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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP) MARLI PITARELLO SELEÇÃO SOCIOECONÔMICA: LEGITIMAÇÃO DA DESIGUALDADE SOCIAL NA SOCIEDADE CAPITALISTA Um estudo dos fundamentos sócio-históricos de sua operação na política social e no Serviço Social DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP)

MARLI PITARELLO

SELEÇÃO SOCIOECONÔMICA: LEGITIMAÇÃO DA DESIGUALDADE SOCIAL

NA SOCIEDADE CAPITALISTA

Um estudo dos fundamentos sócio-históricos de sua operação na política social e no

Serviço Social

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO 2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP)

MARLI PITARELLO

SELEÇÃO SOCIOECONÔMICA: LEGITIMAÇÃO DA DESIGUALDADE SOCIAL

NA SOCIEDADE CAPITALISTA

Um estudo dos fundamentos sócio-históricos de sua operação na política social e no

Serviço Social

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção do título

de Doutor em Serviço Social, sob orientação

da Profª Drª Marta Silva Campos.

SÃO PAULO 2013

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BANCA EXAMINADORA

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À Ana Luiza, minha menina, com a qual compartilho o dia a dia e encontro nessa

convivência os motivos para renovar minhas esperanças na transformação do mundo.

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AGRADECIMENTOS

Agradecer é um ato de reconhecimento do significado positivo que algumas pessoas

têm em nossas vidas. Sem o apoio delas, não teria sido possível ter chegado até aqui.

Agradecer nomeadamente a todas que contribuíram nesta empreitada é certamente impossível,

mas, embora difícil, quero expressar meus agradecimentos especiais.

Primeiramente, sou grata à Profª Marta Silva Campos, pela orientação e pelo empenho

para que eu pudesse aproveitar, ao máximo, minha permanência em Portugal.

Ao Prof. Francisco José do Nascimento Branco, da Universidade Católica de Lisboa,

meu orientador português, com o qual estabeleci uma relação produtiva, agradeço seus

ensinamentos, que foram a base de minha vivência naquele país. E não poderia deixar de

agradecer, pela acolhida e pela colaboração na pesquisa, aos prezados colegas portugueses —

Bernardo Alfredo Henriquez, Alcina Martins, Fernanda Rodrigues, Filomena Novo, Isabel

Vieira, Maria Aurora Matias, Maria Inês Amaro, Teresa Salselas — que me permitiram

conhecer mais de perto o Serviço Social português. Além deles, Filomena Serra e Manuel

Villaverde Cabral, queridos amigos, que linda amizade construímos!

Às entrevistadas, as assistentes sociais portuguesas Alice, Fátima, Luísa e Tília, e as

brasileiras Eunice, Graziela, Isaura e Regina, que dedicaram seu tempo, toda a minha

gratidão, meu respeito e minha admiração pelo trabalho que realizam.

Meus agradecimentos a Bárbara e a Luciana Almeida pela transcrição das entrevistas.

E a Frank Ferreira, pela revisão do texto.

Às estimadas professoras Maria Carmelita Yazbek e Maria Rachel Tolosa Jorge,

agradeço a valiosa contribuição na qualificação. Aos colegas do Curso de Serviço Social da

PUC-SP, por terem compreendido minha ausência temporária em reuniões e na realização de

tarefas coletivas do Departamento. Aos professores e às professoras de pós-graduação, pelo

aprendizado e dedicação fora e em sala de aula. A Myriam Veras Baptista, querida professora

sempre gentil e atenciosa comigo, sou imensamente grata pelo carinho e pela generosidade.

Agradeço aos integrantes do NEPEDH da PUC-SP, com os quais tive convivência de

companheirismo e amizade: Maria Lucia Silva Barroco, Amanda Guazzelli, Eliane Nicoletti,

Laura Silva Santos, Luciano Alves, Maurílio Matos, Maria de Jesus de Assis Ribeiro, Vera

Martins, Rodrigo Diniz. Não poderia esquecer Cristina Brites, companheira e amiga, pela

insistência para que eu fizesse o doutorado. Aos meus atuais e ex-alunos, que me ensinam a

refletir e pensar nossa profissão com questões e desafios colocados em sala de aula.

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Um agradecimento especial às amigas e professoras Isaura Isoldi de Mello Castanho e

Oliveira e Graziela Acquaviva Pavez, pela convivência solidária, pela colaboração e paciência

que tiveram comigo durante o processo de elaboração deste estudo.

Aos colegas do Programa Foco, em especial às queridas companheiras Rosina Revolta

Gonçalves e Vania Ferreira de Sousa, pela amizade e pelo trabalho solidário que juntas

realizamos.

Às minhas prezadas amigas Dora Petreski, Edima Donabella, Maria Cecília Figueira

de Mello, Maria Aparecida Salomão Moraru e Regina Maria Ignarra, agradeço pela linda e

solidária amizade que construímos e que persiste há tantos anos. À Cleisa Moreno Maffei

Rosa, pela generosidade com que sempre me trata. É muito bom contar com uma amiga com a

qual posso falar de receitas culinárias ao destino que desejamos para o mundo. Ao igualmente

amigo de muitos anos, Alberto Abib Andery, pela confiança e esperança que sempre

depositou em mim e pelas tantas coisas que me ensinou na vida, especialmente o valor da

amizade leal e sincera.

Ao Sílvio Hotimski, que, de longa data, vem me ajudando a realizar escolhas em

benefício da minha felicidade.

Agradeço à Capes pela Bolsa de Estágio no Exterior, que me permitiu estudar em

Portugal, e à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo pela Bolsa Dissídio, que me

dispensou do pagamento das disciplinas cursadas no meu doutorado.

Por fim, quero agradecer às queridas amigas Cinira do Prado Francisco e Odília Alves

de Souza, a dedicação e os cuidados que dispensam à minha família. A vocês todo o meu afeto

e reconhecimento, sempre. Às amigas Ana Paula Pavan Dondon, Cíntia Constantino Menezes e

Duca Rachid e respectivas famílias, precioso legado dos tempos do Grão de Chão, pela bonita,

recíproca e cúmplice relação que temos até hoje e que torna a educação de nossos filhos mais

rica. Ao Paulo Roberto Pires, pela ajuda que me liberou de muitas tarefas cotidianas.

À minha família sou imensamente grata. Aos queridos primos Santa, Carla, Cristiane,

Douglas, Gilberto, Dete, João e a pequena Olívia, por nossos encontros à moda italiana,

sempre alegres e acompanhados de muita comida.

À minha amada irmã Marlene, pelo caminho que trilhamos juntas e por tudo. Sem a

sua presença cúmplice na minha vida não teria feito o que fiz.

A meus pais Olga e Alceu, já falecidos: eles são minhas referências, que, pela nossa

origem social, ensinaram-me o valor do trabalho, da união, da esperança e da luta,

especialmente a luta por um mundo mais igual e justo.

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RESUMO

Esta tese busca fundamentar a intervenção profissional do assistente social em relação à seleção socioeconômica. Nas organizações sociais, esta representa um instrumento utilizado pelo assistente social, na qualidade de funcionário, para possibilitar que a população demandatária dos benefícios e serviços sociais possa concorrer ao direito ao acesso a bens e serviços, muitas vezes constitucionalmente previstos, mas negados, na prática, como direito social universal. Nessas condições, é da seleção socioeconômica, enquanto instrumento da política social, operada pelos assistentes sociais na quase totalidade das organizações sociais — tomadas estes como espaços sócio-ocupacionais da profissão — que este estudo se ocupa. Na análise empreendida, localiza-se o surgimento da seletividade e de seus fundamentos, que passaram a integrar as propostas historicamente construídas de proteção social, em particular a partir dos séculos XVI e XVII no Ocidente Europeu, ainda presentes nos dias atuais sob a égide do capitalismo neoliberal. O aprofundamento do significado dessa seletividade implicou a análise dos direitos sociais em face da universalização e da focalização das políticas sociais na atualidade, assim como do sentido das contrapartidas ou condicionalidades, como parte integrante dessa seletividade. A pesquisa desenvolvida explicita ainda a fundamentação atribuída à seleção socioeconômica quando esta passou a constituir atividade do assistente social desde a emergência e a institucionalização do Serviço Social nos Estados Unidos, na Europa Ocidental e no Brasil, destacando-se o papel da Igreja Católica na expansão do Serviço Social no cenário mundial. O exame da relação entre seleção socioeconômica, política social e Serviço Social revela a natureza, a utilidade e o significado dessa seleção, tanto no âmbito da política social, como no da participação dos assistentes sociais nos processos seletivos, no sentido de sua legitimação social na sociedade capitalista. Problematizando essa articulação no exercício e na formação profissional do assistente social, mediante a contribuição bibliográfica e um estudo de natureza qualitativa realizado com profissionais do Serviço Social no Brasil e em Portugal, o estudo conclui que, apesar das lutas empreendidas pelos trabalhadores, as mudanças em relação ao acesso aos serviços e benefícios sociais ainda são pequenas e que os fundamentos da seleção socioeconômica praticada pelos primeiros assistentes sociais ainda estão presentes de forma viva. Hoje, diante da tendência mundial de focalização da política social, sendo Portugal e Brasil dois exemplos, a seletividade de acesso da política social tem aumentado, o que aponta a necessidade de se continuar a reflexão e a busca da construção de respostas, visando ao atendimento dos interesses dos trabalhadores ou daqueles que dependem do trabalho para viver.

Palavras-Chave: Política social; Serviço Social; seleção socioeconômica; instrumentalidade profissional; desigualdade social

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ABSTRACT

This thesis’ objective is to provide a basis for the intervention of the professional social worker in socioeconomic selection. In social organizations, socioeconomic selection is an instrument used by the social worker, as an employee, to enable the benefits and social services demanding population to qualify for access to goods and services, often constitutionally provided, but denied in practice as universal social right. Under these conditions, the socioeconomic selection, as instrument of social policy operated by social workers in almost all social organizations — taken as socio-occupational profession spaces — is what this study is concerned with. The analysis undertaken located the emergence of selectivity and its grounds, which were incorporated into the historically constructed social protection proposals, particularly from the sixteenth and seventeenth centuries on, in Western Europe, and still present today under the aegis of neoliberal capitalism. To reach the selectivity deeper significance involved the analysis of social rights in the face of today universalization and targeting of social policies, as well as the sense of the compensatory conditions as part of this selectivity. The research further explains the reasons attributed to socioeconomic selection when it has become a social worker activity with the emergence and institutionalization of Social Work in the United States, Western Europe and Brazil, highlighting the role of the Catholic Church in the expansion of Social Work on the world stage. An examination of the relationship between socioeconomic selection, Social Policy and Social Work reveals the nature, the usefulness and significance of this selection, both in the context of social policy, as in the social workers involvement in selection processes, in the sense of its social legitimacy in capitalist society. Discussing this articulation in the work and training of social workers, through the contribution of literature and a qualitative study conducted with social service works in Brazil and Portugal, the study concludes that, despite the struggles undertaken by workers, changes in the access to social services and benefits are still small, and that the foundations of socioeconomic selection practiced by the early social workers are still strongly present. Today, faced with the global trend of targeting of social policy, Portugal and Brazil being two examples, the selectivity of access of social policy has increased, indicating the need for further reflection and the pursuit of constructing responses in order to meet the interests of workers or those who depend on work to live.

Keywords: Social policy; Social Work; socio-economic selection; professional instrumentation; social inequality

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LISTA DE SIGLAS

Abepss: Associação de Ensino e Pesquisa em Serviço Social APPS: Associação dos Profissionais de Serviço Social BPC: Benefício de Prestação Continuada Capes: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Ceas: Centro de Estudos e Ação Social CLT: Consolidação das leis do trabalho COS: Charity Organization Society Cras: Centro de Referência de Assistência Social Creas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social Cress: Conselho Regional de Serviço Social CSW: International Council on Social Welfare Dieese: Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos Funai- Fundação Nacional do Índio IBGE: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IPO: Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil de Lisboa ISSSL: Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa LBA: Legião Brasileira de Assistência MST: Movimento dos Trabalhadores sem Terra NEPEDH: Núcleo de Estudos e Pesquisa em Ética e Direitos Humanos do Programa de Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC-SP OIT: Organização Internacional do Trabalho ONG: Organização não governamental PAT: Programa de Alimentação do Trabalhador PBF: Programa Bolsa Família PFP: Programa de Formação Profissional PIB: Produto interno bruto PT: Partido dos Trabalhadores PTC: Programas de transferência de renda condicionados ou com condicionalidades PTCR: Programa de Transferência Condicionada de Renda PUC-SP: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Rais: Relação Anual de Informações Sociais RMG: Rendimento Mínimo Garantido RSI; Rendimento Social de Inserção SCML: Santa Casa de Misericórdia de Lisboa Seade: Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados Senai: Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial Sesi: Serviço Social da indústria Suas: Sistema Único de Assistência Social TCC: Trabalho de conclusão de curso Uciss: União Católica Internacional de Serviço Social Uciss: União Católica Internacional de Serviço Social UCP: Universidade Católica Portuguesa UFSC: Universidade Federal de Santa Catarina Unicamp: Universidade Estadual de Campinas Unicsul: Universidade Cruzeiro do Sul URSS: União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO, 1 Pressupostos da pesquisa, 6 O objeto, 8 A pesquisadora, 9 A organização do estudo, 11 CAPÍTULO 1 — A SELETIVIDADE PRESENTE NAS PROPOSTAS DE PROTEÇÃO SOCIAL CONSTRUÍDAS HISTORICAMENTE, 13 1.1. Os direitos sociais entre a universalização e a focalização da política social, 35 1.2. Contrapartidas ou “condicionalidades”, 45 CAPÍTULO 2 — EM BUSCA DOS FUNDAMENTOS DA SELETIVIDADE PRESENTES NA EMERGÊNCIA E INSTITUCIONALIZAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL, 51 2.1. Os fundamentos da seletividade presentes na emergência e institucionalização do

Serviço Social nos Estados Unidos, 54 2.2. A aproximação do Serviço Social norte-americano e europeu, 69 2.3. O ideário católico presente na expansão do Serviço Social face à modernidade, 85 2.4. Sobre o indivíduo na religião cristã como fundamento para entender o Serviço

Social, 93 2.5 A seleção socioeconômica na emergência e constituição do Serviço Social no Brasil, 98 CAPÍTULO 3 — A SELEÇÃO SOCIOECONÔMICA, POLÍTICA, SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL, 112 3.1. Natureza e utilidade da seleção socioeconômica no âmbito da política social, 112 3.2. Modalidades das seleções socioeconômicas e critérios, 121 3.3. A utilidade da ação profissional do assistente social na seleção socioeconômica das

organizações sociais, 125 3.4. O significado da participação do assistente social na seleção socioeconômica para

análise do campo profissional do Serviço Social, 130 3.5. Formas de legitimação do assistente social como operador da seletividade de acesso

às políticas sociais, 134 CAPÍTULO 4 — A SELEÇÃO SOCIOECONÔMICA NO EXERCÍCIO E NA FORMAÇÃO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL CONFORME AS ENTREVISTAS REALIZADAS, 146 4.1. Definição dos instrumentos de pesquisa, 146 4.2. A definição dos sujeitos da pesquisa, 147 4.3. O conteúdo das entrevistas, 157 4.4. Análise das entrevistas, 159 4.4.1. Postura diante da seleção socioeconômica, 160 4.4.2. Natureza e significado da seleção socioeconômica, segundo o entendimento das

entrevistadas, 165 4.4.3. A definição e uso de critérios na seleção socioeconômica, 185 4.4.4. As contrapartidas como condição de acesso e permanência no atendimento, 214

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4.4.5. Os procedimentos e instrumentos de operação da seletividade de acesso aos serviços e benefícios sociais, 228

4.4.6. As pressões políticas atuantes no processo seletivo, 240 4.4.7. Desafios colocados à profissão na atual conjuntura e a seletividade de acesso: as

condições de trabalho e os interesses dos usuários, 249 4.4.8. Como se deu a qualificação das entrevistadas para a realização da seleção

socioeconômica, 272 4.4.9. Os desafios do ensino da instrumentalidade profissional em tempos adversos, 284 4.4.10. A pesquisa da instrumentalidade profissional e a seleção socioeconômica, 299 CONSIDERAÇÕES FINAIS, 309 REFERÊNCIAS, 322 ANEXOS, 335 Anexo 1: Ficha de Identificação do Entrevistado, 336 Anexo 2: Roteiro das entrevistas realizadas em Portugal, 337 Anexo 3: Perfil das entrevistadas em Portugal (dezembro de 2010) e no Brasil (abril de 2012), 339 Anexo 4: Roteiro da entrevista coletiva com assistentes sociais brasileiras, 334 Anexo 5: Recorte da entrevista realizada com Tília na cidade do Porto, em dezembro de 2010, 346

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INTRODUÇÃO

A razão desta pesquisa tem caráter teórico-prático, uma vez que, desde 1998, sou

desafiada, através da vivência em dois projetos de extensão universitária que se realizaram no

âmbito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP): o Cursinho do Grêmio

Politécnico, de 1998 a 2000, e o Projeto Suplementar Foco Vestibular, de 2006 até o primeiro

semestre de 2012.

A reflexão e o aprofundamento do meu estudo acerca das formas de acesso à política

social foram, desde então, impulsionados pelo fato de coordenar esses trabalhos na qualidade

de professora do Curso de Serviço Social da PUC-SP, tendo, ao mesmo tempo, que responder

pela sua operação no campo. Trata-se de duas experiências educacionais que se localizam no

âmbito da criação de possibilidades de acesso à educação universitária para um segmento da

população de baixa renda, advinda na sua quase totalidade da escola pública. Nos dois

projetos, a demanda inicial posta ao Serviço Social incide na construção de instrumentos de

operação da seleção socioeconômica, para a qual se respeita e se reconhece a experiência e a

qualificação do assistente social para assumir tal atribuição, após a avaliação das várias

tentativas praticadas terem sido consideradas não satisfatórias.

De início, aceitei o desafio apresentado pelo Grêmio Politécnico, mais pelo

envolvimento e pelo interesse em contribuir para que pudesse vingar aquele projeto inovador

e menos pelo acúmulo teórico-prático para realizar a seleção demandada. Até então, eram

genéricos meu conhecimento e minha reflexão acerca de processos seletivos como forma de

acesso a serviços e benefícios sociais. Contribuir para o acesso de um segmento da população

pobre à universidade pública era e continua sendo fundamental e urgente, principalmente se

nos referimos ao acesso à informação com qualidade, no qual a preocupação com a visão

crítica do aluno é preocupação constante e central de sua formação social.

Era esse o horizonte que me animava, quando deparava com a possibilidade de poder

contribuir com a criação de uma história na qual um segmento da classe trabalhadora estava

sendo atendido com respeito, participando de um projeto de ensino qualificado. Instigava-me o

fato de que, mesmo em projetos que veiculam os interesses dos trabalhadores, é necessário

selecionar alguns em detrimento de outros. Não bastava perceber que os recursos eram escassos

para atender número maior de alunos. Passei a desejar desvendar o que se escondia por trás

daquele ato seletivo, visando tirar da banalidade a ideia de que selecionar seria “natural”.

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Foi nesse contexto que comecei a construir um pensamento acerca da seleção

socioeconômica ligada ao acesso às políticas sociais, procurando acumular experiência

teórico-prática sobre o tema. Desde então, tive oportunidades de assessorar vários grupos que

nos demandaram estudos e a criação de instrumentos para a operação de seus processos de

seleção socioeconômica, sendo que cada um deles nos trouxe novas e desafiantes questões.

Nessa trajetória, paradoxalmente, pude constatar que, por um lado, há esse

reconhecimento da experiência “acumulada” da profissão nos processos de seleção

socioeconômica; esta pode mesmo ser vista, ao longo da história, como uma das principais

atividades dos assistentes sociais nas organizações que os contratam. Contudo, apesar de presente

no cotidiano dos assistentes sociais, não recebeu por parte da categoria tratamento proporcional a

essa importância, no sentido de ser colocada na agenda do debate profissional qualificado.

A ressalva de sua importância se deve, entretanto, mais à alta incidência de sua

realização no dia a dia que ao engrandecimento e ao reforço de sua existência como prática de

controle social.

Nas organizações sociais que desenvolvem tal proposta, a seleção socioeconômica

representa um instrumento utilizado pelo assistente social, na qualidade de funcionário, para

possibilitar à população demandatária dos serviços sociais pleitear o direito de concorrer ao

acesso a bens e serviços, previstos constitucionalmente, mas negados, na prática, como direito

social universal. É dela, situada como instrumento da política social, operada pelos assistentes

sociais na quase totalidade das organizações sociais, tomadas como lócus do trabalho

profissional, que pretendo me ocupar nesse estudo.

O sentido desta pesquisa, orientado por categorias analíticas e reflexões teóricas,

responde, portanto, a uma necessidade de fundamentar a intervenção profissional do assistente

social em relação à seleção socioeconômica. Trata-se de dar importância a uma atividade

profissional do assistente social, reconhecida na Lei nº 8.662, de 7 de junho de 1993, que

regulamenta o exercício da profissão de assistente social. Consta em seu artigo 4º, item XI,

que é de competência do assistente social “realizar estudos socioeconômicos com os usuários,

para fins de benefício e serviços sociais junto a órgãos da administração pública direta ou

indireta, empresas privadas e outras entidades”.

Em outros itens dessa lei, aparecem como atribuições privativas do assistente social

diversas atividades relacionadas à elaboração, ao planejamento, à gestão e à execução das

políticas sociais, das quais fazem parte a definição e a execução das formas de acesso da

população a essas políticas. Constam dos itens I, II, IV e XII do art. 5º, entre outras atribuições:

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• coordenar, elaborar, executar, supervisionar e avaliar estudos, pesquisas, planos,

programas e projetos na área do Serviço Social;

• planejar, organizar e administrar programas e projetos em unidades de Serviço

Social;

• realizar vistorias, perícias técnicas, laudos periciais, informações e pareceres sobre

a matéria do Serviço Social; e

• dirigir serviços técnicos de Serviço Social em entidades públicas e privadas.

Essa lei, que legitima o lugar do Serviço Social na divisão sociotécnica do trabalho,

representa o reconhecimento da sociedade brasileira de que o assistente social é habilitado

para realizar esse tipo de estudo social, dando-lhe, legalmente o direito e o poder para tanto.

Essa competência profissional do assistente social é parte integrante do atendimento dirigido à

população usuária dos programas da política social.1 No entanto, não vem recebendo

tratamento proporcional à sua importância na agenda do debate qualificado da profissão.

Neste aspecto, há um silêncio no Serviço Social quanto ao âmbito de seus

fundamentos sócio-históricos e da sua sistematização operacional. Independentemente dessa

falta de avanço da produção teórica, processos seletivos vêm sendo realizados cotidianamente

pelos assistentes sociais. Interessa-nos decifrar o que se esconde sob tal desconsideração.

Se não há aprofundamento teórico relevante sobre as formas de acesso à política social

que dê aos assistentes sociais suficientes fundamentos e subsídios para sua intervenção,

pergunto-me de onde provêm suas ferramentas de operação. Sou levada a supor que, para

muitos, não passam de simples conjunto de regras e procedimentos, carregando o perigo de

reiteração de idéias presentes no senso comum, pensamento predominante no cotidiano.

Sabemos que não há atividade técnica em si mesma, pois sempre estão presentes

referências teórico-metodológicas e ético-politicas que subsidiam o fazer profissional. Na

falta da teoria que dê substância à prática, poderá ganhar relevo a simplificação e a

banalização das situações que se apresentam ao profissional. O uso da técnica sem crítica

acabará por levar o profissional a deixar as ações falarem por si mesmas contentando-se em

legitimar o julgamento, para si mesmo, e para a organização em que trabalha, do quanto foi

“justo” e “técnico” nos seus procedimentos.

1 Diferencio, com Iamamoto (2009a, p. 21), competência e atribuição. Competência é entendida como “expressão de capacidade para apreciar ou dar resolutividade a determinado assunto, não sendo exclusiva de uma única especialidade profissional [...]”. Atribuição é “prerrogativa exclusiva ao serem definidas enquanto matéria, área e unidade de Serviço Social”.

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Teoria e prática caminham sempre juntas. Sem uma sólida teoria, não se faz

intervenção séria, conseqüente e comprometida com os interesses das camadas sociais

subalternizadas. Como Bourdieu (1973, apud THIOLLENT, 2008, p. 44-47), entendo que a

técnica é a materialização em atos da teoria e das intencionalidades. Nessa perspectiva, não há

possibilidade de neutralidade profissional diante dos sujeitos tomados como objetos de

pesquisa ou da intervenção profissional. Se o profissional não realiza escolhas de ordem

teórica e política, reiterará o que já existe no cotidiano.

Não é possível haver neutralidade diante da realidade que se apresenta aos nossos

olhos. Portanto, quando aparentemente nos mantemos indiferentes ao que fazemos ou ao que

se passa em nossa volta, estamos reiterando o sentido que “outros” deram àquilo. O que

significa, então, o silêncio da profissão sobre a realização da seleção socioeconômica? O que

se esconde sob ela?

Em relação ao Serviço Social, percebemos que, apesar do significativo acúmulo

teórico sobre a natureza da profissão, situando-a no plano maior das relações sociais vigentes,

parece haver, quanto à seleção socioeconômica, uma dicotomização na prática dos assistentes

sociais brasileiros. Pauta-se esta, ainda, pela ideia de culpabilização do pobre por sua situação

de pobreza. Distinguindo entre bons e maus pobres, pratica-se uma forma de meritocracia.

Essa prática cotidiana, que entende a questão social como questão moral, não reconhece o

acesso aos bens e serviços sociais como direito humano e social dos indivíduos. Não enxerga

os usuários dos serviços sociais como sujeitos portadores de direitos e reforça a ideia de que o

acesso está atrelado ao favor das entidades sociais e dos governos e ao mérito dos indivíduos,

assim como considera “naturais” a existência da seleção e a não disponibilidade de recursos

para atender a todos.

Ir além das aparências pressupõe perceber sua decisiva utilidade social como

instrumento legitimador da desigualdade — de controle social, portanto —, uma vez que a

ação profissional fornece instrumentalidade e estatuto científico à seletividade presente nos

programas de política social, facilitando sua aceitação pública.

A análise dos processos técnicos vinculados à seleção socioeconômica enquanto uma

das competências e atribuições profissionais do assistente social que almejamos desenvolver

tem como referência básica o fato de o Serviço Social estar integrado às relações sociais que

se desenvolvem na ordem capitalista. Embora o assistente social trabalhe a partir da demanda

e com a situação de vida trazida pelo trabalhador, não é este, no entanto, quem o contrata e

remunera. Estabelece-se uma disjunção entre intervenção e remuneração (IAMAMOTO;

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CARVALHO, 1985, p. 84), e está presente para o profissional, em diferentes níveis, um mandato

das classes dominantes junto à classe trabalhadora.

O objeto de estudo dessa pesquisa é a seleção socioeconômica como condição e forma de

acesso aos serviços e benefícios sociais, desvendando os fundamentos sócio-históricos de sua

operação na Política Social e no Serviço Social. Pretendemos tirar do silêncio a execução da

seleção socioeconômica, trazendo-a para o âmbito do debate da profissão, enquanto

atribuição/competência profissional. Da mesma forma, pretendemos explicitar de que modo a

seleção socioeconômica, enquanto atribuição profissional, vem sendo tratada pelos assistentes

sociais na literatura profissional, na formação e no exercício profissional propriamente dito. Mais

ainda, caracterizar a particularidade da seleção socioeconômica como atribuição/competência

profissional no Serviço Social e abrir debate qualificado no Serviço Social acerca dos processos

seletivos, construindo a problematização em torno das questões que os envolvem também se

levantam como horizontes a serem alcançados pela pesquisa.

Cabe destacar que, durante o doutorado, quando me deparei com a possibilidade de

ampliar meus estudos no exterior através de uma bolsa do Plano Doutoramento de Estágio no

Exterior (PDEE) da Capes, escolhi e fui aceita para realizar em Portugal um estágio sediado no

Programa de Doutoramento em Serviço Social da Universidade Católica de Lisboa no período

compreendido entre julho e dezembro de 2010.

Meu interesse por Portugal pautou-se nos bons e produtivos laços existentes entre os

Serviços Sociais brasileiros e portugueses, que vêm sendo construídos desde o início da

década de 1970. Naquele momento, o Serviço Social português começou a se questionar,

influenciado pelo movimento latino-americano denominado por Reconceituação do Serviço

Social (1965-1975), tendo como referência dois documentos brasileiros (os de Araxá e

Teresópolis) que passaram a ter papel decisivo na reorientação da prática profissional naquele

país (BRANCO; FERNANDES, 2005).

Mas é nos anos 1990 que tem início uma longa história de parcerias entre o Instituto

Superior de Serviço Social de Lisboa (ISSSL) e o Programa de Estudos Pós-Graduados em

Serviço Social da PUC-SP. O quadro de professores que implantou em Portugal o mestrado, em

1995, e o doutorado, em 2003, obteve sua titulação na PUC-SP, e, a partir daí, o intercâmbio

acadêmico entre os dois países tem sido constante.

Em relação à seleção socioeconômica, tinha interesse em conhecer as particularidades

de sua realização naquele país, partindo da apreensão de que se constitui em importante e

decisivo instrumento de controle social que contribui para manter e legitimar a desigualdade

social, inerente à ordem do capital, tendo uma natureza que é a mesma em qualquer país ou

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lugar onde se realiza, embora adquira diversas peculiaridades nos diversos contextos e épocas

em que se realiza. Em Portugal, pude estudar e conhecer a história e um pouco do trabalho

realizado pelos assistentes sociais naquele país e observar como a reordenação do capitalismo

internacional, na era da globalização neoliberal, tem rebatido na política social praticada no

continente europeu, na especificidade lusitana.

Considero que o estágio realizado me possibilitou o aprofundamento dos estudos,

principalmente sobre o movimento universalização-focalização da política social, assim como

me estimulou a retomar o estudo e a reflexão sobre as origens da profissão, buscando entender

quando, como e quanto a seleção socioeconômica havia se colocado como atividade de

competência do assistente social. Em Portugal, como parte da pesquisa empírica, realizei

entrevistas com assistentes sociais, cujos perfis delinearei mais à frente. Através dos estudos e

entrevistas realizadas com assistentes sociais brasileiras e portuguesas, pretendi ampliar a

problematização acerca da prática de seleção de acesso aos serviços e benefícios sociais,

criando mais um diálogo entre os profissionais dos dois países em foco, sem a pretensão de

empreender um estudo de caráter comparativo. A tônica problematizadora dada à nossa

pesquisa justifica-se diante da quase inexistência de bibliografia sobre o assunto no Serviço

Social e da pretensão de apreender a seleção socioeconômica na perspectiva da totalidade,

destacando as determinações que conseguimos captar por meio do estudo realizado.

Neste estudo, minha intenção maior antes, durante e após a realização das entrevistas

foi a de questionar a seleção socioeconômica para configurar, detalhar e analisar as equações

envolvidas nessa atividade, visando dar visibilidade aos desafios presentes na criação das

respostas profissionais.

Considerei as colegas entrevistadas como parceiras no enfrentamento desse desafio,

tratando-as nessa condição e dando a elas a devida autoria de idéias expostas, a partir de

roteiro previamente estabelecido.

Pressupostos da pesquisa2

Explicitar o caminho trilhado na pesquisa é mencionar a perspectiva de análise que

orientou a abordagem do objeto de estudo nas referências teóricas utilizadas e na pesquisa de

2 Na construção destas referências, pautei-me basicamente pelos estudos realizados durante o curso “Origens da ontologia do ser social: Marx e Lukács”, ministrado pelo prof. Celso Frederico durante o segundo semestre de 2008, no Programa de Estudos Pós Graduados em Serviço Social da PUC-SP, assim como nas aulas da disciplina “Fundamentos filosóficos e questões do método nas ciências sociais”, ministradas pelo prof. José Paulo Netto, durante o primeiro semestre de 2011, no referido Programa.

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campo realizada para embasar e iluminar a apreensão da seleção socioeconômica enquanto

instrumento da política social operada pelo profissional.

Marx incita-nos a pensar sobre o árduo trajeto quando entendemos que o papel básico

da teoria é a busca incessante da verdade escondida nas coisas, que são tomadas como objetos

de nossa ação de pesquisar:

O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação (MARX, 1978b, p. 116).

Partindo desse pressuposto, entendo que cada tema que pretendemos estudar já existe,

tem uma história, tem uma natureza que não se revela de imediato. Para conhecê-la, é preciso

realizar um caminho de deciframento, mediante aproximações sucessivas, para ir explicitando

as categorias que lhe dão existência e fundamentam o seu jeito de ser, a sua natureza.

Na aparência, há a ilusão de que os objetos sociais são prontos, dados e sempre

estiveram ali tal qual os vemos e, consequentemente, não são reconhecidos como as

construções históricas que, de fato, são. Todavia, as aparências nos enganam, pois esses

objetos, alvo de nossa ação de pesquisadores, são resultado de ações humanas e de complexas

mediações; portanto, contêm uma história de relações que os constituem, na qual a aparência

é a forma necessária da essência. Os objetos que vemos e com que deparamos na vida

cotidiana são o resultado de inúmeros processos, mediados por ações e intenções humanas,

tendo como fundamento a prática dos homens entre si e as relações de adaptação e

transformação que estabeleceram com a natureza através do trabalho para satisfazer suas

necessidades ao longo da história.

Isso significa dizer que a realidade existe antes do pensamento científico, artístico ou

filosófico se apossar do seu jeito de ser pela consciência. Mas, para apreendê-la, é preciso

percorrer longo caminho para juntar, em unidade contraditória, a aparência e a essência.

Em outras palavras, o objeto de pesquisa tem uma existência objetiva, que independe da

consciência do pesquisador: “[...] pela teoria, o sujeito [pesquisador] reproduz em seu

pensamento a estrutura e a dinâmica do objeto de pesquisa. E esta reprodução (que constitui

propriamente o conhecimento teórico) será tanto mais correta e verdadeira quanto mais fiel o

sujeito for ao objeto” (NETTO, 2009, p. 673). O fundamento dessa trajetória é, portanto, a

história relativa à prática dos homens. A teoria social é o concreto pensado: “[...] o

conhecimento teórico é o conhecimento do objeto tal como ele é em si mesmo, na sua existência

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real e efetiva, independentemente dos desejos, das aspirações e das representações do

pesquisador” (NETTO, 2009, p. 673). Na concepção marxiana de teoria,

[...] a teoria é a reprodução no plano do pensamento, do movimento real do objeto. Esta reprodução, porém, não é uma espécie de reflexo mecânico, com o pensamento espelhando a realidade tal como um espelho reflete a imagem que tem diante de si. Se assim fosse, o papel do sujeito que pesquisa, no processo de conhecimento, seria meramente passivo. Para Marx, ao contrário, o papel do sujeito é essencialmente ativo: precisamente para apreender não a aparência ou a forma dada ao objeto, mas a sua essência, a sua estrutura e a sua dinâmica (mais exatamente: para apreendê-lo como um processo), o sujeito deve ser capaz de mobilizar um máximo de conhecimentos, criticá-los, revisá-los e deve ser dotado de criatividade e imaginação (NETTO, 2009, p. 675).

Reconhecer que o objeto tem uma existência que independe da consciência do sujeito

que deseja conhecê-lo não significa dizer que a relação sujeito-objeto é neutra; muito pelo

contrário, trata-se de reconhecer e tratar dessa relação como relação datada, uma vez que

ocorre em espaço e tempo em que o sujeito está implicado com o objeto de forma

constitutiva: ambos vivem e existem como parte da totalidade social. Essa apreensão, no

entanto, não exclui a necessidade de objetividade na construção do conhecimento teórico.

Em qualquer estudo realizado na perspectiva sócio-histórica, o pesquisador quer

transcender a apreensão imediata de singularidade do objeto em pauta, uma vez que busca a

apreensão de sua universalidade. Este objetivo pressupõe estabelecer relações dos fatos entre

si, criando e explicitando mediações necessárias para tal intuito, onde os detalhes precisam ser

integrados ao fundamental, em face da hierarquização de importância que assumem, tendo em

vista a intencionalidade do projeto. Nessa categorização, os diversos complexos que

compõem a totalidade não têm a mesma importância uns em relação aos outros. A dimensão

econômica tem prevalência sobre as demais, porque as determina na origem.

A direção da busca é a apreensão do objeto na totalidade social da qual é parte

integrante e expresso em suas características e movimentos. O mundo é uno, não uma “colcha

de retalhos”, e, se a realidade é una, vamos nos referenciar a ela como totalidade. Nesse

sentido, cada objeto que tomamos para estudo não é um em si mesmo, mas um conjunto de

relações entre coisas e objetos.

O objeto

Esta explicitação de pressupostos fundamentou nossa intenção de, através da pesquisa,

obter um conhecimento que revele feições e modos de ser dos processos seletivos de corte

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socioeconômico, a partir do desvendamento de sua natureza e utilidade na sociedade capitalista.

O processo seletivo de corte social é parte integrante, é constitutivo da política social do Estado

capitalista, e adquire materialidade mediante sua execução pelas instâncias organizacionais. Ou

seja: tomamos a seleção socioeconômica como instrumento de controle social operado pela

política social que, mediante sua realização, obtém como produto, no mesmo processo, a

inclusão de alguns e a exclusão de outros, em relação ao acesso aos serviços e benefícios

sociais. O assistente social, como profissional, se constitui no agente que dá materialidade à

seletividade de acesso, operando-a na qualidade de trabalhador assalariado das organizações

sociais. Torna-se, ele mesmo, um instrumento da organização que o contrata.

Diante dos pressupostos apresentados e da formulação do objeto-alvo, temos de

considerar que a seleção socioeconômica não tem vida própria nem autodesenvolvimento.

Nessas condições, será preciso tomá-la, de um lado, como parte integrante da política social

nas organizações que a materializam na sociedade capitalista e, de outro, situá-la na profissão,

buscando compreender os diversos posicionamentos, lógicas e estratégias que permearam o

pensamento e a ação profissional do Serviço Social sobre ela, desde a emergência do Serviço

Social nos Estados Unidos, Europa Ocidental e Brasil.

Este procedimento permite transcender a imediaticidade, a singularidade desse objeto-

alvo, buscando a apreensão de sua universalidade, bem como destacando o conjunto de

processos e relações que lhe dão vida e que conseguirmos apreender até o momento.

A pesquisadora

Iniciei a presente pesquisa já dotada de alguma bagagem sobre o tema, resultante tanto

de minha prática profissional e docente, como do interesse constante de reflexão, há vários

anos, acerca da seleção socioeconômica. Tomo assim este estudo como mais qualificado e

como continuidade de uma trilha anterior.

As análises que apresento são permeadas das primeiras e antigas, e das novas,

apreensões. Sem as primeiras, certamente não teria chegado a este produto que ora apresento.

Devo afirmar que foi nesse trajeto, permeado de vivências solitárias e coletivas, assim

como de estudos, inquietações, desafios e reflexões de ordem teórico-prática, que forjei e

consolidei um pensamento acerca da seletividade de acesso aos serviços e benefícios sociais e

de seu profundo significado para a profissão.

A busca de querer saber nos coloca em um movimento no qual vamos percebendo que

cada objeto está em relação com tudo o mais que existe numa totalidade. Por vezes, ficamos

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digerindo as questões, até produzir algumas sínteses que nos levem a encontrar um jeito de

abordar assuntos tão complexos, sem perder o foco.

As incessantes idas e vindas, as encruzilhadas da trajetória, que, ao final, foram

permitindo o descortino do real e possibilitando a concretização do estudo, vieram

acompanhadas da desestruturação do que já conhecia — o que, por sua vez, gerou desconforto

e insegurança. Tudo sempre acompanhado da pergunta: e agora, para onde ir?

A reflexão, o estudo e a angústia que permeiam as dúvidas e as decisões foram os

elementos impulsionadores da construção do conhecimento acerca do objeto em pauta.

Penso que o processo de conhecimento nasce da crise, do desconforto, da dúvida.

Neste sentido, no caminho, muitas certezas vão sendo destruídas, porque, na verdade, se

tratava de falsos entendimentos, deixando-nos sem o ilusório “chão firme”.

E, em meio a essa turbulência, nasce também o gosto pelo saber, a sensação inédita da

maravilha que é descobrir que podemos recriar o que está dado, desejar outro jeito de ser da

vida e do mundo. Sempre surge a questão: poderia ser diferente? Nasce, também, o poder de

desejar que todos os homens, um dia, possam, de fato, ser um ser social, entendendo-se e

sendo entendidos como humano-genéricos. E o desejo de nos juntar para podermos mais.

Desde que comecei a pensar sobre os processos seletivos, de corte socioeconômico,

tenho me defrontado com situações e explicações que desenvolvi sobre o processo seletivo, e

que, portanto, para mim, hoje, parecem óbvias. No entanto, quando tenho oportunidade de

apresentá-las em diversos locais para outros colegas e estudantes, percebo olhares brilhando e

o interesse despertado em querer discutir e entender melhor a seleção socioeconômica — que,

a princípio, é percebida como tema entediante e sem novidades.

Aquilo que hoje para mim são apreensões óbvias, não são tão óbvias para os outros. Ou

melhor, apreensões que já significaram verdadeiras descobertas para mim e que hoje parecem

óbvias, porque já me encontro em outro momento, para os que me escutam são inéditas.

Situações desse tipo me permitem perceber o tanto que já caminhei e me fazem refletir

sobre a dificuldade que existe em delimitar onde começa um momento e quando se inicia

outro num estudo, e como uma produção passa a fazer parte de nossa vida.

Estudar, refletir, viver, experienciar, arriscar, executar são ações profundamente

interligadas numa pesquisa, e quando me deparei com o momento de tratar da escolha dos

sujeitos da pesquisa e dos instrumentos de operação, não podia entender que se tratava do

momento para o cumprimento de mera formalidade.

Devo esclarecer que a minha intenção inicial se dirigia para a realização de um estudo

de caráter documental acerca da seleção socioeconômica no Serviço Social. Porém, diante da

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ausência de bibliografia a esse respeito, fui aconselhada, no exame de qualificação, a desistir

desse caminho. Tomando essa indicação como fato, e após construir as bases teóricas desse

estudo, passei a buscar os apoios da pesquisa empírica a ser realizada junto a assistentes

sociais, a partir de um perfil definido, visando construir uma problematização acerca do tema

no Serviço Social no âmbito do exercício profissional, do ensino e da pesquisa. Minha

indagação básica era a seguinte: o que vêm pensando e fazendo os assistentes sociais, tendo

em vista os processos seletivos de acesso? Como vêm sendo formados os assistentes sociais

para realizar essa atividade profissional?

A pesquisa empírica é, consequentemente, um momento constitutivo de um processo

iniciado há algum tempo, tem profunda relação com os outros momentos desse mesmo

processo e será apresentada de forma detalhada no Capítulo 4.

A organização do estudo

O estudo realizado está apresentado em quatro capítulos.

Os três primeiros se dirigem à explicitação dos fundamentos sócio-históricos da

seleção socioeconômica na política social e no Serviço Social inseridos na sociedade de

classes. O quarto capítulo, que está referenciado no material obtido através das entrevistas

realizadas, equaciona a seleção socioeconômica no exercício profissional e na formação

profissional na atualidade, assim como aponta lacunas existentes na pesquisa sobre a

instrumentalidade profissional.

No Capítulo 1, ponho em evidência a análise do surgimento da seletividade e dos

fundamentos com que passou a integrar as propostas de proteção social historicamente

construídas, em particular a partir dos séculos XVI e XVII no Ocidente Europeu, chegando aos

dias atuais, sob a égide do capitalismo neoliberal. A apreensão do significado da seleção de

acesso aos serviços e benefícios sociais implicou a análise dos direitos sociais em face da

universalização e focalização das políticas sociais na atualidade, assim como do sentido das

contrapartidas ou condicionalidades, como parte integrante da seletividade.

No Capítulo 2, busco explicitar como e com quais fundamentos a seleção

socioeconômica passou a se constituir em atividade do assistente social na emergência e

institucionalização do Serviço Social nos Estados Unidos, na Europa Ocidental e no Brasil,

com destaque para o papel da Igreja Católica na expansão do Serviço Social no cenário

mundial, em face das conquistas da modernidade, como referências para entender sua

realização no presente.

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No Capítulo 3, analiso a relação entre seleção socioeconômica, política social e

Serviço Social, explicitando a natureza e a utilidade dessa seleção no âmbito da política

social, assim como a utilidade e o significado da participação dos assistentes sociais nos

processos seletivos, no sentido de sua legitimação social na sociedade capitalista.

No Capítulo 4, apresento como se deu a definição dos instrumentos e a escolha dos

sujeitos da pesquisa empírica, as quais analiso, problematizando a seleção socioeconômica no

exercício e na formação profissional do assistente social, destacando várias dimensões que a

compõem de acordo com as entrevistas realizadas.

Por fim, apresento minhas considerações finais.

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CAPÍTULO 1 — A SELETIVIDADE PRESENTE NAS PROPOSTAS DE PROTEÇÃO

SOCIAL CONSTRUÍDAS HISTORICAMENTE

Como o objeto deste estudo é apreender a seleção socioeconômica em seus

fundamentos, devemos nos reportar à assistência social como forma inicial de proteção social,

pois é nesta prática que tem origem o means test como condição e forma para verificar se o

indivíduo ou sua família são elegíveis3 para o recebimento de ajuda. Todavia, a apreensão da

assistência social nas suas origens e significados é tema difícil e exigente, pois as referências

são dispersas e ambíguas. Pereira (2008b, p. 217) atesta essa constatação.

Falar da assistência social não é fácil, porque vários são os preconceitos e ideias equivocadas que ainda cercam a matéria. Embora esse tipo de assistência seja um fenômeno tão antigo quanto a humanidade e esteja presente em todos os contextos socioculturais, poucas ainda são as contribuições teóricas que ajudam a melhor precisá-lo do ponto de vista conceitual e político-estratégico. Isso significa que a assistência social tem sido sistematicamente negligenciada, não só como objeto de interesse científico, mas como componente integral dos esquemas de proteção social pública [...].

Inicialmente, podemos dizer que “assistência” designa o ato ou efeito de amparar,

proteger, socorrer pessoas e grupos que se encontram em situação de desamparo e

desprotegidas diante das necessidades com que todos nos defrontamos para viver e sobreviver

enquanto indivíduos humanos. Várias são as situações que podem colocar em risco a vida

humana, mas esta essencialmente fica em risco quando os meios, o que o indivíduo precisa

para viver, não estão diretamente colocados ao seu dispor. A desproteção poderá ser eventual

ou definitiva na vida de um indivíduo, de um grupo de pessoas ou de uma coletividade.4

O homem, como ser da natureza, se fez ser social ao transformar a natureza a partir de

prévia ideação. A partir de seus atos primeiros como ser social, foi criando a história dos

homens e enriquecendo o repertório de respostas humanas para suprir seus carecimentos. A

troca entre os homens acompanha essa longa história, assim como a dependência que cada um

tem em relação aos demais para sobreviver individual e socialmente.

3 Na língua portuguesa, o termo “eleger” significa “preferir entre dois ou mais”, “escolher”. “Elegível”, portanto, refere-se à possibilidade de ser eleito, escolhido (HOUAISS; VILLAR, 2009). 4 Refiro-me, por exemplo, aos problemas de saúde que podem afetar a vida de uma pessoa ou grupo de pessoas. Os indivíduos podem ter doenças eventuais ou definitivas. Quando se trata de doenças crônicas, estas podem se constituir como definitivas na vida de um indivíduo; nesse caso, diremos que ele não está doente, mas que é doente. Há condições que afetam grupos de pessoas, como a insuficiência renal, as mutilações de guerras, a contaminação pelo HIV, entre outros exemplos. Todos necessitam de proteção social em relação à saúde e de meios de sobrevivência dignas.

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No decorrer dos tempos e com a complexificação da sociedade através das inúmeras

determinações e mediações que vão se impondo, a solidariedade humana, que inicialmente

poderia ser entendida como simples questão de âmbito das relações interpessoais, vai se

mascarando com elementos de dominação e adquirindo outros significados.

A desigualdade social se estabelece quando fica escondida a dimensão humano-genérica

do homem e vão se sobrepondo as relações de dominação entre os homens, ao se tornarem

escravos de outros homens. Se uns se tornam desiguais perante os demais, significa que alguns

obrigam outros a produzir para si, cabendo àqueles decidir como estes vão viver para não

morrer. Mudou o modo de produzir a satisfação das necessidades, assim como as relações

sociais passam a ser pautadas pela dominação. Nesse contexto, se um escravo precisa de

assistência, porque se feriu ou adoeceu, esta será providenciada pelo seu “dono”, que lhe

prestará ajuda — não porque o escravo se feriu e sofre, mas porque o senhor precisará dele forte

e sadio para continuar o trabalho, pois é o escravo, com seu trabalho, quem produz a riqueza.

Outro exemplo: uma pessoa religiosa pode ajudar a um necessitado mais por ação de barganha

porque espera ganhar o reino de Deus do que por ato de generosidade e solidariedade.

É importante lembrar também que, na espécie humana, há uma biodiversidade natural

que se expressa no fato de que uns nascem brancos, outros negros, uns altos, outros baixos,

uns de olhos azuis, outros verdes, uns têm cabelos crespos, outros lisos. Mas é possível que

uns nasçam cegos, outros sem braços, outros com dificuldades de respirar, e assim por diante.

Em algum momento da história, essas diferenças passaram a ser desigualdades, quando um

traço natural, biológico ou mesmo social (como pertencer a determinada etnia) que nos

diferencia foi usado para humilhar seu portador. Diferença não é sinônimo de desigualdade.

Ser negro faz parte da nossa biodiversidade, enquanto gênero homo sapiens; mas essa

“diferença” passa a ser desigualdade quando é usada para dominar e humilhar o outro.

Quando uma pessoa nasce cega ou sem um braço, enfrentará mais dificuldades, precisará de

mais proteção e cuidados em relação aos que não apresentam essas limitações.

Nessa mesma história dos homens, na época em que o jeito de viver humano era como

nômade, se alguém se feria profundamente, tinha por vezes que ser abandonado no caminho,

pois ainda não havia meios para cuidar dele socialmente. Com o tempo, cada descoberta foi

resultando e abrindo caminho para outras, e novos conceitos e formas foram se instituindo;

fomos descobrindo que era possível, que era mais fácil cuidar de vários doentes juntos e,

assim, surgiu o embrião dos hospitais e de muitos outros cuidados relativos a doenças e à

saúde, até chegar às formas atuais.

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Os cuidados com a saúde também vêm sendo construídos ao longo da história,

apresentando particularidades no tempo e espaço onde são praticados. Da mesma forma, a

sociabilidade humana e a ajuda entre os homens são construções históricas.

Na história da humanidade foram e vem sendo criadas várias maneiras de suprir as

necessidades e proporcionar a proteção de que cada um de nós precisa, enquanto humanos que

somos, principalmente quando perdemos a condição de cuidar sozinhos de nossas vidas. É

quando algum recurso vital, necessário, não está à nossa disposição para sobrevivermos no

nível biológico ou como seres sociais que dependemos da ajuda dos outros, do grupo, da

sociedade da qual somos parte integrante.

Ao longo da história dos homens, foram sendo construídas várias respostas sociais

para lidar com as necessidades de proteção social, assim como com as suas faltas e carências,

com as quais cada indivíduo social vai se deparando nas diferentes conjunturas de sua vida

individual e social, visando à reprodução da vida individual e coletiva, pois sempre há

interdependência entre os homens.

Quando nomeamos a assistência social, nos referimos a uma atividade que, na história

da humanidade, teve e adquiriu diversos significados, dependendo do jeito de ser dos homens

nos diversos sistemas sociais que foram se instituindo ao longo do tempo. Mediados pelos

homens, foi se definindo o significado da ajuda naquele determinado contexto — colocando

regras, definindo normas sobre como os membros daquela sociedade deveriam se portar uns

diante dos outros que precisavam de ajuda. Bem assim, as desigualdades sociais e os processos

de dominação fizeram com que uns homens se colocassem como “melhores” diante de outros.

É como a assistência social, como forma de proteção social, deve ser entendida:

construção social e, em decorrência, fruto das ações humanas no longo caminho percorrido

até suas formas atuais, marcadas por processos sociais que foram lhe atribuindo significados e

jeitos de ser.

Ações governamentais com objetivos voltados para a proteção social começam a ser produzidas contemporaneamente à consolidação dos modernos Estados nacionais, no Ocidente Europeu, lá pelos séculos XVI e XVII. É então que se institucionaliza o que Weber considera o núcleo definidor do Estado moderno: o monopólio da violência legítima, e que se fazem presentes as condições que tornam possíveis e necessárias ações governamentais naquele sentido. Num contexto de transição para o capitalismo, de expansão do comércio e de valorização das cidades, a pobreza se torna visível, incômoda, e passa a ser conhecida como um risco social. A primeira fase da evolução da política social consistiu nas chamadas Leis dos Pobres, bastante disseminadas pelos países europeus, embora com diferenças marcantes entre eles (VIANNA, 2002, p. 2-3).

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No modo de proteção feudal que marca a Idade Média, que constituía uma sociedade

pouco mercantilizada,

[...] o servo era vinculado ao senhor por relações de submissão e proteção (sobretudo militar), encontrando satisfação de certas “necessidades” dentro das ações comunais e principalmente religiosas. A religião servia para legitimar a esmola, o asilo e certos cuidados de saúde (coação extraeconômica). Nesse modo de produção o servo era proprietário dos meios de produção (FALEIROS, 1980, p. 9-10).

Já no modo de produção capitalista há um modo essencial das relações sociais,

presente em todos os seus momentos (mercantilista, liberal, monopolista ou oligopolista,

neoliberal). Do ponto de vista das teorias econômicas, é no mercado que o indivíduo deverá

suprir suas necessidades. No início dessa forma de produção, quando a sociedade se organiza

em classes sociais,

[...] produz-se uma ruptura entre a posse dos meios de produção e o trabalhador. Os meios de produção passam a ser de propriedade do capitalista, pela expropriação, pela reprodução simples e ampliada, pela acumulação. O homem, como disse Marx, se vê livre, sem estar ligado ao senhor, pronto para oferecer a sua força de trabalho como indivíduo, em troca de salário. [...] O salário é o meio de prover a sua subsistência. Mas esse salário é obtido na produção de mais-valia e sob uma submissão total às novas relações sociais que as fábricas suscitam (FALEIROS, 1980, p. 10).

Nessa sociedade de classes,

[...] aos que não foram incorporados no mercado de trabalho, temporária ou permanentemente, se fez uma legislação repressiva. Assim, os considerados vagabundos e mendigos eram açoitados, ou, em caso de reincidência, se lhes marcava com ferro e os condenava à morte (coação direta e indireta ao trabalho). Foram proibidas as esmolas aos mendigos não identificados como tais. Por outro lado, os que não podiam se incorporar ao trabalho, eram socorridos pelas paróquias, por intermédio das caixas de socorro, mas de acordo com os interesses das classes dominantes, apresentando-se estas caixas como remédios contra o vício, a vagabundagem e a imoralidade. O objetivo real da ajuda era forçar ao trabalho. Os capazes de trabalhar eram enviados ao trabalho por salários muito baixos, e aos incapazes se lhes dava uma ajuda arbitrária, segundo critérios da classe. É essa a essência da Lei dos Pobres na Inglaterra (FALEIROS, 1980, p. 10).

A história da Lei dos Pobres, na Inglaterra e no País de Gales, pode ser dividida em

dois momentos; trata-se de dois estatutos distintos. A considerada lei antiga, datada de 1601,

foi instituída pelo Parlamento durante o reinado de Elizabeth I. A nova Lei dos Pobres foi

aprovada, também pelo Parlamento, em 1834. A Lei de 1601 formaliza as práticas anteriores e

uniformiza nacionalmente, na Inglaterra e no País de Gales, a assistência social a um

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segmento preciso de população — os pobres. A forma de atendimento tem por base de

atendimento uma área em torno da igreja paroquial (havia mais de 1.500 paróquias).

A justificação para a perseguição aos mendigos considerados vadios e vagabundos

encontra-se na ideologia dominante, segundo a qual o trabalho é sinônimo de vida normal e

forma de mobilidade social, fazendo com que “se estigmatizem aqueles que venham a receber

dinheiro ou ajuda sem correspondente esforço para ganhá-los” (FALEIROS, 1989, p. 110).

Decorre daí o entendimento de que se deve amparar os bons mendigos, “seletivamente, após a

triagem de sua capacidade e aptidão para o emprego, fazendo-se a seleção socioeconômica

entre capazes e incapazes de trabalhar, ou melhor, entre os aptos e inaptos para o trabalho”

(FALEIROS, 1989, p. 110; grifos meus).

Sustentada na caracterização de inspiração liberal- malthusiana entre fortes e fracos, a

assistência social não se destinava ao conjunto daqueles que não conseguem sobreviver por

seus próprios meios, mas se dirige unicamente àqueles que estão fisicamente impossibilitados,

como as crianças, os velhos, os acidentados e os doentes.

Nesse sistema de atendimento, havia um agente denominado “supervisor dos pobres”,

o responsável capaz, com autoridade para conhecê-los e lhes fiscalizar a vida, e assim

diferenciar dentre eles os que mereciam dos que não mereciam a ajuda. A norma rezava que

os considerados mendigos aptos para o trabalho tinham que aceitar o trabalho que lhes era

oferecido. Se viessem a se rejeitá-lo, eram colocados em casas de correção, como punição

pela recusa e para intimidar outros que pretendessem adotar o mesmo procedimento.

A Lei dos Pobres antiga serviu de referência para lidar com os pobres, na Inglaterra e

no País de Gales, por mais de 200 anos, porém sofreu grandes alterações em 1834.

O aumento dos gastos com a assistência aos pobres nos séculos XVII e XIX, combinado com os ataques contra a Lei dos Pobres por Malthus5 e outros economistas políticos, assim como a revolta dos trabalhadores agrícolas em 1830-31 [...] levou o governo em 1832 a designar uma comissão real para investigar a Lei dos Pobres (BOYER, 2002; minha tradução).

Sobre essa comissão, Faleiros (1980, p. 11) comenta que, “em sua visão moralista,

disse que eles (referindo-se aos pobres) viviam na ‘imprevidência, na imoralidade, em

comparação com os que trabalhavam, os quais sabiam conduzir as suas coisas’”.

5 Para Malthus, “a pobreza é um desequilíbrio entre a produção e a população. O auxílio para a distribuição do excesso de alimentos entre a população faria aumentar o número de pobres, como faria aumentar o custo dos alimentos, além de reduzir o rendimento dos trabalhadores independentes. Além disso, a distribuição só favoreceria a preguiça e o vício” (FALEIROS, 1980, p. 11).

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A propósito das condições de acesso na nova Lei dos Pobres de 1834, Martinelli

(1997, p. 58) discorre:

Com a reformulação da Lei, que nada perdeu de seu caráter rigoroso e excludente, foram criadas as Casas de Trabalho e instituídas as Caixas dos Pobres para concessão de auxílio semanal ou mensal. Tanto o acesso às Casas de Trabalho como a concessão de auxílio dependiam de rigoroso inquérito da vida pessoal e familiar dos solicitantes. Assim, a temida figura tudoriana do “inspetor da Lei dos Pobres” voltava rediviva ao cenário do século XIX, cabendo-lhe a responsabilidade pela realização do inquérito e pela fiscalização das condições de vida daqueles que passavam a ser atendidos pelo sistema de assistência pública. O atendimento implicava assumir-se como dependente do poder público e, portanto, preso a uma vida controlada por normas e regulamentos (grifos meus).

Sobre a normatização do atendimento com esse formato, Faleiros (1980, p. 11) esclarece:

Essas medidas administrativas concretas de controle e repressão da força de trabalho não pareciam contrariar os princípios do mercado, porque eram vistas como combate ao vício, à preguiça e à imprevidência das classes pobres. O indivíduo era obrigado a ingressar no mercado, onde seria “livre” para realizar contratos com salários fixados pelos patrões (grifo do autor).

Releve-se que, no citado relatório elaborado pela Comissão proponente da lei de 1834,

constam dois princípios básicos de operação: o de “menor elegibilidade” e o “teste da Casa de

Trabalho”. Entendia-se por

• “menor elegibilidade”: que o mendigo deveria entrar para uma Casa de Trabalho com piores condições do que as do mais pobre trabalhador livre que não estivesse na Casa de Trabalho.

• “teste da Casa de Trabalho” que o auxílio só estaria disponível na Casa de Trabalho. As Casas de Trabalho reformadas deveriam ser nada convidativas, de tal modo que qualquer pessoa capaz de sobreviver fora delas as evitasse.6

Pelo critério da “menor elegibilidade”, todo benefício assistencial deveria ser sempre

menor do que o pior salário existente, para não se ferir a ética capitalista do trabalho.

A importância do critério de menor elegibilidade (ou da menor escolha) para o ideário liberal clássico decorreu do fato de que, com ele, seria possível conciliar a ajuda aos desempregados (fato, antes, abominado) com o desenvolvimento do livre mercado e com o espírito de empreendimento, previdência e independência do trabalhador. [...] tal critério refletia e preservava, acima de tudo, os valores comerciais da nova civilização do mercado (PEREIRA, 2000, p. 108).

6 Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/English_Poor_Laws>. Acesso em: 1º jul. 2012. Tradução nossa.

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Em relação à execução da Lei dos Pobres de 1834, é importante frisar que foi

executada permeada de muita crueldade, tendo em vista que havia decisiva intenção de

desestimular a procura de ajuda pelos necessitados e estimular a busca de trabalho a qualquer

preço. Engels (2010) descreve, com riqueza de detalhes (escrevendo em 1844), como viviam

e eram tratados os trabalhadores nessa época. Com sua narrativa, podemos vivenciar e mesmo

como que entrar no dia a dia do trabalhador inglês e dos imigrantes irlandeses de então e,

portanto, conviver com a dramaticidade da miséria vigente entre os trabalhadores daquela

sociedade — no país que se configurava como a maior potência econômica desse tempo —,

assim como acompanhar, por meio dos exemplos apresentados pelo autor, o tratamento

desumano sofrido pelos desempregados que necessitavam de ajuda para sobreviver.

Todos os subsídios, em dinheiro ou in natura foram suprimidos; a única assistência resumiu-se ao acolhimento nas casas de trabalho (workhouses), imediatamente expandidas por todos os lados. A organização dessas casas — que o povo designa como as bastilhas da lei sobre os pobres (poor-law bastilles) — é tal que dissuade qualquer um que pretenda sobreviver apelando a essa forma de assistência. Com o objetivo de que o recurso à caixa dos pobres só seja feito em último caso e de que os esforços de cada indivíduo sejam levados ao extremo antes de procurá-la, a casa de trabalho foi pensada para constituir o espaço mais repugnante que o talento refinado de um malthusiano pôde conceber. A alimentação é pior que a de um operário mal pago, enquanto o trabalho é mais penoso — caso contrário os desempregados prefeririam a estada na casa à miserável existência fora dela. [...] Em geral, a comida das prisões é menos ruim, e é por isso que, com frequência, os internados das casas de trabalho intencionalmente cometem um delito para serem presos. De fato, as casas de trabalho são prisões: Quem não realiza a sua cota de trabalho não recebe alimentação; quem quiser sair depende da permissão do diretor [...] o tabaco está proibido, assim como a recepção de doações de parentes [...] os trabalhos realizados nas casas são especialmente inúteis: os homens quebram pedras [...] as famílias são separadas: o pai vai para uma ala, a mulher para outra e os filhos para uma terceira, de modo que só possam se encontrar em períodos determinados e raramente — e, mesmo assim, se se comportarem bem, segundo o juízo dos funcionários [...] os internados só podem receber visitas no parlatório, sob a vigilância dos funcionários, e, de modo geral, não podem se corresponder com o exterior sem sua autorização ou censura (ENGELS, 2010, p. 318-319).

A título de conclusão, Engels afirma:

Contrariando tudo isso, porém, a letra da lei determina uma alimentação sadia e um tratamento humano. [...] O tratamento que a nova lei prescreve, na sua letra, contrasta abertamente com o espírito que a informa; se, em substância, a lei declara que os pobres são delinquentes, que as casas de trabalho são cárceres punitivos, que seus internados são foras da lei, objetos repugnantes postos fora da humanidade, não se pode aplicá-la de outra maneira. Na prática, portanto, o tratamento reservado aos pobres nas casas de trabalho obedece, não à letra, mas ao espírito da lei (ENGELS, 2010, p. 318-319).

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Na França, o atendimento aos pobres é realizado nos mesmos moldes.

Os hospitais gerais acolhiam todo o tipo de incapazes para o trabalho. Ao mesmo tempo, todo o esforço era feito para punir os mendigos, obrigando-os a trabalharem em serviços “públicos”, criados deliberadamente em terras dos senhores. Para coroar esse esquema repressivo, os pobres eram obrigados a residir no lugar de ajuda para que a mão de obra não fugisse dos senhores locais (FALEIROS, 1980, p. 10).

Tendo em vista que a pobreza apresenta-se como risco social preocupante na

sociedade de mercado, a ação do Estado visa então proteger a sociedade da ameaça

representada pela pobreza, por estar associada à indigência, à doença, ao furto e à degradação

de costumes — e também para proteger os pobres.

Vianna (2002, p. 3), a respeito das “leis dos pobres”,7 comenta:

[Eram] ordenações de Estado que faziam compulsória a “caridade”, implicando a criação de um fundo público — o imposto dos pobres, em geral recolhido pelas municipalidades — e que tinham por finalidade tirar os pobres das ruas. Vigoraram em grande parte dos países europeus entre os séculos XVII e XIX, e, a despeito de terem apresentado variações expressivas no decorrer desse período, se caracterizaram pela natureza caritativa, pela forma de assistência pública e pelo alvo a que se destinavam: a pobreza.

Esses fatos e explicações aqui apresentados ilustram e permitem entender as

motivações que alimentaram as sangrentas lutas empreendidas pelos trabalhadores nos

levantes anteriores e posteriores à Revolução Francesa (1789), nos vários países europeus.

Também permitem entender a esperança que o lema “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”

portava para grande parte da humanidade que vivia do trabalho e em condições tão

subumanas e cruéis.

A revolução burguesa representou, sem dúvida, um avanço na história da humanidade.

A burguesia, em seu movimento revolucionário, foi a porta-voz do progresso e da emancipação

do homem e representou os interesses da totalidade do povo naquele dado momento.

O pensamento da burguesia revolucionária aponta para a mudança das relações de dominação imperantes no feudalismo, dando um protagonismo inusitado à participação do povo, banindo todo o obscurantismo e dogmatismo, para pensar o homem em suas relações tanto com a natureza como com outros homens, através do prisma da razão. Como nova classe representante do capitalismo, esteve presente tanto nos economistas clássicos ingleses como nos pensadores do iluminismo francês. Sua luta contra o obscurantismo feudal das monarquias se evidenciou nas

7 Aqui, a autora não se refere apenas à experiência inglesa. Ela explica, em nota de rodapé, que as mais conhecidas são as Poor Laws inglesas (referindo à de 1601 e à de 1834).

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revoluções burguesas, adquirindo seu ponto culminante na Revolução Francesa de 1789 (PARRA, 1999, p. 55; tradução nossa).

O capitalismo representou evidentemente uma revolução no plano econômico, político

e cultural, ao destruir as relações feudais de produção. No capitalismo, o indivíduo deve ser

livre para poder vender a sua força de trabalho, o que significa um corte profundo com o

direito obtido pelo nascimento, típico da sociedade feudal.

Agora, o indivíduo pode vender sua força de trabalho em troca de um salário. Como os

meios de produção passam a ser de propriedade privada, dá-se, enfim, um passo fundamental

na direção da emancipação humana — mas é a emancipação política do indivíduo, que passa

a ser sujeito de direitos do ponto de vista da lei, do papel. Ainda que isso possa parecer pouco,

é muito, pois, “diante da lei, todos os homens passaram a partir daí a serem considerados

iguais, pela primeira vez na história da humanidade” (COVRE, 2002, p. 17).

O novo jeito de produzir rompe com o trabalho artesanal e gera um novo tipo de

cooperação, a partir da fábrica, e um novo jeito de produzir e competir, no mercado.

A partir de 1848, no entanto, a burguesia deixa de ser classe revolucionária que se

propunha a defender os interesses de todos. Passa a defender seus próprios interesses, aliando-se

aos segmentos sociais que antes combatia, e a reprimir duramente a luta dos trabalhadores, os

quais, por sua vez passam a se organizar enquanto classe para defender os seus interesses. A

partir daí, teremos que falar de questão social como expressão da luta de classes, assim como

das lutas empreendidas pela classe trabalhadora em seus diversos segmentos para conquistar e

ampliar seus direitos relacionados ao trabalho e à melhoria das condições de vida.

A partir desse momento, as conquistas precisarão ser entendidas no jogo da correlação

de forças presentes e relativas ao capital e ao trabalho. Quando a correlação de forças foi

favorável aos trabalhadores e chegou ao seu ponto culminante com a Revolução Russa de

1917, ao colocar em xeque a ordem do capital, quando há a ascensão dos partidos socialistas

na Alemanha, na Itália, na Espanha, na França, começa a haver uma ampliação de conquistas

diante das reivindicações dos trabalhadores por melhores condições de trabalho, saúde,

habitação e educação. “Agora organizavam-se como força política e apoiavam-se em partidos

para fazer a revolução e implantar uma nova sociedade — o que fazia parte das formas de

exercer e ampliar a cidadania” (COVRE, 2002, p. 43).

A ampliação e a efetivação dos direitos não ocorreram espontaneamente; são

decorrentes da ação dos segmentos que compõem a classe trabalhadora. É nesse contexto que,

logo a seguir, em vários países, começa a haver ampliação dos direitos sociais, quando o

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acesso aos bens produzidos e a proteção do trabalho são ampliados através das medidas de

política social. Esta política coloca-se como forma de enfrentamento da questão social.

Em resumo, no que tange à proteção social pública, a primeira experiência registrada no

mundo ocidental8 dá-se sob a forma de assistência social e através da Lei dos Pobres, dirigida a

um segmento muito preciso de população, os pobres, mediante a comprovação da necessidade

com o means test. A prova de meios, ou a seleção socioeconômica, tem aí sua ancestralidade,

pois adquire então a marca como que “genética” que será transmitida aos seus descendentes.

Embora na Lei dos Pobres o tratamento dado à população designada como pobre tenha

sido repressivo e truculento, essa experiência foi referência para outros países, conforme já

pudemos expor.

Apenas em 1918, na Inglaterra, é que se descriminalizou a pobreza, permitindo-se que fossem eleitos ao Parlamento cidadãos que tivessem recebido ajuda ou esmolas [...]. Logo após, a assistência pública passou a ser articulada a nível nacional pelo Ministério da Saúde, com políticas urbanas, mas a mentalidade discricionária em relação aos assistidos [...] ainda persistia. A crise de 1930 acentua a questão de falta de trabalho, e se cria um fundo para desempregados, sem que fossem obrigados a submeter-se à comprovação de desemprego ou de pobreza (means test) e que recebiam suas prestações após esgotarem-se as previstas pelo seguro desemprego. Em 1939 essa assistência se estende às vítimas de guerra e em 1941 só a renda pessoal é levada em conta para atribuição de ajuda e não mais a renda familiar (SCHWEINITZ, 1975, apud FALEIROS, 1989, p. 111-112; grifos meus).

Embora essa forma de proteção social só tenha sido erradicada na Grã-Bretanha na

década de 1940, nunca desapareceu do mundo; tem sido perene a utilização desse modelo,

que convive, com as outras formas de proteção hoje existentes. Ou melhor, em 1948, a Lei

dos Pobres e as casas de trabalho (workhouses) deixam de existir quando é criado o Conselho

de Assistência Nacional, “para prover pagamentos para pessoas com idade acima de 16 anos

que possuíssem recursos abaixo do nível considerado necessário para suprir suas

necessidades” (BAUGH, 1977, apud PEREIRA, 2000, p. 112; grifos meus). Mas outros critérios

de acesso aos serviços sociais são estabelecidos e a seletividade não é abolida, mas atualizada.

A marca dessa tradição é a de que o acesso ao atendimento se dá mediante a prova de

recurso por parte do demandante do serviço social e não é, portanto, considerado direito de

cidadania. A pobreza, nesta fase, é vista como risco social eminente; assim, o Estado, através

de sua ação, visa proteger a sociedade da ameaça que a pobreza representa. Trata-se da

8 “Não se pode indicar com precisão um período específico de surgimento das primeiras experiências reconhecíveis de políticas sociais [...] Sua origem é comumente relacionada aos movimentos de massa socialdemocratas e ao estabelecimento dos Estados-nação na Europa ocidental do final do século XIX [...] mas sua generalização situa-se na passagem do capitalismo concorrencial para o monopolista, em especial na sua fase tardia, após a Segunda Guerra Mundial (pós-45)” (PIERSON, 1991, apud BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p. 47).

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assistência social de base meritocrática e se dirige ao atendimento de indivíduos ao nível da

sobrevivência, tendo como mínimo o patamar da simples reprodução biológica. Importante

considerar que as Leis dos Pobres

funcionaram, historicamente, em tempos de monarquia absoluta ou governos oligárquicos. Já nos meados do século XIX, quando a produção industrial se expandia a largos passos, exigindo crescentemente mão de obra disposta ao assalariamento, as elites dominantes, afinadas com os preceitos liberais, passaram a tecer severas críticas a esta forma de proteção social (VIANNA, 2002, p. 3).

Rupturas com tal concepção de pobreza — que reduz as causas dessa condição a

fatores de ordem moral, como as falhas de caráter dos indivíduos — começam a ser gestadas

no final do século XIX, no cenário de emergência das lutas operárias pelo reconhecimento de

seus direitos. “A partir desse momento, a perspectiva de responsabilidade individual em arcar

com os próprios custos da reprodução da própria vida cede lugar à noção de que todos devem

participar na provisão de bem-estar a todos os cidadãos” (MONNERAT et al., 2007, p. 1.454).

Vianna (2002, p. 3) observa:

Em fins do século XIX, uma segunda fase da política social se inaugura.9 Seguros sociais compulsórios, para fazer face a riscos sociais associados ao trabalho assalariado, despontam como o modelo dominante de proteção social. No novo cenário, de capitalismo industrial consolidado, aparecem novos atores – sindicatos, partidos políticos — e arranjos institucionais capazes de incluir, na agenda pública, demandas de setores emergentes no mundo do trabalho (grifos meus).

Inaugurava-se, assim, outra tradição da política social denominada proteção social de

base contributiva, que se constitui em um seguro social compulsório. A primeira iniciativa é

consolidada na Alemanha, em 1883, durante o governo de Otto Bismarck, em resposta às

greves e pressões dos trabalhadores.

O chamado modelo bismarckiano é considerado como um sistema de seguros sociais, porque suas características assemelham-se às de seguros sociais, porque suas características assemelham-se às de seguros privados: no que se refere aos direitos, os benefícios cobrem principalmente (e às vezes exclusivamente) os trabalhadores, o acesso é condicionado a uma contribuição direta anterior e o montante das prestações é proporcional à contribuição efetuada; quanto ao financiamento, os recursos são provenientes, fundamentalmente, da contribuição direta de empregados

9 A autora, neste texto, trata da “evolução da política social na Europa Ocidental”, em suas diferentes fases. Considera as Leis dos Pobres como a primeira fase da política social, e a dos seguros sociais compulsórios como segunda fase da política social. A maioria dos autores, no entanto, considera que a política social é um produto do capitalismo monopolista, tendo o seu marco de nascimento na Alemanha de Bismark. Tendo em vista meu objeto de estudo, penso que o importante é frisar os legados dessas tradições. Portanto, não irei aqui entrar no mérito dessa questão.

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e empregadores, baseada na folha de salários; em relação à gestão, teoricamente (e originalmente), cada benefício é organizado em Caixas, que são geridas pelo Estado, com a participação dos contribuintes, ou seja, empregadores e empregados (BOSCHETTI, 2003, apud BEHRING, 2009, p. 324-325; grifos meus).

Para Vianna (2002, p. 4), a ameaça à sociedade agora não está mais na pobreza, mas

na recusa dos trabalhadores ao assalariamento.

Recusa que se expressa passivamente no absenteísmo (em razão da doença, de acidente, de maternidade, ou sem razão nenhuma) e ativamente de forma anárquica como nos ataques e quebradeiras promovidos por trabalhadores ingleses em várias ocasiões, ou de forma organizada pelos sindicatos operários, crescentemente contestadores do próprio sistema capitalista. Para os trabalhadores, gradativamente se definem os riscos a que estão submetidos pela estrutura produtiva industrial: o acidente de trabalho, a cessação da capacidade laborativa, a doença, impedem temporária ou permanentemente o autossustento via mercado, única alternativa disponível.

A criação da política social não foi um jogo parlamentar na Alemanha. Bismarck a

utiliza como forma de enfrentamento do movimento operário e de controle social, ou seja,

como forma de enfrentamento da questão social.

[Bismarck] buscava conter o avanço da social-democracia e, assim trocou benefícios (a cobertura de riscos, para os assalariados, decorrentes de doenças, acidentes de trabalho e incapacidade laborativa devido à idade) pelo cerceamento da atividade sindical. [...] reprimindo reivindicações mais vigorosas, por um lado, e, por outro, oferecendo concessões em termos de política social, infringiu uma derrota ao movimento sindical e consolidou o recém-unificado Reich (VIANNA, 2002, p. 4).

O modelo utilizado por Otto von Bismarck difundiu-se rapidamente pela Europa,

ampliando-se com o direito ao voto, a legalização das centrais sindicais e a chegada dos

partidos trabalhistas e social-democratas ao Parlamento, e os seguros passaram a cobrir

contingentes cada vez mais significativos de trabalhadores.

A forma de seguro, implicando um contrato entre as partes (sendo o Estado, na maioria dos casos, uma destas partes), retirava da política social seu caráter meramente assistencialista.10 Por sua natureza meritocrática- faz jus a um certo benefício aquele que por sua inserção na estrutura ocupacional efetuou preteritamente a contribuição correspondente — o seguro social destituía a política social de estigma. Deslocando seu alvo principal, da pobreza para o trabalho assalariado, a política social ganha papel proativo no sistema: assegura direitos sociais aos que dele participam, hierarquiza o universo dos merecedores de tais direitos segundo as suas (dele) conveniências, e provê mecanismos de controle sobre os que dele se afastam (VIANNA, 2002, p. 5; grifos meus).

10 Vianna (2002, p. 5) esclarece, em nota de rodapé: “O que não quer dizer que políticas assistencialistas tenham desaparecido. A Lei dos Pobres, na Inglaterra, por exemplo, só foi abolida nos anos 40.”

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Outro momento significativo (ou outra tradição) da política social é forjado no

Ocidente desenvolvido, quando, nos desdobramentos da crise dos anos 1920 e das

transformações ocorridas no capitalismo, que agora é monopolista (não há alteração da

essência do capitalismo, mas, sim, sua complexificação, pois teve que se atualizar, ao

incorporar novas demandas).

É no contexto da constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e

das duas guerras mundiais que a ideia de seguro é substituída pela de seguridade social, ao

surgir a proposta de políticas sociais universalistas, com alvo na cidadania. “Sistemas

políticos, estatais ou estatalmente regulados, se tornam os produtores de políticas destinadas a

garantir amplos direitos sociais a todos os cidadãos, configurando o que se convencionou

chamar Estados de bem-estar social” (VIANNA, 2002, p. 5).

Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, é formulado na Inglaterra o Plano

Beveridge, que, tecendo críticas ao modelo bismarckiano, propõe a criação do Welfare State,

ou Estado Providência, ou Estado Social. Essa proposta surge como resposta aos desafios

vividos pela Europa como fruto da grande depressão econômica de 1929; foi concebida como

o caminho do meio entre o comunismo e o capitalismo.

O modelo beveridgiano abarca quatro áreas programáticas: seguro social; benefícios suplementares; subvenção á família; e isenções fiscais. Para cada uma dessas áreas a base de qualificação para o benefício social era distinta. O seguro social era baseado em contribuições previamente pagas, enquanto os benefícios suplementares eram não contributivos e, portanto, sujeitos a testes de meios (comprovação de pobreza). As subvenções familiares, por sua vez, eram pagas sem contrapartida e sem testes de meio a qualquer assalariado que tivesse mais que uma criança como dependente, num valor que variava de acordo com a renda do beneficiário. Assim, assalariados com renda tão baixa que não lhes permitisse pagar impostos recebiam subvenções maiores do que aqueles com renda mais elevada. Finalmente, as isenções fiscais recaíam sobre aqueles grupos de alta renda que ficavam desobrigados de pagar taxas suplementares de impostos (KINCAID, 1975, apud PEREIRA, 2000, p. 111; grifos meus).

Faleiros (1989, p. 112) esclarece que, para Beveridge, a seguridade social tem por base

o atendimento de um mínimo de necessidades básicas a serem garantidas pelo Estado, em

caso de perda dos rendimentos.

A proposta de Beveridge, transformada em lei pelo Parlamento inglês em 1946,

[...] estava fundamentada em dois grandes princípios,11 identificados com a nova concepção de proteção social. O princípio da unidade tinha por metas a unificação

11 Esses princípios influenciaram e deram origem à reformulação da seguridade social em outros países, como a França e a Alemanha, em 1949.

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das múltiplas instâncias da gestão dos seguros sociais existentes e a homogeneização das prestações básicas. Universalidade, outro grande princípio, dizia respeito à cobertura — todos os indivíduos — e aos escopos da proteção (todas as necessidades essenciais) (VIANNA, 2002, p. 5; grifos da autora).

Beveridge, pautado em estudos e diagnósticos, propôs uma política social que

empenhava o Estado com as seguintes propostas:

• Lei de Subvenção à Família (Family Allowances Act), criada em 1945, para garantir pagamentos semanais para cada criança;

• Lei de Seguro Nacional (National Insurance Act) e de acidentes industriais, criada em 1946, para garantir a provisão compulsória de seguro contra a perda de ganhos e, entre outras proteções, auxílios-desemprego, doença e invalidez e pensões aos idosos;

• Serviço Nacional de Saúde, que introduziu, em 1946, um serviço de saúde gratuito a todos;

• Assistência Nacional que, em 1948, aboliu a Lei dos Pobres e as workhouses, criando um Conselho de Assistência Nacional para prover pagamentos para pessoas com a idade acima de 16 anos que possuíssem recursos abaixo do nível considerado necessário para suprir as suas necessidades (BAUGH, 1977, apud PEREIRA, 2000, p. 111-112).

Esse modelo expande-se no mundo ocidental, configurando o Welfare State, e

instituindo outra tradição na política social, digamos assim, conhecida por proteção social de

base não contributiva, fundada nos direitos de cidadania e tendo Thomas Marshall como a

grande referência.

É amplamente conhecida a caracterização tripartite dos direitos de cidadania proposta

por Marshall, a saber: os direitos civis (direitos individuais básicos), os direitos políticos

(participação no poder político) e os direitos sociais (bem-estar econômico e segurança).

O centro da noção de cidadania em Marshall é atribuir a essa categoria um novo significado — de acesso dos membros da comunidade a direitos sociais básicos que permitam integrar os setores mais pobres à sociedade, dar-lhes um sentido de inclusão, à medida que no próprio status de cidadão estejam incorporados determinados direitos sociais e isso possa diminuir a desigualdade social (BARCELLONA, 1996, apud WELMOWICKI, 2000, p. 76; grifos do autor).

Marshall pensa que “não haveria uma contradição entre uma política de

universalização progressiva de direitos sociais e a lógica do sistema capitalista. [...] As

conquistas não decorreriam de uma conversão das classes dominantes, mas uma adaptação

aos tempos atípicos do pós-guerra” (WELMOWICKI, 2000, p. 76).

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É no contexto em que os governos passam a criar políticas que visam ao pleno

emprego e tendo por referência a proposta de Keynes12 que são retomadas as discussões em

relação aos mínimos sociais.13 A esse respeito, Pereira (2000, p. 112) assim se manifesta:

[...] os mínimos sociais passaram a ter uma conotação mais alargada, incluindo além de políticas de manutenção de renda — geralmente sob a forma de uma rede de segurança impeditiva do resvalo de cidadãos social e economicamente vulneráveis para baixo de uma linha de pobreza legitimada pela sociedade —, outros mecanismos adicionais de proteção social, como: serviços sociais universais (saúde e educação, por exemplo), proteção ao trabalho (em apoio ao pleno emprego) e garantia do direito ao acesso a esses bens e serviços e ao seu usufruto. Esta foi a fase de ouro das políticas de proteção social, na qual a otimização da satisfação das necessidades humanas básicas tornou-se uma tendência promissora, a partir da Europa.

A economia política que deu sustentação ao Estado de Bem-Estar Social tinha,

fundamentalmente, como características principais: o fordismo na produção, isto é, forma de

racionalização da produção fundamentada em inovações tecnológicas e de gerenciamento

(linhas de montagem em série), visando responder ao consumo de massa; o pleno emprego,

isto é, inclusão cada vez maior dos indivíduos no mercado de trabalho; e os monopólios e

oligopólios, que, mesmo se configurando como transnacionais, tinham como referência de

regulação o Estado nacional (CHAUÍ, 2011, p. 311).

Entre o final dos anos [19]60 e começo da década de 1970, o desenvolvimento fordista, as políticas keynesianas e o projeto de Estado social, que vigorou nos países centrais, são postos em xeque, e [com eles] os direitos derivados da relação salarial. A nova fase de acumulação capitalista vai ser capitaneada pela esfera financeira, e no campo ideológico o velho liberalismo se veste com a “nova” roupagem, rebatizado de neoliberalismo (SALVADOR, 2010b, p. 609).

12 Keynes defende a ideia de que o Estado deve “regular variáveis-chave do processo econômico, como a propensão ao consumo e o incentivo ao investimento, em consonância com s seguinte lógica: O Estado deveria intervir na economia para garantir um alto nível de demanda agregada (conjunto de gastos dos consumidores, dos investidores e do poder público) por meio de medidas macroeconômicas, que incluíam o aumento da quantidade de moedas, a repartição de rendas e o investimento público suplementar” (PEREIRA, 2000, p. 112; grifos da autora). 13 “O conceito proteção social mínima identifica-se, nas suas origens, com um mínimo de renda. Surge na Grã-Bretanha, em 1795, sob a forma de abono salarial ou rendimento mínimo garantido [...] Respaldado pela Lei do Parlamento do Condado de Speenhamland (Speenhamland Law), tal conceito marcou uma inflexão até então jamais vista na política de proteção social que vinha sendo desenvolvida na Inglaterra. [...] se alguém não pudesse auferir, mediante o seu trabalho, o suficiente para sobreviver, cabia à sociedade fazer a complementação. [...] Além disso, houve a extensão da assistência social preexistente aos pobres capacitados para o trabalho, porém mal pagos, fato inédito naquela época e até hoje considerado uma heresia pela lógica capitalista liberal” (PEREIRA, 2000 p. 103-104; grifo da autora). Ou seja, essa lei, que será reformada pela Lei dos Pobres de 1834, reconhece o direito dos pobres de receber uma renda mínima, independente de seus proventos, uma vez que pretende garantir o direito de viver.

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Behring (2006, p. 23) comparece nesta análise, acrescentando que os “anos de ouro”,

conforme designa Hobsbawm, começam a se esgotar:

As taxas de crescimento, a capacidade do Estado de exercer suas funções mediadoras civilizatórias cada vez mais amplas, a absorção das novas gerações no mercado de trabalho, restrito já naquele momento pelas tecnologias poupadoras de mão de obra, não são as mesmas, contrariando expectativas de pleno emprego, base fundamental daquela experiência. As dívidas públicas e privadas crescem perigosamente... A explosão da juventude em 1968, em todo o mundo, e a primeira grande recessão — catalisada pela alta de preços do petróleo em 1973/74 — foram os sinais contundentes de que o sonho do pleno emprego e da cidadania relacionada à proteção social havia terminado no capitalismo central e estava comprometido na periferia do capital onde não se realizou efetivamente. As elites político-econômicas, então, começaram a questionar e responsabilizar pela crise a atuação agigantada do Estado mediador civilizador, especialmente aqueles setores que não revertiam diretamente em favor de seus interesses. E aí incluíam as políticas sociais (grifos da autora).

O assim chamado “neoliberalismo”, que então surge, é a economia política proposta

por grupo de economistas, cientistas, políticos e filósofos,14 que, reunidos na Suíça em 1947

sob a liderança de Friedrich Von Hayek e Milton Friedman, opunham-se severamente à

instalação da social-democracia em países como a Grã-Bretanha, a Suécia, a Dinamarca e a

Alemanha; eram adversários, portanto, do estabelecimento do Welfare State ao modo da

proposta de Keynes, assim como se opunham ao New Deal. As ideias desse grupo não

tiveram repercussão até que a proposta foi reavivada quando a crise capitalista se instalou no

início dos anos 1970, ao baixarem as taxas de crescimento e aumentarem significativamente

as taxas de inflação.

A partir de então, a proposta do grupo passou a ser ouvida e considerada. A explicação

dada à crise por eles era que se assistia no mundo ao resultado do excessivo poder que haviam

adquirido os sindicatos e os movimentos operários, os quais vinham pressionando para a

obtenção de aumentos salariais e para a obtenção de maiores encargos sociais do Estado.

Assim, teriam destruído os níveis de lucros demandados pelas empresas e desencadeado

processos inflacionários fora do controle (CHAUÍ, 2011, p. 313).

A proposta sugerida pelo grupo para o enfrentamento da crise pautava-se nestes pontos:

• fortalecimento do Estado para quebrar com o poder dos sindicatos e dos

movimentos operários e cortar de maneira drástica os encargos sociais e os investimentos na economia;

• a meta principal de Estado deve ser a estabilidade monetária, com a contenção de gastos e restauração da taxa de desemprego necessária para constituir um exército de reserva no sentido de quebrar o poder dos sindicatos;

14 Merecem destaque, nesse grupo, Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwig Von Mises, Walter Eupken, Walter Lipman, Michael Polanyi e Salvador de Madariaga, entre outros (ANDERSON, 2000, p. 10).

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• que o Estado realize uma reforma fiscal, visando estimular os investimentos privados e reduzir os impostos sobre o capital e as fortunas e aumentando os impostos sobre a renda individual, ou seja, sobre o trabalho, o consumo e o comércio;

• o Estado deveria se afastar da regulação econômica, deixando por conta do mercado a autorregulação. Ou seja, deveriam ser abolidos os investimentos estatais na economia, assim como o controle estatal sobre o fluxo financeiro, criação de vasto programa de privatização e drástica legislação antigreve (CHAUÍ, 2011, p. 313).

A tese central do neoliberalismo é que o setor público (o Estado) é o responsável pela

crise, pelos privilégios que concedeu aos trabalhadores e pela ineficiência do gerenciamento.

O mercado e o setor privado são vistos como sinônimos de eficiência, de qualidade e de

equidade. A saída torna-se, então, o Estado mínimo, no tamanho necessário à reprodução do

capital, e, portanto, colocando em causa todas as conquistas sociais relativas ao trabalho,

como a estabilidade de emprego, e os direitos direito à saúde e à educação, entre outros.

O neoliberalismo pode ser considerado a reatualização do liberalismo, ao propor novas

estratégias para o reajustamento estrutural em um plano mundial. O ideário do grupo de

Hayek e Friedman, aqui exposto em suas linhas mais gerais, é assumido e passa a ser

disseminado mundialmente pela intervenção do Banco Mundial, do Fundo Monetário

Internacional e do Consenso de Washington.

