mãos do proprietário, que pode, na

linguagem analítica do artigo 1.228 do Código Civil, usar, gozar e dispor da coisa.

A plenitude permite afirmar que também é característica do direito de

propriedade, a independência, no sentido de que, enquanto os demais direitos reais

pressupõem a existência da propriedade, a propriedade não pressupõe a existência

de qualquer outro direito sobre a coisa.

A exclusividade, por sua vez, é conseqüência da unicidade do direito de

propriedade, no sentido de que, não podendo, a mesma coisa, pertencer, por inteiro,

168 O Artigo 527 do Código Civil de 1916 estabelecia que a mesma presunção, porém, empregava otermo ilimitada, em lugar de plena. Neste sentido, parece-nos adequada a mudança engendrada,uma vez que a idéia de direito ilimitado não nos parece compatível com o atual perfil do direito depropriedade.169 Op. Cit. p. 58

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exclusiva e simultaneamente a mais de um titular, pode, o proprietário, excluir de

terceiros o uso e gozo da coisa.

A característica da exclusividade é atribuída no sentido, bem esclarecido por

LAFFAYETTE RODRIGUES PEREIRA170, de impossibilidade de existência de

domínios contrapostos, pois nesta hipótese, o domínio de um titular, excluiria o

domínio do outro.

Essa idéia de contraposição entre domínios é essencial para que não se

cometa o equívoco de entender que o Condomínio não se reveste da característica

da exclusividade.

No condomínio, a propriedade da coisa pro indiviso é uma só, mas pertence

em comum a diversos titulares, aos quais se atribui uma parte ideal, de forma que

não há uma contraposição entre as propriedades de um e de outro proprietário.

Da característica de exclusividade, resulta o caráter absoluto do direito de

propriedade, que não deve ser interpretado sob a ótica dos ideais liberalistas, mas

sim, sob o ponto de vista jurídico, fundado na diferenciação entre direitos relativos e

direitos absolutos.

EDMUNDO GATTI esclarece que:

170 Op. Cit. p. 108.

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“Direitos absolutos são aqueles que existem em relação a todos(erga omnes), ou seja, aqueles em que ao poder ou à faculdade dotitular do direito corresponde um dever de abstenção de todos osdemais. Ao contrário, são direitos relativos, aqueles que outorgam aoseu titular um determinado comportamento de pessoa ou pessoasdeterminadas, podendo esse comportamento consistir não somenteem uma abstenção, senão que, também (e, principalmente) em umaação ou fato positivo”.171

Portanto, diz-se que, como todo direito real, o direito de propriedade é

absoluto, não no sentido de que seja ilimitado, mas sim porque as prerrogativas do

proprietário, gera em relação todos os membros da coletividade, um correlato dever

de abstenção, ou, em outras palavras, o direito de propriedade tem eficácia e

validade é oponível a todos (erga omnes).

Retornando ao teor do artigo 1.231 do Código Civil, percebe-se o legislador

estabeleceu uma presunção relativa, o que decorre de outra característica que se

pode atribuir ao direito de propriedade.

Como vimos, o direito de propriedade concentra nas mãos do proprietário as

faculdades de usar, gozar e dispor da coisa, daí dizer-se que a propriedade e plena

e exclusiva. No entanto, a plenitude e exclusividade podem sofrer modificações,

pois, conforme esclarece WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO172, é possível o

desmembramento de certas parcelas da propriedade e sua constituição em direitos

separados, a favor de terceiros.

171 Op. Cit., pg. 15.172 Op. Cit., p. 84.

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126

LAFAYETTE RODRIGUES PEREIRA173, no mesmo sentido, esclarece que,

“sempre que do domínio se destaca algum, ou alguns de seus direitos elementares,

torna-se ele limitado174, ou menos pleno”.

Portanto, o proprietário poderá constituir sobre a coisa outros direitos reais

em favor de terceiros, tais como ocorre, por exemplo, na hipótese de usufruto, em

que o proprietário transfere as faculdades de uso e gozo da coisa ao usufrutuário,

conservando em seu poder apenas a prerrogativa de disposição.

No entanto, a cessação dos direitos sobre a coisa, constituídos em favor de

terceiros, implica na restauração da plenitude do direito, com a consolidação, nas

mãos do proprietário, das faculdades constituídas em favor de terceiros.

A esta característica, que tem o direito de propriedade, de se desmembrar,

por meio da constituição de direitos reais concorrentes e, com a extinção destes,

restabelecer, imediatamente, a plenitude de seu conteúdo, dá-se a denominação de

elasticidade.

Outra característica do direito de propriedade, muito lembrada no campo

doutrinário, é a perpetuidade, que se revela pela ausência de limite temporal do

direito de propriedade.

Trata-se de um elemento distintivo entre o direito de propriedade e os

demais direitos reais, pois estes estão sujeitos à extinção com o transcurso do

173 Op. Cit., 104

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tempo, oportunidade em que a propriedade que, repisamos, tende a ser perpétua, se

revigora.

A característica da perpetuidade se fundamenta, portanto, na tendência, que

tem o direito de propriedade de não se extinguir pelo tempo, o que não significa que

tal extinção não possa ocorrer, pela vontade do próprio proprietário (Artigo 1.275, I a

III do Código Civil), pelo perecimento do objeto (Art. 1.275, inciso IV do Código Civil),

ou pela desapropriação mediante indenização (Art. 1.275, inciso V do Código Civil).

Por fim, resta esclarecer que, assim como os demais direitos reais, o direito

de propriedade se reveste de tipicidade, na medida em que o seu conteúdo, isto é, a

descrição de suas características ou elementos fundamentais, é prevista por normas

de ordem pública, que não podem ser afastadas pela vontade das partes175.

174 Além dos direitos reais de uso e gozo, nos casos de propriedade resolúvel se diz que apropriedade é limitada. 175 Cumpre ressalvar que não se deve confundir a tipicidade com a taxatividade dos direitos reais,embora ambas signifiquem limite à autonomia da vontade. Enquanto aquele se refere àimpossibilidade das partes alterarem o conteúdo dos direitos reais previsto pela lei, esta diz respeito àexclusividade da lei como meio idôneo à criação de direitos reais e, conseqüentemente, àimpossibilidade de criação de novos direitos reais pela vontade das partes.

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128

6. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE.

A partir do pensamento precursor de LEON DUGUIT sobre a função social

da propriedade, o tema vem sendo objeto de divergências doutrinárias, sobretudo no

que se refere ao seu posicionamento em relação ao direito de propriedade e ao

modo de operacionalização.

Antes de analisarmos o tema sob o ponto de vista do nosso sistema

normativo, procederemos algumas considerações em relação às duas correntes

doutrinárias mais relevantes.

6.1. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE COMO

ELEMENTO ESTRUTURAL INTERNO DO DIREITO

DE PROPRIEDADE E SUA OPERACIONALIZAÇÃO.

STEFANO RODOTÀ, adotando o método de analisar os termos da

expressão “função social” isoladamente, conclui que o termo “função” expressa, em

síntese, a forma pela qual se confere operacionalidade a um determinado instituto

jurídico ou função, ou nas palavras do próprio autor “serve a definire il concreto

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129

modo de operare di un instituto o di um diritto di cui siano note e individuale le

caratteristiche morfologiche” 176.

A função, por conseguinte, se refere ao elemento individualizado que indica

especificamente a modalidade de exercício de um direito, frente a situações fáticas,

sempre renovadas, diversas e de variável relevância de acordo com o momento

histórico social177.

Já o termo “social” tem conteúdo aberto, vago e indeterminado, que

dependerá da valoração das situações jurídicas conexas ao desenvolvimento de

determinada atividade econômica, a serem coordenadas, para se atingir ao máximo

social.

Sintetizando as idéias dos termos “função” e “social”, ousamos, sem a

pretensão da difícil, ou quiçá, impossível determinação do conceito, afirmar que a

função social da propriedade é elemento que define o âmbito e coordena o modo

concreto de exercício do direito de propriedade, em conformidade com a valoração

das situações jurídicas subjetivas que lhe são conexas, para o fim de satisfação, não

apenas do seu interesse privado, mas também das mais gerais exigências da

sociedade.

Assim, a função social da propriedade, como salienta STEFANO RODOTÀ,

constitui elemento interno da própria estrutura do direito de propriedade. Desta

maneira, uma eventual inatividade do proprietário, quando, em razão da sua relação

176 Proprietà (Diritto vigente) in :Novíssimo Digesto Italiano. Turim, UTET, 1967, p. 125-146.

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com coisa apta a satisfazer os interesses de um grupo social, esteja obrigado a agir

de uma determinada forma, acarreta uma superveniente carência de legitimação à

titularidade ou ao exercício do seu direito de propriedade.178

No mesmo sentido, o entendimento de FRANCESCO ROMANO179, ao

reputar que “la funzione sociale abbia dato giuridica consistenza ad um mutamento

profondo del sistema per quanto concerne la struttura ed il fondamento della

situazione tutelata come proprietà”.

Sob a ótica dos preceitos que fundamentam esta construção doutrinária, a

função social da propriedade constitui uma verdadeira cláusula geral.

Trata-se de um princípio positivado, que por refletir no conteúdo da própria

relação jurídica, possui força operativa em via geral180, ou seja, perante qualquer

situação de propriedade, a qualquer momento, independente de regra

infraconstitucional expressa.181

Esta manifestação do princípio sobre o conteúdo, segundo o ilustre

doutrinador, pode consistir na limitação de determinadas faculdades do domínio, no

177 Salvatore Pugliatti. La Proprietà Del Nuovo Diritto, p. 277178 Em nosso ordenamento, quanto aos imóveis urbanos, a consagração da função social dapropriedade em nível constitucional, por si só, não tem o condão de retirar ao proprietário alegitimação ao exercício do direito de propriedade. Como veremos adiante, o Estatuto da Cidade,regulando a Constituição Federal é que vai estabelecer as obrigações a que devem ser observadaspelo proprietário no exercício do seu direito de propriedade e, somente o não atendimento é queensejará a supressão do direito de propriedade pela desapropriação sanção. 179 Diritto e obbligo nella teoria del diritto reale, Napoli, 1967, p. 225.180 Ibidem, p. 240.181 Pietro Perlingieri, na sua obra Introduzione alla problematica della proprietà, Nápoles, Scuola diPerfezionamento in Diritto Civile, também apregoa que a função social da propriedade é um princípiogeral, de eficácia autônoma, a constituir elemento fundamental a inspirar o conteúdo da situação

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condicionamento para o exercício dos poderes pelo seu titular, ou ainda, na

imposição da obrigação de exercitar determinadas faculdades.

Destina-se a cláusula geral: (a) ao proprietário, fornecendo-lhe os nortes

para que exerça seu direito de acordo com os valores fundamentais da Constituição;

(b) ao legislador, para que, no exercício de sua atividade conformativa, não conceda

poderes supérfluos e contraproducentes em relação ao interesse positivamente

tutelado, mas sim necessários para perseguir o interesse (determinável)

constitucionalmente relevante182; (c) ao juiz, para empregar na interpretação das

situações proprietárias concretas que se apresentam, critérios de valoração, de

acordo com os conteúdos axiológicos consagrados na ordem jurídica;183 (d) aos

terceiros, que podem exigir determinados comportamentos do proprietário184.

6.2. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE COMO

ELEMENTO EXTERNO DO DIREITO DE

PROPRIEDADE E SUA OPERACIONALIZAÇÃO.

A corrente doutrinária oposta, manifesta-se no sentido de que o principio da

função social da propriedade não é elemento interno do direito de propriedade, a

compor o seu conteúdo, mas sim, elemento externo.

jurídica subjetiva de propriedade e o intérprete das normas, que não se esgota na razão social oujurídica de uma norma limitativa da situação jurídica de propriedade.182 Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional, Editora Renovar,1999, p. 227.183 André Osório Gondinho, Função social da propriedade. Problemas de direito Civil Constitucional,coord. Gustavo Tepedino, Editora Renovar, 2000, p. 421.184 Op. Cit., 2007, no prelo.

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Nesse sentido, posiciona-se JOSE LUIZ DE LOS MOZOS185 que

compreende a propriedade como direito subjetivo, sem mais limitações do que as

estabelecidas nas leis, de maneira que ao princípio da função social cabe apenas

estabelecer os contornos de suas limitações.

Para LOS MOZOS, a função social da propriedade, por não incidir

diretamente sobre o direito de propriedade, mas sim sobre o destino que se dá às

coisas que compõem seu objeto, não possui aptidão para criar novos conceitos ou

tipos de propriedade.

Como conseqüência deste pensamento, temos que a função social da

propriedade não constitui condição ou requisito para o reconhecimento do direito de

propriedade186, pois constitui elemento que lhe é externo.

Para FRANCESCO MESSINEO187, a função social da propriedade é

elemento externo do direito de propriedade, que não altera seu conteúdo de direito

subjetivo, embora sobre ele incida, porque a atividade do proprietário não deve ser

direta e exclusivamente voltada ao interesse público, mas que exercendo o seu

direito a fim de perseguir seu próprio interesse particular, se ajuste às obrigações

genéricas que lhes são impostas para a obtenção dos fins de interesse público.

185 Op. cit., pp. 199-203.186 Para Pietro Perlingieri, em sentido diverso a Los Mozos, a função social da propriedade constitui aprópria razão pela qual o direito foi atribuído a determinado sujeito (Perfis do direito civil: introduçãoao direito civil constitucional, Editora Renovar, 1999, p. 226)187 Manual de Derecho Civil e Comercial, Ediciones Jurídicas Europa-América, Buenos Aires., s.d.

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133

CARLO MASSIMO BIANCA188, também sustenta que a função social da

propriedade é externa ao direito de propriedade, pois incide sobre o seu conteúdo,

mas com este não se confunde, conforme esclarece o autor:

“D’altro canto, non possono neppure condividersi le vedutte riduttiveque negano in radice l’idoneità del diritto de proprietà ad esseredeterminato nel suo contenuto in relazione ad un interesse esterno.

Il diritto do proprietà à certamente riconosciuto al titolare in tagione ea tutela del suo interesse a godere e disporre del bene, ma ils diritto àsuscettibile di essere ‘limitato’e la limitazione incide sulsuo contenuto.La limitazioni pubblicistiche, sancite per assicurare l’utilità sociale delbene, poi, non sono di per sé imcompatibili con il diritto delproprietario in quanto il bene può soddisfare interessi generali e altempo stesso l’interesse privato del proprietario. L’imposizione di unvincolo per assicurare l’utilità sociale del bene può quindi ben lasciareal proprietario il diritto di goddere e disporre di esso nel propriointeresse (...)”.

Ressaltamos, entre nós, a lição de ORLANDO GOMES, no sentido de que “o

preceito constitucional que atribui função social à propriedade não tem valor

normativo porque não se consubstancia nas normas restritivas do moderno direito de

propriedade, mas simplesmente se constitui no seu fundamento”.189

Para aqueles que se filiam a esta corrente, o princípio da função social da

propriedade não tem valor normativo em si, obviamente, vigorará o princípio da

188 Diritto Civile, VI – La proprietà, Giuffrè editore, Milano, 1999, p. 174.189 Direitos Reais, 14ª Edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1999, p. 110.

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legalidade, no sentido de que caberá à lei traçar, por meio de restrições e limitações,

extrínsecas ao direito de propriedade, o perfil do princípio.

6.3. ABRANGÊNCIA DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO

SOCIAL QUANTO AOS BENS.

A Constituição Federal prevê no artigo 5º, inciso XXII, a garantia do direito

de propriedade, em sentido amplo, que abrange a propriedade de todos os bens e

direitos que compõem o patrimônio do indivíduo, inclusive a propriedade sobre as

coisas corpóreas, regulada pelo Código Civil.

No desenvolvimento de sua teoria sobre a função social da propriedade,

LEON DUGUIT restringiu o seu âmbito de aplicabilidade aos bens de produção, o

que tem gerado certa divergência na doutrina, até os dias atuais.

STEFANO RODOTÁ tem o entendimento de que como a satisfação de

interesses econômicos e coletivos constitui o pressuposto de fato da função social,

somente os bens de produção, por serem capazes de gerar riquezas, tem aptidão

para sofrer o influxo do princípio da função social da propriedade.190

190 Op. Cit., p. 139.

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135

No mesmo sentido, ORLANDO GOMES defende que “só os apedeutas

estendem aos bens de uso o princípio da função social, falando em função social da

propriedade edilícia ou, até mesmo, na dos bens duráveis”.191

Em sentido diverso, posiciona-se ANDRÉ OSÓRIO GONDINHO192,

abarcando sob a égide do princípio, não só os bens de uso individual e familiar,

como também os bens consumíveis, esclarecendo que neste último caso, a

destruição da substância do bem não constitui afronta ao princípio, em razão da

própria natureza e função do bem.

6.4. NOSSO POSICIONAMENTO.

Há uma tendência daqueles que entendem que a função social da

propriedade é elemento interno do direito de propriedade, compondo-lhe, portanto, o

conteúdo, de buscar apoio na doutrina italiana.

Entretanto, é oportuno salientar que a Constituição Italiana, mesmo tendo

incluído a garantia do direito de propriedade com princípio das relações econômicas

e não como direito fundamental, consagrou a lei como instrumento para estabelecer

os limites (e não o conteúdo) do direito de propriedade, com o objetivo de assegurar

a função social, como se depreende de seu texto:

“Constituzione Italiana - Articulo 42:

191 Op. Cit. p.108.192 Op. Cit., p. 427.

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136

La proprietà è pubblica o privata. I beni economici appartengono alloStato, ad enti o a privati.