Anderson (2000, p. 22) considera o neoliberalismo como um

[...] movimento ideológico, em escala verdadeiramente mundial, como o capitalismo jamais havia produzido no passado. Trata-se de um corpo de doutrina coerente, autoconsciente, militante, lucidamente decidido a transformar todo o mundo à sua imagem, em sua ambição estrutural e sua extensão internacional.

Na América Latina, essa proposta é aplicada inicialmente no Chile, com Pinochet no

governo, na Grã-Bretanha, com Margareth Tatcher como primeira-ministra, e nos EUA, com

Ronald Reagan na Presidência. Depois, expande-se para todo o mundo capitalista, com

exceção dos países asiáticos; posteriormente, com a queda do muro de Berlim em 1989,

espraia-se para o Leste europeu. No Brasil, a adoção do modelo neoliberal inicia-se no

governo de Fernando Collor de Melo e continua com os que se sucedem, sob a presidência de

Fernando Henrique Cardoso e de Luís Inácio Lula da Silva.

Nesse contexto, empresas e governos vêm alterando suas formas de organizar a

produção, adotando o modelo japonês (ou toyotismo) relacionado à flexibilização,

denominada “acumulação flexível”.

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Busca-se uma flexibilidade no processo de trabalho, em contrapartida à rigidez da linha de produção, da produção em massa e em série; uma flexibilidade do mercado de trabalho, que vem acompanhada da desregulamentação dos direitos do trabalho, de estratégias de informalização da contratação dos trabalhadores, uma flexibilidade dos produtos, pois as firmas hoje não produzem necessariamente em série, mas buscam atender as particularidades das demandas dos mercados consumidores e uma flexibilidade dos padrões de consumo. Esse processo, impulsionado pela tecnologia de base microeletrônica, pela informática e pela robótica, passa a requerer novas formas de estruturação dos serviços financeiros, inovações comerciais, o que vem gerando e aprofundando uma enorme desigualdade do desenvolvimento entre regiões, setores, etc., além de modificar substancialmente as noções de espaço e tempo (IAMAMOTO, 1998, p. 31).

Na forma atual do modo de produção capitalista, denominada “globalização

neoliberal”, o monetarismo e o capital financeiro tornam-se o centro nervoso do capitalismo e

estão “ampliando a desvalorização do trabalho produtivo e privilegiando a mais abstrata e

fetichizada das mercadorias, o dinheiro” (CHAUÍ, 2011, p. 319).

O capital financeiro passa a determinar a política de vários Estados. Nações do

Terceiro Mundo, por depender de financiamentos, ficam à deriva, aguardando a transferência

de recursos de um país para outro. Em relação ao monetarismo, significa que, por não haver

relação concreta entre a economia real e economia virtual, ocorre a circulação de somas

altíssimas de valores sem corresponder ao aumento real da riqueza, migrando de um país para

outro, acarretando, onde chegam, a ilusão de prosperidade e, ao se deslocar daquele país, vão

deixando rastros de miséria.

O Estado nacional passa a ser o

[...] enclave territorial para o capital e dispensa as formas clássicas do imperialismo (colonialismo político-militar, geopolítica de influências, etc.). O centro econômico, jurídico e político planetário encontra-se agora no FMI e no Banco Mundial, os quais operam com um único dogma, proposto pelo grupo fundador do neoliberalismo: estabilidade econômica e corte do déficit público. As decisões são tomadas, portanto, em organismos supranacionais (verdadeiros detentores do poder mundial) com os quais os Estados contraem dívidas públicas, isto é, os cidadãos devem pagar para que os seus governos cumpram as exigências desses organismos (a maioria deles, privados), os quais operam com base no segredo e interferem nas decisões de governos eleitos, que deixam de representar os cidadãos e passam a gerir a vontade secreta desses organismos (CHAUÍ, 2011, p. 321; grifo da autora).

Como consequência, o capitalismo agora dispensará e mesmo rejeitará a presença do

Estado, não somente no mercado, mas também na promoção da política social, de maneira

que a privatização de empresas e serviços públicos se impõe.

Em decorrência disso, a ideia de direitos sociais como pressuposto e garantia dos direitos civis ou políticos tende a desaparecer, porque o que era direito se converte num serviço

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privado regulado pelo mercado e, portanto, torna-se uma mercadoria a que têm acesso apenas os dotados de poder aquisitivo para adquiri-la (CHAUÍ, 2011, p. 321).

A terceirização do setor de serviços passa a ser estrutural,

[...] deixando de ser suplemento da produção, uma vez que esta não mais se realiza sob a antiga forma fordista das grandes plantas industriais que concentravam todas as etapas da produção, mas opera por fragmentação e dispersão de todas as esferas e etapas da produção, com a compra de serviços do mundo inteiro (CHAUÍ, 2011, p. 319).

Com a reestruturação produtiva imposta pelo novo jeito de produção, a classe

trabalhadora perde os referenciais que lhe permitem perceber-se como classe social. Além

disso, estabelece-se a precarização do trabalho e a crescente desregulamentação das profissões.

Surge nesse contexto o trabalhador polivalente, aquele que é chamado a exercer várias funções, no mesmo tempo de trabalho e com o mesmo salário, como consequência do enxugamento do quadro de pessoal das empresas. O trabalhador deixa de ser um trabalhador “especializado” — e também o assistente social —, sendo solicitado a exercer múltiplas tarefas, até então não necessariamente envolvidas em suas tradicionais atribuições (IAMAMOTO, 1998, p. 32).

O desemprego passa a ser estrutural, uma vez que o capitalismo, na sua forma atual,

não atua para incluir todos no mercado de trabalho e de consumo, mas apenas uma parte dos

trabalhadores; desaparecem postos de trabalho. A exclusão impõe-se pela introdução da

automação e pela velocidade da rotatividade da mão de obra, que se torna desqualificada e

dispensável muito rapidamente, como resultado das mudanças tecnológicas.

Atualmente, segmentos cada vez maiores da população tornam-se sobrantes, desnecessários. Essa é a raiz de uma nova pobreza de amplos segmentos da população, cuja força de trabalho não tem preço, porque não têm mais lugar no mercado de trabalho. Fenômeno que se observa hoje, inclusive, nos países considerados desenvolvidos,15 cujos índices de desemprego estrutural eram comparativamente baixos. São estoques de força de trabalho “descartáveis” para o mercado de trabalho, colocando em risco para esses segmentos a possibilidade de defesa e reprodução da própria vida (IAMAMOTO, 1998, p. 33).

No âmbito da proteção social,

15 A crise do capitalismo atual rebate em Portugal de forma muito violenta através da perda de direitos trabalhistas, de direitos sociais e fechamento de significativo número de postos de trabalho devido à falência de empresas e do comércio. Em 1º/6/2012, o desemprego em Portugal atingiu o recorde de 15, 2%; entre os jovens com menos de 25 anos, 36,6% (Fonte: <http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=560331>; acesso em 8 ago. 2012).

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a novidade introduzida foi a parceria entre Estado, mercado e sociedade ou esquemas pluralistas, os quais tiveram apelo muito mais ideológico do que prático. Análises mais acuradas das tendências desse esquema plural ou misto de bem-estar social [...] mostram que as soluções referentes à pobreza e à chamada exclusão social têm sido cada vez mais procuradas na sociedade e baseadas no recurso estratégico da solidariedade informal e voluntária, envolvendo a família, a vizinhança, os grupos de amigos (PIERSON, 1991; JOHNSON, 1990, apud PEREIRA, 2008a, p. 39).

Isso significa que o Estado vem se desvencilhando de seu protagonismo de provedor

social, ao deixar desprotegidos amplos segmentos da população, que, para satisfazer suas

necessidades, recorre com cada vez mais frequência à rede informal de solidariedade. A

política social cada vez mais é focalizada e terceirizada.

Os rebatimentos em relação às políticas sociais, portanto, são nítidos.

Presencia-se a desorganização e destruição dos serviços sociais públicos, em consequência do “enxugamento do Estado” em suas responsabilidades sociais. A preconizada redução do Estado é unidirecional: incide sobre a esfera de prestações de serviços públicos que materializam direitos sociais dos cidadãos, de interesse da coletividade. [...] O fundo público é cada vez mais desigualmente distribuído, sendo canalizado para a sustentação dos grandes capitais, em especial o capital financeiro, como nos casos de socorro do Estado à quebra e saneamento dos bancos. Neste contexto, o fetichismo do dinheiro e da mercadoria parece reinar com todas as pompas: ao lado da exaltação do mercado, o cidadão é reduzido à condição de consumidor (IAMAMOTO, 1998, p. 36).

Esses tempos de globalização neoliberal, que caracterizamos nas suas grandes

matrizes, rebatem em todos os cantos da terra, porém não da mesma forma. Por isso, vão

adquirindo particularidades e singularidades em cada país, região ou cidade; no jeito de ser de

cada lugar, pesam diferentes determinações de ordem econômico-social, política e cultural.

Assim, o sistema de proteção social de cada país poderá preservar ou perder traços da

universalização da proteção social já conquistada. A tendência é a focalização do

atendimento, é um mix de tradições da política social, convivendo entre si e com uma direção

mais decisiva na perspectiva liberal de base meritocrática, na qual o acesso aos serviços

sociais ocorre mediante a comprovação da necessidade ou do means test.

Para se compreender como a globalização neoliberal se reflete na particularidade do

Brasil, torna-se necessário considerar o fato de que a proteção social, aqui, se desenvolveu

segundo diretrizes muito diversas das que pautaram a já exposta proposição social-democrata

nos países europeus. O nosso sistema de proteção social

[...] se alinha, por um lado, à perspectiva liberal, preocupada não em superar o mercado, mas em aperfeiçoá-lo, garantindo a sobrevivência do capitalismo. As

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medidas iniciais, na década de 1920, se caracterizaram por um apelo à iniciativa particular, como a das sociedades de ajuda mútua; dos sistemas de benefícios e seguro administrados por empresas; da assistência social meritocrática, sempre com ênfase em transferências monetárias. Ao mesmo tempo, a responsabilidade direta do Estado na provisão de bem-estar social surge depois, especialmente voltada para a regulação e controle da força de trabalho, fragmentada em diferentes categorias profissionais e objeto de captação política (CAMPOS, 1999, p. 553).

Importante destacar a década de 1980, que, embora considerada “perdida” do ponto de

vista econômico, representou no Brasil uma época de reorganização da sociedade civil, visando

ao processo de redemocratização para pôr fim à ditadura militar. Nessa fase histórica, o

movimento social — as greves no ABC paulista e suas recorrências (por exemplo, a articulação

de centrais sindicais que deu origem ao Novo Sindicalismo), assim como o denso movimento

popular que se organizou nos bairros, reivindicando serviços básicos — representou uma

conjuntura que levou à expansão da conquista de direitos sociais. Nesse contexto, articulou-se o

Partido dos Trabalhadores, que aglutinou as forças sociais progressistas do País.

Essas forças, ao final, foram canalizadas para o Movimento Constituinte, que

culminou com a elaboração da Constituição de 1988, a qual representou verdadeiro avanço

em muitos aspectos do ponto de vista de ampliação dos direitos sociais. “Os avanços

constitucionais de 1988, de natureza reformista, foram possíveis numa conjuntura bastante

particular de elementos, numa conjuntura de radicalização democrática após uma ditadura de

20 anos” (BEHRING; BOSCHETTI, 2007, P. 151).

O texto constitucional refletiu a disputa de hegemonia, contemplando avanços em alguns aspectos, a exemplo dos direitos sociais, com destaque para a seguridade social, os direitos humanos e políticos, pelo que mereceu a caracterização de “Constituição Cidadã”, de Ulisses Guimarães. Mas manteve fortes traços conservadores, como a ausência de enfrentamento da militarização do poder no Brasil. [...] uma Constituição programática e eclética, que em muitas ocasiões foi deixada ao sabor das legislações complementares (BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p. 142).

Pela primeira vez no Brasil criou-se um sistema de seguridade social, introduzindo-se

a noção de direitos sociais universais como condição da cidadania. Também se introduziu a

proteção social de base não contributiva, ao se reconhecer o direito de uma renda de

sobrevivência ou mesmo de aposentadoria a trabalhadores que não haviam contribuído

previamente para obtê-la.

Essa proteção não contributiva amplia os benefícios para grupo de pessoas inaptas para o trabalho (os portadores de deficiências físicas e os idosos de mais de 65 anos, através do Benefício de Prestação Continuada), além de ampliar os direitos

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securitários dos trabalhadores rurais, através da Previdência Especial Rural (IVO, 2008, p. 165; grifos meus).

A Assistência Social foi reconhecida como política social de Estado e colocada no

campo da seguridade social, “em beneficio de um desenho institucional que implica formas de

participação e controle da sociedade civil sobre as políticas sociais” (IVO, 2008, p. 165).

Apesar das conquistas sociais inscritas na Constituição de 1988, vimos, desde a década

de 1990, perdendo consecutivamente muitos direitos. Vem sendo criada uma verdadeira

fratura entre o Brasil real e o Brasil legal, como bem sintetiza Guerra (2010, p. 32-33):

Concomitantemente ao avanço constitucional do ponto de vista da formalização jurídica dos direitos, amplos segmentos da classe trabalhadora no Brasil e no mundo vivenciam a sua destruição. Há uma investida neoconservadora para, de um lado, considerar direitos como privilégios e, de outro, destituir os direitos dos seus conteúdos de classe. Ambas as tendências operam um retrocesso sobre a concepção de direitos sociais e o caráter adotado pelos mesmos na Constituição Brasileira de 1988.

Nessa conjuntura, a tendência predominante tem sido a de restrição de direitos, na qual

as políticas sociais passam a se reduzir a ações pontuais e compensatórias, visando responder

aos efeitos mais cruéis da crise. Dessa maneira, as “possibilidades preventivas e até

eventualmente redistributivas tornam-se mais limitadas, prevalecendo [...] o trinômio

articulado do ideário neoliberal, ou seja: a privatização, a focalização e a descentralização”

(BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p. 156; grifos das autoras).

Em tempos de globalização neoliberal, a realização das políticas sociais vem

enfrentando dificuldades e restrições de várias ordens, a seguir sintetizadas.

• A atuação governamental tem ficado restrita ao enfrentamento da pobreza, do

ponto de vista programático à cobertura de renda mínima, deslocando a concepção

mais ampla de política social e restringindo “sua atuação à cobertura de carências

de um grupo mergulhado na pobreza, vista como absoluta, desconsiderando as

relações sociais e econômicas gerais” (CAMPOS, 1999, p. 554).

• A substituição da oferta de serviços sociais por pagamento de benefícios em moeda

pelo mínimo possível acentua a noção de livre escolha no mercado por parte dos

beneficiários, contribuindo para a diminuição do aparelho estatal. Este procedimento

é reconhecidamente proposta de recorte liberal (CAMPOS, 1999, p. 554).

• A discussão acerca do combate à pobreza em domínio nacional fica quase sempre

limitada “à proposta de implementação de ‘redes de salvação’ para os pobres,

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reeditam-se a antiga ideia de recuperação individual dos ‘marginalizados’, hoje

designados mais elegantemente por ‘excluídos’” (CAMPOS, 1999, p. 554).

• A implementação da política social vem sendo gradativamente delegada às

iniciativas de organizações da sociedade, através da terceirização do atendimento.

É “crescente uma apropriação indevida da concepção de ‘solidariedade’ [...]

Converte-se numa solidariedade moral e individual, em que as pessoas mais

abastadas são instadas a oferecer ajudas eventuais aos pobres para suprir suas

necessidades imediatas” (CAMPOS, 1999, p. 554).

Merecem destaque as empresas-cidadãs que se multiplicam a cada dia, as campanhas

televisivas que visam sensibilizar os menos pobres a contribuir para formar fundos para as

entidades filantrópicas, assim como as empresas que se propõem a dar uma percentagem de

suas vendas, em determinado dia, de acordo com as vendas que realizarem. Nesse contexto, o

marketing evidencia-se, e a responsabilização do Estado pela realização da política social vai

sendo diluída.

Da Constituição de 1988 aos dias atuais, podemos afirmar, com Ivo (2008, p. 188),

que há hoje “uma ruptura entre trabalho e proteção, reorientando-se o equacionamento da

questão social para a eficiência do gasto público, pela qual se opera a transfiguração dos

direitos de proteção em ações de assistência e a política redistributiva em gestão técnica do

social”. A descentralização vem sendo tratada não como partilha do poder, como deveria ser,

mas “como mera transferência de responsabilidade para entes da federação ou para

instituições privadas e novas modalidades jurídico-institucionais correlatas” (BEHRING;

BOSCHETTI, 2007, p. 156).

A análise aqui apresentada aponta para o aumento da seletividade na política social,

tendo em vista principalmente sua focalização e o refinamento dos critérios de sua operação.

1.1. Os direitos sociais entre a universalização e a focalização da política social

A universalização e a focalização da política social são aqui tomadas como dois

princípios que dão a direção predominante quanto à abrangência de acesso aos serviços e

benefícios sociais e se constituem em resultado das lutas sociais entre as forças do capital e do

trabalho. São tendências em que a predominância da focalização ou da universalização não se

dá, portanto, de forma tranquila e mecânica nem depende da simples vontade dos sujeitos

envolvidos. De um lado, há no movimento social a luta dos trabalhadores, que sempre

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almejam a universalização dos serviços e dos direitos sociais; nesse sentido, sempre defendem

essa bandeira. De outro, há os representantes do capital, que, quando pressionados, sempre

pretendem dar e ceder o mínimo das reivindicações em pauta, e assim, tendo em vista seus

interesses, sempre envergam a bandeira da focalização.

A universalização dos serviços e benefícios sociais envolve inúmeras determinações

presentes no processo histórico, conforme já exposto quanto aos embates dos trabalhadores

pela conquista dos diversos direitos sociais — a qual, historicamente, vem se dando tendo

como referência as lutas empreendidas pelos subalternizados organizados e que tem na

Revolução Francesa um marco, chegando aos dias atuais.

Cada vez que um dos polos age de determinada forma, o outro também se modifica. Os trabalhadores, por exemplo, sofreram intensa exploração no século XIX; para sobreviver, reagindo a essa exploração, conseguiram com muita dificuldade se organizar em corporações-sindicatos que pressionaram os capitalistas a diminuir a jornada de trabalho, aumentar os salários e, assim, melhorar as condições de vida. O capital reagiu à ofensiva operária, criando mais e mais tecnologia para diminuir sua dependência dos trabalhadores. Então, os trabalhadores procuram se atualizar em relação com a tecnologia. Os capitalistas acenam com o processo participativo de lucros da empresa, para neutralizar a ofensiva trabalhista. Os trabalhadores precisam estar atentos para não serem ludibriados. E assim continua a luta... (COVRE, 2002, p. 39).

Para os trabalhadores, a luta pelos direitos de cidadania coloca-se como categoria

estratégica permanente. “Luta que inclui pressões, greves e desobediência civil, se necessário,

mas com o fim de manter o processo civilizatório contra o processo anárquico e bárbaro, que

pode pôr abaixo conquistas anteriores” (COVRE, 2002, p. 40).

Os direitos sociais, portanto, não são dádivas, mas conquistas forjadas na batalha

histórica empreendida pelos trabalhadores. E é também na história com suas tendências e

forças presentes que os direitos podem ser perdidos, ficar somente no papel ou levar a

conseguir uma vida mais rica ou mais pobre.

Cabe lembrar que os capitalistas também têm seus interesses e que desejam sempre

ampliá-los, mesmo que à custa da miséria de grande parte da humanidade. Na denominada

globalização neoliberal, a perene luta entre as classes resultou no avanço do liberalismo com

nova roupagem, que faz recuar a possibilidade de ampliação de direitos sociais, havendo até

muitas perdas.

Em relação a essa discussão e tendo em vista a apreensão do meu objeto de pesquisa,

no período de seis meses (julho a dezembro de 2010) em que estive em Portugal, tive a

oportunidade de acompanhar o desenrolar de acontecimentos que vêm afetando a área da

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Segurança Social16, em especial, através do corte do benefício a número significativo de

pessoas que sobrevivem do Rendimento Social de Inserção (RSI).17

No tocante a esse beneficio, pudemos constatar de que forma vem sofrendo sérias

alterações, mediante uma política de cortes que, ao excluir do atendimento significativo

número de beneficiários, acaba por resultar na perda no quadro de direitos sociais antes

conquistados. Para se ter uma ideia do tamanho do corte realizado: “em julho [leia-se de

2010], os beneficiários eram 389 mil e há dois meses ficaram reduzidos a 364 mil, ou seja,

menos 6,4%, segundo o Diário de Notícias. E, em face a janeiro [leia-se: de 2010], há menos

32.507 pessoas a receber o apoio social”.18

Outro dado de referência diz respeito à dimensão do corte que está sendo realizado nas

políticas sociais de Portugal: só no mês de setembro de 2010, o governo havia poupado € 10

milhões com a redução dos benefícios da segurança social.19

Cabe perguntar: como isso foi possível? Quais foram os mecanismos utilizados pelo

governo para se conseguir tal façanha?

Foi possível com adoção de novas regras, ou seja, apertando as exigências na

aplicação dos antigos critérios. Uma dessas regras: “Os beneficiários dessa prestação social

estão agora obrigados a aceitar propostas de trabalho, ações de formação ou trabalho

socialmente necessário sob pena de perder o apoio.”20 Dentre as novas exigências, consta

também que a Segurança Social, orgão público executor do RSI, passará a cancelar o apoio aos

beneficiários que tiverem entre os 18 e os 55 anos de idade que recusarem emprego

conveniente, trabalho socialmente necessário ou propostas de formação.21

É preciso considerar ainda nesse contexto que havia a previsão de 11 milhões de

desempregados em 2011, em Portugal, sendo que a taxa de desemprego no país, no último

trimestre de 2010, foi de 10,9%.22

Vinculando essas duas notícias, podemos indagar: qual foi a intenção da cobrança

dessas exigências, em um contexto em que se conhecem as proporções do desemprego e das

consequências que deste advém?

16 Engloba as áreas da Previdência Social e da Assistência Social, que são tratadas pelo Ministério da Solidariedade e Segurança Social português. Registre-se que se constitui historicamente em campo de atuação quase exclusiva de profissionais do Serviço Social em Portugal (FERREIRA, 2009, p. 37). 17 A Lei nº 13, de 2003, revogou o rendimento mínimo garantido (RMG) previsto na Lei nº 19-A, de 1996, e criou o RSI, regulamentado pelo Decreto-Lei nº 283, também de 2003. Trata-se de um benefício social de transferência de renda. 18 Fonte: <http://www.agenciafinanceira.iol.pt>. Acesso em: 8 dez. 2011. 19 Fonte: <http://www.agenciafinanceira.iol.pt>. Acesso em: 8 dez. 2011. 20 Fonte: <http://www.agenciafinanceira.iol.pt>. Acesso em: 5 nov. 2011. 21 Fonte: <http://www.agenciafinanceira.iol.pt>. Acesso em: 9 out. 2011. 22 Fonte: <http://www.sapo.pt>. Acesso em: 26 dez. 2010.

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Acompanhar a agenda política, econômica e social nesses meses de estudos em

Portugal significou vasta e inesgotável fonte de exemplos enriquecedores para o estudo que

estou empreendendo sobre a seleção socioeconômica como instrumento da política social para

realizar, através do mesmo processo, o duplo movimento de inclusão-exclusão.

Podemos nessa conjuntura perceber que, quanto menores os recursos destinados às

políticas sociais, tanto maior deverá ser o número de critérios e normas a preencher pelos

demandantes do benefício. Para restringir a demanda, aumentam-se as exigências de acesso.

Pudemos ainda observar que, nas circunstâncias atuais de Portugal, ocorre um

enxugamento do orçamento público, por meio da realização de cortes que visam diminuir o

déficit estatal, fazendo com que o objetivo básico da política social não seja o da inclusão,

mas o de exclusão. O discurso, principalmente dos gestores, fica entre a advertência de que se

deve considerar excessiva e demasiadamente permissiva a política social atual, pois “há gente

que não precisa do atendimento e está se aproveitando da situação de pouca fiscalização na

concessão”, e a grotesca e antiga ideia liberal de que “há muita gente vadia e preguiçosa

vivendo à custa do governo”. Nessa lógica e dessa forma, e aos poucos, as políticas sociais

estão perdendo sua perspectiva universalizante, conforme se observa na política neoliberal.

Em Portugal, podemos dizer que, de 1974, quando lá foi instituída a pensão social de base

não contributiva, logo após o 25 de Abril,23 até 1996, quando foi consagrado o Rendimento

Mínimo Garantido (RMG) esteve presente uma perspectiva de fortes traços universalizantes,

fundada na ideia do direito social de cidadania. Hoje, as políticas sociais vão perdendo a

conotação de direito conquistado e adquirido e assumindo um caráter de focalização, ao se

discriminar cada vez mais os determinados segmentos da população que poderão ter acesso aos

benefícios sociais.24 A ideia de direito ainda existe, porque consta na lei, é política de Estado; mas

está sendo substituída pela de que o indivíduo tem que provar a necessidade e se enquadrar nos

critérios colocados. O princípio da necessidade se pauta na obrigação do indivíduo provar sua

impossibilidade de suprir suas necessidades, por contra própria ou através de sua família, além de

que esteve e está à procura de emprego. Daí a necessidade de justificar caso a caso o atendimento,

instaurando-se um means test mais rigoroso. 23 A ditadura salazarista perdurou em Portugal por 41 anos, compreendendo o período de 1933 a 1974. Esse período é denominado Estado Novo, constituindo-se em período de forte repressão social e política. A Revolução dos Cravos é um período da história portuguesa que foi desencadeado por um golpe de Estado iniciado por militares em 25 de abril de 1974, depondo o regime ditatorial vigente e iniciando um processo de democratização do país. O cravo vermelho tornou-se o símbolo dessa Revolução, pois conta-se que, nessa data, logo ao amanhecer, o povo juntou-se na rua, unindo-se aos soldados, e que no meio do povo havia uma florista que levava flores para um hotel e, ao passar por ali, passou a oferecer cravos aos soldados, sendo que um deles acabou por colocá-lo no cano da espingarda, ato imitado por outros soldados presentes. Esse ato foi registrado na imprensa e se popularizou. Em Portugal, esse acontecimento é denominado por Revolução de 25 de Abril. 24 Assunto cuidadosamente tratado em Branco (2004a, 2004b).

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Já na perspectiva de acesso aos serviços baseada no direito social ao trabalho, todos os

cidadãos — ou, no caso de Portugal, todos os que residirem em território português — que

não detenham renda terão direito a uma renda mínima preestabelecida em determinado

montante a ser pago pelo Estado. Ainda que tenham que provar sua situação de falta de renda

para viver, essa perspectiva é universalizante, porque contém o conceito de que não deve

haver nenhum cidadão sem renda no país, independente do que motivou esse fato. Mas exigir

do pleiteante ao benefício social a “prova” de que está em busca de trabalho, em uma

conjuntura de desemprego significa, de fato, uma clara política de corte dos benefícios, ou

seja, uma política de restringir o acesso, que se configura mais como de exclusão do que

como inclusão ao acesso.

Note-se que essa tendência de maior controle, visando à restrição ou à focalização, que

vem sendo praticada, não deve ser circunscrita à política social portuguesa, mas em Portugal

adquire determinadas particularidades.

Como já pudemos expor, o acesso aos serviços e benefícios sociais baseado na

necessidade ou mérito é a mais antiga e tradicional vertente da assistência social, podendo

englobar da esmola às reatualizações que foram se sucedendo. O seu objetivo é o de restringir

o acesso, focalizando através da aplicação de critérios o atendimento a segmentos precisos da

população.

Para receber o benefício pleiteado, o indivíduo tem que provar que ele e sua família

não detêm meios de suprir as necessidades mínimas ou básicas, reforçando a ideia da seleção

socioeconômica que, em Portugal, é mais comumente designada por prova de recursos.

Os fatos expostos permitem perceber que a condição para a aceitação pública da

seleção socioeconômica e do acirramento dos critérios que incluem-excluem pressupõe lidar

com a questão social de âmbito social, coletivo e público, transmutando-a em questão de

âmbito pessoal, particular, privado; ou seja, tirando o foco da intenção da contenção de gastos

do governo e colocando nos indivíduos a culpa pelo não acesso ou mesmo pela perda do

benefício — pois quem não cumprir as exigências estabelecidas e quando não preencher os

requisitos ficará sem o “direito” de acesso, e os que antes recebiam o benefício e agora o

perderam é porque, de fato, não o mereciam.

No sentido de prosseguir na análise, é importante a apresentação de alguns destaques

referentes à discussão atual da antinomia entre focalização e universalidade da política social.

Na atualidade, há

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[...] tendência corrente de minimizar ou negar uma controvérsia de fundo entre esses dois princípios reitores da política social, não há como esconder que, pelo menos nas ações governamentais, tal controvérsia existe. Por conseguinte, admitem que tais princípios são incompatíveis entre si, mesmo que no discurso atual a concepção de universalidade venha sofrendo rearranjos restritivos. Com efeito, ultimamente, fortaleceram-se ideias que ora desfiguram a concepção verdadeiramente universal do princípio de universalidade — com expressões adjetivadas como universalismo “segmentado”, “contido” ou “básico” — ora rejeitam essa concepção em nome de uma suposta superioridade democrática da focalização, agora identificada com o respeito às individualidades e às diferenças. Com isso o princípio da universalidade, de conotação eminentemente política, cidadã e igualitária/equânime, vem perdendo terreno para um discurso focalista neoliberal, de extração pós-moderna, para o qual o ser humano é construído culturalmente e, assim, despossuído de vínculos universais e de convergências éticas, políticas e cívicas (PEREIRA; STEIN, 2010, p. 107).

Na combinação do discurso pós-moderno com o tecnocratismo neoliberal, caiu em

desgraça falar-se da sociedade como diferente da soma de indivíduos, assim como dos

fundamentos da política, dos direitos e das relações sociais. No discurso focalista pós-

moderno, no que se refere à intervenção, aparece a lógica da fragmentação e do curto prazo da

política social, considerando-se que, para lidar com a realidade, basta apenas conhecimento de

pequeno alcance (PEREIRA; STEIN, 2010, p. 107).

Nesse quadro, as autoras refinam sua análise e afirmam que

[...] as prestações sociais são ditadas pelo imediatismo e pela rapidez de resultados, geralmente quantitativos e referenciados na renda; o mérito desbanca o direito, até mesmo entre os pobres, que se transformam em vítimas meritórias da proteção social, por sua situação de penúria; as preferências individuais substituem as necessidades sociais na definição das políticas; e a história, cujo sentido de totalidade é essencial para se pensar em mudanças complexas e de longo prazo, se restringe a acontecimentos localizados e isolados que requerem respostas pontuais (PEREIRA; STEIN, 2010, p. 107-108; grifos meus).

Tendo em vista que tais questões têm rebatimentos diretos no entendimento de nosso

objeto de estudo, cabe retomar alguns conceitos fundamentais.

Em relação ao princípio da universalidade, é preciso considerar:

Uma razão histórica fundamental para a adoção do princípio da universalidade tem relação direta com o objetivo democrático de não discriminar cidadãos no seu acesso a bens e serviços que, por serem públicos, são indivisíveis e deveriam estar à disposição de todos. Não discriminar, por essa perspectiva, significa não estabelecer critérios desiguais de elegibilidade que humilhem, envergonhem, estigmatizem e corrompam o status de cidadania de quem precisa da proteção social pública. Significa também não encarar a política pública (especialmente a assistência social) como fardo governamental ou desperdício a ser cortado a todo custo. Além disso, outra razão histórica importante para a adoção do princípio da universalidade decorreu da descoberta feita por várias forças sociais em pugna pela democracia da ideia de prevenção nele contida (PEREIRA; STEIN, 2010, p. 111; grifos das autoras).

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A autora explica que o princípio da universalidade passou a conter a ideia de

prevenção. Esta se constituiu em uma “bandeira de luta” defendida pelos reformadores sociais

britânicos, dentre os quais estava William Beveridge.

Associado à prevenção prevista no princípio da universalidade, o conceito de direitos sociais se impôs como antídoto a toda sorte de agressões e constrangimentos impingidos aos pobres no processo de satisfação de suas necessidades básicas e como arma de luta coletiva por melhores condições de vida e cidadania. Todavia, devido à complexidade da operacionalização desse princípio em sociedades de classe e à prevalência da concepção de política social como receita técnica do governo — ou compensação dos “desserviços” sociais prestados pela administração pública — o princípio da seletividade se sobrepôs ao da universalidade, reforçado pelo retorno do pensamento liberal nos fins dos anos 1970 (PEREIRA, 2007, p. 2; grifo da autora).

A seletividade aparece aqui como sinônimo de focalização e, portanto, antagônico ao

de universalização, sendo que ambas vêm sempre justificadas como necessárias para fazer

frente à falta de recursos para atender a todos — sem mencionar, no entanto, que, do montante

do fundo público existente no país, só uma pequena parcela vem sendo destinada à realização

dessas políticas sociais. A discussão democrática da gestão do fundo público poderia indicar

outras opções políticas de seu uso e não simplesmente dizer que não há recursos, portanto

impondo a seletividade quase que como algo natural.

Em relação à focalização, pode-se dizer que

[...] é a tradução dos vocábulos ingleses targeting ou target-oriented,25 usados nos Estados Unidos e nos países conservadores europeus [...] que encaravam a pobreza como fenômeno absoluto, e não relativo, com todas as implicações que tal concepção acarreta, a saber: restrição do papel do Estado na proteção social; apelo à generosidade dos ricos e afortunados para aliviarem o sofrimento dos mais pobres; ênfase na família e no mercado como principais agentes de provisão social; aceitação da desigualdade social como fato natural. E mais: desvio do compromisso da política social para com a satisfação das necessidades sociais — devido ao caráter complexo e multideterminado dessas necessidades — e adoção de soluções técnicas e pontuais, tidas como inovadoras, aparentemente neutras e facilmente controláveis (PEREIRA; STEIN, 2010, p. 111; grifos das autoras).

De uma perspectiva pragmática, Ruíz-Huerta (2000, apud PEREIRA; STEIN, 2010, p.

115) pergunta: “como minimizar os indicadores de pobreza com uma dotação de recursos

escassa?” E logo a seguir, afirma: “A resposta a essa indagação tem se manifestado na

25 Respectivamente: “segmentação” e “orientação pelo alvo”.

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tentativa de concentrar os benefícios do gasto público nos segmentos mais empobrecidos por

meio das atuações focalizadas (targeting).”

Diante dessa resposta, é importante desvendar o que a envolve. Trata-se de reconhecer

que a focalização em si já implica seletividade, não a seletividade como forma e condição do

acesso aos serviços sociais que certamente o indivíduo demandante daquele serviço terá que

se submeter, mas uma seletividade anterior, que passa a se constituir em mais um

afunilamento, em mais uma peneira para excluir amplos segmentos da população ao acesso.

Na conjuntura em que vivemos, é possível supor que haverá maior demanda por processos de

seleção socioeconômica com critérios cada vez mais sofisticados — leia-se: que dificultem mais

o acesso, para excluir maior número de demandantes de forma legitimada e controlada.

A avaliação da política social praticada por alguns países que substituíram programas

universais por outros mais seletivos indicam muitos pontos críticos, que, segundo Pereira e

Stein (2010, p. 116), referem-se

a) ao problema da identificação correta das necessidades de cada grupo e à hierarquização das situações, de acordo com os objetivos estabelecidos; b) ao aumento considerável dos custos administrativos que põe a necessária coleta de informações para identificar os destinatários potenciais dos programas, o que pode supor uma clara desvantagem em relação aos programas universais à medida que, quanto mais se quer diferenciar (e controlar) os beneficiários, maiores são os custos; c) à possível geração de efeitos de segunda ordem, como o assistencialismo, que pode reforçar as cadeias de dependência em relação ao Estado, ou as chamadas “armadilhas da pobreza”.

Em decorrência das análises e reflexões aqui apresentadas acerca da focalização da

política social nesses tempos de globalização neoliberal que vem se impondo com muita

força, vale lembrar que há outras possibilidades de lidar com os princípios da universalidade e

da seletividade, sem utilizá-los como antinomias. Atualmente,

[...] a seletividade prevalecente não é aquela que visa identificar necessidades mais agudas para melhor atendê-las, com o objetivo de calibrar a balança da justiça. Mas, pelo contrário, trata-se de uma seletividade iníqua, centrada na defesa dos gastos sociais, que exige das políticas sociais (em particular da assistência) a criação de estratégias que reduzam as necessidades humanas a sua mísera expressão animal, para diminuir as despesas do Estado. Ou, em outras palavras, a seletividade, que poderia manter relações dinâmicas com a universalidade, transformou-se em focalização e, portanto, em um princípio antagônico a esta (PEREIRA; STEIN, 2010, p. 115).

Assim, vivemos hoje em uma conjuntura marcada, em geral, por redução, restrição e

perda de direitos, sob alegação da crise fiscal do Estado, circunscrevendo-se a política social

nos diversos países a ações pontuais e compensatórias. “O neoliberalismo, e sua política de

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ajustes econômicos visando à estabilização, é incompatível com o padrão de política social

amplo, universal, de qualidade e gratuito [...] de modo que à massa da população brasileira

são negados direitos básicos” (GUERRA, 2010, p. 34).

Reaparece nesses tempos, com toda a crueza, a contradição entre uma ânsia de

progressiva cidadania social, cada vez mais estendida,26 e a realidade imposta pela lógica do

mercado na sociedade capitalista. Para onde nos leva essa política? Welmowicki (2000, p. 76)

afirma que a concepção de cidadania omite que a sociedade é divida em classes, “que existem

cidadãos proprietários dos meios de produção e cidadãos despossuídos. Os interesses da

maioria explorada não são os mesmos da minoria explorada. Os lucros de um implicam na

miséria de outros” (grifos do autor).

Tratar da cidadania dissociada da consideração de que vivemos em uma sociedade de

classes — portanto, que envolve interesses de classes divergentes em jogo — é colocar a

cidadania nos marcos do ideário liberal, ou seja, no campo do direito de todos à igualdade de

oportunidades para competir, mas não no horizonte da busca da igualdade para todos.

Entender que a sociedade é feita por indivíduos e tratar dos pertencimentos (por

exemplo, de gênero, raça-etnia) desvinculados das relações de classe tem levado à segmentação,

ao sectarismo e ao enfraquecimento da luta por uma sociedade mais igualitária, que, para ser

alterada, requer a reversão da correlação de forças que hoje é claramente desfavorável aos

interesses dos trabalhadores e dos que dependem do trabalho para sobreviver.

No Brasil, fala-se em direitos do cidadão, mas a apuração da renda nos processos de

seleção socioeconômica é familiar. O Estado entra com “auxílios somente quando a família

não consegue dar conta da tarefa de manter financeiramente os seus membros”. Portanto, a

responsabilidade primeira pelo sustento de seus membros é da família. Resta perguntar: e os

tão enunciados direitos sociais dos cidadãos, onde estão?

No Brasil de hoje, a cidadania é reduzida ao conceito de direito ao consumo, pois

o paradigma da racionalidade econômica implica garantir novas fatias de consumidores para o mercado, dinamizando a microeconomia através do subsídio monetário direto de renda aos beneficiários (referindo-se à assistência social), estimulando sua integração ao mercado, como consumidores e (ou) pequenos empreendedores. A mercantilização da assistência, ou a constituição dos sujeitos da assistência como sujeitos de consumo, tem a potencialidade de liberar os indivíduos

26 A cidadania aparece associada à velha política de colaboração entre as classes com outra roupagem, questionando a ideia do sindicato cidadão que prega a colaboração entre trabalhadores e empresários na defesa do emprego, na luta contra a miséria, ou o analfabetismo. Mas, diante dessa situação, afirma o autor: “para lutar por esses direitos mínimos, que qualquer cidadão mereceria ter, se necessita de uma organização independente dos trabalhadores contra a reação burguesa! Essa organização independente, política e sindical pressupõe consciência de classe e uma ação classista. Do contrário não se travará a luta. A batalha contra o neoliberalismo hoje exige uma luta de classes sem trégua” (WELMOWICKI, 2000, p. 76-77; grifos do autor).

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da dependência implícita à condição de fome, dando-lhes liberdade de escolhas quanto à decisão dos gastos e, segundo alguns autores, potencializando a microeconomia e o pequeno comércio, sem interferir no sistema do mercado, já que é gerenciado pelo governo (IVO, 2008, P. 189).

Diante da análise apresentada, é preciso levar em conta que cada indivíduo é ao

mesmo tempo único e igual em relação aos demais indivíduos humanos e é, também, igual e

diferente em relação aos demais. Mas é também, e ao mesmo tempo, mais igual a alguns do

que a outros. É preciso reconhecer as universalidades, particularidades e singularidades

contidas na vida de cada indivíduo. Iamamoto (1998), pensando no trabalho do assistente

social, já disse que é preciso enxergar nas demandas apresentadas pelo indivíduo as demandas

coletivas que carregam. É preciso enxergar os indivíduos como sujeitos coletivos, e é

imprescindível que os profissionais olhem e busquem enxergar na vida do indivíduo como a

sua inserção na classe trabalhadora rebate diretamente na sua vida e se expressa.

Penso que podemos concluir, afirmando que a universalidade é o horizonte desejado

pelo trabalho e a focalidade é o horizonte desejado do capital. Enquanto os representantes do

trabalho lutam por políticas sociais abrangentes para todos, pelo máximo possível para todos,

os representantes do capital pretendem realizá-las da forma mais reduzida possível, sempre

perto do mínimo dos mínimos possíveis e o mais circunscritas possível. A universalização é

um princípio associado aos interesses dos trabalhadores e a focalização é principio associado

aos interesses do capital, porque sempre alguma coisa terá que ser dado de serviços sociais

para que haja legitimidade no poder do Estado burguês. Porém, para que lado tende a balança

sempre dependerá dos pesos presentes e em combate permanentemente na luta pela posse da

riqueza socialmente produzida. A luta é a de que a grande maioria precisa conquistar direitos

para todos, e outros querem preservar os privilégios que mantêm e acumulam há séculos.

A universalização da política social constitui, portanto, bandeira de luta dos segmentos

espoliados, excluídos, explorados ou seja lá como queiramos denominá-los.

Diante desse fato, é indicado que, principalmente, não percamos a visão de totalidade

para demarcar os nossos horizontes enquanto cidadãos e profissionais, considerando e, portanto,

pensando que a luta das mulheres, dos negros, dos sem-terra, do acesso ao atendimento com

qualidade não são lutas só daqueles que nelas estão inseridas, mas de todos nós, para que todos,

de fato, possamos em algum lugar do futuro estar incluídos na humanidade como, de fato,

iguais nas universalidades e respeitados nas diferenças que nos caracterizam. Todas essas lutas

são lutas pelos direitos humanos; precisaremos até construir o entendimento de que as lutas

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empreendidas por todos os segmentos oprimidos organizados para conquistar direitos se

constituem em luta pelo direito de todos os homens poderem ser humanidade.

Tratar de seleção socioeconômica é, portanto, tratar dos direitos que são considerados

como não-direitos em face ao abismo existente entre as necessidades sociais e a parcela de

recursos públicos e/ou privados a elas destinados para a realização da política social. É

necessário estar, assim, conscientes de sua capacidade de embaçar a contradição entre as

demandas da população e o caráter necessariamente excludente e seletivo dos serviços sociais.

1.2. Contrapartidas ou “condicionalidades”

Em muitos programas sociais baseados na transferência monetária, ou de renda, vêm

sendo exigidas contrapartidas dos beneficiários em troca ou como condição de acesso ou de

permanência no benefício. Esses programas têm sido denominados “por transferência

condicionada de renda” ou ainda “programas de renda mínima”. Trata-se do Programa de

Transferência Condicionada de Renda (PTCR). Além da seletividade de acesso, são colocadas

condicionalidades para permitir a permanência do usuário no atendimento, evitando sua exclusão.

Ressalte-se que uma das mais fortes expressões da focalização da política social na

Europa e na América Latina tem sido a expansão de programas de renda mínima ou de

transferência de renda (RMG), cujos destinatários são as famílias em situação de pobreza ou de

extrema pobreza.

Conforme já comentamos, a noção de proteção social mínima relaciona-se, nas suas

origens, com um mínimo de renda. Surge na Grã-Bretanha, em 1795, a Speenhamland Law,

na qual “é reconhecido o direito de todos os homens a um mínimo de subsistência, fixando

uma escala de auxílios proporcional ao preço do trigo e ao número de filhos” (ROSANVALLON,

1984, apud BRANCO, 2001, p. 74).

Desde essa época até os dias de hoje a ideia de um rendimento mínimo garantido vem sendo recolocada em diversas circunstâncias, mas, regra geral, em contextos de crise econômica ou de insegurança social. Mais recentemente e desde o início dos anos 80 de modo mais vincado, assiste-se na Europa a um surgimento das proposições e reivindicações do RMG. [...] Os dispositivos de garantia de rendimento mínimo remontam na Europa aos anos 30, tendo sido instituídos pela primeira vez na Dinamarca em 1933 e, mais tarde, em 1948 na Inglaterra, na sequência da reforma Beveridge. Nos anos 60, no que é em regra designada como a segunda geração de políticas de garantia de rendimento, são criados os sistemas alemão (1961) e holandês (1963). Hoje, existem sistemas de rendimento mínimo garantido em todos os países europeus com exceção da Grécia.

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A abrangência desse tipo de programa é ampla: “com exceção da Grécia, todos os

países europeus dispõem hoje de uma renda mínima garantida geral ou de dispositivos

regionais (Espanha) ou locais (Itália). Portugal foi o último a estabelecê-la em 1996”

(EUZÉBY, 2004, p. 39-40).

A análise de experiências em curso em 2004 (podendo ou não estar articuladas com

outros benefícios sociais, cobrando ou não contrapartidas, sofrendo variações de um país a

outro) mostrava pontos em comum e divergentes.27

Analisando dados da Cepal de 2009, Pereira (2010, p. 121) afirma que “19 países da

América Latina e Caribe desenvolvem PTC com cobertura superior a 22 milhões de famílias

latino-americanas e caribenhas, das quais 12 milhões estão no Brasil (Bolsa Família) e 5

milhões no México”.28 Merece destaque o percentual irrisório investido nos PTC pelos

distintos países da América Latina em relação ao seu produto interno bruto: o maior

investimento não alcança 1%; o Brasil investe somente 0,41% do seu PIB. Trata-se, portanto,

de programas de política social de relativo custo, de forte retorno político, tendo em vista as

precárias condições de vida das populações a que atingem.

Há diferenças de sua realização nos diversos países, conforme já foi mencionado.

Porém, cabe enfatizar que

[...] nas diferentes experiências conhecidas, a renda mínima quase sempre representa um diferencial entre a soma dos rendimentos de uma família (salariais ou não) e o teto máximo do benefício, oficialmente estipulado. Além disso, tal beneficio não deve impedir que o indivíduo procure uma ativa participação no mercado e estabeleça elos de solidariedade familiar e comunitária (PEREIRA, 2000, p. 115; grifos da autora em itálico e meus em negrito).

Esses programas de renda mínima geralmente são regidos pelas seguintes premissas:

focalização da pobreza; subjetividade do direito (deve ser demandado pelo interessado); condicionalidade (admite prerrogativas e contrapartidas); subsidiariedade (é renda complementar); e sujeição do interessado a testes de meios ou comprovações de pobreza (PEREIRA, 2000, p. 115; grifos meus).

Outra dimensão condicionadora do acesso aos serviços sociais, além da seleção

socioeconômica pautada nos critérios estabelecidos, refere-se à cobrança de uma contrapartida

para que o usuário continue a ser atendido. Em Portugal, a condição do acesso e permanência 27 Maiores detalhes podem ser encontrados em Euzéby (2004). 28 “PTC” refere-se a programas de transferência de renda condicionados ou com condicionalidades.

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ao rendimento social de inserção (RSI) refere-se à comprovação de que o indivíduo esteja

procurando emprego ou impossibilitado de trabalhar.29

Em vários países europeus, a contrapartida vem sendo justificada ou legitimada

através do discurso da autonomia do sujeito. Hoje se fala, na Europa e em Portugal, em

“políticas ativas”, “Estado ativo”. Como bem explica Cabral (2010, p. 3):

A expressão “ativo” remete, inevitavelmente, para a noção familiar nos países da União Europeia de “políticas ativas”, segundo as quais os Estados se propõem estimular a proatividade dos cidadãos objeto dessas políticas, no sentido de, por assim dizer, eles “ajudarem a si próprios”, em suma, responsabilizando-os em derradeira instância pelos seus fracassos, como tem sucedido tipicamente com as chamadas políticas ativas de desemprego.

Através de observação e análise do processo de acesso versus seletividade atual do RSI

em Portugal, pudemos perceber que não está havendo somente a prova de meios de

subsistência, fundada em critérios de natureza socioeconômica, mas também prova e

avaliação de atitudes. Não basta mais o indivíduo provar que não tem rendimentos ou meios

para suprir suas necessidades; agora, será preciso estar inscrito também na bolsa de

empregos.30 Isso demonstra que a seletividade tem aumentado e que, portanto, a forma de

acesso retrocede à meritocracia e perde a noção de direito na direção da universalização do

acesso, como já comentei. Vale, no entanto, destacar que o RSI é programa de Estado: por

conseguinte, todos os demandantes que preencherem o perfil delimitado terão acesso.

Em relação ao Brasil, foi criado em 2003 o Programa Bolsa Família (PBF), unificando

quatro programas já existentes: o Bolsa Escola, o Bolsa Alimentação, o Auxílio Gás e o

Cartão Alimentação. O PBF prioriza as famílias como unidades de intervenção, sendo

destinado àquelas que se encontram em situação de pobreza ou de extrema pobreza. O critério

de seleção é fixado a partir de determinado patamar da renda familiar, como todos os demais

programas semelhantes.

Ao unificar os programas de transferência monetária, o PBF incorpora as diversas condicionalidades exigidas nos programas anteriores, sendo que a oferta de serviços e o monitoramento das condicionalidades ficam a cargo dos municípios. Cabe a famílias beneficiárias do PBF manter as crianças e adolescentes na escola, cumprindo exigência de 85% de frequência escolar. As famílias também devem estar vinculadas aos serviços de saúde para o acompanhamento de crianças de zero a seis anos, das

29 A pensão social, instituída “tardiamente” em 1974 em Portugal, foi uma medida de proteção social de base não contributiva, ou seja, sem a contrapartida da contribuição anterior ao sistema de seguridade. É um ancestral do RMG e do atual RSI. Em 1996, o RMG foi implantado em Portugal, o último país europeu a adotar essa proposta. O RSI de Portugal inspirou-se no modelo francês. Ver Branco (2001, 2004a, 2004b). 30 Essa cobrança como contrapartida do RMG está presente na proposta de vários países europeus.

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gestantes e nutrizes em programas de saúde específicos estando prevista ainda a participação em atividades educativas sobre saúde e nutrição (MONNERAT et al., 2007, p. 1459).

Não é estipulado o tempo de permanência das famílias neste Programa, mas os

motivos para o desligamento do atendimento são claros,31 destacando-se como um deles o não

cumprimento das condicionalidades. É um programa de âmbito nacional, mas é no município

que são fiscalizados e gestadas as contrapartidas. A condicionalidade nesse sentido constitui

mecanismo de controle para a permanência do usuário no programa.

Merece destaque que a consequência política do estabelecimento de mecanismos de

controle das políticas focais carrega o sério risco de haver um retorno aos

[...] vícios arcaicos e anacrônicos, como os constrangedores e vexatórios testes de meios (comprovação compulsória de pobreza); a fraudemania (mania de ver cada pobre que recorre à proteção social do Estado como fraudador); condicionalidades ou contrapartidas, como se o alvo da proteção tivesse alguma falta pessoal a expiar; e o estigma, que transforma cidadãos de direitos em incômodos “dependentes” da “ajuda” (PEREIRA; STEIN, 2010, p. 116; grifos das autoras).

Para contornar a crítica a essa tendência estigmatizadora de utilizar como parâmetros

dos programas de transferência de renda a condicionalidade e a seletividade, várias propostas

têm sido elaboradas. Dentre tais propostas, Pereira (2000, p. 115-118), referenciando-se em

Lavinas e Varsano (1997), destaca três.

A primeira refere-se “à defesa da renda de cidadania” ou “renda básica, assentada no

critério da incondicionalidade do benefício, por razões éticas e de justiça social”. Dirige-se

para a defesa da garantia de todo cidadão ter o acesso a um rendimento básico, sem

condicioná-lo a cobranças de contrapartidas, como “procurar emprego no prazo de alguns

meses, assistir a palestras ou reuniões ‘educativas’, estudar, etc., dissociando, assim, o

benefício de lealdades, de culpas, de sacrifícios, de suspeitas, de obediências e, portanto, do

estigma” (PEREIRA, 2000, p. 115). Essa proposta carrega a ideia radical de entender os sujeitos

de direitos como credores da enorme e histórica dívida pública, não devedores “manipuláveis

e oprimidos, ou quando não reféns dos caprichos e da arrogância da ajuda institucional”

(PEREIRA, 2000, P. 116). Tal perspectiva se contrapõe à ideologia e à prática do workfare.

Ressalte-se que o denominado workfare apresenta-se no discurso como forma de

valorização do trabalho e da integração social, mas, de fato, refere-se à velha visão liberal e

conservadora de que todos os beneficiários têm que pagar pelo que recebem, para que não

31 Contidos na Portaria Interministerial nº 551, de 9/11/2005.

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caiam na passividade. O pagamento pode ser feito “aceitando a oferta de um emprego público

que lhe é imposta, ou, ainda, realizando tarefas ou serviços determinados pelo programa, em

troca da ‘ajuda’” (PEREIRA, 2000, p. 116); a autora ressalta que essa “prática de proteção social

referenciada na cobrança de respostas (induzidas) do beneficiário não é, portanto nova, apesar

do nome de efeito — workfare — que adotou, por oposição ao welfare”.

Pereira (2000, p. 116) — ainda apoiada em Lavinas e Varsano (1997), que, por sua

vez, citam Roche (1992) — ressalta que existe uma vertente dessa primeira posição que apoia

apenas parcialmente essa proposta, uma vez que, “apesar de encampar a reação contra a

incondicionalidade e o workfare, aceita o critério da seletividade ou a focalização de uma

renda básica (parcial) da pobreza” (grifos da autora). Refere-se à vertente que concebe a renda

mínima como imposto negativo, como a adotada na América do Norte. Essa forma opta pelo

critério da renda familiar (não da pessoal) como unidade de referência e visa “manter baixas

as demandas da população pobre por gastos sociais públicos sem necessariamente redistribuir

renda ou riqueza” (PEREIRA, 2000, p. 117).

A segunda proposta é constituída pela aceitação do workfare e da condicionalidade.

Por considerar que a não imposição de condições atenta contra a ética do trabalho e incentiva o assistencialismo. Assim, em vez de a contrapartida do beneficiário ser encarada como um mecanismo negativo de controle institucional, deve ser vista como uma forma de valorizar o trabalho e a integração social. [...] entendem que, mesmo havendo sanções contra os beneficiários se recusam a dar algo em troca da ajuda, a contrapartida funciona mais como um direito do que uma obrigação ou constrangimento. É dir-se-ia, uma coação para o bem, para valorizar o trabalho e os direitos a ele vinculados e, portanto, um ato moralmente defensável (PEREIRA, 2000, p. 117).

A terceira proposta apresentada atravessaria as duas anteriores e teria uma

identificação com a perspectiva da justiça redistributiva:

[...] além da renda, privilegia outros mecanismos de proteção social básica (e não mínima). Partindo do entendimento de que a universalização dos serviços sociais não estaria necessariamente subordinada ao mercado de trabalho nem a esquemas contributivos, a proteção social básica, que incluiria programas de manutenção de renda, privilegiaria o status de cidadania como prerrogativa de todos, em oposição aos contratos sociais apoiados na capacidade contributiva de cada um (em dinheiro, tarefas, serviços, lealdades, sacrifícios) (PEREIRA, 2000, p. 117; grifo da autora).

Por fim, a autora conclui que tanto a primeira quanto a terceira proposta habitam o

“plano das utopias”. E considera que, de fato, os esquemas europeus de renda mínima

garantida começaram o debate, dando ênfase à renda básica ou de cidadania; contudo, esse

debate logo foi abandonado, e passou a se desenvolver a ideia da renda mínima garantida, que

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“consiste na transferência do valor monetário diferencial já mencionado, acompanhada de

testes de meios rigorosos, da exigência de inserção do beneficiário no mercado de trabalho e,

consequentemente, do cultivo do famigerado estigma” (ABRAHAMSON, 1994, apud PEREIRA,

2000, p. 119). A autora considera ainda que, enquanto a renda básica ou de cidadania

significaria uma ruptura com essa tendência, a renda mínima garantida vigente recupera e

reforça que na Europa prevaleceram “os velhos critérios de elegibilidade e de gestão pública

que vêm transformando a assistência social em ‘armadilha da pobreza’” (FERREIRA, 1997,

apud PEREIRA, 2000, p. 119).

Diante do exposto, mais uma vez reiteramos a atualidade do debate sobre a seleção

socioeconômica, até porque esse assunto vem acompanhando a discussão da proteção social e

da desproteção social desde o século XVI, sendo necessário encampar, neste debate acerca da

seletividade de acesso aos serviços e benefícios sociais, o equacionamento das questões

relativas às contrapartidas ou condicionalidades, pois na atualidade estas se apresentam de

forma quase inseparáveis. No Brasil, a cobrança não tem sido o trabalho, mas são outras as

contrapartidas exigidas.

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CAPÍTULO 2 — EM BUSCA DOS FUNDAMENTOS DA SELETIVIDADE

PRESENTES NA EMERGÊNCIA E INSTITUCIONALIZAÇÃO DO SERVIÇO

SOCIAL

Para entender a seleção socioeconômica — como condição e forma de acesso aos

serviços e benefícios sociais —, é necessário investigar os fundamentos-pilares que lhe dão a

devida sustentação, desde as suas origens. Trabalharei com a tese de que o Serviço Social,

surgindo como profissão no final do século XIX para dar respostas profissionais às expressões

da questão social,32 recebeu, desde o início, demanda institucional para realizar processos

seletivos de acesso aos serviços sociais. Essa constitui condição e forma obrigatória de acesso

ao atendimento, independente do nome historicamente atribuído aos serviços sociais.33

Meu intento não se limita à apresentação de uma sucessão de fatos, denominada de

história da profissão, mas é governado pela busca de compreensão de como e por que a

profissão, ao se apossar de fundamentos teórico-metodológicos e ético-políticos (que são

sempre sócio-históricos), foi adquirindo determinado jeito de ser e proceder para, assim, dar

visibilidade à verdadeira dimensão da seletividade para o acesso aos serviços sociais.

Netto (1996a) aqui comparece, referenciando com sua análise essa premissa inicial.

Diz o autor que, para fazer entender a origem do Serviço Social como profissão, é preciso

anunciar sempre a concepção de história que é assumida, já que há diversas elaborações

teóricas e ideológicas envolvidas. Trata-se de demonstrar em que medida a

“profissionalização do Serviço Social vincula-se decisivamente, em última instância, à

dinâmica da ordem monopólica” (NETTO, 1996a, p. 69; grifo do autor) do momento histórico

em que esses fatos se deram. Não se trata apenas de registrar uma sucessão cumulativa de

fatos, como é o caso do que se configurou designar como protoformas do Serviço Social:

“evolução da ajuda”, “racionalização da filantropia”, “organização da caridade”.

32 Com Iamamoto e Carvalho (1985, p. 77), entendemos a questão social como “não sendo senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção, mais além da caridade e da repressão”. 33 Neste trabalho, a expressão “Serviço Social” será utilizada para designar a instituição que dá suporte e legitimidade à prática da profissão dos assistentes sociais no âmbito teórico-metodológico, ético-político e técnico-operativo, e abriga o assistente social como um sujeito coletivo. Os termos “serviços sociais” serão utilizados para designar auxílios e benefícios oferecidos pelos programas assistenciais e de política social, vinculados e veiculados pelas organizações sociais. Assim, quando me referir à profissão, os vocábulos aparecerão com as letras iniciais maiúsculas.

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Como dissemos, o Serviço Social construiu-se inicialmente sobre e a partir das formas

existentes criadas pela filantropia e pela caridade, mas isso não pode ser tratado numa

perspectiva de mera evolução.

Como bem conclui o autor,

[...] não é a continuidade evolutiva das protoformas ao Serviço Social que esclarece a sua profissionalização, e sim a ruptura com elas, concretizada com o deslocamento aludido, deslocamento possível (não necessário) pela instauração, independentemente das protoformas, de um espaço determinado na divisão social (e técnica) do trabalho. Substantivamente, a ruptura se revela no fato de, pouco a pouco, os agentes começarem a desempenhar papéis executivos em projeto de intervenção cuja funcionalidade real e efetiva está posta por uma lógica e uma estratégia objetivas que independem de sua intencionalidade (NETTO, 1996a, p. 68-69; grifos do autor).

Destas afirmações derivamos duas diretrizes importantes para a elaboração de nossa

análise nesta seção. A primeira é a de tomar o Serviço Social dentro de seu contexto particular

na divisão social e técnica do trabalho na sociedade. A segunda é a da identificação da

existência de lógica e estratégia objetivas da profissão, independentes da intencionalidade de

seus protagonistas.

Nessa perspectiva de compreensão do Serviço Social, aparecem claramente duas

dimensões indissociáveis e interdependentes da profissão, ao se apresentarem como duas

expressões do mesmo fenômeno: “como realidade vivida e representada pela consciência de

seus agentes profissionais e que se expressa pelo discurso teórico-ideológico de seus

agentes”; e como “atividade socialmente determinada pelas circunstâncias sociais objetivas

[...], ou seja, como o Serviço Social existe independente da vontade e/ ou da consciência de

seus agentes” (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 73; grifos meus).

Na emergência da profissão, o Serviço Social é apreendido como realidade vivida e

pensada nos marcos do conservadorismo. A apreensão como atividade socialmente

determinada pelas circunstâncias sociais objetivas, situado na divisão sociotécnica do

trabalho, tem início com a incorporação da vertente marxiana. Nesse sentido, a obra Relações

sociais e Serviço Social no Brasil (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985), publicada em primeira

edição no ano de 1982, é seminal.

Do ponto de vista de atividade socialmente determinada, a origem do Serviço Social

como profissão pauta-se pelo fato de que havia uma demanda social a ser respondida. Ou seja:

a nascente sociedade burguesa demandava o trabalho de agentes profissionalizados de

intervenção na realidade social. Tinham estes como objeto de trabalho as expressões da

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questão social, que a cada momento mais se evidenciavam, sendo preciso mantê-las sob

controle para que não viessem a colocar em risco a ordem do capital.

A constituição do mercado de trabalho para o assistente social pela via das políticas sociais — e recorde-se que aqui fazemos referência às políticas sociais do Estado burguês no capitalismo monopolista — é que abre a via para compreender simultaneamente a continuidade e a ruptura, [...] que assinalam a profissionalização do Serviço Social (NETTO, 1996a, p. 71).

Trata-se, na perspectiva da mesma forma presente em Iamamoto e Carvalho (1985), de

entender o Serviço Social nas relações sociais, de acordo com o lugar que ocupa na divisão

sociotécnica do trabalho. Dá-se a incorporação do assistente social às organizações sociais

existentes na condição de assalariado, como seu funcionário e, portanto numa relação de

subordinação, agora na figura do contratado, não mais do voluntário. Esse contrato regerá

então a relação.

Surge a questão inerente ao profissionalismo e, consequentemente, à exigência de

formação e qualificação técnica para lidar com as situações de seu objeto de intervenção: sua

concreta formação implicará buscá-la, aproximando-o das fontes da teoria social, no sentido

de compreender os fundamentos da sua ação.

Nesse momento, no caso do assistente social, na persecução desse caminho,

de uma parte, recuperam-se formas já cristalizadas de manipulação dos vulnerabilizados pelas sequelas da “questão social”, assim como parcela de seu lastro ideal (ancorado no pensamento conservador, que aporta elementos para compatibilizar as perspectivas “publica” e ”privada”) [...]. De outra, com a reposição no patamar das políticas sociais, introduz-se-lhes um sentido diferente: a sua funcionalidade estratégica passa a dimanar dos mecanismos específicos da ordem monopólica para a preservação e o controle da força de trabalho (NETTO, 1996, p. 71).

Podemos assim afirmar que, desde o início da profissão do assistente social, foi

plasmada uma relação direta entre a prática do Serviço Social e o estabelecimento da política

social do Estado burguês. Falamos desta ligação estabelecida na era do capitalismo

denominada monopolista ou oligopólica, como resposta ao enfrentamento das sequelas e

expressões da questão social.

Dentro deste marco que é proposto para a análise histórica da profissão, examinarei as

formas assumidas pela prática profissional no tocante à questão da seletividade

socioeconômica em estudo. Acredito que este procedimento será capaz de levar ao

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desvendamento, passo a passo, do caminho seguido, neste aspecto particular, pela

profissionalização no Serviço Social.

2.1. Os fundamentos da seletividade presentes na emergência e institucionalização do

Serviço Social nos Estados Unidos

De fato, recuperar os fundamentos da seletividade socioeconômica implica a

compreensão de um processo relativo à definição dos que possuem mérito para acesso aos

benefícios e serviços sociais, mediante comprovação da impossibilidade de satisfazer suas

necessidades com recursos próprios.

O nome amplamente definido para este procedimento é means test (teste de meios),

que inclui a investigação, por diversas maneiras, da veracidade da situação do indivíduo

quanto à carência alegada. O assistente social é o agente que, comprovando tal insuficiência, a

partir de estudos, emite seu julgamento e a aprovação do atendimento das solicitações,

mediante relatórios e pareceres, de acordo com as normas vigentes. A realização desta

requerida seleção exige sempre um embasamento conceitual, com decorrente definição de

normas e estabelecimento dos critérios operacionais, além da organização dos instrumentos

para sua concretização. Esse parece ter sido, ao longo do tempo, o caminho do acesso aos

serviços sociais.

Para o Serviço Social, a questão da seletividade da clientela a ser atendida em programas

e benefícios sociais pode ser traçada desde o trabalho de suas pioneiras mundiais. As

informações que pude colher, e que aqui são apresentadas, embora esparsas no tempo, permitem

verificar que nossa hipótese inicial sobre a presença do uso rotineiro e antigo de processos

seletivos, como forma e condição de acesso a benefícios e serviços sociais, confirma-se na

recuperação das atividades que as assistentes sociais tinham sob sua responsabilidade, desde a

origem da profissão. Profissionais que pertenceram aos primeiros tempos e seus comentaristas

mostram-nos essa preocupação presente na origem da história do assistente social.

Quanto a Mary Richmond, Ilda Lopes Rodrigues da Silva, estudiosa de seu pensamento,

ao apresentar e comentar a obra “Diagnóstico Social”,34 publicada em 1917, assim abre seu texto:

34 A autora chama a atenção para o fato de que está se referindo à primeira parte da obra “Diagnóstico Social”, intitulada “Evidências sociais”, que, por sua vez, é subdividida em cinco capítulos e que agora traz à baila o primeiro capítulo, denominado “Origens”. Também destaca que, na tradução portuguesa dessa obra, o item “Evidências sociais” está registrado como “Realidades sociais”.

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Nesta parte inicial, ela [referindo-se a Richmond] trata da dimensão histórica do trabalho baseado no “inquérito”. Percebe-se, logo na introdução, que o pensamento das trabalhadoras sociais na Inglaterra era orientado por uma visão economicista, baseada no liberalismo econômico e na sociologia de domínio positivista. Assim o “inquérito geral” desenvolvido nas últimas décadas do século XIX estava impregnado de um individualismo pragmático, não admitindo procedimentos fora dos critérios. Seus princípios fundamentavam as normas do trabalho assistencial que podem ser apresentadas resumidamente assim: é indispensável provar a incapacidade de um necessitado; merece atenção verificar a inadequação do solicitante em relação à sociedade. Por se vincular a estas normas, o papel da trabalhadora social era reduzido a investigar a verdade da miséria, uma vez que cada benefício era concedido em função da prova (SILVA, 2006, p. 3; grifos meus).

Richmond, segundo esta autora, teria até questionado a forma como os trabalhadores

sociais ingleses vinham realizando essa função.

Algumas referências a esse processo podem também ser encontradas em texto

disponível de Gordon Hamilton, autora norte-americana que, juntamente com Florence Hollis

e Helen Harris Perlman, foi amplamente conhecida dos assistentes sociais brasileiros.

Discípula de Richmond, ao tratar do direito à assistência social, em texto publicado nos EUA

em 1940, ela afirma:

Nos programas de bem-estar, o direito à assistência tem que ser comprovado, explicando-se o processo estabelecido que deverá seguir certos trâmites, de acordo com a natureza do pedido e necessidades do cliente. [...] Em todas as formas de assistência pública, a elegibilidade segundo os estatutos e regulamentos impõe uma estrutura através da qual se realiza a prática do Serviço Social (HAMILTON, 1982, p. 179; grifos meus).

Mais à frente, continua:

Quando o indivíduo recorre a uma obra social, passa por um processo de seleção. O cliente faz um pedido; alguém se dirige a ele a fim de saber qual a dificuldade e se pode ser tratada ali. Se não, ele deve ser encaminhado à Agência apropriada. A isso se chama “matrícula”. Num hospital, a parte administrativa da matrícula chama-se “admissão”; na Agência de Serviço Social, chama-se “plantão”. Não é comum considerar-se o caso como tal, para fins estatísticos, senão após o plantão ou após a seleção. No campo da assistência pública, como em outros mais, o “plantão” tem por objetivo determinar se o caso pode ser aceito ou não, ou se o problema apresentado pelo cliente pode realmente (e legalmente, se se trata de uma instituição pública) ser ali resolvido (HAMILTON, 1982, p. 181; grifos meus).

O discurso de Hamilton especifica instrumentos e formas do processo seletivo que

implicam definição de seu objetivo: a comprovação da necessidade; o setor da instituição em

que sua realização está locada, o plantão; o nome do procedimento operativo, a triagem; o

agente responsável por esse procedimento, o assistente social; a autoridade quanto ao

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veredito, o assistente social; a existência de bases conceituais e operacionais de aplicação

geral, regulamentos e estatutos, corporificados nas normas de elegibilidade aos serviços ou

benefícios pretendidos.

Silva (2006) confirma a realização do means test por trabalhadores sociais ingleses.

Nesse aspecto, mostra a posição crítica de Richmond quanto a sua realização. Acrescenta um

comentário sobre o fato de o Serviço Social de Casos ter tido outras bases de referência.

Richmond escreve a obra citada em 1917, nos EUA, mas reporta-se à prática dos

trabalhadores sociais ingleses das três últimas décadas do século XIX. Hamilton refere-se aos

EUA, e seu texto foi publicado em 1940.

Agora, torna-se necessário considerar mais detalhadamente quais são e de onde vêm as

referências, os fundamentos das ideias, das propostas e das práticas aqui expostas, que dão

sustentação à prática das organizações sociais privadas e públicas e ao Serviço Social.

Silva (1993), ao tratar da Organização da Caridade e do nascimento do casework nos

Estados Unidos (1887-1913), ajuda na tarefa de explicitar os fundamentos da seletividade.35

Ela inicia sua análise, explicando que o crescimento industrial que sucede à Guerra Civil

norte-americana (1861-1865) fez emergir a pobreza e o conflito social de forma explosiva.

Com isso, ameaçou a estabilidade da ordem social, que não podia mais ser atribuída só aos

indivíduos e suas famílias, e acabou por provocar o aparecimento desordenado da caridade.

Anteriormente, o tratamento dado pelas organizações da caridade à pobreza nos

Estados Unidos, através do primeiro plano criado, propunha

a prestação de ajuda material, numa época em que a caridade já havia sido marcada pela preocupação com a dimensão individual dos necessitados. Esta preocupação com o indivíduo já se manifestara na fundação, em 1842, por Robert Hartley, da New York Association for Improving the Condition of the Poor, criada para coordenar agências privadas, investigar o aspirante à ajuda e torná-lo autossuficiente (SILVA, 1993, p. 11).

Essa explicação permite frisar que, em 1842 — mesmo antes da emergência da

profissão do Serviço Social nos Estados Unidos, em 1898, e que se constitui na primeira

matriz do Serviço Social no plano internacional —,36 a ajuda da caridade já se realizava

35 Considero essa obra de Silva (1993) uma sistematização acerca do Serviço Social no seu nascedouro nos EUA. Pautada na leitura dos autores da época e preservando os nomes dados ao Serviço Social e aos conceitos utilizados nessa época, a autora destaca as contribuições de cada um deles. Esse estudo é tratado por mim como fonte de registro histórico, ao me permitir localizar e explicitar os fundamentos que embasaram, na origem da profissão, a realização do means test, ou atendimento mediante a comprovação da necessidade dos demandantes dos serviços sociais. 36 A primeira escola de Serviço Social europeia foi criada na Holanda em 1899.

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mediante a investigação do aspirante a ela, e que o objetivo pretendido era torná-lo

autossuficiente. Partindo dessa referência inicial, a autora avalia que

a distribuição desordenada de ajuda, própria do período em questão, caracterizou um retrocesso, ao confrontar com o novo olhar sobre o indivíduo que emergira no campo da filantropia. A ineficiência e o caráter meramente punitivo e repressor das Leis dos Pobres, promulgadas com o intuito de proteger a comunidade contra as demandas de seus pobres, dera lugar a uma nova estratégia filantrópica, centrada na recuperação do indivíduo (SILVA, 1993, p. 11).

As Sociedades de Organização da Caridade, inspiradas na London Charity

Organization Society, surgem como resposta aos complexos desafios introduzidos pela

evidente pobreza e pela agitação social existente.

Nos EUA, a primeira Sociedade de Organização da Caridade, criada em 1870 na cidade

de Buffalo, importante centro manufatureiro do estado de Nova Iorque, mostra que essa

instituição, recuperando a noção de indivíduo, estabelece uma nova época da filantropia

naquele país. Essa forma de responder às expressões da questão social emergente, através da

chamada “organização da caridade”, multiplica-se rapidamente. Na virada do século, já

existiam tais organizações em 138 cidades norte-americanas.

Silva (1993, p. 12), ao observar que “as Organizações ‘refletiam o espírito de seu

tempo’ e que afetaram em todos os aspectos a vida americana no final do século XIX”, associa

o feminismo à filantropia moralizadora como uma aliança “tranquila” e “boa”: “[...] graças,

em grande parte, à emancipação feminina que eclodiu durante e depois da guerra civil, muitos

de seus agentes eram mulheres, configurando uma aliança entre um feminismo de promoção

da mulher e a filantropia moralizadora”.

Essas Sociedades, “na tentativa de organizar os recursos da comunidade e aliviar o

sofrimento da maneira mais eficiente e econômica possível, [eram similares] à monopolização

dos grandes negócios”, ou seja, se organizavam como “empresas”, pautando-se em dois

planos de ação: plano administrativo, que visava enfrentar a miséria de forma eficiente,

evitando a duplicidade de ações; plano de colaboração, tendo como horizonte a construção

“de uma civilização de costumes que se atribuiu o objetivo de ajudar as classes pobres,

moralizar seu comportamento e facilitar sua educação” (SILVA, 1993, p. 13).

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Nessa forma de organização, comparecem as ideias de racionalização no uso dos

recursos existentes.37 Por um lado, impedia-se que o indivíduo fosse duplamente atendido. Por

outro, destacava-se a educação da população no sentido da transmissão de novos valores, uma

vez que o indivíduo poderia apresentar comportamento considerado imoral.

A pobreza é vista e tratada como questão moral de âmbito individual, e a indigência é

percebida como punição infligida ao pobre por sua falta de esforço e moralidade,

consequência direta da preguiça e do pecado. Silva (1993), apoiada em Hofstadter (1965),

reforça com sua análise essas ideias, ao registrar que, nos Estados Unidos, nas três últimas

décadas do século XIX, a apropriação de teorias filosóficas e políticas construídas a partir do

pensamento de Darwin deram sustentação a essa visão do “necessitado de ajuda”. Este se

apresentava como destituído de virtudes e sujeito ao tratamento desumano com que a

população pobre era tratada nas organizações sociais. A autora explica que

a interpretação que confinou o pobre ao purgatório do fracasso social e tornou-o um pária da sociedade foi reforçada pelos ensinamentos do filósofo político inglês Herbert Spencer (1820-1903) e seus discípulos americanos, que tentaram aplicar as descobertas de Darwin no campo da biologia ao pensamento social (SILVA, 1993, p. 13).

Considerando que a “teoria da evolução das espécies” de Darwin veio a se difundir

amplamente, consagrando a noção de seletividade natural, acreditamos na sua importância

para nossa discussão e procuramos aqui explorá-la em seu desenvolvimento.

Esta seletividade seria resultante da luta empreendida pelos seres vivos na natureza em

ambientes que, ao sofrerem alterações, passam a demandar novos quesitos para a

sobrevivência, exigindo daqueles seres uma adaptação. Como fruto da seleção natural, só

resistem os que podem apresentar mecanismos adaptativos adequados para conviver com as

novas determinações impostas. A partir daí, serão estes, através da reprodução biológica, que

transmitirão os seus “bons genes” à sua descendência, garantindo assim a continuidade da

espécie pautada nas novas condições. Há espécies que, nesse processo, são extintas; outras

permanecem fortes. A apreensão da lógica da seleção natural das espécies é transportada para

o mundo sócio-histórico e passa a ser referência para vários autores, dentre os quais Herbert

Spencer, no sentido de explicar a relação entre os homens e entre estes e a sociedade,

considerada como meio ou ambiente social.

37 Vieira (1970, p. 172) observa que, nos EUA, “a preocupação em bem aproveitar os recursos, em coordenar os esforços, em não duplicar a assistência originou a criação dos ‘Fichários Centrais de Assistidos’. O primeiro foi fundado em Boston em 1876”.

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A transposição da lógica da interpretação da seleção natural para o mundo social como

mundo dos homens, que é histórico,38 significa naturalizar o que não é natural. O homem,

decerto, é uma das espécies presentes na natureza, mas a esta não se reduz. O homem é um ser

social que, através do trabalho, transforma a natureza e cria a si próprio como ser histórico.

A naturalização de processos sociais traz como consequência o entendimento de que a

realidade sócio-histórica é o resultado de determinações que independem do homem e, portanto,

diante da qual não é possível fazer nada.39 A desigualdade social, por exemplo, que é um

produto do modo de produção, passa a ser considerada como natural e fruto da seleção natural.

A noção de competição, tão presente no liberalismo, encontra-se relacionada à

interação social que se faz sob a direção da disputa, sendo esta voltada para vários objetivos,

tais como a conquista do alimento, do território, do parceiro sexual — e, em âmbito social, do

emprego e de bens, entre outros exemplos. Nesse quadro de referência, a agressividade, a

violência praticada é condição da luta pela sobrevivência do indivíduo e a dos seus

descendentes, no sentido de garantir o futuro da espécie, e instituindo-se, assim, em fator

regulador da densidade populacional, ao contribuir para evitar a superpopulação das espécies,

tendo em vista que os recursos em disputa são geralmente escassos.

Explicar e difundir a noção da desigualdade social como fruto da luta natural, mediada

pela competição, é ideologicamente mais interessante à manutenção da ordem social do que

enxergá-la como fruto da exploração de uma classe social por outra — ou, melhor, como fruto

da luta de classes. É de mais fácil compreensão associar os processos sociais aos processos da

natureza do que entendê-los para além da imediaticidade dos fatos, enxergando-os como

históricos. Do entendimento do mundo social como mundo natural deriva a concepção de

duas classes de indivíduos: os ganhadores e os perdedores. A burguesia apresenta-se como

expressão dos ganhadores.

Silva (1993, p. 14) referenda a lógica aqui explicitada e de forma resumida ressalta os

fundamentos significativos que deram a devida sustentação para se entender a intolerância e o

implacável controle assumido pelos agentes da caridade nos EUA diante dos “pobres”:

No campo social, o darwinismo converteu-se no baluarte do conservadorismo da época, constituindo-se numa associação da doutrina do laissez-faire, da economia clássica, com a lei da seleção natural do mais apto, da biologia darwinista, ambas as

38 Quando uma concepção filosófica-ontológica de homem é histórica, a essência dos fenômenos será buscada “no próprio homem entendido como autor e construtor de sua própria história” (BARROCO, 2004, p. 15). 39 Refiro-me ao fato de que as determinações sócio-históricas não são eternas e imutáveis. E exatamente porque são históricas envolvem contradições — e é exatamente essa característica que indica a possibilidade da mudança. Contudo, para que ocorram, as transformações sociais não dependem da simples vontade imediata de alguns homens. Entender o contrário implica uma concepção voluntarista, negando-se as determinações históricas.

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doutrinas apoiadas na lei natural. Para os darwinistas sociais a competição era a lei da vida logo, o remédio para a pobreza era a autoajuda. Afinal de contas, os pobres eram os inaptos e protegê-los na luta pela existência apenas permitiria que se multiplicassem, levando ao enfraquecimento das espécies e impedindo o plano da natureza do progresso evolucionário para formas mais elevadas de vida social.

Os pobres são vistos como perdedores, desadaptados e fracos. Portanto, deveriam ser

eliminados, para que não transmitissem sua fraqueza à humanidade.

Spencer encarava o progresso como resultado de uma constante luta entre os seres humanos, luta essa que tinha uma natural função seletora, baseada em fatores biológicos e naturais: o fraco, o doente, o malformado, o ocioso, o imprudente, o imprevidente — que não se adaptavam às formas de vida civilizada — deveriam ser impedidos de se reproduzir, porque protegê-los socialmente era não só agir contra a lei da natureza mas contra a lei do progresso (PEREIRA, 2000, p. 107).

Esse raciocínio ganha força quando é conectado à ética do trabalho, que consiste na

direção intelectual e moral disseminada pelo puritanismo de grande força no século XIX, na

consolidação da sociedade burguesa.

Trata-se de uma sociedade fundada no mérito de cada um potenciar suas capacidades naturais. O liberalismo [...] combina-se a um forte darwinismo social, em que a inserção social dos indivíduos se define por mecanismos de seleção natural. Tanto que Malthus,40 por exemplo, recusava drasticamente leis de proteção, responsabilizando-as pela existência de um número de pobres que ultrapassava os recursos disponíveis (BEHRING, 2000, p. 24).

O pensamento de Spencer aproxima-se ao de Malthus, também amplamente aceito na

época. Para esses autores,

[...] não haveria porque criar sistemas de proteção social aos pobres, nem mesmo no âmbito das instituições privadas, pois tal atitude impediria o processo de adaptação social por meio do qual os indivíduos adquiririam a necessária capacidade para participar de um mundo mais diferenciado e complexo. Portanto, só havia um tipo de assistência que Spencer admitia: a que ajudasse o pobre a se autoajudar; ou, de acordo com o popular provérbio chinês: “Em vez de se dar o peixe, deve-se dar-lhe a vara de pescar e ensiná-lo a pescar” (PEREIRA, 2000, p. 107; grifo da autora).

Se cuidar de si mesmo pressupõe a detenção de meios para tal intento, então a noção

do indivíduo se ajudar surge como desafio, prova e até oportunidade de fortalecimento por

40 Para o pastor protestante inglês Thomas Robert Malthus, a ajuda aos pobres minava-lhes o espírito de independência e incentivava a ociosidade. Estas justificações, segundo Pereira (2000, p. 106), fortaleceram sobremaneira a ideologia liberal, que relacionava o trabalho às liberdades negativas e via o indivíduo como detentor de um direito natural à liberdade, oposto ao direito artificial à proteção institucional.

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meio do trabalho, como condição de sua subsistência. A autoajuda, a autossuficiência

pretendida pelas Organizações de Caridade têm o significado de que o indivíduo possa contar

unicamente consigo mesmo para sobreviver. Deveria ser capaz de se autossustentar e não

solicitar ajuda e quem a requer é porque é fraco e incapaz.

Diante do exposto, podemos perceber que é certo que a seletividade do acesso ao

atendimento não foi inventada pela profissão, mas o Serviço Social participa da sua realização

desde a sua emergência, tratando-a como se fosse natural a sua realização, sob as formas

antecedentes herdadas, realizadas segundo seus fundamentos.

Em relação ao atendimento realizado pelo assistente social e ao relacionamento que se

estabelece entre o assistente social e o “cliente”, Silva (1993) afirma, pautada em Robinson

(1939), que “o objetivo básico da caridade organizada é atingir o indivíduo” e “o controle do

pauperismo”. Pergunta, no entanto: qual é o olhar que seus agentes dirigiam ao indivíduo, para

diagnosticar, em cada caso, as causas da miséria?

Silva (1993) apoia-se em Trattner (1979) para responder e sustentar:

A preocupação com o indivíduo tornou-se a alma e a cabeça do movimento, na medida em que elevou a “Caridade Científica” ao estatuto de uma atividade superior, qualitativamente diversa da simples doação de esmola e de ajuda pública que até então vinha sendo praticada. [...] A base desta nova ciência da terapêutica social, que pretendia livrar a filantropia do sentimentalismo e da ajuda indiscriminada, além de erradicar o pauperismo, era a combinação da prática das friendly visitors41 aliada ao uso do registro, da cooperação e da coordenação entre as agências. Neste contexto, a ajuda material passou a ser combatida com veemência, na medida em que se esgotava em seus próprios fins. Na melhor das hipóteses, era um mal necessário, o “último recurso” destinado aos incapacitados de fazer face à luta pela sobrevivência — velhos, doentes, crianças órfãs ou viúvas com filhos dependentes (SILVA, 1993, p. 15).

A ajuda material é, nessa perspectiva, vista como “último recurso”. Que pretendiam as

organizações realizar com os demandantes de seus serviços? Silva (1993, p. 15) responde:

Os agentes da caridade organizada, ao contrário, tinham pretensões bem maiores. Eles acreditavam que o pobre, mais do que esmola, necessitava de supervisão para ajudá-lo a combater ou superar a intemperança, a indolência e a imprevidência. Por isto mesmo orgulhavam-se de fazer vigorar o lema do movimento — Not alms, but a friend —, a melhor tradução para o ideal de substituir a esmola pelo contato pessoal entre o rico e o pobre.

A pobreza no contexto do Serviço Social norte-americano dessa época é concebida e

tratada partindo do princípio de que é de inteira responsabilidade do indivíduo fraco, que não

41 Voluntárias, pessoas que faziam as visitas domiciliares para as obras sociais.

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lutou e que é, portanto, um perdedor. Então, fortalecer o espírito se colocará como um dos

horizontes do trabalho a ser realizado pelos profissionais.

Esse processo, que realiza a separação entre o “pobre” (como o incapacitado, o

desintegrado da sociedade, porque não trabalha e, portanto, não detém meios para sobreviver)

e o “trabalhador” (considerado como integrado à sociedade, por estar inserido no sistema

produtivo) desfoca a apreensão da pobreza como expressão da questão social, desvinculando-

a de seus fundamentos econômicos.

Nunes (2004) propõe a questão nos seguintes termos:

O Serviço Social como grupo profissional é reconhecido para julgar as ações dos indivíduos e simultaneamente tratar estas mesmas ações que representavam uma ameaça para a ordem social e o desenvolvimento industrial. O Serviço Social desenvolve-se na perspectiva do controlo e cura. [...] O Serviço Social desenvolve-se como um dos dispositivos privilegiados da Assistência Social para disciplinar os improdutivos, integrando- os na sociedade produtivista e difundindo uma ética do trabalho assalariado. Realiza simultânea e contraditoriamente objetivos de reparação e promoção social. Contribui para a percepção dos problemas sociais transformando- os em problemáticas [...] (AUTÈS, 1998, apud NUNES, 2004, p. 26).

O indivíduo é concebido não como genérico-humano, ou mesmo enquanto membro

integrante das classes sociais, mas como ser isolado, único, que se explica em si mesmo, em

que a personalidade e as características herdadas irão se constituir nas explicações básicas do

seu jeito de ser. Na medida em que o indivíduo não é visto como expressão de singularidades,

particularidades e universalidades e em relação com a totalidade social e em relação aos

demais homens, destaca-se a cristalização da expressão “cada caso é um caso”, que se refere

apenas à dimensão da singularidade do indivíduo.

Os agentes das Sociedades da Organização da Caridade, constituídos por mulheres de

prestígio social e econômico, atendiam os que necessitavam de auxílio a partir da investigação

das solicitações de ajuda, fazendo distinção entre merecedores e indignos pautada em

julgamentos morais. Após a seleção dos considerados dignos, a atuação dos agentes se dirigia

para apoiar materialmente e regenerar o caráter dos pobres, partindo do princípio de que “não

eram depravados por natureza”, mas imaturos (SILVA, 1993, p. 16).

Podemos perceber que os demandantes dos serviços sociais eram vistos como

indivíduos fracos, perdedores e preguiçosos e também como indolentes, imprevidentes,

imaturos e, sobretudo, perigosos. Era preciso controlá-los, porque poderiam contaminar

outros com seu jeito e a sua preguiça. Ou seja, o controle sobre o pobre se colocava como o

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principal alvo da atuação. Controlar carrega o significado de dobrar o espírito, da

domesticação para evitar o alastramento de um mal.

A filosofia das organizações da caridade se pautava, por conseguinte, em visão

preconcebida acerca da pobreza, fundada no conceito moral individual da pobreza,

culpabilizando os próprios pobres por sua desgraça, ao considerar como uma falha de caráter

o indivíduo recorrer à ajuda, em vez de ir trabalhar para sobreviver. 42 “Além do mais,

baseava-se numa visão pessimista do homem, por considerá-lo fadado a se deteriorar

moralmente caso recebesse como presente o que lhe caberia obter à custa do próprio trabalho”

(SILVA, 1993, p. 17).

Embasada nessa lógica, a autora enfatiza que essa abordagem moral utilizada na

emergência da profissão justificava-se, uma vez que, embora houvesse interesse pelo

indivíduo, pouco se sabia, na época, acerca da personalidade humana.

Na verdade, usavam a “abordagem moral”, baseada em atitudes de julgamento e valores de classe média, para distinguir entre o pobre merecedor e o indigno de receber ajuda. Por isto limitavam-se a investigar o necessitado e, de vez em quando, tentavam levá-lo a mudar de vida ou libertá-lo das más influências, pois reconheciam o poder modelador do ambiente. [...] As causas da pobreza, por sua vez, eram imputadas ao que mais tarde passou a ser considerado sintoma: a intemperança, a incapacidade e a imoralidade (SILVA, 1993, p. 17).

Importante destacar que, se nessa época não se conhecia muito sobre a personalidade

humana, já se sabia muito sobre a luta pelos direitos humanos e sobre o indivíduo forjado na

luta de fazer a história, tendo em vista seus interesses. Já se falava de liberdade e de igualdade

perante a lei; já havia corrido muito sangue dos trabalhadores na conquista de direitos.43

Para o Serviço Social, as demandas da população também não são vistas como

direitos, mas como manifestações de carências que precisam ser comprovadas com visitas e

estudos profissionais.

Tendo em vista a argumentação apresentada até aqui sobre os fundamentos que dão

sustentação à nascente profissão do assistente social, podemos afirmar que as profundas

contradições que a sociedade burguesa carrega se dirigem para reforçar a direção de sua

42 Schons (1999, p. 64) chama a atenção para o fato de que a Lei dos Pobres, enquanto assistência aos mais fracos, era entendida como desestímulo ao trabalho, visto que a ética protestante que alimenta o surgimento do capitalista, segundo Weber, entende que a salvação se dá pelo trabalho. Então, é preciso combater a ociosidade. 43 Abreu (2008, p. 184) destaca o fato de que, nos Estados Unidos, “[...] a ordem jamais sofreu a pressão de um forte movimento operário, trabalhista ou socialista, que deslegitimasse os seus fundamentos, o reordenamento capitalista desenvolveu-se sem necessidade de pactuar com um ‘inimigo’ potencial ou real, como ocorreu na maioria das nações do ocidente europeu. [...] o processo de reprodução social norte-americano jamais precisou transferir excedentes, na mesma proporção das nações europeias que enfrentaram a insurgência proletária”.

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preservação, operando nos aspectos que geram desequilíbrios e disfunções, vistos como

naturais, culpabilizando os indivíduos que procuram ajuda pela sua própria situação. A

mesma sociedade capitalista que gera a riqueza gera a pobreza, pelos mesmos meios e

processos. Quando, porém a pobreza é vista e analisada de forma separada dos processos que

a produzem, pode se colocar como “questão dos pobres”, permitindo ser tratada como questão

de foro íntimo, privado, individual.

Nos textos de autores norte-americanos aqui citados, que tratam do nascimento do

Casework, podemos perceber, através das análises apresentadas acerca da conjuntura, que

essas são apreendidas de forma restrita, local, não abrangendo aquilo que se passava no

mundo. Da mesma forma, o Serviço Social é concebido em si mesmo, como se fosse possível

explicá-lo simplesmente pelas ações que os profissionais realizam.

A sistematização da prática, como teorização da prática, é, então, a reiteração do

existente e vista pelos autores como fato dado no cotidiano, no seu aspecto de repetição,

naturalizando os processos sociais.

Diante das análises aqui apresentadas acerca da fundação da “Caridade Científica” nos

EUA, podemos perceber que, no final do século XIX, naquele país, o acesso ao atendimento

nas organizações da caridade ocorria mediante processo seletivo, pautado em visão de

pobreza como questão de âmbito individual. Quer dizer: a seleção para o acesso era

individualizada, tratada como de foro privado, tratada como questão moral.

Os problemas apresentados pelo indivíduo na triagem de acesso serão avaliados à luz

da moral, para verificar se, de fato, ele é merecedor da ajuda ou se é indigno desta. Nesse

caso, podemos dizer que a seleção se dá mediante avaliação, embora já seja denominada por

estudo —.44 ou seja, por estudo de caráter avaliativo pautado na comprovação da necessidade.

Silva (1993), citando Bruno (1964), pondera que a seleção, como fruto da

investigação, embora criticada na forma de sua realização, era necessária no atendimento.

Buscava-se a melhor forma de ajudar as pessoas:

[...] o processo de investigação era a pedra angular do “tratamento”, e embora severamente criticado pela função “negativa” de separar o merecedor do indigno, evitar a duplicidade de ações e detectar pedintes crônicos e impostores, seus defensores vislumbravam no método a possibilidade de descobrir uma melhor forma de ajudar as pessoas. Além disto, preocupavam-se não apenas em excluir, mas evitar julgamentos inadequados que impedissem a compreensão das reais necessidades da família. Em tais afirmações, identificamos o prenúncio do espírito do casework que nos próximos anos se desenvolveria como um método de trabalho social com indivíduos (SILVA, 1993, p. 18).

44 Importante distinguir que a análise é sempre substantiva e a avaliação, normativa, valorativa. Embora caminhem sempre juntas, são distintas.

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A autora sintetiza, então, que nos EUA, “até o final do século [refere-se ao XIX], os

três fundamentos do Serviço Social eram: o conhecimento dos fatos, a ajuda adequada para o

corpo e a supervisão moral para a alma” (SILVA, 1993, p. 18).

Por outro lado, é preciso aqui considerar o trabalho realizado nos Estados Unidos por

Jane Adams (1860-1935),45 como porta-voz de outra forma de trabalhar com a população.

Silva (1993) destaca que ela e seus adeptos criticavam duramente a prática dos agentes da

Caridade Organizada pela importância dada à investigação minuciosa e ao tratamento

individual. Consideravam os agentes desta caridade frios e sem emoção, muito impessoais e

avarentos, além de impregnados de espírito pseudocientífico (SILVA, 1993, p. 18).

Apesar do antagonismo inicial, havia semelhanças entre o Movimento da Caridade

Organizada e o das Residências Sociais, uma vez que “tinham concepções parecidas a

respeito dos direitos individuais e das relações de classe, [...] enfatizavam o sacrifício e a

solidariedade humana como expressão da necessidade de promover a harmonia entre as

classes sociais” (SILVA, 1993, p. 22-23).

A esse respeito, Martinelli (1997, p. 107) escreveu:

Mary Follet e Jane Adams, companheiras de Richmond, consideravam que a ação social devia voltar-se para a harmonização das relações industriais, para a administração dos conflitos sociais, portanto atuando em um nível mais global. A tese de Richmond, mais reacionária, sensibilizava muito a burguesia, que entendia que aquele tipo de prática respondia à função econômica da assistência, de modo indireto, uma vez que a ação social individual, “seja reformadora do caráter”, seja promovendo a melhoria das condições de saúde, contribuía para a recolocação do trabalhador no mercado de trabalho.

Os dois grupos expressavam compromissos com o reformismo conservador. Mas é

necessário explicitar o que isso quer dizer.

Na virada do século XX, no contexto dos Estados Unidos, surge o denominado

Movimento Progressista, criando as condições para uma aproximação entre os Agentes da

Caridade Organizada e o Movimento de Residência Social, que passam a se engajar nas

45 Em 1889, Jane Adams fundou em Chicago a Hull House, ideia que se difundiu com muita rapidez pelo país. Por volta de 1900, chegaram a ser criadas cerca de cem, subindo a 400 unidades em 1910. A Hull House era uma proposta em que jovens de formação universitária, “oriundos de segmentos sociais mais abastados”, se dispunham a conviver com as classes trabalhadoras, uma vez que não viam o indivíduo como ser isolado, mas trabalhavam com a noção de solidariedade para tornar aquele local melhor. “Esta visão da sociedade levou à conclusão de que a ação para ajudar algumas pessoas poderia ter um alcance mais amplo. Lamentavam o isolamento entre as classes sociais, cuja barreira buscaram ultrapassar de modo conciliatório. Membros das classes média e alta mudaram-se para as comunidades mais pobres das redondezas, com o propósito de conhecer de perto as condições de moradia e trabalho destas comunidades, para então ajudá-las a melhorar tais condições” (SILVA, 1993, p. 22).

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reformas sociais, assim como realizam atividades em cooperação, quando “começaram a

contratar e assalariar seus agentes e a reconhecer a necessidade de treiná-los, o que foi de

fundamental importância para o desenvolvimento do casework” (SILVA, 1993, p. 23).46

Nos primeiros anos do século XIX, como desdobramento do trabalho realizado pela

Charity Organization Society, os primeiros assistentes sociais passam a se inserir no mercado

de trabalho. “Registra-se nos Estados Unidos a inserção em equipes de equipes de saúde,

tribunais de justiça, área educacional e hospitais” (CAMPAGNOLLI, 1993, p. 96).

Em 1915, como decorrência do crescimento do número de escolas de Serviço Social,

aumenta significativamente o número de assistentes sociais: só na cidade de Nova York já

existiam cerca de 4 mil, atuando profissionalmente em instituições públicas. “Desses,

seguramente a maioria realizava suas ações através da abordagem individual, valendo-se de

entrevistas e visitas domiciliares” (MARTINELLI, 1997, p. 111).

Quando o Serviço Social se institucionaliza nos EUA, ocorrem modificações em

relação ao entendimento da pobreza, que passa a ser vista não mais centrada no

comportamento moral do indivíduo, mas nas suas condições de vida. O termo caridade passa

a ser entendido sob o conceito de filantropia, “com sua conotação positiva na prevenção da

desordem social e na promoção do bem-estar social” (SILVA, 1993, p. 26).

Afirmar que o Serviço Social norte-americano estava comprometido com o

reformismo social significa dizer:

Em certo sentido, a ideia que sustentava os reformadores sociais era antagônica ao credo darwinista social, pois tinham o firme propósito de que salvar e prolongar vidas era socialmente desejável. Não repudiavam a teoria evolucionista, mas simplesmente reinterpretaram-na de modo a tornar-lhes útil. Argumentavam que não se propunham simplesmente a promover a sobrevivência do menos apto, mas a recuperar e reintegrar sua capacidade de ser útil. Assim sendo, substituíram a “seleção natural” pela “seleção” racional (SILVA, 1993, p. 27).

46 O progressivismo, “um novo espírito político”, “tornou-se muito influente nos Estados Unidos entre o início da década de 1890 até a entrada americana na Primeira Guerra Mundial, em 1917. Muitas pessoas que se autointitulavam ‘progressistas’ viam seu trabalho como uma cruzada contra chefes políticos urbanos e barões corruptos. A era foi caracterizada pela crescente exigência de uma regulação efetiva do comércio e da indústria, um renascimento do serviço público e a expansão do governo para garantir que os interesses do país e dos grupos pressionando por estas exigências. Quase todas as figuras notáveis do período, seja em política, filosofia, educação ou literatura, estavam conectadas, ao menos em parte, com o movimento reformista. [...] O impacto profundo de escritores ditos ‘progressistas’ incentivou certos setores da população — especialmente uma classe média tomada entre uma guerra entre grupos trabalhistas e grupos de grandes industriais e comerciais — para tomar ação política. Muitos estados aprovaram leis para melhorar as condições sob as quais pessoas viviam e trabalhavam. Sob a crescente pressão de renomados críticos sociais tais como Jane Addams, leis contra o trabalho infantil foram gradualmente criadas e fortalecidas, que aumentavam a idade mínima de trabalho, diminuíam a carga diária de trabalho, restringiam trabalho noturno e requerendo atendência escolar” (disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_dos_Estados_Unidos_(1865-1918)->; acesso em 25 ago. 2012).

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Nessa direção, as ideias de adaptação são substituídas pelas de reintegração, salvação e

prolongamento da vida dos clientes atendidos, assim como a prevenção da desordem social se

coloca como a direção da prática profissional.

O darwinismo social de Spencer passa a não mais responder às necessidades, ao não

dar conta sozinho da explicação da realidade social. Assim, outras referências são buscadas.

“As manifestações filosóficas do novo progressivismo encontram o pragmatismo de Willian

James e a filosofia pedagógica de John Dewey que respeitam a liberdade democrática”

(SILVA, 2004, p. 58; grifos da autora).

O quadro recessivo relacionado à crise econômica de 1929 faz com que aumente

expressivamente o atendimento de desempregados nas organizações públicas e privadas,

possibilitando que os cursos de Serviço Social estudem as reações dos indivíduos atendidos e

se utilizem de técnicas psicológicas “através de entrevistas planejadas, tecnicamente dirigidas

e minuciosamente relatadas para serem, em seguida, cuidadosamente estudadas” (VIEIRA,

1970, p. 30). O Serviço Social passa, então, a reconhecer “a importância de fortalecer o

indivíduo na posição por ele ocupada, respeitando a sua personalidade e sua liberdade”,

(VIEIRA, 1970, p. 30), assim como a verificar e a cuidar da influência da personalidade do

assistente social na relação que se estabelece entre o assistente e o cliente.

É na década de 1930 que, no Serviço Social,

[...] foram introduzidas as teorias psicanalíticas no Serviço Social com indivíduos, principalmente através da “escola funcional” (Escola de Serviço Social de Filadélfia), cujas representantes eram JESSIE TAFT e VIRGÍNIA ROBINSON, discípulas de OTTO RANK e da “escola diagnóstica”, liderada por GORDON HAMILTON e FLORENCE HOLLIS, da Escola de Serviço Social da Universidade de Columbia, Nova York, ambas adeptas das teorias freudianas. A supervisão de alunos e Assistentes Sociais tornava-se mais sistematizada, recebendo também a influência de teorias egocentralizadas (VIEIRA, 1982, p. 58).

Essa produção norte-americana é considerada por Vieira como grande impulsionadora

do Serviço Social em direção à cientificidade, embora não tenha atingido de maneira

significativa os países europeus.

Diante dos fundamentos pautados no darwinismo social que referenciaram e deram

sustentação à intervenção do assistente social nos primeiros passos da profissão nos EUA,

podemos claramente entender por que o respeito à personalidade e à liberdade do indivíduo

produziu tantos impactos na prática profissional e representou um avanço da profissão. Assim

como trouxe avanço à percepção de que a personalidade do assistente social interferia no

trabalho e na relação como o “cliente”.

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O alargamento dos interesses dos assistentes sociais nos Estados Unidos visava à

qualificação de sua atuação, pretendendo responder às demandas colocadas pela sociedade

naquela conjuntura e é percebido por Silva (2004, p. 59) da seguinte forma:

A experiência dos norte-americanos de relação com os “necessitados” e a clara percepção das influências ambientais sobre a pobreza permitem que aperfeiçoem-se propostas de trabalho social. O período de “profissionalização” busca desenvolver uma imagem profissional integrando as diversas formas de práticas de interesse para o trabalho social: a reforma social, o trabalho de caso, a pesquisa, o trabalho com pequenos grupos, as residências sociais e outras manifestações de elevação da qualidade das relações sociais constituídas pelas pessoas.

O nascente “Serviço Social de Casos” se aprofundará, ao encontrar suportes teóricos

na teoria psicanalítica e na teoria de matriz positivista, e será com essas referências que o

Serviço Social se profissionalizará, institucionalizando-se primeiramente nos Estados Unidos,

através da organização da assistência social, da criação de escolas e da abertura dos primeiros

locais de trabalho para os assistentes sociais nas primeiras décadas do século XX.

A matriz positivista se colocará como suporte teórico-metodológico necessário à

qualificação técnica da intervenção. “Esse horizonte analítico aborda as relações sociais dos

indivíduos no plano das vivências, como fatos, que se apresentam em sua objetividade

imediata” (YAZBEK, 2009a, p. 147).

Essa perspectiva assimilada pelo Serviço Social dará a sustentação para a prática do

assistente social fundada em uma visão fragmentada, reiterativa do cotidiano, apontando para

mudanças no sentido dos ajustes, das adaptações, integrações e reformas.

O estudo realizado acerca da emergência do Serviço Social nos Estados Unidos, no

sentido da busca de referências sobre a realização da seleção socioeconômica, permite-me

afirmar que a seletividade do acesso ao atendimento das Organizações da Caridade já se

apresentava mesmo antes da emergência da profissão. Assim como a questão social era

tratada como questão moral, o acesso ao atendimento através de triagens e seleções também

se fundamentou nessa apreensão. Foi a partir dessas referências de pensar o social que a

seletividade e a forma de acesso passaram a se constituir como uma das atividades

realizadas pelo assistente social nas organizações sociais públicas e privadas então

existentes naquele país.

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2.2. A aproximação do Serviço Social norte-americano e europeu

As profissões nascem para responder às demandas sociais, são criadas com determinada

utilidade social. Enquanto produtos históricos que são, podem se ampliar, reduzir-se ou mesmo

desaparecer no curso da história. Quando conseguem responder satisfatoriamente às demandas

sociais postas, tendem a se consolidar e se ampliar; quando não respondem, perdem a sua

utilidade e desaparecem. Assim também sucedeu com o Serviço Social.

O surgimento do Serviço Social deve ser localizado no cenário do desenvolvimento

capitalista, na idade do monopólio, “quando o Estado requer um profissional com

características executivas para a implantação de políticas sociais que permitam o

enfrentamento da ‘questão social’“ (PARRA, 1999, p. 96; tradução nossa).

No plano mundial, o Serviço Social nasce nos Estados Unidos, inspirado inicialmente

no modelo inglês da Caridade Organizada, conforme já tratamos anteriormente, e, a partir daí,

vai se consolidando e se expandindo. Nesse movimento, o assistente social passa a se

constituir em trabalhador assalariado que se insere em processos de trabalho. “O serviço

social não desempenha funções produtivas, mas se insere nas atividades que se tornaram

acólitas dos processos especificamente monopólicos da reprodução, da acumulação e da

valorização do capital” (NETTO, 1996a, p. 72).

A partir do seu nascedouro, vai adquirindo particularidades, ao assimilar específicas

influências nos diversos locais e países onde passa existir a profissão.

No sentido de continuar na explicitação de como a seletividade se apresentou na

emergência e na institucionalização do Serviço Social, extrapolando a discussão para além do

Serviço Social norte-americano, apresentarei uma breve incursão ao tema, através do destaque

de alguns elementos que contribuem para iluminar a apreensão do seu significado em um

plano mais internacional. Trata-se de tema muito complexo, porque envolve a explicitação da

história europeia, que, ao contrário da estadunidense, foi construída à custa de muito sangue

derramado, através das sucessivas e decisivas revoluções que acabaram por dar novos rumos à

história da humanidade, o que não será tratado no âmbito desse estudo.

Segundo Netto (1996a, p. 106),47 “o desenvolvimento [...] do Serviço Social na Europa

ocidental prende-se a três fenômenos, aliás desconhecidos no outro lado do Atlântico: uma

47 Netto (1996a) realiza uma profunda e densa análise acerca de como se deu o a fusão ideológica e científica entre o Serviço Social norte- americano e o europeu, no contexto em que o capitalismo se refaz, na sua fase monopolista, tornando-se mais complexo, ao incorporar novas demandas, no sentido de ampliar a acumulação do capital em um plano internacional. Martinelli (1997) também apresenta séria pesquisa sobre a emergência e a institucionalização do Serviço Social norte-americano, europeu e brasileiro.

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traumática herança de experiências revolucionárias, a forte presença de uma cultura social

restauradora e o peso específico da tradição católica” (grifos do autor).

Martinelli (1997, p. 65-66) aqui comparece, demarcando elementos significativos da

história europeia que, na conjuntura em que se gestava a Grande Depressão,48 “a fusão dos

sindicatos nacionais, entre as décadas de 1850 e 1860, trouxe um novo impulso para o

movimento dos trabalhadores europeus, cuja presença política e social, para a grande

preocupação da burguesia, ultrapassava os muros das fábricas, os umbrais dos sindicatos”.

Segundo a autora, encontramos nessa época a população operária europeia

[...] vivendo uma vida minada pela doença, pela fome, pelas adversidades das condições de trabalho, e habitando em locais insalubres e impróprios à vida humana, a família operária tinha a sua expectativa de vida reduzida, sendo frequentes óbitos de adultos, jovens e crianças. Em algumas cidades da Inglaterra, bem como da França e da Itália, mesmo em momentos de prosperidade como forma os de 1840 e 1860, a generalização da miséria era tão intensa que chegava a atingir cerca de 20% da população. Instaurava-se um clima de verdadeira “guerra social” que, como sequela da febre do progresso e do lucro que dominava os donos do capital, alastrava-se por todo o continente. Em alguns países, como a Inglaterra, a população operária ocupava uma faixa de até três quartos da população, o que dava dimensões muito amplas aos problemas da classe trabalhadora (MARTINELLI, 1997, p. 70-71).

Para fazer frente à organização operária, “burguesia, Igreja e Estado uniram-se em um

compacto e reacionário bloco político, tentando coibir as manifestações dos trabalhadores

eurocidentais, impedir suas práticas de classe e abafar sua expressão política e social”

(MARTINELLI, 1997, p. 66).

A autora computa que, como um dos resultados dessa união, “que representa os

interesses do capital”, é criada a Sociedade de Organização da Caridade, em Londres, em

1869, “congregando os reformistas sociais que passavam agora a assumir formalmente, diante

da sociedade burguesa constituída, a responsabilidade pela racionalização e pela normatização

da prática da assistência” (MARTINELLI, 1997, p. 66).

No final do século XIX, em um quadro de pobreza generalizada, o avanço político da

classe operária colocava sérios riscos à ordem do capital: ao mesmo tempo em que era criada

a riqueza, pelos mesmos meios era produzida a generalização da miséria, tornando-se

imperativo repensar a assistência social sob o prisma de sua racionalização.

48 Martinelli (1997, p. 65) explica que essa denominação refere-se a “uma crise histórica do capitalismo em escala mundial, cuja vigência se situou aproximadamente entre os anos 1873 e 1896, interrompida por pequenos surtos de recuperação em 1880 e 1888, e continuando a se manifestar organicamente até a década de 1930, quando surge o capitalismo monopolista”.

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Desde a era medieval [...] a assistência era encarada como forma de controlar a pobreza e de ratificar a sujeição daqueles que não detinham posses ou bens materiais. Assim, seja na assistência prestada pela burguesia, seja naquela praticada pelas instituições religiosas, havia sempre intenções outras além da prática da caridade. O que se buscava era perpetuar a servidão, ratificar a submissão (MARTINELLI, 1997, p. 97).

Racionalizar a prática da assistência social, nesse contexto, significa atribuir-lhe uma

função econômica, ao colocá-la com a finalidade de garantir a expansão do capital sem

grandes entraves, assim como uma função ideológica, tão importante quanto aquela, ao

constituir-se como forma “tácita ou explícita repressão sobre a organização da classe

trabalhadora e sobre sua expressão política” (MARTINELLI, 1997, p. 99).

Na Europa, o Serviço Social, como profissão, surge para responder às expressões da

questão social, com a tarefa ideológica clara de controle social. Dos seus agentes espera-se a

“qualificação” e a “racionalização” da prática da assistência social.

Verdès-Leroux (1986) ajuda a entender como a assistência social se coloca como

prática fundada no conservadorismo, como um contramovimento diante dos valores da

modernidade, que tem a função ideológica de afastar a classe operária do socialismo.

Portanto, trata-se de prática desmoralizadora e desmobilizadora que pretende demonstrar a

inutilidade da revolução para se conseguir melhorar as condições de vida dos trabalhadores. A

assistência social, nesse sentido,

é concebida, financiada e conduzida por elementos da fração da classe dominante despojada do poder político, após a derrota de 16 de maio de 1877: uma fração constituída por grandes burgueses e aristocratas, agarrados às tradições autoritárias e à religião, contrários à República ou adesistas resignados. Nesse período a assistência social é, essencialmente, um assunto de mulheres, [...] esposas de aristocratas que dominam os comitês de patrocínio — e capazes, assim, de atrair, graças aos seus nomes, donativos e boas vontades — [...] Católicos, em sua maioria, mas independentes da Igreja, que, na mesma época, multiplica as iniciativas infrutíferas em direção ao mundo operário, os pioneiros da assistência social provêm de um meio restrito possuidor de um nível de integração suficiente para conduzir a práticas comuns, orientadas para um mesmo objetivo — se ainda não preciso, pelo menos claramente indicado: assegurar a paz social, dentro do processo. “Derrubar as barreiras”, alcançar a “fusão entre os homens”, a “união íntima e fecunda de todas as classes”, a sua “interpenetração”: tal é o projeto, insistentemente lembrado, desse grupo que alia, a um conservadorismo político profundo, um reformismo social limitado — mas suficiente, apesar disso, para imprimir a marca de sua originalidade, no momento em que outras frações da classe dominante apenas optam, face ao despontar do movimento operário, em favor do reforço da coerção (VERDÈS- LEROUX, 1986, p. 11).

A assistência social, nesse contexto, era entendida ora como forma de caridade, ora

como forma de assistência pública. Mas, de fato, estabeleceu-se a partir da crítica que dirigiu

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a essas duas formas de assistência. Criticou a benemerência cristã por servir somente para

manter e reproduzir a pobreza, pela incapacidade demonstrada de não conseguir se opor à luta

de classes, assim como criticou a assistência pública por se colocar como impotente e nociva,

uma vez que se fundava nos direitos sociais:

Ao dar a entender que noção de direito é cega e, sobretudo, acanhada, a assistência social camufla a sua queixa real: é perigoso levar em consideração os direitos, pois isso equivale a admitir, ao mesmo tempo, que as dificuldades sociais não são apenas fenômenos singulares e aleatórios (os desígnios da Providência), mas são, sim, a consequência de processos socioeconômicos; e que a correção das desigualdades mais gritantes não se situa na esfera da benemerência, e, sim, de uma negociação, que é função de uma correlação de forças (VERDÈS-LEROUX, 1986, p. 11).

A autora analisa que a crítica dos resultados obtidos pela assistência pública e pela

caridade veio acompanhada da crítica de seus métodos que por vezes, foram

responsabilizados pelo fracasso das duas formas, definindo assim, seletivamente as

populações que ela se propunha a assistir através de ação educativa. Ao se constituir, a

assistência social aponta o define o seu alvo: a classe operária urbana, que passa a ser

diferenciada da “massa dos assistíveis”, significando que a assistência social abandona, nas

mãos da assistência pública e da caridade, os indigentes, ou outros “irrecuperáveis”, que

constituem um grupo improdutivo e, para ela, politicamente inofensivo (VERDÈS-LEROUX,

1986, p. 11; grifos da autora).

Os grupos de Ação Social atuarão com programas de assistência dirigidos à classe

operária urbana.49

Por volta de 1920, enquanto nos Estados Unidos as Sociedades de Organização da

Caridade lutavam para impulsionar “o processo organizativo dos assistentes sociais de forma

a tornar autônomo este novo agregado profissional, liberando-o da influência da Igreja

[protestante?], as europeias caminhavam em rota oposta, colocando-se a serviço desta

instituição [católica?]” (MARTINELLI, 1997, p. 113).

Nessa época, no continente europeu, a Inglaterra, que se apresentara inicialmente

como referência de intervenção junto aos pobres, vai perdendo sua liderança no âmbito do

Serviço Social.

Com o intuito de contrariar a orientação do Serviço social anglo-saxônico, “que

baseava a sua ação reformadora em conhecimentos científicos sem estar sob a dependência

doutrinária da igreja”, e visando recuperar sua hegemonia perdida com o advento da 49 Esses grupos se constituem em referências fundamentais da Ação Católica que se encontram na origem do Serviço Social no Brasil.

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modernidade, a Igreja desencadeia um movimento internacional, fundando a União Católica

Internacional de Serviço Social (Uciss) no I Congresso de Escolas, Associações e Assistentes

Sociais Católicas, em Milão, em 1925 (MARTINS, 1999, p. 275).

A Uciss realizará, até o final da Segunda Guerra Mundial, quatro conferências

internacionais, em que será reconhecida a necessidade de estabelecer um programa da

formação doutrinal de base dirigido aos agentes do Serviço Social, para lhes assegurar uma

visão de conjunto, visando à restauração da ordem cristã no mundo.

É na moral católica, nos ensinamentos da Igreja e nas encíclicas Rerum novarum,

divulgada por Leão XII em 15 de maio de 1891, e Quadragesimo anno, divulgada por Pio XI

em 15 de maio de 1931, que serão colocados os princípios que constituirão as bases morais e

políticas do Serviço Social. Martins (1999, p. 275) afirma:

[...] Para que as assistentes sociais “se devotem ao bem-estar dos seus irmãos e à renovação da sociedade”. A Uciss em 1935 atribui grande importância às escolas, empregando todos os meios possíveis para promover novas escolas de Serviço Social nos países onde há necessidade delas, e coordena o esforço de trabalhadores sociais e assistentes sociais das quinze nações onde já conta com filiados.

É na articulação desses processos que o Serviço Social europeu vai emergir e se

fortalecer sob forte influência da Igreja Católica, que, desejosa de difundir sua doutrina social,

assumirá um papel de estímulo à expansão de escolas pelo mundo para formar assistentes

sociais, visando à organização de grupos de Ação Católica.

As duas vertentes em pauta do Serviço Social, a norte-americana e a europeia,

começam a interagir com mais força a partir de meados dos anos 30.

Na vertente americana, a concepção evolucionista (de raiz spenceriana) apresentava-se inteiramente diluída. O balanço da Era Progressista aparecia como francamente anódino. [...] Por outra parte, o conteúdo do rigorismo ético também se esvaía na cultura norte- americana: o American way of life estava se consolidando. Os vínculos que enlaçavam a reforma e a reflexão social tornavam-se laços frouxos: o pragmatismo convertia-se em instrumentalismo e operacionalismo. Paradoxalmente, neste quadro que poderia sugerir uma precipitação do desenvolvimento profissional, acentuando as preocupações sociocêntricas que existiam em germe e tenuemente nas proposições de Richmond, ocorre um movimento de viragem, que tende a psicologizar o projeto profissional. O giro não é tranquilo nem, muito menos pacífico: desata confrontos entre os assistentes sociais. [...] É esse giro – que, em si mesmo, não colide com os fundamentos do período anterior, que tinham por suporte uma concepção de sociabilidade vigorosamente individualista — que vai facilitar a interação com a tradição europeia, fundamente vincada pela redução da problemática social às suas manifestações individuais, com hipertrofia dos aspectos morais (NETTO, 1996a, p. 118, 119).

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Em relação à vertente europeia, esta

[...] também registrara modificações — a mais significativa destas era, no seio do campo católico a retomada do legado de São Tomás de Aquino. Estimulada oficialmente pela alta hierarquia (mais exatamente, por Leão XIII, na encíclica Aeterno patris), a construção da “nova escolástica”, o neotomismo. A sua síntese social comparece claramente na reflexão de um de seus mais respeitados elaboradores, Maritain (NETTO, 1996a, p. 121).

Do ponto de vista do sincretismo ideológico operado pelo Serviço Social em relação a

duas tradições em pauta, conclui-se:

Se o rompimento com o evolucionismo e a voga psicologista desobstruíram as vias, na tradição norte-americana, para a interação com a tradição europeia, nesta componente que favoreceu o processo foi a afirmação neotomista. [...] E os influxos, naturalmente, foram de mão dupla: a tradição europeia abriu-se às técnicas e aos procedimentos já desenvolvidos pelos norte-americanos (NETTO, 1996a, p. 123).

Diante desse quadro e na busca de referências sobre a seleção socioeconômica na

emergência e institucionalização do Serviço Social europeu, encontrei no registro de Vieira

(1982) sobre o I ICSW, ocorrido em Paris, em 1928, importantes referências que permitem

acercar-me de mais alguns elementos sobre os fundamentos da seleção socioeconômica

presentes nos primeiros passos da profissão, e será sobre esses elementos que passarei a tratar

a seguir, dando-lhes um devido contexto, ainda que de forma breve.50

Trata-se de encontro que contou com a participação de 2.481 participantes de 42

países, dentre os quais registra-se a presença de oito países latino-americanos; o Brasil foi

representando por dois pernambucanos (um deles era chefe do Serviço de Saúde Mental e o

outro, tesoureiro da Cruz Vermelha Brasileira).

Em 1928, havia 111 escolas oficializadas de Serviço Social no mundo, ligadas a

universidades (EUA e Reino Unido), reconhecidas oficialmente pelo governo (Alemanha) ou

se constituindo como membros de associações de escolas (França, Bélgica). Além da Europa 50 A Conferência Internacional de Serviço Social foi criada em 1928 pelo belga dr. René Sand. Em Vieira (1982), acerca do I ICSW, René Sand aparece citado inúmeras vezes, porque foi o presidente do encontro e responsável pela elaboração do relatório final. Em 1967, a Conferência passou a ser denominada Conselho Internacional de Bem-Estar Social. O nome original em inglês era International Conference of Social Work; o atual é International Council on Social Welfare; ambos são designados pela sigla ICSW. Neste trabalho, utilizaremos a sigla I ICSW para designar a Primeira Conferência Internacional de Serviço Social. Vieira (1982) apresenta estudo sobre as 19 ICSW que se realizaram no período de 1928 a 1978, destacando em linhas gerais os principais temas e polêmicas tratados nesses encontros. Em Castro (1987, p. 152) encontramos que “[d]esde o pós- guerra, a Conferência Internacional do Serviço Social (CISS) converteu- se em órgão consultivo das Nações Unidas, da Unesco e da OMS. Em consequência, como a própria CISS o reconhece, ela renovou a sua busca de novas idéias e passou também a proporcionar aos diferentes países a chance de compreensão das novas experiências, favorecendo a internacionalização do Serviço Social”.

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e da América do Norte, existiam ainda escolas no Chile, no Japão, na China e na Índia

(VIEIRA, 1982, p. 16, 33, 53).

No I ICSW,

[...] os debates enfocaram as novas formas de auxílio governamentais, exigidos pelo desemprego em massa e os atritos entre serviços públicos e obras privadas, em virtude das medidas agressivas às quais estas obras eram submetidas. [...] Serviços sociais foram definidos como um complexo de esforços para “aliviar os sofrimentos, reintegrar as pessoas em condições normais de vida, melhoras de condição social, elevação de nível de vida” (VIEIRA, 1970, p. 59; grifos da autora).

A definição de Serviço Social que serviu de referência para as sucessivas discussões

foi a seguinte:

O Serviço Social inclui esforços visando aliviar os sofrimentos oriundos da miséria, recolocar indivíduos e famílias em condições normais de existência, prevenir flagelos sociais, melhorar condições de vida e elevar o nível de existência, seja pelo emprego do Serviço Social de Casos Individuais, seja pelos Serviços Sociais Coletivos, ou, ainda, pela ação legislativa e administrativa, assim como pesquisas e inquéritos (VIEIRA, 1970, p. 33).

Nos registros, podemos constatar que o Serviço Social aparece ora como caridade, ora

como profissão fundada em conhecimentos científicos. Sand (1928, apud VIEIRA, 1982, p. 34)

afirma que “o Serviço Social inclui a caridade, os socorros, a filantropia; no entanto, os

ultrapassa e deles se distingue pelo seu caráter científico e metódico, pela procura das causas

e pela crítica constante de seu campo de estudo e de ação”.

No texto em pauta, a caracterização e as causas da “pobreza” são apresentadas de

forma confusa, apontando ora para a culpabilização dos indivíduos pobres pela sua condição,

ora para a vaga ideia de que são “vítimas de condições sociais generalizadas” (VIEIRA, 1982,

p. 33-34).

No I ICSW, segundo a referida autora, ocorreu calorosa discussão em torno da questão

se o atendimento aos demandantes dos serviços sociais deveria ou não ser assumido pelo

Estado, em face ao monopólio existente dos serviços privados das obras sociais. Registro aqui

parte dessa discussão, porque, nos seus meandros, posso demarcar alguns fundamentos da

seletividade de acesso aos serviços sociais presentes.

Essa discussão foi registrada da seguinte forma:

O interesse pelos problemas econômicos como causas dos males e a emergência da atuação do Estado no campo social levaram as Sociedades de Organização da

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Caridade, na Inglaterra, “a se opor a uma legislação com pretensão à reestruturação da atuação da sociedade sobre um plano econômico”; afirmavam que “serviços prestados pelo governo, como sopas populares, cuidados médicos para escolares, pensões para a velhice, medidas previdenciárias contra o desemprego, poderiam destruir a independência do indivíduo e qualquer ação neste sentido, suprimir a iniciativa, os motivos para esforços e até o elemento moral da existência acreditavam que “estas medidas socialistas levariam as classes fracas a uma falta total de iniciativa” (sic). Estas sociedades levantam-se assim contra a intervenção do Estado no campo da legislação social e na prestação de serviços. É verdade que, nas primeiras décadas do século XX, as intervenções do Estado no campo social eram timidamente ensaiadas. Todo o campo da beneficência era ocupado por obras privadas, em geral confessionais. O abade Viollet (França) defendeu calorosamente durante a II CSW o monopólio dos serviços pelas obras privadas e definiu o Serviço Social como “o meio de aplicar as regras da moral cristã aos necessitados” (VIEIRA, 1982, p. 34).

O discurso liberal e conservador da organização inglesa Charity Organization

Societies, fundada em 1869, aparece apoiado por representante da Igreja Católica, não sob os

mesmos argumentos, mas de que os serviços aos necessitados devem ser prestados pelas obras

privadas como meio de realizar a moral cristã.51 O argumento básico apresentado pela

organização inglesa no combate ao atendimento público dirige-se às medidas consideradas

socialistas, como “a oferta de sopas populares, os cuidados médicos para escolares, as pensões

para a velhice e as medidas previdenciárias contra o desemprego”, sob a justificativa de que

“podem destruir a independência do indivíduo”.

Em meio a essa crítica, posso destacar argumentos expostos que apontam na direção

de como deveria ser o atendimento concretizado pelas entidades privadas: temporária

(esporádica, provisória, pelo mínimo tempo possível) para não tolher a iniciativa do

indivíduo (de não procurar trabalho) e mesmo para não torná-lo dependente do benefício

(acomodado a certa segurança).52

Esse discurso institucional indica que o profissional, no processo de acesso aos

serviços da organização, deve atentar para que a ajuda aos demandantes do seu atendimento

seja dificultada, mínima, fiscalizadora, e que os serviços não devem ser tão bons, para que o

indivíduo não se acostume a ser bem atendido e venha a se acomodar à ajuda.

51 Nunes (2004, p. 24) explica que, na Charity Organization Society, havia duas abordagens, conhecidas como “Relatório da Maioria” e “Relatório da Minoria”, correspondentes a duas tendências entre as quais, embora representassem concepções distintas sobre o tratamento a ser dado à pobreza, não havia contradições de fundo, uma vez que ambas convergiam para o atendimento do casework. Somente a tendência minoritária defendia que a pobreza deveria receber tratamento de âmbito público e do Estado. A autora, ao final, conclui que em face dos perigos criados pela sociedade industrial e à necessidade de maior proteção social, ambas foram se encaminhando para a defesa da intervenção pública e pela afirmação dos direitos sociais. 52 Minha análise carregada nas cores deve-se ao esforço empreendido para desvendá-las no seu conteúdo, uma vez que esse pensamento ainda é presente nos dias atuais entre os assistentes sociais, apresentando-se mesmo como uma das tendências da profissão.

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No entendimento presente na constituição do Serviço Social como profissão, é preciso

reconhecer que há um movimento de continuidade e ruptura, convivendo simultaneamente em

relação às denominadas “protoformas” da profissão. Os discursos apresentados pelas Charity

Organization Societies e pelo abade francês Violet na I ICSW constituem exemplos

reveladores da face do movimento que resiste à ruptura com a filantropia e, portanto, se põe

em defesa da continuidade da forma privada dos serviços sociais, marcada pela filantropia,

quando resiste à forma pública da nascente política social por ser considerada socialista.

Revelam, também, que o Serviço Social nascente no âmbito das organizações de

caridade e de assistência social herda a concepção presente nas suas operações dessa

perspectiva. Os dirigentes das organizações sociais são inclusive contra o Estado se ocupar da

assistência social.

Nesse período, confrontam-se movimentos de natureza conservadora contrários ao

modelo fundado na intervenção do Estado e movimentos que defendem a presença mais

efetiva do Estado, demonstrando que há diferentes modelos, projetos de mudança social em

disputa. “O Serviço Social na sua gênese identifica-se predominantemente com as formas de

regulação privada da ajuda social individual, centrada na reabilitação e educação dos

inadaptados e pobres para o trabalho” (NUNES, 2004, p. 23).

A política social, como resposta às expressões da questão social, nasce, portanto,

acompanhada de severas críticas, por ser considerada mais rígida e pior, com critérios de

atendimento mais definidos, se comparada com aqueles utilizados no atendimento das obras

sociais existentes nesse momento histórico.

Trata-se do pensamento conservador que resiste às mudanças, porque teme que o

futuro venha a lhe trazer significativas perdas. Por isso, tem os olhos voltados para o passado

e para a manutenção e reprodução da tradição e da sociedade da desigualdade social.

Nunes (2004, p. 23) comparece nesse debate:

Como movimento pioneiro, destaca-se na Inglaterra a COS — Charity Organization Society —, considerada um dos berços históricos da profissão e que marca a emergência e natureza do Serviço Social. As primeiras intervenções profissionais realizadas nesse âmbito e na sequência das iniciativas de voluntários, (predominantemente de mulheres), têm como referência a filantropia mais do que os valores emergentes da modernidade de afirmação dos direitos sociais, mais a iniciativa privada do que a iniciativa pública do Estado [...] Confrontam-se movimentos de índole conservadora contrários a um modelo de regulação de maior intervenção do Estado e movimentos defensores de uma regulação estatal mais interventiva.53

53 Maria Helena Nunes é uma autora portuguesa que, segundo suas próprias palavras, se localiza em termos teóricos como adepta de uma interpretação menos determinista dos limites do Serviço Social quanto a constituir-se como instrumento dominante de reprodução de interesses hegemônicos (tomando como referência Netto e Iamamoto).

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A palavra Serviço Social é, em 1928, empregada para designar tanto o conjunto de

serviços, como a maneira de agir do assistente social. 54 Nesse sentido, Balbina Ottoni Vieira

considera que não foi fácil para ela distinguir como os serviços assistenciais funcionavam

tecnicamente. A esse respeito, a autora diz que Sand

descreve as diversas situações socioeconômicas e políticas de vários países e liga essas situações com a política social e a natureza do governo. A natureza do governo e a política são dois fatores principais que influem sobre os serviços sociais; mas não despreza os fatores culturais e as tradições que podem influir sobre a política adotada (VIEIRA, 1982, p. 39).

Dentre os modelos de Serviço Social apresentados no I ICSW pelos representantes de

diversos países, encontro nos denominados “modelo francês” e “modelo alemão” importantes

referências sobre a seletividade do acesso aos serviços sociais, já inscritos na e como política

social. No “modelo francês de Serviço Social”, denominado esquematizado ou planejado,

encontram-se pautadas as ações realizadas pelos assistentes sociais no pós-guerra, dirigindo-

se ao aumento da população, através do incentivo à reprodução e à natalidade. A justificativa

apresentada é que a França, depois da Primeira Guerra Mundial, tinha uma população

diminuída em 1/3, devido às baixas da guerra que dizimou parte de sua população jovem,

trazendo como consequência a diminuição da taxa de natalidade, assim como havia zonas do

país que precisavam ser reconstruídas. O processo de industrialização acelerado que se

operava no país demandava mais mão de obra. Diante desse quadro sociodemográfico, o

governo, para conseguir reverter tal situação, propõe três esteios: a modernização da

legislação, a criação de serviços públicos e o aumento da natalidade.

A legislação como resposta a esse quadro incentiva o aumento da natalidade, através de

prêmios de gestação e de natalidade, vantagens para as famílias numerosas através da redução

de aluguéis em habitações populares, nas viagens de férias, nas conduções para o trabalho ou

para a escola, etc. Assim como se pretende difundir hábitos de higiene e a prevenção de

doenças, são também criados meios para se elevar o nível de instrução da população.

Permite pensar o Serviço Social como atividade que reflete interesses não só do projeto das classes dominantes, mas também das classes e grupos socialmente oprimidos e desfavorecidos (NUNES, 2004, p. 25). 54 Conforme Campagnolli (1993, p. 97), a designação da profissão como Social Work (“trabalho social”) foi proposta por Mary Richmond em 1916 e aceita por unanimidade na Conferência Nacional de Obras de Caridade, Correção e Filantropia nos Estados Unidos. No continente europeu, o nome utilizado era Social Service (“Serviço Social”). O nome oficial “Serviço Social” foi aprovado em 1928 na Primeira Conferência Internacional do Serviço Social, ocorrida em 1928. Ressalta a autora que não se trata de mera questão de ordem semântica, mas espelha as diferenças existentes entre a experiência americana e a europeia, fato que iria contribuir para o caráter do Serviço Social brasileiro.

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Os serviços públicos foram regulamentados nos mínimos detalhes e organizados em

níveis nacional e municipal, através de “nacionalização parcial para certas categorias de

necessitados: velhos, gestantes, famílias numerosas, crianças e vítimas da guerra” (VIEIRA,

1982, p. 40).

As assistentes sociais (no texto também aparece no feminino) e as enfermeiras são

empregadas também nos serviços privados. Observa-se que esses serviços, em relação aos

públicos, “eram mais livres e mais flexíveis; em geral confessionais e muitos preocupados em

obter fundos para a sua manutenção. [...] Dedicam-se principalmente às famílias pobres e

procuram a cooperação dos interessados, reunindo-os em ‘Associações Familiais’” (VIEIRA,

1982, p. 40).

O Serviço Social, nos serviços sociais públicos, era apreendido como método e

era realizado por enfermeiras visitadoras e por assistentes sociais, que acompanhavam a clientela através de visitas domiciliares, velava pela aplicação das leis (visita às gestantes para a frequência ao ambulatório pré-nupcial, por exemplo) e pela boa utilização dos benefícios (visita às famílias que recebiam abonos familiares). (VIEIRA, 1982, p. 41; grifos meus).

Nessa minúscula referência, que no texto da autora também é conciso, podemos

perceber que as ações do assistente social pautam-se basicamente na verificação e vigilância

da aplicação da lei, averiguando se suas prescrições estavam se realizando adequadamente por

parte dos beneficiados e se os recursos estavam sendo bem utilizados. Ou seja: as atividades

relacionam-se ao controle do indivíduo, tendo por referência as normas e leis. Como pano de

fundo, coloca-se a ideia da necessidade de boa gestão, visando à boa utilização dos recursos

que, por serem limitados, precisam ser bem empregados pelo beneficiário e bem

administrados pelo profissional.

Aqui se fala em observação empírica in loco como forma de verificação através de

provas, se estava havendo ou não boa utilização dos recursos recebidos.

Nesse momento da profissão, pudemos observar que toda a comprovação de

veracidade é empírica, certamente porque nessa época havia dificuldades no acesso à leitura e

à escrita. Então, a forma de registrar a comprovação da necessidade se dava através da visita

domiciliar; não havia comprovação através de documentos como nos dias atuais. É preciso

considerar, no entanto, que essas formas de proceder do profissional veiculam ideias voltadas

para a mudança na maneira de ser, de ver, de sentir e de agir dos indivíduos e representam a

presença do Estado que fiscaliza a vida privada das pessoas. Essas mudanças, no entanto,

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poderiam e podem ou não ser orientadas para a integração à sociedade, dependendo da

direção social imprimida pelo profissional.

Aqui, a mudança pretendida se dirige à adaptação dos indivíduos às regras e normas

colocadas, utilizando-se do reforço que se expressa da seguinte forma: se o indivíduo obedece

às normas é “premiado” com a continuidade do atendimento; se não as obedece, é “castigado”

com o desligamento.

Esse parece se constituir em um pilar importante que vem dando sustentação à ideia da

seletividade. É preciso fiscalizar se o beneficiário está utilizando bem o recurso recebido, se

ele o está empregando em coisas “úteis à sobrevivência”, como forma de atendimento bem-

sucedido. Ou melhor: a seletividade como condição de acesso e depois o controle de

confirmação do bom uso como condição de permanência do usuário na lista dos atendidos

acontece mediante a verificação empírica de certos procedimentos.

A metodologia proposta visa ao controle sob a forma do bom uso do recurso, em

coisas “úteis”, “necessárias” ou “acordadas com o profissional” por parte do beneficiário. Esta

bem que poderia ser concebida como uma condicionalidade do atendimento; se o usuário não

agir de acordo com o esperado, ele poderá ser desligado do atendimento. Torna-se mesmo

uma obrigação do usuário cumprir essa regra.

Na execução das atividades apontadas, o profissional se apoiará “na ajuda individual,

ao nível das pessoas e das famílias, baseado em observações empíricas, no bom senso, no

interesse pelos outros e pelo amor ao próximo. Ao nível coletivo ou de estrutura, no setor

privado; o nome empregado era o de Ação Social” (VIEIRA, 1982, p. 41; grifos meus).

Essa prática se pauta nas observações empíricas do profissional, que deve considerá-

las e tratá-las com “bom senso” e nos valores morais do assistente social, como “o interesse

pelos outros” e “o amor ao próximo”. Consta que, “na França, a individualização era aplicada

às gestantes para que comparecessem à clínica pré-natal, e às famílias que recebiam abonos

familiares para verificar a utilização conveniente dos abonos em benefícios das crianças”

(VIEIRA, 1982, p. 51).

Conforme podemos perceber, o processo de trabalho no qual se insere o profissional

impõe fortes limites à autonomia profissional, quando determina o que fazer com usuários,

mas antes conforma como deve ser a prática do assistente social com eles.

O “modelo de Serviço Social alemão”, denominado generalizado, consiste em outro

padrão de Serviço Social inserido em uma política social, cuja referência era a da Alemanha

sob o governo da República de Weimar. Pauta-se pela justificativa de que a Alemanha, ao sair

vencida da Primeira Guerra Mundial, apresentava um quadro de profunda recessão,

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provocando uma descomunal inflação, acompanhada do fechamento da maioria de suas

indústrias e do desemprego em massa, sem considerar que havia perdido grande parte de sua

juventude em combate.

Nesse quadro social, o Estado intervém, uma vez que,

[...] outrora fenômeno individual, a miséria tornava-se uma catástrofe coletiva. Recorrer à assistência não era mais resultado de uma vida desorganizada, mas a sorte de qualquer um. Os recursos das obras privadas não mais existiam e só os poderes públicos encontravam-se mais ou menos disponíveis. A concepção sociológica da assistência, que lhe dava um papel preventivo, achava-se confirmada com essas circunstâncias (SAND, 1932, apud VIEIRA, 1982, p. 42).

Face à abolição da monarquia e à proclamação da República, foi elaborado o

denominado Programa Unitário de Ação Social, constando na Constituição de Weimar, de

1919, nos 10 primeiros artigos, a extensão da previdência social e a assistência social a todos

os cidadãos. A operação desse Programa ocorreu descentralizadamente, e através dele são

oferecidos à população socorros materiais em natureza, cuidados médicos, habitações

populares, educação a crianças, reeducação aos prisioneiros liberados, colocação de mão de

obra e assistência jurídica e judiciária.

Há aqui nova institucionalidade, uma vez que o Programa Unitário de Ação Social é

orientando por quatro sistemas de assistência pública: os seguros sociais, as pensões

nacionais, a organização administrativa e a proteção aos jovens.

A assistência pública, embora extensa na proposta, é limitada na implementação,

justificada pela rigidez de seus regulamentos e pela precariedade de seus recursos. É por isso

que o governo passa a incentivar as obras privadas para completar o atendimento (VIEIRA,

1982, p. 43).

Aqui aparece embutida a ideia de subvenção às obras sociais para realizar a política

social, como plano de governo — ou, melhor: no plano governo já aparece a subvenção como

parte integrante de sua política de atendimento.

Os serviços públicos e privados recrutam os assistentes sociais para trabalhar nos seus

programas nas 36 escolas de Serviço Social existentes em 1928 na Alemanha.

As diretrizes de operação da política governamental prescrevem:

A assistência moderna deve criar valores e não apenas conservá-los. Sua finalidade é fortalecer, no necessitado, a vontade e a saúde para que chegue a se bastar a si mesmo, pelos próprios meios, pelo seu próprio trabalho. As formas de assistência devem respeitar a dignidade humana; esta não desaparece com a miséria. A assistência deve intervir em tempo oportuno, com meios suficientes e, sempre que

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possível, de maneira preventiva. Sua atuação será assim de mais eficácia e mais econômica, pois contemporizando, a necessidade piora e sua solução fica impossível. É necessário retirar o auxílio a tempo, quando o assistido não mais precisa dele, a fim de que não se acostume com as “muletas” que não mais lhe são úteis. A assistência não pode ser uniforme: estuda o caráter específico de cada situação, para deduzir quais os meios a serem empregados. Sua atuação principal não é a distribuição do socorro em espécie, mas uma ajuda de homem para homem (SAND, apud VIEIRA, 1982, p. 43; grifos meus).

Nessa breve citação — a qual, no texto que me serve de base, também assim se

apresenta, e que passo a analisar —, podemos perceber que a lei afirma os direitos e as

medidas desejáveis, já reconhecendo que, na prática, se tornam impraticáveis. Não se

realizam na totalidade, sob a alegação de que os recursos são poucos diante de tanta demanda

e (por que não dizer?) de que, diante de tão poucos recursos disponibilizados para atender a

tanta necessidade, têm que ser bem gastos, ou seja, naquilo que vale a pena.

Aparece aqui novamente a lógica de justificar a necessidade de seletividade no

atendimento social tendo em vista o abismo existente entre necessidade e recursos disponíveis.

Podemos, diante dessa apreensão, consequentemente, interpretar que a distribuição do recurso

dentre os necessitados deve ser feita de forma racional e que se expressará no dinheiro bem

gasto com os que comprovadamente necessitam de forma a atender o maior número possível de

indivíduos. A ajuda, portanto, terá que ser mínima para fazer render o pouco dinheiro/recurso

disponibilizado ao atendimento. Ou seja, espera-se que o recurso se multiplique, aumentando o

número de pessoas atendidas, portanto dividindo-o entre muitos demandantes, cabendo ao final,

uma parte ínfima para cada indivíduo solicitante.

Mas haverá nesse processo, pautado por regras estabelecidas, aqueles que não serão

contemplados com o auxílio e os que perderão o benefício porque desobedeceram as orientações.

Com base nesses pressupostos, aparecerá a necessidade da triagem, da seleção

socioeconômica de forma criteriosa, mediante a realização de estudos individuais pelo

assistente social para a comprovação da veracidade dos fatos alegados pelos demandantes dos

serviços sociais. Nessa lógica, os recursos devem ser bem distribuídos, de “forma justa” e

parcimoniosa, porque são poucos e, ainda, porque se forem generosos, se correria o risco do

indivíduo se acostumar a eles e ficar acomodado à ajuda. Depois será preciso o controle sobre

o bem gastar do usuário, repetindo-se, portanto, a mesma ideia do controle já apresentada na

oportunidade em que tratamos do modelo de política social francesa.

Nesse processo, as regras e critérios se constituem nas expressões do controle que

permitirão realizar o processo de inclusão–exclusão do acesso e exclusão do atendimento. São

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eles que fornecem a intensidade do corte e do acesso; quanto mais detalhados, mais

dificultado se torna o acesso aos benefícios sociais.

Aqui comparece também uma forma de contrapartida, ao se exigir que o usuário faça

um “bom uso do recurso recebido”, pois, caso não cumpra essa regra, será excluído do

atendimento. Refere-se ao “bom gasto do pobre”, que deve se realizar com coisas úteis,

destinados à sua sobrevivência biológica e de sua família. E como, por vezes, se considera

que o usuário não sabe bem gastar, deverá receber uma prescrição para orientá-lo nessa tarefa.

A ação do assistente social na Alemanha, no período indicado, se pautava em diretrizes

da política social que bem poderiam ter sido elaboradas por assistentes sociais, indicando que a

assistência pública deve intervir nas situações em tempo adequado (leia-se: no tempo certo,

igual ao mínimo), com meios suficientes (leia-se: mínimo, nem mais nem menos) e de

preferência de modo preventivo (leia-se: que ele não venha a se repetir). Se assim se proceder, a

ação será mais efetiva e mais econômica (leia-se: sairá mais barata, custará menos).

Quando a situação é contemporizada (leia-se: protelada, delongada), a situação piora e

a solução fica impossível (leia-se: produzirá mais sequelas, custará mais caro e será de

controle mais difícil). Porém, é necessário se retirar o auxilio a tempo (leia-se: a tempo de o

indivíduo não se acomodar a ter uma vida um pouco melhor).

Conforme podemos aqui também perceber, a proposta da política social é formulada

de forma justa, apertada e enquadrada a forma de operá-la. Ou seja, enquadra ao mesmo

tempo o profissional e o usuário, cabendo ao profissional, que materializa a ação da ajuda,

realizar junto dela o controle indicado, junto ao atendido.

Podemos perceber que, para a ação profissional, todas as orientações e diretrizes são

apresentadas de forma muito apertada, arrochada, comprimida, diminuída, desconfiada,

dirigida, cobrada, vigiada, sob o manto de se fazer o bem ao próximo. Ou seja, o atendimento

do assistente social aos necessitados de assistência deve ser realizado com essas características.

Isso aparece na recomendação de que a pobreza deve ser tratada de forma controlada

enquanto é possível cuidá-la no âmbito do indivíduo. Senão, poderá expressar-se de forma

coletiva, tornando-se mais perigosa e de mais difícil controle. Individualizar a demanda se

coloca como a forma de controle mais segura, uma vez que os problemas sociais (leia-se:

expressões da questão social) serão tratados como problema do indivíduo e não de âmbito

social entendido como expressão da sociedade de classes.

Em relação aos “métodos” empregados pelo Serviço Social na Alemanha, pode-se

dizer que assumiam formas distintas nos seguros sociais, nas pensões e na assistência.

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As duas primeiras decorriam do fato do indivíduo ter o direito advindo de sua

contribuição, portanto, estendia-se a todos que apresentassem a condição de contribuinte.

A terceira forma que se referia à assistência, fundada no Sistema de Elberfeld,55 do

século XIX, consistia na concessão de auxílios de acordo com a necessidade apresentada pelo

indivíduo, regulamentada por legislação social assistencial.

O estudo de cada situação era obrigatório por lei para ser concedido o socorro ou prestado o serviço. A lei se expressava através de “princípios federais” que determinavam as condições, natureza e valor do socorro: “1) fornecer ao assistido meios indispensáveis de sobrevivência; 2) torná-lo capaz de se sustentar a si mesmo; 3) fortificar suas energias e vontade, de maneira que possa tomar conta de si mesmo e dos seus; 4) a assistência deve intervir no momento oportuno e se retirar logo que o assistido tenha se recuperado; 5) a organização pode intervir na situação do assistido, mesmo se este não a procurou, a fim de evitar o agravamento da situação ou um prejuízo à comunidade; 6) a avaliação das necessidades não deve obedecer a um esquema rígido, mas tomar em conta as circunstâncias de cada caso”‘ (VIEIRA, 1982, p. 51).

Aqui se reafirma mais uma vez o acesso mediante a comprovação da necessidade,

cabendo ao profissional avaliar suas necessidades, considerando as “circunstâncias de cada

caso” dentro de um esquema flexível, a partir dos seis pontos indicados que se constituem em

referências para a concessão do auxílio. Observe-se que o montante em natureza ou espécie

fornecido ao demandante visa atender suas necessidades indispensáveis. Ou seja, reduzido ao

mínimo, mas definido a partir do estudo da situação apresentada por cada indivíduo necessitado.

Aqui se encontram claramente expostos os elementos do estudo socioeconômico

avaliativo de corte seletivo. Ou melhor: a seletividade está colocada pela política social e o

Serviço Social a executa através dos seus estudos, observações e relatórios.

Diante do exposto, podemos claramente apreender que a seletividade como forma de

controle do acesso e a permanência no atendimento caminham juntas e mesmo não se

separam uma; a cobrança da contrapartida exige acompanhamento para a vigilância do gasto.

Assim, a seletividade passa a integrar quase que, constitutivamente as ações profissionais do

assistente social nas organizações que o contratam para dar materialidade à política social.

As concepções de profissão e de pobreza utilizadas reforçam o foco do controle,

embora o “conceito de pobreza, pelo seu caráter histórico, possua características que variam

55 “Inspirado em trabalho desenvolvido por volta de 1750, na cidade alemã de Hamburgo, Daniel von der Heydt elabora o chamado ‘Plano Elberfeld’. Consubstanciava-se na divisão da cidade de Elberfeld em 564 setores (com cerca de 300 pessoas), cada possuindo ‘um visitante benévolo’ que, voluntariamente, permanecia na função por três anos. A operacionalização de tal Plano previa: a) estudo das necessidades de cada pobre do setor; b) estudo das necessidades de cada setor; c) trabalho preventivo com colocação dos pobres no mercado de trabalho; d) reabilitação dos indigentes; e) supervisão do trabalho por quarenta ‘supervisores’ que, Poe sua vez, ficavam sob a vigilância de um comitê de nove pessoas, responsável por toda a cidade” (CAMPAGNOLLI, 1993, p. 84).

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no tempo e no espaço, como variam as interpretações feitas pelos contemporâneos acerca das

razões de sua origem e das diversas alternativas de sua redução” (VISCARDI, 2011, p. 179).

Na Alemanha, em 1928, orientar e acompanhar o indivíduo atendido passa a ser

sinônimo de tentativas de enquadramento às pautas estabelecidas de ensinar o “indivíduo a

viver”, pautando-se na tão proclamada relação profissional.

Podemos constatar que há, igualmente, na Europa Ocidental, uma relação direta,

simbiótica entre a Política Social e o Serviço Social, entre ser profissional e ser funcionário.

Na nascente profissão, a busca é pela ciência que indica o que fazer. E há sem dúvida um

avanço na forma pública dos serviços sociais, porque passam a se constituir em direitos do

cidadão, embora, na prática, ele não tem sido tratado enquanto tal.

2.3. O ideário católico presente na expansão do Serviço Social face à modernidade

Interessa-nos agora tratar sobre como o Serviço Social se expandiu no mundo, sob a

influência da Igreja Católica, tendo por base que esta pretende recuperar seu lugar de “grande

importância” na Idade Média, perdido com o advento da Modernidade. Isto porque

pretendemos analisar os pilares da fundação do Serviço Social europeu e brasileiro para poder

entender o Serviço Social nos dias atuais.

No sentido de adensar os pilares que dão sustentação ao nascimento da profissão no

Brasil e em vários outros países de credo católico, torna-se então necessária a explicitação do

significado e do conteúdo das duas encíclicas papais já referidas.

Para Wehrle (2007, p. 4), a encíclica Rerum novarum56 representa uma resposta da

Igreja ao mundo, tardia em mais de cem anos que necessitou para digerir o alvorecer da

modernidade:

Efetivamente, “o último quartel do século XVIII e o século XIX foram um tempo traumático para a Igreja Católica”. Em 1789 inicia a Revolução Francesa e coloca fim ao “Ancien Régime”, isto é, ao modelo absolutista-feudal. Concomitantemente, a Inglaterra acelera seu processo de industrialização abrindo caminho para “os progressos incessantes da indústria […] e à alteração das relações entre os operários e os patrões”. Em 1847 na Alemanha, Karl Marx e Friedrich Engels fundam a Liga Comunista e publicam, em 1848, o Manifesto Comunista, como clara expressão da “opinião mais avantajada que os operários formam de si mesmos e a sua união mais compacta” (WEHRLE, 2007, p. 4-5).

56 O texto utilizado pelo autor foi consultado, em 2 de setembro de 2007, em http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html.

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A nova ordem burguesa abala profundamente a Igreja Católica, porque

indubitavelmente se constituía no principal instrumento ideológico da aristocracia feudal

tendo em vista que:

Seu “Deus criador e conservador do mundo” se espelhava na organização absolutista-feudal, tornando o exercício do poder “uma espécie de mandato realizado por delegação divina”. “A autoridade vem de Deus e é uma participação da Sua autoridade suprema”. Evidentemente, “essa concepção cristã do mundo entrou em colapso quando as novas condições econômicas e sociais, suscitadas pelo desenvolvimento comercial e industrial, asseguraram espaços institucionais para a articulação e propagação do pensamento moderno” (WEHRLE, 2007, p. 5).

As reflexões contidas nessa encíclica podem ser consideradas expressões dos

profundos sinais deixados pelo choque ocorrido entre a tradição católica e a ideia de liberdade

contida nos princípios da Revolução Francesa pelo seu conteúdo humanista e ateu. Entretanto,

a mira prioritária de suas críticas não se dirige aos Estados liberais e ao capitalismo, mas à

resposta socialista dada à condição dos operários.

Apesar de a Igreja Católica não se conformar com os novos tempos e, por conseguinte,

com a sua perda de poder, essa encíclica deve ser entendida como uma estratégia dessa

instituição social para se recolocar na sociedade moderna na luta para a obtenção de poder. Há

nela o reconhecimento de que não pode rejeitar inteiramente as práticas do liberalismo e da

modernidade, sob pena de comprometer sua sobrevivência enquanto instituição. No entanto,

“a Rerum novarum faz repetidas referências às ideias de ‘regresso’ e ‘restauração’ e manifesta

de forma explícita seu saudosismo dos tempos destruídos pela sede ‘das coisas novas’”

(WEHRLE, 2007, p. 6).

Passados, porém, mais de cem anos desde a Revolução Francesa, “a burguesia

revolucionária já não era nem progressista e nem revolucionária”, mas é exatamente o

contrário o que se verifica; agora a burguesia quer continuar no poder e, portanto, os seus

esforços se dirigem para conservar os espaços conquistados (WEHRLE, 2007, p. 6).

A burguesia, que na origem se constitui como classe revolucionária, porta- voz do

progresso social, representando objetivamente os interesses da totalidade do povo no combate

à reação absolutista-feudal, começa a ser conservadora quando passa a defender somente os

seus próprios interesses, aliando-se a segmentos sociais que anteriormente combatia

(COUTINHO, 1972, p. 8).

Importante frisar que, no primeiro semestre de 1848,

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a maioria das regiões da Europa central e ocidental — França, Alemanha, Itália, Áustria, Hungria, Polônia, Balcãs — foi tomada por insurreições de conteúdo nacionalista, antimonárquico, democrático ou operário (às vezes tudo isso junto). Todas foram vitoriosas a princípio e, logo a seguir, todas foram esmagadas com muito sangue. A grande novidade da Primavera dos Povos, destacadamente na França, foi a emergência dos operários reivindicando “uma república democrática e social” — muito além do que estavam dispostos a ir os liberais das revoluções anteriores (TRINDADE, 2002, p. 128).

Daí em diante, o medo da revolução social passa a unir os liberais às forças mais

retrógradas da Europa, num vasto “partido da ordem”, e essas revoltas populares são isoladas

e reprimidas com truculência exemplar (TRINDADE, 2002, p. 128).

O ano de 1848, quando o povo vai para as ruas, exigindo o direito ao trabalho, a partir

de sua auto-organização, representa um divisor de águas na história da cultura ocidental. É

quando o proletariado aparecerá na história como classe autônoma, em-si e para-si, apto para

dar respostas na direção progressista às novas contradições e aos desafios gerados pelo

capitalismo. A partir desse momento, só o socialismo irá defender a teoria do valor trabalho.

Quando a burguesia já havia realizado a revolução, torna-se classe conservadora,

passando a se unir aos “feudais” na defesa da conservação das estruturas sociais vigentes, não

abrindo mão dos meios de produção e do excedente econômico. A partir de agora, as

mudanças deverão ser graduais e pacíficas. Progresso só na ordem, uma vez que qualquer

mudança que possa colocar em risco a ordem burguesa deverá ser abolida. É quando a

burguesia se associa à nobreza e começa a combater a democracia. Agora, não se fala mais

em valores revolucionários, mas em valores de classe e de seus interesses. À burguesia não

interessa mais o pensamento crítico. A partir daí, a burguesia deixa de ser uma força

revolucionária, passando a ser conservadora.

A esse respeito, Netto (1991a, p. 14) explica:

A inflexão histórica de 1848, circunscrevendo o espaço sociopolítico da burguesia e explicitando a natureza de classe da sua dominação, selou a sorte do bloco cultural progressista: suas conquistas foram apropriadas pelos revolucionários e isso bastou para que os representantes da ordem rechaçassem a sua influência. A partir daí, os ideólogos burgueses, para responder ao movimento operário e combater a respectiva revolução, recorrem cada vez mais ao arsenal de ideias contidas nas propostas restauradoras57 e românticas. Como se vê, a evolução do pensamento sobre a sociedade burguesa tem em 1848 um divisor de águas: desde então, ele se fratura em dois campos opostos- o que se vincula à revolução e o que contrasta com ela. [...]

57 Netto (1991a, p. 13) refere-se ao pensamento restaurador como aquele “de claras conotações católicas e ranços místicos, que lamentava a ‘anarquia’ trazida pela revolução burguesa e a liquidação, pelo capitalismo, das ‘sagradas instituições’ da feudalidade — e recusava firmemente as novas formas sociais embasadas na dessacralização do mundo e no intercâmbio mercantil. O protesto romântico, criticando a prosaica realidade burguesa, escapava dos dilemas sociais do presente mediante a idealização da Idade Média e, em face das misérias contemporâneas, refugiava-se num passado idílico”.

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dois campos delimitam o terreno das grandes matrizes da razão moderna: a teoria social de Marx e o pensamento conservador [...].

Importante então destacar que o desenvolvimento do pensamento conservador é

contemporâneo e caminha paralelo à obra de Marx. Quiroga (1991, p. 44) aqui comparece

para explicar essa relação. Diz a autora:

O desenvolvimento do positivismo é contemporâneo à obra marxiana, ou seja, ambos são produtos de toda uma trajetória da história e aparecem como respostas às exigências de forças sociais que emergem e se desenvolvem no decorrer do século XIX. [...] são linhas de pensamento que se opõem e informam maneiras opostas de se conhecer a realidade; no entanto, conformam dois polos de uma mesma relação contraditória entre proletariado e burguesia.

Essas duas vertentes do pensamento moderno apoiam-se em projetos societários distintos:

A teoria social de Marx tem como objeto a sociedade burguesa e como objetivo a sua ultrapassagem revolucionária: é a sociedade burguesa sob a ótica do proletariado, buscando dar conta da dinâmica constitutiva do ser social que assenta na dominância do modo de produção capitalista. [...] A outra matriz importante procede da transformação subsequente do pensamento restaurador e romântico que se adéqua às necessidades de conservação, gestão e reforma da sociedade burguesa (NETTO, 1991a, p. 19).

Essas duas grandes matrizes fundantes do pensamento moderno podem ser

caracterizadas como segue.

1. Um bloco identificado pelo pensamento crítico-progressista que se expressa,

fundamentalmente, pelas obras de Marx, buscando articular o mundo do trabalho com o

mundo da cultura, através da crítica da economia política, a partir da economia política

inglesa (Smith e Ricardo), do socialismo utópico (Saint-Simon, Proudhon) e da filosofia

clássica alemã (Hegel, Feuerbach).

2. Outro bloco expresso pelo pensamento conservador, que se constitui na busca de

explicação para a intervenção na vida social, criando uma teoria/ideologia da ordem social,

tendo em vista a conservação do poder burguês; já tendo a burguesia realizado o seu projeto

revolucionário de tomada do poder contra o absolutismo e a aristocracia, necessita agora de

conservá-lo. Essa matriz teórica parte da concepção dos fatos sociais como coisas, aceitando

acriticamente a aparência imediata dos fenômenos sociais. “A esse pensamento conservador

[...] devemos a constituição e o florescimento das chamadas ciências sociais, disciplinas

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particulares e autônomas que, nas suas especializações e procedimentos, reproduzem as

cristalizações e as divisões que existem na superfície da sociedade” (NETTO, 1991a, p. 20).

Porém, ela se torna profundamente conservadora quando passa a naturalizar a vida

social, separar o econômico do político, abandonar a noção de movimento social e a noção de

historicidade, assim como abandona a noção de totalidade da vida social. E passa a fazer

apologia do capitalismo, descartando qualquer possibilidade de transformação social.

Agora não se falará mais de valores revolucionários, não se falará mais de todos, para

todos, mas dos interesses da burguesia enquanto classe. E a essa classe não interessa mais o

pensamento crítico. Então, suas referências passarão a ser balizadas no pensamento positivo.

Ao tornar-se uma classe conservadora, interessada na perpetuação e na justificação teórica do existente, a burguesia estreita cada vez mais a margem para uma apreensão objetiva e global da realidade; a Razão é encarada com um ceticismo cada vez maior, renegada como instrumento do conhecimento ou limitada a esferas progressivamente menores ou menos significativas da realidade. [...] Entre o que a burguesia agora apressava-se a abandonar estava, talvez em primeiro lugar, a categoria da Razão (COUTINHO, 1972, p. 8-9).

A ponte do irracionalismo ao “racionalismo” formal é constituída pelo agnosticismo.58

Confundindo a razão com o intelecto, a apropriação humana da objetividade com a manipulação técnica ou burocrática dos “dados”, as correntes formalistas desembocam num agnosticismo mais ou menos radical. Esferas fundamentais da realidade objetiva — exatamente as denominadas pelas categorias de dialética, história e humanismo — são declaradas incognoscíveis, “falsos problemas”, e, consequentemente lançadas no terreno da irrazão e do irracionalismo. Os limites do “racionalismo” formal, portanto, são o ponto de partida para a arbitrariedade irracionalista (COUTINHO, 1972, p. 3).

É preciso considerar que o predomínio do irracionalismo ou do realismo formal

sofrerá variações, dependendo das conjunturas em pauta.

Quando atravessa momentos de crise, a burguesia acentua ideologicamente o momento irracionalista, subjetivista; quando enfrenta períodos de estabilidade, de “segurança”, prestigia as orientações fundadas num “racionalismo” formal. Do ponto de vista filosófico essa unidade essencial das duas posições aparentemente opostas reflete-se no fato de ambas abandonarem os três núcleos categoriais que o marxismo herdou da filosofia clássica — elaborada pela própria burguesia em sua fase ascendente — e que são, precisamente, o historicismo concreto, a concepção de mundo humanista e a Razão dialética. Renunciando a esses instrumentos categoriais, caracterizados por sua dimensão crítica, o pensamento “modernista” — em suas duas faces — capitula diante da positividade fetichizada do mundo contemporâneo (COUTINHO, 1972, p. 3).

58 O agnosticismo pauta-se pela crença de que não é possível a apreensão da essência das coisas.

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Diante do exposto, podemos claramente perceber por que a ideologia liberal burguesa

concebe os direitos sociais e humanos como abstrações. O que está em jogo é o direito do

homem burguês, liberdade para o burguês e não para todos os homens. Essas referências são

fundamentais para podermos entender o conservadorismo moderno do qual a Igreja Católica

tem sido uma importante porta-voz.

O conservadorismo, enquanto forma de pensar, constitui-se como reação ao

Iluminismo e como um contramovimento à Revolução Francesa e a tudo o que esta

representa. É uma reação à Revolução por parte daqueles que perderam riqueza e o poder

político com o fim do feudalismo, sendo a Igreja Católica um desses perdedores. Porém, após

1848, a ala dos conservadores se ampliará com os burgueses que a partir de então se

posicionarão contra um dos dois projetos presentes na Revolução Francesa, ou seja, aquele

que defende a emancipação humana.

As palavras de Wehrle estão densamente colocadas quando afirma:

Assim, a transformação conservadora da burguesia revolucionária e a necessidade da Igreja em assegurar uma estratégia de sobrevivência foram fatores decisivos para um entendimento entre Igreja e Estado burguês. E juntos encontraram no avanço socialista seu inimigo comum. “O conservadorismo católico assumia, progressivamente, matizes liberais, enquanto que os liberais se pareciam cada vez mais com os conservadores. Tanto os católicos quanto os liberais conservadores passaram a interpretar o socialismo como o autêntico herdeiro do radicalismo revolucionário iluminista (que, segundo eles, representava uma constante ameaça a todo o poder constituído)” (WEHRLE, 2007, p. 7).

Nesse sentido, a encíclica Rerum novarum se constitui como reação católico-liberal ao

ameaçador movimento socialista, desejando urgentemente marcar uma “posição que

reforçasse a coesão ideológica da sua hierarquia e dos seus membros” (CASTRO, 1987, p. 54).

Essa encíclica deve ser apreendida também como um documento de caráter político,

colocando-se como “proposta articuladora da conciliação entre as classes, reafirmando a

condição de exploração da classe operária e apelando à reflexão dos capitalistas e do Estado

sobre os riscos morais e políticos da sua conduta voraz” (CASTRO, 1987, p. 54).

Essa análise é reforçada por Wehrle (2007, p. 7), ao observar que a referida encíclica

[...] ressalta de forma impressionante e apaixonada a defesa do direito natural à propriedade privada e não hesita em apontar uma desigualdade natural e necessária entre os seres humanos. [...] a carta encíclica distribui tarefas aos operários, aos patrões e ao Estado e afirma que a simples obediência ao “roteiro proposto” trará a solução para a melhoria da condição dos operários.

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A solução estratégica proposta pela Igreja é a de se contrapor ao pensamento e à

proposta socialista, “mediante a qual se busca colocar o discurso religioso acima das classes

sociais, recorrendo à autoridade suprema da religião e fazendo um apelo para que as coisas

terrenas dos homens se submetam ao poder divino” (CASTRO, 1987, p. 54).

A conclusão de Castro (1987, p. 54) é que a “encíclica, finalmente, traça formas de

ação para as classes e o Estado e, em particular, para a própria estrutura organizativa geral da

Igreja, sustentando a colocação da reforma social como instrumento político social para

enfrentar os problemas da época”.

Wehrle (2007, p. 7) desvenda a matriz de análise que permeia a Rerum Novarum e afirma:

Trata-se de uma compreensão organicista das relações sociais. A partir desta compreensão pressuposta, a Rerum novarum atualiza na sua conjuntura específica o “velho mito do paraíso perdido”, isto é, aponta tendências conjunturais como fatores de destruição de um aparente equilíbrio anterior. Aponta o abismo social consequente deste “desvio” do caminho natural e deslegitima a resposta socialista como proposta válida de superação da “miséria imerecida” dos operários. À negação da proposta socialista como alternativa real segue a afirmação da Igreja como caminho único de solução da questão social.

A Igreja propõe, nesse sentido, “o exercício do assistencialismo sob a ótica da

conciliação das classes. [...] A encíclica converte-se em elemento doutrinário que reorienta o

seu esquema de atuação frente ás classes sociais, [...] de forma que lhe permita colocar-se à

cabeça dos programas de caráter geral” (CASTRO, 1987, p. 55).

Em relação à encíclica Quadragesimo anno, apresentada 40 anos após a Rerum

novarum, em 15 de maio de 1931, pouco depois da Revolução Russa e da Primeira Guerra

Mundial e em meio à crise de 1929, Castro (1987, p. 57) diz que essa encíclica “desenvolveu-

se em tom mais radical, embora dentro do mesmo espírito da anterior”.

Wehrle (2007, p. 24) destaca de forma esquemática que, no texto da Quadragesimo

anno, consta “a análise para além da questão dos operários (a ordem social), advoga a unidade

entre capital e trabalho, trata dos abusos do capitalismo e do socialismo, apela para a renovação

moral da sociedade, defende uma vigorosa ação em favor da justiça com base na caridade”.

Aguiar (1985, p. 18) acrescenta que as bandeiras dos cristãos na época da referida

encíclica são a restauração de costumes e a reforma social, menciona que há um subtítulo do

documento intitulado “Sobre a restauração e aperfeiçoamento da ordem social em

conformidade com a Lei Evangélica” e acrescenta:

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Após analisar vários pontos, como direito à propriedade, relação capital e trabalho, liberação do proletariado, salário justo, passa a falar a respeito da restauração da ordem social. E afirma [citando a pág. 33 da referida encíclica]: “Já alguma coisa se faz nesse sentido; para realizar o muito que ainda está por fazer e para que a família humana colha vantagens melhores e mais abundantes, são de absoluta necessidade duas coisas: a reforma das instituições e a emenda dos costumes”.

Em face às referências aqui apresentadas, podemos entender que a Uciss, fundada em

1925, funcionou não só como centro de difusão da doutrina da igreja, mas também como

espaço importante de balanços e fonte de inspiração de novas ações.

O próprio Serviço Social da época, europeu e latino-americano, não é somente, em parte, resultado de uma proposta da Igreja, mas ator e autor da gênese do novo pensamento social cristão, como depois o seriam- em grau e amplitude superiores- os próprios partidos políticos de cariz cristão (CASTRO, 1987, p. 57).

O trabalho de beneficência, antes realizado pelos clérigos, agora será assumido pelos

assistentes sociais católicos, entre outros profissionais leigos, “acrescentando ao espírito

caridoso a perícia técnica” (CASTRO, 1987, p. 59). Assim, Castro (1987, p. 59) considera que “a

caridade, o messianismo, o espírito de sacrifício, a disciplina e a renúncia total passam a ser

parte dos aspectos doutrinários e dos hábitos que acompanharam o surgimento da profissão sob

a perspectiva católica, e não só por autodefinição interna, mas por desígnio do Vaticano”.

Na encíclica Quadragesimo anno é enfatizada a necessidade de o trabalho assistencial

absorver aspectos técnicos, o que significou uma inovação na América Latina, uma vez que a

Igreja passou a estimular diretamente a criação de centros de formação superior com a

incumbência de qualificar quadros técnicos para assumir o trabalho.

O assistencialismo, exercido a partir de iniciativa da igreja e do estímulo decisivo das grandes senhoras da época, adquiriu uma nova dimensão, ao se converter em profissão. Para o seu desempenho agora se fazia preciso um ciclo de treinamento que colocava os estudantes — a maioria deles procedente das camadas burguesas ou oligárquicas — em contato com uma formação sistemática e com o conhecimento de algumas disciplinas. Destarte, passou a ser uma exigência o manejo de certos instrumentos técnicos para o cabal exercício da atividade, ao mesmo tempo em que — e este é um aspecto de especial relevância —, mediante o trabalho, os profissionais reforçavam a fé católica (CASTRO, 1987, p. 60).

Aguiar (1985, p. 20), ao analisar as afirmações do papa Pio XI na encíclica

Quadragesimo anno acerca da importância da Ação Católica, conclui: “[...] percebemos que a

preocupação da Igreja se coloca na perspectiva de uma reforma da sociedade (retorno ao ideal

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da Idade Média), dada a decadência da moral e dos costumes, produzida pelo liberalismo e

comunismo”.

Conforme já pudemos tratar, a Igreja Católica teve influência decisiva na expansão do

Serviço Social nos países católicos, dentre os quais o Brasil e muitos países da América

Latina. Portanto, analisar as encíclicas papais contribui para desvelar os fundamentos do

Serviço Social e entender a prática dos assistentes sociais onde essa influência foi

significativa. Busco aprofundar essas referências, expondo a seguir, em linhas gerais, as bases

de fundação da religião católica como religião cristã.

2.4. Sobre o indivíduo na religião cristã como fundamento para entender o Serviço Social

Chauí (2002) traz importante contribuição, no sentido de iluminar o entendimento

acerca do significado do indivíduo e da relação entre os homens na perspectiva do

cristianismo, no sentido de fundamentar a análise da concepção do indivíduo e da

individualização presente no Serviço Social desde as suas origens como profissão.

Vale ressaltar o peso da Igreja Católica Romana na expansão do Serviço Social, que,

sob o mote de evangelizar a humanidade, ampliou seu domínio de influência na sociedade.

Na origem, o cristianismo era uma dentre muitas religiões orientais.

Suas raízes encontravam-se na religião judaica que, como todas as religiões antigas, era nacional ou de um povo em particular. No entanto, havia nele algo inexistente no judaísmo e nas outras religiões antigas: a ideia de evangelização, isto é de espalhar a “boa nova” para o mundo inteiro, a fim de converter os não-cristãos e tornar-se uma religião universal (CHAUÍ, 2002, p. 222).

O problema que então se colocava era o de como converter pessoas de outras religiões

ao cristianismo. Os evangelizadores usaram certamente muitas estratégias para conseguir esse

intento partindo das condições e o que pensavam os que deveriam ser convertidos. No texto

que me serve de referência, a autora pretende unicamente explicitar a evangelização que se

dirige à conversão dos intelectuais gregos e romanos, isto é,

daqueles que haviam sido formados não só em religiões diferentes da judaica, como também haviam sido educados na tradição racionalista da Filosofia. Para convertê-los demonstrando a superioridade da verdade cristã os primeiros Padres da Igreja ou intelectuais cristãos (São Paulo, São João, Santo Ambrósio, Santo Agostinho, entre outros) adaptaram as ideias filosóficas à religião cristã e fizeram surgir a Filosofia cristã (CHAUÍ, 2002, p. 222).

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A autora considera que, por se tratar de uma religião de salvação, o cristianismo não

precisava de uma filosofia, uma vez que o seu interesse fundamental encontrava-se na moral,

na prática dos preceitos virtuosos deixados por Jesus e não em uma teoria sobre a realidade.

Assim como, em se tratando de uma religião nascida do judaísmo, tinha clareza acerca do Ser.

Deus disse a Moisés: “Eu sou aquele que é, foi e será. Eu sou aquele que sou.” E, mesmo

porque, em se tratando de uma religião, o seu foco encontrava-se na fé e não na razão teórica.

“Foi, portanto, a intenção de converter os intelectuais gregos e os chefes e imperadores

romanos (isto é, aqueles que estavam acostumados à Filosofia) que ‘empurrou’ os cristãos

para a metafísica” (CHAUÍ, 2002, p. 223).59

Importante destacar, por conseguinte:

Diferentemente de outras religiões da Antiguidade, que eram nacionais e políticas, o cristianismo nasce como religião de indivíduos que não se definem por seu pertencimento a uma nação ou a um Estado, mas por sua fé num mesmo e único Deus. Em outras palavras, enquanto nas demais religiões antigas a divindade se relacionava com a comunidade social e politicamente organizada, o Deus cristão relaciona-se diretamente com os indivíduos que nele creem. Isto significa, antes de mais nada, que a vida ética do cristão não será definida por sua relação com a sociedade, mas por sua relação espiritual e interior com Deus (CHAUÍ, 2002, p. 342-343).

Assim, segundo Marilena Chauí, o cristianismo introduz duas diferenças fundamentais

na antiga concepção ética. A primeira refere-se “à ideia de que a virtude se define por nossa

relação com Deus e não com a cidade (a polis) e nem com os outros”. É por isso que as duas

virtudes e das quais decorrem todas as outras são a fé (atributo de nossa relação com Deus) e

a caridade (o amor e a responsabilidade pela salvação dos outros). Essas duas virtudes são

privadas, uma vez que se trata de relações dos indivíduos com Deus e com os demais, “a

partir da intimidade e interioridade de cada um” (CHAUÍ, 2002, p. 343).

A segunda refere-se à postulação de que somos dotados de livre-arbítrio.

O primeiro impulso e nossa liberdade dirigem-se para o mal e para o pecado, isto é, para a transgressão das leis divinas. Somos seres fracos, pecadores, divididos entre o bem (obediência a Deus) e o mal (submissão à tentação demoníaca). Em outras palavras, enquanto para os filósofos antigos a vontade era a faculdade racional capaz de dominar e controlar a desmesura passional de nossos apetites e desejos, havendo,

59 Vale a pena ler Chauí (2002, p. 223-227) quando demonstra, na sequência dos seus escritos, como a metafísica cristã se apossou, ou seja, reelaborou a metafísica grega em muitas ideias, não na totalidade. O cristianismo incorpora o platonismo e o aristotelismo. Porém, como as obras de Platão e Aristóteles tinham ficado por vários séculos perdidas, o cristianismo toma contato com três tradições metafísicas que formaram as primeiras elaborações metafísicas cristãs, que foram: o neoplatonismo, o estoicismo e o gnosticismo. E dessa forma a autora explica como se formou o ideário cristão nas suas bases.

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portanto, uma força interior (a vontade consciente) que nos tornava morais, para o cristianismo, a própria vontade está pervertida pelo pecado e precisamos do auxílio divino para nos tornarmos morais (CHAUÍ, 2002, p. 343).

Sem o auxílio divino, a vida ética seria impossível, porque devemos obedecer

obrigatoriamente e sem exceção a lei divina revelada.

O cristianismo, portanto, passa a considerar que o ser humano é, em si mesmo e por si mesmo, incapaz de realizar o bem e as virtudes. Tal concepção leva a introduzir a ideia moral de dever. Por meio da revelação dos profetas (Antigo Testamento) e de Jesus Cristo (Novo Testamento), Deus tornou sua vontade e sua lei manifestas aos seres humanos, definindo eternamente o bem e o mal, a virtude e o vício, a felicidade e a infelicidade, a salvação e o castigo. Aos humanos cabe reconhecer a vontade e a lei de Deus, cumprindo- as obrigatoriamente, isto é, por atos de dever. Este é o único que torna morais um sentimento, uma intenção, uma conduta ou uma ação (CHAUÍ, 2002, p. 343).

A ideia do dever permanecerá como uma das marcas fundamentais da concepção ética

ocidental, mesmo que, a partir do Renascimento, a filosofia moral tenha se distanciado dos

princípios teológicos e dos fundamentos da ética religiosa.

Anexa à ideia de dever, a moral cristã introduziu a ideia de intenção.

Até o cristianismo a filosofia moral localizava a conduta ética nas ações e nas atitudes visíveis do agente moral, ainda que tivessem como pressuposto algo que se realizava no interior do agente, em sua vontade racional ou consciente. Eram as condutas visíveis que eram julgadas virtuosas ou viciosas. O cristianismo, porém, é uma religião da interioridade, afirmando que a vontade e a lei divinas não estão escritas nas pedras nem nos pergaminhos, mas inscritas no coração dos seres humanos. A primeira relação ética, portanto, se estabelece entre o coração do indivíduo e Deus, entre alma invisível e a divindade. Como consequência, passou-se a considerar como submetido ao julgamento ético tudo quanto, invisível aos olhos humanos, é visível ao espírito de Deus, portanto, tudo o que acontece em nosso interior. [...] Eis porque um cristão, quando se confessa, obriga-se a confessar pecados cometidos por atos, palavras, intenções. Sua alma, invisível, tem o testemunho do olhar de Deus, que a julga (CHAUÍ, 2002, p. 344).60

60 Diante da pergunta se o dever não comprometeria a nossa autonomia ao ser imposto por um poder estranho a nós, Rousseau, no século XVII, vai defender a ideia de que homem nasce bom e puro, porque somos “a voz da natureza” e “o dedo de Deus” está em nosso coração. “Se o dever parece ser uma imposição e uma obrigação externa, imposta por Deus aos humanos, é porque nossa bondade natural foi pervertida pela sociedade, quando esta criou a propriedade privada e os interesses privados, tornando-nos egoístas, mentirosos, destrutivos” (CHAUÍ, 2002, p. 315). E Kant, também no final do século XVIII, vai se manifestar, opondo-se a Rousseau e afirmando o papel da razão na ética em oposição à ideia da “moral do coração”. “Não existe bondade natural. Por consequência, diz Kant, somos egoístas, ambiciosos, destrutivos, agressivos, cruéis, ávidos de prazeres que nunca nos saciam e pelos quais matamos, mentimos, roubamos. É justamente por isso que precisamos do dever para nos tornarmos morais” (CHAUÍ, 2002, p. 315).

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Diante das explicações apresentadas por Chauí, podemos claramente perceber que, a

partir do cristianismo — ou, melhor, da visão fundada no cristianismo —, a relação básica do

homem cristão não é com a sociedade, mas a de cada homem com Deus que tudo vê.

Acrescentem-se a essas ideias as do bem e do mal, e a de que as nossas ações serão

julgadas após a morte por Deus, que tudo vê e registra, e então seremos julgados. Como

resultado deste julgamento, poderemos ser premiados ou castigados com o céu ou o inferno,

dependendo de nossas ações boas.

Nessa direção, a preocupação central da religião cristã, enquanto projeto para a

humanidade, não se dirigiu para melhorar a vida terrena dos homens, visando à felicidade de

cada um e de todos, tendo em vista que o projeto de felicidade encontra-se para além da vida,

ou seja, após a morte. Depois da morte, poderemos, se assim merecermos e segundo o

julgamento de Deus, ir para o céu e sermos felizes para toda a eternidade, ou sermos

colocados no inferno para todo o sempre. Aqui na terra, portanto, o homem deve enfrentar o

sofrimento com resignação, uma vez que toda humilhação e sofrimento serão recompensados

no dia do Juízo Final.

Se o objetivo da evangelização era tornar a religião cristã universal, sua doutrina, “a

boa nova”, deverá servir a todos; então, é condição que os valores não tenham nuances de

particularidades, mas que se constituam em valores a-históricos diante dos quais os homens

não podem modificá-los, assim como são predeterminados metafisicamente, associados à

ideia de pecado e culpa.

A relação entre Deus e os homens, então, passa a se dar através dos intermediadores de

Deus, que são os santos da Igreja. Na terra, os intermediadores entre Deus e os homens serão os

padres, que, por sua vez, terão que agir de acordo com os preceitos da Santa Madre Igreja. As

relações entre os homens, por sua vez, passarão a ser mediadas pela hierarquia da Igreja.