La proprietà privata è riconosciuta e garantita dalla legge, che nedetermina i modi di acquisto, di godimento e i limiti allo scopo diassicurarne la funzione sociale e di renderla accessibile a tutti.

La proprietà privata può essere, nei casi preveduti dalla legge, esalvo indennizzo, espropriata per motivi d'interesse generale.

La legge stabilisce le norme ed i limiti della successione legittima etestamentaria e i diritti dello Stato sulle eredità”.

Socorre-nos, neste entendimento, por uma perspectiva diversa, PIETRO

BARCELLONA193, para o qual o entendimento de que a função social modificou o

fundamento das atribuições dos poderes proprietários é conseqüência análise

equivocada da Constituição Italiana:

“(...) ritenere che la funzione sociale abbia mutato il fondamentodell’attribuizione dei poteri proprietari e abbia reso positivamenteorientabile anche il potere decizionale del privato, à probabilmente laconseguenza della mancata analisi e approfondimento del pattosociale que sta a fondamento della Costituizone (...). I terminicostitutivi di questo compromesso sociale (...) non sono (...) diretti anegare l’autonomia decisionali dei privati (...). Il contenuto del pattotende piutosto a ridefiniri i termini del rapporto tra Stato come sistemapolitico e sfera delle relazioni economico sociali, e più in particolare astabilire le regole di coesistenza (...) dei diversi soggetti sociali epolitici”.

193 Proprietà (tutela costituzionale), in Digesto delle discipline provatistiche, Sezione Civile, XV, 1997,p. 466.

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137

Não custa lembrar, ainda, que, em nossa Constituição Federal, o direito de

propriedade é garantido não só como princípio da ordem econômica, mas também

como direito fundamental do cidadão, ao contrário do que ocorre na Constituição

Italiana.

Em nosso entendimento, o princípio da função social da propriedade não é

elemento interno estrutural do direito de propriedade, uma vez que o direito de

propriedade, em função da garantia constitucional, mantém um conteúdo mínimo e

invulnerável, que consiste no direito de usar e dispor da coisa.

Ao inserir o princípio da função social também dentre os direitos

fundamentais, é evidente que a Constituição não estabeleceu que a função social

devesse sobrepujar o direito de propriedade, determinando o seu conteúdo, nem

tampouco que os interesses sociais prevalecessem sobre os interesses do

proprietário.

Admitir que o conteúdo do direito de propriedade seja determinado em

relação a um interesse externo que em nada se compatibilize com o interesse do

proprietário, significa, de fato, a supressão completa da garantia prevista na

Constituição.

É certo, pois, que a Constituição pretende que haja uma convergência entre

os interesses particulares do proprietário e os interesses sociais, mas não se pode

olvidar que somente a lei será capaz de delinear as bases e o alcance desta

conciliação, definindo quais os deveres a serem impostos ao proprietário, para que o

exercício de seu direito atenda ao interesse coletivo.

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Parece-nos, portanto, que a imposição de condutas ao proprietário em nome

do princípio da função social da propriedade, deve observar ao princípio da

legalidade, ou seja, caberá a lei estabelecer os contornos definitórios do perfil da

função social da propriedade.

O conteúdo da função social da propriedade, portanto, é determinado pelo

conjunto de normas conformativas do exercício do direito de propriedade pelo seu

titular, não sendo possível admitir, por inconstitucionalidade, quaisquer normas que

tendessem a abolir o direito de propriedade em sua substância.

Também não partilhamos o pensamento de que existe distinção entre a

atividade limitativa ou restritiva do direito de propriedade e a atividade conformativa

do direito de propriedade.

Segundo aqueles que a defendem, as limitações e restrições ao direito de

propriedade seriam elementos externos ao seu conteúdo, enquanto a imposição ao

proprietário de atividades conformativas para o cumprimento da função social da

propriedade, por determinarem ao proprietário a obrigação de perseguir a realização

do interesse constitucionalmente relevante, constituiriam elemento interno do direito

de propriedade.

A nosso ver, não há uma distinção clara entre limitação e conformação, uma

vez que toda conformação, constitui, em última instância, uma limitação. A atividade

conformativa pressupõe a imposição de obrigações ao proprietário, não fazendo

outra coisa, senão limitar o exercício de seu direito.

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Neste sentido, mostra-se útil a passagem de GUILLERMO A. BORBA194,

para reforçarmos o nosso entendimento:

“(...) el derecho de las cosas se ha refinado cada vez más; ello no essino uma consecuencia del progreso de la civilización, pero lasubstancia sigue siendo la misma: la necesidad del hombre deapropiarse y servirse de las cosas creadas por la Naturaleza o por supróprio ingenio.

Las cosas y su apropiación, son pues elementos vitales para la vidadel hombre, para su bienestar, para su cultura intelectual y moral.Pero ocurre que la apropiaciín y goce de uma cosa por um hombre,supone la exclusión de la apropiación y goce de esa misma cosa porlos otros hombres. Y queda así planteado el problema de ladistribuición de la riqueza, esencial em todo tiempo, pero que em elnuestro há tomado uma importância y um dramatismo que no podríadisimularse. Em torno al derecho de las cosas gira laorganización social y política de los pueblos, su estilo de vida,su filosofia”.

Como afirma o autor, a organização social e, consequentemente, seus

interesses, não são intrínsecos ao direito das coisas, mas giram em torno desses.

Deste modo, em nosso entendimento, as normas que visem atender a esses

interesses coletivos são externas ao direito de propriedade, afetando-lhe o exercício,

como manifestação que se faz sentir na organização social.

Entender que o princípio da função social integra o conteúdo do direito de

propriedade e constitui cláusula geral, implica em admitir, que, na ausência da lei, o

julgador possa preencher o conteúdo do princípio e, consequentemente, do próprio

194 Manual de Derechos Reales, 5a Edición, Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 2.003, p. 133.

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direito de propriedade, o que constituiria a supressão total do princípio da tipicidade

dos direitos reais, vulnerando a segurança jurídica do sistema normativo.

Ainda que, por amor ao argumento, se admita que o princípio da função

social da propriedade tivesse força operativa, independente de regra

infraconstitucional, não haveria motivo para negar ao direito de propriedade, igual

atribuição, sobretudo, em nosso ordenamento jurídico constitucional, que alinha o

direito de propriedade e o princípio da função social da propriedade, tanto no artigo

170, ao tratar da ordem econômica, quanto no artigo 5º, ao prever os direitos

fundamentais.

A garantia do direito de propriedade pressupõe, portanto, como já se disse, a

intangibilidade de seu conteúdo mínimo, de modo que o proprietário não venha a ser

expropriado, senão com estrita observância da lei e mediante prévia indenização.

Assim, a garantia do direito de propriedade não significa outra coisa, senão

que este direito não pode ser afetado em suas qualidades essenciais, o que não

impede que se ditem leis, que regulamentem o seu exercício, impondo deveres a

serem cumpridos pelo proprietário, para compatibilizar o exercício de seu direito,

com os interesses sociais, ou melhor dizendo, para atender à sua função social.

Neste sentido, pode-se dizer que o princípio da função social da propriedade

é elemento externo que permeia o direito de propriedade, determinando os

contornos de seu novo perfil, ou como preferem alguns autores, é o fundamento da

garantia constitucional do direito de propriedade.

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Quanto à aplicabilidade em relação aos bens, entendemos que, atualmente,

não se pode limitar a aplicabilidade do princípio da função social aos bens de

produção.

Estendemos a sua incidência também sobre os bens de uso, em que pese a

reprovação de ORLANDO GOMES, pois, como veremos adiante, várias são as

hipóteses em que se reconhece a função social da propriedade imóvel, que se

destina ao uso da família para moradia.

Por outro lado, reconhecemos que esta incidência há de ser restrita, pois

nem todos os bens de uso são naturalmente e/ou juridicamente voltados à

consecução da função social.

Não se pode, por exemplo, entender que o proprietário de um automóvel,

exercendo a sua propriedade sobre o bem, cumpre função social. Nem tampouco

estaria cumprindo função social aquele que guarda no cofre ouro ou valores

mobiliários. E se se pretende forçá-lo, contra a vontade, a desempenhar uma função

social, destrói-se o seu direito de propriedade.

No que se refere aos bens consumíveis, parece-nos que o cumprimento da

sua função social só pode ser concebido, no sentido de que esses bens são

destinados à satisfação de necessidades do homem em sociedade, pois sob o

aspecto do direito subjetivo do proprietário em si, o proprietário poderá consumi-lo,

exclusivamente, de acordo com a sua vontade.

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7. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E

FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO.

A correlação entre a propriedade e o contrato, ou melhor, entre o direito de

propriedade e a liberdade de contratar, encontra as suas origens, na Idade Moderna,

especificamente, no século XIX, com o advento da Revolução Francesa e do

Liberalismo.

Naquele momento histórico, a burguesia em ascensão necessitava do

contrato como instrumento de circulação da propriedade e da riqueza, conforme

ensina JOSÉ MANOEL DE ARRUDA ALVIM NETTO195:

195 A Função Social dos Contratos no Novo Código Civil, p. 21, página eletrônica:www.juspodivm.com.br/novodireitocivil/ARTIGOS/convidados/artigo_funcao_socialdo_contrato_arruda_alvim.pdf -

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“Toda disciplina do século XIX gravitou, fundamentalmente, em tornode duas realidades: a liberdade e, nesse espaço de liberdade, oexercício da atividade econômica através dos contratos e,paralelamente, a garantia do direito de propriedade. Isto é, foi amaneira através da qual a burguesia assumiu o domínio dasociedade e a continuação desse domínio na sociedade se deujustamente através do domínio dos corpos legislativos e, mais ainda,em seqüência a isto, com o domínio da ordem jurídica, tal como elaresolveu moldar essa ordem jurídica para que essa ordem viesse aassegurar continuadamente o prevalecimento dos seus interesses”.

Nesta época, o direito absoluto de propriedade, como o direito do

proprietário, oponível erga omnes, de usar, gozar e dispor da coisa, bem como de

reivindicá-la de qualquer um que injustamente a possua, convive com uma

concepção liberal de contrato, facilitadora da circulação desta propriedade e das

riquezas.

Os princípios que norteavam os contratos eram a liberdade de contratar, o

pacta sunt servanda e a relatividade dos contratos, a consagrar que o contrato

constitui lei entre as partes e só a estas vincula, não beneficiando, nem prejudicando

a terceiros.

Para se atender aos objetivos pretendidos neste Estado Liberal, toda a

construção acerca do direito contratual, parte do pressuposto da igualdade entre as

partes contratantes, vale dizer, consagra uma igualdade formal e não substancial.

Sob o influxo desta sociedade européia não intervencionista é que se

idealizaram as normas sobre contratos no Código Civil de 1916.

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Se, por um lado, a premissa de igualdade formal entre as partes

contratantes promovia as condições necessárias para o desenvolvimento econômico

da burguesia, por outro, acabava por constituir fonte de profundas injustiças,

chegando a surgir, na Europa, “segmentos constituídos por bolsões de miséria”196.

Neste contexto, surge, o Estado Social de Direito que, em relação ao direito

de propriedade cuidou de positivar o princípio da função social em nível

constitucional, inicialmente, nas Constituições do México (1917) e na Constituição de

Weimar (1919).

No Brasil, o princípio da função social da propriedade foi consagrado,

inicialmente, na Constituição Federal de 1946, mas teve sua concretização, na

Constituição Federal de 1988, que, no artigo 5o, ao mesmo tempo que garante o

direito de propriedade (inciso XXII), estabelece que a propriedade atenderá à função

social (inciso XXIII).

MIGUEL REALE197 nos demonstra a primeira correlação entre a função

social da propriedade e a função social do contrato, defendendo que esta se origina

daquela, nos seguintes termos:

“Um dos pontos altos do novo Código Civil está em seu Art. 421,segundo o qual ‘a liberdade de contratar será exercida em razão enos limites da função social do contrato’.

196 José Manoel de Arruda Alvim Netto. A Função Social dos Contratos no Novo Código Civil, p. 29.197 Função Social do Contrato. Disponível na Internet no site:http://www.miguelreale.com.br/artigos/funsoccont.htm. Acesso em 19.05.2007.

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Um dos motivos determinantes desse mandamento resulta daConstituição de 1988, a qual, nos incisos XXII e XXIII do Art. 5º,salvaguarda o direito de propriedade que “atenderá a sua funçãosocial”. Ora, a realização da função social da propriedade somentese dará se igual princípio for estendido aos contratos, cuja conclusãoe exercício não interessa somente às partes contratantes, mas a todaa coletividade”.

A correlação estabelecida nos leva a concluir que o contrato permanece

como instrumento de circulação da propriedade e da riqueza, posto que, antes de

qualquer coisa, possui uma função econômica.

A esse respeito, destacamos o entendimento de HUMBERTO THEODORO

JUNIOR198:

“O contrato é antes de tudo um fenômeno econômico. Não é umacriação do direito. Este apenas, conhecendo o fato inevitável na vidaem sociedade, procura, ora mais, ora menos, impor certoscondicionamentos e limites à atividade negocial. Seria contra anatureza qualquer norma que impedisse o contrato e que o afastassedo campo das operações de mercado, onde a iniciativa pessoal e aliberdade individual são, acima de tudo, a razão de ser do fenômenodenominado contrato.

A função social que se atribui ao contrato não pode ignorar suafunção primária e natural, que é a econômica. (...).

Primeiro, portanto, tem de reconhecer-se a função natural eespecífica do instituto jurídico dentro da vida social; depois é que sepode pensar em limites dessa natural e necessária função. Ocontrato, então, existe para propiciar circulação da propriedade eemanações desta, em clima de segurança jurídica. (...)”.

198 O Contrato e sua Função Social, 2a Edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2004, pp. 98-101.

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Isto significa que os princípios liberais do contrato não se esvaíram, mas

convivem e são relativizados pelos princípios contemporâneos do contrato, a saber:

a boa-fé objetiva, a função social do contrato e o equilíbrio econômico.

Neste ponto, evidencia-se outra semelhança entre a função social da

propriedade e a função social do contrato, na medida em que implicam no

reconhecimento de que tanto o proprietário, no exercício do direito de propriedade,

quanto o contratante, no que se refere à liberdade de contratar, devem atender não

só aos seus interesses particulares, mas também a determinadas restrições, ditadas

por valores que são socialmente apreciáveis.

Além disso, já mencionamos que o conteúdo da função social da

propriedade deve ser definido pela lei, respeitado o seu conteúdo essencial,

garantido pela Constituição.

Do mesmo modo, na fixação do conteúdo da função social do contrato, o

legislador deverá atentar para o fato de que os interesses dos contratante não

podem ser abandonados, sob pena de se suprimir a liberdade de contratar, já que,

embora não sejam os únicos a serem observados, são relevantes.

Destarte, os contratos, a princípio são realizados para serem cumpridos,

cabendo ao legislador estabelecer as normas excepcionais, a autorizar a sua

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alteração ou resolução, conforme elucida JOSÉ MANOEL DE ARRUDA ALVIM

NETTO199:

“Essa essência do direito de propriedade, objeto de proteçãoconstitucional, sugere, em relação aos contratos, conquanto hojepermeado o sistema pela função social que devem desempenhar,que não nos devemos esquecer de que os contratos existem paravincular as pessoas e que devem, fundamentalmente, ser cumpridos.Só diante das exceções consagradas em lei, é que se deverãoalterar ou desfazer o contrato, da mesma forma, que o direito depropriedade existe também para o dono, do qual não pode, sic etsimpliciter, vir a ser privado. Por outras palavras, restrições poderãoocorrer, que, se efetivadas, levariam à ignorância do direito depropriedade, como também, mutatis mutandis, se se vier emprestaràs expressões função social do contrato uma dimensão tal, que essapoderia vir a ser destrutiva e conduzir à ignorância da própria razãode ser do contrato”.

Portanto, admite-se uma intervenção do Estado na esfera contratual, para a

consagração da socialidade, mas a aplicação dos princípios contemporâneos, dentre

os quais, o da função social, deve ser restrito à aplicação prática das cláusulas

gerais, de que lançou mão o legislador, para definir as hipóteses de revisão dos

contratos e o sistema de vícios e nulidades do negócio jurídico.200

199 José Manoel de Arruda Alvim Netto. A Função Social dos Contratos no Novo Código Civil, p. 29.200 No campo do direito contratual, a adoção do dirigismo contratual em favor da socialidade, suamaior expressão na consagração de princípios como o da função social do contrato (Artigo 421 doCódigo Civil) e da boa-fé objetiva (Artigo 422 do Código Civil). São expressões desses novos valores,que objetivam também, a redução das desigualdades materiais, os Artigos 157 (Teoria da Lesão) e478 (resolução por onerosidade excessiva), bem como a previsão de nulidade das convenções queafrontarem os princípios da função social dos contratos e da propriedade (artigo 2.035, parágrafoúnico do Código Civil).

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Outra aproximação entre a função social da propriedade e a função social do

contrato está no debate da doutrina sobre serem intrínsecas ou extrínsecas,

respectivamente, ao direito de propriedade e ao contrato.

Entretanto, em relação ao direito de propriedade, as correntes doutrinárias

excludentes, possivelmente, porque na relação jurídica que dele se origina, dada a

sua oponibilidade erga omnes, o sujeito passivo vem a ser a coletividade de pessoas

que devem respeitar o direito do proprietário.