A religião, todavia, se materializa através da Igreja, que, enquanto instituição humana,

é histórica — portanto, produto da ação dos homens historicamente situados. Podemos então

perceber que, na intenção de evangelizar, a Igreja Católica lutou com as forças sociais

presentes que se lhe opunham, tendo como horizonte a ocupação de espaços de poder e o

domínio do mundo — e fez isso, quase sempre, ao preço de muito sangue derramado, para

que pudesse se impor enquanto força e assim mostrar o seu poderio diante dos que não

comungavam de suas orientações, assim como se colocou com muita crueldade diante

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daqueles que tentavam pensar sob outros pressupostos. Veja-se a Inquisição na Idade Média e

a venda de indulgências,61 entre outros exemplos.

A ideia que perpassa a Igreja Católica é a de que a sociedade é composta por indivíduos,

não por estamentos ou classes sociais, talvez porque também a hierarquia da Igreja tenha se

colocado ao lado dos que detinham a riqueza e o poder político, sendo que também se colocou

na sociedade feudal e capitalista como um poder político em nome de Deus.

No pensamento católico, há sempre referências acerca do indivíduo, porém a relação

entre os homens aparece no discurso católico enquanto compaixão e caridade. Parece que a

compaixão e a caridade se colocam mais em relação a uma obrigação do cristão “para ganhar

o céu” e menos como compromissos com a solidariedade, a cumplicidade, a justiça e a busca

de igualdade entre os homens. No princípio da perfectibilidade humana, por exemplo, não se

fala da necessária relação entre os homens para que possam desenvolver as suas

possibilidades humanas.

A pessoa que sou eu não é o resultado de um processo interno solitário; só pode construir-se encontrando-se no foco dos olhares dos outros. Não só essa pessoa é alimentada com todas as contribuições dos que me rodeiam, mas na sua realidade essencial é constituída pelas trocas com eles; eu sou os vínculos que vou estabelecendo com os outros. Com essa definição, deixa de haver qualquer corte entre mim e os outros (JACQUARD, 1998, p. 2; grifos do autor).

O discurso da evangelização se pauta por ideias que se assentam para além da história,

visando ao todo sempre da eternidade. Mas a prática histórica é terrena e deve ser procurada,

analisando-se o papel e as ações da Igreja na sociedade da qual é parte e na qual se expressa,

para desvendar a verdadeira intenção política da prática de seus agentes. As encíclicas,

portanto, são referências para se entender o significado real da prática da Igreja situada no

âmbito das relações sociais na história dos homens.62

61 Com a Reforma Protestante, “[...] não havia mais como assegurar o plano divino com a compra de indulgências (pedaços do Céu) pelos ricos em doações à Igreja, como acontecia antes. O Reino dos céus já cabia aos pobres pelo seu sofrimento. [...] Não havia mais salvação assegurada. Como já não se sabia quem estaria entre os escolhidos, o que se podia fazer era seguir a ética religiosa, na tentativa de estar entre os que seriam salvos. E a ética dizia que o homem devia trabalhar, e não trabalhar por trabalhar, mas fazê-lo produtivamente [...] Eis a ética que influenciou todo o comportamento do burguês e empresário no início do capitalismo: leva a uma ideologia que é a própria mola da acumulação do capital. Assim, o empresário deve trabalhar, viver asceticamente e acumular” (COVRE, 2002, p. 22). 62 Nossa análise não abarca a Teologia da Libertação, que, na década de 1970, foi um movimento cristão que assumiu historicamente a luta para a libertação de pobres e oprimidos. O termo foi criado em 1971 pelo padre peruano Gustavo Gutiérrez, que escreveu um dos livros mais famosos do movimento, A Teologia da Libertação. Leonardo Boff é um nome expoente dessa perspectiva no Brasil.

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2.5 A seleção socioeconômica na emergência e constituição do Serviço Social no Brasil

O Serviço Social no Brasil nasce na década de 1930 sob a influência da Igreja Católica

e se institucionaliza quando o Estado passa a enfrentar a questão social através de políticas

sociais, estas utilizadas como forma de regulação social.

É em um quadro sócio-histórico tenso entre as classes sociais que a profissão do

assistente social dá os seus primeiros passos no País. Quando o nascente operariado urbano se

coloca como sujeito histórico, reivindicando direitos de proteção social relativos aos riscos do

trabalho, o governo de Vargas passa a reconhecer e a tratar a questão social através da criação

de políticas social como forma de seu enfrentamento.

Desde novembro de 1930, quando foi criado o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio [...] Seguiram-se leis de proteção ao trabalhador, de enquadramento dos sindicatos pelo Estado, e criaram-se órgãos para arbitrar conflitos entre patrões e operários — as Juntas de Conciliação e Julgamento. Entre as leis de proteção ao trabalhador estavam as que regularam o trabalho das mulheres e dos menores, a concessão de férias, o limite de oito horas da jornada normal de trabalho (FAUSTO, 1999, P. 335).

Em uma conjuntura de intensa movimentação social, o Estado assume o papel de

mediador entre as classes, ao atender parte das reivindicações apresentadas pelos

trabalhadores, mediante o estabelecimento de medidas no âmbito das políticas sociais, dentre

as quais se destacam a instituição da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e do salário

mínimo, com o intuito de desmobilizar e regular as relações entre as classes sociais.

É nesse contexto que, em 1936, é inaugurada em São Paulo a primeira escola brasileira

de Serviço Social, como fruto da iniciativa do Centro de Estudos e Ação Social (Ceas),

relacionado à Ação Católica que fora criado em 1932 com a finalidade de difundir a doutrina e a

ação social da igreja. O Serviço Social no País é concebido e criado por iniciativa da Igreja

Católica como estratégia de, através da ação militante de leigos, colocar-se o horizonte de

divulgação de seu ideário, exposto nas encíclicas papais Rerum novarum e Quadragesimo anno.

Com o intuito de formar quadros para o Serviço Social brasileiro, o CEAS envia as

duas sócias Maria Kiehl e Albertina Ramos à Bélgica para estudar na Escola de Serviço

Social de Bruxelas, recebendo a influência do cardeal Mercier e das Ligas Operárias cuja

perspectiva era a Ação Social.63 Estudaram na Bélgica por três anos e no retorno, já como

assistentes sociais, se empenharam na organização da escola em criação (YAZBEK, 1977).

63 Na Europa, antes de surgir o Serviço Social, nasce a Ação Social. O Serviço Social vai se constituir como instrumento da Ação Social. A Ação Social “é uma ação mais ampla (do que o serviço social). Exercida sobre a

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Havia no Ceas outras sócias formadas na Europa. Esse é o caso de Odila Cintra

Ferreira, que se formara na Escola Superior de Estudos Sociais de Paris e realçava a formação

para a intervenção junto ao meio operário (YAZBEK, 1977).

A formação ética, social e técnica dos assistentes sociais brasileiros é inicialmente

influenciada pelo Serviço Social francês e belga, que se alinha à visão do bloco católico no

panorama do Serviço Social internacional daquela época. Essa formação estimulava as alunas

para a reflexão e a ação planejada fundada no método do “ver, julgar e agir”.

A profunda relação entre Serviço Social e ideário católico faz com que a profissão seja

vista como missão e lhe dará “caráter de apostolado fundado em uma abordagem da ‘questão

social’ como problema moral e religioso e numa intervenção que prioriza a formação da

família e do indivíduo para solução dos problemas e atendimento de suas necessidades

materiais, morais e sociais” (YAZBEK, 2009a, p. 145).

Nesse momento, os objetivos profissionais pautam-se por “posicionamentos de cunho

humanista conservador contrários aos ideais liberal e marxista na busca de hegemonia do

pensamento social da Igreja face à ‘questão social’” (YAZBEK, 2009a, p. 146).

A questão social, influenciada pelo pensamento social da Igreja, é abordada como

conjunto de problemas de responsabilidade individual dos sujeitos que os vivenciam. “Trata-

se de um enfoque individualista, psicologizante e moralizador da questão, que necessita para

seu enfrentamento de uma pedagogia psicossocial que encontrará no Serviço Social efetivas

possibilidades de desenvolvimento” (YAZBEK, 1999, p. 92).

A perspectiva do Serviço Social, nesse momento, se dirige à mudança de

comportamento de seus “clientes” na perspectiva de integrá-los às relações sociais vigentes.

Merece atenção que nem o doutrinarismo nem o conservadorismo que marcam

profundamente o Serviço Social brasileiro na emergência da profissão se constituem em

teorias sociais.

A doutrina caracteriza-se por uma visão de mundo abrangente fundada na fé em dogmas. Constitui-se de um conjunto de princípios e crenças que servem como suporte a um sistema religioso, filosófico, político, entre outros. O conservadorismo como forma de pensamento e experiência prática é resultado de um contramovimento aos avanços da modernidade, e nesse sentido, suas reações são restauradoras e preservadoras, particularmente da ordem capitalista (YAZBEK, 2009a, p. 147).

estrutura mesma da sociedade, visando transformar ou adaptar os quadros existentes de acordo com a época, o lugar, a civilização. É mais um movimento de ideias, um trabalho legislativo no qual os políticos e os juristas desempenham papel preponderante" (RAMOS, s/d, apud AGUIAR, 1985, p. 31).

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O Serviço Social brasileiro, a partir da década de 1940, agregará a essa formação

doutrinária inicial o suporte técnico-científico assimilado via Serviço Social norte-americano,

de inspiração teórica positivista.

Tendo em vista o mercado de trabalho, que já se delineia para o assistente social no

Brasil como um trabalhador assalariado, há a necessidade de qualificação técnica para atuar

nas organizações sociais que passam a contratar esse profissional. A resposta a essa

necessidade surge quando alguns assistentes sociais brasileiros vão aos Estados Unidos,

convidados e financiados pelo governo norte-americano, para estudar e se especializar em

diversas universidades daquele país. No retorno ao Brasil, as bolsistas trazem do Serviço

Social norte-americano a tríade do Serviço Social de Casos, de Grupo e de Comunidade.

A razão instrumental que dará sustentação às ações prescritivas do assistente social

diante de sua “clientela”, fundadas em modelos de estudo, diagnóstico e tratamento contidas no

Serviço Social de Casos, Serviço Social de Grupo e Organização de Comunidade, é absorvida

pelo Serviço Social brasileiro e passará a ser ensinada, pelo menos nas duas décadas seguintes,

nas escolas de Serviço Social, que já são várias no País. “Essa matriz assimilada dará uma

configuração à profissão, configurando para a profissão propostas de trabalho ajustadoras e um

perfil manipulatório, voltado para o aperfeiçoamento dos instrumentos e técnicas para a

intervenção, com as metodologias de ação” (YAZBEK, 2009a, p. 148).

A esse respeito, Aguiar (1985, p. 57-58) acrescenta:

Na década de 40, um fato novo vai marcar a vida do Serviço social brasileiro: o Serviço Social norte- americano, cuja presença será marcante nas décadas seguintes. Nesse período, a presença europeia ainda é muito significativa, mas gradativamente o eixo de influência mudará. Na segunda metade da década de 40 e no início da de 50, constamos a presença da filosofia tomista aliada às técnicas norte- americanas. Nesse período não haverá ruptura radical da ideologia católica, pelo contrário, haverá uma convivência das duas posições: o Serviço Social permanece na base dos princípios católicos e neotomistas, inclusive via Estados Unidos, e ao mesmo tempo incorpora as técnicas norte-americanas.

Se a criação da primeira escola de Serviço Social no Brasil e de outras que surgirão

deve-se à Igreja Católica, a consolidação da profissão “não pode ser considerada como fruto

de uma iniciativa exclusiva do Movimento Católico Laico, pois já existe presente uma

demanda — real ou potencial — a partir do Estado, que assimilará a formação doutrinária

própria do apostolado social” (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 180).

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Na emergência do Serviço Social brasileiro, já existe demanda pelo trabalho de

profissionais que possam atuar nas expressões da questão social, uma vez que diante da

consolidação do operariado urbano e da organização operária,

[...] o Estado novo, então instituído, defronta-se com duas demandas: absorver e controlar os setores urbanos emergentes e buscar, nesses mesmos setores, legitimação política. Para isso adota uma política de massa, incorporando parte das reivindicações populares, mas controlando a autônoma dos movimentos reivindicatórios do proletariado emergente, através de canais institucionais, absorvendo- os na estrutura corporativista do Estado (SILVA, 1995, p. 24).

Nessa direção, são criados serviços assistenciais com o intuito de esvaziar e controlar

os trabalhadores organizados e ao mesmo rebaixar os salários. Nesse fundamento encontra-se

a criação das grandes instituições assistenciais64 e previdenciárias que, conjuntamente “aos

setores dominantes, procuram responder às pressões dos setores urbanos em

desenvolvimento, passando as iniciativas assistenciais, incorporadas pelo Estado, a constituir

mecanismos de apoio à aceleração do processo de desenvolvimento capitalista no País”

(SILVA, 1995, p. 24; grifo da autora).

Essas iniciativas, que constituem conquistas dos trabalhadores, são, no entanto,

tratadas como doações pelo governo de traços paternalista e populista como foi o de Getúlio

de Vargas, na busca de legitimidade social.

Iamamoto e Carvalho (1985) destacam a importância dessas conquistas:

Historicamente, passa-se da caridade tradicional levada a efeito por tímidas e pulverizadas iniciativas das classes dominantes, nas suas diversas manifestações filantrópicas, para a centralização e racionalização da atividade assistencial e da prestação de serviços pelo Estado, à medida que se amplia o contingente da classe trabalhadora e sua presença política na sociedade. Passa o Estado a atuar sistematicamente sobre as sequelas da exploração do trabalho expressas nas condições de vida do conjunto de trabalhadores (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 78).

Dentre as iniciativas em curso no País, sobressai a criação, em 1935, do Departamento

de Assistência Social do estado de São Paulo (primeira iniciativa do gênero criada no Brasil),

subordinado à Secretaria da Justiça e Negócios Interiores, com as seguintes atribuições:

a) superintender todo o serviço de assistência e proteção social; b) celebrar, para realizar seu programa, acordos com as instituições particulares de caridade, assistência e ensino profissional; c) harmonizar a ação social do Estado, articulando- a com a dos

64 Dentre as quais se encontram: o Conselho Nacional de Serviço Social, em 1938; a Legião Brasileira de Assistência e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, em 1942; o Serviço Social da Indústria e a Fundação Leão XIII, em 1946.

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particulares; d) distribuir subvenções e matricular as instituições particulares realizando seu cadastramento. Caberia além dos itens relacionados acima, a estruturação dos Serviços Sociais de Menores, Desvalidos, Trabalhadores e Egressos de reformatórios, penitenciárias e hospitais e da Consultoria Jurídica do Serviço Social. A maior parte dos artigos da lei é, no entanto, dedicada à assistência ao menor- sua organização científica em relação aos aspectos social, médico e pedagógico e à fiscalização das instituições públicas e particulares que a ela se dedica. Apenas um artigo se refere ao Serviço de proteção ao Trabalhador, para remetê-lo ao Departamento Estadual do trabalho (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 178-179).

O Estado, através da Lei nº 2.497, de 24 de dezembro de 1935, assume a atribuição de

controle e fiscalização dos serviços, públicos e privados, relativos à assistência e proteção social

existentes, através da normatização, da criação de cadastro e matrícula das instituições

particulares, inclusive passa a existir critérios para a concessão de subvenções. Os serviços

sociais dirigidos ao atendimento de vários segmentos da população, que já são divididas em

diversas áreas de atuação, passam a receber tratamento de controle através de normatizações.

Destaque-se que as obras de caridade mantidas pelo clero e por leigos remontam a

uma longa tradição no Brasil, desde o período colonial. “A parca e precária infraestrutura

hospitalar e assistencial existente até fase bastante avançada do Império se deve quase

exclusivamente à ação das ordens religiosas que se implantam e se disseminam no Brasil”

(IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 169).

A separação entre a Igreja e o Estado, que se realiza na Constituição da República de

1891, trazendo como decorrência a perda dos privilégios que a Igreja detinha no Império, uma vez

que o catolicismo até então se colocava como religião oficial, não pode ser muito considerada.

Lima (1987, p. 24) analisa esse fato e afirma que nunca houve, de fato, tal separação.

Se por um lado, a Igreja perdeu suas regalias, por outro lado obteve a liberdade de que não desfrutava, desvencilhando-se das incompatibilidades existentes entre o poder imperial e o clerical, resultantes da intolerância do regalismo, unido à maçonaria e aos liberais, contra o espírito clerical. Consequentemente, implantou-se no Brasil o laicismo. Todavia, a Igreja conservou, por tradição, suas relações com o Estado nos planos político e social.

Alceu Amoroso Lima (1973, apud Lima, 1987, p. 24) explicita melhor as

características dessa relação, ao dizer que a Igreja Católica,

[...] politicamente, vinculou-se aos grupos dirigentes, que detêm o poder na esfera federal, estadual e municipal, de cujos favores muitas vezes depende. Esses favores em geral são pagos pelo apoio prestado às autoridades públicas ou pela influência exercida pelo clero secular junto aos fiéis em véspera de eleições.

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Ressalte-se que a ação social da Igreja Católica no Brasil, no final do século XIX e

início do século XX, reduzia-se a obras beneficentes e educacionais mantidas por organizações

religiosas. Ainda não pautava a sua ação nos fundamentos contidos na encíclica Rerum

novarum, pois “a alta cúpula da Igreja tinha suas atenções voltadas para o combate aos seus

inimigos — protestantes, maçons e espíritas — [e] se mantinha afastada, indiferente aos

problemas operários resultantes da passagem de uma economia agrícola para industrial”

(LIMA, 1987, p. 24).

As significativas ondas imigratórias que passaram a chegar ao Brasil a partir de

meados da década de 1870, trazendo imigrantes europeus com forte formação católica, para

substituir a força de trabalho escrava, criam a demanda para que a Igreja amplie os seus

quadros, para cuidar aqui do seu “rebanho europeu”, uma vez que parte dele para aqui se

dirigira. Essas ordens, muitas delas advindas do continente europeu, pretendiam dar apoio

espiritual e material, aos imigrantes, mas também cuidar para que não fossem influenciados

pelas ideias anarquistas e comunistas, conforme bem expressam as encíclicas papais.

As entidades sociais de base confessional ocupam lugar de destaque no trabalho

assistencial, antes de tais iniciativas serem incorporadas pelo Estado, e muitas continuam a

operá-las, em parceria com o poder público, através de subvenções.

No Brasil como em outros países, o Serviço Social como profissão assalariada, surge

quando o Estado passa a intervir diretamente na relação capital-trabalho, aliviando-lhe a tensão

através da criação dos programas de política social, nos quais os assistentes passam a atuar.

Lidar com a questão social através da criação de políticas sociais passa a se constituir em outro

jeito do Estado lidar com as manifestações da questão social. Somente com o uso da força de

polícia corria-se o perigoso risco de sua deslegitimação diante do operariado em organização.

O Serviço Social é legitimado pela sociedade como profissão, o que é expresso por seu

assalariamento, e passa a ocupar um espaço na divisão sociotécnica do trabalho, como

mediador entre as classes sociais e como executor das políticas sociais (IAMAMOTO;

CARVALHO, 1985).

A partir daí, a questão social deixa de ser vista como questão de ordem social e

política, e é transfigurada em questão de ordem técnica, que, portanto, poderá ser tratada por

profissionais, dentre os quais o assistente social, através dos programas da política social.

Amortecer e controlar a população demandante dos serviços sociais dá um caráter

eminentemente político à intervenção do assistente social como trabalhador assalariado, desde

as suas origens.

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Nessa época, o Serviço Social brasileiro se institucionaliza e se reorienta para

responder às novas configurações do desenvolvimento capitalista, que exige qualificação e

sistematização do seu espaço de atuação, visando responder às demandas do Estado, o qual

começa a desenvolver políticas sociais.

Nessa perspectiva, em 1938, portanto dois anos após o início da Escola de Serviço

Social de São Paulo, é organizada a Seção de Assistência Social paulista, que, logo após sua

criação, nesse mesmo ano, passa a ser denominado Departamento de Serviço Social.

A seção de Assistência Social tem por finalidade “realizar o conjunto de trabalhos necessários ao reajustamento de certos indivíduos ou grupos às condições normais de vida”, organiza para tal: o Serviço Social dos Casos Individuais, a Orientação Técnica das Obras Sociais, o Setor de Investigação e Estatística e o Fichário Central de Obras e Necessitados. O método central a ser aplicado é definido como sendo o Serviço Social de Casos Individuais, devendo-se “estimular o necessitado, fazendo-o participar ativamente de todos os projetos que se relacionam com seu tratamento [...] utilizar todos os elementos do meio social que possam influenciá-lo no sentido desejado, facilitando sua readaptação” e propiciar auxílio material reduzido ao mínimo indispensável, “para não prejudicar o tratamento” (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 179).

Nessa origem, podemos perceber claramente que o Estado assume o papel de

subsidiário das instituições particulares geridas pela Igreja Católica, merecendo destaque o

registro de que o poder estatal assume a competência de distribuir subvenções, porque

certamente as verbas públicas eram e continuam sendo sempre menores que a demanda

colocada pelas instituições.

A administração de convênios e subvenções sempre envolve pareceres técnicos acerca

do estudo do mérito da solicitação e são realizadas por profissionais. Aqui aparece a dimensão

do caráter seletivo das políticas sociais mediada pela solicitação de verbas públicas das

instituições privadas ou da sociedade civil.

Diante desse fato, podemos perceber que a seletividade de acesso aos serviços sociais

envolve tanto a distribuição de recursos da esfera pública para a privada, visando à realização

da política, assim como a necessidade de as instituições fazerem a gestão dos recursos

recebidos selecionando os demandantes que terão acesso e os que não terão em função dos

critérios estabelecidos.

A seletividade aqui aparece no nível da decisão política, quando o acesso às

subvenções por parte das organizações sociais deverá se dar mediante a verificação dos

critérios estabelecidos e normas estabelecidas. Esse fato se coloca como mais um elemento

escamoteador do acesso como direito, uma vez que está intimamente relacionado à liberação

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ou não de recursos através das subvenções e da seleção do indivíduo que preenche os critérios

de elegibilidade prescritos.

A profissão do assistente social, embora criada sob o impulso da Igreja Católica,

apenas pode se consolidar e romper o estreito quadro de sua origem no bloco católico a partir e no mercado de trabalho que se abre com aquelas entidades (referindo-se ao SESI, LBA). A partir desse momento só é possível pensar na profissão e seus agentes concretos — sua ação na reprodução das relações sociais de produção — englobados no âmbito das estruturas institucionais. O assistente social aparecerá como uma categoria de assalariados — quadros médios cuja principal mandatária será, diretamente ou indiretamente, o Estado. O significado social do Serviço Social pode ser apreendido globalmente apenas em sua relação com as políticas sociais do Estado, implementadas pelas entidades sociais e assistenciais (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 315).

Para desvendar o significado sócio-histórico da profissão, assim como as

possibilidades e limites da profissão, torna-se imprescindível apreender a relação direta

existente entre Serviço Social, política social e expressões da questão social.

Conforme vai ocorrendo a profissionalização dos assistentes sociais, o Serviço Social

“deixa de ser uma forma de distribuição controlada da exígua caridade particular das classes

dominantes, para constituir-se numa das engrenagens de execução das políticas sociais do

Estado e corporações empresariais” (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 316).

Os autores chamam a atenção para o fato de que o processo de institucionalização da

profissão ocorre ao mesmo tempo em que ocorre a profissionalização dos seus agentes.

As grandes instituições assistenciais desenvolvem-se num momento em que o Serviço Social, como profissão legitimada dentro da divisão social do trabalho — entendido o Assistente Social como profissional que domina um corpo de conhecimentos, métodos e técnicas — é um projeto ainda em estado embrionário; é uma atividade profundamente marcada e ligada à sua origem católica, e a de determinadas frações de classes, as quais ainda monopolizam seu ensino e prática. Nesse sentido, o processo de institucionalização do Serviço social será também o processo de profissionalização dos Assistentes Sociais formados nas Escolas especializadas (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 315).

Nas organizações que materializam a política social, o assistente social transforma-se

em agente de intervenção que executa a política social, recebendo mandato institucional para

falar em seu nome à população que demanda pelos serviços sociais oferecidos por tais

organizações. Dentre suas competências profissionais, encontra-se a seleção socioeconômica.

A seletividade é tratada pelos autores de forma crítica, ao observar a contradição presente

entre oferta e demanda.

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O Assistente Social é chamado a constituir-se no agente institucional de “linha de frente” nas relações entre a instituição e a população, entre os serviços prestados e a solicitação dos interessados por esses mesmos serviços. Dispõe de um poder, atribuído institucionalmente de selecionar aqueles que têm ou não direito de participar dos programas propostos, discriminando, entre os elegíveis, os mais necessitados, devido à incapacidade da rede de equipamentos sociais existentes de atender todo o público que, teoricamente, tem acesso a eles (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 113; grifos meus).

No período de institucionalização de Serviço Social brasileiro, as demandas trazidas

pela população não são entendidas como direitos, mas como expressão de carências. Nesse

sentido, conforme bem colocam Iamamoto e Carvalho (1985, p. 325), o atendimento,

especialmente a distribuição de auxílios materiais, se faz acompanhar de uma pressão moral que tem por horizonte impedir as acomodações e afirmar a ausência de alternativas fora de um comportamento “racional e equilibrado” integrado à ordem vigente. Partindo da noção de que todos poderiam obter um mínimo de bem-estar que aquela ordem lhe reservaria, as situações de dependência, ao mesmo tempo que alimentadas, são caracterizadas a partir de critérios morais. E às doses homeopáticas de auxílios materiais se acrescenta um volume desproporcional de controle e inculcação ideológica (grifos dos autores).

Aqui no Brasil, em relação à seleção socioeconômica, reaparece o reforço à ideia de

que a ajuda solicitada às organizações sociais pelo usuário deve ser concedida mediante a

comprovação de sua necessidade através da avaliação socioeconômica realizada pelo

assistente social. A seleção realizada pelo profissional deve obedecer aos critérios, atentando

para os poucos recursos existentes diante da demanda que é sempre maior que a oferta.

Espera-se, portanto, que sejam bem gastos pelo assistente social, que assim se torna um gestor

desses parcos recursos.

Nesse sentido, o profissional é solicitado a intervir como “fiscalizador da pobreza”, comprovando-a com dados objetivos in loco, quando necessário, evitando assim que a instituição caia nas “armadilhas da conduta popular de encenação da miséria”, ao mesmo tempo em que procura garantir, dessa forma, o emprego “racional” dos recursos disponíveis (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 114).

Esses autores, ao pesquisar e escrever sobre a emergência e institucionalização do

Serviço Social no Brasil, acabam por apresentar ricas informações e análises sobre a seleção

de acesso aos serviços e benefícios sociais praticada pelas diversas organizações pesquisadas,

especialmente a Legião Brasileira de Assistência (LBA), o Serviço Nacional de Aprendizagem

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Industrial (Senai), o Serviço Nacional da Indústria (Sesi), a Fundação Leão XIII e a

Previdência Social.65

É desses registros realizados por Iamamoto e Carvalho que passo a tratar a seguir, com

a intenção de apontar as referências relacionadas à seleção socioeconômica e à triagem e

assim dar visibilidade à significativa presença da profissão no controle de acesso aos serviços

sociais na institucionalização do Serviço Social brasileiro.

No que se refere à Associação Lar Proletário, primeira grande obra particular do Rio

de Janeiro a implantar o Serviço Social, em 1939, aparece:

As assistentes sociais desenvolverão atividades semelhantes (em creches, casas de crianças, maternidades, escolas primária e de formação moral para o lar), além das atividades relativas ao conjunto residencial (230 casas) construído pela instituição: seleção das famílias após apurada pesquisa, orientação da distribuição dessas famílias pelo Vila, seguir de perto a ocupação de cada uma das coisas, “conquistando a simpatia dos assistidos” (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 194; grifos das autoras em itálico e meus em negrito).

Ao tratar da atuação do serviço social na LBA, consta:

No referente às técnicas do Serviço Social, os relatos de práticas desenvolvidas parecem mostrar que estas se manem basicamente dentro dos padrões preexistes. O inquérito, a pesquisa social, as visitas domiciliares e entrevistas continuam sendo o fundamento do serviço social de casos individuais. Este será utilizado para a determinação de auxílios financeiros, encaminhamentos para serviços médicos, internação de crianças, obtenção de empregos, regularização de documentos, regularização de vida conjugal, etc. (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 259; grifos meus).

Ao tratar do Serviço Social no campo médico, encontra-se registrado:

As iniciativas são ainda extremamente embrionárias. Estarão ligadas inicialmente à puericultura e à profilaxia de doenças transmissíveis e hereditárias. As funções exercidas se referirão à triagem (o que o cliente ou família pode pagar), elaboração de fichas informativas sobre o cliente (“dados importantes que o médico muito atarefado teria gasto muito para obter”), distribuição de auxílios financeiros para possibilitar a ida do cliente à instituição médica, conciliação do tratamento com os deveres profissionais do cliente (entendimentos com o empregador), o cuidado quanto aos fatores “psicológicos e emocionais do tratamento”, e a adequação do cliente à instituição através da “obtenção de confiança” (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 200; grifos das autoras em itálico e grifos meus em negrito).

65 Em Iamamoto e Carvalho (1985), há 18 registros significativos relacionados diretamente à operação da seletividade pelo assistente social nas organizações sociais que demandam seu trabalho na emergência e institucionalização do Serviço Social no Brasil. Referências à seleção socioeconômica e à triagem podem ser encontradas em Iamamoto e Carvalho (1985, p. 113, 114, 182, 194, 200, 259, 263, 273, 283, 289, 308, 310, 311, 319, 320, 321, 323, 324-325).

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Ao tratar do Serviço Social no Senai, consta:

Como trabalhador assalariado, o assistente social aparece como produtor de serviços- não diretamente produtivos — que são, no entanto, necessários à existência e maior produtividade dos trabalhos diretamente produtivos, fato no qual coincide com outras funções técnicas. Aparecerá como particularidade sua o fato de coordenar- na instituição — a utilização de parcela dos outros serviços tornados consumo produtivo. Atuará aí através da seleção e encaminhamento no sentido de minimizar o seu custo per capita, concorrendo indiretamente para o aumento do domínio do trabalho excedente (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 272-273; grifos das autoras em itálico e meus em negrito).

Ao tratar da atuação do Serviço Social no Sesi, fica assinalado:

Terá assim a função de “coordenação das atividades da obra” atuando nos serviços de plantão (primeiro contato e encaminhamento), na divisão médica (aspecto moral, social e psicológico da doença), na divisão econômica (principal área de atuação do Assistente Social, centrando-se nos estudos para concessão de auxílios, orientação para o equilíbrio orçamentário, orientação quanto à utilização dos recursos oferecidos, etc.), na divisão de lazeres e movimentos sociais e nos trabalhos de ligação com as empresas e em seu interior (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 283; grifos meus em negrito).

Nos programas e funções que o Setor do Serviço Social da Previdência Social

enumera como atividades dos assistentes sociais, consta:

3. Seleção econômico-social: • para a obtenção de benefícios pagos (imóveis, etc.); • para distribuição de auxílios. 4. Distribuição de auxílios: • fornecimento de medicamentos gratuitos; • compra de aparelhos ortopédicos; • auxílios destinados à manutenção quando atrasam os benefícios; • auxílios diversos em dinheiro, para regularização da situação civil, para

realização de tratamentos (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 308-309; grifos meus em negrito).

Em face das atividades realizadas pelos assistentes sociais na Previdência Social,

consta uma análise que referencia a seleção socioeconômica como ferramenta, instrumento de

controle de acesso aos serviços e benefícios sociais:

Há, nesse quadro — e se verdadeira essa colocação — um fosso profundo entre as necessidades prementes de grandes parcelas da população, lançada em diferentes níveis de pauperismo, e o campo restrito dos benefícios que o seguro social pode ou pretende propiciar. Surge inicialmente, a necessidade de triagem da população que demanda a instituição. Tem por sentido eliminar aqueles que não têm vinculação com o aparelho produtivo e encaminhar para outra instituição de seguro aqueles que não são vinculados ao setor de atividade próprio daquela

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instituição em particular. Cabe, em seguida, um segundo nível de triagem, que se refere a estar ou não o segurado apto a requerer determinados benefícios e/ou se aquela demanda se enquadra dentro dos programas preestabelecidos. Há assim, esquematicamente, um primeiro nível de contradição entre as imensas carências da população segurada e aquilo que pode obter do seguro, o leque limitado de benefícios e sua qualidade (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 309; grifo em itálico das autoras e grifo meu em negrito).

Na citação acima, fica exposta claramente, na análise empreendida pelos autores, que

as triagens e seleções se impõem para lidar com o fosso existente entre as necessidades de

grandes parcelas da população e o campo restrito dos benefícios sociais. Aqui, aparece a

busca dos fundamentos para explicar a necessidade da realização de triagens e seleções como

forma de acesso e condição de acesso aos benefícios sociais. Há a procura de apreensão da

prática profissional na sociedade capitalista, a partir do ponto de vista que interessa aos

trabalhadores. Pela boca e pelo pensamento dos autores, não fala um assistente funcionário

das organizações sociais, mas pesquisadores críticos que desejam fundar a prática profissional

em outras bases. Conhecer o que se esconde nas nossas atribuições e competências é entender

e reconhecer como o Serviço Social existe, o que se impõe como condição da decisão sobre

de que forma vale a pena realizar a profissão explicitando os compromissos e depois como

poderemos realizá-los.

Penso que, aos moldes da ética, sempre cabe perguntar que Serviço Social vale a pena

ter e de que jeito podemos e queremos ser assistentes sociais, diante de um mundo tão

desumanizado e cruel para com grande parte da humanidade.

Ainda tratando do Serviço Social no âmbito da Previdência Social, os autores

assinalam que, na distribuição de auxílios, a triagem econômica e social é uma das atividades

básicas do Serviço Social naquela instituição e nos apresentam outra faceta que confirma a

dificuldade do acesso aos serviços e, por isso, se coloca no horizonte profissional. Trata-se da

alternativa do encaminhamento como forma de satisfação daquela demanda trazida pelo

usuário que não é possível atender, e mesmo para lidar com aquelas em relação às quais não

se sabe o que fazer.

Encaminhar a população sem “cidadania social” às obras caridosas da comunidade, encaminhar os usuários cujos problemas não se enquadram nos programas do seguro a instituições semelhantes, possibilitar algum tipo de auxílio que, acompanhado e como base do aconselhamento moral, procure neutralizar o inconformismo (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 311; grifo em negrito meu).

Tendo em vista que, na ordem institucional, o atendimento às demandas da população

são parcializadas, segmentadas e subdividas em áreas de atuação, atender o indivíduo

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pressupõe recorrer ao encaminhamento, buscando satisfazer às necessidades apresentadas por

ele. Só que em cada organização há triagens, critérios de funcionamento e deveres a serem

cumpridos pelos demandantes de seus serviços. Embora seja a mesma população que recorre

aos diversos serviços sociais, com história e necessidades semelhantes, porque forjadas pelos

mesmos processos, na ordem institucional, geralmente, não se tem essa compreensão.

Então, afinal, para o demandante dos serviços, é uma história que se repete; para os

profissionais, aquelas histórias se constituem em “casos”, tratados a partir da premissa de

“cada caso é um caso”, pautado na visão de que cada indivíduo é único e, por esse motivo,

deve-se individualizar a compreensão e o atendimento. Se não se consegue nem lidar com o

que há de comum, de social nas situações, quanto mais difícil será cuidar das especificidades.

Então para que individualizar tanto o acesso?

Iamamoto e Carvalho (1985, p. 311), ao analisar o significado do tratamento dado ao

segurado da Previdência Social, fornecem elementos para responder a questão colocada.

O amortecer das contradições torna necessário, também, obscurecer a regularidade estatística dos casos, sua base de classe, procurando desvinculá-los das relações sociais de produção e do próprio seguro. A individualização do seguro, a negação dos casos gerais, a consideração da totalidade do problema, permite a partir do histórico familiar e da formação moral e social do usuário cliente do Serviço Social, um novo diagnóstico de sua situação carencial

No sentido de localizar as triagens e seleções socioeconômicas presentes nas políticas

sociais como forma e condição de acesso aos serviços sociais, é preciso também elucidar:

A institucionalização das atividades assistenciais a nível do Estado e a própria demanda de profissionais especializados para atuação nesse campo expressa, de um lado, a ampliação e intensificação das tensões sociais que acompanham o desenvolvimento social e a necessidade de mobilizar recursos no sentido de atenuá-las ou preveni-las, controlando-as segundo parâmetros de racionalidade e eficiência. De outro lado, expressa, também, o reconhecimento oficial das diferenças sociais crescentes e da situação de pobreza de parcelas expressivas da população. Paradoxalmente, porém, as medidas mobilizadas pelo Estado não são suficientes para alterar substancialmente as situações diagnosticadas à proporção que lhes cabe preservar os pilares da organização vigente na sociedade (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 112).

As medidas incorporadas são pertinentes para realizar outro objetivo que se dirige ao

contorno político dos “problemas sociais”, abafando, momentaneamente, as tensões e estabelecendo ou fortalecendo vínculos de dependência da população carente com o Estado através das instituições de cunho assistencial ou previdenciário. Na busca de contornar a desigualdade econômica, reforçando a “sensação” de uma participação mais efetiva do cidadão no poder e nos “benefícios sociais”, o que se

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obtém como resultado é a reprodução da desigualdade social e do poder segmentado de uma base de legitimamente popular (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 112).

A comprovação da carência, por sua vez, realizada pelo profissional mediante a

comprovação dos fatos apresentados pelos candidatos aos serviços sociais, através do

diagnóstico da situação, torna-se condição e forma de acesso aos serviços sociais. Mas, ao

final, não são critérios que especializam a demanda? Não são os critérios que restringem e

afunilam o acesso? Qual é a relação entre individualização e afunilamento do acesso?

Iamamoto e Carvalho respondem:

O Serviço Social atuará, então, no sentido de aplainar as arestas; individualizar os casos; propiciar alguma solução paliativa como satisfação às demandas; jogar para frente o problema insolúvel, se encarado em seu conjunto, em sua manifestação social, nos limites do modo de produção vigente. Funcionando a partir de plantões, na seleção, triagem e encaminhamentos, nos esclarecimentos e viabilização de acesso às instituições e programas, colocando-se como anteparo entre estes e a população-cliente, etc., parte substancial da atuação do Serviço Social apenas aflora as práticas materiais que justificam, teoricamente, a existência dessas instituições e programas (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 323; grifos das autoras em itálico, grifos meus em negrito).

Como fruto do rastreamento e da análise aqui apresentada na emergência e

institucionalização da profissão, nos EUA, na Europa ocidental e no Brasil, permito-me concluir

que a via de acesso aos serviços sociais foi e tem sido seletiva, antes mesmo da constituição da

profissão do assistente social, uma vez que dar acesso a todos —, ou seja, universalizar o

ingresso — seria e continua sendo ir contra a própria natureza da ordem capitalista.

O acesso ao atendimento dos serviços sociais, por conseguinte, desde o surgimento da

ordem burguesa, vem ocorrendo mediante a prova de recursos, isto é, após o demandante do

atendimento preencher os quesitos estabelecidos, depois de ficar comprovada sua necessidade

e se houver recursos disponíveis para atendê-lo, sendo que nesse processo seletivo de acesso,

os assistentes sociais tiveram papel de destaque nos primórdios da profissão.

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CAPÍTULO 3 — A SELEÇÃO SOCIOECONÔMICA, POLÍTICA, SOCIAL E

SERVIÇO SOCIAL

Após explicitar como a seleção socioeconômica integrou as propostas de proteção

social historicamente construídas e de que forma se incorporou ao Serviço Social como

atividade do assistente social, neste capítulo se analisa especificamente a maneira como a

seleção socioeconômica vincula-se à política social enquanto forma de enfrentamento da

questão social e provedora de instrumentos para a realização de mediações que legitimam a

desigualdade inerente à sociedade de classes. Para tanto, examina-se como tal seleção

contribui para realizar a inclusão e a exclusão das pessoas no acesso aos serviços e benefícios

sociais ao mesmo tempo e pelos mesmos meios. Em seguida, aborda-se a utilidade da

intervenção profissional no sentido de legitimar a seleção socioeconômica enquanto

instrumento da política social que realiza, pelo mesmo processo, o duplo movimento de

inclusão-exclusão aos serviços e benefícios sociais.

3.1. Natureza e utilidade da seleção socioeconômica no âmbito da política social

É fato amplamente reconhecido a vinculação do surgimento das políticas sociais à

constituição da sociedade burguesa, não desde seu início, mas

[...] quando tem-se o reconhecimento da questão social inerente às relações sociais nesse modo de produção (refere-se ao capitalista), vis-à-vis ao momento em que os trabalhadores assumem um papel político e até revolucionário. Tanto que existe certo consenso em torno do final do século XIX como período de criação das primeiras legislações e medidas de proteção social, com destaque para a Alemanha e a Inglaterra, após um intenso e polêmico debate entre liberais e reformadores sociais humanistas (BEHRING, 2007, p. 14).

Não se pode falar do Estado (e da sociedade) como fenômeno genérico e estático,

tornando-se indispensável qualificá-lo e situá-lo na história, pois, não obstante todos os tipos

de Estado se apoiem na ideia de poder, existem particularidades marcantes que os distinguem.

O Estado não é um fenômeno dado, a-histórico, neutro e pacífico, mas um conjunto de relações criado e recriado num processo histórico tenso e conflituoso em que grupos, classes, ou frações de classe se confrontam e se digladiam em defesa de seus

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interesses particulares. É por isso que o Estado é uma arena de conflitos e interesses (PEREIRA, 2008b, p. 26).

Aqui, referimo-nos ao Estado na época do capitalismo monopolista ou oligopolista,

configurando-se como elemento claramente interessado nos conflitos que envolvem a relação

entre capital e trabalho, e assumindo um papel regulador dessa relação que desejamos afirmar.

Nesse contexto, cabe explicitar que:

O Estado, como instância da política econômica do monopólio, é obrigado não só a assegurar continuamente a reprodução e a manutenção da força de trabalho, ocupada e excedente, mas é compelido (e o faz mediante os sistemas de previdência e segurança social, principalmente) a regular a sua pertinência a níveis determinados de consumo e a sua disponibilidade para a ocupação sazonal, bem como a instrumentalizar mecanismos gerais que garantam a sua mobilização e alocação em função das necessidades e projetos do monopólio (NETTO, 1996a, p. 23).

O Estado, na sociedade capitalista, é um Estado burguês. Mas, para se legitimar diante

da sociedade como um todo, necessita passar a ideia de que defende os interesses de todos e que

está acima das classes sociais. Nesse sentido, para se legitimar diante dos trabalhadores ou

daqueles que dependem do trabalho para viver, precisará incorporar algumas de suas demandas.

O Estado, como centro de exercício do poder político, é a via privilegiada através da qual as diversas frações das classes dominantes, em conjunturas históricas específicas, impõem seus interesses de classe ao conjunto da sociedade, como ilusório interesse geral. [...] No interior da classe dominante encontram-se presentes interesses divergentes entre suas frações, que lutam entre si pelo controle do poder e pela apropriação da maior parcela possível do excedente produzido sob a forma de lucro industrial e comercial, juros e renda da terra. O Estado supõe, pois, a aliança de segmentos sociais, cujos interesses são conflitantes, embora não antagônicos. Porém, se o poder de Estado exclui as classes dominadas, não pode desconsiderar totalmente as suas necessidades e interesses como condição mesma de sua legitimação (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 81-82).

O Estado que é burguês, para manter a hegemonia, necessita expressar os interesses

das partes (frações das classes dominantes) que representa, como se fossem do interesse de

todos, inclusive das classes dominadas. Nesse cenário, surgem as políticas sociais tidas como

um dos espaços de concretização das demandas da força de trabalho, visando apaziguar e

controlar tensões que potencialmente possam afetar o curso de desenvolvimento do projeto

das classes que se pretendem hegemônicas.

O Estado [...] ao buscar legitimação política através do jogo democrático, é permeável a demandas das classes subalternas, que podem fazer incidir nele seus interesses e suas reivindicações imediatas. [...] este processo é todo tensionado, não

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só pelas exigências da ordem monopólica, mas pelos conflitos que esta faz dimanar em toda a escala societária (NETTO, 1996a, p. 25).

Dentro dessa concepção, entendemos que a política social é constituída por um campo

de forças e que, para compreendê-la, é indispensável atentar para o movimento real e concreto

da conjuntura em pauta e para as forças sociais em jogo. É preciso levar em consideração a

correlação de forças existente entre o movimento do capital, que visa defender seus interesses,

e o movimento concreto do trabalho ou dos trabalhadores, que luta por melhores condições de

vida e trabalho.

A política social, através de seus programas, visa garantir fundamentalmente a

reprodução da força de trabalho e manter sob controle e tutela os excluídos do “pacto de

dominação”.66 Como resultantes da luta de classes, dependendo da correlação de forças

presentes no cenário social, em suas diversas conjunturas, tais programas poderão ser mais

ousados ou mais tímidos quanto ao atendimento das demandas colocadas. Quando a

correlação de forças é favorável aos trabalhadores, os recursos aumentam e, portanto, um

número maior de indivíduos será beneficiado; quando é desfavorável, alguns direitos já

conquistados passam a ser questionados. O atendimento às classes dominadas, como

consequência, deve ser absorvido pelo Estado desde que não afete o “pacto de dominação”,

sob o qual este se concretiza e sobre o qual se apoia na defesa dos interesses das frações

dominantes. Para manter sua legitimidade, no entanto, há necessidade também de atender as

demandas dos excluídos, incluindo-os como subordinados.

Tendo em conta que o desenvolvimento capitalista é complexo e não pode ser tomado

de forma mecânica, é importante destacar que “o bloco dominante não responde sempre com

concessões às pressões sociais, mas também com desarticulação, fragmentação, cooptação,

esvaziamento do bloco dominado e no horizonte da repressão que se faz presente implícita e

explicitamente” (FALEIROS, 1989, p. 126).

Face ao exposto, pode-se compreender claramente que a ampliação ou o enxugamento

das políticas sociais nas diversas conjunturas têm relação direta com a capacidade de pressão

e ameaça que a luta dos trabalhadores possa exercer sobre o projeto de dominação. Quanto

66 Aqui, “pacto de dominação” é utilizado como sinônimo de Estado, conforme Kowarick (1979). Faleiros (1980, p. 59-60) reforça esse entendimento, ao explicar que o Estado capitalista “não realiza a política dos capitalistas individualmente tomadas. Ele realiza os ‘interesses gerais do capital’, como uma instituição especial, independente dos capitais individuais. Isso o coloca numa situação contraditória, obrigando-o a realizar compromissos entre as distintas frações da burguesia (por exemplo, entre o capital financeiro e o industrial) entre as exigências do capital como um todo e as pressões dos trabalhadores e de outras forças sociais [...] O Estado capitalista é uma garantia de manutenção das condições gerais de reprodução do capital e da produção, isto é, da acumulação capitalista”.

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maior for a pressão, maior e melhor terá que ser a resposta dos grupos dominantes, pois seu

objetivo é manter a legitimidade do poder estabelecido (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985).

Em outras palavras, as medidas e os programas sociais só podem ser entendidos e

decifrados se forem situados no contexto da sociedade capitalista no âmbito do movimento

histórico das classes ou frações das classes sociais em presença.

É necessário compreender dinamicamente a relação entre Estado e o processo de acumulação do capital para poder visualizar o significado dos programas e medidas dos quais estamos tratando [...] A política social é uma gestão estatal da força de trabalho, articulando as pressões e movimentos sociais dos trabalhadores com as formas de reprodução exigidas pela valorização do capital e pela manutenção da ordem social (FALEIROS, 1980, p. 55-59).

Os programas de política social, articulando entes públicos e privados, procuram

também criar uma imagem de neutralidade do Estado e das organizações particulares que,

“imparcialmente”, estariam interessadas em abrir oportunidades a todos, visando o bem-estar

do conjunto da população. No discurso, pretenderiam, através dos seus programas, dar acesso

aos interessados nos serviços, fazendo justiça num mundo tão injusto ao criar para os

injustiçados, possibilidades de acesso (desde que estes atendam aos requisitos estabelecidos).

Porém, apesar do discurso dirigido a todos os interessados, a justificativa de que os

recursos são insuficientes67 para abarcar toda a demanda coloca em cena a seleção

socioeconômica, tornando-se condição para determinar a escolha dos que serão beneficiados e

dos que não o serão. A seleção implicará selecionar alguns e descartar outros. Ou melhor: a

seleção socioeconômica de acesso aos serviços sociais enquanto instrumento da política social

realizará o movimento de inclusão-exclusão ao mesmo tempo e pelo mesmo processo.

Assim procedendo, aqueles programas acabam por promover a exclusão de uma parte

da demanda de forma aceitável pela sociedade em geral, e realizam o principal objetivo da

seleção socioeconômica, que é o de institucionalização da desigualdade social — justificada

com base no sistema de meritocracia dos critérios para verificação e comprovação da

necessidade alegada pelo demandante do serviço ou benefício social.

Como forma de acesso diante da insuficiência de recursos a serem alocados para

atender a todos, a incidência de processos seletivos é tão significativa na nossa sociedade

injusta e desigual que estes acabam compondo o nosso cotidiano, como se fossem naturais.

Vejamos, entre tantos outros possíveis, dois exemplos. 67 Entenda-se que os poucos recursos podem ser de pessoal, de verba e de equipamento, entre outras possibilidades. São as faltas de recursos humanos, materiais e financeiros que impedem o acesso da população aos serviços que viriam para responder ou suprir necessidades.

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• Programas de distribuição de cestas básicas pelos governos e entidades

assistenciais são abertos a todos — desde que fiquem comprovadas a pobreza e as

necessidades dos beneficiados. Toma-se geralmente como parâmetro de análise o

nível da indigência, ou seja, aquela condição que não concede aos indivíduos

recursos nem para se reproduzirem biologicamente.

• Programas habitacionais destinados à aquisição da casa própria são abertos a

todos — mas é necessário que o candidato, de um lado, demonstre que é pobre e,

de outro, comprove que pode pagar a mensalidade estabelecida. A escolha dos

beneficiados pode ser, por exemplo, mediante sorteio, criando-se assim a ideia, aos

olhos da população, de que quem conseguiu uma unidade habitacional teve “sorte”

e, portanto, os outros concorrentes estavam com “azar”. Consequentemente, não é

colocada em questão a insuficiência de recursos destinados ao atendimento

habitacional que beneficia uns, enquanto uma parcela significativa da população

(com o mesmo perfil dos “sorteados”) continuará sem acesso à moradia.

Portanto, o fundamento do processo de seleção socioeconômica reside na necessidade

de “naturalização” das desigualdades sociais, inevitavelmente existentes na sociedade de

classes. Esse processo de dar acesso apenas a uma parcela dos demandantes existe —

repetimos — para que o Estado e as organizações sociais obtenham legitimação diante da

população em geral e, principalmente, dos segmentos excluídos.

Para Iamamoto e Carvalho (1985), a sociedade do capital supõe uma contradição

inevitável na sua continuidade: o discurso da igualdade e a realização da desigualdade.

[De um lado, tem-se] a afirmação da liberdade individual e da igualdade de direitos e deveres de todos os cidadãos, como condição de funcionamento pleno da economia de mercado. [...] Em polo oposto, tem-se a desigualdade inerente à organização da sociedade como unidade de classes sociais distintas e antagônicas assentadas em uma relação de poder e exploração (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 91).

Ou seja, o discurso jurídico, que consta na lei, é o dos direitos sociais que têm por

justificativa a cidadania, embora seu fundamento seja a da desigualdade de classes. Isso indica

a impossibilidade de haver no capitalismo serviços sociais universais e incondicionais,

reforçando a ideia de que, na prática, o que existe é o direito do indivíduo poder se candidatar

ao acesso. A seletividade das políticas sociais espelha a sua natureza de inclusão-exclusão. O

que se pretende com a realização da seleção socioeconômica, como forma e condição de

acesso, é tornar o não acesso de alguns aceitável por eles mesmos, diminuindo-se assim as

possibilidades de questionamento da própria seleção e da desigualdade que carrega. Da

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mesma forma, ficará desfocado o fato que deu origem à seletividade, ao se colocar em foco a

alegada falta de recursos para atender a todos.

Demo (1997) enfatiza esse processo de inclusão-exclusão:

A pobreza é inerente ao capitalismo no plano estrutural porque não poderia colocar-se fora da estrutura de desigualdade e no plano político porque o mercado a reproduz como dinâmica própria. Significa também dizer que não é viável acabar com a pobreza no capitalismo — já que dela em grande parte vive — bem como é possível confrontar-se com ela, pois é fenômeno histórico, e nisto “mexível” (DEMO, 1997, p. 48-49).

Esses argumentos corroboram que a exclusão e a pobreza não podem ser tratadas

separadamente dos processos que as produzem, sob pena de se colocar nos indivíduos o peso

e a culpa de sua situação, ao não entendê-la como desigualdade social, produto da exploração,

da dominação de classe. Por outro lado, por ser produto histórico, pode ser transformada na e

pela luta social. Nesse quadro, cumpre entender que não é possível acabar com a pobreza

somente com medidas de políticas sociais, sem mexer no processo que produz a pobreza e os

pobres que a carregam como marca e jeito de viver. Na sociedade do capital, o mesmo

processo que produz a pobreza, pelos mesmos meios também produz a riqueza.

A seletividade das políticas sociais reitera e materializa esse embasamento, expondo

claramente essa contradição, especialmente quando o discurso de muitas dessas políticas

aparece como universalista. Mas a simples existência da necessidade da seletividade (acesso

mediante comprovação) acaba por reescrever esse discurso na prática. O que era um direito

universal, finalmente, se restringirá ao direito de se inscrever ao acesso, provando que

preenche os requisitos, os critérios estabelecidos. Aquilo que era um direito do cidadão, na

prática, muitas vezes, só se realizará depois que ficar comprovado que a família não pode

arcar com o custo do bem solicitado, através do means test.

Essa natureza excludente dos serviços sociais, inerente às políticas sociais — das quais

a seleção socioeconômica, como já apontamos, tornou-se instrumento básico — mostra-se

então saturada de mediações que não se revelam na imediaticidade da prática. Nessas

circunstâncias, impõe-se um árduo trabalho de desvendamento, para perceber o que se

esconde por e através da seleção socioeconômica.

A própria forma como se desenvolve a seleção, ressaltando o mérito como fator de

acesso aos serviços, já carrega um poder de convencimento. É preciso ter claro também que

esse acesso nem sempre é considerado pela população como direito. Na sociedade brasileira,

seu entendimento como favor é historicamente consagrado, dando habitualmente margem ao

uso eleitoreiro de sua oferta. Daí a ocorrência de pressões políticas de várias ordens, ligadas

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aos processos seletivos, atravessando-os mediante demandas particularistas advindas de

políticos profissionais dos vários poderes da nação e de outras personalidades, em benefício

de seus apadrinhados, com desrespeito aos critérios seletivos estabelecidos para todos.

É bem conhecido como os bens públicos são tratados e apropriados por

administradores públicos em geral, como se fossem privados. As escolas, as creches, os

centros esportivos, dentre outros equipamentos, são quase sempre gerenciados como se seus

diretores fossem seus donos, uma vez que não se veem na obrigação de prestar contas da sua

gestão aos usuários dos serviços. Entender os bens públicos enquanto tal pressupõe

participação direta da população na gestão dos equipamentos sociais.

Ainda que Weber tenha formulado, em outro contexto, sua concepção de “dominação

patrimonialista”, ressaltando a apropriação do público, de forma privada, pelo governante,

podemos identificar sua presença no Brasil atual. Referindo-se ao País, Schwartzman (1988,

p. 59-60) fala num “neopatrimonialismo”, ou patrimonialismo moderno dos Estados que se

formaram à margem da revolução burguesa, que “não é simplesmente uma forma de

sobrevivência de estruturas tradicionais em sociedades contemporâneas, mas uma forma

bastante atual de dominação política por um ‘estrato social sem propriedades e que não tem

honra e mérito próprio’, ou seja, pela burocracia e a chamada ‘classe política’”. No Brasil, é

muito comum o uso da máquina pública, por parte de políticos em geral, incluindo dentre

eles, prefeitos, governadores, deputados, etc., para promover favores pessoais “aos

apadrinhados” ou aos “cabos eleitorais”, à margem dos critérios estabelecidos para o acesso

aos serviços.

Essa forma de lidar com interesses públicos, como se fossem privados, também

comparece nas seleções em geral e em especial nas de corte socioeconômico, sob a forma de

pressão através de “cartinhas” e “telefonemas” para que o profissional dê um “jeitinho” de

“encaixar” no atendimento os seus eleitos. Isso tem contribuído para criar uma imagem

estigmatizada das seleções socioeconômicas, principalmente as que ocorrem nos plantões

sociais, como serviço desqualificado na intervenção profissional — portanto, desprezível.

Note-se que a população recorre a esses favores exatamente porque reconhece a seletividade e

a dificuldade de acesso.

Ainda uma vez, observa-se que os disfarces para a falta de acesso aos serviços sociais

aparecem como decorrentes da “politicagem” no processo, omitindo-se a falta de recursos

disponíveis para atender a todos interessados e necessitados.

Ninguém ousa questionar, pois “sempre foi assim e assim continuará sendo”. São

poucos na profissão do assistente social os que, por livre escolha, se interessam de fato por

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realizar a seleção socioeconômica adequadamente. Desse modo, a ingerência política continua

legitimada pelo silêncio do funcionário, que se sobrepõe ao do profissional.

Se a seleção socioeconômica pauta-se pela alegação institucional de que os recursos

são poucos ou que não há recursos para atender a todos, é preciso agora perguntar: de onde

vêm os recursos destinados aos serviços sociais?

A fonte dos recursos destinados aos serviços sociais, geridos direta ou indiretamente

pelo Estado, não são doações. Esses recursos são parte da riqueza socialmente produzida, cuja

distribuição poderia ser feita de outra forma, ou seja, mais justa e equitativa.

A riqueza social existente, fruto do trabalho humano, é redistribuída entre os diversos grupos sociais sob a forma de rendimentos distintos: o salário da classe trabalhadora, a renda daqueles que detêm a propriedade da terra, o lucro em suas distintas modalidades (industrial, comercial) e os juros daqueles que detêm o capital. Parte da riqueza socialmente gerada é canalizada para o Estado, principalmente sob a forma de impostos e taxas pagos por toda a população. Assim, parte do valor criado pela classe trabalhadora e apropriado pelo Estado e pelas classes dominantes é redistribuído à população sob a forma de serviços, entre os quais os serviços assistenciais, previdenciários ou “sociais”, no sentido amplo. [...] tais serviços, públicos ou privados, nada mais são do que a devolução à classe trabalhadora de parcela mínima do produto por ela criado, mas não apropriado, sob a forma de outra roupagem: a de serviços ou benefícios sociais (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 92).

Essa explicação é reforçada por Behring (2010). Para esta autora, o fundo público

se forma a partir de uma punção compulsória — na forma de impostos, contribuições e taxas — da mais-valia socialmente produzida, ou seja, é parte do trabalho excedente que se metamorfoseou em lucro, juro ou renda da terra e que é apropriado pelo Estado para o desempenho de múltiplas funções de reprodução do capital e da força de trabalho (BEHRING, 2010, p. 31).

Os recursos destinados à realização das políticas sociais expressam, portanto, o trato

que uma sociedade dá à riqueza socialmente produzida. Como já ficou dito, na sociedade

capitalista, a alocação de recursos tem a ver com as correlações de forças existentes e

presentes nas diversas conjunturas, sendo que a ampliação dos recursos tem a ver mais com as

conquistas obtidas pelos trabalhadores por meio de suas lutas e menos com a realização de

justiça e igualdade; não obstante, no discurso dos governantes das organizações sociais e dos

governos que ocupam o Estado os serviços sociais são apresentados como se fossem doações

e atos de humanidade. Em face desse entendimento, podemos considerar que a insuficiência

de recursos para o atendimento de toda a população tem a ver mais com a distribuição da

riqueza de uma sociedade e menos com a pobreza de uma nação, ou seja, a inexistência real

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desses recursos. O Brasil não é um país pobre, possui recursos e riquezas em abundância que

se encontram concentradas nas mãos dos que representam o capital.

É importante considerar também que os serviços sociais não são concebidos e

pensados da mesma forma por todos os segmentos sociais. Para os empresários, os recursos

destinados aos benefícios sociais são investimentos que visam ao aumento da produtividade

de seus empregados e/ou ao marketing; são recursos que podem ser descontados do

pagamento do imposto de renda e, por isso, significam a remuneração fiscal paga pela

sociedade em geral. Para os trabalhadores, no entanto, os serviços sociais sempre significam

ganhos, benefícios, acesso, melhoria de condições de vida. Nesse sentido, aquilo que parecia

doação, de fato, é dinheiro público usado de forma privada para se apresentar de maneira

humana e solidária, sob a forma de doações.

Entretanto, como observa Demo (1997, p. 10), “[...] toda política social no capitalismo

consegue, no máximo, combater a pobreza nos limites do mercado capitalista, donde retira

sua tendência recorrente de tornar-se mecanismo de controle e desmobilização social”.

Assim, é importante destacar que as políticas sociais configuram-se como novo modo

de enfrentamento da questão social imposta pelo desenvolvimento e pela ampliação do

capitalismo industrial e da expansão urbana. A intervenção estatal sobre a questão social dá-se

através da política social, que se expressa nas particularidades das políticas sociais

(setorizadas), e é dessa forma que a questão social é fragmentada e parcializada. Os

programas dessas políticas setorizadas passam a atuar nos resíduos, consequências e sequelas

da questão social. “E não pode ser de outro modo: tomar a ‘questão social’ como

problemática e configuradora de uma totalidade processual específica é remetê-la

concretamente à relação capital/trabalho o que significa, liminarmente, colocar em xeque a

ordem burguesa” (NETTO, 1996a, p. 28).

Recortar a questão social em problemáticas particulares, em problemas sociais, não é

mecanismo qualquer de que o Estado burguês se utiliza através dos organismos sociais que a

materializam. O sentido dessa fragmentação é polarizar para permitir tratar das consequências

e transfigurar os ditos “problemas sociais” em problemas pessoais, entendidos como se

fossem, exclusivamente, de foro íntimo e privado — portanto, cada um torna-se responsável

único pelo acesso, dependendo do seu mérito. Em decorrência, entendemos que a

competência profissional pressupõe entender os processos econômicos e políticos envolvidos

e encobertos nas ações seletivas, assim como entender que as seleções e triagens têm profunda

relação com escolhas e valores. É essencial revelar e considerar, na prática dessas escolhas, os

compromissos ético-políticos de quem as realiza.

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Falar do capitalismo na era da globalização neoliberal é falar do desemprego

estrutural, acompanhado da diminuição das funções do Estado, que passa a delegar a

execução das políticas sociais, mediante terceirizações do atendimento, assim como da

redução dos gastos públicos, ao mesmo tempo em que aumenta a demanda pelas políticas

sociais. Nesse quadro traçado em breves linhas, podemos constatar que a tendência é a de

aumentar a seletividade das políticas sociais, embora, no Brasil, paradoxalmente, o discurso

seja o da universalização do atendimento desde a Constituição de 1988 — mas a prática da

focalização e da privatização do atendimento vem se intensificando.

Na conjuntura atual — tendo em vista a correlação de forças que não é favorável ao

trabalho, com o enfraquecimento dos sindicatos e da organização da sociedade civil em geral,

depois de mais de vinte anos de neoliberalismo acompanhado do crescente e preocupante

individualismo —, além de não haver novas conquistas, ocorreram perdas de direitos

conquistados anteriormente conquistados como fruto de muita luta dos trabalhadores

organizados. Vivemos, então, diante de muitos paradoxos, um dos quais é o da população

que, ao ver sua vida empobrecida pela conjuntura de desemprego e de salários muito baixos,

tem que recorrer com maior frequência aos programas sociais e assistenciais e aos

profissionais que os executam. Num momento como este, a explicitação do significado das

seleções socioeconômicas é muito necessária, tendo em vista que, na sua operação, a

tendência é a de aumentar a seletividade, ou seja, os critérios de operação.

3.2. Modalidades das seleções socioeconômicas e critérios

Do que conseguimos apreender até o momento acerca das formas ou modalidades de

acesso, percebemos duas modalidades básicas de acesso, a partir da forma como os recursos

encontram-se alocados no serviço ou benefício social.

A primeira modalidade refere-se às situações nas quais há um montante de verba ou

recursos predeterminados sujeitos a alterações nas diversas conjunturas sociais e políticas que

se colocam. Não estão garantidos na lei nem constituem direitos conquistados de fato;

mostram-se, portanto, vulneráveis às diversas conjunturas sociais e políticas e às mudanças de

governo. São programas que podem ter muito êxito em um governo, mas, com a

descontinuidade administrativa, serão desativados ou morrem aos poucos, porque não haverá

destinação orçamentária para a sua realização. O serviço é prestado diretamente pelo poder

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público ou mediante convênios com entidades sociais; também pode se constituir em

atendimentos realizados com recursos não públicos.

Neste caso, existem recursos que serão administrados ou gerenciados por profissionais.

O acesso dos indivíduos ficará vulnerável e dependente do número de candidatos “inscritos”. Se

dois candidatos apresentarem as mesmas condições e houver recursos para atender somente um,

serão necessários critérios de desempate, que poderão estar claramente definidos ou não.

Quando os critérios são claramente definidos, adquirem mais transparência e podem ser objeto

de controle da população. Se os critérios ficarem em aberto, geralmente, cabe ao profissional,

por meio de seus estudos socioeconômicos, de caráter avaliativo, escolher caso a caso os

candidatos que terão acesso ao benefício. Programas assistenciais de cesta básica, vales

transporte, empréstimos a funcionários em empresas, bolsas de estudos em escolas particulares

no Brasil, são alguns dentre os muitos exemplos possíveis.

Na segunda modalidade, a diferença do acesso é que os critérios de acesso são

formulados sob a forma de leis e, portanto, se configuram como direitos. Todos os que se

enquadrem no perfil serão atendidos. Não é o montante de recursos que delineia o acesso, mas,

sim, a circunstância de o indivíduo preencher os requisitos legalmente delineados. Nesse caso, o

acesso é mais universalizado: todas as pessoas que apresentarem comprovadamente o perfil

traçado serão atendidas. A seletividade reside no fato de que o indivíduo deve solicitar esse

acesso e participar da triagem para averiguação dos quesitos estabelecidos na lei. Ou seja: o

acesso é fundado no direito juridicamente reclamável. No Brasil, esse é o caso do Benefício de

Prestação Continuada (BPC); em Portugal, do Rendimento Social de Inserção (RSI).

Há políticas sociais em que as duas modalidades se apresentam entrelaçadas. É o caso

das políticas afirmativas, que são programas destinados ao atendimento de segmentos

específicos da população com determinados traços considerados discriminatórios e que

dificultavam o acesso daqueles segmentos. A seleção de acesso é realizada a partir da

discriminação positiva e se faz por critérios definidores da população que se pretende atender.

Esse tipo de política teve origem na Índia, cuja população é constituída por castas, para dar

acesso à política social a segmentos populacionais segregados por pertencerem às castas

consideradas inferiores. Essa política foi muito utilizada nos EUA para lidar com a

segregação da população negra daquele país.

A política afirmativa vem acompanhada da ideia de defesa da equidade. Entretanto,

convém enfatizar que esse critério ou princípio comporta diversos entendimentos.

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Na visão dos adeptos da focalização ou de um universalismo segmentado, considera-se que a atuação pública deva ser seletiva pelas seguintes principais razões: aplicam-se com mais eficácia e moralidade critérios redistributivos e igualitaristas; enfrentam-se situações de pobreza e de exclusão de forma mais orientada (sem perder o foco) e efetiva; gasta-se menos; e, tecnicamente, atua-se de forma mais eficaz na gerência de programas e projetos a serem desenvolvidos (PEREIRA; STEIN, 2010, p. 113).

Embora estas autoras não se refiram diretamente, no texto em foco, à política

afirmativa, as explicações por elas apresentadas a seguir são pertinentes à análise que

empreendemos nesse momento:

[...] na implantação de políticas públicas, a seletividade [deve] ser observada com o propósito de assegurar o seu acesso por grupos sociais previamente considerados meritórios. Estes, por seu turno, devem dispor de uma “vantagem comparativa” ou “discriminação positiva” em relação a outros grupos em melhores situações socioeconômicas e capazes de adquirir serviços por conta própria. Ou seja, nessa perspectiva, a seletividade — que não é outra coisa senão a focalização na pobreza, ou a seletividade dos gastos sociais — significa garantir que os subsídios públicos cheguem aos cidadãos mais necessitados, sem que os grupos menos necessitados deles se apropriem “indevidamente” (MORENO, 2000, apud PEREIRA; STEIN, 2010, p. 113).

Entre nós, essa política se manifesta através da reserva de vagas para candidatos

portadores de deficiência em concursos públicos, afirmada no § 2º do art. 5º da Lei nº

8.112/90 e no § 1º do art. 37 do Decreto nº 3.298/99, que devem ser interpretados em

conformidade com o disposto no inciso VIII do art. 37 da Constituição Federal de 1988. Trata-

se de política social que expressa um direito conquistado.

No dia 26 de abril de 2012, em meio a muita polêmica (da qual não trataremos aqui), o

Superior Tribunal Federal considerou constitucional a reserva de vagas nas instituições

federais de ensino superior para afrodescendentes e indígenas, respeitando-se a autonomia de

cada universidade para adotar ou não o sistema de cotas. As cotas podem ser raciais (para

afrodescendentes e índios) e sociais (para alunos provenientes de escolas públicas e para

deficientes físicos); pode haver uma união dos dois modelos. Geralmente, para poder entrar

nesta cota, basta que o estudante se autodeclare negro. A autodeclaração como critério e o

sistema de cotas para negros tem sido considerados conquistas do movimento de negros

organizados. No entanto, quando há um número de vagas previamente definido: pode haver

dois candidatos que apresentam a mesma condição, e deverá haver desempate entre eles.

Em algumas políticas afirmativas, além do traço étnico-racial, poderá haver uma

avaliação socioeconômica que servirá de referência para a escolha dos mais pobres.

O denominado “sistema de cotas” configura-se, de fato, como um critério básico de

acesso; não significa que todos os negros inscritos terão acesso, mas que há uma cota para

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atendê-los. Hoje, mais de 40% das universidades federais do País têm cotas para negros e

índios. Esse sistema não é restrito às universidades públicas. Na Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo (PUC-SP), por exemplo, existe o Programa Pindorama desde 2001 que

atende indígenas de várias etnias mediante bolsa de estudos para que possam ter acesso aos

diversos cursos universitários da PUC-SP.

O sistema de cotas representa, portanto, o critério indicador de acesso e sofre dois

níveis de seletividade. Primeiramente, do total de vagas é determinada uma cota para os

segmentos visados. Depois, os candidatos devem responder aos requisitos estabelecidos e

serão pontuados, para ao final sair a lista dos selecionados. Este segundo momento pressupõe

por parte dos selecionadores ou de quem estabelece aquela política a definição acerca do que

se entenderá por ser afrodescendente ou o que é ser indígena, para se estabelecerem os

critérios para a operação do processo seletivo e, em seguida, como cada candidato será

considerado em relação aos demais. Ou seja, é pressuposto que haja a qualificação substantiva

de afrodescendência e questão indígena68 para depois se poder tratá-la.

Consegui apreender que há também a forma do que se poderia denominar

“seletividade indireta”. Trata-se de situações em que há afirmação do direito universal de

acesso aos demandantes, porém estes não conseguem ter resposta à sua necessidade; são

situações em que faltam recursos para que o atendimento se efetive. A título de exemplo,

podemos citar a realização de exames em equipamentos da saúde pública: o indivíduo tem a

prescrição para realizar determinado exame, mas os aparelhos são poucos, ou estão

quebrados, ou o médico que realiza o exame está de férias, ou um medicamento demorou

porque uma licitação não foi concluída, ou a lista é grande e o paciente foi agendado para ser

atendido após um prazo de seis meses. Diante desse quadro, pode-se perguntar: por que não se

compram mais aparelhos, se contratam mais funcionários, etc.? É para justificar a

privatização, reforçando o diagnóstico de ineficiência do serviço público? Entretanto, se o

atendimento fosse de fato universal, modos haveria para melhorar o atendimento.

Em face da análise que realizamos nesta seção acerca da natureza e da utilidade da

seleção socioeconômica no âmbito da política social, podemos concluir que a seletividade é

parte constitutiva desta política. Portanto, está presente em todas as políticas sociais, com suas

respectivas peculiaridades, ou mesmo adquirindo peculiaridades regionais ou nacionais,

segundo as forças sociais que se defrontam e estão em disputa nas diversas conjunturas.

68 Em relação aos indígenas é preciso entender todas as questões advindas do desaldeamento, pois para a Funai, não são considerados indígenas os que vivem fora de suas aldeias.

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O término ou a extinção da seletividade não dependerá, por conseguinte, da atuação de

uma ou de várias profissões. Mas qualificar sua realização de forma consciente e crítica,

entendendo o que nela se esconde, poderá nos indicar novos ou outros caminhos a seguir. É

evidente, pelo exposto, que, para realizar ou se inserir em processos seletivos, não basta o

domínio de teorias de pequeno alcance ou de instrumentos técnicos desvinculados da teoria,

da ética e da política.

3.3. A utilidade da ação profissional do assistente social na seleção socioeconômica das

organizações sociais

Inicialmente, podemos vê-la como um instrumento utilizado pelas organizações

sociais para distinguir os perfis dos candidatos interessados em usufruir dos serviços que

oferecem, com o objetivo de selecionar os que têm as características desejadas para ser

aceitos. Isto certamente ocorre porque há superioridade da demanda em relação à oferta, em

face da insuficiência de recursos disponibilizados para aquele serviço social específico.69

Essas organizações sociais, responsáveis por operar as políticas sociais, ao dar

materialidade a essa seleção, necessitam delegar a agentes profissionais sua decisão sobre os

selecionados. Esta é feita, na maior parte das vezes, de acordo com critérios e normas

técnicas, determinados antecipadamente. Há eventualmente situações em que o

estabelecimento desses critérios é transferido totalmente ao próprio profissional, o que

significa a completa delegação do processo a este profissional, para que tome livremente

decisões em seu nome.

A competência exigida do profissional no processo de seleção socioeconômica consiste

em saber realizar um estudo comprobatório, avaliativo e comparativo do conjunto dos

candidatos, para ajuizar o mérito de cada um, em quesitos estabelecidos nas normas e critérios

já mencionados, condição essencial para o acesso ao atendimento por eles demandado. O

profissional utiliza-se, para tanto, de procedimentos técnica e cientificamente elaborados.

Por certo, é desnecessário lembrar que a população-alvo do processo de seleção

pertence aos estratos de baixa renda, trabalhadores que vivem da venda de sua força de

trabalho, muitos dependentes do mercado informal, desempregados, idosos ou impedidos de

trabalhar por motivos de saúde e outros. São obrigados a solicitar assistência do sistema de

69 Serviço social ou serviços sociais, aqui entendidos como os recursos disponibilizados pela política social que são materializados pelas organizações sociais.

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proteção social exatamente pela impossibilidade de garantir para si recursos suficientes para

viver sua vida.

São, portanto, os segmentos empobrecidos da classe trabalhadora que a seleção

socioeconômica atinge. Ninguém imagina que os ricos, os detentores do capital, participem

desses processos de seleção.70

Em sua operação concreta, a seleção socioeconômica tratará de estudar e avaliar a

presença ou a ausência de disponibilidade de recursos sociais, bens materiais e financeiros

para o indivíduo e sua família, essenciais para o atendimento das suas necessidades e da

realização de suas expectativas. Utilizará, para tanto, estudos, questionários e cadastros, entre

outros instrumentos. Neste sentido, é preciso entender, com Yazbek (2001, p. 34), citando

Martins (1991), que “a pobreza como fenômeno multidimensional, [...] é categoria política

que implica em carências nos planos espiritual, de direitos, das possibilidades e esperanças”.

Todo o processo de seleção desenvolvido pelo assistente social terá, ao final, como

produto do levantamento das condições financeiras e sociais dos candidatos, um retrato de sua

situação, de modo a permitir a comparação entre eles. Permitirá quantificá-los e qualificá-los,

revelando os que reúnem maiores méritos em face ao perfil traçado e desejado pelas

organizações sociais, tomado como base na escolha dos aceitos, dentro da população já

considerada elegível mediante critérios fixados anteriormente.

A ação do assistente social na realização de triagens ou seleções socioeconômicas,

como formas de acesso aos serviços sociais, tem a finalidade de fornecer credibilidade e

legitimidade ao processo diante dos candidatos e à população em geral, uma vez que estão

sendo realizadas por técnico com competência científica, preparado para realizar tais tarefas.

O principal efeito de legitimação, porém, não vem do reconhecimento do público

atendido — composto majoritariamente por pobres e iletrados — quanto ao caráter científico

emprestado à seletividade pelo seu processamento institucional. Tem essa parte importância

por eles acharem que, permeado de conferências de dados e controles, o processo é sério,

justo e deve ser respeitado. Mas tal legitimação vem, principalmente, do fato de terem sido

escutados e considerados e por terem conseguido algum benefício.

70 Considero como situação de exceção a presença de pessoas, principalmente jovens, que estão acima do nível de pobreza, competindo por vagas nas universidades públicas e privadas, dentro da atual política de cotas. Este tipo de política social, conhecida como de “ações afirmativas”, de caráter focalizado, procura exatamente diminuir o efeito da disputa desigual, pela ocupação de vagas na universidade brasileira por jovens que estudaram em boas escolas privadas em detrimento dos oriundos da escola pública. Origina-se, entre outras motivações, da comprovação de que as vagas existentes nas universidades públicas estão ocupadas, principalmente nos cursos de maior procura, pelos segmentos mais abastados da população.

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Vasconcelos (2003, p. 416) apreende com sensibilidade essa questão, ao dizer: “É o

médico que diagnostica e receita, mas é junto ao assistente social que o usuário depara-se com a

falta do medicamento, da alimentação especial e/ou necessária e das informações indispensáveis.”

Nas organizações sociais, o assistente social, através das atividades que realiza, faz a

mediação entre instituição e clientela, representando diante desta população a própria

instituição, tornando-se necessário analisar a complexidade que envolve essa relação.

Para o usuário, os serviços sociais sempre trazem benefícios, ganhos, melhoria de

determinadas condições vividas; para os contratantes do trabalho do assistente social, quando

se trata de empresários, esses mesmos serviços são tidos como investimentos na

produtividade e instrumentos de controle. O significado dos serviços sociais, portanto, não

tem o mesmo sentido para o trabalhador que recebe o benefício e para o empresário. O

trabalho profissional carrega essa contradição.

Para que as organizações e suas ações sejam reconhecidas e legitimadas pela

população em geral e, em especial, por aquela que usa ou deseja seus serviços, é necessário

que apareçam como detentoras de seriedade e de justiça, ao se apresentar através do discurso

humanista e humanizador, selecionando, entre os candidatos, os que serão atendidos.

Neste processo de autodissimulação e dissimulação das contradições, as instituições se apresentam discursivamente, com qualificações tidas como ideologicamente superiores: sua capacidade produtiva (padrão de produtividade), competência técnica (racionalização, especialização, etc.); unidade e coesão internas (homogeneidade de objetivos e de prática); neutralidade (bem comum, técnica em si, etc.); e normalidade/moralidade (a ética de uso de que ela própria faz internamente e na relação com a clientela externa) (SANTOS, 1980, p. 118).

As organizações que corporificam as medidas de política social adotam um discurso

estratégico para legitimar e reforçar a ideia de que os serviços sociais visam consertar

eventuais desatenções e descasos, ao se apresentar como interessadas e sensíveis quanto aos

problemas vividos pelos necessitados. Esse discurso, porém,

é rebatido pelo cotidiano do trabalhador, no qual o caráter desumano da organização social, mais além das propagandas político-ideológicas, se expressa na miséria de seu dia a dia e no trabalho alienado que só escraviza, mortifica, parecendo-lhe algo estranho, que só lhe pertence enquanto sofrimento e desgaste pessoal (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 113).

As articulações realizadas pelas organizações para garantir sua hegemonia não

aparecem claramente no nível do aparente. É o que Luz (1979, p. 31) defende, ao afirmar:

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Trata-se de ver as instituições como conjunto articulado, como ligação vital entre saberes e práticas com efeitos fundamentalmente políticos, envolvendo uma estratégia e luta não necessariamente aberta entre grupos e classes sociais constitutivas destas instituições em um bloco histórico.

Os organismos institucionais são concebidos como espaços em que se dão a produção e a

reprodução das relações sociais, uma vez que é neles que acontecem as mediações das relações

entre indivíduo e sociedade. Nenhuma relação social ocorre fora desses espaços. As organizações

constituem-se no chão, no espaço-tempo miúdo da reprodução social que se opera na

cotidianidade. Nos espaços em que se materializam as políticas sociais, ocorre a preocupação de

vender — à população em geral e aos usuários em particular — a imagem de que sua intenção é

atender as necessidades da população através dos “benefícios” que concede. Aqueles organismos

garantem assim seu consentimento e reconhecimento. A intenção é fazer com que as normas, os

critérios e os procedimentos sejam transmitidos e percebidos pelos usuários como necessários,

transformando seu caráter impositivo em algo aceito voluntariamente.

As instituições, embora aparentemente se apresentem como organismos autônomos,

estruturados em torno de normas e objetivos manifestos, são, de fato, organizações específicas

de política social e centros de micropoder. São transversais a toda a sociedade, aparecendo

como mecanismos reguladores das crises do avanço capitalista em todos os níveis (FALEIROS,

1985). Essa forma de ação controladora passa pela estratégia de esconder a ideologia presente

nas suas operações, simulando que agir cientificamente é agir com neutralidade e declarando

que se faz o melhor que se pode no sentido de garantir o atendimento a todos os usuários, com

imparcialidade e justiça.

Enquanto organizações que envolvem funcionários, normas e regras, recursos e poderes específicos, saber e técnicas particulares, colocam-se aos olhos da clientela e do público como organismos sociais dotados de vida própria com um sistema de funcionamento automatizado e, portanto, em certa medida, independentes e neutras (SANTOS, 1980, p. 118).

Esse pensamento é reforçado por Iamamoto e Carvalho (1985, p. 114-115):

Importa que as diretrizes institucionais sejam transmitidas como necessárias e válidas, tanto para o “cliente”, como para a garantia de eficiência dos serviços, transformando o caráter impositivo da normatização em algo internalizado e aceito voluntariamente por aqueles a quem se dirige e aos quais não foi dada a oportunidade de opinar.

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Quase sempre, na hora da execução dos programas sociais, os demandantes dos serviços

sociais, assim como os profissionais, deparam-se com o fato de que sempre falta algum tipo de

recurso para que o atendimento possa se dar em sua plenitude: ora faltam funcionários para operar

o serviço, ora a verba não chegou; o aparelho do exame está quebrado ou a sala de cirurgia está

interditada devido à existência de infiltrações; ou ainda está em processo de licitação aquele

produto exigido pelo atendimento — para falar apenas de alguns exemplos possíveis.

O discurso que dificulta o acesso ao atendimento contribui, ao final, para passar à

população e aos profissionais a ilusão de que, quando tudo funcionar, todos poderão ser

atendidos. As próprias dificuldades, afinal, contribuem para disfarçar que nem todos serão

atendidos de fato. Ou melhor, mascaram que, no fundo, está se procedendo a uma restrição de

acesso, com o seu protelamento constante. No quadro apresentado com tais traços, a

permanente escassez de recursos humanos, materiais e financeiros para o atendimento de toda

a demanda aparece, nas instituições, como elemento de dissimulação, pois serve para

justificar as deficiências de atendimento, mediante a ilusão de que, com os recursos que estão

em falta “no momento”, não é possível atender a todos, o que dá à população a ilusão de que,

em algum momento do futuro, os recursos chegarão para atender a todos.

Para atender a todos, entretanto, seria necessário negar a natureza do próprio

capitalismo, que se manifesta no jeito de ser dos serviços sociais. A seleção

socioeconômica como condição e forma de acesso, por mais bem qualificada que seja a

sua realização, não conseguirá reverter a incapacidade institucional de atender a todos. Na

verdade, é da sua natureza constituir-se em instrumento privilegiado de legitimação da

desigualdade social, embora possa parecer instrumento destacado para o acesso e a

realização da justiça social e humanização da pobreza.

Humanizar a pobreza encerra a ideia de torná-la mais suportável. Mas o fato de

querer amenizá-la é diverso de querer exterminá-la de fato, enquanto desumanização e

desigualdade social. Entretanto, reconhecendo o modo de ser das organizações sociais e

da seleção socioeconômica, o profissional tem a possibilidade de criar outras posturas

estratégicas para o trabalho que realiza junto à população para reforçar a afirmação de

seus interesses e direitos.

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3.4. O significado da participação do assistente social na seleção socioeconômica para

análise do campo profissional do Serviço Social

Na sociedade liberal e competitiva em que vivemos, faz parte do nosso cotidiano

passar por inúmeros processos nos quais temos que demonstrar que somos “melhores” ou

“piores” que os outros e, consequentemente, detentores de “maiores” ou “menores” méritos.

Assim como faz parte do nosso cotidiano nos deparar com um exército de homens e mulheres

que, sem encontrar trabalho e sem acesso aos serviços básicos, necessitando de auxílio para

sobreviver, lutam para conseguir o pão, a consulta médica, o meio de subsistência; para tanto,

têm, entretanto, de provar todo dia que merecem ser atendidos por deter méritos de

necessidade e pobreza suficientes para obtê-los.

Para além da imediaticidade, o que se apresentava e continua a se apresentar, como

questão central a ser respondida, é: que fazer com tanta necessidade, com tamanha demanda

exposta, se os recursos disponíveis não são suficientes para atender a todos?

O fato de não haver recursos disponíveis para atender a todos é certamente tema do

âmbito sócio-político-histórico. Envolve, nada mais, nada menos, que o equacionamento de

como se dá a distribuição da riqueza socialmente produzida em uma sociedade.

Na passagem da questão de âmbito sócio-político para outra, a de âmbito instrumental do

“tratamento técnico e científico”, ocorre a institucionalização da desigualdade social, na medida

em que a seleção socioeconômica é colocada como instrumento que permite operar a inclusão-

exclusão de acesso aos serviços e benefícios sociais, diante da escassez de recursos. Na ordem

institucional dos serviços e organizações sociais isoladas, não há muito tempo para pensar nisso,

uma vez que a cotidianidade exige respostas rápidas e eficientes. As questões políticas menos

evidentes, ainda que subentendidas no nível da ação técnica, tendem a passar despercebidas.

Evidentemente, a seleção socioeconômica apresenta-se com essa característica: é uma

resposta técnica para um problema político.

Pode ser vista, em primeiro lugar, como uma estratégia para tornar aceitável o acesso

restrito aos benefícios e serviços sociais, em conformidade com as dificuldades de extensão

de cobertura colocadas pela política social, em sua materialização. Neste espaço, no entanto,

as providências mais caras aos planejadores e gestores serão, em geral, 1) colocar ordem no

processo seletivo — ou seja, ordem na lista, na fila dos demandantes, criando e definindo

regras e critérios passíveis de ser negociados com a população demandante — e 2) garantir

legitimidade ao processo com sua organização visível, a fim de lidar com a defasagem

existente entre a demanda e a oferta de serviços sociais.

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Em seguida, será preciso criar condições para que os “poucos recursos” sejam bem

administrados — isto é, que sejam bem gastos com quem realmente precisa ou com quem

realmente valha a pena investir.

Historicamente, uma dessas formas de promover a aceitação do resultado das seleções

é distribuir de preferência os recursos entre o maior número possível dos demandantes, para

que a limitada verba anteriormente disponibilizada “renda”, “multiplique-se” ao máximo

possível, procedimento que encontra justificativa no fato de que o processo de atribuição de

oportunidades aos demandantes tem a ver com bens de sobrevivência, de mínimos sociais.

Por exemplo, segundo o senso comum, “é melhor que o usuário receba pouco do que

nada”, argumento acrescido da ideia de que esse mínimo deve ser concedido “pelo menor

tempo possível”, “para que o indivíduo não se acomode numa situação de dependência

prolongada dos benefícios”, seguindo inclusive o caráter do modelo da política social atual.

Ao mesmo tempo, a organização do processo de seleção econômica a partir do exame

da demanda caso a caso — individualizando, portanto, a resposta e verificando os recursos

pessoais ou familiares que cada candidato tem, ou não, para satisfazer a necessidade

apresentada — dificulta e embaça a apreensão das necessidades insatisfeitas de uma família

como uma questão de muito mais gente.71

Assim, uma questão de âmbito sociopolítico — portanto, de âmbito coletivo — passa,

muitas vezes, a ser tratada como questão de foro privado e íntimo. Instaura-se, como pano de

fundo, a desconfiança, porque “nem todos precisam” e porque “há muita mentira contada

pelos usuários”. Tal movimento significa que já se desfocou a questão política (não há

recursos para atender a todos) que motivou a realização de uma seleção por critérios técnicos,

pois nem todos poderão ser atendidos. Coloca-se então o foco nos indivíduos-candidatos que

deverão provar falta de recursos para satisfazer suas necessidades e corresponder aos critérios

e normas colocados.

Finalmente, todos acreditarão que não foram selecionados porque não fizeram bem “a

prova de seleção”, quer porque “não souberam se portar direito”, quer porque “não estavam

preparados” e ainda, em outras situações, porque “havia outros mais necessitados”.

71 É preciso reconhecer que a seletividade pode ser tratada através da organização do acesso por ordem de chegada, como vem acontecendo nas áreas da educação e da saúde. Quando, por exemplo, um indivíduo necessita realizar um exame prescrito por médico, mas o número de equipamentos se apresenta como menor que a necessidade, o candidato é colocado em uma lista de espera de atendimento. Ou, quando não há vagas para atender a demanda da educação recorre-se às provas, selecionando os melhores ou referencia-se pela ordem de chegada. A grande imprensa tem sido farta em nos apresentar exemplos dessa prática, quando o indivíduo dorme por dias na porta de uma organização para que possa ser um dos primeiros a ser chamado, portanto, com chances de receber atendimento. Os poucos recursos poderão ser em dinheiro, bens, serviços e também em pessoal, equipamentos, etc.

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Nessa direção, a questão pública, política, referente à insuficiência de recursos para

atender a todos, torna-se problema de foro íntimo e privado, ao fazer com que o indivíduo se

perceba como não merecedor e até acredite que, se não pode usufruir dos serviços e

benefícios, foi porque não teve detenção de mérito para tanto. A seleção funciona certamente

como controle técnico para permitir o acesso de alguns e o descarte de outros, ocultando sua

origem na presença da desigualdade econômica e social de partida. Um dos resultados da

seleção socioeconômica é, portanto, a institucionalização da demanda sob a forma de

controle. Ou seja, obtêm-se os demandantes controlados.

Do ponto de vista que aqui nos interessa, da atuação do assistente social, é preciso

considerar que o profissional, às vezes, sem mesmo perceber, tratará daquela expressão da

questão social como questão moral, incriminando os demandantes por sua precária condição

de vida, ao desconsiderar os indivíduos como personificação de categorias econômicas que

determinam “sua posição no processo produtivo” (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 106).

Quanto à seleção socioeconômica, apesar do significativo acúmulo teórico sobre a

natureza do Serviço Social pela profissão, situando-a no plano das relações sociais vigentes,

parece haver uma dicotomização na prática dos assistentes sociais brasileiros. Pauta-se esta,

ainda, pela ideia de culpabilização do pobre pela sua situação de pobreza. Distinguindo os

bons dos maus pobres, pratica-se uma meritocracia.

Essa forma de proceder pauta-se pela falta de reconhecimento, pelo profissional, dos

usuários dos serviços sociais como sujeitos portadores de direitos, reforçando a ideia do

acesso aos benefícios como favor. Naturaliza-se, no mesmo gesto, tanto a existência da

seleção como a falta de recursos para atender a todos.

Ir além das aparências pressupõe perceber sua decisiva utilidade social como

instrumento legitimador da desigualdade social e, portanto, do controle social: a ação

profissional fornece instrumentalidade e estatuto científico à seletividade dos programas de

política social, facilitando sua aceitação pública. A análise que almejamos desenvolver dos

processos técnicos vinculados à seleção socioeconômica, como uma das competências e

atribuições profissionais do assistente social, tem como referência básica o fato de que o

Serviço Social está integrado às relações sociais que se desenvolvem na ordem capitalista.

Embora o assistente social trabalhe a partir da demanda e com a situação de vida

trazida pelo trabalhador, não é este, no entanto, quem o contrata e remunera. Estabelece-se

uma disjunção entre intervenção e remuneração, estando presente para o profissional, em

diferentes níveis, um mandato das classes dominantes junto à classe trabalhadora (IAMAMOTO;

CARVALHO, 1985, p. 84).

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A profissão do Serviço Social, de caráter eminentemente político, realiza assim suas

ações de forma mediada pelos interesses do capital e/ou do trabalho. Situar o Serviço Social

na divisão sociotécnica do trabalho é condição fundamental para a apreensão do significado

do papel que desempenha nas relações sociais.

A atuação do assistente social

reproduz também, pela mesma atividade; interesses contrapostos que convivem em tensão. Responde tanto a demandas do capital como do trabalho e só pode fortalecer um ou outro polo pela mediação do seu oposto. Participa tanto dos mecanismos de dominação e exploração como, ao mesmo tempo e pela mesma atividade, da resposta às necessidades de sobrevivência da classe trabalhadora e da reprodução do antagonismo nesses interesses sociais, reforçando as contradições que constituem o móvel básico da história (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 75).

Esse modo de ser na sociedade capitalista dá à profissão um caráter contraditório. A

ação de seus agentes tanto pode reforçar o polo que se dirige a atender aos interesses do

capital quanto o que fortalece os do trabalho. É na verdade a direção estratégica escolhida,

referenciada num projeto ético-político que, de fato, dará o sentido à ação profissional

(IAMAMOTO; CARVALHO, 1985; IAMAMOTO, 1992, 1998, 2002; NETTO, 1991b, 1996; YAZBEK,

2009a, 2009b). Esta direção estratégica está presente em todos os níveis de participação do

assistente social.

Embora na sua exterioridade as formas de acesso e permanência aos serviços,

inclusive triagem, seleção socioeconômica e pareceres, aparentemente só envolvam execução,

colocando-se simplesmente como atividades cotidianas do assistente social, implicam

processos complexos de estabelecimento, acompanhamento e execução de políticas sociais,

públicas e privadas.

Ainda que o assistente social seja conhecido e se reconheça como profissional da

prática direta com a população, é preciso destacar que há assistentes sociais que participam da

formulação e da gestão de políticas, assim como há os que estudam e avaliam seus impactos

sobre a vida da população, entre outras formas.

O exercício das atividades do assistente social nos organismos institucionais estatais,

paraestatais e privados explicita que o profissional dedique-se ao planejamento, à

operacionalização e à viabilização de serviços sociais dirigidos ao atendimento da população.

Na realização dessas atribuições, o assistente social exerce funções de suporte à

racionalização do funcionamento dessas organizações, assim como funções técnicas

propriamente ditas, apresentando-se, na listagem de tarefas “corriqueiras” realizadas pelo

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profissional, a seleção socioeconômica (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985, p. 113-114). Podemos

perceber então que, em todo nível de trabalho profissional, o assistente social encontra-se

comprometido com os objetivos da política geral presente na reprodução das relações sociais

na sociedade capitalista, mantendo sempre determinado nível de responsabilidade.

A apreensão da natureza e da utilidade social da seleção e da triagem pressupõe situá-

las na totalidade da sociedade onde se realizam e se expressam, de forma a levar sempre em

consideração a seguinte pergunta: que política o assistente social faz na seleção

socioeconômica, tendo em vista os interesses em jogo e em pauta?

Interessa-nos, sobretudo, a explicitação do caráter contraditório presente no trabalho

de seleção socioeconômica do assistente social, em suas múltiplas expressões. Tomando tal

seleção como totalidade, procuro caminhar para além do empirismo e do pragmatismo,

rompendo com importantes mecanismos de naturalização da desigualdade social nela

escondidos e resgatando-a da sua aparência entediante como tema.

3.5. Formas de legitimação do assistente social como operador da seletividade de acesso

às políticas sociais

Para a apreensão critica da seleção socioeconômica como instrumento sócio-histórico,

cuja realização tem sido atribuição do assistente social, torna-se necessário, então, demarcar a

natureza do trabalho deste profissional, localizando como se dá sua inserção nos espaços

sócio-ocupacionais da profissão.

Ao lado de outras profissões, o Serviço Social participa da divisão social e técnica do

trabalho na tarefa de implementação de condições necessárias ao processo de reprodução

social, especialmente a partir do capitalismo monopolista, quando surgem diversas iniciativas

de intervenção social como forma de enfrentamento das expressões da questão social.

O assistente social vem se constituindo historicamente como agente executor terminal

de políticas sociais (NETTO, 1991b), mas, na atualidade, participa claramente tanto da sua

execução quanto da formulação, da gestão e da avaliação das políticas sociais. (IAMAMOTO,

1999, 2009a; YAZBEK, 1999a, 1999b). É importante destacar que, em todas essas políticas, é

chamado para construir respostas para as demandas e desafios postos.

Nessa perspectiva, a política social constitui-se

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na base de sustentação funcional-laboral do Serviço Social, determinando assim a sua funcionalidade, dando-lhe legitimidade através da demanda de sua intervenção e, portanto, criando um campo de trabalho próprio para este profissional. Assim, a política social, por constituir fonte de legitimação, instrumento de intervenção e campo de atuação do assistente social, passa a ocupar um espaço preponderante nas reflexões teóricas destes profissionais (MONTAÑO, 2000, p. 8).

A política social ocupa e deve ocupar lugar de destaque nas reflexões teóricas do

Serviço Social, por se constituir em campo de intervenção e instrumento de atuação do

assistente social. Mas torna-se necessário incluir no debate o chão que dá sentido tanto à

profissão quanto à política social que é a questão social em suas diversas manifestações.

Para a apreensão do significado da profissão na sociedade capitalista nos seus

fundamentos sócio-históricos, é preciso tomar a questão social, em suas múltiplas expressões,

e o trabalho profissional, situado nas relações sociais, como categorias centrais, assumindo a

política social como mediação.

Incluir a questão social como discussão permanente responde à exigência de que o

profissional se veja para além de sua constituição como funcionário assalariado das

organizações sociais quando se assume compromissos com a luta dos trabalhadores.

A política social expressa a institucionalização da parte da demanda que foi atendida,

como fruto da luta empreendida pela população organizada na peleja por mais e melhores

serviços. Exprime o que foi possível obter no jogo da correlação de forças em pauta, travada

entre os representantes do trabalho e do capital, agora aparecendo sob a forma de programas e

benefícios. Trata-se, portanto, não de doações, mas de direitos conquistados, embora as pautas

de reivindicações levantadas pela população, organizada ou não, indiquem o tanto que ainda

há por conquistar.

Guerra (2010, p. 37) aqui comparece, observando que,

na sociedade burguesa desenvolvida, dentre outros mecanismos, encontra-se o discurso do direito a ter direito, o qual tem sido recorrente nas práticas profissionais, em especial na dos assistentes sociais. Por se constituir em uma metodologia de controle social, que atua como mecanismos de individualização de conquistas coletivas e psicologização das relações sociais, ainda que o assistente social não tenha consciência, tal procedimento operativo porta a tendência de falsear a realidade na qual os sujeitos/usuários das políticas e dos serviços sociais encontram-se inseridos, concorrendo, no mínimo, para a despolitização dos mesmos (grifo da autora).

Embora concordemos em conceber os usuários dos serviços sociais como sujeitos de

direito, pois o acesso ao atendimento não é favor nem benesse, é preciso considerar, no

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entanto, que o acesso aos ditos “direitos de fato” é limitado — veja-se a existência das

triagens e da seleção socioeconômica.

A seletividade de acesso aos programas sociais significa que, realmente, o que há para

todos é o direito de concorrer como candidato, é o “direito a ter direito”.

As instituições/organizações sociais quando implantam e executam os serviços sociais

através dos programas sociais estão materializando a política social. Note-se nesse fato a

importância de considerar a relação entre esfera pública e esfera privada, diante do processo

de privatização crescente do Estado que vem se operando no Brasil, expresso em profundo

colaboracionismo entre empresa e Estado, através da “prática da renúncia fiscal do Estado,

tecnicamente nomeada de incentivos fiscais” (MOTA, 1989, p. 132).

O que vem ocorrendo é que, em vez de “o Estado se apropriar de parte do excedente

via taxação de lucros e da riqueza patrimonial, ele abdica de tal receita para que o

empresariado faça a sua ‘justiça social’” — assim como permite que seja retida parte do

excedente que deveria lhe ser transferido “quando considera não tributáveis as chamadas

despesas operacionais das empresas, aí incluídos os custos dos programas sociais” (MOTA,

1989, p. 133).72

Ao se tratar dos atendimentos públicos e privados, é preciso considerar essa ação

escondida do Estado, porque a aproximação com o setor privado é bem mais profunda e

distinta daquela que se mostra na exterioridade dos fatos. Aquilo que aparentemente parece

privado, de fato é fundo público, transvestido de privado.

A desregulamentação das políticas sociais e a perda consecutiva de direitos sociais têm

carreado a atenção à pobreza para o âmbito privado e individual, motivada por apelos

solidários de benemerência dirigidos à sociedade civil, dessa forma desresponsabilizando

publicamente o Estado do encargo da proteção social como direito de cidadania. Nesse

quadro, torna-se profundamente relevante considerar os vários espaços sócio-ocupacionais da

profissão que, embora inter-relacionados, precisam ser considerados nas suas particularidades,

tendo em vista que imprimem determinadas características ao trabalho do assistente social,

como funcionário assalariado que é. Neste estudo, não trataremos de tais espaços de forma

aprofundada,73 embora, com Iamamoto (2009a), reconheçamos:

72 A autora refere-se, entre outros, ao Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), ao vale transporte, ao Programa de Formação Profissional (PFP) e à previdência privada. 73 Refiro-me ao trabalho do assistente social que se opera na esfera pública, nas instâncias públicas de controle democrático, nas empresas capitalistas, nas fundações empresariais, nas organizações privadas não lucrativas e nas organizações da classe trabalhadora. Mais detalhes podem ser encontrados em textos de Alencar, Amaral, Bravo, Cardoso, Cesar, Iamamoto, Lopes e Raichelis, em: CFESS/ABEPSS, 2009.

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Esses distintos espaços são dotados de racionalidades e funções distintas na divisão social e técnica do trabalho [condicionando] o caráter do trabalho realizado (voltado ou não à lucratividade do capital), suas possibilidades e limites, assim como o significado social e efeitos na sociedade (IAMAMOTO, 2009a, p. 19).

Os diversos espaços nos quais se realiza o exercício da profissão restringem em

diversos graus a autonomia profissional. Isso tem por referência a direção social pautada na

defesa dos interesses dos segmentos componentes da classe dos trabalhadores, ao demandar

do profissional a consecução de metas e determinada forma de operar os serviços indicados

pelas diretrizes da política social ou da empresa capitalista, assim como os controles exercidos

sobre o assistente social como funcionário. Estou, assim, admitindo e reforçando o

entendimento de que o assistente social, como trabalhador assalariado, constitui-se em força

de trabalho, uma mercadoria inseparável do trabalhador — no entanto, “para ser consumida e

transformada em atividade, a força de trabalho exige meios ou instrumentos de trabalho e

uma matéria-prima ou objeto que sofrerá alterações diante da ação transformadora do

trabalho” (IAMAMOTO, 1998, p. 99; grifos da autora).

Quem dispõe dos meios de trabalho (materiais humanos e financeiros) é a entidade

estatal ou privada que emprega o profissional. Dessa forma, os meios e as condições em que

se realiza a atividade profissional “não podem ser encarados como componentes ‘externos’ ao

trabalho profissional, mas, ao contrário, contribuem para moldá-lo tanto material quanto

socialmente” (IAMAMOTO, 1998, p. 100).

Nesse sentido, é preciso reconhecer que não existe processo de trabalho do Serviço

Social: “Existe, sim, um trabalho do assistente social e processos de trabalho nas quais se

envolve na condição de trabalhador especializado” (IAMAMOTO, 2009b, p. 369). Esta mesma

autora destaca que a inserção do assistente social nos processos de trabalho exige apreendê-

los em duas determinações: “a de valor de uso e do valor, isto é, como processo de produção

de produtos ou serviços de qualidades determinadas e como processo que tem implicações ao

nível da produção, ou da distribuição do valor e da mais valia” (IAMAMOTO, 1998, p. 102).

Quando o trabalho se realiza no interior do aparelho do Estado, no âmbito da prestação

de serviços sociais e nas ONGs, os produtos “não estão submetidos à razão do capital — que

é privada, expressa na busca incessante da lucratividade, isto é, da produtividade e da

rentabilidade do capital inicialmente investido” (IAMAMOTO, 1998, p. 103).

O exercício da profissão do assistente social se dá sob a forma do trabalho. Envolve o

contrato de compra e venda da força de trabalho; portanto, o profissional não é um voluntário.

A sua intervenção é mediada pelos interesses da organização que o contrata, a qual impõe

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regras e formas de controle, e os da população que pretende atingir. A população atingida

pelos programas da organização tanto poderá ser constituída pelos próprios funcionários de

uma empresa capitalista, quanto pelas pessoas que recorrem aos serviços públicos.

A profissão, em qualquer espaço que se insira, tem uma dimensão marcadamente

política; no entanto, não se confunde com partido político. “Não se identifica também com as

relações de poder entre governados e governantes, ainda que o assistente social também possa

exercer funções de governo; e nem o Serviço social se confunde com a política social, esta

uma atribuição do Estado” (IAMAMOTO, 2009a, p. 36). A autora destaca ainda que não se trata

de reduzir a dimensão política “à pequena política”, mas de reclamar a autonomia do projeto

profissional diante dos partidos e os governos (IAMAMOTO, 2009a, p. 36).

Esse entendimento da profissão nos indica que não bastam teorias de pequeno e médio

alcance para trabalhar e construir respostas qualificadas face às demandas, questões e desafios

históricos colocados à profissão pelos diversos segmentos de classe que compõem a sociedade.

Merecem destaque, dentre tais segmentos, “o Estado, os setores empresariais, os setores

populares organizados e a massa desorganizada representam mandatários do Serviço Social, os

quais expressam o conjunto de forças sociais antagônicas presentes na sociedade” (SILVA, 1995,

p. 64). Acrescentem-se ainda as ONGs e as organizações de classe, dentre outras.

A natureza interventiva do Serviço Social nos indica que a competência do assistente

social é de caráter teórico-prático, uma vez que ele necessitará se apropriar de categorias

teóricas para referenciar a necessária leitura crítica das situações que se lhe apresentem no

cotidiano institucional, onde se desenrola o trabalho profissional — situações às quais terá

que dar atenção sob a forma de respostas/propostas profissionais.

Na sociedade, a profissão tem possibilidades e limites:

A profissão é tanto um dado histórico, indissociável das particularidades assumidas pela formação e desenvolvimento da sociedade brasileira no âmbito da divisão internacional do trabalho, quanto resultante dos sujeitos sociais que constroem sua trajetória e redirecionam seus rumos. [...] agentes que a ela se dedicam em seu protagonismo individual e coletivo (IAMAMOTO, 2002, p. 9).

Se a maneira de ser da profissão na sociedade capitalista impõe limites, também

apresenta possibilidades. Por isso mesmo, podemos pensar que há vários jeitos de ser

profissional, o que implica escolha entre alternativas possíveis; se a prática fosse totalmente

determinada, esse horizonte da possível transformação não surgiria. O que foi produzido na

história pelos homens também poderá ser mudado por eles, se essa for a decisão; contudo, as

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mudanças não demandam simples vontades e atos isolados. Não se trata nem de voluntarismo

nem de determinismo.74

O assistente social pode se integrar num esforço coletivo como categoria, propondo

direção alternativa àquela proposta pelos setores dominantes. Ou seja, o assistente social,

enquanto sujeito coletivo, expressão de uma categoria profissional, deve ser sujeito de suas

ações e pode, mesmo com determinados limites, pautar seu exercício profissional em uma

direção social condizente com os interesses dos trabalhadores. Essa possibilidade exige dele

atenção permanente, para que consiga analisar a correlação de forças presentes na sociedade e

nas organizações sociais, identificando aliados e adversários em face aos projetos que venham

a entrar em pauta e em disputa, posicionando-se, então, como sujeito protagonista diante do

que se apresenta.

Isso significa que o profissional deve se preparar não como simples técnico que sabe

manejar instrumentos, mas como intelectual capaz de decifrar o que se esconde por detrás de

suas ações de funcionário assalariado. Ou seja, pressupõe-se que, fundamentado na teoria

social crítica, ele se torne capaz de traduzir suas responsabilidades institucionais como

funcionário, imprimindo determinada direção social que atenda aos interesses da população

com a qual trabalha.

O desafio constante do profissional é responder às questões/demandas colocadas no

seu cotidiano pela organização que o contrata e pela população que se utiliza de seus serviços,

sob a forma de propostas, pautado naquela orientação de “ir além das rotinas institucionais e

buscar apreender o movimento da realidade para detectar tendências e possibilidades nela

presentes passíveis de serem impulsionadas pelo profissional” (IAMAMOTO, 1998, p. 21).

Se a constituição do profissional implica domínio para operar tecnicamente seus

instrumentos, responder às demandas colocadas vai muito além. Implica que, partindo da

apreensão crítica da realidade, o profissional consiga perceber as possibilidades e os limites

estabelecidos nessa realidade e, a partir daí, consiga criar propostas condizentes com o projeto

profissional com o qual se compromete.

Embora a burocracia institucional favoreça as ações repetitivas, heterogêneas,

imediatas, fragmentadas, espontâneas, próprias da vida cotidiana, esse jeito de ser, no entanto,

não indica que necessariamente precisem ser reproduzidas dessa forma ad aeternum. A

condição para a recriação do dia a dia deve se orientar por uma reflexão crítica que permita a

ultrapassagem da cotidianidade e da singularidade. É a “suspensão da cotidianidade que

74 O aprofundamento dessa análise pode ser encontrado em Iamamoto (1992).

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permite ao indivíduo enriquecer-se, tornar-se mais consciente e motivado por exigências que

passam ser incorporadas à sua individualidade” (BARROCO, 2012, p. 72).

Os estudos sobre a reprodução social da sociedade capitalista e das classes sociais

constituem recursos teóricos fundamentais para o entendimento da profissão inserida em uma

totalidade sócio-histórica na qual se insere e se expressa e dos indivíduos com os quais

trabalhamos como partes integrantes dessa mesma totalidade. Pautar as ações profissionais

somente no que os olhos possam ver e no que o coração possa sentir poderá se constituir em

uma forma de o profissional reforçar o senso comum que é a forma de pensamento

predominante no cotidiano, acabando, ao final, por banalizar e naturalizar os fatos contidos na

situação-alvo de sua ação e intenção.

Essas referências são importantes para o entendimento de que o assistente social não é

ou não deveria ser um mero executor mecânico de normas e programas, mas sim “tradutor” de

políticas sociais com possibilidades de recriação na sua execução terminal, reinterpretadas à

luz das condições existentes (na instituição e no profissional) e das demandas da população.

Em outras palavras: não é preciso estudar quatro anos num curso de Serviço Social para

simplesmente entregar uma cesta básica, preencher uma ficha ou incluir o usuário numa lista

de acesso a um serviço. Mas é preciso estudar a vida inteira para dos serviços fazer meios de

realização de intenções pautadas nos compromissos assumidos num projeto profissional.

Ser capaz de criar o seu próprio texto no atendimento a indivíduos e grupos nos

organismos institucionais pressupõe não se contentar em ser mero ator que decora o papel de

uma personagem e o representa, todo dia, do mesmo jeito, e a cada atendimento que realiza. É

necessário também conceber os usuários dos serviços sociais como sujeitos portadores de

direitos, entendendo-os como sujeitos históricos.

A condição para que o profissional possa ser sujeito de suas ações pauta-se na postura

crítica diante da realidade, visando à criação de respostas e saídas de âmbito coletivo para

lidar com suas atividades cotidianas. Ou seja, não basta decifrar o que se esconde por detrás

de fatos, situações, atividades. É preciso ir além, no esforço de criar respostas profissionais a

partir da crítica. Essa é a tarefa presente que deve nos desafiar enquanto categoria dos

assistentes sociais, uma vez que o Serviço Social, na divisão técnica do trabalho, tem um

caráter interventivo. Isto quer dizer que do Serviço Social se esperam respostas e propostas

aos desafios e demandas que se apresentam. O tempo e lugar em que a política social foi

elaborada e o tempo e lugar em que é executada não são exatamente os mesmos. É possível

reinterpretá-la, dando-lhe novos significados e, portanto, imprimir-lhe outras possibilidades,

pensando na sua operação concreta.

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Entendo que “as ordens” e as “tarefas” precisam ser decifradas, pois há vários jeitos de

realizá-las e, certamente, há um jeito de fazer que se alinhe mais às nossas escolhas

profissionais. A mesma atribuição pode ser realizada de vários modos, porque não há um

único jeito de ser profissional, cabendo a cada um de nós realizar escolhas. Esses vários

modos de exercer a profissão são expressões dos vários projetos profissionais, fundados em

concepções teórico-metodológicas e ético-políticas diversas.75

Já dissemos que é preciso que o assistente social se veja como um sujeito que pode e

deve interferir na maneira de realizar as tarefas e atividades que lhe são atribuídas pela

organização que o contrata, imprimindo-lhe uma direção social, condizente com o projeto

ético-político profissional. Se é ingênuo dizer que o assistente social goza de total autonomia,

o que pressupõe ignorar as determinações presentes, é mecânico e cristalizado afirmar que ele

não tem espaço nenhum de negociação nas organizações que o emprega, cabendo-lhe apenas

o papel de “ator” ou “fantoche” a serviço do capital ou do trabalho.

Tratar, portanto, da seleção socioeconômica como forma e condição de acesso aos

serviços sociais é falar sobre a instrumentalidade que envolve a intervenção e a forma de sua

operação pelos profissionais nas organizações sociais, não de forma linear e única. Sua

apreensão comporta revelar seus fundamentos em vertentes do pensamento social

contemporâneo. Abordar e transmutar questões de âmbito sócio-histórico, tratando-as como

se foram de simples âmbito técnico, como é o caso das seleções de acesso aos serviços

sociais, pressupõe que haja reconhecimento da profissão como apta para preparar o

profissional para realizar tal competência.

O assistente social é contratado pelas organizações sociais e recebe um salário, porque

tem um saber que ancora sua intervenção, confirmado e reconhecido por um diploma de nível

universitário. Dessa forma, é visto como especialista por quem o contrata e pela sociedade,

por deter poder advindo do saber que lhe dá o direito de falar e atuar sobre o assunto de sua

especialidade e ser ouvido enquanto tal.

A qualificação da ação do assistente social se alicerça no fato de ser detentor de um

saber especializado. Entretanto, o que se espera dele é a intervenção, que se constitui em uma

mercadoria que as organizações compram quando empregam os seus veiculadores. O saber

profissional dá certa garantia de qualificação de respostas, para que as organizações, ao

transformar o profissional em seu funcionário, legitimem-se diante da sociedade e se

imponham diante dos usuários.

75 Como bem aponta Netto (1991a), no processo de renovação do Serviço Social brasileiro, este se torna plural, ao incorporar, a partir de meados da década de 1960, as vertentes do pensamento contemporâneo.

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A Lei nº 8.662, de 7 de junho de 1993, que regulamenta a profissão no país, representa

o reconhecimento da sociedade brasileira acerca da capacitação profissional que o assistente

social tem para realizar determinadas competências e atribuições profissionais legalmente

enumeradas, dentre as quais constam os estudos socioeconômicos que dão acesso aos serviços

sociais. Nestas condições, os profissionais são contratados para representar as organizações

sociais, esperando-se que, através de sua atuação e postura, expressem e se apresentem diante

da população como profissionais competentes que dominam o saber de especialista.76 E

também que tenham domínio de parâmetros de justiça e imparcialidade de julgamento para

lidar com os limites dos recursos disponíveis para o atendimento da população. É o

profissional com essas características que as organizações sociais das classes dominantes

necessitam e querem contratar para representá-la.

Essa formulação, no entanto, contém disfarces e ocultamentos que precisam ser

enumerados e desvendados e que colocamos em forma de pergunta. De onde advém a ideia do

saber que sustenta o poder que municia o profissional para atuar nas organizações sociais?

Segundo Chauí (2011), provém do saber competente que se apresenta como discurso

do conhecimento, mas que, de fato, é discurso ideológico. O discurso competente é um

discurso ideológico, uma vez que

o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica da identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para, através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, isto é, a imagem da classe dominante (CHAUÍ, 2011, p. 15).

O discurso competente interessa enquanto discurso que carrega a possibilidade de

controlar e intimidar quem o escuta. Ou seja, quando é usado para calar quem ouve, para se

impor diante da população, revestido de características ditas científicas que legitimam o

especialista, pois, para ser questionado, é preciso dominar o seu conteúdo. Não podemos nos

esquecer de que, diante dos usuários dos serviços sociais, o assistente social quase sempre é

tido como alguém que sabe e, portanto, deve lhes dizer o que fazerem diante de tanta

dificuldade vivida.

É preciso reconhecer, com Chauí (2011), que sempre falamos de determinado lugar e

nos manifestamos sob um ponto de vista. Não é qualquer um que pode dizer qualquer coisa

76 Não nego com isso a concepção do Serviço Social inserido na divisão sociotécnica do trabalho, na qual se apresenta com caráter eminentemente interventivo, mesmo quando participa da gestão e da elaboração de políticas sociais.

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em qualquer lugar e ser ouvido. Para tanto, é preciso ter o que dizer como especialista; isto se

impõe como condição para o exercício do controle, como poder de dominação.

O poder do discurso competente, enquanto discurso do conhecimento, emana do

reconhecimento e do prestígio da ciência de orientação positivista, ao oferecer a imagem de

que é possível determinar, manipular e prever totalmente o objeto que se estuda por meio de

procedimentos científicos nos quais as ideias de racionalidade e objetividade assumem lugares

centrais. Nesta perspectiva, as ideias de objetividade, racionalidade e poder passam a ser

inseparáveis, na medida em que a ideia de poder dominar teoricamente um objeto carrega a

ideia de poder dominá-lo praticamente. A noção de competência (poder para apreciar e julgar

questões, qualidade de quem é capaz) advém dessa autoridade sobre o assunto que esta

concepção de ciência lhe dá, a qual, aliada à noção de neutralidade da ciência, disfarça, por

sua vez, a sua relação com o poder. Transforma-se, no entanto, sob a noção de cientificidade,

em dominação (CHAUÍ, 2011, p. 45).

É nesse quadro que, como dissemos, os profissionais são contratados pelas instituições

por serem detentores de um saber de especialista, o que os torna também competentes e

merecedores de crédito para representar a instituição diante da população atendida. Amortecer

tensões, disfarçar e reiterar os poderes (do saber especializado e da instituição) pela vivência

de papéis e funções diferenciadas como agentes institucionais, estas são as formas como os

profissionais legitimam o controle como dominação. Comprometer-se, então, com os

interesses das classes subalternizadas pressupõe a construção do saber sob outros

fundamentos teórico-metodológicos e ético-políticos.

Iamamoto (2009a, p. 17), ao analisar criticamente as bases de sustentação do discurso

competente, propõe seu reverso: a competência crítica, “capaz de desvendar os fundamentos

conservantistas e tecnocráticos do discurso da competência tecnocrática”.

Essa autora considera que o discurso competente é crítico “quando vai à raiz e

desvenda a trama submersa dos conhecimentos que explica as estratégias de ação”

(IAMAMOTO, 2009a, p. 17). A competência crítica, nessa perspectiva supõe:

a) um diálogo crítico com a herança intelectual incorporada pelo Serviço Social [que] passa pela história da sociedade e pelo pensamento social na modernidade, construindo um diálogo fértil e rigoroso entre teoria e história; b) um redimensionamento dos critérios da objetividade do conhecimento para além daqueles promulgados pela racionalidade da burocracia e da cultura. A teoria [...] como “concreto pensado” [...]; c) uma competência estratégica e técnica (ou técnico-política) que não reifica o saber fazer, subordinando-o à direção do fazer. [...] a partir da elucidação das tendências presentes no movimento da própria realidade, [...] Uma vez decifradas, essas tendências podem ser acionadas pela vontade política

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dos sujeitos, de modo a extrair estratégias de ação reconciliadas com a realidade objetiva (IAMAMOTO, 2009a, p. 17).

O domínio do saber crítico coloca-se para o profissional como condição para a

intervenção qualificada e competente, podendo se pautar no espectro das diversas teorias

sociais que têm profundas inserções sócio-históricas quando localizadas na totalidade da

sociedade de classes. Tendo em vista, porém, que o Serviço Social participa da divisão

sociotécnica do trabalho como profissão interventiva, mesmo quando seus profissionais são

chamados para elaboração, gestão e avaliação das políticas sociais — uma vez que são

chamados exatamente porque detêm condições para construir respostas a aos desafios

colocados pela realidade social ou de sua operação concreta —, é preciso considerar que, se

legitima e qualifica a intervenção, o saber não basta, no entanto, a um profissional da

intervenção. Para uma profissão caracterizada como de intervenção, o saber se apresenta

como condição para a ação orientada por finalidades, mas não se limita a isto. O que muda a

realidade, de fato, são as ações orientadas para a manutenção ou alteração daquilo que está

dado; o saber não tem a capacidade, em si mesmo, de mudar ou transformar a realidade.

Torna-se importante, então, destacar, com Netto (1996), que, embora a autoimagem do

Serviço Social suponha que “a raiz de sua especificidade (ou parte substantiva dela)

profissional advém de um estoque ‘científico’” (NETTO, 1996, p. 84). Com efeito, porém,

o desenvolvimento de um estatuto profissional (e dos papéis a ele vinculados) se opera mediante a intercorrência de um duplo mecanismo: de uma parte, aquele que é deflagrado pelas demandas que lhe são socialmente colocadas; de outra, aquele que é viabilizado pelas suas reservas de forças (teóricas e prático-sociais), aptas ou não para responder às requisições extrínsecas — e este é, enfim, o campo em que incide o seu sistema de saber. O espaço de toda e cada profissão no espectro da divisão social (e técnica) do trabalho na sociedade burguesa consolidada e madura é função da resultante desses dois vetores (NETTO, 1996a, p. 85; grifo do autor).

Este autor aqui comparece para esclarecer com todas as letras:

Qualquer que seja, [...] a razão cabível para [a] hipoteca da base profissional ao seu lastro “científico”, o que é certo é que ela desconsidera o primordial, isto é, o erguimento de uma configuração profissional a partir de demandas histórico-sociais macroscópicas. O aspecto nuclear de uma intervenção profissional institucional não é uma variável dependente do sistema de saber em que se ancora ou de que deriva; é o das respostas com que contempla demanda histórico-sociais determinadas; o peso dos vetores do saber só se precisa quando inserido no circuito que atende e responde a estas últimas (mesmo que, em situações de rápidas mudanças sociais, a emersão de novos parâmetros do saber evidencie implementações susceptíveis de oferecer inéditas formas de intervenção profissional) (NETTO, 1996a, p. 83; grifos meus).

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Esse entendimento nos permite entender que às organizações pode interessar a

intervenção do profissional pautada na repetição e na burocratização dos procedimentos, uma

vez que seu objetivo principal é passar a ideia de que está cuidando das situações-alvo de sua

atuação de forma controlada. À categoria profissional, entretanto, cabe constantemente se

perguntar, aos moldes da ética, sobre que Serviço Social vale a pena e de que jeito podemos e

queremos ser assistentes sociais diante de um mundo tão desumano e cruel para grande parte

da humanidade.

Em relação ao nosso objeto de estudo, certamente não cabe à profissão decidir se quer

ou não realizar seleção socioeconômica, uma vez que, mesmo que a decisão seja pela sua não

realização pelo Serviço Social, ela não será extinta, dada sua utilidade social para legitimar o

não acesso de parcela da população que necessita dos serviços e benefícios sociais para viver.

Em artigo do jornal Socialist Standard, publicação do Partido Socialista da Grã-

Bretanha, de janeiro de 1936, sob o título “O means test pode ser abolido?”, há esta análise;

podemos ter como certo que nenhum governo, liberal, trabalhista, conservador ou qualquer outro que administre o capitalismo, abolirá o means test sem reintroduzi-lo sob outro nome ou como algo de efeito semelhante e igualmente desagradável. [Isto porque] não exige muita análise para se ver por que a questão dos testes de meios é vital para o capitalismo. [...] Por razões de estabilidade e segurança da propriedade, os governantes devem fornecer algo para os trabalhadores cujos serviços não são no momento necessários, mas devem ser cobertos de restrições, não permitindo que os trabalhadores recebam de todas as fontes mais do que o mínimo que irá mantê-los vivos (CAN THE MEANS TEST..., 1936, p. 7; tradução minha).

Tendo em vista essas observações, considero que, para entender o processo de seleção

socioeconômica que os profissionais realizam, é necessário levar em conta mediações de

várias ordens, porque não há atividade técnica em si mesma: a técnica é a expressão de

concepções teóricas e políticas em atos.

Teoria e prática caminham sempre juntas. Sem uma sólida teoria, não se faz

intervenção consequente e comprometida com os interesses das camadas sociais

subalternizadas. O projeto ético-político hegemônico da categoria dos assistentes sociais, do

qual o Código de Ética de 1992, as Diretrizes Curriculares e a Lei nº 8.662/93 são expressões

que não deixam dúvidas sobre a direção estratégica da ação profissional no sentido da luta

pela universalização de acesso às políticas sociais públicas. No entanto, mais do que nunca, os

agentes desta categoria profissional têm sido acionados para criar ou aplicar critérios seletivos

que reforçam a lógica da exclusão, sob o discurso de inclusão.

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CAPÍTULO 4 — A SELEÇÃO SOCIOECONÔMICA NO EXERCÍCIO E NA

FORMAÇÃO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL CONFORME AS

ENTREVISTAS REALIZADAS

Após tratar nos capítulos anteriores dos fundamentos sócio-históricos que dão sentido e

utilidade à seleção socioeconômica na política social e na profissão do assistente social situadas

na sociedade capitalista, analisaremos e problematizaremos a seleção socioeconômica operada

no tempo presente pelos assistentes sociais, tendo como fundamentos os referenciais teórico-

metodológicos já expostos. Antes, apresentaremos como se deu a definição dos instrumentos e

do processo de escolha sujeitos da pesquisa empírica.

4.1. Definição dos instrumentos de pesquisa

Escolher os instrumentos da pesquisa empírica pressupôs equacionar as possibilidades

e limites das diversas possibilidades que eu conhecia, a fim de decidir por aquelas que se

mostravam como o melhor jeito de abordar os sujeitos da pesquisa, pois embora conteúdo e

forma sejam indissociáveis, entendo que a forma deve estar sempre a serviço do conteúdo.

Os instrumentos da pesquisa empírica se constituem em meios, ferramentas

disponíveis, para que os pesquisadores possam obter informações, no processo de apropriação

do objeto de estudo, tendo em vista os objetivos traçados.

Pautada nas orientações teórico-metodológicas já apontadas, após vários ensaios, a

decisão incidiu na realização de entrevistas semidirigidas, diante do caráter qualitativo e

dialógico pretendido e tendo em vista a busca de problematização das questões que cercam o

objeto em pauta. Realizei essa escolha, portanto, tendo em vista o meu objetivo que era o de

obter informação qualitativa importante.

Entendo que a entrevista é relação face a face na qual entrevistado e entrevistador são

sujeitos datados, concretos, sendo que a própria entrevista constitui relação social que sempre

necessita ser situada no tempo e no espaço onde ocorre, da mesma forma como as situações e

os discursos precisam necessariamente ser contextualizados e referenciados à prática em que

são produzidos e que lhe dão sentido.

A entrevista é uma situação objetiva, permeada de subjetividades. Nela sempre estão

presentes, de forma velada ou explícita, as posições dos sujeitos em relação à classe social,

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assim como o seu pertencimento a diversos grupos (políticos, religiosos, etc.), e mesmo outras

pertinências (nacionalidade, geração, religião, cultura, sexo, etc.) que permeiam o discurso e o

olhar, o que pode gerar, no entrevistador e no entrevistado, antipatias e simpatias,

preconceitos, dentre outras reações possíveis (LÖWY, 1998, p. 213).

Neste estudo, as entrevistas foram realizadas com assistentes sociais portugueses e

brasileiros, uma vez que o estágio realizado em Portugal, conforme já exposto, me abriu a

possibilidade de trabalhar sobre o meu tema de estudo, com profissionais dos dois países.

4.2. A definição dos sujeitos da pesquisa

Nossa pesquisa de campo foi realizada em dois momentos distintos. O primeiro, em

Portugal, quando realizei as entrevistas, em dezembro de 2010; o segundo, no Brasil, quando

dei continuidade às entrevistas em abril de 2012, levando em conta a riqueza do produto

obtido naquele país, o que me fez repensar e recriar o jeito e a forma de colocar em pauta, no

Brasil, os conteúdos relacionados à seleção socioeconômica. As entrevistas realizadas com

assistentes sociais dos dois países devem, no entanto, ser entendidas como dois momentos do

mesmo processo, que indicam a necessidade de tratá-los nas suas especificidades.

Em relação a Portugal, em um primeiro momento, o Serviço Social português se

apresentava a mim como um campo que eu não conhecia, mas, com o auxílio e sob orientação

do tutor português, passei a estudar a história da profissão naquele país, para que pudesse me

situar no meio profissional e como condição para estabelecer um diálogo respeitoso com as

colegas portuguesas.

Apresento seguir, em breves traços, o entendimento que tive acerca do Serviço Social

português, que me serviu de base na construção do perfil para selecionar as entrevistadas

portuguesas — no Brasil o perfil é o mesmo, aqui apreendido, porém, na especificidade da

realidade brasileira.

No tocante ao desenvolvimento da profissão de Serviço Social naquele país, é

importante destacar que as primeiras escolas para a formação de assistentes sociais em

Portugal, assim como no Brasil, são criadas na década de 1930, sob a tutela da Igreja Católica,

e só admitem moças. Embora haja particularidades da Igreja Católica nos dois países em

pauta, essa origem dá à profissão, nos dois países, um caráter confessional que se expressará,

naquele momento, tanto na formação como na prática das assistentes sociais.

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Em 1939, há o reconhecimento, pelo Decreto-Lei nº 30.135, da formação realizada

pelo Instituto de Serviço Social de Lisboa (ISSL), desde 1935, e pela Escola Normal Social em

Coimbra, desde 1937, que se constituem nas duas primeiras escolas de Serviço Social em

Portugal. Em 1961, a formação em Serviço Social passa a ser considerada de nível superior.

No ano seguinte, alunos do sexo masculino passam a ser admitidos no Instituto Superior de

Serviço Social (ISSS) de Lisboa, e o ensino sofre algumas alterações, inspiradas em modelos

de outros países (MARTINS, 1999).

Inicia-se então uma reorientação paulatina da formação profissional, com uma progressiva introdução em termos curriculares das disciplinas em Ciências Sociais e dos métodos em serviço social (case work, group work e community work) sob a influência do serviço social americano e à semelhança do que ocorria nos países desenvolvidos e democráticos (APSS/CES, 2009, p. 19).

Desde o início do Serviço Social português, em 1935, até a entrada da década de 1990,

ou seja, pelo período de 55 anos, a formação de assistentes sociais se realizou em três

principais agências formadoras; o ISSSL, o Instituto Miguel Torga de Coimbra e o ISSS do

Porto, criado em 1956.

Martins (2002, p. 3), chama atenção para o fato de que, em tempos de ditadura,77 não

se pode falar do Serviço Social de forma homogênea, identificado somente com o

assistencialismo e conivente com a opressão vigente, uma vez que existiam, certamente desde

1958, assistentes sociais que concebiam o Serviço Social de outra forma. A autora apresenta,

ao longo do texto, inúmeros exemplos de colegas que se comprometeram na luta social que se

travava para pôr fim à ditadura e às diversas formas de opressão existentes. A autora também

observa que um dos primeiros questionamentos das assistentes sociais

prende-se ao carácter assistencialista do serviço social [...] e à constatação da ineficácia do atendimento individualizado no superar das necessidades da população. O confronto com as situações de desigualdade e opressão provoca em algumas assistentes sociais inconformismo, indignação e revolta, levando-as a afastarem-se da profissão ou a repensarem as práticas existentes, com vista a ultrapassar esse mal-estar (MARTINS, 2002, p. 7).

Partindo desses questionamentos, segundo a autora, algumas assistentes sociais

começam a perceber que já não se podia culpabilizar os indivíduos por suas situações, o que

exigia análises mais profundas relativas ao modo de organização da sociedade.

77 A autora se refere à ditadura que perdurou em Portugal por 41 anos (1933-1974). Esse período é denominado “Estado Novo” e pauta-se pelo autoritarismo corporativista, constituindo-se em período de forte repressão.

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No início dos anos 1970, sob influência da produção brasileira (Documentos de Araxá,

de 1967, e Teresópolis, de 1970), começa a haver um estreitamento de relação entre Brasil e

Portugal. Em ambos os países, surge um questionamento amplo acerca do Serviço Social

tradicional, uma vez que os ditos “métodos de serviço social de caso, grupo e comunidade”

não se mostram mais como suficientes para responder às novas demandas que a profissão

tinha que então responder.

Em Portugal, o acesso à problematização emergente no Movimento de Reconceituação

Latino-Americano do Serviço Social e ao New Social Work (BARTLETT, 1970, e KHAN, 1973,

apud BRANCO; FERNANDES, 2005, p. 6) traz muitas indagações e gera polêmica entre os

profissionais (BRANCO; FERNANDES, 2005, p. 6).

Ressalte-se que, de fato, a crise do Serviço Social “tradicional”, fundado no modelo

norte-americano de caso, grupo e comunidade e que vem à tona nos anos 1960, é um

fenômeno de âmbito internacional. O Movimento de Reconceituação Latino-Americano

(1965-1975) é uma resposta da profissão no sentido de se renovar, para conseguir responder

às demandas colocadas pela reordenação capitalista internacional, que impõem à América

Latina um estilo excludente e subordinado.78 A profissão assume as inquietações e

insatisfações desse momento histórico e direciona seus questionamentos ao Serviço Social. O

Movimento fará com que o Serviço Social se repense a si mesmo em relação aos

compromissos assumidos até então. Esse processo, ao final, fará com que a profissão adquira

um traço plural, ao passar a conviver, em seu interior, com as principais vertentes do

pensamento social contemporâneo. A partir daí, não será mais possível falar da profissão de

uma única perspectiva, uma vez que o Serviço Social será fecundado pelas teorias sociais

existentes e presentes na contemporaneidade, de forma consistente.

O Movimento de Reconceituação, na especificidade do Serviço Social brasileiro é

denominado Renovação do Serviço Social (1964-1985), de acordo com Netto (1991a).

Em Portugal, embora nas leituras que realizei não apareça a designação de Movimento

de Reconceituação do Serviço Social português, o marco do 25 de Abril parece significar um

78 O Movimento de Reconceituação do Serviço Social é um processo de renovação que ocorre na profissão, visando dar consistência ao arcabouço teórico-metodológico, uma vez que o Serviço Social sofre um processo de erosão que não lhe permite responder às novas demandas enfrentadas pela profissão (NETTO, 1991a). Trata-se de um Movimento de complexo entendimento que rebaterá no Serviço Social de cada país latino-americano com certas particularidades, tendo em vista a sequência de rupturas e continuidades impostas pela realidade vivida, quando vão se instalando governos ditatoriais, ao longo do período de 1965 a 1975. Não podemos desconsiderar o papel da Teologia da Libertação como perspectiva da Igreja Católica que, informada pela perspectiva marxista, assume o compromisso de lutar ao lado do povo no sentido de sua libertação, que também precisa ser citado, tendo em vista a profunda relação que existia então entre Igreja Católica e profissão; assim como precisa ser lembrada a forte influência de Paulo Freire no Serviço Social. Embora não seja objetivo deste texto aprofundar essas relações, não enunciá-las poderia prejudicar o entendimento do tema (NETTO, 1991a).

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divisor de águas, no sentido de fecundação do Serviço Social de uma forma abrangente, com

novas perspectivas teórico-metodológicas e ético-políticas, novas práticas advindas de novo

arsenal explicativo da realidade e novos compromissos assumidos.

Note-se que, quando a Revolução dos Cravos acontece, em abril de 1974, encontra um

Serviço Social já aquecido por intenso questionamento em relação ao papel que a profissão

deveria ter em sociedades subdesenvolvidas e nas governadas por ditaduras, mesmo porque

havia assistentes sociais que lutavam bravamente para pôr um fim ao regime ditatorial vigente.

O Serviço Social — até então identificado com o regime deposto pelo 25 de Abril — começa a

emergir em novas bases, impulsionado pelas demandas advindas do alargamento das funções do

Estado e pelas novas alianças que se estabelecem entre vários segmentos de profissionais e os

movimentos populares, dando origem a propostas inovadoras de intervenção, construídas em

parcerias com estes movimentos, e a novos campos de intervenção.

Após o 25 de Abril e no processo de democratização do país, as escolas de Serviço

Social de Lisboa e do Porto passam a se constituir como cooperativas de ensino (entidades

autônomas, sem fins lucrativos), autogestionárias e com direções eleitas. Desligam-se, assim,

da origem confessional e se tornam entidades de caráter laico (BRANCO; FERNANDES, 2005;

NEGREIROS, 1998).

O quadro de mudanças e questionamentos presentes na sociedade, na Igreja Católica e

no Serviço Social impõe aos assistentes novos posicionamentos e compromissos. É nessa

conjuntura que o Serviço Social vai se tornando plural, passando a ser influenciado e

permeado pelas várias perspectivas teóricas existentes, com destaque para a posição

hegemônica que a perspectiva marxiana tem, nesse momento. A partir daí, várias perspectivas

teóricas começam a se expressar na produção acadêmica e na prática profissional do Serviço

Social em Portugal.

Na década de 1980, o ISSSL desenvolve esforços para dar início à formação pós-

graduada de assistentes sociais portugueses, nos níveis de mestrado e doutorado, priorizando a

qualificação de docentes e a formação de pesquisadores. Assim, estabelece em 1987, um

protocolo com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo para a formação acadêmica

pós-graduada em Serviço Social.

Em 1989, após um longo e complexo processo, é reconhecido o grau de Licenciatura

aos cursos de Serviço Social existentes no país, ministrados por institutos particulares.

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O reconhecimento, em 1989, do grau de Licenciatura, aos cursos de Serviço Social ministrados por aquelas escolas,79 actualiza a disposição legal de uso exclusivo do título profissional de Assistente Social aos licenciados em Serviço Social. Refira-se que, em julho de 1956, o Decreto-Lei nº 40.678, que revê o Decreto-Lei nº 30.135, estabelecendo a formação em quatro anos curriculares, consagra a designação de assistentes sociais (cf. art. 1º), título profissional que se mantém até ao presente (APSS/CES, 2009, p. 35).

A década de 1990 é marcada por profundas transformações que ocorrem no mundo

numa dimensão planetária, e marcam a sociedade portuguesa, imprimindo-lhe certas

especificidades, as quais, por sua vez, rebatem no Serviço Social e

[...] podem apontar-se quer a profunda transformação da formação em Serviço Social no nosso país, quer a mutação da estrutura do mercado de trabalho dos assistentes sociais com o sector privado social a tornar-se o sector predominante em detrimento do sector público em consequência da transferência de funções sociais do Estado para as IPSS e da retracção do emprego público, a par de uma dinâmica de desregulamentação do mercado de trabalho (APSS/CES, 2009, p. 21).

Em meados da década de 1990,

[...] multiplica-se a criação de novos cursos de Serviço Social, registando-se uma alteração completa do panorama da formação em Serviço Social em Portugal. Às três escolas históricas, sediadas nas três mais importantes cidades do país, junta-se uma significativa diversidade de estabelecimentos e cursos, sendo de salientar o funcionamento, desde 2000/2001, da primeira licenciatura no quadro do ensino universitário público, na Universidade dos Açores (BRANCO; FERNANDES, 2005, p. 8).

Merece relevo ainda que, em 1995, são criados, em Portugal, os primeiros Programas

de Mestrado em Serviço Social, sob responsabilidade dos Institutos Superiores de Serviço

Social de Lisboa e do Porto. Atualmente, em Portugal, existem nove programas de Mestrado e

dois de Doutoramento em Serviço Social.

A Universidade Católica Portuguesa, na qual fui estagiária em 2010, implantou seu

Curso de Licenciatura em Serviço Social em 1996, e o Mestrado (2º ciclo) e o Doutorado (3º

ciclo) em Serviço Social em 2003.

É digno de nota, ainda, o fato de que, em 2006, o ISSSL, primeira escola de Serviço

Social em Portugal, foi incorporado à Universidade Lusíada de Lisboa, num processo que

79 A importância dessa medida jurídica decorre do fato de que o “[...] Decreto-Lei nº 30.135, de 14 de dezembro de 1939, que estabelece as condições a que devia obedecer a formação em Serviço Social, estatuiu que Assistente Social é o título autorizado por lei, exclusivamente, para os diplomados em Serviço Social, formação ministrada até 1995, exclusivamente, pelos Institutos Superiores de Serviço Social de Lisboa, Coimbra e Porto. Conforme estipula o art. 9º, o título de assistente de serviço social é privativo das diplomadas nos termos deste decreto-lei [...] Decorrendo o uso da designação de diplomados do facto de, então, o ordenamento educativo não prever que aos cursos ministrados em instituições particulares de ensino pudessem ser conferidos graus académicos” (APSS/CES, 2009, p. 34; grifos no original).

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custou muitas demissões e que, aparentemente, deixou um vazio até os dias atuais; pode-se

perceber que entre os assistentes portugueses há um sentimento de tristeza, quando se toca no

assunto “da extinção do ISSSL”. O sentimento e a fala é a de que o ISSSL já não existe e que foi

extinta a primeira e a mais forte referência da história de Serviço Social de Portugal.

Em 2008, havia em Portugal 13.971 assistentes sociais formados no período de 1935 a

2008 pelos cursos portugueses de Serviço Social. Desse total, 4.540 foram formados pelas três

primeiras escolas de Serviço Social de Portugal, no período compreendido entre 1935 e 1992

(APSS/CES, 2009, p. 42).

Em 2009, existiam em Portugal 21 cursos formadores de assistentes sociais do 1º ciclo

(licenciatura em Serviço Social) que surgiram numa conjuntura de densa complexidade.

Entretanto, as principais e mais significativas agências formadoras de assistentes sociais

nesses 75 anos de institucionalização do Serviço Social português continuaram a ser o

Instituto de Serviço social de Lisboa, que surgiu em 1935, a Escola Normal Social de

Coimbra, de 193780, e o Instituto de Serviço Social do Porto, de 1956.

Destaque-se que,

neste movimento, assistiu-se ao surgimento da formação em Serviço Social no Ensino Politécnico, reintroduzindo-se nesta área, após a sua extinção nos anos 70, a questão da formação bietápica e de graus diferenciados81 em termos profissionais. Este aspecto, entendido como particularmente crítico pelas organizações profissionais, veio a ser minorado pela reforma de Bolonha e a unificação dos títulos universitários nos ensinos Politécnico e Universitário (APSS/CES, 2009, p. 22).

Desde o início do Serviço Social português em 1935 até a entrada da década de 1990

— portanto, pelo período de 55 anos — a formação de assistentes sociais se realizou nas três

principais e já citadas agências formadoras. Só a partir da segunda metade dos anos 1990

começou a se dar a multiplicação de novos cursos de Serviço Social em Portugal, o que

provocou significativa alteração no quadro da formação em Serviço Social no país.

Em relação ao mercado de trabalho profissional,82 a Segurança Social se constituiu

historicamente como área profissional “natural” dos assistentes sociais, e, até há quase bem

pouco tempo, quase exclusiva, na qual os profissionais exercem funções no âmbito de

diferentes programas de assistência social, participando, dentre outras ações, da

80 Esse estabelecimento de ensino é hoje designado por “Instituto Superior Miguel Torga”. 81 Ver mais detalhes dessa complexa discussão em: http://www.apross.pt/apssbo/upload/Assistente_Social_.pdf; http://www.apross.pt/interna.php?idseccao=10; http://www.apross.pt/apssbo/upload/CarreiraTecnicosSupSS.pdf. 82 No relatório denominado “O campo profissional do Serviço Social: estudo sociológico tendo em vista a Constituição da Ordem Profissional dos Assistentes Sociais”, elaborado pela APSS/CES como subsídio à constituição da Ordem dos Assistentes Sociais e Portugal, obtive valiosos dados sobre a situação atual da profissão.

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implementação do Rendimento Mínimo Garantido, criado em 1996 (hoje transformado em

Rendimento Social de Inserção), tendo ali papel preponderante. Os assistentes sociais têm

sido chamados para responder às funções de apoio técnico em organismos associativos, no

âmbito de processos de direito de menores e família (quer na assessoria aos tribunais, quer na

execução de medidas de proteção de crianças e jovens em risco social), no apoio ao trabalho e

ao emprego, através da inserção de desempregados no mercado de trabalho, e em outras

estruturas estatais, sindicais e empresariais (APSS/CES, 2009, p. 37-38).

Em relação a entidades agregadoras e organizativas da categoria dos assistentes

sociais, consta que em 2010 existiam, em Portugal:

• a Associação dos Profissionais de Serviço Social (APSS),83 fundada em 1978, de âmbito

nacional e com sede em Lisboa, que se apresenta “[...] como a organização mais

representativa a nível da profissão. Em termos de filiação, o número de associados da

APSS representa 15% dos efectivos no mercado de trabalho” (APSS/CES, 2009, p. 27-29);

• o Sindicato Nacional dos Profissionais de Serviço Social, “associação sindical fundada

em 1950, sedeada em Lisboa, é integrada por assistentes sociais e titulares de cursos já

desaparecidos como assistentes familiares e auxiliares sociais designadamente. Essa

atividade tem participado ativamente na construção da profissão em Portugal”

(APSS/CES, 2009, p. 28);

• a Associação de Investigação e Debate em Serviço Social (AIDSS),84 fundada em 1993,

associação de assistentes sociais sedeada no Porto criada para formar, divulgar e

estimular o debate científico, que publica desde 1994 a Revista Investigação e Debate,

com periodicidade anual e que, em geral, tem uma organização temática (APSS/CES,

2009, p. 29);

• o Centro Português de Investigação em História e Trabalho Social (CPIHTS),85 surgido

em 1993 com o objetivo de apoiar estudos dos problemas e das politicas sociais, assim

como da intervenção social na realidade portuguesa; o desenvolvimento de estudos

históricos do Serviço Social e a elaboração e execução de projetos de investigação, a

divulgação e publicação dos resultados de estudos e investigação na mesma área,

também se colocam no seu horizonte de atuação (APSS/CES, 2009, p. 29-29);

Em 2010, época do meu estágio no país, o Serviço Social em Portugal, enquanto

profissão, encontrava-se diante de um quadro complexo, que envolvia desde a titulação e a

83 O site da APSS pode ser visitado no endereço eletrônico http://www.apross.pt. 84 O site da AIDSSP pode ser visitado no endereço eletrônico http://www.aidssp.com. 85 O site do CPIHTS pode ser visitado no endereço eletrônico http://www.cpihts.com.

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regulamentação da profissão até a fiscalização do exercício profissional. A grande tarefa das

entidades representativas da categoria, naquele momento, era somar esforços das entidades

para a constituição da “Ordem Profissional dos Assistentes Sociais de Portugal”. Essa tarefa

tinha posição central na pauta de discussões profissionais, dada a urgência da Ordem como

instrumento jurídico e político que permitiria dar unidade e visibilidade à profissão na

sociedade portuguesa, sem falar da necessidade que havia de fiscalizar o exercício

profissional, a partir de parâmetros claramente definidos.

O II Congresso Nacional de Serviço Social, realizado em 18 e 19 de novembro de

2010 na cidade de Almada, nos arredores de Lisboa, do qual tive a oportunidade de participar,

teve como tema central a discussão “Espaços e compromissos da profissão”, visando

aprofundar a reflexão sobre a necessidade urgente de haver regulação do exercício

profissional, o lugar e o papel da formação na qualificação de profissionais, os espaços

emergentes e exigentes da criação profissional, a descentralização da ação profissional, a

reforma do sistema de saúde e o Terceiro Setor.

Nesse panorama complexo, que expus em breves linhas, encontrei respaldo para as

decisões tomadas em relação ao perfil das participantes da pesquisa.

O processo de escolha das pessoas entrevistadas foi desencadeado na prática, quando

indiquei, aos colegas professores universitários que conhecia e que me ajudariam na seleção

dos dois sujeitos da pesquisa, um perfil de referência com os seguintes traços: licenciados em

Serviço Social, que, de preferência, haviam vivido a efervescência do Serviço Social

português na segunda metade da década de 1990, que tivessem experiência na realização de

estudos sociais de corte socioeconômico (formulação e /ou execução da política social) e que

fossem reconhecidos pelos colegas pela seriedade, competência e compromisso profissional.

Minha intenção inicial era realizar duas entrevistas com assistentes sociais portugueses

que estivessem trabalhando com a seleção socioeconômica e que também tivessem uma

reflexão a respeito — daí a inclusão de docentes dentre as pessoas entrevistadas.

Embasada em tais referências, entre o final de novembro e início de dezembro de

2010, recebi a indicação de quatro nomes de assistentes sociais para entrevistar, sendo um da

cidade do Porto e as outras de Lisboa. Os assistentes sociais indicados pelos colegas são todas

mulheres e, embora a proposta inicial fosse realizar apenas duas entrevistas, a ampliação

desse número para quatro deu-se pelo fato de que me encontrava às vésperas de retornar ao

Brasil; então, levei em conta que ainda poderia ocorrer algum imprevisto na realização das

entrevistas, como, por exemplo, a desistência de participação de alguma delas, etc. Dessa

forma, decidi naquele momento que a seleção das duas entrevistas poderia se dar

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posteriormente; mas, ao final, dada a riqueza dos testemunhos, a resolução final foi a de

incluir todas na análise da pesquisa. Com essa decisão, Portugal adquiriu um lugar maior no

estudo em relação ao que havia inicialmente estabelecido.

Devo salientar que a diversificação de áreas de atuação das entrevistadas não foi

intencional, mas considero que constituiu uma amostra aleatória significativa e muito rica.

Saliento ainda que, antes de cada entrevista, enviei ao entrevistado, via internet, o roteiro de

questões que serviria de base no encontro marcado (ver Anexo 2). Na oportunidade da

realização das entrevistas, solicitei às pessoas entrevistadas que preenchessem a ficha de

identificação do entrevistado (reproduzida no Anexo 1).

O material gravado de Portugal rendeu mais de 100 páginas de transcrição, tarefa a

cargo de uma portuguesa remunerada para isso. Levei em conta a facilidade que esta pessoa

teria para entender o sotaque das entrevistadas — que, por vezes, para uma brasileira, dificulta

a compreensão das falas — e a pouca disponibilidades que eu tinha para realizar pessoalmente

tal atividade. O meu papel foi a de ler o material e voltar às gravações para resolver dúvidas.

Após minhas correções, enviei às entrevistadas, de novo por internet, o produto obtido

nas entrevistas para o conhecimento delas e para a realização das alterações que porventura

desejassem assinalar. Recebi retorno somente de Alice,86 que propôs pouquíssimas alterações

e assim se manifestou a respeito: “Foi bom ver escrito o que disse. Acho que você refletiu

bem o meu pensamento, ainda que em algumas respostas pouco claro, mas isso já é da minha

cabeça pouco arrumada.”

Na continuidade da pesquisa empírica no Brasil, através da realização das entrevistas

com assistentes sociais brasileiras, que ocorreu após ter transcorrido mais de um ano, pude,

nesse intervalo de tempo, categorizar melhor, analisar e amadurecer a apreensão da seleção

socioeconômica a partir do que havia conseguido com as entrevistas realizadas em Portugal.

Tendo em vista que meu objetivo não é apresentar um estudo de natureza comparativa

entre Brasil e Portugal, mas realizar a problematização da seletividade de acesso aos serviços e

benefícios sociais na sua operação concreta, considerei que não fazia sentido reproduzir no Brasil

o processo realizado em Portugal. O material obtido no primeiro momento era rico, as questões do

âmbito da prática da realização da seleção socioeconômica já estavam bem enriquecidas com sua

prática direta e havia muitos pontos comuns à realidade que conhecia do Brasil.

86 As assistentes sociais entrevistadas em Portugal são designadas de modo fictício, devido ao fato de que uma delas não me autorizou a revelar seu nome real, temendo possíveis represálias. Nessas condições, optei por alterar o nome das entrevistadas portuguesas. Em relação às brasileiras, preservei seus nomes, depois do consentimento de todas. Entendo que citar os nomes das entrevistadas é ato de respeito e reconhecimento da autoria das formulações de idéias expostas ao longo do capítulo.

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As entrevistas com as brasileiras foram pensadas então para complementar e

problematizar o material já conseguido até então, considerando que ainda era necessário

aprofundar alguns aspectos da seleção socioeconômica no âmbito de sua realização,

destacadamente sobre a natureza avaliativa dos estudos implicados na seleção

socioeconômica e a formação do assistente social para operar a seletividade de acesso aos

serviços e benefícios sociais.

Como decorrência dessa decisão, resolvemos reformular o roteiro de entrevista para

que, partindo-se do material já obtido em Portugal, fosse possível a incorporação da

problematização da experiência brasileira, a partir de três blocos de questões (Anexo 4).

O segundo grupo de assistentes sociais foi selecionado pela docência e pela prática. O

perfil traçado para selecionar os sujeitos da pesquisa no Brasil destacou os seguintes traços:

experiência prática no âmbito da intervenção profissional junto à população usuária dos

serviços sociais, experiência docente no âmbito de disciplinas que tratam da

instrumentalidade profissional e apreensão da produção teórico-prática dos estudos

socioeconômicos, numa perspectiva crítica. Praticamente é o mesmo perfil das assistentes

sociais portuguesas entrevistadas, com a diferença de que a totalidade das entrevistadas

brasileiras é docente em Cursos de Serviço Social no Brasil, ao mesmo tempo em que

apresentam o lastro de atuação direta com a população usuária dos serviços e benefícios

sociais no âmbito da realização de estudos socioeconômicos, conforme pode ser conferido no

Anexo 3, no quadro que trata do perfil real das entrevistadas.

Em abril de 2012, realizei no Brasil duas entrevistas, envolvendo quatro profissionais.

A primeira foi uma entrevista coletiva que contou com a participação de três entrevistadas

(Isaura, Graziela e Regina). A outra ocorreu sob a forma individual (com Eunice), respeitando

as possibilidades da agenda de todas.

Antes da realização das entrevistas, contatamos as quatro assistentes sociais

selecionadas para convidá-las a participar, expondo a natureza, os objetivos e os

procedimentos da pesquisa. Ao final, todas prontamente se dispuseram a contribuir com a

trabalhosa empreitada proposta que exigia uma preparação prévia.

Antes da entrevista propriamente dita, cada participante recebeu com antecedência, via

internet: o roteiro das entrevistas utilizado em Portugal (Anexo 2); o Quadro 1, referente ao

perfil das entrevistadas portuguesas (Anexo 3), posteriormente completado com as

informações das entrevistadas brasileiras; uma das quatro entrevistas transcritas de Portugal,

para que pudesse “se aquecer”, lendo e refletindo sobre o material, e, na oportunidade do

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nosso encontro, se manifestar livremente a respeito, acrescentando o que desejasse; o roteiro

de questões que serviria de base para as entrevistas com as brasileiras (Anexo 4).

A proposta era de que nessas entrevistadas as participantes pudessem apresentar seus

comentários sobre as três principais matérias apontadas no roteiro, distinguindo como elas

aparecem nas entrevistas das assistentes sociais portuguesas e como têm aparecido em suas

experiências pessoais de docentes e “profissionais da prática”.

Na transcrição das entrevistas, também contei no Brasil com a ajuda de uma brasileira

remunerada para realizar tal tarefa. O material de 80 páginas obtido nas duas entrevistas foi

corrigido e tratado por mim, da mesma forma que havia tratado das outras já realizadas. A

entrevistada Eunice teve interesse em ler o material obtido na entrevista coletiva;

posteriormente, pode ler e revisar livremente sua própria entrevista (foi com a versão revisada

que trabalhei a análise de sua entrevista).

Os sujeitos dessa pesquisa são oito mulheres representativas da profissão em Portugal

e no Brasil, com vasta experiência profissional. A mais jovem das entrevistadas é uma

assistente social portuguesa que hoje tem 45 anos. Seis são docentes, e todas exerceram ou

exercem a profissão que se realiza nas organizações sociais, com experiência em estudos

socioeconômicos. Declaradamente, seis tiveram participação direta e ativa na construção do

Serviço Social nas últimas três décadas, numa perspectiva crítica. Isto significa, para as

portuguesas, ter vivido os desdobramentos da Revolução de 25 de abril de 1974 e, para as

brasileiras, ter participado do processo de redemocratização da sociedade brasileira (a partir

de 1985) e do denominado Processo de Renovação do Serviço Social no Brasil.

Minha interlocução se deu, portanto, com um grupo de profissionais altamente

qualificado e representativo da categoria dos dois países, uma vez que foram indicadas e são

reconhecidas por seus pares como tendo o que dizer sobre a seleção socioeconômica de

acesso aos serviços e benefícios sociais, porque fazem ou estudam sobre o assunto e que se

dispuseram a refletir e problematizar a seleção socioeconômica como atividade profissional,

inscrita na profissão e nos espaços sócio-ocupacionais em que os assistentes sociais atuam.

4.3. O conteúdo das entrevistas

Os roteiros utilizados nas entrevistas com as assistentes sociais portuguesas e

brasileiras — apresentados nos Anexos 2 e 4, respectivamente — objetivaram a abordagem de

quatro ordens de assuntos relativos à explicitação das determinações que incidem na operação

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da seleção socioeconômica como instrumento da política social, operada por assistentes

sociais, pautada em referências construídas e já apresentadas em capítulos anteriores.

Em um bloco, pretendi explicitar a apreensão das entrevistadas sobre a natureza, a

utilidade, o papel e o significado social da seleção socioeconômica como instrumento da

política social operada pelo assistente social, visando apresentar-lhes desafios teórico-práticos

e ideo-políticos implicados na reflexão sobre o assunto. Também pretendi explorar a

motivação dos profissionais, entendida como a predisposição para responder à seleção

socioeconômica como atividade profissional, partindo da hipótese de que não gostavam de

realizá-la. Compõem esse bloco as questões 1, 3, 5 e 7 do Anexo 2 e o item 3 do Anexo 4.

Em outro bloco, desejei estimular as entrevistadas na explicitação das pressões

políticas que ocorrem nos processos seletivos de acesso aos serviços e benefícios sociais,

assim como trazer à tona como os assistentes sociais têm lidado no cotidiano institucional

com as pressões advindas dos candidatos desclassificados do processo, que se sentem

injustiçados, e com aquelas que chegam através da hierarquia organizacional, advindas de

“políticos” e “indivíduos influentes” para que seus apadrinhados tenham acesso garantido.

Compõem esse bloco as questões 6 e 8 do Anexo 2.

No terceiro bloco, pretendi abordar a operação da seletividade de acesso aos serviços e

benefícios sociais, trazendo à tona a discussão de questões presentes no estabelecimento e na

aplicação dos critérios utilizados e as diversas formas de mensuração dos recursos financeiros

de que o indivíduo dispõe para viver, que se tornam importantes referências utilizadas pelo

profissional no processo seletivo. Pretendi também abordar os instrumentos profissionais

utilizados na realização de tal atividade. Também aspirei pautar a discussão das possibilidades

e limites da ação profissional, uma vez que o processo seletivo de acesso a serviços e

benefícios sociais se realiza segundo regras, normas e critérios, ou seja, orientado por balizas

e sob condições estabelecidas pelas organizações sociais que contratam o trabalho do

assistente social e que impõem limites ao trabalho, porém as possibilidades se apresentam

quando o assistente social lida com a contraditoriedade do trabalho profissional, reforçando a

direção social que indica o atendimento dos interesses dos usuários dos serviços e benefícios

sociais. Parti da hipótese de que a política social não implica, necessariamente, ser realizada

exatamente da mesma forma como foi formulada e, portanto, há possibilidade do profissional

interpretá-la, para o atendimento dos interesses daqueles que vivem ou dependem do trabalho

para sobreviver. Há vários jeitos de ser assistente social: diante da realidade e dos recursos, o

assistente social pode assumir diferentes perspectivas de análise e de compromissos.

Compõem esse bloco as questões 1, 9 e 10 (a, b, c) do Anexo 2 e o item 2 do Anexo 4.

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No quarto bloco, desejei abordar como se deu a formação das entrevistadas para a

realização da seleção socioeconômica como atividade profissional do assistente social,

destacando como e onde haviam aprendido a fazer seleções ou estudos de avaliação

socioeconômica e quais haviam sido suas referências teórico-práticas. Pretendi ainda levantar

e explicitar uma pauta de temas a ser trabalhada na formação e na pesquisa no âmbito do

Serviço Social, visando à qualificação de sua realização na profissão, uma vez que já conhecia

a falta de bibliografia sobre o assunto. Compõem esse bloco as questões 11, 12 e 13 do Anexo

2 e o item 1 do Anexo 4.

As questões foram formuladas de forma direta, mas abertas, com o sentido de

apreender como as atividades desenvolvidas pelos profissionais se traduziam em experiência e

prática efetiva no que diz respeito à realização da seleção socioeconômica.

A seguir, apresento a análise do material obtido com as entrevistas realizadas.

4.4. Análise das entrevistas

Quem são, como e onde os assistentes sociais pesquisados aprenderam fazer a seleção

socioeconômica? Como entendem a utilidade sociopolítica dessa atividade profissional? Qual

é o significado atribuído as ela? Quais são os desafios vividos pelos assistentes sociais no

âmbito de sua formação, da pesquisa e do próprio exercício profissional, em relação à seleção

socioeconômica nos espaços sócio ocupacionais da profissão?

Neste capítulo, as assistentes sociais entrevistadas comentam suas experiências, suas

reflexões, suas dúvidas e certezas, os desafios com os quais se deparam na docência e no

exercício da profissão nas organizações sociais que contratam seu trabalho.

Da mesma forma falam das respostas e das estratégias criadas que sempre são

pautadas em projetos de âmbito societário e do entendimento que têm acerca da realidade

social e das possibilidades de alterá-la. Através de suas palavras, expressam modos de ser e

existir da categoria dos assistentes sociais, em Portugal e no Brasil.

Neste momento, ao estabelecer um diálogo entre as assistentes sociais brasileiras e

portuguesas entrevistadas, pretendi apresentar um exame acerca do objeto de estudo, em meu

papel diferenciado de pesquisadora, no contexto da contribuição à análise crítica. Procuro

assim organizar e articular as análises que todas nós pudemos conjuntamente produzir nas

entrevistas realizadas sob as formas individual e coletiva.

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Saliento que a busca de uma apreensão da seleção socioeconômica na perspectiva da

totalidade propiciou-me ampliar o leque de problematização das categorias envolvidas em

detrimento de um detalhamento mais aprofundado de cada uma delas, tendo em vista a quase

inexistência de estudos sobre o tema e o tempo disponível para a realização do presente

estudo. Esclareço que tratei o material obtido na pesquisa empírica tomando por base as

referências teóricas explicitadas nos capítulos anteriores e os pontos definidos no roteiro das

entrevistas sob a forma de perguntas, procurando me manter aberta para ouvir, perceber e

decifrar a contribuição de cada uma das protagonistas, a partir de suas versões e, assim

apresentar uma análise pautada no diálogo com elas e entre elas.

Tendo por base que as participantes dessa pesquisa são sujeitos significativos da

profissão em Portugal e no Brasil, considero que dialogar com elas é dialogar com versões

presentes na categoria dos assistentes sociais.

Penso que a escolha de tratar pelo nome as entrevistadas faz parte de um estilo que

valorizo, por me permitir reconhecer a autoria dos ricos conteúdos trazidos por elas nos

encontros que tivemos, sendo que o meu objetivo em momento algum foi ou será o do

enquadramento e da rotulação de suas falas, mas um esforço para entendê-las na e a partir da

lógica que dão sustentação às idéias e respostas colocadas.

Apresentarei a análise mesclando o pensamento expresso nas falas das assistentes

sociais portuguesas e brasileiras sob a forma de diálogo, quando considerei que não havia

significativas diferenças a considerar. Quando, no entanto, ponderei que era preciso

estabelecer distinções entre os trabalhos profissionais que se realizam em cada país -como,

especialmente no item que trata das condições de trabalho, procurei tomar os devidos

cuidados no sentido de demarcar as particularidades de cada um desses trabalhos,

estabelecendo as semelhanças e diferenças.

4.4.1. Postura diante da seleção socioeconômica

As assistentes sociais entrevistadas, ao serem abordadas sobre como se sentiam diante

dessa atividade profissional, foram unânimes em expressar o desconforto e os

constrangimentos vividos, chegando mesmo a declarar rejeição. De fato, nenhuma das

entrevistadas gosta de fazer seleção socioeconômica. Podemos perceber, no entanto, que cada

uma delas trata dos seus incômodos, criando alternativas e explicações diversas.

Luísa afirma que nenhum assistente social gosta de realizar seleção socioeconômica

diante da dificuldade que sente, principalmente para lidar com aqueles que são eliminados no

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processo seletivo de acesso aos serviços e benefícios sociais; o profissional passaria a

materializar “a cara da exclusão”.

— Eu creio que é sempre muito, muito, muito redutor, é sempre algo frustrante. Ninguém gosta de fazer a seleção socioeconômica, sobretudo quando o indivíduo que está a ser alvo dessa situação fica excluído, e nós somos a cara da exclusão...

Tília, cujo trabalho é supervisionar assistentes sociais, embora nunca tenha atuado na sua

realização, refere-se a essa atividade, especificamente, como “acesso/não acesso” ao recurso

financeiro. Ela exprimiu durante o tempo todo da entrevista forte desejo de tirar o assistente social

do lugar burocrático onde hoje se encontra na realização do RSI. Mas, talvez por não reconhecer

que o assistente social se insere em processos de trabalho na condição de funcionário assalariado

das organizações sociais, que impõem limites à intervenção, acaba por culpabilizar unicamente os

profissionais, por não levarem sua intervenção para além da seleção (penso que ela se refere ao

fato de que o assistente social se mantém na dimensão burocrática do atendimento). Ao não

expressar a contraditoriedade presente nesse movimento, acaba por considerar suficiente haver o

desejo ou vontade de dar novo rumo à prática, sem levar em conta as condições e possibilidades

objetivas presentes na realidade que na atualidade.

— Eu acho que não encontro no meu trabalho, e trabalho com muitos profissionais, e não encontro nenhum que goste de dar dinheiro e que sinta que é o seu espaço profissional quando está a dar dinheiro. É interessante isto, mas não se faz mais nada. Além disso, também, não cria condições... Mas eu também não quero analisar muito isso, porque tenho receio de não ser muito objetiva. Corro mesmo esse risco, porque eventualmente, muitas vezes, zango-me com eles [os colegas assistentes sociais].

Fátima, assim como as demais, gostaria de atender a todos, mas, como não pode, põe-

se a pensar sobre “quem teria mais direito”, fazendo-a concluir que a realização de seleção

socioeconômica se apresenta como “atividade desagradável, incômoda e frustrante”.

— É assim, eu posso falar por mim. Um processo seletivo é sempre um processo desagradável, eu não gosto de fazer um processo seletivo. É evidente que, se eu pudesse, eu gostaria de poder ter condições para atribuir uma bolsa a todos os alunos que se candidatam, a todos que têm aproveitamento. Eu, por acaso, acho que há que ter algum cuidado com o aproveitamento. Mas pronto, porque há alunos que, não todos... E, também, há que ter atenção com esse

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aspecto. Mas há estudantes que andam um pouco a passear os livros ao fim de seis ou sete anos. Andarem aqui a estudar e não fazer o curso de três anos. Enfim, há que perceber por quê. Também há situações e situações, e essas, também, são previstas, se podem prever. Mas pronto, de qualquer forma é evidente que, não me parece que… O estudo seletivo, a seleção é uma atividade pouco agradável, pouco simpática, mas tem que ser feita.

Alice se manifesta, dizendo que, para ela, é penosa e árdua a realização da seleção,

mas seus questionamentos se dirigem primeiramente à dificuldade de entender as solicitações

trazidas pelos demandantes de serviços sociais, que, por vezes, adotam uma perspectiva

individualista. Ela considera que, entretanto, é preciso ir além dos fatos objetivos

apresentados, fazendo-os entender que alguns não são atendidos por falta de recursos

disponíveis, de forma que, num outro momento, possa refletir com eles sobre “o porquê de

não haver os recursos necessários para atender a todos”. Assim procedendo, reconhece que

faz um trabalho político, e é assim que considera que deve ser tratada a questão.

— É muito duro, é muito duro. Eu parto do principio de que quem pede é porque necessita. Em princípio, eu acredito sempre nas pessoas, embora eu saiba que algumas pessoas têm perspectivas individualistas e que pensam que só elas é que precisam, portanto, não têm uma visão social mais ampla. Eu acho que é nosso papel também reconhecer as pessoas nas suas necessidades subjetivas e confrontá-las um pouco com as dificuldades que apresentam. Eu acho que é muito duro. A mim, custa-me muito fazer, custa-me fazer porque eu acredito que aquela pessoa tem uma necessidade concreta, mas o que é que eu faço? Eu procuro, um pouco, explicar o condicionamento mais geral, e o porquê, não fico só na explicação de que não tem recursos, tititi, tititi. Não há recursos, porque eles não são distribuídos para esse fim, mas são distribuídos para outro fim. Faço trabalho político, não tenho vergonha de dizer que faço trabalho político. Trabalho político no sentido de que... No meu entendimento de que as coisas não são geridas no sentido de proteger os mais desfavorecidos.

Fátima problematiza a questão, afirmando que não basta ter acesso à universidade: é

preciso dar apoio para que os alunos possam permanecer nesta, e seu trabalho, embora

voltado basicamente para a seleção socioeconômica, deve estar aberto para atender a todos os

alunos que apresentem, a qualquer momento, dificuldades para continuar os estudos.

— É, é verdade, nós temos alunos aqui que vêm de situações de agregados familiares de tal maneira desestruturados... Nós temos aqui alguns que, ainda crianças, foram retirados da família, que vêm de

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instituições e que nós achamos, às vezes, muito estranho. Como é que, com aqueles percursos de vida, os alunos conseguem chegar ao ensino superior, conseguem entrar para o ensino superior? E depois, aqui, com algum apoio da nossa parte, conseguem concluir os seus cursos e conseguem cortar com aqueles ciclos de pobreza que existem. E temos alunos que vêm de agregados economicamente muito complicados, com muitas dificuldades econômicas e que, às vezes, eles precisam muito de apoio e, às vezes, chegam aqui, por exemplo... Uma das coisas que... Uma das regras que nós temos aqui no serviço é que todo o aluno que vêm aqui fazer um requerimento a dizer para anular a candidatura à bolsa, nós temos que saber o porquê da anulação da bolsa. E uma das questões que nós pomos sempre é se a anulação da bolsa é motivada por questões econômicas ou se é porque não está a gostar do curso ou se é porque quer mudar de curso. Mas, sempre que nos dizem que, efetivamente, vão anular a matrícula por uma questão econômica, aí nós não deixamos e dizemos logo: “Tenha calma, vamos conversar, e vamos ver até que ponto, se calhar, a bolsa que atribuímos não é correta.” Vamos lá analisar a sua situação e rever a sua situação, para podermos, então, atribuir um apoio, desde que o aluno queira mesmo fazer o curso e goste mesmo do curso; essa regra nós temos aqui. Não há nenhum aluno que venha cá fazer um requerimento a dizer “Eu quero que me cancelem a bolsa, porque vou deixar de estudar”, que nós não falemos e não tentemos esclarecer o porquê.

Ela, no entanto, admite que seja possível obter alguma recompensa profissional de

algo que não é tão agradável de realizar, como a seleção socioeconômica.

— É muito agradável, por exemplo, ver algum aluno num curso e que nos escreva uma carta em que diz: “Terminei o meu curso; muito obrigado pelo apoio que me prestaram, se não tivesse tido direito, se não me tivessem atribuído uma bolsa de estudos, eu não poderia ter feito o meu curso.” É evidente que, embora o processo de seleção seja sempre um processo desagradável, ele tem que ser feito, e nós temos consciência disso. E isso é agradável que... Se não houvesse possibilidade de atribuir estes apoios, muitos dos alunos não poderiam estudar, ficariam pelo caminho — e não só em termos econômicos, mas também muitas vezes noutros aspectos. Por exemplo, o apoio psicológico que nós damos aqui, alguns alunos têm algumas dificuldades que não são só econômicas. Mas pronto, nesse aspecto estamos a falar das questões seletivas.

Entre as entrevistadas brasileiras, duas se manifestaram claramente a esse respeito,

reforçando a ideia do desconforto sentido diante da atividade seletiva.

Regina, ao se deparar com essa tarefa e constatar que, onde trabalhava, a atuação do

assistente social se reduzia à seleção socioeconômica, embora denominada de “estudo

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socioeconômico”, dirigiu seu esforço para demonstrar naquele lugar que o assistente social

era preparado e podia fazer muito mais naquele lugar onde atuava.

— Tinha uma certa rejeição, que, quando eu trabalhei na psiquiatria e, teoricamente, eu deveria fazer estudo socioeconômico com todos os usuários, eu pensava que isso não era só o que o assistente social fazia. Então, eu tive que me colocar num outro patamar e dizer “Olha, o assistente social trabalha com famílias, é um outro patamar!”, para não ficar reduzida à ideia de que eles (ou nós) só tinham que fazer um estudo socioeconômico.

Isaura chega a dizer que trabalhar no Plantão Social, que tem na triagem e na seleção

socioeconômica uma de suas principais marcas, durante muito tempo foi visto e considerado

pelos assistentes sociais como um castigo.87

A resistência do Serviço Social quanto a assumir o lugar em que foi colocado acabou

por levar Isaura e Regina a proporem e assumirem novas frentes de trabalho. Isaura conta:

— Eu fui trabalhar num hospital onde trabalhei durante 30 anos, onde se fazia isso mesmo: tinha o “Plantão”, que era castigo, e todo mundo sabia disso, porque era no “Plantão” que você atendia as requisições imediatas das pessoas e dava medicamento, dava auxilio transporte. Depois, isso foi se alargando no hospital, e a gente fazia estudos com pacientes internados. Tinha o diretor no hospital, que nos ajudou muito, porque, quando a gente falava para ele “Isso eu não vou fazer, isso eu não quero fazer”, quando ele nos mandava desocupar o leito. A gente dizia para ele: “Quer que desocupe o leito, e assistente social não tem que fazer isso!” Ele dizia: “Muito bem, eu concordo, mas vocês vão fazer o quê?” E essa pergunta dele — “Vocês não querem desocupar o leito, não querem trabalhar com isso ou isso?” — nos desafiou a procurar o que fazer, qual era o nosso papel. Mas, durante todo o tempo, a gente trabalhou com a ideia de fazer estudo, que era baseado, naquela época, exclusivamente no percapita... E depois foi melhorando.

87 É fato amplamente conhecido na categoria profissional que, durante dois longos períodos (na ditadura militar e depois do término da administração da prefeita Luiza Erundina de Souza), na Prefeitura Municipal de São Paulo, os profissionais considerados “de esquerda” não eram bem vistos pela administração superior e/ou por chefias imediatas, devido à sua atuação política como lideranças. Assim, eram colocados no “Plantão” como castigo, uma vez que nenhum profissional competente ou compromissado iria para lá de boa vontade ou por escolha. Lá também eram colocados os profissionais que se encontravam em readaptação profissional, porque tinham apresentado problemas de competência em outros setores. O “Plantão” era considerado, portanto, o pior lugar, o lugar de castigo, e sinônimo de assistencialismo. Depois, graças à atuação de colegas mais politizados nesse setor, teve início, em vários locais, atendimento coletivo e mais qualificado nesse espaço de atuação de assistentes sociais.

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As falas de Regina e Isaura reforçam a ideia da seleção socioeconômica se apresentar

como uma das primeiras e mais tradicionais tarefas realizadas pela profissão em São Paulo, na

época em que atuaram na área da Saúde.

A seleção socioeconômica mostrou-se, na fala de todas, como uma atividade carregada

de alto teor de frustração. O profissional tem que se defrontar com contradições de várias

ordens e com os limites do trabalho, colocados por regras e critérios que impedem o acesso de

todos os candidatos, assim como tem que lidar com pressões de natureza política, conforme se

analisará mais detalhadamente, logo mais à frente.

Há várias maneiras, no entanto, de lidar com a seletividade presente no acesso: uns

fazem disso momento de politização dos candidatos; outros dizem que não há nada a fazer.

Uns ficam pensando sobre as diferenças entre os alunos, e outros pensam sobre as diferenças

entre os profissionais. Há aqueles que, insatisfeitos com o que lhes foi atribuído fazer, tentam

abrir novas frentes ou mesmo qualificar a realização dos processos seletivos de acesso. E há

quem, ao contrário, considera que a profissão tem que deixar de realizar tal atividade.

4.4.2. Natureza e significado da seleção socioeconômica, segundo o entendimento das

entrevistadas

Nesta seção, as entrevistadas refletem acerca da utilidade sociopolítica e do

significado social da seleção socioeconômica, referindo-se a seus outros fundamentos, bem

como à atribuição desse processo ao assistente social.

Convidada a falar sobre a utilidade e significado social da seleção socioeconômica,

Alice declarou:

— A seleção socioeconômica existe porque não há [...] benefícios universais mínimos, porque se houvesse benefícios universais mínimos e adequados às necessidades das pessoas, não era necessário, não era preciso a seleção econômica. É para um ter direito e o outro não ter direito.

Esse tipo de entendimento afirma como causa direta da necessidade da seleção

socioeconômica a ausência de acesso universal aos benefícios mínimos — modo de ver

compartilhado por Fátima.

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— [...] existe porque não tem para todo mundo. Exatamente porque, se não tem para todo mundo, deixa de ser um direito universal e passa a ser um direito só para alguns.

Para Alice, dessa referência à contradição entre direito de todos e direito de alguns

decorre um significado importante da seleção:

— [...] uma forma de manter as pessoas, portanto, os pobres, de certa forma na expectativa de receberem alguma coisa e de terem algum apoio, mas nunca é aquilo que efetivamente precisam para saírem daquela situação de pobreza, e esta é uma forma de gestão e controle.

Aqui comparece a ideia de que a seleção é um disfarce, porque sempre cria nos

sujeitos a expectativa de apoio e atendimento, sem que o acesso seja, de fato, de antemão,

universal. Assim, a seleção mostra-se como forma de gestão e controle da situação da falta de

acesso para todos, na mesma perspectiva do entendimento que vimos adotando nesse estudo.

Luísa já não tem tanta certeza a esse respeito. Surpreende-se e procura refletir melhor.

— Boa pergunta: eu não sei. Aí manifesto a minha grande ignorância e a minha ausência de reflexão em profundidade sobre esses aspectos. [...] A utilidade da seleção socioeconômica, eu creio que, por um lado, poderá ser a de racionar os recursos; por outro lado, há um outro componente de interesses, que eu, esse aí, não consigo chegar lá, não domino. [...] Mas eu não sei se os que estão mais numa situação econômica... Porque a comunicação tem veiculado que, por exemplo, nomeadamente em Portugal, cada vez mais se assiste a um fosso entre os ricos e os pobres... Há ricos muito ricos e os pobres estão mais pobres.

Embora de imediato tivesse dito que não sabia, logo a seguir começa a pensar em voz

alta, para afirmar que a seleção existe para racionalizar o uso dos recursos, ou seja, para

empregar bem os escassos recursos disponíveis. Desconfia, porém, que há algo escondido

referente a interesses de que suspeita, embora reconheça não saber quais são. Aí abandona a

busca de resposta nessa direção, e, imediatamente, sua fala passa a espelhar certeza em

relação à sua utilidade. Luísa até propõe saídas:

— [...] Eu creio que tem que haver uma seleção socioeconômica, não da maneira que existe hoje, que é demasiado rígida, e que aí provoca um nível de desigualdade muito grande. Porque cada vez mais os critérios são muito grandes, são enormes, são de um volume muito grande e que levam a que haja uma determinada desigualdade...

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Aqui parece que é a rigidez da seleção que provoca desigualdade, ou seja, cada vez

que se enrijece o processo e se aumentam as exigências, mais excludente se torna o acesso.

Luísa pensa que para dar acesso de fato, seria necessário rever e flexibilizar os critérios.

Apoiamos esta hipótese da entrevistada, acreditando que é certo que, quanto mais

critérios estiverem presentes no processo, mais complexo e, portanto, mais seletivo se torna o

processo de decisão quanto ao acesso. Na atual conjuntura portuguesa, essa parece ser a

finalidade do aumento de critérios: o maior controle no acesso.

Luísa reitera a importância da seleção socioeconômica, agora ao nível da prática

profissional, indagando: se tal seleção não existisse, como se realizaria a escolha de acesso?

Reconhece que, sem ela, o processo ficaria mais vulnerável e, sujeito ao poder das influências e

pressões políticas, provocaria “maior desigualdade” (talvez quisesse dizer “maior injustiça”).

— [...] Eu sou a favor, eu sou favorável à existência de seleção socioeconômica, mas não da forma que existe hoje, porque creio que, se não houvesse seleção econômica, existia um maior grau de subjetividade, e aí podia o poder político, o poder pessoal, as influências, limitar de alguma forma aquilo que é a minha ação e determinar uma maior desigualdade.

E, então, conclui que os critérios impõem limites à intervenção profissional, mas

também dão mais condições ao profissional para sustentar o acesso como direito, pautado em

quesitos mais transparentes, uma vez que pode justificar a seleção e os usuários podem

reclamar e recorrer se se sentirem injustiçados. Ou seja, se anteriormente reclamava que é

bom quando o critério é aberto, agora avalia que são os critérios claramente definidos que

protegem o profissional, enquanto funcionário, em caso de pressões políticas e permite ao

usuário exigir equidade de tratamento.

Luisa também afirma a importância do balizamento que a definição de critérios de

seleção dos beneficiários oferece a estes, dando-lhes garantia de poder “reclamar e recorrer”

das decisões feitas pelos profissionais.

Alice, ao pensar sobre o significado das seleções socioeconômicas, trata também do

significado dos serviços sociais e das expectativas dos usuários presentes nos processos

seletivos, sobre os quais os profissionais nem sempre param para refletir.