Por esta razão, ou se admite que o princípio da função social é intrínseco ao

direito de propriedade, atingindo o conteúdo dos direitos do proprietário,

considerando que o cumprimento de deveres perante a coletividade compõe a

própria estrutura do direito de propriedade, ou então, entende-se que a função social

é externa ao direito de propriedade, porque incidente sobre a sua exteriorização, que

se dá pelo exercício.

Já no que se refere à função social do contrato, parece-nos ser possível

sustentar a existência de suas “funções sociais”: a função social intrínseca e a

função social extrínseca.

Tal conciliação somente parece ser possível, em razão de se encontrar, na

relação jurídica, sujeitos ativos e passivos determinados (contratantes), que

celebram negócio jurídico, inserido no âmbito de universo maior que é a coletividade.

Neste sentido, a função social intrínseca estaria relacionada com a avaliação

do contrato no âmbito da relação entre as partes contratantes, para, constatando-se

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a inobservância da boa fé-objetiva, a existência de vícios de vontade, hipóteses de

nulidade ou onerosidade excessiva, aplicar as normas excepcionais para resolver

ou, se assim for permitido, revisar o contrato.

Veja-se, neste sentido o entendimento de EVERALDO AUGUSTO

CAMBLER201:

“Cuidar da função social do contrato sob o aspecto intrínsecosignifica avaliá-la na dimensão do vínculo estabelecido entre ospróprios integrantes da relação jurídica. Como exemplo,mencionamos o estabelecimento da cláusula penal progressiva,denunciadora do interesse de uma das partes no descumprimento docontrato, o que, evidentemente, desnatura sua causa final precípua,qual seja, o cumprimento”.

A nosso ver, o exemplo apontado é esclarecedor, para se entender o

instituto, afastando a concepção de que a função social intrínseca atua no sentido de

proteger a parte contratual mais fraca, atuando para promover a igualdade entre as

partes202.

Não devemos esquecer, entretanto, que, ao menos no âmbito das relações

civis, o pressuposto é de paridade entre as partes.

201 Comentários ao Código Civil, Volume III, Biblioteca Digital Forense 2.0., p.6.202 Paulo Nalin in A função social do contrato no futuro Código Civil Brasileiro, Revista de DireitoPrivado, São Paulo, RT, vol. 12, p.54, out./dez. 2002 se manifesta no sentido de que no aspectointrínseco a função social estaria ligada à observância dos princípios da igualdade material, equidadee boa-fé objetiva , por parte dos contratantes.

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Outrossim, o objetivo do contrato não é promover a igualdade dos

contratantes, já que não se trata de instrumento de assistencialismo, mas sim meio

de circulação da riqueza, que pressupõe, em qualquer hipótese, partes e interesses

contrapostos.

Note-se, que no exemplo citado por EVERALDO AUGUSTO CAMBLER, a

cláusula pena progressiva permite vislumbrar o interesse no inadimplemento, o que,

independentemente de quem sejam as partes contratantes, não é um resultado

desejado pela sociedade, principalmente, porque as obrigações nascem para serem

cumpridas e, assim, extinguirem-se.

Já no que se refere à função social extrínseca consiste em analisar o

contrato sob a ótica das repercussões do negócio jurídico no âmbito das relações

sociais, o que significa um temperamento do princípio da relatividade dos efeitos do

contrato.

Mais uma vez, nos é útil a lição de EVERALDO AUGUSTO CAMBLER203:

“Outro é o sentido da função social extrínseca. Nesta, o contrato,tanto em sua formulação clássica como na standard, é avaliado emrazão das implicações positivas ou negativas sentidas junto àcoletividade, que se beneficia ou não das características formais emateriais do negócio, da circulação de riquezas, da garantia docrédito etc”.

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Ainda quanto ao alcance da função social do contrato, sob o aspecto

extrínseco, destacamos a seguinte assertiva de HUMBERTO THEODORO

JUNIOR204:

“Nessa ótica, sem serem partes do contrato, terceiros têm derespeitar seus efeitos no meio social, porque tal modalidade denegócio jurídico tem relevante papel na ordem econômicaindispensável ao desenvolvimento da sociedade. Têm também osterceiros direito de evitar reflexos danosos e injustos que o contrato,desviado de sua natural função econômica e jurídica, possa ter naesfera de quem não participou da pactuação”.

Concordamos com o referido autor, acerca desta outra perspectiva da

função social do contrato sob o aspecto extrínseco, como via de dupla direção,

sobretudo no ponto em que inclui no âmbito da função social, também, a proteção os

contratantes para que o cumprimento do contrato não venha a ser obstado por

terceiros.

Vale dizer, ainda, que a função social do contrato, neste segundo aspecto,

não quer significar oponibilidade erga omnes do contrato em face de terceiros, pois

estamos a tratar de direitos obrigacionais, portanto, pessoais.

Na hipótese de terceiros virem a frustrar o cumprimento do contrato, a

hipótese será a mesma de que poderia se servir o terceiro em face do contratante,

ou seja, a solução em perdas e danos.

203 Op. Cit., p. 7.204 Op. Cit., p. 32.

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Cuidamos de tecer estes esclarecimentos, porque julgamos que a função

social do contrato, principalmente, mas não só, no aspecto extrínseco, exerce

influência, ainda que indireta, na medida em que não só a disposição, mas todos os

demais atributos inerentes à propriedade pressupõem a realização de contratos pelo

proprietário da coisa.

Essencial, agora, debruçarmos sobre as normas que consagram o direito de

propriedade e as que delineiam seu perfil, determinando o conteúdo da função social

da propriedade.

8. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO

CÓDIGO CIVIL.

Percebe-se, pela leitura do Novo Código Civil, a preocupação com a

consolidação do valor socialidade e com a ruptura em relação aos valores liberais,

tais como individualismo e a igualdade formal, não só no que se refere ao direito das

coisas.

Assevera JOSE MANOEL DE ARRUDA ALVIM NETTO que:

“No que de perto diz respeito ao direito das coisas avulta a funçãosocial da propriedade, tendo em vista a disciplina constante doCódigo Civil -- ao lado de legislação extravagante, sintonizada com omesmo valor, v. g., como o Estatuto da Cidade --, com vistas a‘contribuir’ para que essa função seja desempenhada, na esteira da

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concretização do mandamento constitucional da vigente Constituiçãoe anteriores, e, ainda, em consonância com direito comparado,inclusive, em muitos países, já a partir de normas de porteconstitucional”.205

Pode-se notar que o legislador presta sua contribuição para a fixação de

parâmetros que permitam tornar mais precisos os contornos do princípio da função

social da propriedade, ora pela inclusão de dispositivos, sem correspondência no

anterior código civil, ora pela realização de modificações no conteúdo de alguns

dispositivos em relação ao Código Anterior.

A primeira indicação de modificação do perfil do direito de propriedade, em

razão do princípio da função social, pode ser percebida, se compararmos o artigo

1.228 do Código Civil em vigor, com o artigo 524 do Código de 1916.

A diferença a que se faz referência não diz respeito à definição do direito de

propriedade, contida no caput do artigo 1.228 do Código Civil que, de forma

semelhante ao artigo 524 do Código Civil, adotou a técnica de descrever, de forma

analítica, as faculdades conferidas ao proprietário, mas sim aos parágrafos que

foram acrescentados ao dispositivo.

O § 1º do artigo 1.228 da Lei nº 10.406/02 dispõe que o direito de

propriedade deve ser exercido em consonância com as finalidades econômicas e

sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em

lei especial, o meio ambiente (flora, fauna, etc.) e o patrimônio histórico e artístico.

205 Op. Cit., no prelo.

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Segundo JOSÉ MANOEL DE ARRUDA ALVIM NETTO, quando a primeira

parte do § 1º do artigo 1.228 estabelece que o exercício do direito de propriedade

deve ocorrer em consonância com as finalidades sociais e econômicas, pode-se

enxergar “elementos negativos”, porquanto delimitadoras do direito de

propriedade”.206

MARCO ANTONIO S. VIANA, caminhando no mesmo sentido, observa que

“a intervenção se faz no exercício do direito, não no direito em si” 207, porque a

propriedade privada é garantida e deve ser respeitada, mas o seu exercício deve

estar voltado para o bem comum.

Nossa convicção, também é de que a norma não afeta o conteúdo, mas

apenas o exercício do direito de propriedade, já que não subtrai ao proprietário o

direito de uso, gozo e disposição da coisa.

Na segunda parte do dispositivo, a função social da propriedade se

manifesta, por meio da imposição de uma obrigação ao proprietário, consistente em

exercer o seu direito, de modo que sejam preservados, o meio ambiente e o

patrimônio cultural, na forma estabelecida nas leis especiais pertinentes.

O objetivo da norma é a colaboração do proprietário, para a preservação do

patrimônio cultural e a imposição do dever de preservação do meio ambiente.

206 Ibidem.207 Op. Cit. p. 40.

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155

Uma vez mais, entendemos que não há incidência da norma no conteúdo do

direito de propriedade, mas apenas são impostos determinados deveres, quanto ao

modo de exercício do direito de propriedade, até porque o dever de preservação do

meio ambiente e de colaboração para a preservação do patrimônio cultural é

imposto a todas as pessoas e não somente ao proprietário.

Basta ver que a Constituição Federal, no artigo 216, § 1º estabelece que o

Poder Público promoverá e protegerá, com a colaboração da comunidade, a

preservação do patrimônio cultural, enquanto que o artigo 225 do Texto Maior impõe

ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente.

No § 2º do artigo 1.228 do Código Civil há uma proibição de que o

proprietário, no exercício de seu direito de propriedade, pratique atos que não lhe

tragam qualquer comodidade e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem .

Assim, se o proprietário agir ou exercer o direito de propriedade com propósitos

emulativos, estará cometendo ato ilícito.

A norma foi inspirada na teoria do abuso de direito, segundo sua visão

clássica e subjetivista. Portanto, para a sua configuração não basta que, no

exercício de seu direito de propriedade o proprietário tenha praticado ato que, além

de não lhe ter auferido qualquer comodidade ou utilidade, tenha causado dano a

terceiros. É mister que o ato tenha sido praticado com o animus nocendi, ou seja,

com a intenção de causar o prejuízo.

Somente se estiverem presentes todos esses elementos, inclusive a

intenção da prática do ato, é que o prejudicado poderá bater às portas do Poder

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156

Judiciário a fim de obter tutela jurisdicional para exigir indenização ou a conformação

do exercício da propriedade aos termos da lei (Artigo 1.228, § 1º do Código Civil).

O § 3º do artigo 1.228 do Código Civil refere-se à desapropriação208 e a

requisição por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social e da

requisição administrativa, em caso de perigo público iminente.

Não se justifica, a nosso ver a inclusão deste parágrafo no artigo 1.228 do

Código Civil, sobretudo, com a redação que lhe foi dada que, pode conduzir, os

menos avisados ao entendimento de que tais intervenções prescindiriam de

indenização.

Como já nos referimos anteriormente, a desapropriação constitui intervenção

que desconfigura o conteúdo mínimo do direito de propriedade, na medida em que

retira do proprietário o direito ao uso e disposição da coisa.

No entanto, nestes casos, há uma garantia econômica do direito de

propriedade (Artigo 5º, incisos XXIV e XXV da Constituição Federal), que consiste na

obrigatoriedade do pagamento de indenização, nem sempre prévia, como veremos,

mas justa, no caso de desapropriação e ulterior, condicionada à ocorrência de dano,

no caso da requisição administrativa.

208 Conforme já mencionamos ao tratar da evolução do direito de propriedade no Brasil adesapropriação é regrada por legislação específica. A desapropriação por utilidade ou necessidadepública está regulada pelo Decreto Lei nº 3.365/41, enquanto a desapropriação por interesse social,regula-se pela Lei nº 4.132/62. Já a legislação sobre requisição administrativa encontra-se no DecretoLei nº 7.315-A/45 e no decreto Lei nº 2/66.

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157

Não comentaremos, por ora, dos §§ 4º e 5º do artigo 1.228, nem dos artigos

1.238 a 1.242, todos da Lei nº 10.406/02, que serão objeto, em tópico específico

dada a sua relevância.

Por força do artigo 1.275, inciso III do Código Civil, o abandono, constitui

causa de perda da propriedade, desde que reste demonstrado, por meio de atos

inequívocos, a intenção de não mais ser proprietário, daquele que deixou a coisa.

Já estava prevista no Código Civil revogado a hipótese de arrecadação de

bem imóvel urbano abandonado pelo dono, pelo Estado-membro, sendo que

passados dez anos, o bem passaria ao seu domínio.

A Lei nº 10.406/02, no caput do artigo 1.276, manteve a previsão de

arrecadação, que não mais será realizada pelo Estado, mas sim pelo Município,

reduzindo o prazo para que passe a integrar o domínio público, de dez para três

anos.

A redução de prazo, a nosso ver, é reflexo do novo perfil dado ao direito de

propriedade em decorrência do princípio da função social da propriedade, que,

conforme já nos referimos, confirma que o direito de usar, deferido ao proprietário,

não abrange a faculdade de não usar.

No mesmo artigo, mais especificamente no § 2º, cria-se uma presunção iure

et iure de intenção de abandono, caso, cessados os atos possessórios, o

proprietário deixe de pagar os tributos que recaiam sobre o imóvel urbano ou rural, o

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que autorizaria a imediata incorporação ao patrimônio do Município, no caso de

imóvel urbano, e da União, no caso de imóvel rural.

O dispositivo merece um estudo mais cauteloso, mas a princípio parece que

o dispositivo é inconstitucional, não só porque desfigura o núcleo essencial do direito

de propriedade, sem a necessária certeza quanto à intenção de abandono do bem,

como também porque a arrecadação assumiria caráter confiscatório, vedado pelo

inciso IV da alínea b do inciso III do artigo 150 da Constituição Federal.209

No que tange às normas relativas ao direito de vizinhança, o novo Código

não se limitou a estabelecer regras recíprocas, destinadas à resolução dos conflitos,

eventualmente, gerados em razão da coexistência de direitos privados.

No artigo 1.277 do Código Civil, por exemplo, após ter concedido ao

proprietário ou possuidor o direito de fazer cessar as interferências prejudicais à

segurança, sossego e saúde pela utilização da propriedade vizinha, fixou-se, dentre

os critérios de aferição da prejudicialidade, no parágrafo único, além da natureza da

utilização e dos limites de tolerância dos moradores da vizinhança, a análise da

localização do prédio, segundo a observância das normas de zoneamento urbano,

que constituem instrumento de concretização da função social das cidades, como

trataremos adiante.

209 Oportuno lembrar ainda que o dispositivo pode gerar situações injustas com a perda dapropriedade em hipóteses de inadimplemento dos tributos por motivos de força maior, ou em razão dediscussão judicial ou administrativa em relação ao tributo.

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Manifesta-se, ainda, o atendimento ao interesse público, em hipóteses em

que se obriga o proprietário a suportar determinado ônus sobre a sua propriedade,

mediante a devida indenização, em nome do interesse ou da utilidade pública, como

se depreende do disposto nos artigos 1.278 e 1.286 do Código Civil.210

Percebe-se a influência do princípio da função social da propriedade na

significativa evolução que se experimentou, no que se refere ao uso anormal (ou

nocivo, como denominado no anterior código) da propriedade.

Por fim, cita JOSE MANOEL DE ARRUDA ALVIM NETTO211, o artigo 1.309

do Código Civil, que possui duplo objetivo, pois:

“Também visando à proteção do meio ambiente, mascircunscritamente ao âmbito do direito de vizinhança, o Código Civil,especificamente limitando o direito de construir e,conseqüentemente, o direito de propriedade, estabelece que ‘São

210 Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar asinterferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pelautilização de propriedade vizinha.Parágrafo único. Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da utilização, alocalização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e oslimites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança.Art. 1.278. O direito a que se refere o artigo antecedente não prevalece quando as interferênciasforem justificadas por interesse público, caso em que o proprietário ou o possuidor, causadordelas, pagará ao vizinho indenização cabal.Art. 1.286. Mediante recebimento de indenização que atenda, também, à desvalorização da árearemanescente, o proprietário é obrigado a tolerar a passagem, através de seu imóvel, de cabos,tubulações e outros condutos subterrâneos de serviços de utilidade pública, em proveito deproprietários vizinhos, quando de outro modo for impossível ou excessivamente onerosa.Parágrafo único. O proprietário prejudicado pode exigir que a instalação seja feita de modomenos gravoso ao prédio onerado, bem como, depois, seja removida, à sua custa, para outrolocal do imóvel.Observação: No que se refere ao artigo 1.286, parece-nos que o proprietário não fará jus aorecebimento de qualquer indenização, caso os cabos, tubulações e condutos passem emprofundidade tal que não lhe haja interesse de impedir, por força do disposto, no artigo 1.229do Código Civil.211 Op. Cit., no prelo.

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proibidas construções capazes de poluir, ou inutilizar, para usoordinário, a água do poço, ou nascente alheia, a elas preexistentes’(art. 1.309)”.

8.1. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E FUNÇÃO

SOCIAL DA POSSE.

Antes do advento do novo Código Civil, predominava a concepção de

proteção da situação possessória em razão do direito de propriedade, pois segundo

lição de SILVIO RODRIGUES “ a posse obtém proteção por ser uma exteriorização

do domínio. Assim, protegendo a posse, está o legislador, no mais das vezes,

protegendo o proprietário, porque este é quem, no geral desfruta a posse”.212

No entanto, com o advento do novo Código Civil, esta concepção se mostra

insuficiente para abranger todas as situações possessórias, sobretudo, pela

consagração do princípio da socialidade.

Por outro lado, manteve-se, na lei no 10.406/02, um conceito de posse que

guarda relação com o exercício do direito de propriedade, ou seja, a posse, tal como

prevê a lei, caracteriza-se pela revelação, de fato, dos poderes inerentes à

propriedade.

212 Op. Cit., pp. 54/55. O trecho foi retirado de obra já atualizada segundo a Lei nº 10.406/02. Emnosso entendimento, a posse assumiu nova roupagem que, embora não tenha retirado o caráter deproteção ao proprietário, mas em razão da socialidade, outros valores que ensejarão um novo perfiltambém à questão da proteção possessória.

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Note-se que a proteção possessória, em si mesma, não está condicionada

pelo cumprimento da função social, conforme esclarece ERNANI FIDÉLIS DOS

SANTOS213:

“Tampouco se admitem questionamentos sobre a posse emcircunstâncias que importarem descumprimento de determinaçõeslegais sobre o uso do bem possuído, não se podendo questionar, porexemplo, a defesa possessória do molestado sobre a produtividadedo imóvel, conforme condicionada pela lei.

A posse é fato puro, bastando que se apresente pelo exercício depoderes inerentes à propriedade em posição normal da coisa, por elaprópria revelada, sem questionamentos sobre cumprimento deobrigações e deveres impostos por leis de exigências de ordempública, como seria a hipótese de aproveitamento determinado doimóvel. Ainda que tal aproveitamento não ocorra e, mesmo que sedesatendam normas de proteção do solo ou do ambiente, respeita-sea posse como tal”.

A socialidade, então, se faz sentir, no âmbito do código civil em vigor,

através da consagração de uma espécie de posse diferenciada da posse como

exteriorização da propriedade, qualificada por requisitos determinados na lei e,

portanto, externos.

A falta de previsão expressa da função social da posse na Constituição

Federal tem conduzido a doutrina ao entendimento de que a função social da posse

constitui princípio constitucional implícito, fundado em princípios como o da

213 Comentários ao Novo Código Civil - Volume XV, Biblioteca Forense Digital 2.0, p. 25

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dignidade humana e na busca da sociedade justa, redução das desigualdades

sociais e erradicação da pobreza.

Neste sentido, assim escreveu ANA RITA VIEIRA ALBUQUERQUE214

“A função social da posse como princípio constitucional positivado,além de atender à unidade e completude do ordenamento jurídico, éexigência da funcionalização das situações patrimoniais,especificamente para atingir às exigências de moradia, deaproveitamento do solo, bem como aos programas de erradicação dapobreza, elevando o conceito da dignidade da pessoa humana a umplano substancial e não meramente formal. Ë forma ainda de melhorconcretizar os preceitos infraconstitucionais relativos ao temapossessório, já que a funcionalidade pelo uso e aproveitamento dacoisa juridiciza a posse como direito autônomo e independente dapropriedade, retirando-a daquele estado de simples defesa contra oesbulho, para se impor perante todos.

(...). Justamente em um sistema jurídico que tem por fim a pessoahumana, daí resultando a natureza teleológica dos argumentossistemáticos, não se pode deixar de ter incluída, implicitamente,como princípio constitucional positivado, a função social da posse”.

Parece-nos, entretanto, que podemos até admitir que a função social da

posse se revele pelos princípios invocados pela ilustre autora, mas, neste caso,

assim como ocorre em relação ao princípio da função social da propriedade, caberá

ao legislador infra-constitucional pré-estabelecer, quais sejam os requisitos de que a

posse deve se revestir para que nela se reconheça o cumprimento da função social,

bem como as conseqüências jurídicas decorrentes desse cumprimento.

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Não se pode olvidar que a posse, quando autônoma, isto é, quando

desvinculada do direito de propriedade, com este convive de algum modo, nem

tampouco que a garantia do direito de propriedade também é direito fundamental,

expressamente previsto na Constituição Federal.

Neste sentido, diante da propriedade que, nos termos da lei, cumpra função

social, a posse não poderá prevalecer, inclusive porque, nesta hipótese, o direito de

propriedade também atende ao princípio da dignidade humana e às exigências de

moradia e uso e ocupação do solo.

Assim, a nova roupagem do direito de propriedade decorre de sua

convivência com o valor da função social da propriedade, mas também resulta da

confrontação de espaço com a função social da posse, que constituem situações

possessórias qualificadas por requisitos externos, determinados pelo legislador

como socialmente relevantes.

Neste sentido ensina JOSÉ MANOEL DE ARRUDA ALVIM NETTO215:

“O Código Civil acabou por emprestar efeitos significativos à posse,quando a essa posse estejam somados outros valores (extrínsecos àposse, propriamente dita, à luz do conceito que está no art. 1.196 doCódigo Civil), tendo-o feito, o legislador, em detrimento do direito depropriedade; ou, mais precisamente, em detrimento de uma situaçãoda propriedade em relação à qual o legislador terá vislumbrado umnão exercício ativo do que pode ser feito a partir da posse (inércia,

214 Da Função Social da Posse e sua conseqüência frente à situação proprietária, Lúmen Júris, 1a

Edição, Rio de Janeiro, 2002, p. 40215 Op. Cit., no prelo.

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164

descuido em relação à coisa, etc.) pelo proprietário, e, simultânea eparalelamente, a ocorrência de atividade do possuidor, com criaçãode riqueza e utilidade”.

Oportuno destacar que a função social da posse, ao mesmo tempo em que

constitui elemento integrante da própria noção de função social da propriedade,

colide com o direito de propriedade, no sentido de que é causa de estabilização do

mesmo direito em novas mãos, que cumprem a função social, não havendo,

portanto, uma sobreposição entre os conceitos de função social da propriedade e

função social da posse.

Uma vez mais, convém transcrever as palavras de JOSÉ MANOEL DE

ARRUDA ALVIM NETTO, referindo-se ao posicionamento da função social da posse

em nossa ordem jurídica:

“A função social da posse, nos quadros do sistema normativo, é umsubproduto de uma das facetas da função social da propriedade e,dentro desta se abriga. Essa a razão de termos presente, que osfatos ocorrentes como função social da posse, são tendentes adesembocar na aquisição do direito de propriedade, cessando, parao caso, por isso mesmo, situação possessória e passando a existirsituação de direito de propriedade, com a perda dessa titularidade,ou desse direito, pelo precedente proprietário”.216

216 Op. Cit., no prelo.

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Colocadas estas questões, mister se faz analisar acerca dos dispositivos

legais contidos na Lei nº 10.406/02, que guardam pertinência com o tema ora

abordado.

O primeiro, e talvez o mais polêmico, dispositivo que evidencia o principio da

função social da posse é o artigo 1.228, §§ 4º e 5º do Código Civil217.

Antes de qualquer coisa, cumpre ressaltar um aspecto de fundamental

importância para a operacionalidade do instituto, referente a um dos requisitos

exigidos, para a aquisição do direito de propriedade em razão da função social da

posse.

O parágrafo 4º do artigo 1.228 da Lei nº 10.406/02 exige a posse ininterrupta

e de boa-fé, por mais de 5 (cinco) anos218. No entanto, na prática, parece difícil a

caracterização da posse de boa-fé, quando um número considerável de pessoas

ocupa extensa área, na medida em que, em regra, aos possuidores caberá provar

217 O Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal, na Jornada de Direito Civil desezembro de 2002, editou o Enunciado 83 que afasta a aplicabilidade dos dispositivos às açõesreivindicatórias movidas pelo Poder Público.218 O artigo 2.029 do Código Civil alonga para 7 (sete) anos o lapso temporal necessário para aaquisição da propriedade pela usucapião extraordinária e ordinária com prazos atrofiados, prevista,respectivamente, nos parágrafos únicos dos artigos 1.238 e 1.242, durante os primeiros dois anos devigência do Novo Código Civil. O artigo 2.030 estende a dilatação ao tempo necessário para aaquisição da propriedade, por meio da “desapropriação” prevista nos §§ 4º e 5º do artigo 1.228.Estamos de acordo com o Prof. Arruda Alvim, no sentido de que este aumento de 2 (dois) anos noprazo, no primeiro biênio de vigência do Código Civil, constitui uma chance derradeira para que oproprietário abandone a sua inércia, destinando seu bem ao cumprimento da função social oupromovendo a sua realização por outrem.

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que ignoravam, nos termos do artigo 1.201 do Código Civil, o vício que impede a

aquisição da gleba219.

Outra tormentosa questão que devemos enfrentar a respeito do dispositivo

sob comentário, consiste em determinar a natureza jurídica do instituto.

EDUARDO CAMBI220 entende que o instituto constituiria uma espécie de

usucapião coletivo, posicionamento que, a nosso ver, encontra obstáculo

intransponível, por que a perda da propriedade se dá mediante o pagamento de

justa indenização, o que é incompatível com o instituto da usucapião.

De outro lado, situa-se corrente que defende que o dispositivo cria nova

espécie de desapropriação, dentre os quais MARCO AURÉLIO S. VIANA221, que

afirma que “estamos, aqui, diante de uma desapropriação indireta em favor do

particular”, fundamentando seu posicionamento no fato de o proprietário ser privado

da coisa esbulhada, mediante recebimento de indenização222.

219 Embora não seja requisito para a aquisição da propriedade nos termos do artigo 1.228, §§4º e 5º,havendo justo título, o que, repise-se, não é necessário, haverá presunção de boa-fé, nos termos doartigo 1.202 do Código Civil.220 É uma espécie de “usucapião especial ou coletivo”, cujos requisitos são: a) área extensa; b) posseininterrupta e de boa-fé por mais de cinco anos (se, porém, a posse tiver início antes da vigência doNCC, o prazo de cinco anos será acrescido de mais dois anos; art. 2.030); c) número considerável deocupantes; d) realização conjunta ou separada de obras e serviços que o juiz entenda serem deinteresse social e econômico. (Aspectos Inovadores da Propriedade no Novo Código Civil -http://www.mundojuridico.adv.br/html/artigos/documentos/texto452.htm221 Op. Cit., p.49. 222 No mesmo sentido: “ À primeira vista, a figura acima plasmada parece caracterizar-se comoautêntica desapropriação, pois não se aparenta à aquisição negocial (compra e venda), nem aousucapião, que prescinde de contrapartida econômica. Muito menos pode ser equiparada à acessão.A referência à necessidade de pagamento de justa indenização aproxima a novidade legislativa aomodelo expropriatório, mais precisamente em sua modalidade indireta, o que é reforçado pelacircunstância da aquisição do domínio ocorrer de forma compulsória. (A posse e a Propriedade noNovo Código Civil. Edílson Pereira Nobre Júnior, RDP 15/22, Julho-Setembro 2.003). No mesmoartigo, o autor crítica a concentração das decisões nas mãos do magistrado, sem qualquer controle

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CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA entende que elas são inconstitucionais,

seja porque a desapropriação é matéria constitucional, não podendo ser instituída

nova hipótese não prevista na Constituição Federal, por meio de lei ordinária, seja

porque embora preveja o pagamento de justa indenização, não requer que esta seja

prévia. Além disso, também não estabelece quem seria responsável pelo pagamento

da referida indenização.223

A nosso ver, outros pontos são relevantes. No caso das desapropriações, a

transferência compulsória da propriedade particular, se dá em favor do Poder

Público expropriante, o que, no caso em tela, não ocorre, já que a sentença constitui

título para o registro da propriedade em nome de particulares (possuidores).

Saliente-se, outrossim, que, se tomarmos a questão como desapropriação,

não há como negar que ao juiz caberia, nesses casos apreciar o juízo de

conveniência e oportunidade para a desapropriação, que é vedado pela legislação

própria, mais especificamente pelo artigo 9º do Decreto Lei nº 3.365/41.224

Por fim, resta mencionar que nossa legislação já contemplava a

desapropriação de terrenos urbanos ocupados por mais de 10 (dez) famílias, que

do Executivo e do Legislativo, bem como afirma que não é razoável que a indenização seja impostaao Poder Público, em razão do mesmo não ter integrado a relação jurídica processual.223 Crítica ao anteprojeto de Código Civil. Revista forense, vol. 242, abril-maio-junho/1973, pág. 21-22.224 Art. 9o Ao Poder Judiciário é vedado, no processo de desapropriação, decidir se se verificam ounão os casos de utilidade pública.

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nele tivessem construído habitações, sem qualquer exigência de extensão ou tempo

de posse, nos termos do artigo 2º, inciso IV da Lei nº 4.132/62.225

De forma mais simples, FRANCISCO EDUARDO LOUREIRO226, entende

que se trata de “alienação coativa do imóvel improdutivo àqueles que lhe deram

destinação social”, escapando a todos os inconvenientes referentes às questões

suscitadas acima.

Entendemos que este entendimento, além de não superar todas as demais

questões que suscitaremos a seguir, também seria inconstitucional, pois estabelece

uma restrição ao núcleo mínimo do direito de propriedade, ao obrigar o proprietário a

dispor do bem, em favor de outro particular.

A definição da natureza jurídica do instituto previsto nos §§4 º e 5º do artigo

1.228 do Código Civil é bastante relevante, ainda, sob outro aspecto. Aqueles que o

admitirem como espécie de usucapião, forçosamente deverão acolher a soma das

posses do antecessor e do sucessor, tal como previsto pelo artigo 1.243 do Código

Civil. Já às correntes que sustentam se tratar de desapropriação ou mesmo de

alienação coativa, a nosso ver, não restará outra alternativa, senão negar vigência à

aplicação do referido dispositivo nas hipóteses do artigo 1.228, §§ 4º e 5º da Lei nº

10.406/02.

225 Art. 2º Considera-se de interesse social: (...) IV - a manutenção de posseiros em terrenos urbanosonde, com a tolerância expressa ou tácita do proprietário, tenham construído sua habitação,formando núcleos residenciais de mais de 10 (dez) famílias226 Op. Cit., p. 180.

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No que se refere à natureza da sentença referida no dispositivo, também

haverá divergência entre aqueles que entendem que o instituto é usucapião e

aqueles que entendem se tratar de desapropriação, ou mesmo de alienação

compulsória. No primeiro caso, haver-se-á que admitir que a sentença seja

declaratória, enquanto nos demais casos, a sentença deverá ser tomada por

constitutiva227, na medida em que o pagamento da indenização será considerado

condição ou pressuposto para a aquisição da propriedade228.

A questão reside, sob nossa ótica, em analisar se o pagamento da

indenização229 é pressuposto para a aquisição da propriedade, ou seja, analisar se,

estando presentes os requisitos (tempo, extensão, número de posseiros e obra e

serviços de interesse social e econômico), os posseiros adquirem a propriedade,

restando ao antigo proprietário o direito de satisfazer o seu crédito, ou se a

indenização é requisito que se acresce aos demais para a efetiva aquisição da

propriedade pelos possuidores.

Em nosso entendimento, o pagamento de indenização deve ser considerado

requisito que se acresce aos demais para que se defira a propriedade aos

227 A aquisição do imóvel nos termos dos §§ 4º e 5º do artigo 1.228 do Código Civil, há que serconsiderada, independentemente da natureza da sentença, modo de aquisição originária dapropriedade, pois os possuidores lhe adquirem a propriedade livre de reivindicação ou de quaisquerônus que, por ventura, recaiam sobre o imóvel.228 O entendimento de que o pagamento é pressuposto ou condição para a aquisição do direitodecorre de ter o legislador, no parágrafo 5º do artigo 1.228 do Código Civil, disposto que “pago opreço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores”.229 Ainda no que se refere à indenização, cumpre ressaltar que o dispositivo legal não estabeleceuqualquer parâmetro que o juiz deva observar quanto ao prazo para o seu pagamento por parte dospossuidores. Assim, aliás, restou sedimentado pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho daJustiça Federal aprovado na Jornada de Direito Civil, através do Enunciado 84: “A defesa fundada nodireito de aquisição com base no interesse social (art. 1.228, §§ 4º e 5º, do novo Código Civil) deveser argüida pelos réus da ação reivindicatória, eles próprios responsáveis pelo pagamento daindenização”.

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possuidores, pois admitir-se o contrário seria tolher o direito de propriedade,

constitucionalmente previsto, mediante mera possibilidade de uma contrapartida

econômica.

Daí, decorreriam duas conseqüências: a) se a propriedade só se adquire

com o pagamento da indenização, a sentença que serve de título para o registro é

de natureza constitutiva; b) se o pagamento não for efetuado, em vez de proferir a

sentença que sirva de título, o juiz deverá julgar procedente a ação reivindicatória.

Cumpre então questionar: Qual seria a situação jurídica dos possuidores,

nos casos em que a ação reivindicatória fosse julgada procedente pelo

inadimplemento da indenização? Haveria direito ao recebimento de indenização

pelas benfeitorias e construções realizadas?

Não nos resta dúvida que a resposta é afirmativa. No entanto, uma vez mais,

surgem problemas de operacionalidade do dispositivo, pois, se considerarmos que

os possuidores não podiam ignorar o vício que lhes impedia a aquisição da

propriedade, caracterizada estará a má-fé, implicando no direito de indenização

apenas pelas benfeitorias necessárias, ao preço atual ou de custo, segundo opção

do proprietário e, sem qualquer direito de retenção (Artigos 1.220 combinado com

artigo 1.222 do Código Civil).

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MARCO AURÉLIO S. VIANA230, apesar da questão acima suscitada,

propugna que a restituição do imóvel ao proprietário deve ser feita, mediante o

pagamento de prévia indenização, “pelas construções e benfeitorias levantadas

pelos invasores, observando-se o que a respeito dispõe o diploma civil na disciplina

da posse de boa-fé”, ou seja, os possuidores, segundo esse entendimento, seriam

indenizados pelas benfeitorias necessárias e úteis, pelo valor atual, assistindo-lhes,

ainda, o direito de retenção enquanto não recebam a indenização.