— Se uma pessoa tem expectativas, isso faz parte do seu plano, de sua aspiração de realização pessoal. Portanto, uma pessoa que vem pedir ajuda, e nós, se nós tivermos níveis de avaliação muito baixos... Ela diz que quer estudar, quer ir para a universidade, ou quer... E nós, quer

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dizer, por dentro rimos, mas ela quer ir à universidade! Poderemos pensar, por que o individuo quer estudar, quer ir para a universidade? E nós por dentro rimos, “Olha, este quer ir para a universidade!”, quando o outro que não tem a 4ª classe... Já não tem direito a ir? Mas ele não tem o direito? Ou seja, têm direito de se construir como pessoa, para mais nada. E as ajudas e os recursos deveriam ser para nós nos constituirmos como pessoas, nos realizarmos como pessoas. Para que são os recursos? Para que são os bens materiais? Não são para cada um de nós se realizar? E cada um não se realiza de forma diferente?

Na realização da seleção socioeconômica, o profissional depara-se com alguns dilemas

com os quais terá que lidar, porque há diferenças de necessidades entre os demandantes dos

serviços, tornando-se imperativa a detenção de referências que lhe permitam uma leitura

crítica sobre a realidade alvo de sua avaliação profissional, se a perspectiva é atender as

demandas reais dos usuários dos serviços e benefícios sociais. Alice comenta:

— Eu sempre tive dificuldade de lidar com essa seleção socioeconômica, até porque nós, por exemplo, aqui temos muito poucas formas das pessoas provarem que têm [recursos]. Há pessoas — vamos lá a ver, como é que eu hei de explicar isso? Nós temos aqui pessoas que não têm dinheiro e que pedem menos do que pessoas que têm mais dinheiro. Por exemplo, temos aqui rurais com reformas [aposentadorias] muito baixas. Mas porque, se calhar, produzem as suas coisas, eles têm uma organização familiar com que conseguem viver melhor, com melhor qualidade de vida, do que, por exemplo, pessoas que vivem na cidade e que não conseguem, com mais dinheiro do que esses tais rurais, fazer face às múltiplas necessidades da cidade. E, portanto, nós temos, às vezes, muito mais pedidos de pessoas aqui à volta de Lisboa, que vivem neste meio urbano, porque não conseguem, com as suas reformas de 270 euros, fazer face a uma renda de casa e fazer face a outras coisas.

A mesma entrevistada expressa a necessidade de o assistente social conhecer as

particularidades da população atendida pelas organizações sociais, por entender que a seleção

socioeconômica não é simples enquadramento aos critérios estabelecidos.

—Os que vivem na cidade têm a sua casa própria, têm a sua horta própria, etc. É verdade que, possivelmente, essas pessoas do campo também não têm aspirações e bens e expectativas como as pessoas da cidade têm. As pessoas da cidade têm expectativas de vestir de determinada forma, de viver de determinada forma, etc. E isto, a mim, faz-me alguma dificuldade, mas eu acho que os critérios de seleção devem ter em conta estas múltiplas realidades e não só critérios de natureza estritamente econômica.

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Fátima também considera que é muito redutor realizar processos seletivos

considerando somente a situação econômica no seu aspecto financeiro.

— [...] este estudo não pode ser só econômico, tem que ter mais vertentes, tem que ser avaliado por outras áreas que não só a questão das rendas, a questão dos rendimentos, não só os per capita. Tem que se perceber também as questões sociais, as redes sociais, os apoios sociais. Eu lembro-me, por exemplo, de uma das questões que nós pomos aos alunos quando fazemos a entrevista, que é se eles se consideram carenciados. Eu lembro-me que uma vez tinha aqui uma aluna, mãe de três filhos, divorciada, sem apoio nenhum do ex-marido, com uma situação econômica gravíssima. E, quando eu lhe perguntei se ela se considerava uma aluna carenciada, ela respondeu: “Carenciada, não. Olhe, tenho uma rede de amigos que me apoia em todos os aspectos, os vizinhos vão buscar os meus filhos aos colégios, ficam com os meus filhos em casa quando eu estou nas aulas. A roupa, eles não têm roupa de marca, também não precisam, têm outra, estão quentinhos na mesma. Os brinquedos, não têm os brinquedos ‘X.p.t.o.’,88 mas têm brinquedos. E eles não pedem, porque até já sabem que eu não posso... Eu não me considero uma pessoa carenciada, sou uma pessoa rica de afetos, de rede social, de apoios. Portanto, é evidente que eu preciso do apoio para pagar as propinas [refere-se às mensalidades], para pagar os meus estudos. Mas carenciada eu não me sinto.” Em contrapartida, tenho outros alunos que vêm aqui com um carro do último grito, e, quando se pergunta “Então, você acha que é um aluno carenciado, precisa do apoio da bolsa para fazer o seu curso?”, respondem “Ah, sim, sim! Preciso muito.” “Mas precisa por quê?” “Porque não consigo comprar os livros todos que eu quero, não consigo.” Estás a ver? A própria pessoa tem formas de estar diferentes e projeta a sua própria necessidade de maneiras diferentes e depois... Por isso, acho que esta avaliação coloca algumas pessoas no sitio certo, mas não as coloca todas.

Aqui as entrevistadas demonstram conhecimento das falácias a que a forma de

estabelecimento dos critérios pode levar, no tocante a sua pretensão de justiça.

Elas deixam ver também como as formas de realização da seletividade de acesso estão

na dependência da forma cuidadosa e criteriosa adotada pelo profissional na apreensão e no

tratamento de complexas questões envolvidas nas análises e decisões profissionais,

destacando dentre os muitos possíveis elementos a considerar: as diferenças da vida campo-

cidade, o consumo diferenciado nestes locais, as aspirações nos diversos estratos, o que

consideram riquezas, como, por exemplo, a rede de apoios.

88 Sigla que designa a excelência ou alta qualidade de um produto.

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Quando tratamos do entendimento que as entrevistadas têm acerca da relação entre

direitos sociais e seleção socioeconômica e se entendem sua realização como forma de

realização da justiça social e promoção da igualdade, surgiram várias polêmicas e

inquietações. Em um misto de constatação, indignação e certo constrangimento, expressaram

um pensamento sobre o que fazer e como poderiam sair dessa situação tão incômoda. Por um

lado, a apreensão da desigualdade social; por outro e ao mesmo tempo, a pergunta sobre o que

fazer. Como lidar com essa contradição diante dos processos seletivos?

O equacionamento da questão de forma crítica envolve o domínio da apreensão do

jeito de ser das políticas sociais na sociedade capitalista, assim como expressa o horizonte

societário desejado. Nas entrevistas, aparecem os diversos entendimentos de como deveria ser

a política social, assim como o trato das expressões da questão social. Nesse procedimento,

foram explicitando o jeito de entender a profissão e a sociedade.

A política social na sociedade capitalista expande-se ou se amplia a partir da

correlação de forças presentes, sempre visando à manutenção da ordem do capital. Nesse

cenário, a seleção socioeconômica comparece como forma de gestão da pobreza e dos poucos

recursos a esta destinados, com muita injustiça.

Esse é o entendimento apresentado por Alice:

— Eu acho que nem sempre há uma base de estudos socioeconômicos que levam à definição das políticas sociais. Penso que as políticas sociais são definidas de forma muito circunstancial, de forma contextual. Talvez contextual seja mais exato, de acordo com a correlação de forças presentes e de acordo com os interesses políticos de determinado momento, e nem sempre tem na base estudos fundamentados de natureza socioeconômica sobre como utilizar os recursos públicos. [...] É uma gestão e um controle da questão da pobreza, não é? [...] É da manutenção, portanto, das relações capitalistas de produção. Nós sabemos que é isso [...].

Ela, assim como nós, também entende que os direitos sociais existentes foram obtidos

por meio das lutas empreendidas pelos trabalhadores, que não são, portanto, simples doações

e que, na atual conjuntura, a dramática a perda dos direitos conquistados vem ocasionando

sérios danos à qualidade de vida, anteriormente alcançada, daqueles que dependem do

trabalho para viver.

— [...] nós também sabemos... Vamos lá ver que o Estado de Providência, o Estado do Bem-Estar Social, também, conseguiu aquilo que o trabalhador não tinha; que, ao ter alguns direitos e um

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rendimento independente do salário, ele ficou mais livre para fazer greves, para se opor, etc. Por isso é tão grave esse momento de retrocesso, de perda mesmo de direitos conquistados. Estamos a perder os direitos todos, não é? Sabemos como isso foi importante, mas também sabemos que isso aconteceu devido às lutas dos trabalhadores, dos sindicatos, dos movimentos sociais, etc. Também para poder manter este modelo de sociedade em que o lucro e a mais-valia continuam, portanto, a ser intocáveis, não é? Sabemos que a economia não está a serviço do desenvolvimento das pessoas, mas ao contrário, e, enquanto as coisas forem assim, quer dizer... Não quer dizer que não haja progresso, não quer dizer que não lucramos muito, que não avançamos, e tudo isso. Mas a verdade é que continua a ser a mesma coisa, continua... [...]

Embasada nessa apreensão, a entrevistada reforça a ideia de que a seleção

socioeconômica não se constitui em instrumento de promoção da justiça.

— Sim, não tem a ver com esta promoção. Isso é apenas um instrumento [refere-se á seleção socioeconômica] para gerir os fracos recursos que existem, e, mesmo assim, com muita injustiça. Porque quem é que sabe, de fato, que aquele que não recebeu benefício, se não precisaria, se calhar, mais, sob todos os pontos de vista, do que aquele que os recebeu? Ou seja, o que ele queria e o que ele precisava?

Isaura, entrevistada brasileira, participa dessa discussão, endossando essa perspectiva

de entendimento, ao concluir, de forma sintética e crítica, que a seleção socioeconômica não

se apresenta como forma de promoção da justiça social e da igualdade.

— Mas não é instrumento de igualdade de direitos, que é um campo minado e escorregadio. É um campinho muito trabalhoso de achar que a seleção pode ter a ver com a promoção de igualdade. [...] O mercado de seleção dá acesso a algumas coisas. Ela não promove a igualdade social. A igualdade social está na renda, no sistema, na produção. [...] Eu acho que a política, a seleção socioeconômica não promove igualdade, ela dá acesso a alguma situação. Ela permite você entrar na faculdade, ela permite você ter uma prótese porque a igualdade está no sistema, na detenção de... [...] Mas, a seleção socioeconômica nem diminui... Ela dá acesso a alguma coisa. Ela pode estar orientada se são direitos sociais ou universais, ela pode estar orientada por isso, mas não promove a igualdade. Porque a justiça social estaria num patamar de emprego para todos, tudo para todos. A justiça social é o caminho oposto da seleção socioeconômica. Se houvesse justiça e igualdade não precisava seleção.

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Regina, outra entrevistada brasileira, reafirma o pensamento de que, “se há políticas

universais de direitos sociais, pode ter uma diminuição de desigualdade”, o que é muito

diferente de interferir para a sua extinção.

Nesse sentido, Alice conclui que as políticas sociais e a seleção socioeconômica não

são formas de promover a igualdade social. Ela defende a ideia de que de que é preciso, no

entanto, haver o reconhecimento das diferenças entre as pessoas, ao propor um horizonte de

igualdade social que contemple, ao mesmo tempo, as diferenças de interesses e necessidades

das pessoas. Trata-se da igualdade com equidade social.

— Como hei de dizer? Não acho que se promova a igualdade. Igualdade realiza-se quando há serviços universais fundamentais a nível da educação, etc., e a tal discriminação positiva em relação àqueles que saem da escola, como você diz, têm insucesso escolar, aqueles que abandonam o ensino; deveria haver programas complementares e todos terem direito básico de ir para o ensino, de terem direito à saúde, etc., e depois, os programas complementares são para que essas pessoas que saíram... O que falta àquelas pessoas, como podem ser ajudadas? Não tem a ver, porque vamos lá ver. Temos que ir ao fundo das políticas sociais e o que significam. É uma gestão, enfim, um bocado hipócrita, da gestão da pobreza.

Nas falas das entrevistadas, pode-se verificar o entendimento de que a seleção

socioeconômica está incorporada a processos sociais mais gerais do que um exame inicial

poderia supor. Fátima reafirma:

— Isso quer dizer que, para responder se a seleção socioeconômica é um instrumento para realizar a justiça social e promover a igualdade, isso tem a ver com processos muito mais amplos. É preciso decifrar... É assim... Pode-se promover alguma justiça social. Alguma, no sentido de que, por exemplo, em relação a nós, se calhar, muitos alunos... Se nós não atribuíssemos a bolsa de estudo, não poderiam estudar, não poderiam tirar os seus cursos, e, portanto, não poderiam ter outro tipo de renda, enfim de trabalho e de educação, sem a bolsa. A atribuição, por exemplo, do subsidio de doença para quem está sem renda, mas está doente, é evidente que a situação seria muito complicada sem a atribuição do subsídio. Eu acho que possibilita alguma justiça social, mas não é total, como é evidente, porque alguns ficarão sempre de fora. Alguns ficam sempre de fora!

Luísa, que na entrevista se colocou mais como funcionária e técnica, como ela mesma

se reconhece, apresenta uma compreensão baseada na experiência de funcionária da

organização e no que ouve dizer no cotidiano e na imprensa de massa. Ela demonstra grande

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preocupação em realizar um trabalho competente, ao procurar, em todos os momentos da

entrevista, criar respostas profissionais a partir do entendimento que tem. Agora fala sobre a

sua compreensão das relações entre estudos socioeconômicos e direitos a serem reconhecidos

pelo Estado. Sua argumentação se dirige à defesa da ideia de que alguns detêm méritos e

outros não, tornando assim necessária, a comprovação da situação real para legitimação das

decisões quanto ao acesso.

— Eu, por acaso, creio que a questão não está por aí, está antes disso. E agora vamos nos situar ao nível do Rendimento Social de Inserção e daquilo que eu conheço. Eu, de alguma forma, também percebo a perspectiva do Estado, e eu, enquanto assistente social, de alguma forma, eu partilho das circunstâncias, porque nós temos os indivíduos que recorrem ao Rendimento Social de Inserção porque estão verdadeiramente numa situação de privação, e que estão numa situação de desemprego, e que estão efetivamente numa condição de pobreza. Mas depois temos também outro número significativo daqueles que estão para além dessa situação, mas que o sistema não consegue filtrar e que também usufruem. E por isso eu percebo que, se um indivíduo está numa situação de desemprego, não tem qualquer benefício e precisa do Rendimento Social de Inserção, para ele é o mínimo. [...] Nós temos a consciência de que essa forma de seleção não leva em conta todos os aspectos da vida do indivíduo, leva uma parte, e, de alguma forma, isso nalgumas situações é muito frustrante, sobretudo quando um indivíduo fica excluído da situação.

Ao pensar se as seleções de acesso se constituem ou não em formas de se fazer justiça

social e promover igualdade, Luísa expressa dúvidas, porque percebe a desigualdade social

existente, mas não chega a uma conclusão. Nesse momento, ela vai além de sua apreensão

inicial, quando entende que há processos e interesses escondidos por detrás de fatos cujo

entendimento não domina.

— Eu creio que não, embora, se calhar, vá entrar numa contradição de que sim, que tem que haver algumas balizas, quando, de fato, os recursos... Voltamos à questão dos recursos, que, se calhar, não dá para atender todos, para todos; ou, então, a de que tem que haver políticas sociais diferentes, em que os que ganham muito têm que repartir a sua riqueza. A questão pode passar também por esta situação, mas na qual eu não me sinto à vontade para entrar, porque, de fato, a minha ignorância — ou ausência de reflexão — nesta matéria não me permite ir por aí. Mas já tenho equacionado que, se calhar, se uma parte dos que vivem... não tivessem tanto, tanto, tanto, tanto, havia uma outra parte que tinha as suas necessidades asseguradas. Por isso, não havia países desenvolvidos, nem países

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subdesenvolvidos, nem países superdesenvolvidos; se calhar, então, tínhamos o mundo todo desenvolvido, não é? Mas isso passa por interesses, por outras questões a nível macro e que, de alguma forma, se aplicam a nível micro. [...] Quanto mais eu vou trabalhando e mais vou caminhando, mais vou tendo consciência disso, que aquilo que se define em termos de políticas não responde, não visa efetivamente responder àquilo que são as necessidades. E a minha dúvida, que acho que tenho uma resposta, mas não a vou dizer, é que se isso é feito por ignorância ou se é feito de uma forma intencional.

Fátima, que analisa a realidade do ponto de vista da utilidade e a partir dos limites

impostos pela conjuntura de contenção de gastos pelo Estado e da perda de direitos —

situação essa fortemente sentida e presente em todas as entrevistas que realizei em Portugal

—, detecta a presença de processos maiores presentes. Ela se manifesta a respeito das relações

entre estudos socioeconômicos e direitos sociais:

— Estou um pouco nervosa com isto [a situação de ser entrevistada], mas é assim... Bom, até certo ponto, considerando a situação econômica em que, de um ponto de vista geral, os países se encontram, é extremamente difícil que todos, independentemente das suas situações socioeconômicas, tenham acesso a tudo, que possam disponibilizar a todos os direitos sociais. Por exemplo, posso falar da área que eu conheço relativamente melhor, que é a área do ensino superior, que à partida será um direito universal. O ensino será um direito universal para todos os indivíduos; agora, que é um fato que não é possível, que não tem condições para todos poderem aceder, isso é um fato. Até que ponto os estudos socioeconômicos permitem que isso aconteça? Havendo em termos econômicos uma situação complicada, o Estado, neste momento, a gente gostando ou não, não tem forma de poder assumir o ensino gratuito para todos, o que, no fundo, faz parte da nossa Constituição. Agora já vai tendencialmente gratuito, qualquer dia desaparece, desaparece o tendencialmente, desaparece o gratuito, desaparece tudo. Portanto, era gratuito; depois já era tendencialmente gratuito — enfim! Mas, de qualquer forma, face à situação econômica que se vive atualmente, realmente não há hipóteses economicamente... Condições para todos terem acesso aos tais direitos que deveriam ser universais e gratuitos para todos.

É importante notar que nenhuma assistente social portuguesa entrevistada analisa

claramente a crise portuguesa no contexto do capitalismo internacional, na era da globalização

neoliberal, ou se refere ao uso de significativas quantias do fundo público de Portugal para o

pagamento da dívida externa. Nem mesmo se menciona a reestruturação produtiva e suas

consequências. Todas elas expressam, no entanto, preocupação, angústia e inquietação diante

da grandeza da crise que atinge profundamente o cotidiano do país, das organizações onde

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trabalham e de suas próprias vidas. A situação atual é percebida de forma tão grave, ao trazer

mudanças significativas, que torna-se difícil para as entrevistadas ter clareza ou manter

objetividade diante do forte impacto emocional em que vivem.

Fátima expressa e reconhece a crise através das mudanças que vêm ocorrendo nas

normatizações do Ministério da Educação, o qual impõe o manejo dos critérios de forma mais

estrita, e no empobrecimento das famílias que se veem endividadas e angustiadas por não

saberem como sairão da situação em que se encontram. Dessa forma, ao mesmo tempo em

que critica o aumento de restrições ao acesso ao benefício, entende a necessidade dos

processos seletivos. Eis como exprime sua apreensão acerca do objeto-alvo da nossa reflexão

no momento atual:

— O estudo socioeconômico é uma forma de encontrar limites, enfim de apoiar com as verbas existentes, de poderem ser apoiados aqueles que têm mais dificuldades para aceder, para conseguirem aceder aos direitos universais, a esses direitos. Agora, dir-me-ia que os estudos socioeconômicos são os mais corretos, são os mais adequados? Porque o limite é 100, e quem é o 101 já não vai... E será que esse que é o 101 tem as condições necessárias e suficientes para poder aceder sem necessidade do apoio? Pois aí eu já acho que não há. Acho que realmente os estudos socioeconômicos são necessários, porque acho que, face às dificuldades em termos econômicos, eu falo de Portugal, país que eu conheço. Portugal tem neste momento, para prestar apoios, portanto, verbas para esses efeitos... Haverá, terá que haver uma forma de se conseguir fazer uma seleção. Agora, o fato é que a seleção não é correta, não é absoluta... Não pode ser... Nós não podemos ficar... Pelo fato de o rendimento socioeconômico dizer que este aluno... Já estou a falar de aluno! [...] O estudo socioeconômico diz que este aluno não está em condições de receber apoio, e nós ficamos satisfeitos. Dizemos “Não, senhor, você não tem direito!”, e pronto, já está arrumado. Não ficamos! É evidente que nós tentamos paralelamente encontrar formas alternativas de apoiar os alunos quando verificamos que, apesar do estudo socioeconômico dizer que ele não tem condições para ter, aceder aos apoios. [...] Já na semana passada, o primeiro-ministro falava que vai rever também as leis do trabalho e cobrar produtividade, já reduziu no subsídio de desemprego, porque já lhe expliquei isto… [...] Mas, é isso porque duvido muito que atualmente se consiga universalizar os direitos, acho que a sociedade tem mesmo que mudar para que isso deixe de ser... Não sei como está no Brasil, mas em Portugal cada vez mais nós sentimos que é cada vez menos o social e cada vez mais o econômico. E os próprios jovens e as próprias pessoas cada vez mais se preocupam menos no que é do aspecto social e se preocupam mais com os aspectos relacionados à aquisição, o ter. [...] Nós estamos numa sociedade capitalista que está cada vez mais... Cada vez mais capitalista, cada vez mais individualista, cada vez mais cada um por si.

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[...] De qualquer maneira, relativamente a esta primeira questão do entendimento das relações [refere-se à relação entre seleção socioeconômica e direitos sociais], considero que é necessário o estudo socioeconômico, mas que eles se contrapõem no sentido em que a necessidade de haver estudos socioeconômicos para atribuir um direito já significa que o direito deixa de ser um direito. Deixa de ser um direito a partir do momento que todos não têm acesso.

Tília, de todas as entrevistadas portuguesas, é a que expressa claramente e de forma

dramática os rebatimentos da atual crise europeia na prática dos assistentes sociais que

trabalham com o Rendimento Social de Inserção (RSI); ela mesma está em crise e em

sofrimento, ao constatar que está ruindo tudo aquilo que ajudou a construir, em termos de

direitos sociais, a partir de 25 de abril de 1974. Não admite que o assistente social possa

realizar a seleção socioeconômica, o que, no momento, significa participar da política de

cortes de beneficiários atendidos.

A partir do que vive e de como apreende a crise, faz uma análise de caráter avaliativo

acerca das suas consequências no trabalho do assistente social que atua com o RSI. Os

rebatimentos da conjuntura sociopolítica de Portugal no trabalho profissional perpassam todo

o seu discurso de que, se o RSI é direito, não deveria haver seletividade. Embora esteja um

pouco desnorteada sobre o que fazer diante da profunda mudança com que se depara, admite

que a realidade vem lhe impondo novos posicionamentos políticos, tendo em vista as

circunstâncias que se apresentam.

— O meu entendimento é que não devia haver relação entre o direito e o estudo socioeconômico, quer da família, quer do individuo, porque aqui, no contexto europeu, e é só sobre este contexto que eu tenho refletido, nos países latino-americanos não sei, não vivo no Brasil, portanto, não sei, não faço ideia. Eu própria tenho vindo não é bem a mudar de opinião, mas ir fazendo algum balizamento de posição, à medida que também a posição social vai mudando. Portanto, nesta fase, penso que na questão dos direitos sociais, do direito social, devia haver um mínimo social independente de qualquer estrutura. Houve uma fase em que eu não defendia isto, mas nesta fase, neste momento, penso que num país em desenvolvimento ou desenvolvido, a questão da sobrevivência devia estar assegurada, porque nasceu, porque é um cidadão; mesmo que não tenha condições para suprir as necessidades mínimas de comer, de abrigo; que tenha necessidades de sobrevivência, penso que o acesso devia ser automático. É aquela ideia dos mínimos sociais, sem comprovação de nada. O acesso deveria acontecer sem qualquer intervenção de ninguém. [...] Isso seria as finanças que fazia, não era preciso intervenção profissional. Isso é o que eu penso agora relativamente aos mínimos, porque me

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parece que a intervenção, quando se fala da situação de mínimos... Ou melhor, se quiser dizer de extremos sociais, a intervenção de um profissional de Serviço Social ou de outro, na área do social... Quanto a mim, penso que é até perigosa, perversa e nunca é, exatamente...

Tília expressa entendimento claro de que a seleção socioeconômica realiza também a

exclusão do acesso. Ao verificar a impossibilidade de realizá-la com objetividade, manifesta-se

contrariamente à participação dos assistentes sociais nessa escolha e denuncia o caráter

ideológico presente. Faz objeções à prática dos assistentes sociais que tratam a questão social

como questão moral, preferindo “os bons pobres”, que passam a ser julgados moralmente. Esse

é outro motivo que a leva a questionar a presença de assistentes sociais nos processos seletivos.

— Porque não há para todos e porque é preciso sempre escolher, e essa objetividade, que teria de ser necessária, não é possível, exatamente porque, conforme conversava há bocado, do ponto de vista da política social, tem sempre uma instância ideológica que é sempre interiorizada e lida, interpretada por um profissional. E, conforme a sua ideologia, ele aplica de uma forma ou de outra e, pronto. Isto é conhecido, não é nenhuma ideia nova, e nós todos sabemos que há assistentes sociais com fome do bom pobre, que é o que se comporta bem. Não gosto disso, e há outros que acham que as pessoas têm o direito de gastar onde bem entenderem o seu dinheiro, porque os custos que têm são independentes de nós. Não precisam de moralizadores da forma de como as pessoas gastam o dinheiro. Mas esta polêmica interessa-me e está viva de alguma forma. Neste momento, em Portugal, a propósito da questão do Rendimento Mínimo Garantido, ou melhor, do Rendimento Mínimo de Inserção, que se chamava Rendimento Mínimo e que agora se chama Rendimento Social de Inserção... Eu, por mim, preferia que fosse um rendimento mínimo só. E, depois, se houvesse pessoas que, para, além disso, precisassem de outros apoios, eventualmente, poderiam ser atendidas por um profissional. [...] Mas eu, mesmo assim, gostaria de ver o profissional, o assistente social desligado do dinheiro. Vou explicar por que e qual é o meu entendimento da intervenção do profissional. Nesta fase, na atualidade, e, sobretudo, nesta fase agora de recuo do Estado de Previdência, ela tem nos aproximado muito mais do assistencialismo. O assistencialismo não é por si depreciativo, realmente para mim, do ponto de vista dos direitos, estava garantido, porque não é pedido mais nada às pessoas. Por exemplo, há países onde esse rendimento mínimo é garantido e não é preciso pedir mais nada às pessoas. Aqui em Portugal, estava garantido esse mínimo, desde que a pessoa se disponibilizasse para contrapartidas, e eu sempre achava que a parte do dinheiro devia ser [cuidada por] um departamento, e era assim que era. E a parte das contrapartidas que o cidadão tinha que dar é que poderiam ser trabalhadas pelo profissional. Faço-me entender? [...] Não, eu acredito que os

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trabalhadores que têm baixos salários precisam, podem precisar de apoios, se tiverem uma família numerosa ou muitas despesas, mas não é essa a minha questão. A questão não é essa, mas a de que eles se façam ouvir. Há os que têm outros meios de se fazerem ouvir, porque têm sindicatos, têm formas, ainda têm laços com o trabalho, com os colegas. A minha questão é esta questão que tem a ver, se nós atribuímos dinheiro ou não. Portanto, para me centrar aqui na questão da sua tese, e ligarmos àqueles que precisam de apoio, de todo apoio,,,, porque não têm outros meios e porque não estou de acordo que sejamos que nós os profissionais para fazer isto. A pergunta aqui é se nós teremos capacidade para fazer isto. Temos e, se calhar, também temos legitimidade. Agora, acho que é muito perverso isso. O que me parece é que é um caminho muito tortuoso.

Eunice, assistente social brasileira, comparece nesse debate, posicionado-se também

contra o assistente social realizar processos seletivos que impliquem apenas a efetuação das

operações matemáticas de somar e dividir. Vê sentido em o profissional participar de

processos seletivos, desde que seja para tratar das necessidades apresentadas pelos usuários

dos programas sociais através de análises mais consideradas, em que tenha poder de decisão.

— Se eu vou ver o número de membros da família, renda per capita, fazer a divisão e a soma, eu não preciso de um assistente social, a não ser que, se eu tivesse a possibilidade, enquanto assistente social — e isso deveria ser uma conquista —, de ampliar, como a Luísa [entrevistada de Portugal] fala, que ela se sente de fato exercendo a profissão dela com competência quando ela pode ir além daquela seleção objetiva, quando ela pode trazer outras necessidades; a pessoa tem direitos e necessidades, e ela pode trazer outras necessidades que precisam ser supridas. Eu acho que talvez isso coubesse, mas, para fazer conta e preencher “X”, não precisa ser assistente social.

Nas falas de Eunice e Tília podemos perceber que há uma preocupação, presente no

Serviço Social português como no brasileiro, em colocar a profissão em um lugar mais

qualificado, sendo que em relação à seleção socioeconômica merece destaque o sério

questionamento apresentado pelas entrevistadas ao tratar a sua operação reduzida à simples

equações matemáticas de soma e divisão e ao preenchimento de “X” em formulários.

Essa ideia é reforçada por Alice, que já trabalha noutra direção, ou mesmo por Fátima,

que propõe cuidados e atenções na direção de contemplar as diversas situações apresentadas

pelos demandantes dos serviços e benefícios sociais.

Eunice, que vem pesquisando e escrevendo sobre o estudo social no Serviço Social

brasileiro que se realiza no âmbito do Judiciário, avalia e se posiciona claramente contra a

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participação de assistentes sociais na realização de seleção socioeconômica nas políticas

sociais consideradas de acesso universal, por se constituir em direitos sociais:

— Nós, assistentes sociais, nessas políticas de saúde, educação e tudo mais, acho que jamais deveríamos aceitar trabalhar numa seleção socioeconômica.

Esse parecer indica o posicionamento político claro de que os assistentes sociais não

devem atuar em processos seletivos nos quais não tenham qualquer poder de decisão.

Significa dizer que os assistentes sociais não deveriam trabalhar em simples triagens quando

solicitados a intervir só para verificação de documentos e lançamento de dados em fichas e

planilhas, tendência forte nos dias atuais, tendo em vista o processo de informatização que

integra os processos de trabalho. E, para Eunice, há ainda outros motivos:

— Se o programa continuar, com a informatização, eu tenho certeza que não vai mais precisar do assistente social para isso, percebe? [...] Aí tem a outra crítica que você ouve muito: quem está no poder hoje transfere... Para que as coisas continuem como estão... Preenchendo “X”, fazendo conta de divisão... Eu não preciso fazer quatro anos de graduação, e mesmo se hoje é uma exigência, e há anos atrás foi mais ainda, com o avanço da tecnologia não vai ser, graças a Deus que não vai ser, se for só isso. Agora, o que a gente, enquanto assistente social, propõe e de fato executa enquanto nossa possibilidade de intervenção consequente, competente, numa política de assistência social, num Cras e num Creas, é poder deixar de fazer plantão, porque grande parte dos Cras e Creas está fazendo isso, um atendimento de plantão, e o principal objetivo do nosso trabalho lá não deveria ser esse. Eu conheço algumas poucas diferenças, por parte de pessoas que tentaram ampliar esse trabalho com a população, no sentido de empoderamento das pessoas, de conhecer seus direitos, de começar a ter uma ação mais coletiva, e foram cortadas, não a pessoa, mas o projeto foi finalizado, porque não há um interesse político...

Eunice reforça o depoimento anterior de Luísa a esse respeito: hoje, faz parte da rotina

do assistente social, nas organizações sociais, o preenchimento de fichas, planilhas e

questionários, assim como introduzir informações no computador ou mesmo realizar o seu

preenchimento on-line. Se, a priori, não há problemas em realizar essas tarefas, mostra-se como

questão séria e preocupante assistirmos hoje a forte tendência à burocratização do atendimento,

quando só o produto passa a ser valorizado, em detrimento do processo de atendimento, sempre

tão valorizado desde o início da profissão. Com isso, o profissional perde a dimensão da

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possibilidade de realização de um trabalho que possa interferir na forma de ver, pensar e agir da

população atendida, tendo em vista seus interesses como classe subalternizada.

Nas entrevistas realizadas com as brasileiras, aparece ainda a discussão sobre a

natureza da seleção socioeconômica do ponto de vista instrumental. Regina, que também vem

pensando e escrevendo sobre o estudo socioeconômico há algum tempo, afirma que é

necessário fazer uma distinção entre o estudo social e a seleção socioeconômica:

— [...] uma coisa é o estudo social e a outra coisa é a seleção socioeconômica. Talvez o que está acontecendo com essa massificação é que se está reduzindo o estudo social e a seleção socioeconômica. Isso é o que se poderia chamar de retrocesso. [...] Ele está se reduzindo, pode chamar estudo social e fazer seleção socioeconômica; neste sentido ele se reduz. O estudo social tem uma função dentro da própria função, que são as decisões profissionais. Isso é uma perícia que eu estou fazendo e que eu vou dar... Exige a opinião de outra pessoa, que é a do juiz. A seleção socioeconômica é: eu vou incluir ou excluir isso ou aquilo. O estudo social tem uma outra conotação, que seria: qual é a decisão profissional que nós vamos ter em determinadas situações? Que pode incluir isso e pode incluir uma seleção socioeconômica, mas ela não se restringe a isso. [...] Eu acho que é um dos desdobramentos que nem é a perícia social no Judiciário. Você pode fazer um estudo social que não seja necessariamente uma seleção socioeconômica e nem uma perícia. Você vai, no estudo social, definir o que vai fazer, porque o assistente social não faz mais que estudar a situação e ter uma decisão. Esse processo é que está encurtando.

Isaura, outra professora brasileira que vem pensando a respeito, participa do debate,

reafirmando a necessidade de distinguir seleção socioeconômica e estudo social, porque são

usados em situações e contextos diferentes. Ela apresenta exemplos esclarecedores:

— Eu entendo que são coisas diferentes, usadas em situações distintas. Acho que a seleção socioeconômica, o nome diz: é quem eu vou escolher para ter acesso àquilo que eu estou oferecendo presidido pelo econômico. O estudo social, ele não tem o caráter de escolha grande (no sentido de envolver número grande de indivíduos). Ele é de decisão sobre a vida das pessoas de outro jeito. Por exemplo, se você pode adotar uma criança ou não, se eu vou tirar uma criança sua por denuncia de abuso. É mais amplo e que eu vou tomar decisões, muitas vezes definitivas, na vida das pessoas. [...] E o estudo socioeconômico [...] é uma decisão que pode ser revista de algum jeito com coisas menores. Eu não consigo uma cesta básica na paróquia de lá, mas eu consigo naquela; não consigo este mês, mas consigo no próximo. E quando o estudo social se coloca, abrange muito mais além dele, as

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decisões são muito mais definitivas; você não revê... Você revê se houver denúncia. A guarda da criança, se pode adotar ou não, é muito mais definitivo.

Eunice e Graziela, que também têm experiência prática a esse respeito, acrescentam

ao debate que, no Judiciário, a seleção socioeconômica quase não se aplica como instrumento

de trabalho, pois não se trata de decisão circunscrita ao âmbito do assistente social. No

Judiciário, o estudo socioeconômico é realizado tendo em vista a emissão do parecer social

para a apresentação do laudo ao juiz, constituindo-se sempre em parte integrante de um

processo judicial, podendo envolver outros profissionais na análise da situação, mas ao final,

caberá ao juiz dar a palavra final. Nesse âmbito de ação, há uma tramitação já traçada para

garantir o direito de acesso ou o acesso ao direito, e são vários os cuidados que devem ser

observados pelo profissional na sua elaboração.89 Trata-se de decisões quase sempre

definitivas, que comprometem decisivamente o futuro das pessoas envolvidas.

— [...] o que a gente tem chamado de estudo social, que eu também acho que é diferente da seleção socioeconômica [...] porque eu falo do estudo social a partir da experiência no âmbito do Judiciário, que tem outro tipo de controle, um controle social do Estado sobre a população, mas numa situação diferente do que é uma seleção socioeconômica. [...] quando propomos discutir o estudo social e realizar o estudo social, [...] Então qual é a proposta? Conhecer a realidade social do sujeito, mas de uma maneira ampla. Não é se ele trabalha ou não, ou quanto ele ganha; isso pode até servir de alguma maneira para contribuir para eu conhecer sua realidade, mas eu tenho que ir além disso, conhecer a realidade sociofamiliar desse sujeito, o processo de socialização, como é o território onde ele vive, o acesso a serviços e a direitos no seu território, o acesso coletivo a direitos sociais, a questão do trabalho, como é que se coloca na vida desse sujeito — com toda essa precarização, essa transformação (Eunice).

— Quando você atende vitimas de violência, a questão socioeconômica, mesmo trabalhando no Estado, ela é um dos elementos, porque o direito de acesso a essa política tem que ser garantido. Na Vara da Infância e da Juventude, não interessa se você tem condições, se você vive na exclusão ou se você é rico, está lá o direito da criança que tem que ser protegido, cuidado pelo Estado (Graziela).

Diante das reflexões apresentadas, torna-se necessária, mesmo que de forma

abreviada, a explicitação de um entendimento acerca das decisões profissionais, destacando

aquela que envolve a realização da seleção socioeconômica de acesso aos serviços e 89 Esse assunto é densamente tratado em Fávero (2003, 2009) e Mioto (2001, 2009).

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benefícios sociais, pois nesse ato está o fundamento básico dessa atividade profissional, ao se

colocar em questão as escolhas e a decisão sobre o acesso/não acesso dos candidatos aos

serviços e benefícios sociais.

As decisões profissionais são atos de poder, que envolvem sérias questões no âmbito

da ética e da política, tais como a liberdade e a autonomia, mesmo que relativas. Todo

processo decisório é indissociável da prática da liberdade: “Para poder opinar, é preciso que o

profissional tenha liberdade para decidir sobre os caminhos que o levarão à formação de tal

opinião” (MIOTO, 2001, p. 149).

Embora as decisões profissionais relativas à seleção socioeconômica sejam pautadas

por critérios estabelecidos, acabando por tornar a autonomia profissional relativa, o exercício

da liberdade e da autonomia profissional deve ser valorizado e estar presente em qualquer

apreciação e avaliação que o assistente social realiza acerca das situações apresentadas pelos

demandantes dos serviços e benefícios sociais, conforme informam os compromissos sociais e

profissionais indicados no Código de Ética dos Assistentes Sociais de 1993.90

Chauí (2002, p. 309), ao tratar das características do sujeito ético, observa que “a

liberdade não é tanto o poder para escolher entre vários possíveis, mas o poder de

autodeterminar-se, dando a si mesmo as regras de conduta”. A liberdade assim concebida

exige, do ponto de vista da ética, que se faça a distinção entre passividade e atividade diante

das questões que se colocam ao sujeito.

Passivo é aquele que se deixa governar e arrastar por seus impulsos, inclinações e paixões, pelas circunstâncias, pela boa ou má sorte, pela opinião alheia, pelo medo dos outros, pela vontade de um outro, não exercendo sua própria consciência, vontade, liberdade ou responsabilidade. Ao contrário, é ativo [...] aquele que controla interiormente os seus impulsos, suas inclinações e suas paixões, discute consigo mesmo e com os outros o sentido dos valores e dos fins estabelecidos, indaga se devem e como devem ser respeitados ou transgredidos por outros valores e fins superiores aos existentes, avalia sua capacidade para dar a si mesmo as regras de conduta, consulta a sua razão e sua vontade antes de agir, tem consideração pelos outros sem subordinar-se nem submeter-se cegamente a eles, responde pelo que faz, julga suas próprias intenções e recusa a violência contra si e contra os outros. Numa palavra, é autônomo e, como tal, verdadeiramente livre (CHAUÍ, 2002, p. 309).

Para escolher, é determinante que haja autonomia do profissional, tendo em vista que a

decisão exige que o profissional emita uma opinião profissional fundada em preceitos teórico-

metodológicos e ético-políticos. O que é autonomia?

90 Outros elementos dessa discussão podem ser encontrados em Barroco e Terra (2012).

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A palavra autônomo vem do grego autos (“eu mesmo, si mesmo”) e nomos (“lei, norma, regra”). Aquele que tem o poder para dar a si mesmo a regra, a norma, a lei é autônomo e goza de autonomia ou liberdade. Autonomia significa autodeterminação. Quem não tem capacidade racional para a autonomia é heterônimo, palavra que vem do grego hetero (“outro”) e nemos (“receber do outro a norma, a regra ou a lei”) (CHAUÍ, 2002, p. 309).

Entendo que as definições de Chauí cabem tanto no caso do assistente social como ser

singular, quanto no seu pertencimento à categoria profissional que o torna um sujeito coletivo

e como cidadão. Quando um assistente social fala, a profissão manifesta-se.

Não estamos tratando aqui da liberdade e da autonomia na perspectiva liberal do

indivíduo jogado à sua própria sorte e decisão, mas como possibilidade de o assistente social

se afirmar enquanto sujeito que tem o que dizer, o que implica lidar com as contradições

existentes, dando-lhes clara direção social, posicionando-se a favor daqueles que dependem

do trabalho para viver.

Com essas considerações, não estamos querendo dizer que o assistente social, nas

organizações que o contratam como funcionário, possa agir orientado unicamente por sua

vontade, pois é preciso considerar sempre o contexto sócio-histórico em que a ação

profissional se realiza —, mas que ele age sempre pautado por determinada posição política

estratégica, na qual funda sua autonomia.

Quero, dessa forma, contrapor-me à postura profissional que pretende se

desresponsabilizar das decisões tomadas ou endossadas pelo assistente social que, alicerçada

na submissão, se afiança na afirmação “eu estava simplesmente cumprindo ordens”. Embora

não exima o profissional das responsabilidades assumidas e das consequências advindas dessa

forma de escolha, é preciso caminhar para além da ação profissional pautada na passividade

da simples obediência.

No Brasil, o projeto ético-político é coletivo e se expressa através do Código de Ética,

da Lei que Regulamenta a Profissão e das Diretrizes Curriculares de Abepss, que se

constituem em instrumentos fundantes da autonomia do profissional diante das organizações

sociais e dos usuários. Os princípios e valores com que nos comprometemos foram de escolha

coletiva e estão claramente consignados nesses instrumentos de luta da profissão. As decisões

profissionais devem se pautar, portanto, por referências nas quais, ao se colocar como

especialista no exame das expressões da questão social, o assistente social encontra os

elementos que afirmam o projeto profissional com o qual se compromete.

A decisão do assistente social como atribuição profissional refere-se à ação de

escolher, de decidir a partir de referências teórico-metodológicas, ético-políticas e técnico-

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operativas existentes na profissão e que o profissional assimila e aciona, de forma consciente

ou não, para realização de estudo socioeconômico de cunho avaliativo. Nessas condições,

podemos dizer que a seletividade de acesso ao BPC, ao RSI e às bolsas de estudos nas

universidades portuguesas não envolvem escolhas, porque é mais uma triagem, implicando

basicamente a conferência de documentos para a certificação de que o indivíduo se enquadra

no perfil e preenche os requisitos estabelecidos. Essas situações não envolvem decisões

profissionais, propriamente ditas, porque já estão decididas na lei sobre quem deve ter acesso

e quem não deve; são direitos consagrados em lei.

A análise aqui apresentada indica que o Serviço Social adquire importância no

processo seletivo quando pode neste interferir, com algum poder de decisão para ampliar e

contribuir para o acesso da população aos serviços ou benefícios sociais. Refiro-me a

situações em que o assistente social pode atuar para a construção e a apresentação de provas

para dar acesso ao direito a alguns dos demandantes, a partir da reinterpretação das leis, dos

regulamentos e dos critérios, então colocados a favor dos interesses dos usuários.

No início da profissão, o acesso se dava mediante o crivo do means test, quando havia

unicamente a cobrança de provas comprovativas da necessidade, através das visitas

domiciliares. Hoje, mediante algum esforço, é possível ao assistente social ajudar o

demandante de atendimento a construir algumas “provas” que podem lhe dar o acesso aos

benefícios sociais.91

Quando não há decisão envolvida e também não há estudos implicados, devemos nos

perguntar: o assistente social, nesses casos, deve participar dos processos seletivos? Ou seja: o

assistente social deve participar de seleções nas quais realiza somente a triagem, preenchendo

formulários e conferindo documentos, sem qualquer poder de decisão?

É preciso considerar que o profissional, quando atua nessas situações, fica

subaproveitado. O assistente social é qualificado, tem um saber especializado que lhe permite

ir além da tarefa subalterna de fiscalização e controle do acesso. Quando, porém, a seleção

socioeconômica envolve decisões profissionais, a atribuição fica condizente com a formação

universitária recebida e a profissão fica valorizada.

Embora carregada de grandes contradições, é preciso que, na condição de categoria

profissional, nos debrucemos sobre essa questão, uma vez que é a sociedade de classes que

colocou e continua a colocar a demanda de sua realização à sociedade e, historicamente,

desde o início da profissão, a tarefa da seletividade de acesso vem sendo assumida pelos

assistentes sociais, ainda que não de forma exclusiva. É preciso considerar que, se o assistente 91 Essa possibilidade foi muito bem apresentada e explorada por Silva (2000).

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social deixar de operá-la, outras profissões poderão vir a assumir sua execução, porque tem

utilidade social e política fundamental, no sentido de legitimar as desigualdades sociais.

É preciso, então, indagar se é possível, reinterpretá-la, visando atender o interesse dos

trabalhadores no acesso aos serviços sociais, nesse momento em que a focalização das

políticas sociais é reforçada. Isto é: qual deve ser o nosso papel diante desse fato? Que lugar é

possível construir na sua formulação e na sua operação concreta?

Oliveira (2007, p. 2), ao indicar as diretrizes orientadoras do estudo social e do estudo

socioeconômico, explicita e indica o que o assistente social deve saber e abordar na leitura das

situações-alvo de sua avaliação e decisão. A autora indica que os estudos devem ser pautados por:

• conhecimento teórico substantivo, em todas as áreas necessárias à compreensão da

questão social e suas expressões históricas, matéria prima do assistente social; • apropriação teórico-política do significado da ética e dos compromissos desta

decorrentes, expressos no trabalho profissional; • escolhas político-ideológicas ancoradas no conhecimento e nas explicações sobre

causas e razões da desigualdade social e da pobreza e consequente construção do relacionamento com a população usuária dos serviços sociais;

• conhecimento/reconhecimento das conjunturas sócio-históricas que alargam, reduzem, minimizam a atenção das políticas públicas às expressões da questão social, com rebatimento imediato no trabalho;

• competência técnica instrumental, orientadora das melhores e mais adequadas abordagens no atendimento cotidiano;

• aprofundamento da capacidade de ver, nas demandas individuais, as dimensões universais e particulares que contêm.

Diante dos desafios aqui expostos, podemos perceber quanto já sabemos e quanto

ainda há a percorrer para que a categoria dos assistentes sociais possa realizar um trabalho

mais crítico e qualificado, teórica e politicamente situado nos estudos socioeconômicos em

geral e nos de cunho avaliativos, em especial.

Regina, assistente social, reflete sobre nosso papel profissional nesse âmbito:

— A gente não pode perder de vista que está cumprindo um papel do Estado extremamente perverso [...] dentro do Estado social, de um Estado capitalista, de como efetivar quem tem acesso e quem não tem. Essa ação, de alguma maneira, está sempre dentro desse terreno capitalista da perversidade, da exploração, da distribuição de renda. Só para a gente não entrar de ingênuo no conceito de justo e injusto.

4.4.3. A definição e uso de critérios na seleção socioeconômica

Neste item, estará em pauta a problematização da definição e do manejo dos critérios

na seleção socioeconômica pelo assistente social.

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A seletividade de acesso aos programas e benefícios sociais é um instrumento de

cunho político que permite às instituições sociais controlar politicamente a desigualdade

social tornando-a tolerável através do gerenciamento dos demandantes dos serviços sociais e

dos recursos disponibilizados quando não se pretende atender a toda demanda.

Para os assistentes, a seleção socioeconômica ou triagem se constitui em uma

atividade executada segundo saberes e instrumentos, na qual o profissional é, ao mesmo

tempo, agente de uma profissão e funcionário de uma organização social que o contrata e lhe

paga um salário. Portanto, na sua realização, o assistente social tem uma autonomia relativa.

O ato de selecionar para o profissional se pauta na realização de estudos sociais de

caráter avaliativo, envolvendo decisões profissionais sobre as situações colocadas pelos

candidatos. Nessa atividade, o assistente social é chamado a apreciar e ajuizar sobre as

diversas situações socioeconômicas apresentadas pelos candidatos ao acesso, tendo em vista

que a decisão a respeito das escolhas possíveis é feita a partir de critérios definidos.

Critérios aqui são entendidos como quesitos e balizas que se colocam como referências

utilizadas pelo profissional para fundamentar suas decisões. São os indicadores utilizados para

apreciar as situações apresentadas pelos candidatos no processo de seleção socioeconômica ou

triagem. Sejam, decididos pelo próprio profissional, sejam traçados nas políticas sociais por leis

que criam ou regulamentam o acesso aos benefícios sociais, os critérios sempre são expressões

de como se entende e se trata a pobreza em face da questão social em determinado local,

expressando-se através de como se apreende e se lida com o socioeconômico.

O público a quem se dirige o serviço ou benefício social põe demandas específicas,

indicando determinados cuidados no estudo socioeconômico. Para abordar essas diversas e

complexas questões, é necessário que o profissional conheça e se posicione do ponto de vista

ético-político diante de como a sociedade, nos seus diversos segmentos, as pesquisas e os

movimentos sociais vêm tratando da deficiência física ou mental, dos negros e dos indígenas,

das crianças e dos adolescentes, dos idosos, das questões de gênero, dos moradores de

determinada região, da população que vive nas ruas, entre outros.

É a leitura fundada na teoria e no compromisso ético-político que dá origem aos critérios

que se apresentam como as bases fundamentais de referência do assistente social para analisar as

situações apresentadas pelos candidatos na seleção. Na execução propriamente dita, o profissional

também faz suas leituras e interpretações daquilo que consta na lei e nos regulamentos, a partir de

suas referências teóricas, éticas e políticas. As políticas sociais nem sempre são executadas da

forma como foram concebidas, porque quem as executa faz interpretações, dando-lhes novos

sentidos, o que abre possibilidades de novos horizontes de ação.

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O assistente social afinal realiza a seleção e os estudos nesta implicados orientado por

suas leituras acerca das configurações socioeconômicas apresentadas pelos candidatos, à luz

dos critérios, pautado na sua compreensão sobre tais configurações. Nesse processo, pesam

também como o profissional percebe e usa o seu poder de decisão e como entende e exerce a

sua autonomia profissional, dada e conquistada.

Se a análise é substantiva, a avaliação é valorativa, pois implica atribuir valor ou

merecimento às coisas e situações, alvos de nossa atenção. Destaque-se que tal avaliação

acarreta fundamentalmente atribuir valor a coisas e processos. Ou melhor, é olhar e considerar

os objetos, alvos da avaliação, filtrados por valores.

Nesse sentido, é preciso problematizar, o que significa dizer que toda seleção é fruto de

avaliações e, portanto, permeada por valores claros ou não. São os valores envolvidos que

permitirão elevar e engrandecer determinados aspectos e desconsiderar outros, pois é o valor

que nos permite sair da indiferença, dando cor e vida às situações que se colocam à nossa frente.

O saber assimilado e os compromissos assumidos pelo profissional, ao final, indicarão

a direção do que olhar e o que considerar nas avaliações, diante da situação com a qual se

depara, quando alguns aspectos serão marcados com cores vibrantes, outros com tons suaves e

delicados, aparecendo assim o vermelho da vida, o preto da morte e o roxo da dor, assim

como ficará invisível, sem valor, aquilo que não mereceu atenção, pois há elementos que,

embora presentes no real, não são percebidos e considerados na análise e na avaliação.

Não é possível, na relação do sujeito diante do objeto que se coloca sob o seu olhar,

haver indiferença, ou seja, considerar as situações com as quais se depara o sujeito como sem

cor, sem cheiro, sem gosto, portanto com neutralidade. A indiferença, ou o não valor, sempre

significa não dar importância àquilo com o que se depara o sujeito. E assim tudo continua

como sempre foi, porque somos indiferentes ao que se passa à nossa volta. É preciso treino

para se desenvolver um olhar que repara nos detalhes, buscando enxergar o que esconde por

detrás destes. As construções teóricas se colocam como instrumentos disponíveis que

oferecem sustentação para essa postura profissional.

Comprometida com a atribuição de valores às situações, a avaliação está diretamente

vinculada aos compromissos ético-políticos da profissão, assumidos pelos profissionais como

sujeitos coletivos. Em toda seleção socioeconômica estarão presentes, de forma consciente ou

não, noções daquilo que o profissional entende por justiça, direito e igualdade.

O acesso pode ser concebido como direito de cidadania ou como doação. O indivíduo

pode ser visto como pobre ou como integrante das classes sociais, assim como a profissão

pode ou não ser entendida inserida na divisão social e técnica do trabalho. Essas noções

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aparecem nas indagações e nas respostas às perguntas do tipo: o que é mais justo? Quem

precisa mais? Quem tem mais direito? Quem deve estar dentro do acesso? Somente quem

disse a verdade tem direito? O que esconde sob a alegada mentira? É justa a reserva de vagas

na universidade para os negros e nos concursos públicos para pessoas deficientes? Por quê?

Quem tem celular, tênis importado, carro, compra papinha da Nestlé para o seu filho tem

menos direito que os demais candidatos? É justo fiscalizar a vida, invadir a privacidade da

vida do indivíduo em um processo seletivo? Qual é o significado do que está escrito nos

regulamentos e nos critérios estabelecidos?

Aparecem também quando se pergunta: que justiça é essa? Para quem? Interessa a

quem? Serve a quê? Que igualdade é essa que deixa tantos de fora do atendimento, jogados à

própria sorte? É possível alterar esse quadro injusto? Como o assistente social deve lidar com

as contradições entre o que vê e enxerga e como considera o que deveria ser?

O profissional, ao realizar a seleção de acesso, defronta-se e tem que lidar com vários

conflitos de natureza moral, que acabam por colocar à prova seu senso de justiça e a

legitimidade das suas próprias escolhas. Quando se instaura o conflito moral, o profissional

fica se perguntando sobre o que fazer e o melhor jeito que teria de resolver o dilema.

A seguir, as entrevistadas são chamadas a falar de suas reflexões, inquietações e

experiências construídas sobre essas referências, destacando-se o papel dos critérios a partir

de suas inserções na categoria dos assistentes sociais.

Fátima, uma das entrevistadas, aborda essa questão de maneira clara, quando explica

que, no processo de seleção, por vezes, se depara situações em que as informações trazidas

pelos candidatos lhe geram dúvidas sobre a sua veracidade, mas, diante do fato de não

enxergar caminhos de resolução, fica impotente. Ela tem tido que se perguntar

constantemente como lidar com a corrupção que atravessa a sociedade e que também aparece

nos processos seletivos.

— Nós temos, em Portugal, um problema de fuga aos impostos, de fuga às declarações de rendimentos. Sabendo nós que a grande parte das regras do estudo socioeconômico estão baseadas na renda dos agregados, e sabendo nós também que parte dos agregados não são honestos nas suas declarações de renda, porque nós temos um problema enorme de corrupção e de fuga aos impostos... Eu tenho sempre a noção de que estou a fazer análise de uma situação... Posso estar a fazer análise de uma situação econômica que, por exemplo, entre dois alunos em que um me apresenta uma renda baixíssima e que fica beneficiado digamos assim face ou outro. Não é uma situação real, eu sei que não é uma situação real... [refere-se às informações apresentadas pelos

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candidatos na seleção] Só que eu não tenho forma de poder alterar essa situação. Isto passa-se fundamentalmente nas situações de pessoas que trabalham por conta própria, que nós sabemos que não declaram os impostos na totalidade. Mas, depois como é esse documento que é considerado, que é a base da avaliação, esses, no fundo, ficam e penalizam o Estado por duas formas. Por um lado, porque não fazem as declarações corretas e, portanto, não pagam os impostos que deveriam pagar comparativamente com os outros, com o resto da população. E por outro lado, ainda recebe mais apoios do Estado, porque fez, porque não declarou a renda toda. Portanto, é assim... Eu acho que tem que haver critérios, mas os critérios não se podem...

A situação é partilhada por Luísa, ao traçar um quadro das dificuldades com que se

depara para elaborar um “verdadeiro” diagnóstico diante das contradições presentes na

obtenção de informações. Em uma realidade contraditória, pergunta-se sobre o que fazer.

— É muito difícil, às vezes é difícil fazer um verdadeiro diagnóstico. Há aqueles que declaram por sua honra e isso é difícil, às vezes, gerir com os outros que se sentem excluídos... Há pouco eu não falei disso, mas há outros que têm o papel e que ficam fora e os outros que assinam um papel [refere-se à autodeclaração de renda], não têm papel e que ficam dentro do sistema. E o outro que ficou de fora diz: “mas aquele trabalha, mas aquele isto e aquilo” e eu digo “pois, mas eu pedi. O sistema funciona... Eu não vivo lá, eu não sei se ele trabalha. Eu enquanto técnica eu pedi um número de documentos, mas...” Eles têm razão, porque quem é verdadeiro, às vezes, quem apresenta a sua documentação fica fora, mas, isso acontece comigo enquanto utilizadora de outro tipo de serviços também. Mas, eu queria também colocar isso em foco, essa questão do diagnóstico e esta complexidade que, muitas vezes, também, de alguma forma, provoca injustiça, provocam desigualdade, porque de fato a forma, o método, o processo de avaliação, às vezes também é propiciador de alguma desigualdade. Isso depois, também, de alguma forma se relaciona com a ausência de formação do técnico ou a insuficiência de formação ou do excesso de trabalho ou a carga de trabalho.

Essas situações, que desafiam nosso senso de justiça, levam à indagação sobre como

devemos nos portar diante delas. Diante de nossa impotência, que fazer?

Alguns profissionais respondem a esses incômodos, saindo do seu papel de assistente

social, assumem o papel de “juiz” e “fiscal” e passam a agir baseados no senso comum e na

sua intuição. Tratam a questão social como questão moral, ao não reconhecer nessas ações

estratégias utilizadas pelos candidatos para conseguir o acesso ao serviço ou benefício social

pleiteado. Pretendem fazer justiça “com as próprias mãos”, através da seleção que premia os

corretos e exclui aqueles que faltam com a verdade.

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Noções de justiça, de igualdade, de legitimidade estão presentes tanto quando o

profissional julga o mérito da solicitação referente à concessão de uma cadeira de roda ou de

uma cesta básica em um programa assistencial, quanto nas situações que envolvem

solidariedade e cumplicidade às greves e pressões sociais, entendendo o direito social como

conquista de âmbito coletivo na luta pela posse da riqueza socialmente produzida.

A seleção socioeconômica é uma situação objetiva, permeada por análises e avaliações

e pautada em critérios transparentes ou obscuros, carregando possibilidades de várias

interpretações de cunho subjetivo acerca das situações e dos critérios.

Fátima apresenta ricos exemplos, sob a forma de reflexão, a respeito de diferentes

tratamentos dados aos critérios por assistentes sociais de um mesmo serviço. Algumas delas

vão por um caminho que extrapola o âmbito profissional, não respeitando a privacidade do

usuário. Tornam-se autoritárias e donas da verdade, quando passam a tomar decisões

informadas por balizas que fogem do foco da avaliação profissional, acabando ao final por

trair a confiança do usuário e dificultar o seu acesso aos serviços e benefícios sociais,

comprometendo assim a possibilidade de ampliação do seu trabalho.

— Trabalhei durante um ano num serviço também da Segurança Social, embora eu não fizesse atendimento estava a fazer o acompanhamento, uma assessoria. Mas, as minhas colegas tinham sempre muita dificuldade [...] na atribuição dos apoios, dos subsídios que davam, não era balizada por regras. Era, portanto, nós... No principio do mês, tínhamos um orçamento mensal, e, de acordo com o numero de situações que cada colega tinha, era distribuído esse orçamento por essas colegas todas, e o que nós víamos é que, numa população que era toda da mesma zona, porque mais ou menos com o mesmo tipo de problemas, havia colegas que chegavam a meio de mês e já não tinham verbas e havia colegas que chegavam ao final do mês com sobra de verbas. Quer dizer, portanto, que havia ali uma desproporção muito grande na análise que se fazia porque embora parecendo que não, cada um de nós é um ser humano e cada um de nós tem os seus próprios valores, os seus próprios... Eu lembro-me, por exemplo, que fiquei muito chocada quando fui para um serviço onde se fazia análise socioeconômica e estávamos a começar, iniciamos o serviço e tivemos que fazer critérios. Havia uma legislação, mas nós também tivemos que fazer alguns critérios, porque normalmente a legislação que havia antes de esta era uma legislação geral, que nos dava uma regra, digamos assim. Mas, depois, aquela regra podia ser balizada por nós, podia sermos nós a defini-las, e nós tentamos fazer isso e falamos com alguns serviços, e eu ficava muito chocada, por exemplo, quando num serviço em que estava à frente uma assistente social e tinha umas capitações baixíssimas, baixíssimas, e quem tinha uma capitação de um valor baixíssimo já

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não tinha direito a nada. Nós ficamos chocadas, porque achávamos tão baixo e como é que elas já não davam apoio a essas capitações tão baixas? Depois havia outros... Pronto, precisamente é preciso pensar esta questão porque nós todos temos valores diferentes; temos formas de estar diferentes. [...] Capitação é a renda por pessoa, por elemento do agregado familiar, per capita, capitação, per capita, exatamente. Aquele serviço, por exemplo, achava que quanto mais filhos o agregado tivesse mais baixava a capitação. E nós dizíamos, mas como é que tu estás a baixar tanto a capitação? “Porque as roupas dos mais velhos passam para os mais novos, os sapatos passam para os mais novos” e porque não sei quê. E nós dizíamos, “como é que vocês fazem as contas assim?” Como é que eles podiam fazer as coisas assim? Eles diziam que podiam. O fato de cada um de nós ou cada no seu serviço ter as suas próprias regras...

Podemos perceber que os critérios nem sempre estão claramente definidos pelas

organizações. Ou, mesmo em situações em que o estejam, o profissional pode escolher,

portando-se de forma “mais realista que o rei”, quando utiliza seu poder de decisão, o livre-

arbítrio, para tratar cada caso na sua especificidade. Resolvendo fazer justiça a seu modo,

colocando-se frontalmente contra os interesses dos usuários, coloca-se na defesa da

moralidade, reiterando, assim, valores profundamente conservadores. Às vezes, ajudar no

acesso ao serviço social é o profissional não complicar e atrapalhar com detalhes que fogem

do foco em pauta.

Fica evidenciado através desses exemplos e de outros tantos, exibidos no decorrer

deste capítulo, da importância de refletir sobre o poder profissional presente nas ações

profissionais cotidianas que se apresentam sob a forma de diversas posturas.

Há necessidade de repensar o poder profissional à luz de referências mais claras. É

indicado que no Serviço Social haja estudos e pesquisas que coloquem às claras a questão das

decisões profissionais e dos valores envolvidos nos estudos sociais e nas seleções

socioeconômicas, conforme já indicado. No momento, perguntamos: devemos defender o

horizonte de que os critérios devem ser de decisão de cada profissional? Quais são as

implicações desse posicionamento a favor ou contra ele?

Graziela faz uma avaliação do período que iniciou o trabalho na Prefeitura de São

Paulo, época em que a política era mais definida, mais transparente e de mais fácil operação.

Quando, porém, não há nem critérios e nem processo seletivo estabelecido, é preciso criá-los,

para que o trabalho profissional tenha visibilidade.

— A política parece que era mais definida, então, quando você ia fazer estudo social para conceder autorização para uma viúva ficar com um

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ponto de banca de jornal, [...] isso era claro; era para deficiente físico, deficiente visual, para viúvas, para pessoas pauperizadas. Parece que as definições eram mais claras. [...] E eu e a Isaura (outra entrevistada) tivemos uma experiência da seleção socioeconômica de bolsa de estudos aqui na PUC-SP para os alunos, no tempo em que a Fundação em 1986 não tinha nenhum critério estabelecido; a gente ficou horrorizada porque não tinha uma ficha mínima de reconhecimento desse aluno... Tinha todas as arbitrariedades.

O fato de não haver critérios claramente definidos, dá chances para diversas

arbitrariedades, fazendo com que o profissional fique desprotegido e vulnerável para lidar

com as inúmeras pressões sempre presentes nos processos seletivos para ele “dar um jeitinho”

para o atendimento de determinado candidato.

Regina, que também trabalhou com a concessão de bolsa de estudos em universidade

paulista, tem um entendimento de que o seu trabalho na seleção era

— [...] mais para excluir os ricos, porque só tinha acesso quem tinha determinadas condições; era mais para exclusão e não para inclusão.

Esse é outro jeito de olhar para um processo seletivo na especificidade das bolsas de

estudo, talvez mais simples. Ou seja, a questão é como excluir os ricos, diante do fato de não

haver recursos para atender a todos, quando se pretende atender os mais pobres.

Fátima defende a importância da definição de critérios para que o profissional possa

tratar das questões trazidas pelos candidatos sob as mesmas referências, em detrimento de ter

que decidir no caso a caso. Sua análise sobre as consequências do tratamento caso a caso na

seleção socioeconômica é a seguinte:

— Havia uma legislação [anterior à atual] que também tinha as suas regras e uma das regras dizia o seguinte: são considerados os rendimentos anuais do agregado familiar. Ponto final. O que é que acontecia? Havia serviços que consideravam os rendimentos anuais do agregado familiar, o vencimento mensal do agregado vezes os 12 meses do ano, pronto. E considerava esse valor. Havia outros de nós que considerava que o rendimento anual do agregado familiar é o que é declarado na declaração de impostos, ou seja, são os 12 meses de vencimento mais os subsídios de férias e os subsídios de Natal, ou seja, são 14 meses e não são 12 meses. O que é que isto fazia? Isto fazia com que a mesma legislação... Nós tínhamos alunos, irmãos porque estavam em sítios diferentes. Uns tinham bolsa e outros não tinham porque o entendimento era diferente. Portanto, a regra era a mesma e os rendimentos anuais do agregado familiar. Mas depois, a interpretação que era feita por cada serviço, fazia com que o tal estudo

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socioeconômico, a tal atribuição do apoio, já fosse diferente. Eu tinha aqui irmãos, que noutros serviços tinham bolsa e aqui não tinham e vive versa; que tinham aqui e noutros serviços não tinha. Porque apesar de a regra ser a mesma, depois cada serviço tinha a sua própria forma de interpretar a regra. Essa interpretação levava a que não houvesse uniformidade e que não houvesse... Pronto, situações idênticas que não fossem tratadas da mesma forma. Por isso eu digo que, apesar de tudo e apesar dos erros todos e apesar desta legislação que nós temos hoje não ser melhor... E para mim choca-me em muitos aspectos... Mas acho que é preferível haver uma uniformização na forma de atribuir o apoio do que ser cada um de nós a decidir o que como é que faz.

Isaura apresenta um exemplo no qual o critério de acesso pautava-se no quesito “ser

negro”, que foi avaliado pelo selecionador como fenótipo,92 gerando um sério problema.

Aparentemente, uma foto pode se apresentar como critério objetivo, mas, de fato, pode

remeter a uma visão estereotipada da questão. A raça negra é conceito de caráter

sociopolítico, uma vez que, no gênero humano, não há várias raças de homens. Nossa

entrevistada, partindo de referências conceituais diversas daquelas utilizadas pelo

selecionador do exemplo em foco, discute e critica a forma e o fundamento presente no

critério utilizado que aparece na notícia de jornal.

— É muito complicada essa discussão. Eu estava lendo no jornal hoje a história dos gêmeos idênticos em que um ganhou cota e o outro não. Pela fotografia o avaliador achou que um era branco e outro negro. Não pôs junto, ele viu a foto de um e depois de um tempo a do outro. Uma avaliação de cota racial feita por foto é o fim, não é nem autodeclaração, é a foto bem tirada ou mal tirada.

Eunice, que participa e orienta inúmeras pesquisas, expõe algumas dificuldades

encontradas para lidar com esse quesito cor da pele. Em pesquisa que está realizando a partir

do estudo de processos judiciais, aparecem dilemas a esse respeito, que ela assim explicitou:

— Essa pesquisa que estamos fazendo tem um item sobre cor da pele, como aparece nos processos, mas dificilmente alguém faz esse registro; às vezes tem a foto e aí o que fazer? Deixar em branco, pois eu não posso dizer a cor a partir da foto. Se tem a declaração, anotamos; se não tem? Nós não vamos contar como “não consta”, embora pelas fotos seja possível observar que a grande maioria é de pessoas de origem, de pele da cor preta?

92 A título de referência para discussão, é indicada a leitura do rico estudo realizado por Bento (2008), em que se apontam e analisam alternativas de classificação racial, problematizando-as nas suas possibilidades e limites.

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Fátima, em face dessas possíveis situações, defende a importância de critérios claros e

transparentes para que profissional e usuários possam estabelecer relações mais democráticas

e que o aluno possa conhecer e lidar com o benefício como direito. Avalia que sair dos

critérios criados no caso a caso faz o assistente perder o “poder” de entrar no mérito da

solicitação do candidato, mas propicia uma intervenção mais transparente, pautada na noção

de direito do sujeito.

— Claro, é mais transparente. Neste momento, qualquer pessoa que me pergunte “você acedeu esta bolsa a este aluno, por quê?”, é claro, eu digo “olhe, dei por isto, dei por isto e dei por isto!” E por outro lado, eu perdi o poder. Nesse aspecto, os poderezinhos de eu poder decidir, que é que não sei quê, eu não tenho e também não quero ter, e acho que nenhum de nós deve ter. Nós temos que ter é critérios claros, transparentes, para que aqueles a quem eles se dirijam saibam, tenham conhecimento deles e saibam quando vão pedir, seja lá que tipo de apoios; eles saibam exatamente... [...] Eles vêm falar comigo, por exemplo, vem pedir uma bolsa de estudos, mas eles sabem quais são os critérios e não é quando eu estou analisar o processo que eu decido. Se esse aluno, porque foi mais simpático comigo, ou menos simpático comigo, lhe dou um valor, este valor ou outro valor de bolsa. Eu acho que os critérios têm que ser muito claros, muito transparentes e idênticos para toda a gente. Semelhantes para toda a gente saber aquilo que pode ter. Aliás, se eu não souber aquilo a que posso ter direito, também não posso exigir aquilo a que tenho direito, e, portanto, é difícil eu exigir seja o que for, de quem for, se à partida eu não souber que eu tenho direito a isto. Se a pessoa me disser não senhor, me disserem que eu não tenho. Pronto, eu não tenho! Mas se estiver claro quais sãos critérios, se for tudo transparente, se todas as pessoas souberam mesmo que me digam que eu não tenho direito. Mas se estiver claro quais sãos critérios, se for tudo transparente, se todas as pessoas souberam mesmo que me digam que eu não tenho direito.

O horizonte proposto pela entrevistada só poderá ser perseguido com êxito se for

referenciado em pesquisas e em conhecimento de caráter crítico, e incorporado pelos

profissionais. De outro lado, não adianta ter conhecimento crítico disponível, se este não é

publicizado. Essa constatação indica a necessidade de que o profissional tenha uma formação

permanente. É preciso considerar que, se o profissional desejar reverter esta situação,

simplesmente estabelecendo critérios com os demandantes dos serviços sociais sobre quem

deverá ter mais direito ao atendimento pode se constituir em prática de uma falsa democracia,

pois este processo geralmente tem servido para amortecer as demandas dos sujeitos, ao não se

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colocar em questão que é a escassez de recursos que gera a necessidade das escolhas. Essa

experiência é trazida de forma crítica por Isaura.

— Eu me lembro de uma coisa que acho muito importante na evolução histórica do Serviço Social que foi o tempo que, na Prefeitura [de São Paulo] tinha aquele auxílio que vinha para reforma de casa, atendimento de emergência, atendimento da população com problemas de subsistência. Houve um tempo em que a população é quem decidia para quem ia o auxílio. Então, foi um momento em que os assistentes sociais se confundiam com a população; saiam na frente nas passeatas e aí faziam uma reunião de grupo. E eu me lembro, porque sempre discuto isso com os meus alunos... Votavam, tinha a coisa emocional e no fim se dizia para quem deveria ir o auxílio. No auxílio direto de dinheiro era de pessoas no grupo. Aí o assistente social... Saía a seleção, aí tinha uma decisão coletiva da população. Depois, foi se discutindo se isso era uma saída da sua responsabilidade, da sua decisão. Quais seriam os critérios que a população considerava... Construir os critérios juntos torná-los públicos e transparentes, mas que o enquadramento seria feito a partir daí e não a população escolhendo, porque eu acho sempre importante a gente saber que quando se diz que a população mente; ela mente para ela se enquadrar nos critérios que a gente inventa e ela sabe que se ela não for muito pobre ela não vai se enquadrar; se ela tiver dois filhos é muito pouco, enfim... E a população aprende. Quando você faz esse sistema de roda ela já vai aprendendo a falar um pouco pior do que a situação da outra.

Luísa defende que o processo de seleção de acesso contemple exceções e que o

profissional deve ficar atento e trabalhar para auxiliar o candidato no acesso e não dificultá-lo,

enquadrando-o simplesmente às regras estabelecidas. Também critica o processo de

elaboração dos critérios e das normas, por não ser fruto do diálogo com quem está próximo

dos usuários.

— O outro é que, de fato, os critérios não [...] [devem ser] critérios para se cumprir cegamente, porque [...] às vezes não está dentro, por uma margem muito pequenina eu tenho a liberdade e o dever... E o faço algumas vezes, como outros colegas o fazem. Fazer uma proposta para que, não estando rigorosamente dentro daquele critério, por esse ou por aquele motivo, aquela pessoa devia, ainda assim, beneficiar-se de determinado benefício. Isso habitualmente é possível, e eu acho que, por via desta flexibilidade, [...] a realização em termos profissionais é muito maior, porque pode imaginar o grau de frustração que há, quando nós estamos numa realização de ajuda, de apoio, [...] que nós podemos resolver, minimizar e que, às vezes, porque o critério ultrapassou, não é possível, e aquela pessoa não vai

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conseguir de outra maneira? Isso é altamente frustrante, mas, como disse, em termos dos critérios da Misericórdia há regras, mas também há muitas exceções. Aí eu acho que o meu campo de liberdade é muito grande e, sobretudo, há outro aspecto: obviamente, os regulamentos e os critérios, quer a nível organizacional, eu acho que isso não é cientifico, é muito empírico, mas quer a nível organizacional, quer a nível geral, quando são definidos, eu acho que são definidos não por conhecimento real daquilo que são os problemas, [...] E muitas vezes quem define habitualmente, [...] e eu não sei se é por ignorância ou se porque quer definir assim, não procura verdadeiramente, junto daqueles que têm o conhecimento real da realidade, quais são os verdadeiros problemas e quais seriam as respostas que realmente poderiam resolver ou minimizar as situações.

Regina, em relação à definição dos critérios, manifestou-se desta maneira:

— Eu acho que nunca deveria ser reduzido ao assistente social porque também a gente tem julgamentos e julgamentos. Tem que ter critérios institucionais, mas que não sejam critérios engessados que, desde que justificados, eles possam ser alterados. A política social tem que ter critérios de incluir as diferenças de região ou de tipo de população.

Diante do que pude expor, com o apoio das entrevistadas, cabe perguntar: como

aplicar conhecimentos para definir e operar os critérios, sem retirá-los da apreensão de

totalidade e a partir daí determinar valor às características apresentadas pelos indivíduos?

Como comparar a situação socioeconômica dos candidatos entre si? Apesar de regras, normas

e critérios, a seleção deve contemplar exceções? Em que circunstâncias estas se justificam?

Em relação aos “jeitinhos”, Isaura observa que podem levar à corrupção:

— Eu acho que o jeitinho não resolve. Tem que trabalhar na discussão com os critérios que estão estabelecidos. [...] Tem assistente social ganhando dinheiro para dar o jeitinho, tem denuncia no Judiciário da Associação de Pais Separados, que é uma associação feita por homens pais, para a discussão da perícia e do parecer social para transformar tudo em perícia para poder ter o direito de fazer a contra prova e há inúmeras denúncias de corrupção de assistente sociais que decidem. Está lá no site, tem um monte... Que decidem a favor do homem ou da mulher de acordo com o que ganhou e a gente já passou da idade de achar que assistente social é incorruptível. Essa coisa do critério que está lá estabelecido, eu sou contra o jeitinho, mas é o trabalho de mostrar a quem faz os critérios que não estão funcionando. É aquilo que a gente discute com os alunos que reclamam, contam para nós que os meninos não querem entrar no Pro Jovem porque os adolescentes falam “tia eu ganho muito mais vendendo droga do que no Programa”.

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Essas questões merecem, portanto, discussões da categoria dos assistentes sociais, pois

as exceções, dentre os quais a dos “jeitinhos”, podem incluir vários entendimentos, incluindo

desde aquele exposto por Isaura e outros advindos das pressões políticas. Aqui me refiro a

questões que devem ser respondidas tanto pelos profissionais que atuam na execução terminal

das políticas sociais, quanto por aqueles que elaboram e fazem a sua gestão, e que também

são assistentes sociais.

Isaura, a esse respeito, indica a necessidade de juntar quem estabelece o critério e

quem os executa:

— Eu fico pensando que os critérios, a gente sabe disso, mas a gente esquece no cotidiano, que os critérios da Política do Suas são feitos pelos assistentes sociais, porque a gente trata como critérios do governo, mas são critérios feitos pela categoria profissional e a base não discute. Quem está na operação... Eu acho que a gente precisa ter uma organização que nos permitisse discutir os critérios com que os fazem para melhorar isso, porque os critérios estão inclusive... E isso é sabido e dito pelos alunos, que já estão ensejando muita corrupção.

Graziela reforça essa ideia e propõe outras estratégias para lidar com a situação de um

jeito mais coletivo.

— Acho que tem que ter o cuidado metodológico, e acho que os critérios políticos e institucionais têm que ter uma comissão para tratar de tudo que fica diferente; pelo menos até a gente chegar a um outro patamar de refinamento. Enquanto a gente está nesse imbróglio, a gente tem que tentar construir algumas alternativas. Então, talvez, a gente poderia contribuir mais, organizando mais o nosso conhecimento a respeito disso que é para estar ofertando essas possibilidades.

Luísa apresenta alternativas que vem criando para lidar com os critérios:

— E, como há bocadinho eu falava, nós temos os critérios, temos acesso aos benefícios de saúde e quem faz o estudo socioeconômico é o assistente social; muitas vezes, há um regulamento, mas às vezes, as pessoas ficam fora do regulamento, por 3, 4, 5 euros, e eu tenho conseguido fazer com que a situação seja reversível. Dá mais trabalho, aí é a outra parte, porque nós já temos muito trabalho e vamos buscar ainda mais trabalho, mas o meu entendimento enquanto assistente social é ser facilitadora da vida do outro. Então, eu faço a informação [relatório], fundamentando. É uma forma de eu combater a minha frustração e de percorrer um caminho que está ao meu alcance, depois o resto, eu trabalho dentro de uma organização a esse nível, ao nível

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dos critérios econômicos. [...] Há critérios, mas às vezes, são critérios cegos, que apenas contemplam os rendimentos e as despesas de coabitação. Contudo, às vezes, as pessoas têm despesas com a saúde astronômicas, enormes, têm despesas com a eletricidade, com a água e isso o regulamento não contempla. E então, quando eu considero, e aí entra o caráter subjetivo, e que pode fazer a diferença em várias intervenções, é quando eu considero que aquela família necessita mesmo daquele apoio, e se não tiver aquele apoio, ela vai ficar numa má situação... Então, eu faço o meu procedimento e eu arranjo, uso as minhas armas que são aquilo que é a minha capacidade de elaborar um diagnóstico profundo, de expor no papel, de mostrar ao meu superior de que se não autorizar isto, aquele individuo ou família vai ficar mal e a pessoa pode ir para a comunicação social e aí nos vamos dar... Estes são os instrumentos que eu vou utilizando, porque eu acho que enquanto assistente social eu tenho o dever e o direito de também contribuir para que estas políticas e os critérios se possam ir alterando.

Além das sérias questões já apresentadas, é importante destacar e incorporar ao debate

que a seleção socioeconômica pressupõe a resolução de questões relativas à “definição de

critérios a utilizar, à definição do limiar de rendimento mais adequado a considerar, à escolha

da unidade de análise e a escolha das fontes estatísticas de maior confiança a ser utilizada”

(ALMEIDA, 1992, p. 13).

Em relação ao estabelecimento dos indicadores a utilizar ou de quesitos que serão

utilizados na seleção de acesso aos serviços sociais, várias são as possibilidades que se

colocam aos planejadores e aos executores da política social, uma vez que a definição de

critérios funda-se no entendimento que se tem da relação entre questão social e pobreza,93 as

quais abarcam várias interpretações, assim como expressam a apreensão que se tem das

desigualdades de raça e etnia, de gênero, entre outras.

Partilho com Yazbek (2012, p. 289) o entendimento da pobreza como

[...] uma das manifestações da questão social, [...] como expressão direta das relações vigentes na sociedade, localizando a questão no âmbito das relações constitutivas de um padrão de desenvolvimento capitalista, extremamente desigual, em que convivem acumulação e miséria. Os “pobres” são produtos dessas relações, que produzem e reproduzem a desigualdade nos planos social, político, econômico e cultural, definindo para eles um lugar na sociedade. [...] Este lugar tem contornos ligados à própria trama social que gera a desigualdade e que se expressa não apenas em circunstâncias econômicas, sociais e políticas, mas também nos valores culturais das classes subalternas e de seus interlocutores na vida social.

A pobreza é assim concebida como demonstração direta das relações sociais, não se

reduzindo às privações materiais. Constitui-se em forma de inserção na vida social. “É uma

93 Ver importantes referências a esse respeito nos sérios estudos de Montaño (2012) e Yazbek (2012).

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categoria multidimensional, e, portanto, não se caracteriza apenas pelo não acesso a bens, mas

é categoria política que se traduz pela carência de direitos, de oportunidades, de informações,

de possibilidades e de esperanças” (MARTINS, 1991, p. 15, apud YAZBEK, 2012, p. 290).

Trata-se de categoria histórica, construída socialmente. Portanto, não se trata de

fenômeno natural, embora dessa forma já o quisessem considerar, por exemplo, Spencer e

Malthus no século XIX.

A noção de pobreza é ampla e compreende várias interpretações (MONTAÑO, 2012;

YAZBEK, 2012), que, nos processos seletivos, aparecerão nas análises dos profissionais quando

operam tais processos, assim como nos critérios de acesso apresentados nos documentos que

oficializam os programas e benefícios sociais — que, por sua vez, também contam com a

colaboração de assistentes sociais na sua elaboração.

Yazbek (2012, p. 290-291) problematiza o que se esconde por detrás dos indicadores

utilizados nos estudos sociais e, nesse sentido, aponta as dificuldades envolvidas na definição

de critérios, sempre pautada em concepção acerca da pobreza na sociedade capitalista:

A noção de pobreza é [...] ampla e supõe gradações e embora seja ‘uma concepção relativa, dada a pluralidade de situações que comporta. Usualmente vem sendo mediada por meio de indicadores de renda e emprego, ao lado do usufruto de recursos sociais que interferem na determinação do padrão de vida, tais como saúde, educação, transporte, moradia, aposentadoria e pensões, entre outros. Os critérios, ainda que não homogêneos e marcados pela dimensão de renda, acabam por convergir na definição de que são os pobres aqueles que, de modo temporário ou permanente, não têm acesso a um mínimo de bens e recursos, sendo, portanto, excluídos, em graus diferenciados, da riqueza social. Entre eles estão: os privados de meios de prover à sua própria subsistência e que não têm possibilidades de sobreviver sem ajuda; os trabalhadores assalariados ou por conta própria, que estão incluídos nas faixas mais baixas de renda; os desempregados e subempregados que fazem parte de uma vastíssima reserva de mão de obra que, possivelmente não será absorvida.

Embora haja muitos caminhos para se considerar a pobreza nas seleções

socioeconômicas, a maneira mais tradicional tem sido considerar a renda como critério único;

embora restritiva, é reconhecida por ter o mérito de ser a de mais fácil manejo.

Mesmo quando se trabalha apenas com a renda, há aí várias definições necessárias

para que se possa operá-la em processos seletivos. Uma delas se refere à definição do limiar

de renda mais pertinente a utilizar, que implica estabelecer as linhas da pobreza e da

indigência, e há controvérsia a esse respeito. Cada política ou programa social acaba por

defini-la de um jeito. No Brasil, o acesso ao benefício de prestação continuada (BPC), por

exemplo, atua com a referência de acesso de até um quarto do salário mínimo per capita,

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enquanto que o Programa Renda Cidadã, do governo paulista, atua com a referência per

capita de acesso de até meio salário mínimo.

O limiar da renda é definido baseado nas fontes estatísticas de maior confiança, tais

como as da Fundação Seade, do Ipea e do IBGE. Esses órgãos de pesquisa utilizam critérios

para estudar a população brasileira do ponto de vista socioeconômico, assim como

estabelecem o limiar para a definição da pobreza relativa e absoluta. Nessas definições,

encontra-se a utilização de vários critérios para estudar as condições socioeconômicas da

população, incluindo a pobreza.

Pobreza absoluta ou extrema significa que o indivíduo não tem acesso aos bens e

serviços essenciais, exprimindo sintomas de carências profundas. É a pobreza reduzida à

miséria e à indigência. É o afastamento de um mínimo necessário à manutenção da

sobrevivência física do indivíduo. Expressa vulnerabilidade, desamparo, fragilidade. Nesta

situação encontram-se os indivíduos cuja renda não lhes permite nem mesmo suprir a

necessidade mais básica de qualquer ser vivo, que é a de se alimentar. Sobrevivem de forma

primitiva e não dispõem de recursos nem mesmo para a manutenção da reprodução biológica,

que implica a ingestão diária de 2 mil calorias. Trata-se de uma população que pouco

consome, que nem entra na equação econômica, porque a economia pode funcionar ignorando

sua existência. Por ser “sobrante”, talvez não haja nem interesse em sua sobrevivência.

Portanto, pode morrer, porque não vale o que custa. Veja-se a população que vive em situação

de rua. Será esta uma das razões para o descaso com que este segmento é tratado no Brasil? É

a essa população, embora nem todos vivam nas ruas, que se dirigem os Programas de

Transferência de Renda (PTR) no Brasil.

A pobreza relativa extrapola o indicador de renda como fator exclusivo: “[...]

denuncia, além da desmonetarização dos pobres e do desemprego, a ausência de políticas

públicas adequadas, a falta investimentos públicos em áreas vitais (saúde, educação, moradia,

etc.) e desigualdades relacionadas à questão de raça, religião, gênero, idade, nacionalidade,

etc.” (PEREIRA, 1996, p. 27). Nesta situação encontram-se os indivíduos cuja renda não lhes

permite cobrir os custos mínimos de manutenção da vida humana, tais como: moradia,

educação, vestuário e transporte.

Em relação aos estudos sobre pobreza (também denominada de pobreza relativa) que

implicam a adoção de critérios que extrapolam a renda, um merece destaque no Brasil, pelo

seu pioneirismo. Trata-se do estudo denominado Pesquisa de Condições de Vida (PCV) na

Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), que vem sendo realizado pela Fundação Seade

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desde 1989. Os primeiros resultados desta pesquisa foram apresentados em 1991 e, desde

então, ao longo destes anos, são atualizados os dados sobre pobreza-riqueza da RMSP.

A abordagem da PCV diferencia-se da tradicional por levar em conta, no estudo da

pobreza, informações sobre emprego, habitação, educação, saúde e rendimentos. Pretende-se

com isto caracterizar a população segundo vários aspectos de sua realidade socioeconômica,

ao criar diversas combinações de carências e não carências. Outra importante questão diz

respeito à unidade de análise utilizada para tratar de renda, podendo-se tomar como referência

a renda individual do candidato ou a familiar, sendo que essa poderá ser tratada tomando-a no

âmbito da renda bruta ou liquida ou do per capita a partir daquela definição.

Graziela problematiza a utilização da renda per capita de forma isolada na seleção

socioeconômica e indica algumas atenções que devem ser dadas à questão:

— Se você trabalhar com per capita isoladamente ele é problemático em si. Eu acho que se ele for articulado a outros indicadores, provavelmente você pode ter um outro tipo de refinamento. E eu diria mais: quem sabe, talvez, a gente não pudesse pensar em ter refinamentos diferenciados em relação ao Brasil — o que são os povos da floresta, o que são os indígenas, o que são os negros, o que são os pequenos agricultores em área de seca, quem vive em área alagadiça, o que é o meio urbano. Eu fico pensando o que é uma família com cinco pessoas se não tiver uma boa geladeira e todo mundo trabalhar fora. Será que isso é uma necessidade de consumo irrisória? Ou é uma questão de você manter o trabalho doméstico dentro da casa, as necessidades dessa família, e a geladeira serve para armazenar alimentos. Não sei se a gente precisa ter tudo absolutamente igual, até porque não é tudo igual. [...] Eu acho que comecei a pensar outros elementos, talvez a nossa profissão não use tanto..., talvez fossem os indicadores sociais. Como é que a gente lida com os indicadores sociais, com os dados censitários, com as bases que a gente tem hoje, para poder reorientar que critérios a gente usa para realizar a seleção socioeconômica, até porque vai para muito além da renda.

Cada uma dessas definições acarreta a demarcação de outras, como, por exemplo, o

que se entende por família e como esta será considerada na seleção.

Regina, que vem estudando o tema da família, manifestou-se da seguinte forma:

— O critério sempre tem problemas, todos têm problemas. Mas, em relação à família eu tenho tentado discutir e nem sei até onde vai essa discussão. Talvez, de trabalhar numa correlação entre recursos que a família conta e necessidades que as famílias têm, e fazer um cruzamento... E aí você ia usando indicadores, por exemplo, se a

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família tem... E usando um pouco da ideia do Seade, que ele usa aquela história do ciclo vital. Você tem um parâmetro do que tem uma família, como está vivendo com as crianças, quais as necessidades que ela tem nesse momento, quais os acontecimentos que estão presentes neste momento e quais os recursos que a família conta sem ser os recursos da família? Porque essa daqui [referindo-se à entrevista de Alice que leu] vai falar muito da assistente social que vai fazer uma capitação do recurso familiar, mas quais os recursos que ela efetivamente tem para dar conta dessas necessidades? E aí você pode estruturar em o que essa família precisa ou não, mas isso numa seleção socioeconômica...

Graziela, que vem estudando a questão das mulheres vítimas da violência, acrescenta

outros elementos ao debate.

— Do ponto de vista da profissão, acho que a gente está colada por demais nessa definição do Estado de atender esse segmento populacional, e depois a gente não trabalha com esse outro segmento que está muito próximo. Ele tem que cair nessa rede para poder ser atendido. Mas, o que você faz para fazer com que as pessoas não caiam nessa rede? Não é porque elas não estão abaixo dos três salários mínimos que elas não vivem questões importantes do ponto de vista da responsabilidade do Estado, até porque a gente não tem nenhuma política de apoio à família, a gente divide tudo, não é? Acho que, talvez, ter colocado a assistência à família dentro da assistência social é bastante delicado porque a gente não tem uma política de Estado para as famílias; a gente enfiou as famílias pobres dentro da assistência social e o Estado brasileiro continua se responsabilizando dessa assistência à família. E fala muito em família quando na verdade, não sei a Regina [outra entrevistada] que é especialista nisso, mas eu trabalhei 20 anos com mulheres; a gente trabalha sempre com um representante familiar junto à política pública, junto ao serviço público como se esse representante familiar tivesse poder para interferir, a partir de uma representação, como se ele representasse a família e como se ele pudesse fazer essa interlocução. Eu sinto que, quando a gente está falando em seleção socioeconômica, a gente acaba esbarrando em situações mais cruciais.