Encerrando a análise dos principais pontos cumpre analisar mais três

requisitos prescritos em lei para a aquisição da propriedade, nos termos dos §§ 4º e

5º do artigo 1.228 do Código Civil, que destacamos, pela utilização de cláusulas

gerais, ou seja, termos indeterminados, cuja aplicação dependerá do preenchimento

de seus conteúdos pelo julgador.

Exige a lei que a área, além de extensa, seja ocupada por um número

considerável de pessoas. Desta forma, caberá ao juiz decidir o que se deve

entender por extensa área, bem como quantas pessoas são necessárias para se

afirmar que os possuidores são em número considerável.

Uma vez mais invocamos a lição de MARCO AURÉLIO S. VIANA, que nos

fornece alguns critérios que entende relevantes e que, portanto, devem ser

sopesados para se definir o que se entende por extensa área e considerável número

de pessoas:

230 Op. Cit. p. 53. O Autor argumenta que a posse só perderia o caráter de boa-fé, no momento dacitação dos possuidores, pois só a partir daí é que não ignorariam o vício que impede a aquisição.

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“O conceito de número considerável de pessoas deve ser examinadopara cada caso concreto, porque é variável. A nosso ver, depende dadensidade populacional da região, e difere em se tratando de imóvelurbano ou rural. É possível até mesmo que varie no tempo, emfunção das transformações operadas em decorrência do povoamentodas áreas urbanas e rurais. O mesmo entendido vale para o conceitode extensa área,seja em região urbana, ou rural. É outro conceitotormentoso, e somente no caso concreto, examinando-se ascircunstâncias, é que se poderá fixar com precisão a incidência dorequisito legal. Uma área rural tida por extensa em determinadaregião do Brasil pode não o ser em outra. O pensamento temaplicação em região urbana, também. Para que os dois requisitossejam apreciados é indispensável o socorro à perícia, e aosconceitos e princípios fixados pelo urbanismo, em especial”.231

Não basta, porém, a posse da extensa área por considerável número de

pessoas, no sentido puro que é atribuído ao instituto pelo artigo 1.196 do Código

Civil, ou seja, como exercício de um dos poderes inerentes à propriedade, em

caráter pleno ou não. É necessário que os possuidores tenham realizados obras e

serviços de interesse social e econômico relevante, de acordo com o entendimento

do Juiz.

Em nosso entendimento, portanto, não serão quaisquer obras ou serviços

que ensejarão a aplicação do dispositivo, mas apenas e tão somente aquelas que

atestem que os possuidores estão destinando a área, ao cumprimento da função

social.

231 Op. Cit., p. 50.

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Trata-se, novamente, de critério que não deve ser uniforme, pois os critérios

para o reconhecimento do cumprimento da função social variam, segundo se esteja

diante de propriedade rural ou propriedade urbana, não bastando, portanto, que o

bem seja empregado em alguma atividade voltada ao desenvolvimento social e

econômico, mas sim que os possuidores realizem obras e serviços na forma

indicada pelas leis, como adequada ao desenvolvimento da função social e à

promoção do bem-estar social.

Os §§ 4º e 5º do artigo 1.228 do Código Civil, refletem, ainda, os novos

contornos do direito de propriedade, na medida em que fundado na função social da

propriedade, e, atendendo à função social da posse, que lhe é embutida, faz com

que o direito de propriedade, perca o atributo de direito absoluto, ou seja, de direito

oponível erga omnes que confere ao proprietário a prerrogativa de exigir a

abstenção de terceiros. Isto porque, ocorrida a hipótese descrita na norma, o

proprietário não pode reivindicar o imóvel, nem merecerá proteção possessória.

Outra manifestação da relativização do atributo de direito absoluto do Direito

de Propriedade parece estar evidenciado, pela regra artigo 1.255, parágrafo único,

do Código Civil.

O caput do referido artigo, inspirado no princípio de que o acessório segue o

destino do principal, estabelece que aquele que realiza plantação ou construção em

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174

terreno alheio, perde as plantações e construções em favor do proprietário do solo,

fazendo jus a indenização, caso tenha procedido de boa-fé232.

No entanto, o parágrafo único do artigo ora analisado, estabelece que, se o

valor de tais plantações ou construções exceder consideravelmente o valor do

terreno, o construtor-possuidor adquirirá a propriedade do solo, mediante pagamento

da indenização acordada entre as partes, ou fixada pelo juiz. Por conseguinte,

ocorrida a hipótese descrita na norma, em eventual juízo reivindicatório deduzido

pelo proprietário, o possuidor poderá evitar a restituição do bem, desde que requeira

ao juiz a fixação da referida indenização e efetue o respectivo pagamento.

Já tivemos a oportunidade de mencionar que a função social da posse está

embutida na função social da propriedade e esclarecemos que é à posse qualificada

por valores extrínsecos, que o legislador atribui valor significativo, em detrimento do

direito de propriedade.

Sob esta ótica, devemos analisar os dispositivos que o novo Código Civil

dedicou à Usucapião, instituto que talvez se constitua no mais relevante instrumento

de consolidação dos princípios da função social da propriedade e da função social

da posse.

232 Se o construtor ou semeador estiver de boa-fé faz jus também aos frutos percebidos, exceto oscolhidos com antecipação, e a incluir na indenização o valor da produção e custeio dos frutospendentes, que deverão ser restituídos. Questão relevante é a possibilidade de direito de retenção,que nos parece perfeitamente possível, pois, se segundo o artigo 1.219, o possuidor de boa-fé temdireito de retenção pelo valor das benfeitorias úteis e necessárias, além de poder levantar semdetrimento da coisa, com muito mais razão terá esse direito em relação ao valor de construções eplantações.

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A lei nº 10.406/02 adotou uma política legislativa de redução dos prazos

para a usucapião ordinária e a usucapião extraordinária previstas, respectivamente,

nos seus artigos 1.242, caput e 1.238, caput. Em nosso entendimento esta redução

geral de prazos consagra a função social da propriedade, mas não a função social

da posse, uma vez que para a aquisição da propriedade, nestes casos, não se exige

que a posse se revista de quaisquer elementos extrínsecos à posse233.

O mesmo, não se pode afirmar em relação às reduções dos prazos para

usucapião ordinário e extraordinário, de que tratam o parágrafo único do artigo 1.242

e o parágrafo único do artigo 1.238 do Código Civil234. Nestes dispositivos, conforme

explica JOSÉ MANOEL DE ARRUDA ALVIM NETTO, “especificamente em nome de

uma ‘posse frutífera’ os prazos ficam atrofiados, ponto este de intersecção

justamente da função social da propriedade com o que tem sido designado como

função social da posse.235

No parágrafo único do artigo 1.238 do Código Civil prescreve-se uma

redução do prazo para usucapião extraordinário, de 15 (quinze) para 10 (dez) anos,

233 Para a aquisição da propriedade pela usucapião extraordinária, na forma prevista no caput doartigo 1.238 do Código Civil, basta que estejam preenchidos os requisitos genéricos para ausucapião, a saber: (i)o tempo (no caso quinze anos); (ii) a posse justa (não eivada dos vícios daviolência, clandestinidade e precariedade),contínua (identificada pela sucessão ordenada e regular deatos possessórios, de acordo com as características do bem e o modo de utilizá-lo), animus domini esem oposição (do proprietário ou de terceiros com interesse legítimo); (iii) coisa hábil, ou seja, a coisacorpórea e suscetível de apropriação. Já a aquisição da propriedade pela usucapião ordinária,prevista no artigo 1.242, caput, os mesmos requisitos genéricos são exigidos, embora o lapsotemporal exigido seja de 10 anos. Mas além de tais requisitos, exigem-se dois requisitos intrínsecos àposse específicos: o justo título ( ato formalmente apto á transferência da propriedade, mas que nãoproduz tais efeitos, seja em razão do título ser anulável (ex. erro escusável), seja porque otransmitente não é proprietário da coisa, ou não pode, em razão da lei, aliená-lo) e a boa-fé (opossuidor ignora estar lesando o direito de outrem). 234 Uma vez mais, serviu-se o legislador das chamadas cláusulas gerais, na medida em que seutilizou de conceitos indeterminados, deixando aos juízes a incumbência de lhes preencher osconteúdos, ou seja, caberá aos magistrados julgar o que se deve entender por “obras ou serviços de

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desde que, além dos requisitos previstos no caput, o possuidor “houver estabelecido

no imóvel sua moradia habitual” ou “realizado obras ou serviços de caráter

produtivo”.

Note-se, que a realização de obras ou serviços de caráter produtivo ou o

estabelecimento de moradia habitual, são elementos extrínsecos à posse, ou seja,

não são elementos sem os quais estaria descaracterizada a posse ad usucapionem,

mas que nesta encontram pressuposto.

Portanto, a lei exige que a posse seja qualificada por elementos aos quais se

atribui significativo valor, a ponto de abreviar, comparativamente à usucapião

fundada na posse pura e simples prevista no caput do mesmo artigo, o tempo

necessário para a aquisição pela usucapião, isto é, para a consolidação da situação

proprietária em favor do possuidor.

Assim, também, há que ser interpretada a redução de prazo de 10 (dez)

para 5 (cinco) anos, no caso da usucapião ordinária, prevista no parágrafo único do

artigo 1.242 do Código Civil, quando, além dos requisitos genéricos (tempo, posse

justa, contínua, com animus domini e incontestada) e específicos (boa-fé e justo

título), já previstos no caput, o possuidor tenha estabelecido sua moradia ou

realizado investimentos de interesse social e econômico no imóvel.

caráter produtivo” (Art. 1.238, parágrafo único) e “investimentos de interesse social e econômico” (Art.1.242, parágrafo único).235 Op. Cit., no prelo.

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Por fim, resta-nos comentar a respeito da usucapião especial, também

denominada usucapião pro-labore, que ressalta a função social da posse dentro da

concepção que até agora nos ocupamos de esclarecer.

A usucapião especial, tanto a urbana, quanto a rural, não constituem

novidade legislativa introduzida pelo novo Código Civil, uma vez que desde 1988, já

encontravam previsão constitucional, respectivamente, nos artigos 183 e 191 da

Carta Maior.

O Código Civil, aliás, também não pode ser considerado precursor da

regulação infraconstitucional do instituto, já que o artigo 9º do Estatuto da Cidade

(Lei nº 10.257/01) já disciplinava a matéria.

A Lei nº 10.406/02, em seus artigos 1.239 e 1.240, praticamente, repetiu a

redação do texto constitucional, ao dispor respectivamente, sobre a usucapião

especial rural e urbana.

Segundo a disposição tanto do caput do artigo 9º da Lei nº 10.257/01,

quanto do artigo 1.240 do Código Civil de 2.002 são requisitos da usucapião

especial urbana, além da posse justa, ininterrupta e sem oposição de imóvel urbano,

pelo lapso temporal de 5 (cinco) anos: a) a utilização da área a ser usucapida para

moradia do possuidor ou de sua família e; b) a condição de não ser o possuidor

proprietário de outro imóvel urbano ou rural; c) a área do imóvel ser igual ou inferior

a 250 metros quadrados.

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No que se refere à continuidade da posse pelo sucessor para efeitos de

usucapião especial urbana, cumpre-nos expor algumas considerações quanto ao §

3º do Artigo 9º do Estatuto da Cidade e ao Código Civil em vigor.

O § 3º do artigo 9º da Lei nº 10.257/01 condiciona a continuidade da posse

pelo antecessor, ao fato deste já residir no imóvel, ao tempo da abertura da

sucessão.

No entanto, a Lei nº 10.406/02 (Código Civil) regula a matéria de forma

diversa, pois prevê em seu artigo 1.207 que a continuidade de direito da posse do

antecessor pelo seu sucessor universal e a faculdade do sucessor singular unir sua

posse à do antecessor para os efeitos legais.

Não bastasse isto, o artigo 1.243 do Código Civil estabelece a possibilidade

do sucessor, para efeito de contagem do lapso temporal para qualquer das espécies

de usucapião, acrescer a posse do antecessor, desde que a posse, a ser acrescida,

se revista dos requisitos comuns a todas as espécies (posse justa, contínua e

pacífica) e, no caso da usucapião ordinária, dos requisitos específicos (boa-fé e justo

título).

Assim, parece-nos que só há duas posições possíveis a respeito. Ou se

entende que o § 3º do artigo 9º do Estatuto da Cidade foi revogado, por ter sua

matéria tratada de modo diverso pelo Código Civil em vigor, ou, em posição

contrária, afasta-se a aplicabilidade do artigo 1.243 do Código Civil para a usucapião

especial urbana, sob o argumento de que o Estatuto da Cidade, por constituir lei

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específica, prevaleceria sobre a legislação civil de caráter geral (Art. 2º, § 2º da Lei

de Introdução ao Código Civil).

Parece-nos mais adequado o primeiro entendimento, que justificamos com

afirmação de SÉRGIO FERRAZ236 de que “fácil mão é detectar a razão de um

diploma que se quer socialmente generoso e ditado em prol da coletividade ter

adotado uma linha limitativa tão nítida (eis que, ademais, não estaria a isso obrigado

pelo art. 183 da CF)”.

Para se adquirir a propriedade mediante usucapião especial rural, previsto

no artigo 1.239 do Código Civil, além da posse justa, ininterrupta e sem oposição de

imóvel em zona rural, pelo lapso temporal de 5 (cinco) anos, deverão ser observados

mais três requisitos:

a) a área não poderá ser superior a cinqüenta hectares;

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b) o possuidor não pode ser proprietário de outro imóvel, rural ou urbano e;

c) o possuidor tem que ter tornado a terra produtiva, por seu trabalho, ou

pelo trabalho de sua família e ter na terra a sua moradia.

Nos casos de usucapião especial rural (artigo 1.239 do Código Civil) e

urbano (artigo 1.240 do Código Civil), valoriza-se, como anteriormente já o fazia a

Constituição Federal, a exteriorização de fatos materiais econômica e socialmente

relevantes, como a moradia e o trabalho, individual ou familiar.

8.2. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA: O

ESTATUTO DA CIDADE.

8.2.1. Considerações gerais.

O artigo 182 da Constituição Federal trata da política de desenvolvimento

urbano, a fim de promover o cumprimento das funções sociais das cidades e garantir

o bem estar de seus habitantes.

236 Estatuto da Cidade:Comentários à Lei Federal nº 10.257/01. Malheiros Editores, 1ª Edição, 2.003,p. 143.

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A execução da política de desenvolvimento urbano foi entregue aos

municípios e o instrumento legal a ser utilizado, por excelência, é o plano diretor,

que, por força do § 1º do referido artigo, torna-se obrigatório para as cidades com

população superior a 20.000 (vinte mil) habitantes.

No entanto, o legislador constituinte foi mais além, estabelecendo um

parâmetro para a interpretação do que deve ser entendido por função social da

propriedade urbana, ao estabelecer, mo § 2º do artigo 182, que “a propriedade

urbana cumpre a sua função social, quando atende às exigências fundamentais de

ordenação da cidade expressas no plano diretor”.

Portanto, para que se cumpra a função social da propriedade urbana, não

basta que o proprietário torne seu imóvel produtivo, destine-o à habitação, ou ainda,

permita que outrem o faça. Será necessário que as prerrogativas inerentes ao direito

de propriedade sejam exercidas a fim de realizar uma finalidade conformada com o

que prevê o plano diretor do respectivo Município.

Neste sentido, não cumpre a função social, exemplificativamente, a

propriedade na qual se desenvolve uma atividade de comércio, indústria ou

prestação de serviços, se, de acordo com o plano diretor, estiver localizada em zona

exclusivamente residencial.

O parágrafo 4º do artigo 182 da Constituição Federal de 1988 facultou ao

Poder Público Municipal, exigir, por meio de legislação específica e segundo a

legislação federal pertinente, que o proprietário do solo urbano não edificado,

subutilizado ou não utilizado, promova seu adequado aproveitamento,

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estabelecendo as seguintes sanções a serem aplicadas sucessiva e

progressivamente: (i) parcelamento ou edificação compulsórios; (ii) Imposto predial e

territorial urbano progressivo no tempo; (iii) desapropriação –sanção, assim

entendida a desapropriação com pagamento mediante títulos da divida pública,

resgatáveis em parcelas anuais, no decorrer de 10 (dez) anos, assegurado o valor

real da indenização e os juros legais.

A nosso ver, o parágrafo 4º não autoriza a aplicação progressiva das

sanções em todos os casos de descumprimento da função social, já que, no

exemplo que há pouco tratamos, em que o proprietário utiliza o imóvel, embora o

faça de maneira desconforme com o que determina o plano diretor, certamente, não

se caracteriza a não utilização e nem sempre se caracterizará também a não

edificação e a subutilização237.

Nestas hipóteses ao Poder Público Municipal caberá, apenas e tão somente,

a aplicação de sanções administrativas, tais como a interdição do estabelecimento, a

cassação de eventual licença de funcionamento e a imposição de multas que a lei

preveja pelo descumprimento do dever legal de observância das leis de

zoneamento.

237 Nosso entendimento se confirma pelo veto ao inciso II do § 1º que equiparava ao imóvelsubutilizado aquele que fosse utilizado em desacordo com a legislação urbanística ou ambiental, porentender que a equiparação é inconstitucional, já que nem todo imóvel ilegalmente utilizado,necessariamente estará sendo subutilizado.

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Feita esta ressalva, seguimos por esclarecer que a lei federal a que se refere

o § 4º do artigo 182 da Constituição Federal é a Lei nº 10.257/01 (Estatuto da

Cidade), que consolida o direito urbanístico como disciplina autônoma, independente

em relação ao Direito Civil, o que não afasta a necessidade de se enfocar o

ordenamento como sistema.

O Estatuto da Cidade, em perfeita sincronia com o texto constitucional,

manteve o plano diretor como instrumento básico de execução da política urbana

(Art. 40), tornando-o obrigatório não só para os Municípios com mais de 20.000

(vinte mil) habitantes (Art. 41, inciso I), mas para todo e qualquer Município que

pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4º do artigo 182 da Constituição

Federal (Art. 41, inciso III).

Além disso, o Estatuto da Cidade, em seu artigo 39 (combinado com o artigo

2º), estabeleceu, assim como já houvera previsto a Constituição Federal, que “a

propriedade urbana cumpre a função social quando atende às exigências

fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.

8.2.2. O Estatuto da Cidade e seus instrumentos

urbanísticos para a efetivação da função social da

propriedade238.

238 Antes mesmo do Estatuto da Cidade e mesmo da atual Constituição, foi editado o Decreto Lei no

271/67, que tratou de loteamentos, instituindo a possibilidade de concessão de bens públicos, parapor tempo certo ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de urbanização,industrialização, edificação, cultivo da terra, ou outra utilização de interesse social.

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Não constitui objeto deste trabalho, explicar de forma exaustiva, os

instrumentos de política urbanística previstos na Lei nº 10.257/01, embora, de certa

forma, os mesmos permitam ou facilitem o cumprimento da função social da

propriedade urbana.

Por esta razão, limitar-nos-emos a tratar mais profundamente dos

dispositivos que regulam das sanções previstas no § 4º do artigo 182 da

Constituição Federal (Arts. 4º a 8º da Lei nº 10.257/01) e da usucapião especial

(arts. 9º a 14 da Lei nº 10.257/01)239.

O Estatuto da Cidade em seu artigo 5º estabelece a necessidade de Lei

Municipal específica para fixar as condições e os prazos para a imposição de

A legislação, recepcionada pela Constituição Federal de 1988, originalmente, mencionava aconcessão para cultivo, mas refere-se a fins de urbanização, por isso comentamos neste momento.A Lei no 11.481/07 ampliou o alcance da determinação legal, alterando sua redação para atender afins específicos de regularização fundiária, a fim de torná-lo aplicável, em nosso entendimento, tantoà imóveis públicos rurais, quanto a imóveis públicos urbanos.Alterou, ainda, os artigos 1473 e 1225 do Código Civil, inserindo, respectivamente, os incisos IX e XII,a fim de caracterizá-lo como direito real, mais especificamente, como espécie de propriedaderesolúvel. 239 Apenas para não deixar de mencionar os demais instrumentos urbanísticos previstos no Estatutoda Cidade, tratamos nesta nota de cada um deles de forma bastante sucinta, a seguir:O direito real de superfície, regulado nos artigos 21 a 24 do Estatuto da Cidade possibilita aconstituição de direito real pelo qual o proprietário, através de negócio jurídico gratuito ou oneroso,outorga a terceiros, por tempo determinado ou indeterminado, o direito de utilizar o solo, subsolo ouespaço aéreo do terreno, por negócio jurídico oneroso ou gratuito.O direito de preempção (artigos 25 a 27 da Lei nº 10.257/01) confere ao Poder Público municipal,em áreas determinadas no plano diretor e por tempo limitado, a preferência para aquisição de imóvelurbano objeto de alienação onerosa entre particulares, sendo que a inobservância quanto ao direitode preferência enseja a ineficácia do negócio jurídico.A outorga onerosa do direito de construir, prevista nos artigos 28 a 31 do Estatuto da Cidadepermite que o Poder Público Municipal permita, mediante contrapartida a ser prestada pelobeneficiário, a realização de construções em coeficientes superiores ao coeficiente básico adotado,bem como poderá, também mediante contrapartida, permitir que o proprietário altere o uso do soloem áreas também determinadas pelo plano diretor.A transferência do direito de construir, prevista no artigo 35 do Estatuto da Cidade, permite aoPoder Público, mediante Lei Municipal específica e em conformidade com o plano diretor, autorizar oproprietário a exercer em outro local ou alienar, mediante escritura pública, o direito de construir,quando seu imóvel for necessário para implantação de equipamentos urbanos e comunitários; para apreservação de interesses históricos, ambientais, paisagísticos, sociais ou culturais;. ou para aconsecução de programas de regularização fundiária, urbanização de áreas ocupadas por população

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obrigação compulsória de parcelamento edificação ou utilização compulsória240 ao

proprietário que não edifica, não utiliza ou o utiliza com aproveitamento inferior ao

mínimo definido no plano diretor (Art. 5º, § 1º, inciso I).

No entanto, a legislação federal traça diretrizes que deverão ser observadas

pela Lei Municipal, ao estabelecer que o proprietário deverá ser notificado para

cumprir a obrigação de construir, parcelar ou utilizar o solo.

As Leis dos Municípios, no entanto, não poderão estabelecer241 prazos

inferiores: (i) a 1 (um) ano, a contar da notificação, para protocolo do projeto de

parcelamento, edificação ou utilização, junto ao órgão municipal competente; (ii) a 2

(dois) anos, a partir da aprovação para iniciar as obras do empreendimento.

Duas considerações merecem ser realizadas quanto ao tema. A aplicação

desta sanção que se constitui na imposição, por parte do Poder Público Municipal,

de obrigação de fazer ao proprietário, requer a observância do princípio da

de baixa renda e habitação de interesse social. 240 Ao estabelecer o dever de parcelamento, utilização ou edificação compulsória, a Lei Municipaldeverá atender a determinados limites, como bem coloca Carlos Ari Sunfeld em trecho que a seguirtranscrevemos: “É que o proprietário não pode ser obrigado a desempenhar uma função no interesseexclusivo da sociedade. Se bem que tenha o dever – e, portanto, o poder – de utilizar a coisa para asatisfação de necessidades coletivas não pode ser privado do poder de fazê-lo em vista denecessidades individuais”. (“Função Social da Propriedade” in Temas de Direito Urbanístico.Coordenação de Adilson Abreu Dallari e Lucia Vale Figueiredo, Volume 1, São Paulo, Editora Revistados Tribunais, 1987, p. 19).241 Entendemos que a Lei Municipal também não possa impor a exata edificação ou utilização quedeverá ser levada a efeito pelo proprietário, mas este também não poderá fazê-lo segundo seu livrearbítrio, devendo observar os limites impostos pelo plano diretor, para a zona em que estiver situadoseu imóvel.

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legalidade, que será atendido quando a obrigação seja imposta com fundamento

prévio na lei federal, no plano diretor e na legislação municipal específica exigida242.

A imposição da obrigação de fazer, com fundamento em apenas uma

dessas leis implica em violação, não só do princípio da legalidade, direito

fundamental previsto no inciso II do artigo 5º da Constituição Federal, mas também

e, principalmente, a própria garantia fundamental do direito de propriedade, prevista

no inciso XII do mesmo artigo.

Daí não se poder impor ao proprietário a obrigação de edificar, parcelar ou

utilizar o solo com base apenas no Estatuto da Cidade, ou seja, sem que o Município

tenha um plano Diretor (Art. 41, III do Estatuto da Cidade), ou com base apenas

nestes dois últimos, sem que haja a legislação municipal específica exigida pela lei

federal (Artigo 5º Caput da Lei nº 10.257/01).

A doutrina tem se posicionado no sentido de reconhecer que a obrigação

compulsória de parcelar, edificar ou utilizar o imóvel urbano constitui obrigação

real243, uma vez que o artigo 6º da Lei nº 10.257/01 estabelece que a transmissão

inter vivos ou causa mortis do imóvel transfere a obrigação, sem interrupção dos

prazos.

242 Neste sentido, salientando, no entanto, que embora não exista hierarquia entre o plano diretor e alei específica de que trata o art. 5º do Estatuto da Cidade, esta retira sua validade daquele, que nãolhe constitui um fundamento jurídico, mas sim lógico: Vera Scarpinella Bueno. Estatuto da Cidade.Comentários à Lei Federal 10.257/2001, Malheiros Editores, 1ª Edição, São Paulo, 2.003, p. 91-93. 243 Neste sentido: Vera Scarpinella Bueno. Estatuto da Cidade. Op. Cit., p. 96. E Também: FranciscoEduardo Loureiro. Op. Cit., pp. 131-132.

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Por esta razão, tem-se entendido que o § 2º do artigo 5º do Estatuto da

Cidade, ao prever que a averbação junto à matrícula do imóvel no competente

cartório de registro de imóveis, objetiva conferir a necessária publicidade,

propiciando a segurança jurídica a eventuais adquirentes.

Esclarecermos, anteriormente, que as sanções previstas no § 4º do Artigo

182 da Constituição Federal não são alternativas, mas sim sucessivas.

Desta forma, somente após a caracterização do descumprimento da

obrigação imposta pelo proprietário, que ocorrerá quando, após a notificação, não

seja protocolado o projeto de edificação, parcelamento ou utilização no prazo de 1

(um) ano ou outro superior previsto na Lei Municipal específica, ou ainda, se

apresentado o projeto no prazo legal, quando, após a sua aprovação, decorra o

prazo de 2 (dois) anos ou outro prazo superior que a Lei Municipal específica

prescrever, sem que hajam sido iniciadas as obras, poderá o Poder Público

Municipal, lançar mão do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo no

tempo, tal como previsto no artigo 7º da Lei nº 10.257/01.

O IPTU progressivo é instituto tributário de caráter extra fiscal, porque

consiste , conforme leciona GERALDO ATALIBA, “no uso de instrumentos tributários

para obtenção de finalidades, não arrecadatórias, mas estimulantes indutoras e

coibidoras de comportamento, tendo em vista outros fins, a realização de outros

valores constitucionalmente consagrados”244.

244 "IPTU - Progressividade", Revista de Direito Público, São Paulo, n° 93, p. 237, jan./mar. 1990.

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188

Portanto, na cobrança do IPTU progressivo no tempo, fundado no artigo 182,

§ 4º, inciso II da Constituição Federal, no artigo 7º da Lei nº 10.257/01 e em Lei

Municipal específica, conforme ensina ROQUE ANTONIO CARRAZZA “não está em

jogo o princípio da capacidade contributiva, mas a função social da propriedade”.245

O artigo 7º do Estatuto da Cidade prevê, então, que descumprida a

obrigação de edificação, parcelamento ou utilização compulsória do solo, o

município poderá majorar, nos cinco anos consecutivos, progressivamente, a

alíquota do IPTU desde que o valor do imposto não exceda ao dobro do ano

anterior.

No entanto, a máxima alíquota a que o Município pode chegar é de 15%

(quinze por cento) e será, nos termos do dispositivo, ora comentado, mantida, até

que seja observada, a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização

compulsória do imóvel. Veda-se, ainda, a concessão de isenções ou anistias

referentes à progressividade.

Alguns doutrinadores têm entendido que o dispositivo não viola a vedação

da utilização de tributos com efeitos confiscatórios, prevista no artigo 150, inciso III,

alínea “b”, inciso IV da Constituição Federal. FRANCISCO EDUARDO LOUREIRO246

entende que a limitação de 15% (quinze por cento) à alíquota, elide o argumento de

que o IPTU, tal como previsto no Estatuto da Cidade, tenha efeitos confiscatórios.

245 Curso de Direito Constitucional Tributário, 12ª edição, Malheiros Editores, São Paulo, 1999, p. 80).246 Op. Cit., p. 132.

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ROQUE ANTÔNIO CARRAZZA entende que “nada impede que suas

alíquotas aumentem progressivamente, à medida que o proprietário do imóvel

urbano for perseverando em seu mau aproveitamento”, entendendo que tal aumento

poderia redundar, até, na perda da propriedade, com a finalidade de punição ao

proprietário renitente no ajuste de seu imóvel às diretrizes do plano diretor 247.

Em sentido contrário posiciona-se REGINA HELENA COSTA, para a qual

sendo o confisco a absorção total ou substancial da propriedade privada pelo

Estado, sem a correspondente indenização, ainda que a alíquota de 15% (quinze

por cento) fosse aplicada uma só vez, ao cabo de 5 (cinco) anos, representaria

substancial absorção da propriedade.248

Outra questão suscitada, decorrente da redação dada ao § 2º do artigo 7º do

Estatuto da Cidade, reside na legalidade da manutenção do IPTU pela alíquota

máxima, depois de decorridos os cinco anos de cobrança progressiva, até o

cumprimento da obrigação compulsória de parcelamento, edificação ou utilização

compulsória, sem prejuízo da prerrogativa de aplicar a desapropriação prevista no

artigo 8º da Lei nº 10.257/01.

O caput do artigo 8º da Lei nº 10.257/01 estabelece que “decorridos cinco

anos de IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido a obrigação de

parcelamento, edificação ou utilização a ele imposta, o Município poderá proceder à

desapropriação, com pagamento em títulos da dívida pública”.

247 Op. Cit., p. 81.248 Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001, Malheiros Editores, 1ª Edição, SãoPaulo, 2.003, p. 111.

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190

A combinação dos dois dispositivos dá azo a uma interpretação no sentido

de que o Poder Público Municipal teria a faculdade de analisar a conveniência e

oportunidade de se efetuar a desapropriação ou permanecer cobrando o IPTU

progressivo.

A se entender desta forma, estaria a Administração Pública autorizada a

cobrar o IPTU à alíquota de 15% (quinze por cento) indefinidamente, o que

significaria o mesmo que aniquilar o direito de propriedade, sem qualquer

contrapartida indenizatória, na medida em que substitui a desapropriação pelo

confisco.

Parece-nos que a melhor interpretação dos dispositivos, deve observar o

princípio da legalidade. Enquanto o particular não está obrigado a fazer ou deixar de

fazer algo, senão em virtude de Lei, a Administração Pública deve exercer suas

atividades, observando estritamente os poderes-deveres que lhes são impostos pela

Constituição e pela legislação vigente.

Neste sentido, não poderia a Lei nº 10.257/01 transformar a sucessividade

das medidas previstas no artigo 182, § 4º da Constituição Federal, em

alternatividade sujeita à discricionariedade da Administração Pública.

Destarte, após ter imposta ao proprietário a obrigação de parcelamento,

edificação ou utilização do imóvel e, em virtude do descumprimento desta, ter

cobrado o IPTU progressivo no tempo durante 5 (cinco) anos, só restará ao Poder

Público Municipal promover a expropriação do bem nos termos do artigo 8º do

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Estatuto da Cidade, cessando, mesmo que não proceda à mencionada

desapropriação, a cobrança do IPTU na forma prevista no artigo 7º da mesma lei249.

Feitas estas considerações, passemos à análise e considerações acerca da

Desapropriação prevista no § 4º, inciso III do artigo 182 da Constituição Federal,

regulada pelo artigo 8º da Lei nº 10.257/01.

Inicialmente, importa esclarecer que não se pode confundir a desapropriação

acima mencionada, com a desapropriação prevista no § 3º do artigo 182 da

Constituição Federal250, que é realizada mediante prévia e justa indenização.

A desapropriação prevista no inciso III do § 4º do mesmo artigo e regulada

pelo artigo 8º do Estatuto da Cidade, realiza-se com pagamento em títulos da dívida

pública, previamente aprovados pelo Senado Federal, resgatáveis em parcelas

anuais, iguais e sucessivas, no prazo de até dez anos, assegurado o valor real da

indenização e juros legais de 6% (seis por cento) ao ano. Por essa razão, é que se

convencionou denominá-la desapropriação sanção.

249 Em sentido contrário, o entendimento de Clóvis Beznos: “ Como se lê do seu art. 8º, a Lei nº10.257/01 estabelece uma faculdade ao Município, no que tange à desapropriação, vez que utiliza otermo “poderá” e não “deverá”. Essa faculdade se explica, vez que os títulos que se constituem namoeda de pagamento da desapropriação dependem de prévia aprovação do Senado, o que retira dasmãos do Município a decisão pela sobre a efetivação das desapropriações. De fato, segundo o art.52, IX, da Constituição Federal, é de competência privativa do Senado Federal o estabelecimento delimites globais e condições para o montante da dívida mobiliária dos Estados, Distrito Federal eMunicípios. O Senado, no exercício dessa competência, baixou a Resolução 78, de 1.7.1998,publicada em 8.7.1998 e republicada em 11.8.1999. (...) Com efeito, segundo o artigo 10 daresolução supra-aludida, até 31 de dezembro de 2.010, os Estados, o Distrito Federal e os Municípiossomente poderão emitir títulos da dívida pública no montante necessário para o refinanciamento doprincipal, devidamente atualizado, de suas obrigações existentes, representadas por estas espéciesde títulos”. (Comentários à Lei Federal 10.257/2001, Malheiros Editores, 1ª Edição, São Paulo, 2.003,p. 130-131).250 O § 3º do artigo 182 da Constituição insere-se na regra geral prevista no inciso XXIV do artigo 5ºda Constituição Federal, regulado pelo Dec. – Lei nº 3.365/41 (Desapropriação por Utilidade Pública)e pela Lei nº 4.132/62 (Desapropriação por interesse social), enquanto a hipótese prevista no inciso III

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Embora seja pacífico o entendimento de que o artigo 8º do Estatuto da

Cidade sanciona o proprietário que descumpriu a função social com a perda de seu

direito mediante pagamento ulterior, em títulos da dívida pública, muito se tem

discutido a respeito da obrigatoriedade de ser a indenização justa.