A mesma entrevistada enfatiza ainda a ideia da necessidade de pautar a seleção

socioeconômica em outras referências existentes:

— Às vezes, a nossa profissão, ela entra de rasteira sem considerar patamares que já foram discutidos mundialmente do ponto de vista de direitos humanos, do ponto de vista da cor, do ponto de vista do gênero, do ponto de vista de como você pode trabalhar com essas diferenças. Provavelmente, quem mora na floresta tem exigências, por

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exemplo, de transportes que são muito diferenciadas das nossas do meio urbano. Teria que respeitar as particularidades. A gente já tem conhecimento científico e metodológico e tecnológico para poder respeitar essas diferenças. Se for para falar em refinamento, talvez a gente tivesse que pensar em critérios maiores, mais amplos para pensar esse refinamento. Eu não consigo mais ver a seleção socioeconômica feita prioritariamente pelos indicadores de renda. Eu acho que a gente deveria se aproximar sim da discussão metodológica que o Seade fez; pode ser um diálogo crítico. Pode até não ser a verdadeira, mas talvez eles tenham encontrado uma metodologia para avaliar as condições de vida muito diferente do que é o Programa Bolsa Família, o mapa da inclusão-exclusão social.

Regina reforça esse pensamento, acrescentando:

— Eu acho que a profissão acaba não contribuindo onde poderia contribuir no debate. Tem um texto do Ipea que fala que o Bolsa Família só teve o impacto que teve porque quem fez a seleção foi muito bem e pode focalizar. Quem fez a seleção fomos nós. Tem um reconhecimento, tem os critérios e a gente não discute esses dados.

É da densa e complexa criação e operação dos critérios que, através das contribuições

das entrevistadas, trataremos a seguir.

Os critérios são referências que contribuem para colocar ordem, controle, impor

limites e legitimar as práticas institucional-profissionais, mas podem ser tratados e entendidos

de diferentes formas. Ou seja, podem ser entendidos como regras a cumprir ou serem

reinterpretados por quem os manipula, dando-se-lhes novos significados.

Alice trabalha em uma organização na qual a equipe de assistentes sociais tem mais

autonomia em relação às outras colegas portuguesas entrevistadas para definir os critérios

diante das situações que vão se apresentando no cotidiano dos atendimentos. Nessa

organização, por exemplo, para a obtenção de remédios, o usuário tem que cumprir a regra de

apresentar dois orçamentos obtidos em farmácias diversas, sendo que a decisão recairá sobre

aquela que os vende pelo menor preço. Diz ela:

— Fazemos a avaliação neste papelinho [mostra-o à entrevistadora]. E as farmácias... Há um acordo... Não passamos nada, só passamos o que a pessoa vai levantar junto com as receitas. As receitas têm de passar por aqui, pelo hospital e eles [os usuários] vão a duas farmácias que estão aqui perto e que a Liga paga. Nós não mexemos em dinheiro. Nós fazemos a avaliação e dizemos aqui das duas receitas, três receitas, este medicamento não. Pomos aqui porque se o doente tem... Uma das coisas que a gente faz, é assim, traga o saco dos

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medicamentos, porque senão é comprar medicamentos sobre medicamentos, que, por vezes, é o mesmo medicamento, só que por vezes está só numa caixa diferente, estas a ver? Trazem, e é assim, duas receitas, mas não este e este. [...] Nós estávamos, portanto, a falar do trabalho que nós temos aqui, onde não há muito trabalho de seleção socioeconômica para acesso a benefícios. [...] Nós aqui fazemos uma parte de Ação Social que é este apoio, que é apoio nos medicamentos para as pessoas que têm reformas [aposentadorias] baixas ou que não têm rendimentos. Por exemplo, às vezes, vêm para aqui doentes que não têm nenhum trabalho ou reformas de espécie alguma e enquanto não tem rendimentos, vive a partir do dinheiro da Liga. Nestes casos, nós damos medicamentos e seja o que for, tudo o que eles precisam. Não há limite; o que o médico receita e o que o doente precisa dá-se.

Essa entrevistada, que atua na área da saúde, trabalha com critérios mais flexíveis e, ao

contrário da invasão da privacidade, tenta fazer leituras das situações que vão se apresentado no

seu cotidiano, pautada nos conhecimentos que detém, para enxergar o que se esconde sob as

reações e necessidades dos usuários que atende. Faz isso de forma sensível, respeitosa, orientada

pelo domínio teórico que tem. Dentre essas leituras, aparece a apreensão de questões de gênero.

Ela expõe como define os critérios que utiliza no atendimento a pacientes oncológicos:

— Nós é que definimos os critérios [...] Porque vamos lá a ver, imagina que... Diz o seguinte [refere-se aos regulamentos]: deve ter apoio na medicação todo, ou em parte, as famílias que têm uma capitação inferior, por exemplo, ao salário mínimo, que são mais ou menos 200 euros. Mas, por exemplo, a atribuição de uma prótese, uma prótese mamária, uma prótese tal, etc., aí já vamos mais longe, porque é uma atribuição, de uma vez... Já vamos a uma capitação de 500 euros. E por exemplo, se uma família tem mais de 500 euros de capitação, mas se a mulher não tem boa relação com o marido e há ali uma relação de conflito na qual ela se sente humilhada em ir pedir dinheiro ao marido, nós atribuímos a ajuda da prótese a esta mulher. Ou seja, temos em conta, não só os critérios econômicos, mas também as relações existentes, a dignidade da pessoa, o fato dela sentir-se ou não humilhada, ou não querer sobrecarregar a família com esse gasto ou outros elementos, como não querer ser um peso para a família, porque aqui, como tu sabes, nós funcionamos bem, se calhar também no Brasil, com capitações familiares. Ora, por vezes as pessoas sentem-se profundamente mal, porque sentem que a sua doença, está a prejudicar o resto do agregado familiar e aumentar os gastos. Além do medo da morte, do sofrimento, etc., ainda aumenta o prejuízo que eles sentem que estão a fazer para a família. Isto faz perder, por vezes, às pessoas, o autorrespeito por si porque pensa, “eu já não valho nada, já não comparticipo com nada para a minha família, já não tenho utilidade social, já não tenho obrigação social nem familiar”. E isto precisa ser trabalhado. Por exemplo, uma mulher doméstica, que

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aparece aqui a dizer, “eu já não presto para nada, eu já não cuido da minha família”, é preciso fazer todo um trabalho, não é? Para apoiar esta mulher que sempre cuidou dos outros, sempre foi cuidadora. Por um lado, dar oportunidade é importante, mas dar, também, oportunidades aos outros para serem cuidadores também é. E por outro lado, é importante ela imaginar que há coisas que podem continuar a fazer por eles e que nunca tinham feito antes.

Em relação à experiência do uso da melhor unidade para análise da renda, Alice

apresenta uma problematização crítica acerca dos prós e contras presentes nas escolhas em

relação ao uso da renda individual, familiar ou per capita. Analisa criticamente as implicações

de se tomar uma regra, um critério ao “pé da letra”, sem considerar as circunstâncias presentes e

o que se esconde por detrás das decisões acerca delas. Destaca os interesses e vantagens de o

Estado indicar o uso da renda per capita ou renda familiar em detrimento da renda individual.

— Não sei se é gostar, quero dizer que é um bocado a tradição da nossa constituição, das nossas regras etc., porque eu acho que os fenômenos de individualização eu acho que tem vantagens e desvantagens, portanto, trabalhar com sujeitos individuais ou familiares tem aspectos positivos e negativos. [...] Portanto, trabalhar com critérios familiares... Como eu hei de dizer? É responsabilizar a família pela sorte, pelos seus componentes, só que isto poderia ser feito de uma forma mais interessante, ou seja, deveria haver um patamar mínimo que era de proteção de um individuo e depois funcionar a rede familiar. Porque em famílias pobres em que... A própria Constituição vinha num Estado autoritário, em que a família tinha obrigações, ajudas, etc. E hoje estas ajudas familiares estão a diminuir. Que ajuda pode dar uma família a um de seus membros, se ela própria está a empobrecer e está pobre, em pôr uma carga muito grande na responsabilidade familiar? Alguns aspectos nomeadamente à atribuição das próteses etc., nós só damos importância ao valor e, portanto, à renda individual. Em relação, por exemplo, à nossa norma que aponta para a necessidade dos filhos ajudarem os pais, portanto, se os filhos vivem bem com os idosos obrigam-nos à apresentação dos rendimentos dos filhos, isso se torna complexo, não é? Agora imagine quando há relações cortadas entre eles, em que os filhos não foram criados por eles; os pais foram obrigados a abandonar os filhos. Então, como é que o Estado vai exigir agora que os filhos deem o apoio? Compreende isto? É muito complicado, eu acho que a família já faz muito, eu acho que devemos permitir a coesão familiar, mas não em termos de demissão do Estado. Ou seja, o Estado diz que usa os critérios familiares para… Mas isto é hipocrisia, é para a família não se desresponsabilizar... O Estado é que se desresponsabiliza perante a família, mas usam a ideologia de que é assim para as famílias não se desresponsabilizarem, o Estado está a impor uma carga demasiado grande em cima das famílias.

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Luísa apresenta sua experiência referente à utilização das unidades de análise da

renda que vem, ao longo do tempo, empregando na análise da seleção socioeconômica. É

necessário que, no Serviço Social, haja debate sobre esse assunto. A seguir, apresento nosso

diálogo a esse respeito, visando publicizar a experiência. Diz ela:

— [...] Nós utilizamos o critério da renda, daquilo que são os recursos econômicos que o indivíduo ou de que a família dispõe mensalmente para viver. É renda e gastos. Isso é o mais comum, embora os gastos, por exemplo... E aí utilizamos muito o per capita; se é uma família, é o per capita familiar que serve como…

A entrevistadora indaga se ela trabalha com renda bruta ou renda líquida. Ela responde:

— Renda líquida, então bruta, o individuo não usufrui… [...] Os critérios que nós utilizamos, partem daquilo que é o rendimento líquido, os nossos critérios dão-nos uma margem muito grande para depois chegarmos àquilo que é o líquido. Se o individuo faz horas extraordinárias, eu tenho que avaliar se ele faz sempre ou não, se ele não fizer sempre eu não vou contabilizar, justifico. Agora se ele tem todos os meses um prêmio, então faz parte, nós aí temos isso em consideração. Depois nós consideramos a despesa, que nos nossos regulamentos é apenas contemplada a despesas com a habitação.

A entrevistadora pergunta: — O per capita é tirado depois que você exclui as despesas

com habitação? E Luísa responde:

— Sim, é a divisão da renda por todos os elementos, é a quantia que fica.

E para confirmar o entendimento, a entrevistadora pergunta se é depois que já tirou os

gastos. Ela confirma que sim.

Destaque-se que aqui está colocada em pauta a questão de um único critério, a renda

— que, poderá, no entanto, não ser único a ser considerado no processo da seleção, mas a

renda estará presente em todas as seleções de caráter socioeconômico. Podemos perceber que,

embora sem aprofundamento da análise a esse respeito, a sua manipulação implica inúmeras

decisões e operações, assim como conhecimento mais abrangente para manejá-la para além do

cumprimento da regra institucional presente nos regulamentos.

Isaura problematiza se a seleção socioeconômica deve incorporar a análise do

consumo familiar e os tipos de gastos a considerar porque sempre envolvem decisões e

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valores, tanto dos sujeitos demandantes dos serviços sociais, como dos profissionais que

realizam a seleção. Ela discute a questão e apresenta exemplos:

— Essa moça aqui diz [refere-se à entrevista de Fátima que leu] que ela não fica satisfeita quando alguém diz para ela que não vai estudar porque não pode pagar e ela revê. Aí ela conta que “outro dia veio aqui uma mãe que me dizia que se nós não déssemos a bolsa, a filha iria deixar de estudar até porque o pai tinha que lhe comprar um carro para filha estudar e eu também disse à senhora os senhores é que sabem o que é mais vantajoso para vocês se é pagar a propina da vossa filha ou se é comprar um carro, mas não venha por o ônus em cima de nós.” É uma discussão que está posta: como é que não pode ter o carro? Senão a gente se atrapalha, senão você não tem critério de inclusão. Tem um lugar aqui o Juizado Especial Federal que trabalha com reclamações de BPC que tem estar escrito na ficha a marca do eletro doméstico que a família tem, se é uma geladeira ou fogão Dako tudo bem, está incluído; se for Bosch está fora. É a qualificação do que você pode ter e eu sempre discuto isso com os alunos “você vai lá ela tem um Brastemp e eu não tenho aí ela fica muito zangada porque o usuário tem e eu não tenho.” Eu não acho que não tem nada a ver, eu acho que tem que ter alguma mediação aí senão a gente se atrapalha. Você pode fazer o que quiser com o seu dinheiro, mas o seu per capita faz com que você ganhe uma bolsa de estudos ou não.

Regina reage à fala de Isaura, questionando que a autonomia do indivíduo não é

considerada e tratada quando se trabalha com a renda de toda a família.

— Olha que complicado que é quando você está falando o que está vivendo, você está colocando a família na roda. Você mora numa casa que a sua família tem uma geladeira. Agora quando o senhorzinho que não tem renda nenhuma e essa situação que a família inteira tem uma renda, ele vai viver como dependente dessa pessoa que é uma situação de total falta de autonomia que ele deveria ser contemplado para ele ter autonomia, ter isenção da família.

Eunice, que vem se dedicando ao estudo da produção de pareceres e laudos pelos

assistentes sociais, também problematiza a incorporação do consumo como critério do estudo

social, uma vez que, conforme as demais entrevistadas brasileiras e algumas das portuguesas,

esse critério pode se realizar permeado de preconceitos e assim pode mais prejudicar do que

facilitar o acesso dos usuários aos serviços e benefícios sociais. Ela nos conta com indignação

contagiante a seguinte situação:

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— Eu vi numa outra pesquisa que eu fiz, nem sei se vocês [refere-se ao Curso de Serviço Social da PUC-SP] chegaram a receber a pesquisa de famílias com crianças abrigadas; eu participei da coordenação, fazem uns dois ou três anos. As pesquisadoras, que também na maior parte eram pessoas que estavam na intervenção nas unidades de acolhimento e no próprio Judiciário, ouviram famílias de crianças que estavam em abrigos, e eu me lembro de uma mãe que falou que a assistente social deu um parecer negativo em relação a ela ficar com a criança, porque a assistente social descobriu que ela dava “papinha Nestlé” para a criança. Aí a assistente social falou que se ela dá ‘papinha Nestlé’, primeiro que ela era preguiçosa, não queria fazer comida para o filho, segundo que se ela pode comprar ‘papinha Nestlé’, teria condições de cuidar dessa criança e não deixar acolhida em uma instituição, e se deixou é porque era negligente. Veja só, o fim do mundo! Porque eu não posso dar papinha Nestlé para o meu filho? Todo mundo dá papinha Nestlé para o filho! Veja o preconceito na ação profissional, como se manipula a vida das pessoas, então tem algumas situações em que às vezes é bom nem ter o profissional, dependendo de como ele vai analisar...

Através dessa breve pauta apresentada em relação aos critérios, podemos deduzir a

complexidade que envolve a realização de estudos socioeconômicos. Quanto maior o número

de critérios para além da renda familiar ou individual ou per capita — tais como instrução,

inserção no mercado de trabalho, condições de habitação, raça e etnia, dentre outros inúmeros

exemplos possíveis —, mais complexo se torna o estudo e, portanto, mais estudos são

necessários por parte dos profissionais que operam esses critérios.

Quando o assistente social trabalha com a seleção de acesso a serviços balizados em

legislação, como dever do Estado, o que pesa na análise do acesso é o preenchimento pelo

candidato dos critérios estabelecidos, não a disponibilidade de verba. Nesta situação, o

assistente realiza um trabalho mais de triagem, ao verificar se o indivíduo atende ou não aos

requisitos ali colocados, conforme já tratado anteriormente..

Alice, que atua em entidade que recebe o recurso da “Liga contra o Cancro”, embora

não tenha se queixado de problemas relativos aos limites de verba, conta que o acesso é

atrelado e dependente da existência de recursos disponíveis e à apresentação de avaliação

socioeconômica, fundamentado na necessidade e no mérito, que, por sua vez, é definido em

função de critérios. Esse também é o caso de Luísa, quando atua com os programas da Santa

Casa de Misericórdia de Lisboa e tem que realizar estudos e apresentar relatórios para que o

recurso seja liberado para o atendimento do usuário.

Fátima explica que, para realizar a triagem dos candidatos às bolsas de estudo, precisa

ter domínio profundo da lei e das medidas complementares, como elementos orientadores do

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seu trabalho, e acompanhar o cumprimento da contrapartida relativa aproveitamento do aluno

e do cumprimento da regra de que ele deverá terminar o curso em quatro anos.

— Nós em Portugal não temos verbas delimitadas para atribuição de bolsas. Ou seja, o que eu quero dizer é o seguinte, imaginando o tenho “n” alunos com direito a bolsa e só tenho 1000 euros e tenho que dividir esses 1000 euros pelos alunos todos. Não, não é assim que acontece em Portugal. Em Portugal acontece exatamente o contrario, eu faço análise das situações socioeconômicas dos alunos e todos aqueles que tiveram direito à bolsa recebem-na e o dinheiro terá que se encontrar em qualquer lado, mas eles recebem a bolsa. Não há limitação nem do valor da bolsa, nem do numero de bolsas atribuídas, por causa do orçamento; isso não acontece. Portanto, a nossa legislação impõe condições para se fazer o estudo socioeconômico, dizem de acordo com aquelas condições quais são os alunos que têm direito e aqueles que não têm direito a bolsa. E desde que esses alunos têm direito, eles têm que a receber. [...] Mas tenho trabalhado sempre em serviço em que existe uma legislação que baliza a minha atividade e que diz quais são as formulas, quais são os rendimentos que são considerados, as despesas que são consideradas. Portanto, não é uma situação como, por exemplo, se vive em termos de outro tipo de apoios em que o estudo socioeconômico é feito sem que haja este balizamento legal, portanto, nós podemos analisar um processo e considerar que essa situação... Fazer uma informação [relatório] e dizer que esta situação está em condição de ser apoiado ou não. No meu caso não, no meu caso tem sido sempre com uma baliza legal. [...] Relativamente à situação atual há uma legislação que diz que têm direito à bolsa de estudos, os alunos que se candidatam a ela, porque os alunos até podem ter direito, mas se não se candidatarem, se não a pedirem não têm direito. Portanto, os alunos que se candidatam à bolsa, os alunos cujo [...] cujo patrimônio... Isto é uma legislação que saiu em julho de 2010, portanto há muito pouco tempo. É a primeira vez que estamos a aplicar esta legislação; a anterior era um pouco diferente. Portanto, neste momento, a legislação exige que [...] o do agregado familiar do aluno não possa ter um valor superior a um determinado montante. Neste patrimônio, incluem-se contas bancárias, valores em contas bancárias, ações, valores de tudo que seja depósitos, tudo o que seja bens patrimoniais. [...] Têm que ter aproveitamento, aproveitamento que não é um aproveitamento total. Bologna,94 eles têm normalmente quatro anos para fazer o curso, têm

94 “A cidade italiana que em 1088 viu nascer a primeira Universidade europeia (Alma Mater Studiorium) serviu de palco, em 1999, à assinatura da Declaração ou Acordo que compromete os seus subscritores no propósito de contribuírem para a construção de um novo espaço europeu de ensino superior. Tal intenção é agora partilhada por 45 países europeus e a Declaração original foi sendo trabalhada e ampliada por múltiplas comissões e grupos de trabalho, de modo a operacionalizar e tornar efectivo o seu conteúdo programático. O balanço das iniciativas convergentes tem sido feito bienalmente (Praga 2001, Berlim 2003, Bergen 2005), tornando Bolonha no símbolo de um processo que procura devolver ao mundo universitário europeu uma renovada e acrescida grandeza. O Processo de Bolonha faz hoje parte integrante do léxico de referência de todo o ensino superior e funciona como símbolo da mudança anunciada na estrutura de graus e na organização de planos de estudos e metodologias de ensino e aprendizagem (disponível em: https://www.utl.pt/admin/docs/61_O_Processo_de_Bolonha_de_A_a_Z.pdf; acesso em: 2 fev. 2013).

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que fazer o curso dentro desses quatro anos. Se nós percebermos, a partir do segundo ou do terceiro ano, que o aluno já não tem condições para concluir o curso nesses quatro anos, já não tem direito à bolsa. Mas do ponto de vista do cálculo econômico, é o rendimento, o tal rendimento acima de um determinado montante. E depois são os rendimentos do trabalho, todos os rendimentos obtidos, rendas de casa...

Luísa oferece uma problematização, traçando comparações entre os critérios do RSI e

os da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, que estabelece critérios diferentes para cada

programa e as implicações de atuar a partir de legislação do Estado que institui o benefício

como direito e os regulamentos que registram os critérios, normas e procedimentos para o

acesso aos seus serviços sociais a partir da detenção de mérito.

— [N]um paralelo entre a Ação Social e o Rendimento Social de Inserção, a Ação Social é mais flexível, [...] E porque a Ação Social é da minha organização, enquanto o Rendimento Social de Inserção é de uma outra. É por via de um protocolo, tem uma lei, o Rendimento Social de Inserção tem uma lei subjacente e a Ação Social não tem lei. [...] O Rendimento Social de Inserção é um direito desde que o utente responda, mas tem que responder a muitas coisas, e que há coisas que ele não consegue responder, não só por via da sua vontade, mas por via do sistema. E isso é uma outra polêmica. [...] Mas, voltando à questão da Ação Social e do Rendimento Social de Inserção, uma das diferenças é a lei, ou seja, eu enquanto assistente social administro uma lei, e isso traz-me responsabilidades, se eu não cumprir ou se eu não a fizer cumprir, é sério. Enquanto a Ação Social é da minha organização, é da minha casa onde eu trabalho, e aí dá-me uma maior liberdade. Ou seja, embora existindo critérios, embora existam orientações, eles são mais flexíveis e quando eu digo que me dão uma maior liberdade, [...] [é] porque a Ação Social da Misericórdia é muito rica, para além da questão econômica, e mais procurada [...] dentro da organização onde eu trabalho e eu acho que de uma forma geral, o assistente social têm sempre uma margem para lidar, ou, às vezes, contrapor os critérios, às vezes é maior, outras vezes é menor. Muitas vezes... [...] um profissional de Serviço Social quando trabalha, trabalha dentro de uma organização que tem determinados critérios e para desenvolver a sua profissão, para ter o seu trabalho de alguma maneira, tem por norma que deve os cumprir, às vezes, é a condição para... [...] depois nós temos vários regulamentos, isso é outra questão. Para ter acesso ao cartão de saúde há um regulamento onde não se contabilizam determinadas coisas para ter acesso a um apoio econômico. Há outro regulamento para ter acesso a um subsídio de apoio econômico para o lar. Há outro regulamento para ter acesso aos equipamentos, às creches, ao jardim-de-infância. E aos lares há um outro regulamento. Eu creio que, neste momento, há uma preocupação organizacional, de tentar haver um só regulamento, embora eu não saiba se isso vai ser favorável, mas essa é uma situação que está em estudo. Mas, em todos eles, as despesas são deduzidas da renda, são as despesas

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de coabitação. Depois, há uma outra possibilidade, que eu também já referi, que é quando eu avalio que aquela situação tem encargos muito elevados com medicação, sobretudo, em população idosa. [...] Quando se trata de doenças crônicas, eu apelo aos decisores para esses aspectos... [...] Há um manual de documentos, um manual de identificação, documento da renda. Se trabalhar tem que trazer o recibo do vencimento e se não tem todos os meses o mesmo vencimento, então, traz dos últimos três meses para podermos fazer uma média do seu vencimento. Se estiver desempregado, então, vai ter que trazer um comprovativo em como está à procura de emprego, se é isso que refere. Embora isso depois, não que seja linear, porque a pessoa pode de alguma forma, trabalhar informalmente e não estar a fazer descontos e ser possível manter uma inscrição.

Ao refletir sobre se seria mais democrático o profissional ter plena liberdade para lidar

com os critérios ou haver balizas postas mais amplamente, ela defende a ideia de que é melhor

haver critérios em aberto.

Sobre essa questão, estabeleceu-se, no momento da entrevista, este diálogo com Luísa:

— É melhor, claro! Tem que haver balizas! Eu aí não tenho dúvidas, porque aí entra um caráter de subjetividade muito grande.

A entrevistadora provoca a entrevistada, dizendo: — Quando você tem um critério, é

duro pensar que ele é para todo o mundo, mas ele coloca a possibilidade de um olhar comum,

um mesmo jeito de lidar com todas as situações que se apresentam, pautado nos mesmos

parâmetros. E ela diz:

— Mas, como eu disse e já fui falando naquilo que é a minha prática, há um critério, e eu a partir do critério posso utilizar a minha apreciação, aquilo que é a minha subjetividade, a minha leitura da situação. Se for ao contrário é mais difícil, se se partir de um caráter subjetivo [não havendo critérios]. Ou seja, se não houver seleção socioeconômica, então como vamos chegar...? Não vamos!

A respeito dos critérios, Alice, que tem tido mais autonomia de trabalho, diz:

— Os critérios têm de servir para aquilo a que se destina o serviço. Não é o critério que é importante, há o serviço, há os meios, para que é que eles servem, para que é que eles são...? E os critérios têm de se moldar a isso...

Tilia reafirma as suas críticas, em relação aos critérios:

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— A questão é que não há critérios, quer dizer que se houvessem critérios, tinham que ser objetivos e se houvesse critérios objetivos, não era preciso ser uma profissão, quer dizer, podia ser qualquer pessoa administrativa que poderia responder a esta questão.

Eunice, que defende que a profissão só deve participar de seleções socioeconômicas se

for para ir além do critério da renda, indica o caminho que temos a pesquisar sobre nossa

pratica profissional, para que possamos pensar na criação de respostas profissionais diante dos

sérios desafios impostos pela realidade social atual. Considera que a construção dessas

respostas deve envolver a categoria dos assistentes sociais que é sedenta de novos recursos

teóricos para uma intervenção crítica. A esse respeito, ela teceu as seguintes considerações:

— Mas uma coisa é uma mãe com criança pequena, outra é uma mãe com filho já jovem, adulto. É uma diversidade muito grande. Acho que aí sim caberia à gente entrar com um estudo e mostrar essa diversidade, tanto no atendimento “caso a caso”, em pesquisas, porque eu acho que cada vez mais precisamos fazer pesquisas sobre a nossa prática. Eu acho que a academia tem que fazer pesquisa para saber como estamos trabalhando e o que precisamos. Tenho certeza que as pessoas vão colaborar porque muita gente que está nessa profissão sente essa necessidade.

Esta entrevistada, de jeito entusiasmado e determinado, continua sua problematização

dos critérios, indicando algumas saídas para lidar com as balizas dos estudos socioeconômicos:

— Você usar o poder do conhecimento com base nesses referenciais e explicar a realidade socioeconômica cultural e familiar daquele sujeito para que aquela criança tenha o direito de viver com a sua família de origem. Eu penso que esses elementos são essenciais, mas eu acho que ainda a gente se “atrapalha” muito por aqui, acho que quando falamos no trabalho, na própria família... Hoje temos avançado mais a discussão de considerar a diversidade de formas das pessoas se organizarem, de se cuidarem, de conviverem, a questão das políticas sociais, mas acho que temos ainda que avançar. O que é você ter uma moradia e ter acesso aos serviços da moradia, o que é uma moradia adequada? Eu tenho buscado um pouco da discussão de moradia como direito humano que a Raquel Rolnik vem trabalhando, e a cultura. Isso é fundamental, a gente precisa desenvolver mais, os fundamentos do serviço social têm que ser trazidos para o dia a dia, acho que isso é um estudo. Agora, é muito difícil. Eu lembro que fui dar uma capacitação, e o debate foi que não damos conta disso, que é um processo, que tem prazos. Mas, se a gente não fizer isso, o que vamos fazer?

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Graziela, na entrevista coletiva, apresentou ampla problematização dos critérios a

serem considerados nos vários espaços sócio-ocupacionais da profissão, como na saúde, na

assistência social, no atendimento às mulheres vítimas de violência e nas cotas de negros. Em

relação á área de saúde, ela disse que:

— O campo da seleção socioeconômica é muito amplo. Estou pensando em transplante de órgãos, aquele apoio que tem em São Paulo para as pessoas transplantadas dos rins. Tem mais de três mil ou cinco mil pacientes em São Paulo que sofreram transplante, e essa organização faz todo o processo de apoio, assistência, orientação, abrigo quando vem para São Paulo. Acho que na saúde essas situações são para algumas cirurgias especiais.

No campo da violência contra a mulher, a entrevistada apresenta denso

questionamento sobre o fato de o atendimento na Assistência Social se dirigir somente às

mulheres pobres e não a todas que precisarem do atendimento.

— Eu fico pensando no meu campo de trabalho de violência contra a mulher. O embate todo com a Assistência Social na cidade de São Paulo era o quesito dos três salários mínimos até hoje. O Suas está encampando a discussão da relação da violação de direitos, mas na hora que vai discutir a violação de direitos e transforma isso em violência doméstica. Vários profissionais que estão lá decidindo a verba para montar Casas Abrigo para as mulheres, por exemplo, monta uma casa abrigo onde vai ficar moradora de rua, mulher que foi despejada, mulher que sofreu violência doméstica e poderá ir também à mulher do traficante. Na hora de pensar a seleção socioeconômica, quando a gente pensa na flexibilização, e até no controle, como é que a gente pode pensar no sentido de garantir esses direitos para essa universalidade do acesso? Eu fico pensado até no programa Bolsa Família. A presidente [da República] acabou de anunciar que a maior parte são mulheres porque concentram a pobreza no Brasil desde a década de 80, mas o Programa Bolsa Família não decidiu que as mulheres têm prioridade para isso, que tem flexibilidade na aplicação do indicador para as mulheres terem prioridade no programa Bolsa Família e muito menos para as mulheres negras é que na peneira acabou somando isso. Se você vai para discutir vítimas de violência, por exemplo, como é que você discute essa flexibilização? O pessoal da assistência não aceita se uma mulher tem seis salários mínimos ir a um abrigo com situação de risco de vida, aliás, a assistência nem sequer aceita abrigos para... Não pode escrever no projeto de uma ONG que vai receber financiamento da Prefeitura, do Suas, que está escrito vítimas de violência em situação de risco. Tem que estar escrito: situações de vulnerabilidade de risco social, agora o que é risco social, o que é vulnerabilidade? Onde é que as situações de violência numa metrópole como essa entre...

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Quanto à reserva de vagas para negros, mediante cotas sociais, Graziela problematiza:

— Nós conquistamos várias coisas, mas temos outros problemas: as cotas dos negros nas universidades, uma parte dos negros é contra essas cotas, porque elas são favoráveis à pobreza, porque a pobreza vai pegar mais negros, e os negros que vão chegar à universidade são quem não é tão pobre. Então, como nós vamos trabalhar com isso? Agora para auxiliar dentro das universidades a construção desse critério para não ferir nosso projeto ético.

Na construção de padrões de referência para lidar com os critérios de âmbito mais

coletivo, ela propõe:

— Na seleção socioeconômica, eu fico pensando nessa flexibilização e o que a gente colocaria de indicadores sociais, de IDH, salário mínimo condizente com uma vida digna, diferencial de gênero e cor. Nós estamos agora com um problema.

Regina, ao apresentar a crítica, também indica um caminho para sair de onde estamos

na profissão em relação à realização da seleção socioeconômica e ao manuseio dos critérios:

— Acho que a gente tem que deixar de ser genérica. A gente faz a crítica da política genericamente. A política responsabiliza, a política isso ou aquilo e nós não sabemos do que estamos falando, é tudo no genérico. E os assistentes sociais aprendem, mas na hora de fazer eles fazem exatamente tudo igual.

A problematização apresentada com a contribuição das entrevistadas acerca do

estabelecimento e do manejo dos critérios na seleção socioeconômica operada pelos assistentes

sociais nos indica, em grandes traços, as lacunas existentes e o tanto que temos ainda que

estudar, pesquisar e discutir no Serviço Social para qualificar a realização da seleção

socioeconômica.

4.4.4. As contrapartidas como condição de acesso e permanência no atendimento

O estudo da seletividade de acesso aos serviços e benefícios sociais comporta a

discussão da contrapartida ou condicionalidade, uma vez que a aceitação desta como condição

imposta para o acesso e permanência do usuário no atendimento torna-se em si um critério, ao

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passar a integrar o acesso e a permanência no benefício de forma inseparável. Ou seja: a não

aceitação das condições ou o não cumprimento “do contrato estabelecido” impede o acesso e

a permanência do indivíduo no benefício ou serviço social.

Informar sobre as exigências estabelecidas e depois cobrar sua realização tem se

constituído como mecanismo de controle para a permanência do usuário nos programas,

diante da qual o assistente social aparece como um daqueles que fazem o acompanhamento e

a certificação do seu cumprimento.

Em benefícios sociais, como o caso do RSI em Portugal, do Programa Bolsa Família no

Brasil e de outros tantos programas sociais, estão colocados hoje a cobrança da contrapartida

ou condicionalidades, embora essa prática seja muito antiga na assistência social, mesmo

antes de sua cobrança no papel, por escrito.

Em 2010, época em que realizei as entrevistas em Portugal, era possível perceber

claramente, através dos meios de comunicação (televisão e imprensa), que o Estado buscava

apoio político para a cobrança da contrapartida do RSI, sob alegação de que era necessária

diante da existência de grande número de “indivíduos que não queriam trabalhar” e que,

portanto, viveriam à custa do Estado; ou mesmo de que muitos beneficiários do RSI não

necessitavam deste e se utilizavam da falta de fiscalização para se aproveitar do Estado. A

cobrança da busca de um emprego pelos atendidos pelo RSI, que se colocava como a

contrapartida exigida, era apresentada à população como medida justa. Assim como a

fiscalização para a averiguação da pobreza do beneficiário, impunha-se como uma

necessidade na conjuntura de contenção de despesas do Estado.

Naquele país, a contradição que se apresentava e continua a se apresentar é a seguinte:

se o indivíduo arruma um emprego, deixará de ser beneficiário daquele benefício; portanto, a

pressão para que haja uma cobrança rígida da contrapartida visa ao corte do número dos

benefícios atuais. Já se presumia que o corte seria grande, pois essa cobrança se dava e

continua a se dar num quadro de agravamento de desemprego estrutural. Em outras palavras:

delineia-se o horizonte da focalização do benefício que deverá atender somente grupos

específicos da população.

É preciso considerar que o RSI vem sofrendo alterações ao longo do tempo, desde a

aprovação, em 1974, da Pensão Social, de base não contributiva, e da implantação do

rendimento mínimo garantido, em 1996,95 adquirindo hoje o jeito das consideradas políticas

sociais de nova geração, denominadas por políticas sociais ativas.

95 Maiores detalhes a esse respeito podem ser encontradas em Branco (2001, 2004a, 2004b).

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A considerada nova geração de políticas sociais dá ênfase à cobrança das

contrapartidas, pois “ninguém deve se beneficiar de uma medida de política social sem que

activamente realize alguma acção no sentido de alterar as circunstâncias que o levaram a

necessitar de recorrer ao sistema de bem-estar” (BRANCO; AMARO, 2011, p. 660).

Essa questão da contrapartida coloca-se como medida integrante da política social

ativa (workfare), justificada na crítica de que os sistemas de bem-estar social do pós-guerra

que se fundamentavam no princípio da universalidade e na garantia de direitos e benefícios

levaram à inatividade e à passividade dos sujeitos beneficiados por essas políticas. Nessa

perspectiva, o trabalho como contrapartida do benefício recebido é validado na lógica da

inserção social, na qual o mercado de trabalho passa a ser considerado como o principal lócus

de integração social do indivíduo, esperando-se que ele se comprometa com a sociedade

através do trabalho (BRANCO; AMARO, 2011, p. 661). Isso está colocado em uma conjuntura de

amplo desemprego estrutural presente no continente europeu, destacadamente em Portugal e

na Espanha.

Wehrle (2011, p. 682-683) observa que a reconfiguração do Welfare no ponto de vista

do workfare vem se dando nos países europeus de forma sutil, não pressupondo o simples

desmonte dos sistemas de proteção social, mas

transforma a assistência social em instrumento de controle social a serviço do capitalismo globalizado. [...] Bem-estar, nesse contexto, se transfigura em capacitação para o trabalho. Por conseguinte, integração não significa outra coisa que inserção no mercado de trabalho. Não importa como: quem é ativo também tem que ser flexível. Assim, a integração discursivamente afirmada não é nada mais que a adaptação a uma vida na precariedade invisibilizada e a submissão a condições exploradoras, muitas vezes ilegais de trabalho. Quem não se integra, isto é, quem não se submete aos trabalhos obrigatórios é caracterizado como indisposto para o trabalho e como resistente à integração. Em consequência, sofrerá cortes dos benefícios sociais.

As consequências dessa tendência que informa as políticas sociais atualmente são

dramáticas para o Serviço Social:

A questão do estabelecimento do contrato e da negociação torna-se crítica para os assistentes sociais. [...] por um lado, pressupõe-se a existência de uma relação simétrica entre as partes e a existência de efectivas oportunidades; por outro, salienta-se a fragilidade moral e a incapacidade do outro, que não é capaz de gerir a sua própria vida sem recorrer a um contrato que define os aspectos mais básicos e nucleares da vida cuja gestão está ao alcance de todos os outros (BRANCO; AMARO, 2011, p. 662).

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Essas exigências, colocadas pela política social que pressupõe cobranças e

negociações para que os usuários tenham o benefício, acabam por colocar sérios desafios à

profissão, pois o assistente social tem sido colocado para realizar essas tarefas. Nesse quadro,

aparece a intervenção profissional caracterizada como

[...] cada vez mais confinada à instrução e ao desenvolvimento de processos administrativos, majoritariamente associados á questão do controlo. Em larga medida, a prática está a tornar-se mais instrumental que substantiva, mais preocupada com os resultados do que com os processos. Os assistentes sociais hoje dirigem a sua atenção para a apreciação do posicionamento dos indivíduos perante a adesão ao contrato e a apresentação dos resultados (BRANCO; AMARO, 2011, p. 662).

Essas referências são fundamentais para que possamos entender os discursos de nossas

entrevistadas acerca da contrapartida.

Alice concorda com a cobrança da contrapartida, desde que não seja imposta. Devo

reconhecer que, no momento da entrevista, não explorei essa afirmação, mas hoje considero

que é estranho pensar em contrapartida que não seja uma exigência, uma imposição, uma

condição para o acesso e permanência no serviço ou benefício social que integra um contrato;

então, concordar com a contrapartida desde que não seja cobrança, não seria se colocar contra

essa prática? Alice assim se expressou a respeito das contrapartidas:

— Eu posso concordar com as contrapartidas se elas não forem impostas, se fizerem parte do plano de vida das pessoas, se fizerem parte de uma motivação das pessoas para fazer algo. Eu não concordo com contrapartidas impostas porque nunca funcionam. Eu acho que as contrapartidas deveriam vir surgindo da própria relação e da própria construção, em alguns casos é um privilégio ter uma pessoa que se debruça sobre elas, que as estimula a ter outra forma de ver a realidade. Então, desta relação deveriam surgir, necessariamente, perspectivas de futuro para aquela pessoa, para melhorar, se promover etc. e a partir daí poderia vir esse tipo de coisa, mas nunca de forma imposta. Sei que há situações de ameaças pelos ciganos porque os professores dizem que as suas crianças não vão à escola, então, ameaçam a professora por fazer queixa à assistente social.

Através de um comentário de Regina é possível agora pensar que possa haver um

pedido de colaboração que nem parece uma contrapartida. É o caso dos hospitais que, em

nome da humanização do atendimento permitem que o indivíduo internado possa ser cuidado

por familiares no hospital. Como há falta de funcionários em número suficiente para cuidar

adequadamente dos doentes, essa medida, então, quase que se impõe.

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— A política de saúde é um... Porque em tese ela não tem contrapartida; em tese, porque ela tem. Ela pede para o cara... A família fica, tem que dar comida.

Fátima destaca a importância da contrapartida, por considerá-la em medida de âmbito

educativo, não como ação fiscalizadora.

— Eu acho que é importante, as contrapartidas são importantes. Acho que não devem, nem podem ser entendidas como fiscalizadoras. Acho que devem ser entendidas do ponto de vista educativo. Ou seja, por exemplo, você só recebe o benefício se os seus filhos forem à escola. Eu acho que isso tem de ser visto, não como... Você vai receber o dinheiro, mas os filhos têm de ir para a escola, mas como é importante que os seus filhos vão à escola, [...] e em contrapartida receber o benefício. [...] porque a contrapartida, não é a obrigatoriedade de se fazer as coisas, mas a contrapartida é o beneficio.

Essa forma de apreender a contrapartida como medida de âmbito educativo deve

merecer nossa atenção, por se apresentar como uma forte tendência presente também no

Brasil, exigindo o deciframento de seus fundamentos. Ou seja: o que significa considerar a

contrapartida como medida educativa? Qual é o entendimento de educação nela presente?

É preciso ter presente nessa discussão que o trabalho do assistente social tem um

caráter educativo, porque, na relação estabelecida com o usuário, sempre se interfere na sua

forma de ver, sentir e pensar, quer pela forma como se estabelece a relação, que é sempre de

poder (autoritária ou participativa) ,quer pelo saber, ideia e conceitos que esta relação veicula.

Diante do fato que não há uma só concepção de educação, em que perspectiva

educacional se pode encontrar os fundamentos da contrapartida como forma educativa?

Se a contrapartida é forma de educação, o entendimento que desta se tem pauta-se na

perspectiva comportamentalista do reforço positivo de prêmio-castigo, quando premia com o

acesso ao serviço ou benefício social aqueles indivíduos que respondem afirmativamente ao

que é exigido e esperado deles no contrato estabelecido. Quando assim é entendida,

desaparece a ideia do acesso ao benefício social como um direito. Dessa forma, reatualiza-se a

velha ideia liberal — que se opõe ao acesso por direito — de que, para o indivíduo ter acesso,

é preciso que detenha mérito, provando que merece, e que dê algo em troca.

Quando assim se procede, exigindo do indivíduo-cidadão, por exemplo, a colocação

do filho na escola ou a apresentação de carteirinha atualizada de vacina para que receba o

benefício social, a relação do cidadão com o programa passa a se dar de forma submissa, sem

que o indivíduo possa participar, de fato, da decisão e dos meios para realizá-los. Se não

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cumprir a regra estabelecida, prevista como contrapartida ao atendimento, será “castigado”

com o desligamento. Nesse caso, o poder presente na relação estabelecida entre a organização

(na qual o assistente social se apresenta como seu porta-voz) e a população passa a se guiar

pelo autoritarismo, que é forma de dominação.

Mas, a mudança de hábitos e comportamentos prescinde da participação reflexiva do

sujeito alvo da ação?

Luísa estimula a continuidade da nossa análise, considerando a contrapartida como

medida justa:

—Acho que quando há a possibilidade ou quando alguém se beneficia de algo têm que haver uma contrapartida. Eu para ter um vencimento ao final do mês tenho a contrapartida de trabalhar, e por isso ao nível dos utentes, têm que haver uma contrapartida também. [...] E eu acho que tem que haver sempre uma contrapartida, porque também tenho para mim, isto não é cientifico, é empírico, porque se nós dermos tudo, se o Estado der tudo, nós não vamos ajudar muitos, ou grande parte daquilo que é a população que acede ao rendimento social de inserção e à Ação Social; nós não vamos ajudá-los a perspectivar uma vida de uma outra maneira, uma alternativa de uma outra maneira, uma vivência de uma outra maneira.

Esta fala, que coloca em pauta a ideia da contrapartida, entendendo-a “como forma

justa de pagamento” ao benefício recebido pelo usuário, permite explicitar uma outra

dimensão dessa questão, que também está presente de forma significativa no Brasil. Refere-se

ao entendimento de que, “se o Estado oferecer tudo, sem exigir nada em troca, os usuários vão

se acomodar e não darão valor ao que recebem”.

Fátima, na sua fala, considerou a própria contrapartida como sendo um benefício. Luísa,

por sua vez, entende que a cobrança da contrapartida pode contribuir para que o indivíduo se

torne mais autônomo e inserido na sociedade, se for tomada como processo e não como uma

cobrança fechada em si mesma, o que se torna uma possibilidade importante a ser considerada.

— Isso depois passa por uma outra questão: passa pela questão daquilo que é a inserção na sociedade, daquilo que é a sua autonomização, daquilo que é o seu crescimento enquanto indivíduo. [...] Agora, a autonomia, a autonomização é a capacidade de cada um decidir por si, aquilo que quer fazer. É uma verdade... Mas quando não se tem nada, eu também não sei se nós não temos... [...] da minha experiência a coisa não funciona logo assim. Há famílias, há indivíduos para os quais as contrapartidas são de acordo com aquilo que são as capacidades daqueles indivíduos e daquelas famílias

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naquela altura; se aquelas famílias não conseguem ter rotinas diárias, não conseguem implementar rotinas diárias para os filhos, eu não posso exigir que façam outra coisa a não ser que se comece por ali. [...] Ou se por esta via, nós podemos, de alguma forma, ajudar aquela pessoa, por via daqueles compromissos... [...] para conquistar determinadas coisas, têm que fazer outras, e isso passa por uma questão [...] que parece que é burocrática, que é do tipo toma lá dá cá e a questão também não é assim. Eu não vejo assim, a contrapartida é algo que está presente num processo ou deve estar, [...] que deve fazer parte de um processo mais abrangente, de um processo de trabalho com as competências de um indivíduo que está à nossa frente, de perspectivar qual é o seu projeto de vida, de fazer com ele construa um processo de construção identitária. No fundo, a contrapartida tem que estar ou deveria estar inserida num processo mais vasto de apoio, de ajuda, de construção, de acompanhamento. E não da contrapartida... Por aí, se calhar, não era preciso um assistente social para fazer isso, era um processo administrativo. Têm dinheiro, então, têm que fazer isto, não fez, então tem uma consequência. Daquilo que eu identifico que é a minha prática, daquilo que eu conheço que é a prática dos meus colegas, a coisa não é assim tão, tão, tão rígida.

É importante dizer que há um pensamento muito presente no Brasil, até entre

assistentes sociais, de que é preciso sempre ser cobrado algo em troca do atendimento, sob a

alegação de que “tudo que é dado de graça a pessoa não valoriza” ou da importância de

sempre se cobrar algo em troca (“para se dar valor ao que se recebe” e “se paga algo, ele [o

usuário] não se acomoda”). Nesse entendimento, o acesso é visto como mérito e não como

direito, mas como favor que precisa ser reconhecido e valorizado por quem o recebe, sob a

forma de contrapartida.

É preciso que reconheçamos o autoritarismo presente nessa medida e saibamos

apresentar a crítica da perversidade que se esconde por detrás da denominada “educação por

adestramento do sujeito”.

Essa ideia de cobrança é criticada por Tília, quando apresenta uma situação de

apreensão e mesmo de sofrimento vivido por um grupo de pessoas sem abrigo da cidade do

Porto, que se sentem ameaçados diante dos cortes que vem se operando no RSI. E, a partir

desse entendimento, a entrevistada começa a expressar desconforto ao verificar em que o

lugar que os assistentes sociais e outros profissionais estão colocados ao terem que realizar a

cobrança da contrapartida.

— Eu vinha agora dessa festa dos sem-abrigo [provavelmente está se referindo a uma festa comemorativa de final de ano] e agora eles voltaram... Todos vão ser chamados para trabalhar, com um

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rendimento que, ainda por cima... Com um rendimento que diminuiu. E um deles estava cheio de medo que o chamassem para trabalhar, para além das circunstâncias de saúde que ele tem; uma pessoa sem-abrigo. Ele punha também a questão: “mas eu vou comer às instituições, porque o dinheiro do rendimento mínimo não chega para as refeições, se me põem a trabalhar longe, então eu fico sem tempo para ir comer à instituição, então eu fico sem comer.” Veja lá o drama que isto quer dizer. Aliás, já nem há estômago para isto. E eu acho que os assistentes sociais conhecem esta situação, e vão fazer o quê? E não há outra forma, senão o mínimo? E nós não temos nada a ver com isso? [...] Neste momento a questão da inserção social coloca-se muito importante, como uma guerra. [...] o novo desafio que é feito ao Serviço Social ou às profissões do trabalho social, porque agora há uma aresta concorrencial no terreno, há muita gente que trabalha com o beneficiário, quer dizer, com os povos, se quiser.

A entrevistada, ao criticar o lugar ocupado pelos assistentes sociais na realização do

RSI na perspectiva de uma política ativa, aos moldes do que analisamos anteriormente,

começa a firmar e indicar outras possibilidades para a profissão, delineando quais poderiam

ser as saídas para os profissionais em geral e para os assistentes sociais em particular.

— Eu acho que estaria muito mais no nosso papel, nós legitimávamo-nos muito mais se recriávamos um espaço mais próprio, se trabalhássemos os laços sociais. E nesse contexto, sobretudo, de exclusão extrema, aqueles que podem trabalhar são pobres trabalhadores, e eventualmente esses podem se organizar e têm outros meios para se organizar; não me preocupa. Agora o que me preocupa neste momento, no campo do Serviço Social é que é aí que nós temos um vazio, mas que devíamos estar lá, com eles que são exatamente aqueles que, estão em situações de exclusão extrema, que são aqueles que não têm voz, que não têm voz ativa, no sentido literal. Não têm voz, nem ninguém os ouve, não têm sítio, não têm espaço, não existem socialmente. Esta ideia, de fato, esta teorização da exclusão social, como a ausência de laços, é em última instância a que muitos autores trabalham. Penso que é aí que nós temos de entrar e que é também aí que nós temos de criar espaços, se queremos de alguma maneira defender, ajudar a criar as condições, a dar a volta àqueles que não o têm. Por exemplo, é claro, que me preocupam as pessoas que trabalham, e que ainda recebem o Rendimento Mínimo, só que isto quer dizer que os que trabalham recebem salários tão baixos que ainda precisam do rendimento de inserção. Não sei se têm este dado, mas há pessoas no RSI e, [...] só que não sei a porcentagem; mas é muito grande a percentagem de pessoas que recebem o RSI e trabalham em simultâneo; mas a questão que se põe é a dos baixos salários.

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Por meio de seu discurso, podemos assistir o que vem ocorrendo na prática, com a

implantação da política social ativa, de um “Estado ativo” neoliberal que, de um lado, delega

parte das suas responsabilidades à sociedade civil e, de outro, desenvolve políticas sociais que

vêm perdendo o sentido e o traço de políticas universais, ao focalizar o atendimento por meio

da cobrança do arrocho na operação dos critérios, dentre os quais a severa cobrança da

contrapartida. Primeiro, a organização cobra e fiscaliza o trabalho do profissional; depois, ao

ser acuado, este reproduz a cobrança na relação com o usuário.

Tília, ao recordar da sua história vivida na luta de construção para o estabelecimento

RSI como um direito e que, enquanto tal, não tinha relação com cobranças para o usuário

permanecer no atendimento, afirma que ali o próprio trabalho era visto como um direito. E

hoje, diante de toda a destruição que vê se realizando, coloca-se contra a cobrança da

contrapartida, assim como critica a postura profissional que se apresenta como justiceira e

moralizadora da questão social, uma vez que, nessa perspectiva, o profissional nem sempre

percebe que se perdeu a dimensão dos direitos sociais, comprometendo assim a possibilidade

de realização de um trabalho com participação dos usuários. Ou seja, um trabalho profissional

que contemple o processo. Diz ela:

— Como é que eu vejo isto? Eu via, numa fase quando estávamos muito entusiasmados, numa primeira fase do Rendimento Mínimo, eu achava que era um espaço profissional quase perfeito. Eu achei. Eu era uma entusiasta muito grande do rendimento mínimo, exatamente, por causa da inserção. Porque acho que criava um novo campo de intervenção profissional. Ainda por cima, porque veio acompanhado de guiões, de uma filosofia, de uma metodologia que me parecia que era possível nós fazermos uma viragem desse assistencialismo de dar dinheiro, do dar de uma forma que poderia levar à criação de uma cultura atravessada pelos novos valores que ia promover. Quer dizer, criava as condições para nós promovermos a criação da cultura da inserção visando à autonomia das pessoas. Não se cobraria a contrapartida, porque era um direito. Mas o que acontece é que a sociedade não quer este caminho, a sociedade portuguesa não fez este caminho, nem os profissionais, no meu ponto de vista. Quando digo isto, estou a falar em termos gerais, como é evidente. Não se fez aqui um caminho de interiorização de um caminho na cultura de inserção. Isto quer dizer o quê? Que as pessoas teriam direito à inserção, como tinham a uma prestação mínima, tinham de ter direito também à inserção. E não se punha como contrapartida, punha-se como um direito. Eu penso que passados de 20 e tal anos da instituição desta medida política, eu já não penso assim. Toda a reflexão que tenho vindo a fazer, ao longo deste tempo, eu acho que levou este tipo de política para uma moralização, para uma obrigatoriedade, para uma imposição a que os assistentes sociais foram arrastados. Portanto,

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neste momento, tanto me faz pensar em termos de prestação, como em termos da inserção, acho que o que é dominante neste momento, é uma posição do Serviço Social justiceira e moralizadora. [...] Exatamente, a pessoa não tem dinheiro, então tem que trabalhar, ora isso não tem sentido, se trabalhasse tinha um salário, não tinha o rendimento mínimo.

Essa apreensão, que leva ao desconforto e à reflexão para buscar saídas de como

reverter o quadro atual, é compartilhada por Branco e Amaro (2011, p. 675-676), os quais,

através de análise de três pesquisas realizadas junto a assistentes sociais e usuários de

organizações sociais de Lisboa, buscam entender o que está acontecendo no atendimento à

população hoje naquele país. Ao analisar a fala de uma assistente social que trabalha no

atendimento social de um Serviço de Assistência Social, os autores assim se expressaram:

Parece que há qualquer coisa invertida quando os assistentes sociais do atendimento, que é o lócus por excelência de construção de um espaço de aproximação e compreensão do utente, assinalam a falta de tempo e de condições para explorar as situações individuais, para identificar as causas dos problemas e para relacionar as situações umas com as outras de forma a equacionar respostas colectivas para os problemas. Ressaltou que os assistentes sociais não estão a fazer este trabalho porque o seu tempo é subsumido na linha de montagem dos atendimentos e da atribuição dos subsídios. Nessa ‘luta’ não chegam sequer a ter uma percepção sobre quais são os resultados do seu trabalho. Parece que o Estado Social activo produz as condições sociais e institucionais para um “Serviço Social activo”, e simultaneamente para um “Serviço Social fordista”.

A questão do trabalho mecânico feito sem pensar, do fazer por fazer, também apareceu

com muita força nos depoimentos das entrevistadas brasileiras.

No Brasil, não vivemos sob o domínio do workfare; portanto, aqui não há a cobrança

do trabalho como contrapartida, mas há outras condicionalidades exigidas do usuário para a

sua permanência no atendimento: o cumprimento de sua realização por parte dos usuários é

“fiscalizada” pelos profissionais de várias formas, dentre as quais também aparece

evidenciado o jeito tarefeiro e mecânico de sua operação.

Graziela expõe uma situação de seu conhecimento, na qual a contrapartida é tratada

pró-forma pelos profissionais, quando o que interessa é que o indivíduo cumpra a obrigação

prescrita, não importando a forma e o conteúdo veiculados através dela.

— No Creas que tem em São Paulo... As famílias que estão com processo de suspeita no Judiciário, então, a contrapartida para ter seu filho de volta é ir aos trabalhos socioeducativos dos Creas. Aí, é a parafernália total, porque não pode ir toda semana das 2:00h às 5:00h, e os Cras também não mudam os horários, fazendo um esquema de

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compensação com os profissionais, mas aceita a possibilidade da pessoa ir uma vez por mês. Então, esses trabalhos de grupos socioeducativos são absolutamente formais. O representante da família vai uma vez por mês, o trabalho de grupo socioeducativo não tem a continuidade. Então o grupo que participou numa quarta-feira, na outra quarta-feira o processo do grupo continua, mas as pessoas que estão lá são outras e o assistente social assina parecer no final do trabalho, dizendo que a pessoa compareceu a tantas reuniões. Eu fico pensando como é essa discussão nossa em relação a essa contrapartida, porque a contrapartida aqui é da família que está com alguma suspensão do seu poder familiar em função de uma suspeita de abandono, maus tratos, negligência. Então, o Estado teria que dar algum tipo de orientação para esses pais poderem rever, mas...

Diante da situação exposta, podemos perceber que desde o horário da reunião até os

assuntos tratados não têm relação com o sentido da contrapartida colocada, cabendo à pessoa

envolvida unicamente se adequar às condições impostas.

Como contraposição a esse jeito mecânico de cumprir uma regra de contrapartida,

através de um exemplo apresentado a seguir, podemos indicar como poderia se dar a atuação

do profissional que dá sentido à realização da regra, no caso a contrapartida, visando

contribuir para mudança de valores, já iniciada anteriormente por Luísa. Aqui aparece como

através do cumprimento de uma contrapartida, poderia ser realizado um trabalho de cunho

educativo numa outra perspectiva. Essa discussão surgiu mediada pela questão de fundo de

como é cumprir a regra em si mesma e como deveria ser um trabalho comprometido com a

transformação, interpretando a demanda colocada à luz de uma reflexão crítica. O diálogo se

realizou da seguinte forma:

— Numa das supervisões que eu dei para os alunos, estava discutindo o ECA e que não se deve bater em criança, aí eu falei “por que, você acredita que os 25 pais que você tinha lá, eles não sabiam que não podiam bater nas crianças? Você já discutiu por que eles ainda usam bater? Eles sabem substituir a palmada e a cinta pela conversa?” “Como assim, professora?” Eu falei: “Esse é um valor colocado que você tem que substituir; a palmada e o uso da cinta pela palavra.” Mas para as pessoas fazerem isso, elas têm que ter fôlego, sustentação. Não é só uma questão legal de dizer que não pode fazer, mas você tem que mudar valores culturais (Graziela).

— Tem que mexer com a memória. Ela tem que esquecer que ela fala que a palmada foi boa para ela (Isaura).

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— Como é que você lida com isso? “Meu pai me bateu e eu não virei malandro. Por que, então, que a palmada que eu dou hoje não vai fazer meu filho não virar malandro?” Eu penso hoje, como a gente coloca essa reflexão sobre a contrapartida na seleção socioeconômica, nos trabalhos do PETI? Também tem isso, os pais têm que comparecer às reuniões formais e não às reuniões que tenham um conteúdo mesmo do que significa a exploração do trabalho infantil (Graziela).

— Você falou em PETI e eu me lembrei... Ontem eu fui para Minas e eu parei na casa da irmã do meu marido e o filho dela estava lá muito bravo com a vida porque ele tem um filho com 15 anos que teve um filho com uma menina de 19 e a semana passada ele ficou sabendo que ela vai ter outro e ele é avô dos dois. O menino e a menina resolveram ter outro. Um dia, ele ficou bravo, brigou, e a menina entrou na justiça, pedindo pensão, porque pelo ECA o menino não pode trabalhar, e o juiz determina que o avô pague. Não tem intermediação, não tem discussão. O cara tem dois filhos e não... (Isaura).

— Ele não aprende a se responsabilizar nunca. (Graziela).

Isaura participa desse debate, apresentando as seguintes considerações sobre as

dificuldades existentes para o cumprimento da contrapartida:

— A discussão da contrapartida é muito complicada do jeito que ela é, do jeito que a política é. Não tem escola para todo mundo, não tem recurso saúde para todo mundo e a escola é fundamental e a vacinação é fundamental [refere-se às contrapartidas do Programa Bolsa Família], mas não deveria ser necessário fazer isso. Deveria ter escola para todo mundo, mas nem todo mundo está na escola, deveria ter vacina... Não é garantido o direito à escola, não tem escola para todo mundo. Eu acho que essa discussão é complicada demais, como é que você discute, como é que você implanta?

A entrevistada expõe uma situação em que se evidencia a falta de acompanhamento e

controle por parte da escola em relação à presença de seus alunos, o que acaba por questionar

esse tipo de exigência pelo Programa Bolsa Família. Diante desse exemplo, podemos perceber

a dificuldade vivida pelos usuários para cumprir o contrato estabelecido da contrapartida.

— Outro dia aconteceu que a moça que trabalha lá em casa contou e era uma coisa inacreditável. Ligaram para casa dela, para dizer: “Por que a filha não estava indo a escola?” Ligaram da escola, e aí ela falou: “Como minha filha não está indo à escola? Todo dia a perua pega ela e depois traz para casa, e ela faz lição de casa.” A escola disse: “Não, ela não está vindo!” Aí ela falou: “Qual o nome da

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professora dela?” Aí a mãe da menina perguntou o nome da professora, e aí eles disseram: “Eu vou ver e depois eu ligo para a senhora.” Conclusão: a menina estava frequentando a sala onde o nome dela não estava na lista, o nome estava na lista de outra professora, e a menina estava na sala de aula havia três meses passados já, e constando como falta. Aí a professora fala assim “eu faço chamada e ela nunca disse” “a senhora não me chamou.” A menina de seis anos não falou. A coisa é muito louca. [...] A contrapartida é isso: você não leva na escola, bloqueia seu cartão. Não quer saber por que, se leva ou não leva. Não quero nem saber se tem escola perto ou se está na sala errada. Isso é real, aconteceu com a filha da moça que trabalha lá em casa.

Eunice, em relação às cobranças e aos controles como condição de permanência no

benefício, toma como alvo de sua reflexão uma situação que viveu e a partir da qual apresenta

uma rica problematização acerca das implicações da contrapartida na vida dos usuários, assim

como explicita o controle do Estado nela contida.

— Eu trabalhei um período no Judiciário, em um programa creche/escola para filho de servidores. Para os servidores até o nível de escreventes recebe um “X” valor para ter a criança na escola e aquele dinheiro tem que ser usado para isso e mensalmente ele precisa provar que a criança frequentou a escola. Era uma briga direita porque algumas pessoas achavam que era isso mesmo, o judiciário está dando dinheiro para ele e ele tem que por o filho na escola. É o fim do mundo exigir essa contrapartida. Por quê? Primeiro, quem tem que cuidar do filho é o pai e a mãe, decidir se ele vai precisar de dinheiro para comprar uma comida, se ele vai precisar do dinheiro para pagar um cuidador para olhar aquela criança, se ele prefere deixar com um cuidador até uma determinada idade do que deixar numa escola em período integral. A pessoa tem que ter autonomia, mas o Judiciário/Estado neste caso controla se está ou não na escola.

Como decorrência de sua análise, ela conclui que a contrapartida é uma forma de

controle que discrimina, porque é dirigida à população pobre e ainda merece muito debate,

para que se possa de fato entendê-la de forma mais profunda.

— É uma invasão na privacidade da vida da pessoa que cada vez mais o Estado está fazendo e cada vez mais vem sendo judicializada, tanto essas questões do controle de um “benefício” como em outras esferas da vida privada o Estado está invadindo cada vez mais. Cada vez mais estão aprovando legislações para controlar quem está tomando conta do filho. Eu não estou dizendo que essa criança não deve ser protegida. Se o seu direito for violado ela tem o direito de ter um espaço que garanta a proteção, mas é o cúmulo da invasão da vida das pessoas que vem

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acontecendo, e “preferencialmente” você invada a vida dos pobres. Se você pegar, por exemplo, denúncia de crianças com problemas nas escolas, o que chega na justiça? Você acha que da classe media, media alta chega? Não chega. A escola denuncia para o Conselho Tutelar, que manda para a psiquiatria ou psicologia, que manda para o judiciário esperando o que a justiça dê um “corretivo” para aquele pai daquela criança, para ela não dar mais problema na escola. E qual é a função da escola? Ela está repassando para o judiciário um papel que lhe cabe na educação, na relação com essa família, seja lá de que forma ela vai desenvolver. Eu acho muito sério; a questão da contrapartida vai ser um trabalho para se investigar muito.

Ao final, a entrevistada coloca várias e sérias questões que não têm sido bem tratadas

pelas instituições envolvidas, pois tramitam de mesa em mesa, de lugar para lugar, em um

jogo de “empurra-empurra”. Mais uma vez, aparecem em cena questões tratadas pró-forma,

através do encaminhamento administrativo, reforçando a ideia do produto, pois não se

consideram os processos em pauta nas situações.

Nesta pesquisa, em relação à questão da cobrança da contrapartida, considero que a

contribuição deste estudo se apresenta sob a forma de problematização em função dos

entraves à sua realização, que acabam por colocá-la sob suspeita e até mesmo desmoralizá-la

como meio de responder aos objetivos educativos pretendidos oficialmente, e que, por vezes,

o profissional não questiona e simplesmente cumpre como ordem.

Com esta breve discussão, podemos perceber que ainda há muito que pesquisar sobre

as contrapartidas e sobre o que se esconde por detrás delas, uma vez que não são apenas uma

regra ou um critério, mas uma forma de controle e dominação. Para os usuários, são forma de

treino do comportamento submisso, paciente e conformado, sempre tão conveniente para a

continuidade da exploração do sistema vigente.

Sua realização implica leituras das situações, porque é execução, intervenção

profissional. Parece que a contrapartida chega aos atendimentos mais para dificultar o acesso,

ao burocratizá-lo, do que para algo mais. Significa mais entrave a ser respondido pelo

indivíduo que deseja ter acesso a alguns programas e serviço sociais. Ao impor tantas

condições a quem terá tantas dificuldades a transpor, que aqui aparecem como simples

exemplos, essa medida já representa, em si, a exclusão de muitos que desistem no meio do

caminho, ao terem que ir atrás das comprovações solicitadas.

Embora a justificativa oficial se refira à contrapartida como mal necessário para

realizar mudanças de comportamento, essa exigência contém perversidades que necessitam

ser mais bem estudadas e explicitadas.

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Convidei Eunice para fechar esta seção, pois faz decisiva questão para reflexão:

— Eu acho que temos que enfrentar essas questões da contrapartida. Porque que para o pobre tem que ter contrapartida, porque que ele tem que provar que o filho está na escola? É uma tutela do Estado sobre a vida do sujeito.

4.4.5. Os procedimentos e instrumentos de operação da seletividade de acesso aos serviços e

benefícios sociais

Este estudo pode ser colocado no campo da problematização da instrumentalidade

profissional, ao tentar explicitar como a teoria impregnada de intenções se apresenta em atos

contraditórios na ação cotidiana do assistente social em diversos espaços sócio-ocupacionais

da profissão que operam a seletividade de acesso aos serviços e benefícios sociais visando à

realização do projeto profissional, este entendido como um produto coletivo da categoria dos

assistentes sociais brasileiros.

Meu esforço nesta pesquisa é iluminar como se dão e o que se esconde por detrás das

ações cotidianas dos assistentes sociais na realização de processos seletivos, para além da

imediaticidade, como estes profissionais entendem os processos sociais presentes e atuantes

na sua intervenção e de que forma têm lidado com aqueles processos na operação concreta.

Entendo, com Guerra (1999, p. 8), que a instrumentalidade do Serviço Social “é

um campo saturado de mediações que não foram suficientemente discutidas na e pela

categoria profissional”.

Mas, embora a produção de textos e pesquisas a respeito do instrumental técnico-

operativo na perspectiva histórico-crítica seja ainda escassa e dispersa, não posso deixar de

reconhecer o sério trabalho que vem sendo realizado por vários profissionais no sentido de

responder a essa demanda. Dentre eles, destaco a produção bibliográfica de Campagnolli

(1993), Faleiros (1980, 1985), Fávero (2003, 2009), Guerra (1999, 2000a, 2000b), Mioto

(2001, 2009), Santos (2005), Sousa (2008), Torres (2007, 2009), Trindade (2001),

Vasconcelos (2003) e Pires (2007). Também não posso deixar de mencionar a qualificada

produção bibliográfica no âmbito dos estudos sociais e estudos socioeconômicos, que vem

sendo produzida motivada pela discussão da perícia social como atribuição privativa do

assistente social em Fávero (2003, 2009) e Mioto (2001, 2009).

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Partilho com Guerra (1999, 38-39) o entendimento da instrumentalidade como suporte

do fazer profissional que vai muito além do formalismo metodológico, pois tem outro

fundamento ao se dirigir à apreensão das condições e das possibilidades visando à construção

de respostas profissionais às situações colocadas.

Se o “fazer” do assistente social é dado pela sua instrumentalidade, pela manipulação de variáveis empíricas, esta dimensão da profissão, sendo a mais desenvolvida, é capaz de designar os processos que se manifestam no âmbito da profissão, dentre eles, as racionalidades que a sustentam. [...] Porém, a racionalidade não se reduz à concepção instrumentalista da razão, ou seja, a adequação dos meios às necessidades imediatas, cujos resultados independem dos fundamentos que os determinam. Neste sentido, há que se considerar tanto os supostos que estão a balizar as ações dos profissionais, os projetos e perspectiva de classe nos quais se apoiam e, ainda, se e em que medida a modalidade da razão que sustenta as ações profissionais permite não apenas ultrapassar as ações instrumentais, como, ainda, a apreensão das condições e possibilidades que a situação contém, sua negatividade (grifos da autora).

A racionalidade que dá suporte à concepção de instrumentalidade apoiada por nós e

defendida pela autora pauta-se na “razão dialética, que afirma a cognoscibilidade da essência

contraditória do real” (COUTINHO, 1972, p. 17). Razão que se coloca na direção de apreender a

realidade nas determinações que a constitui nos seus diversos movimentos.

Pautada nessa apreensão Guerra (1999, p. 169) entende que

os agentes profissionais, enquanto desenvolvem uma atividade, não são apenas técnicos, como também críticos, já que o domínio do instrumental requisita-lhe um conhecimento das finalidades e das formas de alcançá-las, e estas não se encerram na razão de ser do Serviço Social. Antes, incorporam a razão de conhecer a profissão, suas condições e possibilidades.

Em outra direção, porém, quando se “atribui autonomia às metodologias de ação e ao

instrumental técnico, ao separá-los e torná-los independentes do projeto profissional, o

assistente social acaba por transformar o que é acessório em essencial”; aí se explicita o

pensamento positivista que reduz as múltiplas determinações que aparecem nos fatos,

fenômenos e processos à dimensão técnica, resultando numa racionalidade formal (GUERRA,

1999, p. 169). O pensamento racionalista formal não aceita a unidade teoria-prática, uma vez

que o entendimento é o da “teoria, reduzida a um método de intervenção e caucionada pela

experiência, ao extrapolar o âmbito do pensamento, objetiva-se numa prática burocratizada”;

o método, nesse sentido, passa a ser entendido como conjunto de procedimentos a serem

adotados na ação (GUERRA, 1999, p. 171).

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Tendo em vista que a profissão apresenta um caráter eminentemente interventivo,

pode-se pensar que,

ao exercer funções executivas, o assistente social pensa poder eximir-se da reflexão teórica in totum e fixar seu foco de preocupações no seu cotidiano profissional, para que os modelos analíticos e interventivos, testados e cristalizados pelas suas experiências e de outrem, são suficientes (GUERRA, 1999, p. 170).

Quando assim se entende, entretanto, a prática passa a ser sinônimo de burocracia, ao

ser realizada sem a crítica dos fundamentos que lhe dão vida e sentido, e a experiência

cotidiana passa a ser a grande referência do caminho a ser seguido. Assim, o fazer profissional

torna-se um conjunto de procedimentos, quase que um ritual de reiteração do passado e da

continuidade naturalizada.

Em relação à burocratização, Coutinho (1972, p. 27-28) explica que esta acontece

quando determinados procedimentos práticos são coagulados, formalizados e repetidos mecanicamente; com isso, empobrece-se a ação humana, que é desligada de sua relação com a realidade (transformada na práxis burocrática em simples objeto de manipulação) quanto com suas finalidades (cuja racionalidade ou irracionalidade a práxis burocrática não questiona). Esse caráter repetitivo da ação burocratizada bloqueia o contato criador do homem com a realidade, substituindo a apropriação humana do objeto por uma manipulação vazia de ‘dados’, segundo esquemas formais pré-estabelecidos. [...] Na prática burocrática, o conteúdo se sacrifica à forma, o real ao ideal, o particular concreto ao universal abstrato. A burocratização, assim, aparece como um momento da alienação, na medida em que fetichiza determinados elementos da ação humana, transformando-os em ‘regras’ formais pseudo-objetivas. E sua generalização serve diretamente à perpetuação do capitalismo, pois reproduz incessantemente a espontaneidade da economia de mercado, desligando-se da totalidade (do conteúdo social, das possibilidades de renovação, da finalidade humana do todo social) e submetendo todas as contradições reais a uma homogeneização formalista.

A metodologia, os instrumentos, procedimentos e estratégias devem ser entendidos

como meios que a profissão dispõe para a realização do projeto profissional que, iluminados

pela teoria que os informam, explicitam determinado jeito de se colocar a profissão na

sociedade. Assim, a “energia dos agentes potencializada no instrumental permite a

operacionalização do projeto” (GUERRA, 1999, p. 169).

Esse entendimento é compartilhado com Trindade (2002, p. 27), que afasta “qualquer

possibilidade de autonomia do instrumental, pois ele também compõe o projeto profissional,

como elemento fundamentalmente necessário à objetivação das ações profissionais; assim, o

instrumental é parte integrante da direção teórico-política da prática profissional”.

Nessa perspectiva teórica, não há um método para conhecer e outro para agir; é o

mesmo em outra dimensão. O método, por sua vez, não tem existência em si mesmo, uma vez

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que se materializa pela ação de um sujeito que deseja apreender um objeto em seus elementos

constitutivos. Ou seja: conteúdo e forma caminham sempre juntos.

O Serviço Social se constitui pelas dimensões teórico-metodológica, ético-política e

técnico-operativa, que, embora distintas, são indissociáveis, ao necessitar das demais para se

sustentar. Cada uma dessas dimensões, porém, quando evidenciada, se expressará a partir de

sua natureza, fazendo com que as demais, embora caladas, ali permaneçam, alicerçando as

demais. Articular essas dimensões como unidade é tarefa árdua que se apresenta à profissão

como grande desafio a ser enfrentado através das pesquisas e no trabalho cotidiano do

assistente social.

Parto do pressuposto de que a intervenção tem profunda relação com a teoria. A teoria

só não teria nada a ver com a prática se perdesse seu poder explicativo, o que não é o caso.

Mais do que nunca, a crítica fundada em Marx e seus seguidores tem fornecido valiosos

instrumentos críticos para entender a sociedade capitalista e o presente, para que se possa

decidir e envolver na criação do futuro que queremos para nós e para a humanidade desde já.

Na perspectiva crítica dialética, na qual me referencio, não existe, portanto, a

dicotomia entre teoria e prática. A propósito, Brites e Sales (2004, p. 16) esclarecem:

As categorias de análise da realidade social são teóricas justamente porque expressam modos de ser realmente existentes. A teoria e suas categorias são o concreto pensado. Essa construção teórica é o resultado do método dialético que busca captar o movimento do real e reproduzi-lo intelectivamente. Portanto, na perspectiva de análise crítico dialética, não há separação entre teoria e prática.

A teoria, no entanto, parece ficar dissociada da prática, quando não sabemos ou temos

dificuldades de lidar com as mediações.96 A mediação é constitutiva do real e dimensão do

método dialético responsável pela realização das moventes passagens e “costuras” entre a

universalidade e singularidade do objeto em pauta e na ultrapassagem da aparência à essência

por aproximações sucessivas na busca de apreensão da totalidade, configurando as contradições.

Para enxergar nas demandas individuais as dimensões universais e particulares que contêm, é

preciso entender e saber lidar com leituras que, ao incorporar a categoria da mediação como

elemento do método dialético histórico, articulam dialeticamente a aparência e a essência, assim

como a apreensão da universalidade, das particularidades e das singularidades.

96 Mediação é uma dimensão do método dialético crítico e também categoria ontológica e, portanto, constitutiva do real, responsável pelo movimento, pelas passagens do imediato ao mediato e pelas passagens que articulam o singular, o universal e o particular. Sem as mediações, as análises ficam soltas, sem costuras e sem movimento (PONTES, 1995). A mediação permite ao profissional relacionar teoria e prática. Pode parecer que a teoria na prática é outra coisa. Mas a teoria na prática é a mesma, em outra dimensão, se tivermos recursos teórico-metodológicos para realizar as passagens que relacionam elementos singulares e universais.

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Tendo em vista que a prática não tem um sentido em si, torna-se necessário, então, para

entender seu real significado, ir para além da sua imediaticidade, da aparência, enfrentando os

desafios postos pelo cotidiano com ferramentas críticas que levem à superação das primeiras

impressões. Não é possível tratar de instrumentos, estratégias e procedimentos separados dos

fundamentos que lhe dão sentido e direção. Tratar da dimensão técnico-operativa é tratar de

meios para a objetivação de projetos. Nessa perspectiva, os instrumentos devem ser vistos como

recursos, meios de que o profissional dispõe para, fundamentado na teoria (concreto pensado),

transformá-la em atos, direcionado e orientado pelos valores e princípios pautados no projeto

profissional, o qual imprime uma direção política à prática profissional.

O instrumental técnico-operativo é repertório interventivo do Serviço Social, de que seus

agentes se utilizam para intervir nas expressões da questão social, objeto da profissão, tendo como

referência o projeto ético político profissional. Como não há um único projeto profissional, não há

um único jeito de entender e abordar o instrumental técnico-operativo da profissão.

Esta breve análise indica que os meios não estão acima dos objetivos, mas a serviço

destes. Seu uso adequado certamente depende da habilidade do profissional para utilizá-los a

favor dos objetivos profissionais colocados.

O instrumental é construção humana, e tornar-se de fato meio para a realização dos

objetivos profissionais, orientado pelos valores e princípios do projeto profissional, implica

denso aprendizado, para que o profissional possa realizar leituras das situações singulares

vividas pelos indivíduos com os quais trabalha, localizando as determinações de classe — e

para que, com sua operação possam ser construídas relações democráticas propiciadoras de

troca de conhecimentos.

Ir da análise do Serviço Social para o exercício da profissão exige a incorporação de

um complexo de novas determinações e mediações essenciais para elucidar o significado social do trabalho do assistente social. Sintetiza tensões entre o direcionamento socialmente condicionado que o assistente social pretende imprimir ao seu trabalho concreto, condizente com um projeto profissional coletivo, e as exigências que os empregadores impõem aos seus trabalhadores assalariados especializados (IAMAMOTO, 2009a, p. 39).

O Serviço Social é uma atividade regulamentada como profissão liberal segundo

parâmetros legais que lhe dão autonomia na condução do exercício profissional. No entanto,

o exercício da profissão é tensionado pela compra e venda da força de trabalho especializada do assistente social, enquanto trabalhador assalariado, determinante fundamental na autonomia profissional. A condição assalariada — seja como funcionário público ou assalariado de empregadores privados, empresariais ou não

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— envolve, necessariamente, a incorporação de parâmetros institucionais e trabalhistas que regulam as relações de trabalho, consubstanciadas no contrato de trabalho. Eles estabelecem as condições em que esse trabalho se realiza: intensidade, jornada, salário, controle do trabalho, índices de produtividade e metas a serem cumpridas. Por outro lado os organismos empregadores definem a particularização de funções e atribuições consoante sua normatização institucional, que regula o trabalho coletivo. Oferecem ainda, o background de recursos materiais, financeiros, humanos e técnicos indispensáveis à objetivação do trabalho e recortam as “expressões da questão social” que podem se tornar matéria da atividade profissional. Assim as exigências impostas pelos distintos empregadores, no quadro da organização social e técnica do trabalho, também materializam requisições, estabelecem funções e atribuições, impõem regulamentações específicas ao trabalho a ser empreendido no âmbito do trabalho coletivo, a além de normas contratuais (salário, jornada, entre outras), que condicionam o conteúdo do trabalho realizado e estabelecem limites e possibilidades à realização dos propósitos profissionais (IAMAMOTO, 2009a, p. 38-39).

Essa análise não deixa dúvidas quanto à complexidade envolvida no exercício da

profissão: é mesmo um desafio ao profissional colocar-se nesse exercício de forma crítica e

comprometida com os interesses dos usuários dos serviços e benefícios sociais. As entrevistas

desta pesquisa ilustram, com inúmeros exemplos, como se dá esse desafio na atualidade.

Vale também ressaltar que os instrumentos básicos tradicionalmente utilizados pela

profissão para realizar seus objetivos no trabalho direto com a população usuária dos serviços

sociais são a observação, a entrevista, a reunião e os registros escritos. Essas ferramentas, não

exclusivas do Serviço Social, são recursos colocados à disposição de todas as profissões que

lidam com as relações sociais para a consecução de seus objetivos.

Os profissionais orientados por fundamentos teórico-metodológicos e ético-políticos

se utilizarão dos instrumentos e estratégias para dar materialidade ao projeto profissional e ao

projeto da organização social que os contratam, que podem se complementar ou se contrapor.

“Projeto”, aqui, é entendido não como previsão do futuro, mas como antecipação do futuro.

Diante das demandas das organizações sociais nas quais trabalham e da população

usuária dos serviços sociais, os profissionais devem ser capazes de imprimir direção e

conteúdo no manejo dos instrumentos profissionais.

Dependendo dos fundamentos que informam a ação profissional, o instrumento será

utilizado e manejado de determinada forma. A título de mais um exemplo, podemos citar a

observação, que, na perspectiva histórico-crítica, é utilizada como forma de apreensão das

singularidades das situações e como forma de obtenção do conhecimento provisório, aparente,

disfarçado: o profissional, ao se utilizar da mediação, poderá caminhar no sentido de superar a

imediaticidade posta, relacionando questões de classe social, gênero e idade presentes, para

adquirir um conhecimento mais totalizado, balizando até as contradições presentes. A

observação, se informada por fundamentos da perspectiva positivista, será utilizada pelo

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profissional para descrever o que ele vê e ouve, pautado por uma relação sujeito-objeto que se

pretende neutra, isenta de juízos de valor.

A entrevista, dependendo dos fundamentos que informam a ação do profissional,

poderá ser entendida e realizada como simples sequência de procedimentos — como simples

interação humana ou tratada e manejada como relação de poder, que poderá ou não reproduzir

as relações sociais vigentes, quando realizada com participação ou não, valorizando o

processo e o produto ou não.

O manejo do instrumento sempre expressa, independentemente da consciência do

profissional, uma perspectiva educativa, no sentido de interferir na forma de ver, sentir e agir

da população atendida. Não existe uma única perspectiva educativa. É com o manejo dos

instrumentos que se transformam princípios, valores e teoria em atos, segundo a forma e os

conteúdos que através deles veiculamos.

Aqui, as assistentes sociais falam dos instrumentos que utilizam para operar a triagem

e a seleção socioeconômica nos espaços sócio-ocupacionais onde trabalham. Nesse contexto,

comparece a entrevista, a visita domiciliar, o tratamento que vêm dando aos documentos,

fichas e papéis. Assim como aparece o uso da computação que se interpõe cada vez com mais

força nas relações sociais, trazendo prejuízos à relação de troca entre o profissional e os

usuários dos serviços sociais, comprometendo a autonomia profissional.

Quando discorrem sobre a operação dos instrumentos, aparece como entendem a

profissão e o tratamento dado às expressões da questão social com as quais se deparam no

cotidiano — que, de fato, surge através das diversas questões ora tratadas e de outras tantas

que não trouxemos à tona nesse estudo.

Neste momento, não é possível apresentar uma análise, passando por dentro da

operação instrumental que uma análise acurada e profunda exigiria. Mas indico, por meio da

problematização apresentada, algumas lacunas que deverão ser preenchidas e tratadas pelo

Serviço Social, em próximas pesquisas sobre o tema.

A entrevista é mencionada nos depoimentos das três assistentes sociais portuguesas

que operam diretamente a seletividade de acesso como o instrumento básico utilizado. Em

relação ao uso da visita domiciliar, fala-se de sua utilização como recurso eventual. Enquanto

Luísa a usa com maior frequência, embora não em todas as situações, Alice e Fátima

empregam-na esporadicamente.

Em relação à inscrição de candidaturas de acesso, a forma on-line aparece no trabalho

de Fátima que atua em uma universidade, enquanto no discurso de Alice consta de forma

aberta e informal, pois depende da ocasião em que a necessidade se apresenta ao usuário que

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se trata no Instituto de Oncologia. Luísa, que trabalha na Santa Casa de Misericórdia, tem que

observar as exigências de acesso, ora da Ação Social da instituição, ora do RSI, pois,

dependendo daquilo que aciona para realizar o atendimento dos que demandam pelos

serviços, terá diferentes exigências a cumprir.

Em relação ao uso dos instrumentos utilizados na realização da triagem ou seleção

socioeconômica, as entrevistadas assim se manifestaram:

— Na seleção eu uso as entrevistas, as visitas, a pesquisa documental e nalgumas situações eventualmente um contacto interinstitucional, que me dá… [...] Muitas vezes, há situações que nos aparecem que, apesar da documentação pedida, apesar da visita, apesar da entrevista... Não é em todas as seleções sociais, econômicas que eu faço os procedimentos todos, tipo não vou fazer a visita domiciliária em todas as seleções socioeconômicas, porque há situações que para mim são claras, portanto, ir lá a casa não me vai trazer mais-valia, nem maior elemento. Não é para perceber se a senhora têm móveis bonitos, também, não é por ai. Se calhar, comprou numa altura em que podia e agora não pode. O que importa é o agora (Luísa).

— É apenas a entrevista e a ajuda não depende da apresentação de comprovativos, aqui a ajuda depende mais da relação criada e menos do que as pessoas dizem. Se num determinado momento, e isso eu explico às pessoas, tivermos duvidas sobre se o que a pessoa está a faltar é verdade, aí, sim, peço os comprovativos, porque senão a ajuda… (Alice).

— Normalmente, fazemos a entrevista ao aluno e a visita domiciliária, eventualmente. [...] A nossa intenção nessa entrevista não é de fiscalizar, não é essa a nossa intenção quando fazemos a entrevista. Quando fazemos a entrevista é no sentido de conhecer a situação relativa ao aluno, para ver até que ponto o que está ali declarado, reflete efetivamente a situação do aluno. [...] Os alunos fazem as suas candidaturas on-line, cada vez vêm menos aqui ao serviço. Alguns deles nem sabe onde o serviço fica. [...] Mas, é também para o aluno saber que nós existimos e que pode, em determinadas circunstâncias que não estejam de acordo com a regra inicial, digamos assim, contar conosco e pedir-nos algum apoio ou solicitar apoios que, às vezes, não estão previstos, mas que nós podemos até apoiá-lo em algumas circunstâncias. Nós tentamos fazer isto nas entrevistas e a intenção é sempre essa, é o objetivo. Mais o objetivo de nos darmos a conhecer do que propriamente fazer fiscalização. [...] A nossa entrevista aos alunos também normalmente é nesse sentido, nem sempre é fácil declarar por escrito, nem sempre o que é apresentado reflete exatamente a situação socioeconômica daquele agregado (Fátima).

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A maior tensão, no entanto, vem à tona quando se referem à utilização da visita

domiciliar, que é tratada por elas sob a forma de crítica cuidadosa, pois é percebida

claramente como forma de controle na história da profissão.

Quando empregada no sentido do controle, foi considerada como um mal necessário

para comprovar ou descartar hipóteses de fraude. Isso significa, afinal, um bom sinal, de que o

manejo dos instrumentos vem sendo alvo de críticas da profissão e dos profissionais que os

operam. Parece que, quanto mais controlado e fiscalizado é o trabalho de um profissional,

mais este reproduz essa relação com os usuários, utilizando-se com maior frequência a visita

domiciliar como forma de averiguação da verdade.

Alice, pautada por referências críticas, questiona a realização da visita domiciliar com

o objetivo de fiscalização e controle:

— Eu não faço visitas familiares. Penso que na Ação Social fazem. [...] Na Ação Social, aí sim as pessoas percebem que os assistentes vão ver o que tem ou não em casa para ver se realmente… [...] Eu não acho correto, porque as coisas que as pessoas têm em casa podem ser o reflexo, não podem invalidar uma ajuda, até porque a situação em que a pessoa vive hoje tem a ver com o pedido atual, pode não ter a ver com as condições que as pessoas conseguiram criar. Uma pessoa, uma família que cria algumas condições como uma casa agradável etc. demonstra mais razões para ser apoiada para progredir e para melhorar. Acho que as pessoas não têm que ser porcos, sujos e feios só porque são pobres. Eu acho que as pessoas podem ser pobres, ter direito à ajuda e serem arranjadas e serem organizadas. Aliás, eu considero que os pobres são muito mais organizados que nós, se não fosse assim, não conseguiam sobreviver. Para sobreviver tem estratégias muito mais eficazes que as nossas, senão como sobreviviam? Como sobreviviam com 270 euros, se eu tenho dificuldade em sobreviver com 1.500 euros? Como? É ginástica que fazem, é estratégias que têm e alguns vivem com determinada dignidade, com necessidade, mas com dignidade. E então, eles têm mais competências que nós.

Luísa, que tem o trabalho mais controlado — digamos, mais fiscalizado —, se

comparado com as outras assistentes sociais, e em face do entendimento que tem acerca da

realidade portuguesa e do Serviço Social, conta como realiza a visita domiciliar; suas

justificativas para assim proceder são as seguintes:

— Também faço [visita domiciliar] para controlar, fiscalizar não, porque eu não gosto dessa palavra. Mas, para controlar, faço. Em situações destas, muitas vezes eles aparecem como vivendo

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separados, tipo separei-me do meu marido e quando há duvidas, nós fazemos uma visita nessa circunstância para perceber, e, às vezes, dá resultado. Tratar dessa informação com o utente é muito delicado, mas temos que trabalhar com ele. Em situações de acordos de proteção aplicados em tribunal, que nos obrigam a acompanhar e a ver regularmente as situações habitacionais. Em variadíssimas situações, situações em que os utentes não se podem deslocar ao serviço, isso é óbvio, nós temos que ser nós a deslocar em relação aos idosos, deficientes, sei lá. Controle de acompanhamento e de atendimento, sobretudo. [...] Às vezes, deveria partir sempre desse princípio [o utente diz a verdade], mas às vezes, porque a entrevista tem muitas incoerências, então, aí vamos ver. O profissional do Serviço Social tem que ter conhecimento de muitas coisas, diante da riqueza das situações que aparecem e tem que ter conhecimento de muitas coisas porque facilmente pode ter uma situação onde fica tão ignorante. Embora eu não tenha problemas, eu não domino tudo, mas eu vou procurar saber sobre essa nova questão que apareceu. De qualquer maneira nós temos que ver muitas questões. Não trabalha e então? Mas recebe alguma prestação, não recebe? Não trabalha por que não pode? Não está disponível, porque não tem qualificações? Por que, por quê? E a pessoa responde, não, não, eu não trabalho porque não há emprego, não consigo. Então, e o senhor encontra-se inscrito no centro de emprego? Não? E então? E o senhor já se deslocou alguma vez àquela instituição y ou z que de alguma forma pode ajudar o senhor a encontrar um emprego? Não? Então, e o senhor já tentou ir ao centro comercial, onde está aplicado no vidro que “precisa-se de trabalho”? Como é que eu posso atribuir um benefício a este indivíduo, se ele não traz nenhum documento sobre se está efetivamente desempregado e está à procura de emprego. Então, nesta circunstância, se ele diz que quer encontrar emprego, ele tem que ir à instituição oficial, que não é aquela que sempre arranja um emprego, mas é a oficial para trazer o comprovativo de como estava inscrito. Ou seja, eu ou os meus colegas, nós temos que dominar, muitas vezes, até para depois nos salvaguardarmos, porque depois, em termos organizacionais, nós também temos auditorias e temos que provar se cumprimos o regulamento ou não cumprimos. Atribuímos de acordo com o regulamento ou não atribuímos, favorecemos alguém ou descriminamos alguém porque não gostamos, e essas questões para mim colocam se, aos outros colegas não sei. Eu tento ter sempre presente a questão da justiça, da igualdade. Procuro mas, se calhar, não consigo sempre.