Os autores que sustentam que a desapropriação prevista no Estatuto da

Cidade prescindiria de justa indenização fundamentam-se no caráter de penalidade

de que se reveste, no fato de a Constituição assegurar apenas o valor real da

indenização e na previsão contida no § 2º do próprio artigo 8º da Lei nº 10.257/01

que, além de tomar por base, para o cálculo da indenização, o valor venal pré-fixado

para cobrança de IPTU que, no mais das vezes não reflete o valor real de mercado,

ainda, prevê que se deixe de computar expectativas de ganhos, lucros cessantes e

juros compensatórios.251

CLÓVIS BEZNOS252, no entanto, tem entendimento parcialmente divergente.

Embora reconheça o caráter sancionatório deste tipo de desapropriação, a

fundamentar uma indenização diferenciada em relação à indenização por

necessidade, utilidade pública ou interesse social, sustenta que tal diferenciação

limitar-se-ia ao pagamento em títulos da dívida, resgatáveis em 10 (dez) anos.

Explica o referido autor que a Constituição, no artigo 182, § 4º inciso III,

assegura “o valor real da indenização”, o que não significaria que a mesma não

do § 4º do artigo 182 da Constituição Federal, constitui uma das exceções constitucionais ao incisoXXIV do artigo 5º da Carta Maior. 251 Neste sentido transcrevemos o posicionamento de Lúcia Valle Figueiredo: “Na desapropriaçãofundada em “sanção” por descumprimento da função social da propriedade, a indenização deixa deser prévia e justa. O pagamento será efetuado em dez anos em títulos da dívida pública”. (Curso deDireito Administrativo, Malheiros, 6ª edição, 2.003).

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193

deveria ser justa, já que o termo “indenização”, por si só, seria suficiente para

vincular o legislador infraconstitucional a compor integralmente o valor retirado ao

expropriado.

Sustenta, ainda, que não haveria motivo para se retirar o direito à justa

indenização nos casos de desapropriação de imóvel urbano pelo descumprimento

da função social da propriedade, já que na desapropriação, fundada no mesmo

motivo, para os imóveis rurais, prevista no artigo 184 da Constituição Federal, não

se prescinde de justa indenização.

Com base nestes fundamentos, CLÓVIS BEZNOS propugna pela

inconstitucionalidade do § 2º do artigo 8º do Estatuto da Cidade, entendendo que: (i)

o valor real da indenização, somente se obtém, tomando-se por base o valor real do

imóvel; (ii) a justa indenização deve compreender os danos causados ao

proprietário, ou seja, não só o que se perdeu, como o que razoavelmente deixou de

ganhar e; (iii) sempre que houver imissão antecipada na posse em relação à efetiva

desapropriação serão devidos os juros compensatórios, a fim de recompor

integralmente o patrimônio afetado.

Por fim, estabelecem os §§ 4º, 5º e 6º do artigo 8º da Lei nº 10.257/01, que o

Município terá o prazo máximo de 5 (cinco) anos, a partir da incorporação do imóvel

ao seu patrimônio, para proceder a seu aproveitamento adequado, diretamente, ou

por meio de alienação ou concessão a terceiros mediante procedimento licitatório,

252 Op. Cit., pp. 131-134.

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prevalecendo para o adquirente as obrigações de parcelamento, edificação ou

utilização compulsórias, previstas no artigo 5º do Estatuto da Cidade.

A lei não estabelece, no entanto, prazo para que o adquirente cumpra a

obrigação, sendo que a nosso ver, dois entendimentos são possíveis.

Se partirmos do pressuposto de que o adquirente do imóvel mantém-se

obrigado à edificação, parcelamento ou utilização compulsórias, tal como prevê o

artigo 5º da Lei nº 10.257/01, os prazos integrais, para que se cumpra a obrigação,

seriam os estabelecidos no § 4º do mesmo artigo 5º, considerando-se o adquirente

notificado na mesma data em que a propriedade for efetivamente integrada ao seu

patrimônio.

A posição que entendemos adequada, no entanto, decorre da interpretação

dos §§ 4º e 5º do artigo 8º da Lei nº 10.257/01. Se o parágrafo 4º concede a

prerrogativa do Município promover o adequado aproveitamento do bem até o prazo

máximo de 5 (cinco) anos, diretamente, ou por meio de alienação ou concessão (§

5º), parece razoável que ao particular se defira o mesmo prazo que, para promover o

aproveitamento adequado, teria o Poder Público, ou seja, 5 (cinco) anos a contar da

incorporação do imóvel ao seu patrimônio, até porque não há razão para estabelecer

distinção entre a pessoa de direito público e a pessoa de direito privado sob este

aspecto.

Por fim, pode surgir controvérsia sobre a possibilidade ou não do próprio

desapropriado participar da licitação.

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Em que pese as opiniões em contrário253, não encontramos fundamento

para impedir que o próprio expropriado venha a readquirir o bem, seja porque não

há vedação legal expressa a esse respeito, seja porque o mesmo já suportou a

imposição da sanção prevista em lei, ao perder o direito de propriedade, mediante

contrapartida em títulos da dívida pública resgatáveis em 10 (dez) anos.

Em conclusão, antes de adentrarmos as considerações sobre a usucapião

especial urbana previstas no Estatuto da Cidade, salientamos que os instrumentos

urbanísticos contidos nos artigos 4º a 8º da Lei nº 10.257/01 se prestam a conduzir o

proprietário a praticar determinados atos positivos, no sentido de dar cumprimento à

função social.

Por essa razão, toda e qualquer das medidas ali previstas, deverão ser

efetivadas mediante procedimento (ou processo) que permita ao proprietário, o

contraditório e a ampla defesa (Artigo 5º, incisos LV e LIX da Constituição Federal),

seja no âmbito administrativo, seja na esfera judicial, já que em sua defesa poderá o

proprietário propugnar pela ilegitimidade da lei que fundamenta a medida, a

desconformidade entre o ato do Poder Público a previsão legal, ou ainda, poderá

comprovar que sua propriedade não descumpre a função social.

8.2.3. A usucapião especial urbana no Estatuto da Cidade.

253 Clóvis Beznos. Op. Cit. p. 135.

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O Estatuto da Cidade prevê a usucapião especial de imóvel urbano sob duas

modalidades, a saber: a usucapião especial urbana individual (Artigo 9º) 254 e a

usucapião especial urbana coletiva (Artigo 10).

No que se refere à Usucapião Especial Urbana individual, já foram

realizadas as considerações pertinentes, quando nos referimos ao artigo 1.240 do

Código Civil, tendo restado, apenas, mencionar algo a respeito dos §§ 1º e 2º do

artigo 9º da Lei nº 10.257/01.

254 A Medida Provisória nº 2.220/01 criou instituto que, embora se assemelhe, por exigir os mesmosrequisitos em cada espécie, ao usucapião especial individual e ao usucapião especial coletivo (na suaforma de concessão coletiva), de que trata o Estatuto da Cidade, com este não se confunde.Trata-se da concessão de uso para moradia de imóveis públicos, já prevista no artigo 4o, inciso V,alínea “h” do Estatuto da Cidade, cuja regumentação estava nos artigos 15 a 20 da referida lei,vetados.Ao contrário da usucapião especial, a concessão de uso para fins de moradia não implica,necessáriamente, na perda da propriedade, obstada pela inexistência do requisito da coisa hábil, jáque os bens públicos são insuscetíveis de ser usucapidos, por serem inalienáveis, nos termos dosartigos 100 e 101 do Código Civil em vigor. O texto da lei refere-se a concessão de uso, o que demonstra se tratar, a nosso ver, de um contratoadministrativo, que não se confunde com direito real, apesar da sua inserção, como tal, no CódigoCivil, com a inclusão dos incisos VIII no artigo 1.473 e XI no artigo 1.225, por meio da Lei no

11.481/07. É certo que este contrato é compulsório, na medida em que preenchidos os requisitos daLei (Posse de 5 anos, pacífica e ininterrupta, completada até 30.06.2001, sobre área de até 250metros quadrados, utilização para moradia, não ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural), opossuidor adquire o direito à concessão.Entretanto, em se tratando, repise-se, de concessão, o poder público não perde a propriedade emfavor do possuidor que exerce função social, tanto que a própria lei prevê a possibilidade daAdministração Pública, nos casos que especifica, assegurar o exercício em local diverso (Artigo 4o).Além disso, caso o instituto implicasse na consolidação da propriedade em favor do possuidor quecumpre função social, o artigo 8o da Lei não contemplaria hipóteses de extinção, pela aquisição deoutra propriedade ou alteração da destinação do bem.É certo, ainda, que esta mesma lei no 11.481/07 também alterou o artigo 17 da Lei no 8.666/93,possibilitando à Administração Pública, dispensar o processo de concorrência para alienação gratuitaou onerosa, aforamento, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de bensimóveis residenciais construídos, destinados ou efetivamente utilizados no âmbito de programashabitacionais ou de regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgãos ou entidadesda administração pública (Art. 17, inciso I, “h”).De todo modo, parece que ainda não se está aqui a regular a perda da propriedade pelo não uso,como ocorre em relação aos particulares, pois a legislação confere à Administração Pública adiscricionariedade de adotar, segundo sua conveniência e oportunidade, qualquer das hipótesesprevistas na lei, para a implementação dos programas habitacionais, não existindo lei que obrige aalienação gratuita ou compulsória prevista no dispositivo.Concluímos, pois, que a concessão de uso para fins de moradia não significa aplicabilidade doprincípio da função social da propriedade aos bens públicos, ao menos no mesmo sentido em queocorre no âmbito privado, embora, sem dúvida, venha em benefício do possuidor de bem público,que cumpra a sua função social.

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O parágrafo primeiro do artigo 9º do Estatuto da Cidade, consagrando a

igualdade entre homens e mulheres, como sucedâneo do artigo 5º, inciso I da

Constituição Federal, prevê que o título de domínio será conferido ao homem, ou à

mulher, ou a ambos, independentemente do Estado Civil.

O segundo parágrafo do mesmo artigo, por sua vez, limita o reconhecimento

do direito a aquisição por usucapião especial urbano a uma só vez.

O artigo 10 do Estatuto da Cidade prevê a usucapião especial urbana

coletiva, que tem como requisitos, além da posse ininterrupta e sem oposição de

imóvel urbano, pelo lapso temporal de 5 (cinco) anos: a) que a área seja superior a

250 metros quadrados; b) que a área seja ocupada por população de baixa renda; c)

que os possuidores destinem a área a ser usucapida para moradia; d) que não seja

possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor e; e) que os

possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.

Tem-se sustentado que o artigo em análise seria inconstitucional, sob o

argumento de que o artigo 183 da Constituição Federal limita a usucapião especial

urbana a áreas inferiores a 250 metros quadrados.

SÉRGIO FERRAZ255, no entanto, diverge dessa opinião, por entender que,

existindo o instituto da propriedade condominial e inexistindo vedação no art. 5º,

255 Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001, Malheiros Editores, 1ª Edição, SãoPaulo, 2.003, p. 144.

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inciso XII da Constituição Federal, razão não há, para se negar a possibilidade de

aquisição coletiva da propriedade.

Segundo este mesmo autor, o artigo 183 da Constituição Federal constituiria

um regramento geral para a usucapião pro habitacione, que não teria sido

desconfigurada pelo Estatuto da Cidade, ao disciplinar a usucapião especial coletiva

urbana, porquanto, em seu artigo 10, o referido texto legal regulou a aquisição por

usucapião especial coletiva mantendo as diretrizes constitucionais no que tange ao

tempo, características e vocação da posse, bem como no que se refere à exclusão

de aplicabilidade do dispositivo, nos casos em que os usucapientes já sejam

proprietários de outro imóvel rural ou urbano.

Em resposta à questão da limitação de área, assim se manifesta SÉRGIO

FERRAZ256:

“Novamente é a Constituição que, com sua principiologia – in casu,os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade -, dá a respostaharmonizadora: se no usucapião individual só é admissível aaquisição de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, no pleitode áreas maiores (cuja razoabilidade decorre da própria preocupaçãoda Constituição com a racionalidade das cidades) somente ainiciativa coletiva, extensiva por índole, é admissível”.

256 Op. Cit. pg. 145

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Embora ambos os institutos tenham por finalidade a realização da função

social, não se pode confundir a Usucapião Especial Coletiva prevista na Lei nº

10.257/01 com a hipótese prevista nos §§ 4º e 5º do artigo 1.228 do Código Civil,

porquanto os institutos apresentam diferenças significativas.

A primeira distinção reside no campo da aplicabilidade, já que o artigo 10 da

Lei nº 10.257/01 só encontra a sua aplicação no âmbito da propriedade urbana,

enquanto os §§ 4º e 5º do artigo 1.228 do Código Civil não comportam tal restrição,

podendo ser aplicado tanto à propriedade urbana, quanto à propriedade rural.

Ademais, existem diferenças entre ambas no que se refere aos seus

pressupostos. Ao contrário do que ocorre no caso da Usucapião Especial Coletiva

prevista no artigo 10 do Estatuto da Cidade, a aquisição da propriedade, nos termos

do artigo 1.228, §§ 4º e 5º da Lei nº 10.406/02 não exige que a área seja ocupada

por população de baixa renda e que seja impossível identificar os terrenos ocupados

por cada possuidor. Também não há, qualquer restrição quanto ao adquirente já ser

ou não proprietário de outro imóvel.

De outro lado, na aquisição pela usucapião especial coletiva prescinde-se da

posse de boa-fé, que é requisito para a aquisição da propriedade nos termos do

artigo 1.228, § § 4º e 5º do Código Civil.

Outrossim, a aquisição da propriedade prevista no artigo 1.228, §§ 4º e 5º do

Código Civil, condiciona-se ao pagamento de prévia indenização, o que não ocorre

na hipótese da usucapião especial urbana coletiva do Estatuto da Cidade, até pela

incompatibilidade com a natureza do instituto.

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200

Por fim, cumpre ressaltar a diferença quanto à vocação da posse257 em cada

um dos casos. No caso do artigo 1.228 §§ 4º e 5º do Código Civil, o elemento

extrínseco à posse pura e simples, a que se atribui significação, consiste no fato dos

possuidores, em conjunto ou separadamente terem realizado obras e serviços de

interesse social e econômico relevante. Já no caso da usucapião especial urbana

coletiva prevista na Lei nº 10.257/01, este elemento extrínseco resume-se,

exclusivamente, à destinação da área para moradia dos possuidores.

Feitas as distinções entre ambos os institutos, voltamos nosso foco ao artigo

10 do Estatuto da Cidade para apontar alguns aspectos finais a respeito, que

merecem relevo.

O § 1º do artigo 10 da Lei nº 10.257/01 permite, desde que haja

continuidade, o acréscimo da posse do antecessor à posse do sucessor para fins de

contagem do lapso temporal exigido para a usucapião especial urbana coletiva.258

Os §§ 2º, 3º e 4º do mesmo artigo259 estabelecem que na sentença

declaratória da usucapião especial coletiva urbana, que servirá de título para registro

junto ao Cartório de Registro de Imóveis, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno

257 Esta distinção é de grande importância na medida que o artigo 10 da Lei nº 10.257/01, exclui odireito de adquirir a propriedade por usucapião coletivo, àquele que tiver na área superior a duzentose cinqüenta metros quadrados, estabelecimento comercial ou industrial. (v. g.. Sérgio Ferraz, Op. Cit.pp. 146-147).258 O parágrafo ora comentado não estabelece a condição do sucessor já estar morando no imóvel aotempo da abertura da sucessão, o que reforça nosso entendimento de que o § 3º do artigo 9º doEstatuto da Cidade mereça mesma disciplina que a prevista no artigo 10 do mesmo diploma legal eno Código Civil. 259 No parágrafo 3º do artigo 10 do Estatuto da Cidade, a nosso ver, não deveria o legislador, aodispor que a cada possuidor se atribuirá fração ideal igual do terreno, fazer a ressalva de que talatribuição independe da dimensão do terreno que cada um ocupe. Tal ressalva encerra umacontradição lógica com o caput do próprio artigo, que exige, como requisito para a usucapião especialcoletiva, a impossibilidade de se identificar os terrenos ocupados por cada possuidor.

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201

a cada possuidor, constituindo um condomínio especial pro - indiviso260, só passível

de dissolução por deliberação de mais de 2/3 (dois terços) dos condôminos, no caso

de urbanização da área superveniente à constituição do condomínio.

8.3. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL –

CONSTITUIÇÃO FEDERAL E REFORMA AGRÁRIA.

Assim como a propriedade urbana, a propriedade rural é garantida na

medida em que cumpre a sua função social, que NELSON LUIZ PINTO conceitua

como “o reconhecimento de que o dominus, por ser membro da comunidade, não

pode ter só direitos, mas também obrigações, frente aos demais, abstendo-se de

obstaculizar o bem comum.261”

Para o reconhecimento a que alude o autor citado, a Constituição Federal

estabelece, no seu artigo 186, como também o faz a lei 8.629/93 no artigo 9º, que

devem ser atendidos, simultaneamente, quatro requisitos: (i) o aproveitamento

racional e adequado da propriedade; (ii) a utilização adequada dos recursos naturais

disponíveis e a preservação do meio ambiente; (iii) a observância das disposições

que regulam as relações de trabalho e; (iv) a exploração que favoreça o bem estar

de proprietários e trabalhadores.

260 Segundo Sérgio Ferraz (Op. Cit., p. 146), a criação de condomínio especial indivisível objetivaatribuir ao instituto durabilidade no tempo.261 Ação de Usucapião, 2ª Edição, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1.991, p. 52.

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202

Esta exigência de simultaneidade no atendimento dos requisitos tem

causado críticas ao disposto no inciso II do artigo 185 da Constituição Federal, que

torna a propriedade produtiva insuscetível de desapropriação para fins de reforma

agrária,

O artigo 6º da Lei nº 8.629/93 que regulamenta a matéria constitucional

considera produtiva a propriedade que, mediante exploração econômica e racional,

atinja a graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices a

serem fixados pelo INCRA.

No entanto, a produtividade, prevista no inciso I do artigo 186 da

Constituição Federal não é o único requisito para que a propriedade rural cumpra

sua função social, já que pode existir, por exemplo, uma propriedade que seja

produtiva, mas não promova a preservação ambiental.

Além disso, o artigo 184 da Constituição Federal, estabelece a competência

da União para desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o

imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social (desapropriação-sanção).

Para GUSTAVO TEPEDINO262 o termo produtividade não pode à luz do

atual sistema normativo ser enfocado sob a ótica exclusivamente econômica, de

forma que a propriedade que, embora seja capaz de produzir riqueza, não atenda

aos demais requisitos para o cumprimento da função social da propriedade rural,

262 “Contornos Constitucionais da Propriedade Privada” in Temas de Direito Civil. Editora Renovar,Rio de Janeiro, 1999, p. 275.

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definitivamente não a cumpre, podendo (ou devendo) ser objeto de desapropriação

para reforma agrária.

JOSÉ AFONSO DA SILVA263, por sua vez, entende que o inciso II do artigo

185 da Constituição exclui a possibilidade de aplicação, à propriedade rural

produtiva, da desapropriação-sanção prevista no artigo 184 da Constituição Federal,

ou seja, mediante o pagamento de justa e prévia indenização264 em títulos da dívida

agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis em vinte anos, a

partir do segundo. De outro lado, esclarece o autor, a exclusão da desapropriação

especial, não significa que o Poder Público não possa desapropriá-la por interesse

social, com base e nas condições do poder geral que lhe é conferido para tal fim,

previsto no artigo 5º, inciso XXIV da Constituição Federal.

Por fim, resta consignar que, por força do artigo 185, inciso I da Constituição

Federal, também são insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária, a

pequena e média propriedade, desde que seu proprietário não possua outra. Para

estes efeitos, a lei nº 8.629/93 estabelece como pequena propriedade rural, aquela

com área até 4 (quatro) módulos fiscais e, como média propriedade, o imóvel rural

com área entre 4 (quatro) e 15 (quinze) módulos fiscais265.

263 Curso de Direito Constitucional Positivo. 20ª edição, Malheiros Editores, 2.002, p. 797.264 A regulação infra-constitucional no que se refere à indenização pela desapropriação sanção parafins de reforma agrária é dada pelo artigo 5º da Lei nº 8.629/93.265 O módulo fiscal é a unidade de medida expressa em hectares, fixada para cada município,considerando o tipo de exploração predominante no município, a renda obtida com a exploraçãopredominante, outras explorações existentes no município que, embora não predominantes, sejamsignificativas em função da renda ou da área utilizada; e o conceito de propriedade familiar.

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204

A pequena propriedade rural, aliás, desde que trabalhada pela família, será

impenhorável para o pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva,

nos termos da garantia constitucional prevista no artigo 5º, inciso XXVI.

No entanto, o perfil do direito de propriedade rural não é definido,

exclusivamente, pela desapropriação prevista no artigo 184 da Constituição Federal.

Completa seus contornos a usucapião especial rural, prevista no artigo 191

da Constituição Federal e reproduzida pelo artigo 1.239 do Código Civil, cujos

requisitos são a posse justa, ininterrupta e sem oposição de imóvel em zona rural

(coisa hábil), por 5 (cinco) anos (tempo), de área não superior a cinqüenta hectares,

por possuidor que, além de não ser proprietário de outro imóvel, rural ou urbano,

tenha, ao mesmo tempo, tornado a terra produtiva, pelo seu trabalho individual ou

familiar e nela estabelecido a sua moradia.

Anteriormente à previsão Constitucional, vigorava sobre o assunto, a lei no

6.969/81266, que se aplicava à áreas de até 25 (vinte e cinco) hectares.

266 Antes mesmo da Lei no 6.969/81, ainda sob a égide da Constituição Federal de 1967 promulgou-sea Lei no 6.383/76, que previu, nos artigos 29 a 31, condições para a legitimação da posse de terrasdevolutas, consagrando instituto semelhante ao da Lei no 601/1850. Segundo o referido diploma,quem não seja proprietário de imóvel rural e exerça posse sobre terras devolutas, com extensão deaté 100 (cem) hectares, por prazo mínimo de 1 (um) ano, fixando-se na terra sua moradia, e,desenvolvendo o cultivo efetivo, faz jus a Licença de Ocupação pelo prazo mínimo de 4 (quatro)anos, com direito de preferência de aquisição pelo valor histórico (e não de mercado) da terra nua.Referida legislação veio para regulamentar o artigo 99 do Estatuto da Terra e foi recepcionado pelaatual Constituição, pois não implica na usucapião de terras devolutas, nem tampouco na alienaçãodestes bens, significando, apenas, instrumento de valorização da posse exercida, em carátertemporário, incapaz de acarretar a perda da propriedade por parte da administração pública.

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205

Referido dispositivo, entretanto, permitia a aquisição de domínio de terras

particulares e devolutas, pela usucapião nela prevista, atendidos, evidentemente, os

requisitos legais.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 instaurou-se discussão

acerca da revogação ou recepção da lei, no que se referia às terras devolutas, tendo

em vista que o parágrafo único do artigo 191 ter vedado, expressamente, a

aquisição de imóveis públicos.

CELSO RIBEIRO BASTOS267 manifesta o entendimento de que a lei no

6.969/81 permaneceria em vigor, tão somente, no que tange à usucapião de terras

devolutas, sustentando que, embora públicas, tais terras são destinadas ao

transpasse aos particulares, não se submetendo, pois, ao regime de direito público.

Reforça o seu entendimento, argumentando que o artigo 188 da Constituição

Federal, ao estabelecer que “A destinação de terras públicas e devolutas será

compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária”,

teria acolhido a distinção, de modo a manter as terras devolutas como objeto hábil

para a usucapião.

De outro lado, JOSÉ CARLOS DE MORAES SALLES268, que sustentou que

as terras devolutas, enquanto não transpassados, constituem bens públicos

dominicais, sendo que a vedação à usucapião de bens públicos, prevista

267 Comentários à Constituição do Brasil, vol. 7, São Paulo, Editora Saraiva, 1990, pp. 239-240.268 Usucapião de Bens Móveis e Imóveis, 5a Edição, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999,p. 280

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Constituição Federal de 1988 não estabelece quaisquer exceções, em razão da

destinação do bem público. Invocam, ainda, em seu favor, a Súmula 340 do

Supremo Tribunal Federal269.

Finalmente, resta salientar que a usucapião especial rural busca realizar a

função social da propriedade, por meio da concretização da propriedade familiar, tal

como conceituada pelo artigo 4º, inciso II da Lei nº 4.504/64 (Estatuto da Terra) 270.

9. CONCLUSÕES.

Nestas conclusões, buscaremos sintetizar as questões mais relevantes

acerca do tema deste trabalho monográfico.

269 STF Súmula nº 340: Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais benspúblicos, não podem ser adquiridos por usucapião.270 O inciso II, do art. 4º, do Estatuto da Terra (Lei 4.504/64) , define como "Propriedade Familiar" oimóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda aforça de trabalho, garantido-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máximafixada para cada região e tipo de exploração, e eventualmente, trabalhado com a ajuda de terceiros.

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207

Analisando a evolução histórica do direito de propriedade, podemos

constatar que a mudança mais relevante foi a modificação que sofreu seu perfil, na

transição do Estado Moderno para o Estado Contemporâneo.

No Estado moderno, o direito de propriedade, impregnado pelos ideais

burgueses de igualdade (formal), segurança jurídica e liberdade, necessários ao

desenvolvimento das atividades econômicas. Não havia, portanto, qualquer

ingerência do Estado, no sentido de impor limites ou obrigações ao proprietário.

Com o crescimento das desigualdades materiais, surgem os ideais de

igualdade substancial e a idéia de socialização do direito. O Estado Liberal cede

espaço a um novo tipo de Estado, denominado Estado do bem-estar social, que se

consolida pelas Constituições de Weimar 1919 e do México 1917.

O direito de propriedade ganha nova roupagem a partir de então, não mais

sendo considerado, exclusivamente, um direito exercido no interesse exclusivo do

proprietário, a ser respeitado por toda a comunidade. Sob esta nova concepção, o

proprietário passa a ter obrigações para com a comunidade, ou seja, além de

atender ao seu próprio interesse, tem, também, que atender à função social da

Propriedade.

No direito brasileiro, essa mudança se fez sentir, primeiramente na esfera

Constitucional, sendo que a partir da Constituição de 1934, já é possível perceber,

como demonstramos, uma preocupação no sentido de que o direito de propriedade

atenda ao interesse social. No entanto, o maior progresso neste sentido ocorreu

mesmo na Constituição de 1988, não só porque consagrou o direito de propriedade

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e a função social da propriedade, a um só tempo, como direito fundamental (Artigo

5º) e como princípio da Ordem Econômica (Art. 170), mas principalmente, porque

tornou, nos capítulos da Política Urbana e Rural (Arts. 182 a 191), menos vago o

conceito de função social da propriedade.

No âmbito infraconstitucional, já haviam leis anteriores prevendo normas de

expropriação por utilidade ou necessidade pública ou por interesse social, de

tombamento para a preservação do patrimônio histórico e cultural, bem como

normas destinadas a promover a preservação ambiental.

No entanto, pode-se afirmar que a significativa mudança de perfil no direito

de propriedade, em nível infraconstitucional, teve maior impulso recentemente, com

a promulgação do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01) e do Novo Código Civil (Lei

nº 10.406/02), que absorveram o princípio da socialidade.

Antes de iniciarmos breves considerações sobre a maneira como esses

diplomas legais incorporaram o princípio da função social da propriedade, é

oportuno expressar nosso posicionamento conclusivo a respeito das discussões

doutrinárias acerca do referido princípio.

Para nós, o princípio da função social da propriedade não é elemento que

integra o conteúdo e a estrutura do direito de propriedade e, portanto, elemento

interno, pelas seguintes razões: (i) o direito de propriedade tem um conteúdo mínimo

essencial (direito de usar e gozar), que não pode ser suprimido em nome da função

social da propriedade; (ii) a função social da propriedade, ao impor obrigações ao

proprietário, a fim de conformar o direito de propriedade ao atendimento da função

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social, nada mais faz do que estabelecer limites ao seu exercício, não se podendo

confundir o exercício do direito com o seu conteúdo nuclear e intangível; (iii) o

princípio da função social da propriedade não tem força normativa e operativa de per

si, até porque sua operacionalização depende da imposição de obrigações e

vedações ao proprietário, que só podem ser engendradas em observância ao

princípio da legalidade; (iv) o princípio da função social da propriedade é aplicável,

nos dias atuais, tanto aos bens de produção, quanto aos bens de consumo.

No ordenamento jurídico pátrio, a garantia ao direito de propriedade em nível

constitucional abrange todo o patrimônio, enquanto o regime da propriedade regrado

no Código Civil se restringe à propriedade das coisas corpóreas, suscetíveis de

apropriação271. Este último “tipo de propriedade” é a que constituiu objeto de nossas

análises.

A função social da propriedade guarda correlação com a função social do

contrato, na medida em que esta última, em verdade, se origina daquela, tanto

quanto o direito de propriedade se relaciona com a liberdade de contratar,

propulsionadora dos contratos, como instrumento de exercício dos poderes do

proprietário, inclusive o de disposição.

Em se tratando, o contrato e a propriedade, de situações jurídicas voltadas

ao atendimento de interesses privados, a função social, em ambos os casos, atuará

271 Não se deve olvidar que o regime do Código Civil pode ser aplicado, no que couber, aos benssemi-corpóreos, embora esses, como já explicamos no decorrer do trabalho não sejam coisas,propriamente ditas.

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no sentido de compatibilizar estes interesses privados, com os interesses da

coletividade, através de um conjunto de normas, definidoras da função social.

No entanto, nem as leis voltadas à estipular o conteúdo da função social da

propriedade, nem as normas delineadoras do que vem a ser a função social do

contrato, podem abandonar ou suprimir os direitos do proprietário ou dos

contratantes.

Assim, a definição do que seja função social da propriedade há de ter como

premissa, a garantia do conteúdo essencial do direito de propriedade, ao passo que

a busca do conceito de função social do contrato deve ter como pressuposto que os

contratos são celebrados, essencialmente, para serem cumpridos.

A função social do contrato possui um aspecto intrínseco, que advém da

analise do contrato no âmbito restrito do vínculo entre as partes contratantes e ou

extrínseco, que se refere aos efeitos do contrato perante terceiros, isto é, perante a

sociedade, mas atua, ao mesmo tempo, como proteção dos contratantes em face de

terceiros que visem frustrar o cumprimento do contrato.

O Código Civil de 2.002, conforme já salientamos, acolheu o princípio da

socialidade, bem como conferiu novos contornos ao perfil do direito de propriedade,

trazendo dispositivos voltados ao atendimento da função social da propriedade e,

em algumas situações, imprimindo significativo valor à posse daquele que, em lugar

do proprietário inerte, desempenha atividades, que propiciam o atendimento da

função social.

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211

Daí se afirmar que hoje não se pode afirmar que o direito do proprietário

usar a coisa, sempre implica, também o de não usá-la.

A relevância que ganha o princípio da função social da propriedade no Novo

Código pode ser percebida, não só nos §§ 1º e 2º do artigo 1.228 do Código Civil,

mas também e, principalmente, pela redução feral dos prazos para a usucapião

ordinária e extraordinária prevista no caput dos artigos 1.242 e 1.238,

respectivamente.

A redução específica contida nos parágrafos únicos destes mesmos artigos,

por sua vez, evidenciam a função social da posse, que se embute na função social

da propriedade, conspirando, num primeiro momento, contra o direito de

propriedade, mas visando, de outro lado, a consolidação do mesmo direito nas mãos

daquele que cumpre a função social.

Também evidenciam esta mesma função social da posse os artigos 1.239 e

1.240, que prevêem, respectivamente a usucapião especial rural e urbana.

Mas talvez a maior expressão dos princípios da função social da posse

esteja representada no artigo 1. 228, §§ 4º e 5º do Código Civil que chega inclusive

a mitigar a característica da propriedade como direito oponível contra terceiros

(direito absoluto).

Em todos os casos em que concluímos se tratar de manifestação do

princípio social da posse, o legislador abrevia a aquisição da propriedade pelo

possuidor, desde que além da posse pura e simples prevista do artigo 1.196 do

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Código Civil, estejam presentes aspectos externos aos quais se confere relevância,

tais como o fato do possuidor estabelecer no imóvel sua moradia, exercer atividade

produtiva, ou realizar obras de interesse social e econômico relevante.

Feitas estas breves conclusões, cumpre-nos, por derradeiro, fazer

considerações sobre a função social da propriedade rural e da propriedade urbana.

A Constituição Federal no artigo 182 delegou ao Município a execução,

segundo as diretrizes gerais fixadas por lei federal, da política de desenvolvimento

urbano e estabeleceu que cumpre a função social, o proprietário que atende a estas

exigências, dispostas no plano diretor.

Também estabeleceu a Constituição, no § 4º do mesmo artigo que o

descumprimento da função social da propriedade urbana ensejará a aplicação

sucessiva das seguintes sanções: (i) edificação, parcelamento e utilização

compulsórias; (ii) cobrança de IPTU progressivo no tempo; (iii) desapropriação

sanção.

As de que tratou o artigo 182 da Constituição foram implementadas pelo

Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01). Referida lei fixou as diretrizes gerais dos

Instrumentos Urbanísticos, previstos no § 4º do artigo 182 da Constituição Federal,

como forma de compelir o proprietário a cumprir a função social sob pena de

sanção.

No entanto, a utilização, progressiva, destes instrumentos se condiciona a

edição do plano diretor e das respectivas leis municipais específicas, sob pena de

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ilegalidade. Além disso, a aplicação de tais medidas, se existente as referidas

legislações deve assegurar ao proprietário o contraditório.

Outro instrumento que se presta à proporcionar o cumprimento da função

social da propriedade, previsto no Estatuto da Cidade é a usucapião especial urbana

individual e a coletiva. Nelas o elemento externo à posse a que o legislador atribui

significação para facilitar a aquisição da propriedade em menor tempo, é o fato dos

possuidores utilizarem o imóvel para sua moradia.

Por fim, no que tange à função social da propriedade rural, a Constituição

define no artigo 186, requisitos cumulativos a serem atendidos pelo proprietário para

cumprir a função social, sob pena de desapropriação-sanção.

Tais requisitos enfatizam não só a produção adequada e eficiente, mas

também a preservação ambiental, as relações de trabalho dignas e o bem estar de

proprietários e trabalhadores.

Escapam a este tipo de desapropriação, a pequena e média propriedade

rural, apenas.

Por fim, a Constituição Federal prevê, no artigo 191, o Usucapião especial

rural, regulado pelo artigo 1.240 do Código Civil, possibilitando a aquisição da

propriedade em tempo reduzido, nos casos, em que o possuidor reside e, ao mesmo

tempo, realiza atividade produtiva, por seu trabalho ou de sua família.

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