Fátima faz críticas à fiscalização que acompanha a prática dos assistentes sociais ao

longo da historia, na realização das visitas profissionais:

— As visitas domiciliárias são mais para situações que nos levantam muitas dúvidas, dúvidas de analise, dúvidas sei lá, de situações... Às vezes, não apresentam renda nenhuma, rendimentos nenhuns e nós

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dizemos, mas como é que você sobrevive, como é que você... Às vezes, é mais fácil deslocar-nos nós, falar com o agregado familiar como um todo, do que propriamente só com o aluno. Pronto, para tentar esclarecer estas situações. A visita domiciliária é mais, não direi que é para fiscalizar, mas é mais para confirmar situações. A entrevista não, mas, nós não vamos visitar toda a gente, vamos visitar àquelas situações que nos levantam dúvidas na análise.

A visita domiciliar também aparece com outras finalidades, colocando-se, portanto,

para além do controle. Essas outras formas aparecem na fala de Luísa e Alice.

— Faço visitas domiciliárias para situações de acompanhamento, para situações de diagnóstico que não são puramente econômicas, porque há questões que não são puramente de ordem econômica, e eu preciso perceber, em termos de organização habitacional, da forma como a pessoa, o utente interage comigo no seu espaço habitacional, às vezes, para perceber a linguagem e a relação entre os elementos coabitantes, porque no seu domicílio a comunicação é feita de determinada maneira (Luísa).

— A visita domiciliária eu só a faço aqui para quando há pessoas que estão a ser acompanhadas no domicilio, para discutir a nível de domicílio e ver se as condições em que o utente está… [...] normalmente são sempre visitas realizadas a pedido, que as pessoas pedem porque as pessoas se sentem bem (Alice).

Tília, que não realiza o trabalho direto com a população atendida pelo RSI, reconhece

a importância desse debate com a expectativa de inovação, partindo da crítica do tanto que os

assistentes sociais servem para amortecer o descontentamento dos usuários que têm tido

cortes nos direitos conquistados:

— Pois, nesta questão é que nós temos de inovar, que é assim, nesta mudança social o problema maior não é da falta de instrumentos teóricos. Eu acho que, pelo menos, existem alguns. Há aqui uma falta de mobilização, que eu não sei por que é em relação aos colegas que estão no terreno. Eu entendo que, como há bocado disse uma expressão, que é estão empacotadas, são almofadas realmente, quando se cortam direitos.

A entrevistada reconhece que, para sair da situação em que se encontram, há

necessidade de que os profissionais se mobilizem politicamente

Podemos citar ainda o relatório como instrumento de registro do estudo realizado, que

se coloca como recurso político para lidar com as pressões e para dar acesso ao serviço ou

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benefício social ao usuário, embora com o reconhecimento do tanto que é trabalhoso esse

caminho. Luísa já se referiu a essa estratégia em diversas passagens desta pesquisa,

designando-a como “informe”.

Alice refere-se ao encaminhamento de forma crítica, enquanto estratégia de

atendimento, quando avalia o que o usuário precisa e o que ele poderá encontrar nos diversos

serviços existentes na cidade. Ou seja: ela, por conhecer os serviços existentes, avalia se vale

a pena ou não encaminhar, diante das chances que o usuário terá ou não de ser, de fato,

atendido. Nas suas considerações, podemos perceber que o encaminhamento não é utilizado

por ela para se livrar das situações, mas como forma de atendimento.

— Às vezes, aparecem pessoas dizendo “Eu tenho direito”, achando que devem ir à Ação Social, e então eu digo que podem ir, têm o direito de ir, mas os critérios são estes, e lá eles estão a trabalhar com estes mínimos, se você for lá... É possível outra solução, vamos renegociar a sua divida, vamos ver com o banco como é que é, vamos fazer assim, desta ou de outra maneira, não sei se me estou a fazer entender. [...] Sim, para dizer às pessoas que elas têm razão, que elas precisavam de ajuda, mas que as nossas ajudas são muito limitadas, e ver se há outras alternativas... É isso que eu quero dizer, é assim quando a pessoa recebe alguma coisa, eu sempre tento explorar... [...] Outras vezes, quando há situações graves eu recorro mesmo à Ação Social, se vão perder casa ou outra situação, recorro mesmo. [...] Eu, por exemplo, não envio doentes oncológicos de classe média baixa, com toda a vida reestruturada para a Ação Social, que não vale a pena. Tento resolver aqui, estas a ver? Através das ajudas da Liga em medicamentos etc. e através de associações não governamentais porque se vão para a Ação Social perdem tempo, desgastam-se quando já estão doentes, porque ficam mais doentes e não conseguirão nada porque os nossos níveis para o auxílio aqui são muito baixos.

Em se tratando da seleção socioeconômica, cabe mencionar que os documentos

comprobatórios, a legislação e os critérios claramente definidos são instrumentos estratégicos

importantes a serem utilizados pelo profissional para facilitar o acesso dos demandantes aos

serviços e benefícios sociais.

Embora neste item tenhamos tratado formalmente dos instrumentos utilizados pelos

assistentes sociais para operar a seleção de acesso, a instrumentalidade compreende o domínio

de todos os elementos tratados neste estudo, se a perspectiva for a de apreendê-la na

totalidade da sociedade capitalista.

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4.4.6. As pressões políticas atuantes no processo seletivo

Conforme venho tratando neste estudo, a seleção socioeconômica, através do seu

processo, realiza simultaneamente a inclusão e a exclusão do acesso aos serviços e benefícios

sociais, porque se constitui em instrumento privilegiado de controle social para tornar

aceitável a desigualdade social. A seletividade presente na política social pauta-se no discurso

da igualdade, mas, na prática, reitera a desigualdade social intrínseca à organização da

sociedade “como unidade de classes sociais distintas e antagônicas assentada em uma relação

de poder e exploração” (IAMAMOTO, 1985, p. 91).

A seleção socioeconômica é instrumento de caráter eminentemente político, embora

possa parecer à primeira vista que se trata de simples processo técnico entediante que visa ao

mero cumprimento de formalidade institucional.

A política social, como forma de enfrentamento da questão social, objetiva, dentre

outras intenções, o controle e o disciplinamento da classe trabalhadora, a partir do

reconhecimento pelos setores que representam o capital da ameaça que representa à ordem

social. Nesse quadro, aqui apenas esboçado, o Serviço Social é chamado a intervir de forma

legitimada desde sua origem, enquanto profissão, nas expressões da questão social,

transmutando questões de âmbito político em questões de domínio técnico.

A seleção socioeconômica operada pelos assistentes sociais tem esse caráter

essencialmente político, e não é pelo fato de ser operada pelo profissional, como atividade

profissional, que perderá esse caráter político: as contradições que carrega se expressarão de

outro jeito — agora aparecerão sob a forma de pressões de várias ordens que o profissional

terá que administrar, para esvaziamento da ameaça presente, uma vez que as organizações

sociais que contratam seu trabalho lhe delegam essa tarefa. Como a seleção é realizada caso a

caso, uma vez que a demanda e o tratamento já foram individualizados, as pressões serão

diretas, vindas de vários lados, conforme poderá ser percebido, a seguir, nos exemplos

oriundos da vivência das pessoas entrevistadas desta pesquisa.

Considero que o momento mais tenso e difícil vivido pelo profissional que realiza

processos seletivos é aquele que ocorre depois da divulgação do resultado da seleção. É

quando os indivíduos que não tiveram acesso tentam reagir do jeito que podem, na tentativa

de reverter a condição de não terem sido escolhidos para poder usufruir do serviço ou

benefício social que pleiteavam. A reação mais comum é aquela em que o candidato

desqualifica o processo, colocando em dúvida sua lisura.

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As pressões, no entanto, não vêm somente sob essa forma direta, dos candidatos que

se sentiram prejudicados, mas chegam, também, através de seus “porta-vozes”, que fazem

ressoar seus questionamentos e pedidos pelas diferentes instâncias da hierarquia institucional,

visando reverter a situação de não acesso daqueles que passam a ser tomados como seus

apadrinhados. Os políticos e pessoas influentes, tanto no Brasil como em Portugal, interferem

e pressionam o acesso de seus afilhados, tentando usar sua autoridade e prestígio como

critério, na tentativa de incluir alguns indivíduos, em detrimento dos critérios e regras

estabelecidas para todos.

Das quatro entrevistadas portuguesas, é de Luísa que vem a maior contribuição para esse

debate, pois é quem apresenta com maior riqueza de detalhes as diversas pressões recebidas

pelos assistentes sociais como fruto do resultado da seleção de acesso, que têm que administrar

e responder aos solicitantes de explicações, que chegam via hierarquia institucional.

Luísa, inicialmente, diz que não tem sofrido pressões políticas. Porém, a cada exemplo

que traz, aumenta a tensão de quem a ouve, embora ela mesma já tenha se acostumado com

tais pressões, ao tratá-las como se fossem “normais” e “naturais” no seu cotidiano de trabalho.

Reconheço que, a cada situação exposta, teve a paciência de expor como tem lidado com elas.

Nas entrelinhas do seu discurso, podemos perceber o tanto que, por vezes, se sente sozinha e

frustrada ao ter que se defender das ingerências unicamente com sua argumentação

profissional a respeito do não acesso de determinado candidato. Assim procedendo, ao se

defender, acaba por defender também e, sobretudo, a organização na qual trabalha.

Exponho a seguir o diálogo inicial travado entre entrevistada e entrevistadora sobre

esse assunto.

— Eu pessoalmente, não tenho memória de ter tido alguma pressão política porque eu trabalho no fim da cadeia, mas quando digo pressão pode ser pressão de superior hierárquico (Luísa).

A entrevistadora lhe pergunta se nunca ninguém veio com carta de político para ser

atendido ou recebeu telefonema de algum político ou de uma pessoa influente para que... Ela

imediatamente responde:

— Isso, não, mas posso receber um telefonema de um outro de aqui, diretor ou outro diretor, mas aí tenho um procedimento muito institucional; isto de ser avaliado pela sua própria casa é sempre muito complicado, mas tem a ver até com as minhas características pessoais, aí há um critério, aí eu vou ao critério. Nessas situações em que,

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hipoteticamente, eu posso achar que estou a ser pressionada, às vezes, são pressões de apelo à hierarquia e, como eu conheço aquilo que é a minha prática, então aplico o critério, porque é o critério que me vai defender. Ou então, se eu também percebo que há o critério, mas como eu já referi, também há a exceção, que eu posso utilizar e que tem aquela carga muito grande de subjetividade e que eu acho que isso, de alguma forma... Me vai trazer um problema, eu não vou ficar sozinha com ele. Isto depois depende muito das situações, então, além da carta, se é um pedido... Isso acontece muito nas situações dos lares de apoio para os idosos que são no fundo, apoios honrosos, que são dispendiosos e de que o filho de A, B ou C ou o amigo de não sei quem, tem pouco, e tem fraca qualidade... Às vezes, por exemplo, os nossos equipamentos de apoio a idosos são de extrema qualidade e todos querem ir para lá. Só que há critérios, e, isso, às vezes, traz aqui algumas questões. Habitualmente, eu vou muito pelo critério, mas quando eu vejo que a situação está a tomar proporção de que me está a pôr em causa e eu não quero ficar em causa, tipo há critério... [...] Mas, eu não tenho tido problemas a esse nível, agora, que isso acontece em termos diretos, acontece. Acontece àqueles conhecimentos do deputado x ou y da proteção institucional e de que nós, às vezes, somos obrigados a prestar um apoio, que é de uma injustiça total, mas o chefe diz, o administrador manda. [...] Existe, mas creio que não é o corrente da minha prática profissional. Em foco, o que eu gostava de colocar aqui é que quando isso acontece, então, aí é que faço uso muito objetivo do critério, quando eu percebo que há uma pressão porque a injustiça... [...] Eu tenho lidado... [referindo-se às pressões] Bem, aí eu pego a situação, solicito toda a documentação, toda, toda, toda, e faço uma informação [refere-se ao relatório] e apresento à diretora ou, antes de apresentar por escrito, vou consultar com ela: “Olhe, aconteceu isto, isto, isto, isto, não está dentro do critério, pode haver este problema.” Eu já levo, às vezes, as soluções.

A entrevistadora, então, diz: — Eu também tenho muitos anos de prática, não é? E eu

já vivi várias situações em que a minha chefe vinha me dizer o que é que eu tinha que

escrever no processo. Mas, se o processo passa de mão em mão, ela tinha o direito de falar

que ela não concordava com o meu parecer. Às vezes, você sofre pressão para assumir a

decisão de negar ou aceitar, mas ela pode também não aceitar, mas como ela não quer se

comprometer... Nós precisamos ter certa esperteza para lidar com isso porque não é uma mera

situação boba colocada, é muito séria porque, se de repente, você vai perguntar o que é que

deve fazer, ela pode te dizer o que você deve fazer e depois como é que você sai dessa?

Porque ela pode não concordar com a sua resposta, então, o melhor é ir conversar, levando

logo uma estratégia e a solução, dizendo: “Olhe, eu penso lidar desta forma.” E, de outro lado,

quando há discordância, acho que a gente tem de dizer para o chefe: “Olhe, você pode não

aceitar, mas o meu parecer é este.” O que acha disso?

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A entrevistada diz:

— Aconteceu-me uma vez, um diferendo [essa palavra significa um modo de pensamento característico que remete para o testemunho do poder da linguagem; são modos de escrever e falar] em que eu tive que manifestar o meu desagrado, porque depois isso envolvia uma continuidade de confrontos entre mim e o utente, e a coisa foi séria. Mas eu tenho tido a felicidade nestes últimos anos de, em face à situação destas ou parecidas...

Luísa apresenta, também com riqueza de detalhes, exemplos que expressam as diversas

estratégias de pressão utilizadas pelos usuários no sentido de reverter a situação de excluídos do

acesso pela seleção socioeconômica, e expõe como tem lidado com essas estratégias.

— Quando eu digo pressão política, às vezes, é a pressão do utente, do utente que não acredita na assistente social e que vai fazer queixas ao chefe, e que pede para falar com o chefe e tem toda a legitimidade, e, às vezes, isso é mais complicado. Para mim isso é mais complicado do que propriamente estas pressões políticas que vem pontualmente porque essas eu sei que não tenho muito poder diante delas, então, se o chefe manda, eu posso ficar... Mas, depois há outra questão que é a hierarquia, eu posso dizer olha “parece-me que...”, mas eu já percebi que não vale a pena eu dizer nada, que há situações que não vale a pena me indispor, o meu gasto de energia será inútil e aquilo... Nem que eu diga que não vai para frente... Eu não vou arranjar uma guerra... Mas, essas situações acontecem de forma muito, muito, muito pontual. Mas, depois existem as outras situações, essas sim, podem ter uma implicação, um maior grau de desagrado em mim de frustração, de desilusão, de desacreditação, e às vezes, até de conflito. São aquelas que não vêm por via política, que não vêm por via de pressão, mas que vêm por via da pressão do utente, em que o utente fica fora do critério e fica de fora e quer... Então, ele adota estratégias que levam as organizações a ir contra aquilo que definiram, a ir contra aquilo que são o parecer do técnico porque vão pela via... Se calhar, mais fácil, na minha perspectiva. Mas, eu também escolhi sempre a forma mais difícil de tratar, que é os indivíduos poderem conhecer o A ou B e reclamam muitas vezes. E de fato, dá muito trabalho estar a responder às reclamações. É mais fácil atribuir aquilo que eles querem. Indivíduos que adotam a violência dentro do serviço e, ainda que com algum constrangimento, se chama a policia para pôr o individuo... que está a ir contra a ordem pública. Mas, o desrespeito pelo técnico, pelo administrativo e seja pelo quem for, isso privilegia muito o indivíduo coitado, em detrimento de outras circunstâncias, e isso aí é um bocadinho complicado. Quando, eu num processo eu digo, “o senhor está fora” e ele diz, “eu quero falar com a sua chefe”. Eu digo, “sim, sim!” Eu vou falar... Não tem acontecido, por isso eu digo que tenho tido o privilegio, pelo menos nos últimos anos, porque isso não tem

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acontecido. Agora quando o chefe toma uma decisão diferente daquilo que é o parecer do técnico e o parecer está fundamentado para não ter problemas, isso é muito doloroso, é muito difícil. Agora eu também tenho aprendido a estratégia com estes anos, e com muito erro, e com muita questão, que é de quando há um problema, eu também levo logo uma resposta... E, às vezes, isso funciona.

É sempre conflitante para o profissional lidar com situações em que o benefício é

concedido como decorrência da pressão política exercida por um candidato não selecionado

e/ou de seu “padrinho”, independente dos critérios estabelecidos, na qual o profissional não

terá qualquer de decisão, porque outro poder superior se sobrepôs ao seu. Luísa se manifesta

sobre como tem lidado com a situação.

A entrevistadora pergunta: — Como você leva a questão para o chefe? A

entrevistadora responde:

— Sim, o senhor fulano tal tem este problema tal, tal, tal, e eu disse isto e isto; eu acho que pensei nesta possibilidade eu não sei o que vai… Outras vezes, é para ser atribuído acabou, porque está fora dos critérios. Mas, também, eu não autorizo nada, eu só fundamento e por isso, têm que haver uma assinatura de quem autoriza; por isso o auge da responsabilidade não fica do meu lado, quer numa situação quer noutra mesmo, quando não é autorizado.

Embora a questão colocada seja muito difícil de lidar e envolva sérios conflitos de

natureza ética, a entrevistada resolve a tensão, dando-se por vencida e considerando que não

tem nada a fazer, uma vez que a responsabilidade é de quem autoriza.

Alice reconhece os exemplos apresentados por Luísa, pois é de conhecimento público,

dentre os assistentes sociais portugueses, que os profissionais que trabalham na Ação Social

recebem muitas pressões.

— [...] Não, aqui não, mas tenho sabido de colegas da Ação Social que sim. Por exemplo, quando há utentes que reclamam, que fazem confusão, como os ciganos,97 que ameaçam, etc. De cima, despacham tudo e dizem para dar o recurso, mesmo que o profissional queira dizer não. Não querem reclamações lá! E esta é uma das formas de manter, portanto, alguma estabilidade, portanto, a paz social.

97 Vale destacar que, na Europa em geral e em Portugal em específico, os ciganos são um grupo social muito estigmatizado. Parece que, em tudo o que ocorre de mal no país, eles são considerados implicados.

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Fátima, assim como as demais, afirma que na sua prática não tem sofrido pressões de

natureza política para que privilegiasse alguém em detrimento dos critérios colocados e, por

isso, fica aliviada pela possibilidade de, no seu exercício da profissão, não ter tido que

enfrentá-las. Essa expressão de alívio a que se refere, revela/esconde um sentimento de

sofrimento vivido pelo profissional quando é pressionado a fazer algo com que não concorda,

quando é ferido na sua dignidade e na sua autonomia profissional.

— Mas, eu acho que apesar de tudo, eu tenho tido muita sorte no meu trabalho e no meu percurso porque eu tenho trabalhado sempre em sítios onde nós somos respeitadas e o nosso trabalho é considerado e, talvez, até por isso, as pessoas não se sentem à vontade para pressionarem-nos para isto ou para aquilo, para fazermos uma situação ou a outra. Pronto, acho que respeitam o nosso trabalho e, portanto, acham que nós somos isentas e por isso não tenho passado por esse tipo de problemas.

Quando provocada para pensar sobre situações nas quais os assistentes sociais

recebem pressões políticas, estabeleceu-se o seguinte diálogo: — Bom, Fátima, o que é que

você faz ou ouviu falar o que as suas colegas fizeram quando aqueles não selecionados se

sentem injustiçados e tomam providências? Que providências eles tomam? Como você tem

lidado com isso? Como é que isso aparece aqui em Portugal e no seu serviço? Ela responde:

— Ou é meu eleitor e eu quero que você faça... Não é fácil dizer-lhe, mas ele não cumpre as regras. Como é que eu faço se ele não cumpre as regras e os requisitos para eu lhe poder atribuir uma casa? Quer dizer, eu até posso dizer isso ao meu patrão, mas ele até pode responder, mas eu quero que você atribua. Quer dizer, e eu, então, como que eu posso dizer que não? Eu acredito que haja esta postura e que é muito complicado uma assistente social dizer que não, numa situação assim. Eu não tenho passado por essas situações. Eu devo lhe dizer que eu estou a falar por mim, que não estou a falar pelos outros assistentes sociais, mas eu acho que tenho passado por serviços que respeitam o nosso trabalho. Tenho tido a sorte de ser dirigida sempre por assistentes sociais, que eu lhe disse dessa diretora, ela era uma assistente social, das primeiras em Portugal, mas era uma assistente social, era a diretora deste estabelecimento. No outro onde estive a responsável pelo serviço também era uma assistente social. Aqui ele é economista e respeita-nos e aceita aquilo que nós lhe dizemos.

As pressões políticas sofridas pelos profissionais — que, em algumas situações,

chegam a se configurar como assédio moral —, são tão comuns na profissão que Fátima, por

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não ter tido que lidar com esse tipo de ingerência no seu trabalho, julga-se privilegiada e com

sorte diante das colegas.

Faz parte do processo seletivo que aqueles que se sentem injustiçados por não terem

sido selecionados façam reclamações ao próprio profissional, às organizações diretamente ou

através de “padrinhos”, procurando explicações sobre os motivos de não terem sido

selecionados, tentando reverter a situação. Fátima expõe a situação em riqueza de detalhes,

pois, afinal, tem cabido à equipe de assistentes sociais gerenciar a situação.

— Olhe! Eles põem em causa a avaliação dizendo que a avaliação não foi correta, não foi feita de acordo com as regras, com o estipulado, achando que foram feitos erros pelo serviço. Portanto, eles reclamam, reclamam para todos os sítios [lugares] que são possíveis. Primeiro, para nós porque nós somos a primeira entidade para quem eles reclamam, e posteriormente, podem reclamar por tudo quanto é sítio. As reclamações são sempre um pouco... Eu acho que as reclamações são muito desvirtuadas. Imaginando que ele faz uma reclamação para o ministro, o ministro reencaminha para nós, para sermos nós a responder. Portanto, por vir parar ao mesmo serviço, nós temos por norma, como eu disse há bocadinho, eu não analiso processos, mas analiso processos de reclamações. Todos os processos sou eu que faço e nesse sentido tentamos esclarecer. Primeiro, tentamos esclarecer a situação e o porquê. Claro, que nos defendemos com a legislação também. E dizemos: “Olhe, você está nesta e nesta situação. Com a legislação, é isto que acontece. Agora, se você tiver uma situação diferente desta que você nos apresentou, que você perceba, também, que nós a revemos sempre.” Pomos sempre estas questões ao aluno e tentamos ao máximo sempre expor sobre o motivo que levou à sua não consideração para atribuição do benefício. Tentamos ser transparentes, tentamos ser claras, tentamos que o aluno perceba... A reclamação é sempre feita por escrito, mas nós tentamos sempre, damos sempre essa indicação que, antes de o aluno fazer a reclamação por escrito, que venha falar conosco, precisamente porque o aluno, muitas vezes, o aluno... Eu também entendo que é uma legislação e é chata de ser lida. As pessoas não gostam de ler leis, é desagradável. E, muitas vezes, o aluno candidata-se à bolsa e considera que a situação lhe dá acesso àquele direito, sem verificar qualquer tipo de condições. E, quando lhe é dito que não, porque ele não reuniu as condições, ele acha isto muito estranho, porque considera, pela análise que fez da sua própria situação, que terá direito. Por isso, muitas vezes, nós dizemos: “Venham conversar conosco, para nós vos explicarmos!” Então, aí nós perguntamos: “Você já viu a legislação, você já viu quais são as condições?” “Não, não sei; quais são?” E aí nós dizemos: “São estas e estas. Como vê, você não cumpre esta, esta e esta. Estás a perceber?” “Ah, sim, estou!” Pronto! Aí há muitas situações… Nós temos relativamente poucas reclamações, e penso que o fato de termos poucas reclamações tem a ver com essa nossa prática, porque, sempre que um

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aluno pretende reclamar ou não está contente com o resultado da sua candidatura à bolsa, nós tentamos esclarecer com ele os motivos que levaram a essa situação. Muitas vezes, eles saem daqui descontentes, como é evidente, porque a situação foi indeferida, mas pelo menos saem esclarecidos, saem a perceber porque é que não têm direito.

Luísa e Fátima destacam que os instrumentos básicos utilizados para se defenderem

diante das pressões políticas e acusações advindas daqueles candidatos que se sentem

injustiçados no processo seletivo são os critérios e as normas estabelecidos e a legislação.

Fátima defende a importância de tornar transparentes o processo e os critérios junto

aos candidatos e a necessidade de haver abertura para contemplar possíveis erros cometidos,

pois podem ocorrer no processo omissões de informação não intencionais, que, ao final,

podem acarretar prejuízo a um candidato que participa de um processo seletivo.

— Tentamos esclarecer o máximo possível o aluno. Sempre com a ressalva de “isto foi o que foi analisado com base na vossa situação, do que vocês nos apresentaram. Agora, se isso que vocês nos apresentaram não está totalmente correto e existem outros aspectos que vocês não focaram, mas que vocês agora até acham importantes, é uma questão de vocês apresentarem para nós podermos rever a situação.” E nós revíamos sempre as situações Agora não podemos fazer, mas antigamente fazíamos sempre essa revisão. Mas, tentamos respeitar ao máximo todas as reclamações de todos os alunos.

Ela destaca ainda a importância de o profissional tratar das pressões e dos pedidos de

esclarecimentos com respeito, porque são expressões da frustração por não terem tido sucesso

na obtenção do serviço ou benefício social pretendido.

— Sobre as denúncias, temos situações de alunos que chegam cá e dizem: “Ah, por que é que eu não tenho bolsa, se o meu colega, com uma situação igual à minha ou que precisa menos do que eu, tem?” O que dizemos normalmente é: “Diga-nos quem é o seu colega, e nós revemos a sua situação.” E normalmente não dizem, “porque não sou delator, não estou aqui para falar.” Eu digo que “não é preciso dizer nomes, basta que nos dê alguns elementos de referência para nós podermos chegar lá.” “Agora, como deve perceber, as situações são todas diferentes umas das outras, e, portanto, você, se calhar, pensa que a situação dele é semelhante à sua, e se calhar, há lá aspectos que não são; você não sabe tudo da vida do seu colega.”

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Tília dá um tratamento irônico, ao nos explicar como as reclamações são tratadas nos

organismos estatais em Portugal, pois há, em todos os locais públicos, o “livro amarelo”, que

é a forma institucional de absorver as queixas e pressões da população usuária dos serviços.

— A instituição responde sempre. Nós cá em Portugal somos muito civilizados, há um livro amarelo, as pessoas escrevem, depois é dada uma resposta à pessoa, mas nunca se corrige nada, nunca se é questionado, quer dizer, a instituição, aí protege o profissional, porque é instituição. Muitas vezes essa reclamação vai para o Ministério, volta, a profissional fica e nunca acontece nada. Por exemplo, uma das últimas reclamações que eu li, era de uma pessoa que tinha sido maltratada; a assistente social disse que não vinha atender, que não tinha tempo, que tinha muitos beneficiários e que não tinha tempo. E a pessoa escreveu uma carta ao presidente, a dizer que “eu fui lá e que precisava de ser atendida, ela não ouviu, nem sequer desceu, mandou dizer que tinha muitas pessoas para atender.” Nem aí, não acontece nada, está a ver? E isso, eu acho que devia acontecer. Aí já não tenho poder, mas devia acontecer. No fundo, a própria assistente social que faz isso, é a mesma que dá as respostas. Depois a assistente social manda uma resposta qualquer e depois fica tudo como está cá para baixo. [...] quando há, por exemplo, maltrato e depois a criança, se for, no caso de crianças, pressupõe que haja morte ou acidente grave, e nós mesmo assim... Tem vindo a publico algumas situações como morreu uma criança queimada ou maltratada pela avó, ou coisas assim porque esses tipos de coisas acontecem, mas fica sempre, tem-se sempre uma justificação de que nunca aconteceu nada. E a instituição defende sempre o assistente social.

Sobre as pressões políticas sobre o profissional na qualidade de funcionário das

organizações sociais, ela expressa toda a dramaticidade vivida hoje em Portugal, tanto pelos

usuários, ao se deparar com o corte de seus benefícios, quanto pelos profissionais, que

recebem toda a carga de agressividade advinda desse fato, porque materializam o Estado que

cobra a contrapartida e retira o benefício social. A relação com o profissional passa a se

constituir no lugar de choque, ao ser ele que recebe, amacia e amortece os primeiros impactos

e as tensões advindas da frustração dos indivíduos que perdem os benefícios do RSI e que

ficam revoltados com isso.

— Depende; aqui em Portugal... Mas isso também depende do público em Portugal; as pessoas andam muito reivindicativas, umas vezes com razão, outras sem razão [...] E dizem que só dão a quem não precisa. Dizem isso. E que aqueles que vêm aqui não dão, que não dão a quem precisa. [Os assistentes sociais] Estão a ser almofada de… Houve muita gente que perdeu o Rendimento Mínimo agora exatamente estão

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a ser empacotados e é exatamente isso o que acho. Agora, estão a servir de almofada... Há dias chegou uma pessoa ali, fez lá muito barulho e eu fui ver o que é que se passava que, eu estava lá, e, então, era um senhor que perdeu o seu subsidio social de desemprego. Eram 420 euros que ele tinha e foi lá buscar o cheque ao balcão e disseram-lhe, “vá ao balcão”. E então ele disse: “Mas eu quero os meus 420 euros, porque disseram-me para vir aqui. Têm que me dar!” E agora, o que é que faz a colega que está ali à frente?

Podemos perceber claramente aqui como a seleção socioeconômica se mostra como

um instrumento político para apaziguar a tensão social advinda do fato de haver corte no

orçamento público. Por ser direito previsto em lei, todos os que preenchem o perfil

correspondente ao RSI deveriam ser atendidos; então, o mecanismo da exclusão se dá pelo

arrocho da cobrança do trabalho como contrapartida.

Ao atender e tratar as pressões sociais de forma individualizada, desfoca-se a questão

que lhe dá origem: a desigualdade social que está aumentando, gerada pela crise atual da

ordem do capital. Sob nova forma, as pressões que aparecem no processo seletivo, na sua

expressão singular, e que são a mesma tensão que se encontra na origem da sua criação,

passam a ser tornadas aceitáveis e transfiguradas como questão do indivíduo que pressiona.

Daí a pressão política ser tão forte e persistente em todos os processos seletivos. A seleção

socioeconômica tem sido instrumento de grande utilidade social no sentido de tornar a

desigualdade social aceitável, contribuindo para a manutenção da ordem social estabelecida.

4.4.7. Desafios colocados à profissão na atual conjuntura e a seletividade de acesso: as

condições de trabalho e os interesses dos usuários

Aqui, pretendo problematizar as condições atuais de trabalho do assistente social

demarcando, em grandes traços, as possibilidades e limites da intervenção profissional e

focando a realização cotidiana da seleção socioeconômica nas organizações sociais.

De acordo com os depoimentos das pessoas entrevistadas, que expressam preceitos

teóricos e políticos, pretendo trazer à tona sua reflexão sobre os limites profissionais da

seleção socioeconômica quando da utilização de diretrizes e critérios.

Parti do pressuposto de que a formulação da política social e a forma como é

concebida e elaborada reflete interesses de determinados sujeitos sociais, diferentemente

daqueles que interpretam e executam a política social — portanto, dizem respeito a processos

históricos diversos. Entendo que é preciso ficar vigilante para captar e compreender os

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diferentes interesses em jogo na sociedade capitalista para saber redirecioná-los de acordo

com a estratégia escolhida pelo profissional.

Na execução dos programas e serviços sociais, o assistente social pode se comportar

dando grande ênfase à burocracia, com destaque às normas e regulamentos, como funcionário

e técnico assalariado que cumpre ordens. Mas também pode perceber e trabalhar dando outro

sentido à tarefa, ao se colocar como agente de uma profissão que lhe abre possibilidades de

ser crítico em relação ao trabalho profissional e à sociedade. As tarefas, atribuições e

competências do profissional podem ser tomadas como um fim, quando a prioridade é o

resultado, ou entendidas como meios, quando se valoriza a dimensão educativa no processo

de atendimento, no qual os usuários dos serviços participam das análises e das decisões.

A apreensão do conteúdo veiculado na sua intervenção e dos seus porquês depende

dos preceitos teóricos e políticos escolhidos e adotados pelos profissionais. Assim, coloca-se a

questão: de que forma existe a possibilidade de se trabalhar de acordo com os interesses dos

usuários? Se a prática profissional é contraditória, como é que os profissionais entrevistados

têm lidado com essa peculiaridade?

O trabalho profissional não se dá no vazio. Portanto, é preciso compreender como o

profissional se movimenta na organização na qual trabalha e na profissão? Como aparece a

correlação de forças existentes e presentes nas organizações nas quais os profissionais

exercem a profissão?

Nessa direção, passo agora a apresentar a experiência e analisar o entendimento das

assistentes entrevistadas acerca das complexas questões que envolvem o exercício

profissional e de outras que surgiram no decorrer dos encontros realizados com elas.

● Especificidade do trabalho profissional em Portugal

Com as mudanças recentes que vêm se operando no âmbito do capitalismo

internacional, essa etapa de globalização neoliberal tem causado, na particularidade da

comunidade europeia, profundos danos, principalmente aos trabalhadores que dependem da

proteção do Estado para sobreviver. Quem mais sofre com os dramáticos efeitos da crise são

os trabalhadores, desamparados pelo desemprego estrutural e pela presença do Estado que age

como um “administrador de negócios”, não se responsabilizando pela proteção social e pelos

direitos sociais conquistados e delegando parte importante dessa tarefa à sociedade civil.

Os prejuízos dessa expressiva e cotidiana perda de direitos, observada mundialmente,

podem ser notados, em Portugal, pelo papel de realizador da política de cortes dos benefícios

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sociais atribuído aos assistentes sociais. O exercício profissional tem adquirido expressões

dramáticas, na medida em que a profissão, sob pressão e controle, encontra dificuldades para

legitimar-se na realização e ampliação dos direitos já consagrados.

Nesse contexto, particularmente, o rigor da seletividade de acesso aos serviços e

benefícios sociais pode ser entendido, muitas vezes, como uma armadilha, porque seu

fundamento básico é a desigualdade social, evidenciado pela face de exclusão, aspecto

amplamente analisado ao longo deste estudo. As consequências da crise afetam o demandante

dos serviços sociais, que se vê sozinho diante do enxugamento e focalização dos programas

sociais, assim como afetam o assistente social como trabalhador assalariado, que também

sofre a perda de direitos e de salário como os demais trabalhadores. É, por vezes, difícil

vislumbrar possibilidades e saídas profissionais e distanciamento para apreensão da realidade

de forma crítica.

A novidade que se põe em Portugal, é o fato de que, hoje, as condições de vida dos

assistentes sociais estão muito parecidas com as da população atendida.

Conforme se pode perceber, os rebatimentos da reordenação do capitalismo

internacional, na especificidade de Portugal, aparecem em todas as entrevistas, variando de

intensidade de uma para outra, até porque o mesmo processo histórico não se dá do mesmo

jeito em todos os espaços profissionais. As entrevistadas enfatizam aspectos que têm muito a

ver com a inserção profissional e expressam concepções particulares de mundo e de profissão.

Tília, que atua na Segurança Social e é liderança política da categoria dos assistentes sociais,

apontou como as expressões da crise se apresentam de forma mais direta e dramática. Luiza,

que atua na Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, demonstra preocupação e tensão ao se

referir ao controle e fiscalização que sofre no trabalho cotidiano. Alice e Fátima demonstram

preocupações com as repercussões da conjuntura atual do país, mas pela natureza do trabalho

que realizam não se sentem tão desafiadas como as demais.

Alice, no seu trabalho, tenta equacionar as necessidades apresentadas pelos usuários do

hospital, utilizando-se dos recursos disponíveis a favor do bom atendimento dos pacientes,

tais como transporte em ambulâncias, cessão de próteses mamárias, etc. Entende que os

usuários, pessoas atingidas pelo câncer, têm o direito de receber tratamento digno e cuidados

especiais. Parte do pressuposto de que os trabalhadores pobres têm o direito de usufruir de

serviços de qualidade. Ela nos apresenta uma série de ricos exemplos que dão materialidade a

essa forma de entender a profissão e os usuários.

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–– Há pessoas que precisam de uma assistente social permanentemente para viver com o mínimo de dignidade, sem termos expectativas de que eles vão mudar as suas condições de vida, embora eles tenham direito a isso. [...] temos que as sustentar em todos os sentidos. Não é sustentar só economicamente. Nós temos que as apoiar, as mantendo com qualidade de vida. É isso que nós temos que explicar às pessoas, mas há outras pessoas que podemos estimulá-las a desenvolver-se e a deixar de necessitar da assistência. Agora temos que ver com quem conseguimos fazer isso e com quem não conseguimos fazer. E com aqueles que pensamos que não conseguimos fazer, quem sabe se, apesar de tudo, nós não fazemos menos do que poderíamos fazer? Nós não temos a vida na mão, a vida escapa-nos. [...] O que é o tratamento do cancro? É só um tratamento clínico? E o reajuste interno, relativamente à sua autoimagem, que temos doentes de cabeça e pescoço? Doentes que nunca mais voltam a comer de forma normal e que não tem em casa condições de comer de forma normal. Isso não é tratar? A autoimagem não é tratar? É só a dimensão química? [...] Tu sabes que um doente não pode usufruir de uma ambulância para vir a uma entrevista do Serviço Social, mas pode usufruir de uma ambulância para vir a um serviço de psicologia e de um médico, etc.? Então, o que é isto? Eu ainda não tive tempo de pegar nisto, que só há pouco tempo é que soube, mas isto cai pela base, pela definição de saúde. O que é a saúde?

A entrevistada não se coloca de forma subalterna no seu espaço de trabalho. Ao tomar

conhecimento de que o paciente não tem direito de solicitar ambulância para atendimento do

Serviço Social, essa necessidade se coloca logo na sua “pauta de luta”, visando à reversão da

situação atual.

Ao falar de suas experiências, as entrevistadas vão apresentando vários jeitos possíveis

de ser assistente social.

Alice, que já viveu e participou do processo de independência de Angola, ao falar de

seu posicionamento ético-político, afirmou que não tem dúvidas acerca da opção de pautar

sua ação na defesa dos interesses dos trabalhadores, tanto na sociedade quanto na organização

onde trabalha, ao declarar:

–– Eu podia estar no lugar de qualquer uma destas pessoas em situação de exclusão que por aqui eu encontro e por que não estive? Porque encontrei as pessoas certas porque alguém me estimulou, porque eu tenho interesses internos que eu desenvolvi, porque se juntaram algumas oportunidades que fizeram com que isso acontecesse. Agora eu sempre vejo que podia ser eles, a partir da altura em que eu me vejo neles, eu tenho que os respeitar, senão deixo de me respeitar a mim própria. [...] Ela, que atendo não é diferente de mim. [...] Escolho claramente [referindo-se à direção estratégica de

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sua ação que se pauta na defesa dos interesses dos trabalhadores], porque não tenho duvidas.

Ela mesma reconhece que há outra perspectiva de ser profissional, tomando como

exemplo uma colega que a antecedeu nesse trabalho. Analisa que há a possibilidade do

assistente social reinterpretar as normas institucionais, tendo em vista os interesses dos

usuários, embora regras e critérios continuem a existir. Alice entende que as mudanças são

possíveis de serem operadas no âmbito profissional, mas têm abrangência restrita.

–– Portanto, é possível, mas houve aqui, anteriormente, antes de mim e da Maria [referindo-se à colega de trabalho] [...] tinham sempre os dados, os exames no computador para ver se os punha ou não fora, se tinham ou não exames, tratamento para se irem embora. Claro que isto também tem, às vezes, o reverso da medalha, às vezes, eles [referindo-se aos pacientes] sentem-se muito protegidos aqui e é muito difícil eles voltarem ao seu meio. Mas, eu acho que isso tem que ser construído par e passo com eles, por dentro na reconstrução da sua identidade, da sua autoconfiança e, por fora, a nível de rede de apoio. [...] Penso que já disse que há várias maneiras (referindo-se à realização de seleções), Nenhum dos componentes determina tudo, eu acho que cada nível de intervenção, portanto, tem algum nível de autonomia para reinterpretar as coisas e ir ao essencial. E estas reinterpretações, e aí é que nós falhamos, porque as reinterpretações que nós fazemos deviam ser mais sistematizadas. [...] Nós fazemos quando dá, sem ser incorporado ao cotidiano de trabalho. A gente ainda não tem organização.

Fátima também defende a ideia de que o assistente social não pode ser mero

funcionário de uma organização e que não deve estar está lá somente para cumprir as regras e

os regulamentos. Se o profissional realiza, a seleção socioeconômica pautado em critérios,

esse fato não deve ser entendido, no entanto, de forma absoluta, pois isso não implica de ele

ser receptivo a qualquer tipo de critérios ou ingerências. É preciso olhar para os indivíduos

nas suas particularidades, pois o trabalho realizado tem que contemplar exceções.

–– É fundamental que o assistente social não encare a profissão, não encare o seu trabalho como um mero burocrata, como um mero contabilista. E eu acho que não se pode confundir um assistente social como um mero aplicador de políticas, mesmo que sejam políticas sociais. Eu não posso estar aqui só a pegar na minha legislação, a ler a legislação. E tenho aqui o meu candidato à bolsa ou meu cliente à minha frente e eu não posso ler a legislação e dizer lhe, a ti vou te aplicar a regra 1 e a ti a regra 2. Não, não posso! Eu tenho que perceber que a pessoa que está à minha frente não é só um ponto de

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vista, não é só o rendimento que tem ou as despesas que tem, é uma rede social. [...] Nós não podemos ser meros burocratas, [...] e estarmos aqui abertos a todo o tipo de critérios, a todo tipo de regras, a todo o tipo de critérios que nos queiram dar, que nos querem impingir. É evidente que nós temos que os receber, os que vêm da nossa entidade empregadora e nós temos que aplicá-los, mas eu acho que podemos aplicá-los sem sermos absoluto[...] Posso, aliás, tanto neste sítio onde eu trabalho como no anterior... Portanto, eu sempre trabalhei com os tais balizamentos legais, mas que também permitem a exceção. Ou seja, eu sempre tive possibilidades de cuidar de situações que cabem dentro destas, como exceções. E eu penso que isto também tem a ver com a legislação, claro!

Alice explicou que nem sempre as solicitações dos pacientes são atendidas pela equipe

na qual trabalha, mas que deve haver uma atenção constante para que se possa enxergar o que

precisam e necessitam. É preciso criar neles uma reação corajosa em relação às perdas e

sequelas sofridas e ao do medo do sofrimento e da morte que acompanha quem tem câncer.

Nesse sentido, ela considera a necessidade de avaliar, constantemente, o que fazer, porque o

que foi um apoio em um momento do tratamento, em outro já não serve mais. É necessário

que o profissional tenha abertura, conhecimento e sensibilidade para perceber as sutilezas das

necessidades presentes, nem sempre expressas pelo paciente em tratamento.

–– [...] A seleção, eu procuro que todos sempre tenham alguma coisa. [...] Pode não ser financeiro, porque em acordo chegamos à conclusão de que, de fato, eles podiam comprar. Porque, por vezes, aqui no hospital eles dizem, “vá lá ter com a assistente social, que eles dão-lhe dinheiro para os medicamentos”; é preciso fazer uma explicitação sobre o dinheiro. Se a pessoa diz assim, “eu realmente acho que eu posso comprar os meus medicamentos, mas este mês eu tive esta e esta despesa, porque houve desorganização na minha vida familiar, porque foi o inicio da doença”... E eu disse, “sim senhor, vamos ajudar este mês e no próximo mês avaliamos”. [...] Há regras orientadoras, mas essas regras não são senhoras, não são elas que pautam a nossa intervenção. A nossa intervenção é pautada na relação que estabelecemos, no compromisso que estabelecemos com aquelas pessoas.

Realizar um trabalho no qual o assistente social se coloca como sujeito, pressupõe

estudo e reflexão constantes visando a apreensão das condições objetivas do trabalho nas

possibilidades e nos limites. A realização de um trabalho competente e compromissado exige

domínio teórico-metodológico para que o profissional possa entender as demandas

apresentadas pelos usuários para além das aparências e saiba discriminar as demandas

aparentes e as demandas reais presentes na situação.

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As condições de trabalho de Luiza estão ficando mais difíceis e complexas a cada dia.

Além do cumprimento de metas, sofre cobrança e pressão de várias ordens. E quando, por

vezes, se vê fazendo as contas dos minutos gastos com cada uma das atividades que tem que

realizar, chega mesmo a se assustar com a vida que tem levado. Sem contar que ainda há

aqueles serviços que não são computados pela organização como a colocação das informações

no computador e as respostas escritas às solicitações do tribunal dentro dos prazos

estabelecidos. Fala disso tudo com inquietação e descontentamento, pois gosta da profissão e

gostaria de ter tempo para realizar uma prática mais reflexiva e se vê envolvida em um

processo de trabalho com inúmeras tarefas a cumprir.

–– [...] a realidade em termos do social transformou-se muito, muito, é de uma complexidade muito grande. Agora... Isso exige do profissional um conhecimento e uma disponibilidade muito grande para poder responder o mais próximo possível daquilo que são as necessidades da população, daquilo que podemos considerar com ela, que pode ser o seu projeto. O volume de trabalho é muito grande para nós... Para eu poder ter a disponibilidade, que eu considero necessária para poder trabalhar, para poder contextualizar, para poder perceber o outro. E isso, às vezes, é muito frustrante. Isso exige de mim, ou deveria exigir de mim, uma capacidade maior de perceber, de analisar a sua trajetória, de analisar aquilo que são as suas expectativas, de analisar de estabelecer uma relação de confiança, que é fundamental. [...] Eu tenho que prestar contas de várias coisas que eu faço e há contas que de o meu ponto de vista não são nada importantes. São só importantes para a representação em termos institucionais, agora é assim eu sou avaliada. Eu tenho que definir para mim com a minha chefia os objetivos, mas depois eu não defino mais nada com ela porque eles são impostos.

Branco e Amaro (2011) tratam desse assunto com muita clareza, ao analisar a prática

do Serviço Social em Portugal na atualidade. Baseados em pesquisa empreendida, afirmam:

De facto, ficou claro neste estudo que é exercida uma enorme pressão sobre os profissionais no sentido de demonstração de resultados, o que tem se traduzido numa lógica de realizar o máximo possível de atendimentos e de disponibilizar uma “resposta” no período mais curto possível. Em paralelo, é também entendido como crucial o papel de verificação da veracidade das situações expostas pelos utentes. Isto significa que, com o tempo disponível, tudo o que o assistente social pode fazer é tomar nota do pedido do utente e assegurar que o indivíduo tem direito à prestação em causa. Enquanto alguns profissionais parecem pensar que isto é o que compete a um assistente social, outros sentem-se desconfortáveis neste papel. Para estes os referenciais éticos e metodológicos apontam para a importância de constituir relações empáticas, que promovam a participação e o empowerment, com vista a autonomia do utente e a perspectiva dos níveis de intervenção (BRANCO; AMARO, 2011, p. 667).

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Raichelis (2011) participa desse debate, indicando em sua análise que

[...] por mais que seja imprescindível a incorporação das novas tecnologias de informação, é preciso problematizar os efeitos dessa revolução tecnológica no trabalho do Serviço Social e na relação dos assistentes sociais com os usuários e a população, via de regra, mediada pelo computador nos espaços de atendimento profissional. [...] é possível constatar o crescimento de um tipo de demanda dirigida aos assistentes sociais em diferentes áreas, que afasta o profissional do trabalho direto com a população, pois são atividades que dificultam o estabelecimento de relações continuadas, que exigem acompanhamento próximo e sistemático. A título de exemplo, pode-se citar o preenchimento de formulários e a realização de cadastramentos da população, quando assumidos de forma burocrática e repetitiva, que não agrega conhecimento e reflexão sobre os dados e o trabalho realizado. Trata-se de uma dinâmica institucional que vai transformando insidiosamente a própria natureza da profissão de Serviço Social, sua episteme de profissão relacional, fragilizando o trabalho direto com segmentos populares em processos de mobilização e organização, e o desenvolvimento de trabalho socioeducativo numa perspectiva emancipatória (RAICHELIS, 2011, p. 433).

No contexto societário de transformações que vem se operando no mundo do trabalho

e da acirrada perda de direitos sociais, têm se ampliando as relações entre trabalho e

adoecimento, o que se reflete na saúde física e mental dos trabalhadores em geral.

Essa dinâmica de flexibilização/precarização atinge também o trabalho do assistente social, nos diferentes espaços institucionais em que se realiza, pela insegurança do emprego, precárias formas de contratação, intensificação do trabalho, aviltamento dos salários, pressão pelo aumento da produtividade e de resultados imediatos, ausência de horizontes profissionais de mais longo prazo, falta de perspectivas de progressão e ascensão na carreira, ausência de políticas de capacitação profissional, entre outros (RAICHELIS, 2011, p. 422).

Luísa, que deseja realizar seu trabalho contemplando o processo e não somente o

produto pelo qual é constantemente cobrada, encontra-se em situação de estresse. Ela expõe

que, em um clima de muito trabalho a realizar, defronta-se, permanentemente, com o medo

advindo da ameaça constante de uma possível fiscalização externa a qual, a qualquer

momento pode colocar o emprego e a sua integridade profissional em risco.

–– [...] o medo que perpassa todos, perpassa os assistentes sociais, perpassa os diretores, e provavelmente perpassa as administrações. Eu sentir que não consegui responder a uma situação e que eu posso ser escrutinada pelo tribunal que achou que eu não fiz o que devia ter feito pelo organismo X e que eu posso por via disso, ter um processo disciplinar, na pior das hipóteses... Ou a minha organização se não conseguiu responder ou se não respondeu, ser vista de uma maneira muito pouco positiva [...].

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O fato de analisar e mesmo se indignar frente à exploração e ao desgaste a que ela e os

colegas estão submetidos gera um sofrimento difícil de admitir, quando as explicações giram

em torno das relações sociais presentes no cotidiano. A não apreensão do que se esconde por

detrás das pressões e dos medos, como rebatimentos de processos sócio-históricos mais

amplos, faz com que se sinta culpada e constrangida por não conseguir realizar seu trabalho

como gostaria; as respostas vêm acompanhadas de muitas justificativas. No entanto, Luísa

fala com satisfação de pequenas conquistas que ela e os colegas obtiveram, apesar das

dificuldades e medos presentes no cotidiano.

–– Tivemos há pouco tempo uma situação, em que tinha a ver também com os cartões de saúde. Até julho do ano passado, havia um regulamento de cartão de saúde, elaborado há vários anos, mas não era cumprido. [...] O regulamento dizia que todos os utilizadores deveriam ser portadores de um cartão de saúde, sem isso não poderiam ser atendidos, só que isso nunca se aplicou. O que é que aconteceu? Aconteceu que os serviços de saúde eram utilizados por quem precisava, por quem estava dentro dos critérios, por quem estava fora dos critérios, por quem tinha condição para pagar uma consulta, e por quem não tinha condição de pagar uma consulta. [...] Então, um dia alguém deve ter decidido, hoje acabou. Só que acabou para todos, para aqueles que não tinham direito porque estariam fora dos critérios e acabou para aqueles que estavam dentro dos critérios, mas não tinham o cartão, porque os serviços de saúde nunca o tinham exigido. E aí gerou-se um grande problema, porque a orientação foi de que só vai ao serviço de saúde quem possuir o cartão. E nós começamos a pensar nalgumas situações de utentes que estariam dentro dos critérios por extrema necessidade de consultas de especialidade e que as iam perder porque não tinham o cartão e porque o cartão a ser elaborado demora um mês, [...]. Entretanto, começamos a colocar questões (às chefias), por exemplo, “então aquela senhora que estava à espera da consulta há um ano na estomatologia, otorrino, agora vai ficar sem consulta? Então, e vai ficar outro ano à espera, por uma circunstância que não tem a ver com ela, mas com a própria organização? Isso vai inviabilizar o nosso processo de apoio junto daquela família. Isso vai fazer com que a família que já está num determinado patamar vá regredir. Isso vai fazer com que aquele que necessita de óculos não vá poder ler”, isto e aquilo e pensávamos, “bom, se calhar, não vamos conseguir; a responsabilidade é da organização. Portanto, se houver algum problema maior, que passem para a comunicação social (referindo-se à imprensa), a organização é que vai responder, porque isto está para além da minha capacidade enquanto técnico”. Contudo, quando nós trabalhamos diariamente com a população e as famílias sabemos que isso não é assim, não basta explicar ao utente que a culpa é da organização, porque ele tem dificuldade em perceber isso. [...] mas ainda que eu diga que “foi o meu diretor, foi o administrador”, foi este ou aquele, o utente não consegue perceber. Tem muita dificuldade

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em perceber como é que eu trabalho numa organização assim. E por isso quem vai perder? Vai perder o utente e o técnico. E nós conseguimos mudar e conseguimos fazer com que se implementasse isto a nível territorial, com que se implantasse um sistema que nos deu muito trabalho, que era para se fazer como urgência. Fazíamos o cartão, mas entre os impressos havia um comprovativo e que com esse comprovativo era válido, poderia ter acesso aos serviços. É por isso que eu acredito... Que isto foi uma pequena conquista.

Mesmo diante do clima de repressão e medo vivido no cotidiano de seu trabalho,

Luísa admite que, embora seja trabalhoso, é possível usar a organização para atender as

necessidades e interesses do usuário, dependendo da leitura e do tratamento dado às situações.

–– Eu estava a me lembrar há pouco, quando referia o Rendimento Social de Inserção, sobre a questão do mercado de trabalho ou do emprego, como condição para continuar a ser beneficiário da RSI. [...]. Embora a lei defina que, qualquer requerente tenha que estar inscrito no centro de emprego, com vistas a ser inserido no mercado de trabalho. Isso é logo a premissa, desde que esteja na vida ativa ou se não puder, tem que ter uma declaração médica a dizer que não pode (trabalhar). Mas, isso é a condição de requerimento, porque às vezes ao nível da operacionalidade da medida, nem sempre a questão pode ser assim, porque tal como nós depois constatamos, que a pessoa não tem condição para ir para o emprego, nunca vai conseguir ter um bom emprego se não forem trabalhadas, ou se não forem resolvidas outras questões. Eu acho que aí, há esta margem que nós poderemos operacionalizar... Não é ir contra a lei, mas de alguma forma... [...] Sim, [refere-se aos interesses] do utente... A questão de que se não aceitarem o emprego... Tem que ser contextualizado. Daquilo que é a minha experiência, não tenho memória, de alguma situação que, alguém tivesse deixado de receber o benefício, porque a questão foi assim, tão direta, entende? Claro, que se há um indivíduo que tem condição para o trabalho, e por via do seu percurso tem dificuldade, não quer porque tem outro trabalho informal que nunca declarou e quer acumular com a prestação, isso é outra coisa. Agora, aquele que efetivamente tem uma necessidade, por exemplo, se um indivíduo tem 30 anos e não tem o 4º ano de escolaridade como é que ele consegue ir para o mercado de trabalho? Como é que consegue?

Ela entende que, na concessão de um benefício, é necessário que o profissional tenha a

certeza que as informações apresentadas pelo usuário são verdadeiras. Por isso, expõe em

detalhes o repertório de medidas que tem utilizado, pois estas devem ser impecáveis, para que

não haja risco de serem questionadas pela fiscalização que tanto teme.

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–– Deveria partir sempre desse principio (de que o utente está dizendo a verdade), mas às vezes, a entrevista têm muitas incoerências, então, aí vamos ver. O profissional do Serviço Social tem que ter conhecimento de muitas coisas, diante da riqueza das situações que aparecem, e tem que ter conhecimento de muitas coisas porque facilmente pode ter uma situação, onde fica ignorante. Embora eu não tenha problemas, eu não domino tudo, mas eu vou procurar saber sobre essa nova questão que apareceu. De qualquer maneira nós temos que ter (em mente) muitas questões: não trabalha? E então? Mas recebe alguma prestação, não recebe? Não trabalha por que não pode? Não está disponível porque não tem qualificações? Por que, por que? E a pessoa responde “não, não, eu não trabalho, porque não há emprego, não consigo”. “Então, e o senhor encontra-se inscrito no Centro de Emprego, não? E então? E o senhor já se deslocou alguma vez àquela instituição y ou z que de alguma forma pode ajudar o senhor a encontrar um emprego? Não? Então, e o senhor já tentou ir ao centro comercial, onde está aplicado no vidro que “precisa se de trabalho”? Como é que eu posso atribuir um benefício a este indivíduo, se ele não traz nenhum documento sobre que está efetivamente desempregado e está á procura de emprego? Então, nesta circunstância, se ele diz que quer encontrar emprego, ele tem que ir à instituição oficial, que não é aquela que sempre arranja um emprego, mas é a oficial para trazer o comprovativo em que estava inscrito. Ou seja, eu ou os meus colegas, nós temos que dominar, muitas vezes, até para depois nos salvaguardarmos, porque depois, em termos organizacionais, nós também temos auditorias e temos que provar se cumprimos o regulamento ou não cumprimos. Atribuímos de acordo com o regulamento ou não atribuímos, favorecemos alguém ou discriminamos alguém porque não gostamos, e essas questões para mim colocam-se, aos outros colegas não sei. Eu tento ter sempre presente a questão da justiça, da igualdade. Procuro, mas se calhar não consigo sempre.

Luísa, quando se depara com situações em que se esgotou o repertório de respostas a

oferecer ao usuário, indica que eles se utilizem da pressão política, através da divulgação na

imprensa sobre o que se passa ou da apresentação de queixa à própria entidade, considerando

que, às vezes, isso funciona, porque a entidade não gosta de “ficar mal na fita”.

–– Claro, há situações diversas e quando eu me deparo com esta situação, aquilo que eu mais adoto, não sei se é o correto ou se não é o correto, é de alguma forma tentar explicar. É a primeira coisa que eu faço quando alguém fica excluído, nomeadamente quando fica excluído, é explicar como é que os critérios estão definidos, qual é o meu papel e a minha função, o que é que eu posso fazer, o que é que eu não posso fazer, o que é que aquele individuo pode fazer para além da minha organização; se pode apresentar uma reclamação na entidade x, se pode apresentar uma reclamação na entidade y. E nalgumas

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situações, não sei se isto é transferir uma responsabilidade minha, mas apelo muito àquilo que é o poder político, quando eles se zangam muito. É um instrumento que, às vezes, leva as organizações a agirem de determinadas maneiras em detrimento de outros e quando eu digo da comunicação social (referindo-se à imprensa) pode ser de uma outra instituição, porque ninguém quer ficar mal no papel. Embora haja o critério definido, às vezes, é muito complicado, então nós não temos uma lei...

Quando se vê diante de situações conflitantes que a colocam em xeque nos seus

valores e compromissos profissionais, ela tem justificado e respondido a si mesma e aos

usuários de várias maneiras. A seguir, Luísa conta como lida com as frustrações e impotências

com as quais se depara no cotidiano dos atendimentos que realiza.

–– Eu explico, “mas não fui eu que defini”, “mas a senhora, consegue viver com esses valores?”, Eu digo, “pois eu percebo, mas eu estou aqui não em termos tão pessoais, eu não sou a vizinha, eu sou assistente social e eu não posso fazer nada porque estou ao serviço de uma instituição que definiu isto”. É difícil, isto é um papel muito difícil de fazer porque muitas vezes eles têm razão, mas também, às vezes, penso e eu lhes dou total razão. Claro, tem razão eu não posso fazer coisas que… [...] há questões que eu não posso mesmo fazer, ao ponto que eu costumo dizer, “entre eles e eu, primeiro estou eu”. É para mim muito claro que, não vou fazer alteração em termos de números para fazer o indivíduo estar dentro do critério. Faço uma outra coisa que me pode dar mais trabalho, que é a tal informação (relatório), isso eu faço. Mais do que isto... Depois o poder institucional está presente diariamente na prática, mas esta é a realidade com que eu me tenho que de confrontar e eu tenho limites e se eu ultrapassar um limite, posso ter uma sanção e depois posso ficar como eles, uma excluída. É uma situação que não é fácil e nem sempre eu lido da mesma maneira, depende da pessoa que está à minha frente, depende do que está em causa, depende da situação de fragilidade dela, depende se eu percebo que, afinal, ela está a enganar e se eu tenho desconhecimento. Então, a minha atitude é uma atitude mais desprendida. A forma como eu lido com isso depende do indivíduo que eu tenho à minha frente porque a alguns eu dou explicações, a alguns eu desculpabilizo, a alguns eu contextualizo, a alguns eu informo que podem fazer de maneira diferente. A alguns eu digo que “eu fico triste como o senhor por não poder ajudar”.

Alice, por sua vez, equaciona a mesma realidade com outras leituras e ponderações:

[...] Sim, tu vês o RSI tem mínimos, tem máximos etc. Alguém tem que ver, portanto, se de fato... E não sei se tem que ser a assistente social. Aqui entre nós há imensa discussão sobre se as pessoas que

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tem direito ao RSI, ou Rendimento Social de Inserção, são aquelas que efetivamente mais precisam, por causa do problema da fiscalidade, porque as pessoas não têm... Fazem muitos trabalhos informais porque... Por exemplo, as pessoas queixam-se muito que os ciganos isto e aquilo... Depois há lutas entre os pobres, sabes como é, portanto, atacam-se uns com os outros... Mas, como estava a dizer que, “os ciganos todos têm RSI”, quando os ciganos são discriminados... Mas, outros pobres que não conseguiram dizem, “se eu fosse cigano tinha”. E eu costumo dizer quando oiço essas coisas, “se calhar não queria estar na situação deles.” A verdade é que eles (ciganos) fazem trabalhos, mas são trabalhos informais, são trabalhos muito pobres e depois como tem muitos filhos acabam por ter RSI altos. E depois, também é verdade que, se passeiam com carros é que são necessários para os negócios deles de venda. São carros velhos também, mas esses são, portanto, sinais que a outra população pensa que são sinais de riqueza; que eles têm o RSI e os outros não têm. Pois como os patamares aqui são muito baixos, existe de fato, um conjunto de pessoas que não acede a nenhum tipo de apoio e necessitava ter apoio. [...] Agora, as normas são essas, e quando me dizem “há pessoas que tem direito ao RSI e que, no entanto, não deveriam ter”, eu digo, “não sei, não tenho elementos, não sou eu que sou responsável por isso, possivelmente podem ter razão ou podem ter porque... [...] os meus colegas, os assistentes sociais, não são fiscais, nem estão preparados para esta fiscalidade.

O Serviço Social, assim como as outras profissões, tem sido profundamente afetado

pela ofensiva neoliberal, variando de intensidade de país a país, sendo que em Portugal isso

assume na atualidade formas dramáticas, com o corte orçamentário nas políticas sociais,

conforme já pude tratar anteriormente nesse estudo.

Tília conta os dramas vividos pelos assistentes sociais. A supervisão que realiza tem se

configurado como lugar onde os profissionais depositam as angústias que sentem diante dos

usuários, da profissão e de sua própria situação de trabalhadores assalariados. Ela mesma

também está em crise, quando vê desabar tudo aquilo que ajudou a construir como cidadã e

profissional nos desdobramentos da Revolução de 25 de Abril. Dessa forma, começa a contar

o que tem se passado nas reuniões de supervisão, destacando o estresse causado pela pressão e

pela violência vivida no cotidiano institucional:

–– Sei que me preocupa o estado de estresse dos profissionais, dos assistentes sociais que é muito grande aqui. Acho que nem no Brasil deve haver esse estresse. Esta profissão está muito estressante e, eu como supervisora confronto-me com isto permanentemente. [...] Lá vão elas ter, elas estão com medo de serem agredidas [referindo-se às colegas assistentes sociais]. Ainda há dias, uma colega levou uma bofetada de um beneficiário e ela ficou com a cara um bocado...

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Porque as pessoas perdem, quer dizer, os pobres já viveram um bocadinho melhor, porque esta promessa do Rendimento Mínimo Social, era uma promessa que a gente pensava que se ia cumprir ao nível da inserção e ao invés de avançarmos, recuamos muito. Mas, penso que a questão maior, não é a questão teórica, falo de uma falta de liberdade que existe, mas que é escondida; uma falta de vontade, de liberdade, qualquer coisa que… A maneira como nós estamos, como estão os beneficiários e isso temos que discutir [...] Na última reunião uma colega nos colocou que foi ameaçada por um beneficiário que lhe disse que a agrediria e que havia de a apanhar na rua para lhe fazer lanhos na cara.... Ela estava muito nervosa porque ficou com medo e achou mesmo que algum dia alguém a podia agredir. E então aí, achei que ela própria precisava de ajuda, de apoio e essa reunião de supervisão foi mesmo para falar sobre isso; do medo que as pessoas agora têm. Perguntei se haveriam alternativas, e ninguém disse uma alternativa, a não ser uma colega que disse, “eu ouço-os”. E depois outros colegas disseram, “mas nós não temos tempo sequer de os ouvir”. Veja lá a situação em que cá estamos todos nós. Não temos sequer tempo de os ouvir; foi uma reunião muito difícil. Por um lado, houve até colegas que se emocionaram, que choraram, que disseram que se tivessem outra forma de viver hoje não seriam assistentes sociais e houve outras que no final estavam mais serenas, de terem posto ali as preocupações, de terem dito que tinham medo e que pareciam mais serenas.

Esse depoimento reforça o medo e a apreensão já apresentados por Luísa, que agora

aqui reaparece, carregando nas cores e formas no sentido de nos permitir perceber o que se

passa no cotidiano profissional do assistente social, quando ele mesmo, ao representar a

organização do Estado que faz o corte do benefício, transforma-se na cara da exclusão. Nesse

sentido, passa a receber toda a carga de agressividade do usuário insatisfeito e desesperado

porque teve seu benefício cancelado. Tília, a entrevistada se põe a pensar sobre o que está

acontecendo na organização onde trabalha e na profissão, colocando em xeque a política atual

do RSI e perguntando-se sobre o que fazer diante do sofrimento expresso pelas colegas.

— [...] acho que as minhas colegas vivem numa situação de alienação, exatamente, porque o trabalho que elas fazem é dar dinheiro no imediato, sem análise e sem possibilidade de reflexão. Eu fiquei tão preocupada nesse dia [refere-se à reunião de supervisão] porque podia sentir-se o medo e o risco; não se esqueça que agora há polícia lá na sala de atendimento, há polícia porque há beneficiários que entram lá exaltados. E eu achei que apesar do medo, sobretudo, algumas pessoas revelaram o seu medo e chegaram a dizer que “a culpa é dos chefes, porque os chefes se quisessem ajudavam, se quisessem que fosse de outra maneira, poderia ser de outra forma”.

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Entender o que acontece na operação concreta do corte do orçamento destinado ao RSI

é complexo, pois não se trata de simples de corte de verba. Como se trata de direito social

previsto em lei — portanto, dever do Estado —, o acesso do pleiteante ou a sua manutenção

no benefício se dá mediante o cumprimento dos critérios estabelecidos. A cobrança da

contrapartida é quase impagável, sem falar do trabalho que dá ao beneficiário ao ter que

reunir as provas ou comprovantes de que está procurando emprego ou que se encontra

impedido de fazê-lo por questões de saúde.

Diante dos sérios desafios vividos pelo povo português, Tília expressa uma angústia

profunda, ao constatar com certa surpresa o que se passa com os usuários e com os assistentes

sociais que operam o RSI, perguntando-se como deveriam proceder para sair desse lugar em

que se encontram. É quase como se não acreditasse no que vê.

— Acho que há aqui um processo que é delicado também, porque acho que há muito pouco entusiasmo dos profissionais, muito pouco entusiasmo dos assistentes sociais. Eu não sei como é que se pode dar a volta, mas ao mesmo tempo, isto é muito agressivo dizer isto dos profissionais, é agressivo dizer isso dos profissionais que eu conheço, é muito agressivo! De outro lado, as pessoas precisam de trabalhar, precisam do salário, e eu recuso-me a entrar nesse discurso; temos de nos centrar, sobretudo, na nossa missão, que é a de trabalhar com as pessoas que, de alguma maneira, tem problemas de inserção social. E sabe o que acontece? Muitas vezes, começam a discutir a sua própria situação, isto acontece em muitas situações; para muitos são os salários baixos, para outros os cortes nos salários que vamos ter agora, aqui. [...] Pois, mas eu própria também... Isso é novo, quer dizer para mim é novo e, de fato, também é objetivo. Há colegas minhas que eu sei que os maridos já perderam o emprego, há colegas minhas que têm problemas familiares de desemprego de maridos, e elas apesar de tudo, hoje em dia, ser funcionário público, pode-se ter o salário cortado, mas ainda se vai tendo alguma segurança no trabalho, pelo menos, por enquanto.

A expectativa de Tília era de que os colegas na reunião de supervisão refletissem sobre

o que vivem hoje na profissão que, nesse momento elas rejeitam. Fica surpresa ao vê-las

falando de seus dilemas pessoais e familiares.98 A crise atual rebate nas suas vidas, porque são

98 Apresento no Anexo 4 um recorte da entrevista realizada com Tília, no momento considerado por mim como o mais decisivo. Diante da dramaticidade da situação que se apresentou, passei a estabelecer um diálogo com a entrevistada, em que, no momento, tive a sensação e depois a confirmação, de ter ultrapassado os limites de entrevistadora da pesquisa. Depois, pude entender que ela trouxe, de forma extremamente viva, o que está acontecendo no cotidiano da prática profissional naquele espaço sócio-ocupacional da profissão em Portugal. No diálogo estabelecido, pode ser percebido o sofrimento e os questionamentos da entrevistada, que não são obviamente só dela, que fazem as assistentes sociais se sentirem impotentes diante do processo de dominação e cooptação com que se deparam.

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trabalhadoras assalariadas e, portanto, se sentem afetadas e com medo do futuro como os

demais trabalhadores.:

— Mas eu queria voltar a esta questão da capacidade de reflexão, porque apesar de tudo, eu também tenho um enquadramento institucional, e eu pensei, naquele momento, que se as pessoas fizessem uma reflexão escrita sobre aquilo que sentiam, o que gostam de fazer ou não gostam de fazer, daquilo que sentem na situação atual, o que é que achavam que deveriam fazer que, se fosse uma reflexão sozinha, sem nome, para dizer tudo o que lhes apetecesse, sobre a instituição, sobre a sua atividade, se fossem elas a decidir, porque elas disseram muito, “o chefe é que manda, nós só fazemos o que nos mandam”; muito dominante este discurso e então eu propus-lhes, neste momento, que fizessem. Só tenho uma, são cartas anônimas e todos disseram que sim, que faziam e que já uma entregou. Em principio, será até ao fim do ano e fiquei impressionada com este testemunho que li. O que é que se faz com este testemunho, que é...? Ela não gosta de fazer nada do que faz, “não gosto de dar dinheiro, não gosto de ser maltratada pelos chefes, não gosto de vir para o trabalho, não gosto de ser maltratada nas reuniões do Núcleo de Inserção”, que é uma instância do programa do RSI, “sinto-me desvalorizada, acho que já nem sei ser assistente social”. Ou seja, é impressionante o estado em que aquela mulher, profissional, pessoa, está. E eu queria tanto pensar sobre isto!

● Especificidade do trabalho profissional no Brasil

As entrevistadas brasileiras, após a realização da leitura das entrevistas realizadas com

as assistentes sociais portuguesas, apresentaram um parecer sobre cada uma delas que passo a

expor a seguir.

O discurso de Tília despertou muita reflexão entre as brasileiras, e Graziela, que

efetuou a leitura da sua entrevista transcrita, apresentou sua análise:

–– A profissional que eu li ela [...] ela é da seguridade social, ela dá supervisão para profissionais, tem 61 anos, foi formada no período da ditadura lá de Portugal. Aí ela passa todo o processo de redemocratização de construção de direitos e hoje acho que ela está vivendo uma crise. A entrevista dela inteira é a demonstração de uma profissional em crise do ponto de vista da restrição severa de direitos e sobre como poder entrar a arbitrariedade na seleção socioeconômica dos profissionais da ponta não terem referências mais severas, mais rigorosas no sentido de poder orientar a seleção socioeconômica. Ela fala de uma angústia... [...] Acho que a angústia dela está tão grande

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que ela, inclusive isola a discussão teórico-política dessa ação profissional. Ela está decepcionada e está se transformando em sofrimento ético-político, nos dizeres da Bader,99 ou então sofrimento psíquico, porque ela fala que lá não existe a conversa entre os profissionais, não existe! A discussão política minguando e aí ela joga dizendo que para fazer uma seleção socioeconômica do jeito que está sendo feita não precisa de profissional. Ela perde de vista até a história da profissão. [...] É que ela também tem um olhar que {o acesso} é um direito e não tinha que ter muita discussão, se é um direito de todos não deveria ter seleção. Se é um direito não precisa da ação do assistente social. Ela está muito dura, muito rígida, talvez decepcionada de estar perdendo tanto espaço de trabalho e, infelizmente, parece que ela não caminha muito para a discussão mais ampliada da crise europeia, da crise do capitalismo. Hoje ela fica mais sucumbida, na verdade, até escrevi no relatório dela, ela está completamente contaminada pela crise das suas colegas que, não consegue estabelecer esse distanciamento.

Regina, que analisou a entrevista de Alice, disse:

–– A minha consegue, acho que ela chega, ela é mais politizada e ela coloca... Mas ela fala que os assistentes sociais têm vergonha, porque lá é ação social, e eles têm vergonha de falar que são da assistência social e isso incomoda os jovens profissionais. Ela vai dizer “mas há pessoas que precisam de um assistente social permanentemente para viver com um mínimo de dignidade sem termos expectativa de que vamos mudar sua condição de vida embora eles tenham direito a isso”. [...] A minha assistente social que é a Alice, ela fala que ela não faz seleção socioeconômica porque lá o recurso do medicamento é um recurso que tem para todos, mas mesmo nos limites que tem, em relação à da permanência no alojamento, ela vai dizendo que ela vai construindo alternativas com cada usuário dependendo das necessidades que esse usuário coloca. Eu acho que ela mostra uma satisfação de como ela faz isso, em fazer isso, inclusive ela fala “eu não mando para a Renda Mínima porque eles não vão ser selecionados e é para ficar aqui que a gente vai construindo alternativas”. Só que, ao mesmo tempo em que ela faz isso, ela fica ainda na pontualidade, a cada situação ela dá uma resposta construída com aquele usuário e eu acho que é isso que falta, tanto para eles quanto para nós; essa perspectiva de que como é que com as informações que nós temos dos usuários, podemos pensar em novas propostas coletivas, e eu acho que fica muito na necessidade de atender aquele usuário. Ela fala depois que não tem uma sistematização, não tem uma reinterpretação disso que poderia dar em uma outra coisa. A satisfação vem pelo tipo... Que ela avança, ela usa uma coisa que é assim “então você não é uma funcionária”. Eu acho que é isso, o assistente social que vai, que segue

99 Refere-se ao texto de Bader Sawaia (2004), intitulado “O sofrimento ético-político como categoria de análise da dialética exclusão/inclusão”.

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só o padrão, a burocratização do parecer... Ela não faz isso, mas ela também não dá um salto... De que ela tem uma possibilidade de sistematizar isso de pensar de outro jeito.

Isaura, que atua em uma universidade, assim se expressou sobre a fala de Fátima:

–– A minha já não é politizada e nem se importa com a teoria, ela fala isso muito claramente. E quando perguntada como foi a sua formação ela fala “não sei dizer rigorosamente nada, não leio sobre isso, não me lembro de ter aprendido isso. Aprendi com a legislação. A legislação diz o que eu tenho que fazer”. Ela percebe, ela fala que os recursos estão sendo reduzidos e que a situação que vai apertar por causa da crise, mas ela não problematiza a crise.

Eunice se manifesta em relação à entrevista de Luiza, dizendo:

–– Eu li a entrevista da Luiza e fiquei com muita vontade de conversar com ela. Por um lado ela me pareceu uma pessoa que tem um compromisso com a profissão, eu não conheço como está o Serviço Social em Portugal hoje em termos de projeto profissional, mas eu sei que a PUC contribuiu bastante com algumas mudanças, na medida em que foi lá levar o pós-graduação e tudo, mas eu acredito que não esteja pelo menos no projeto ético político no mesmo patamar que está o Brasil. [...] Mesmo sem conhecer, eu percebi na Luiza essa preocupação com o compromisso de que a profissão, embora ela não tenha falado isso claramente, de alguma forma contribui com a inclusão no sentido de garantir direitos sociais para a população. Eu senti um pouco isso na fala dela, mas, ao mesmo tempo, ela tem clareza que é um programa extremamente seletivo e eu fiquei impressionada com a pressão que ela fala claramente que os profissionais têm no dia a dia, a pressão da população em relação... Quer dizer, se eu estou excluído o assistente social acaba sendo culpabilizado e você é o responsável, então você às vezes não tem aquela perspectiva de como essa política está colocada no âmbito do Estado. Acho que a dificuldade é de trabalhar isso mais coletivamente, porque eles têm uma meta a cumprir e tem uma cobrança institucional pelo Estado e são fiscalizados e são sujeitos. Pelo que eu pude perceber, ela não usou esses termos, mas acho que até existe meio que uma auditoria para verificar se você está, de fato, cumprindo os requisitos ou os pré-requisitos e isso me pareceu um ambiente de muita pressão.

Graziela apresenta as semelhanças que percebe entre a situação exposta por Tília e a

realidade vivida pelos assistentes sociais brasileiros.

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–– [...] É que em certa medida a angústia na nossa categoria também existe lá. Ela fala de uma desorganização política dos profissionais e acho que a gente também aqui está vivendo, esse arrefecimento de organização política da categoria, seja via sindicato, seja via de algumas associações especializadas. Acho que o recurso que está vindo para a especialização e o mestrado para poder se dar conta... Agora foi criado o Fórum Estadual dos trabalhadores do Suas e está sendo criado o Fórum Nacional de trabalhadores do Suas. Em São Paulo ele está sendo puxado pela Psicologia e não pelo Serviço Social; é uma espada colocada na nossa cabeça, acho que tem questões semelhantes, embora tenha essas diferenças que foram colocadas entre a crise europeia e nós no Brasil.

Eunice, assim como Graziela, também se refere ao adoecimento do profissional ao

comparar duas realidades. Diante da crise e estresse vivido por Luísa, ela aponta várias saídas

possíveis que valem para toda a categoria profissional no Brasil e em Portugal, sendo que uma

delas se coloca como a única saída de enfrentamento que tem futuro. Trata-se daquela que

propõe uma atitude de resistência que se sustenta na organização política da categoria na

busca de respostas coletivas.

–– Comparando com algumas áreas aqui do Brasil, eu acho que o profissional que tem esse compromisso ele pode, ele tende a adoecer se não encontrar alguns espaços para refletir criticamente sobre essa prática e pensar em alternativas coletivas. Eu digo a partir da minha experiência no Judiciário, que a gente tem três saídas, você, o profissional que está na ponta: ou você banaliza e entra na dinâmica de estar cumprindo o que o Estado..., o Estado que quer que você esteja lá para fazer a inclusão e a exclusão e você passa a banalizar muitas vezes a vida humana quando você trabalha só com dados extremamente objetivos, ou você banaliza e burocratiza, às vezes, até como mecanismo de autoproteção. Não estou dizendo que eu concordo ou não com isso, mas a gente vê isso, embora a gente não faça seleção socioeconômica no Judiciário, mas você banaliza porque são tantas tragédias com as quais você tem que lidar, e com essa impossibilidade de acesso ao direito por parte da população. Ou você banaliza, ou você adoece — e aí a gente vê os mais diversos problemas de saúde tanto físico como mental — ou você resiste, e eu acho que a resistência passa pela pesquisa, por essa dimensão investigativa da profissão, e por uma organização política mesmo, acho que não tem outra saída. Lendo o trabalho dela, e até depois eu fui ver que algumas tinham uma militância em sindicatos, e fui ver de novo se era o caso dela, mas ela não tem, então você fica muito sufocada por essas exigências institucionais...

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No Brasil, de forma não tão violenta, as condições de trabalho profissional apresentam

traços parecidos aos de Portugal, porque aqui também há perdas de direitos, configurando-se

um retrocesso em relação aos direitos sociais conquistados, e intensificação da burocratização

e do ritmo de trabalho do assistente social de forma preocupante. A implementação da política

neoliberal adquire particularidades em cada país.

Isaura avalia e analisa de forma crítica o processo de banalização do atendimento que

vem se dando no Brasil quando diz que:

–– Vivemos um momento de grande retrocesso, especialmente, porque na Política de Assistência Social, por exemplo, os critérios estão dados e a entrevista [realizada com os usuários] é mediada pelo computador; não se conversa mais assim... O computador está no meio da conversa. Está tudo lá e você só preenche; e é [estudo] econômico. Tanto é verdade que quando a pessoa arruma emprego entra pela Rais, no Registro em Carteira, aí cai no sistema e o cartão é bloqueado; então é econômico. Só tem uma relação maior, uma entrevista, uma visita domiciliar quando há problemas relacionados ao descumprimento da condicionalidade. Arrumou emprego, violência, abuso, fora disso, é um estudo exclusivamente econômico.

Graziela concorda com a análise apresentada pelas demais colegas e também expressa

preocupações em relação aos impactos que o avanço da computação tem causado nos

atendimentos realizados nas organizações sociais.

–– Acho que ficou mais burocratizado do jeito que a Isaura está colocando, fica mais burocratizado e acho que estabelece desafios para o trabalho do assistente social no sentido de executar esse possível trabalho social, tanto que hoje em São Paulo tem uma discussão entre os assistentes sociais sobre o Suas [Sistema Único da Assistência Social], se exatamente, são eles que deveriam preencher o cadastro único porque o preenchimento é on line, mas ele não tem acesso ao perfil da população do seu distrito o que é exatamente contrário à perspectiva da política, porque a política propõe...[...] Neste sentido, eu concordo com Regina que reduziu, porque na verdade assim não se usa nem os critérios da pesquisa condições de vida do Seade, porque se usasse pelo menos estaria usando os indicadores para não trabalhar só com indicador de renda, mas estaria levantando os indicadores relativos à moradia, saúde, acesso a educação e não a simples cobrança de estar inscrito na escola e deveria ter mais do que isso, a qualidade da escola, permanência.

Isaura apresenta outro exemplo que do que vem ocorrendo no Brasil no cotidiano das

organizações sociais, que põe a prova o nosso senso de justiça e do compromisso do assistente

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social com os usuários e que é tratado na ordem institucional como se fosse “normal” atender

daquela forma.

–– É do mesmo jeito se você vai trabalhar e a sua renda aumenta. Outro dia contaram na assessoria que a gente fez em Diadema: a pessoa chegou, foi pegar o dinheiro do Bolsa Família e o cartão estava bloqueado aí ela foi no Cras, aí a assistente social entrou no computador e disse “porque o seu marido está trabalhando”. Aí a pessoa respondeu “sabe que ele foi embora ontem?” Não era verdade, mas o cara começou a trabalhar e no dia seguinte cai no sistema e o cartão é bloqueado. Quer dizer, não se respeita o tempo de experiência, não se respeita nem o cara receber o salário pelo menos. Esse sistema que eles acham bonito porque está interligado, não tem alma, não tem cor; não tem trabalho em cima disso.

Nessa situação, parece que é o computador que “adquire vida”, ao “decidir que o

indivíduo não irá mais receber o benefício, porque ele acabou de arranjar trabalho”, e mesmo

quando ainda nem recebeu o primeiro salário já é eliminado. Esse exemplo coloca em pauta

mais uma vez a necessidade de reflexão sobre as decisões profissionais diante do uso cada vez

mais determinante do computador que vem tornando supérfluas as decisões profissionais,

porque as “decisões” já estão programadas no sistema.

O uso da computação, que vem substituindo o uso de mão de obra e contribuindo para

o fechamento de muitos postos de trabalho existentes, chega hoje ao trabalho realizado pelas

organizações sociais nas quais os assistentes sociais atuam de várias formas e, portanto, tem

se colocado também na discussão da operação dos processos seletivos. Essa questão deve

merecer atenção cuidadosa da categoria, pois é situação relativamente nova no mundo e na

profissão e cada um a tem tratado do jeito que julga melhor, sem analisar mais globalmente as

implicações do uso desse recurso. É preciso a construção de formas coletivas para lidar, por

exemplo, com o sigilo profissional quando o computador se interpõe na relação entre o

assistente social e o usuário. Trata-se do trabalho morto que passa como que dar a direção ao

trabalho vivo. Coutinho (1972) explica que:

[...] a fetichização das relações humanas complexas (empresas ou Estados), que se tornam não uma objetivação e um instrumento dos homens, mas sim “entidades naturais” ou “coisas” das quais os homens passam a ser instrumentos, servidores e funcionários, e cujas finalidades e conteúdos não são questionados (COUTINHO, 1972, p. 28).

Diante do exposto, podemos visualizar concretamente como as mudanças que vêm se

operando no âmbito do capitalismo internacional na atualidade, configurando a etapa de

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globalização neoliberal, aliada à revolução provocada pelos avanços na computação, têm

remexido em todos os espaços da vida social de forma rápida e decisiva, dentre os quais

encontram-se os espaços sócio-ocupacionais da profissão.

O que se assiste no mundo é a busca desenfreada dos lucros por parte dos

representantes do capital, sob a hegemonia do capital financeiro, nesses tempos de

capitalismo neoliberal. Há um aprofundamento da miséria, quando se perdem direitos

duramente conquistados através da luta dos trabalhadores, além dos sérios danos que, a cada

dia, são infligidos às reservas naturais do planeta, colocando-o em sérios riscos de vida.

Nessa conjuntura, ocorrem avanços tecnológicos que representam verdadeiras

maravilhas quando vistos sob a ótica da história da humanidade, sobre a capacidade de

criação e transformação dos homens. Como essas novidades e conquistas, no entanto, não têm

sido usadas de forma proporcional à melhoria das condições de vida para todos nem com os

devidos cuidados, passam a se implantar trazendo muito sofrimento a significativa parcela da

humanidade. Refiro-me à reestruturação produtiva que produz, dentre outras consequências, o

fechamento de número significativo de postos de trabalho devido ao desenvolvimento da

robótica e da eletrônica, gerando e contribuindo para o desemprego estrutural.

Saber que um robô pode substituir o trabalho humano em atividades perigosas que

colocam a saúde humana em risco é uma boa notícia. Mas saber que a criação dessa

tecnologia fecha postos de trabalho, sem que nenhuma política social seja criada em função

dessa consequência, tem significado motivo de padecimento a uma parcela da humanidade.

As conquistas obtidas pela criação da tecnologia, quando apropriadas de forma

privada, vêm contribuindo para piorar e acirrar as desigualdades sociais.

As críticas aqui expostas não se dirigem propriamente aos avanços conseguidos pela

tecnologia, mas à forma de sua apropriação, uma vez que se fossem, de fato, usufruídos por

todos, poderiam levar toda a humanidade a ter que trabalhar menos e, assim, se beneficiar das

riquezas e belezas conseguidas para a melhoria a qualidade de vida de todos, que hoje não

estão disponíveis à maioria da população mundial.

No mundo capitalista no qual vivemos, qual é o futuro próximo de uma parte da

humanidade que depende do trabalho para viver, diante de uma realidade que não há trabalho

para todos e no qual o acesso aos subsídios estatais tem diminuindo, através da política social

que vem se focalizando?

Ao mesmo tempo em que nunca antes na história da humanidade existiram tantos

recursos e tecnologias disponíveis no sentido de responder às necessidades humanas,

assistimos hoje a um desamparo assustador, quando amplos segmentos de indivíduos estão

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completamente abandonados à sua sorte, em formas de viver que beiram a barbárie. O

individualismo brutal faz com que cada um vá ficando solitário e isolado, tendo que se

responsabilizar sozinho pelas condições de sua vida.

Parece que num contexto histórico em que os públicos mais vulneráveis precisam mais do que nunca de estabilidade, segurança e de processos de intervenção e acompanhamento longos e multidimensionais, há uma ideologia hegemônica que faz a apologia do imediatismo e que inibe o desenvolvimento de uma intervenção mais alargada e profunda. Persiste um paradoxo que lado a lado formas de acção ultrainstrumentais e um insistente discurso da individualidade, da construção conjunta de narrativas e da importância de reconstruir e/ou reforçar o “trabalho” sobre as identidades (BRANCO; AMARO, 2011, P. 670).

Esse processo histórico internacional, contudo, precisa ser entendido nas suas

particularidades e singularidades, uma vez que, embora tenha uma natureza de abrangência

universal, não se expressa do mesmo jeito e com a mesma intensidade em todos os lugares.

Em cada parte, adquire determinadas características que necessitam ser apreendidas, sob pena

de deturpação do entendimento.

As conquistas obtidas pela computação têm rebatimentos em todas as esferas da vida

social e, no trabalho dos assistentes sociais. Têm sido utilizadas nas organizações sociais para

o controle social sobre o trabalho dos profissionais e dos usuários que se utilizam dos serviços

prestados e para o aumento da produtividade do trabalho, quando são estabelecidas

claramente as metas a ser cumprida por cada profissional, desconsiderando o processo dos

atendimentos realizados ou a qualidade deles.

Em Portugal, as transformações operadas no capitalismo internacional e no mundo

trabalho adquirem determinadas formas, no âmbito da denominada “comunidade europeia”,

acabando por colocar a profissão em lugar complicado quando o acesso ao direito social vai

perdendo o seu caráter mais universalizante e vai se focalizando através da realização da

prova de recursos. Ou seja, quanto àquilo que era um direito, agora o indivíduo tem que

provar que detém méritos de pobreza e que se encontra impossibilitado de trabalhar.

O profissional, nesse contexto de verdadeiro retrocesso, passa a se constituir em porta-

voz de más notícias, quando se torna o responsável para operar a seletividade de acesso,

incluindo a cobrança da contrapartida, e aquele que dá a notícia ao usuário do seu

desligamento do benefício.

Através desse processo, o RSI se focaliza, porque, se antes tinha traços

universalizantes, hoje podemos visualizar claramente que o horizonte é o de atender somente

determinados segmentos bem delimitados dos pobres.

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No Brasil, a política de assistência social tem expandido o número de indivíduos

atendidos. Os assistentes sociais têm sido os porta-vozes de boas notícias aos usuários, que

acabam por ficar satisfeitos com o benefício, diante da miséria em que vivem e apesar de

benefícios tão irrisórios.

O processo de trabalho do assistente social em Portugal e no Brasil, no entanto, tem

muitas semelhanças.

Atualmente, nos dois países tem sido dada ênfase ao produto quantitativo do trabalho e

ao cumprimento de metas, em detrimento do processo e da socialização de informações com

os usuários, os quais têm sido atendidos individualmente. A tela do computador e os papéis

comprobatórios ocupam o centro da relação entre profissional e usuários, acabando por levar

aquele a desfocar o atendimento, ao substituir o atendimento que desvenda as expressões da

questão social contidas na demanda trazida por estes, pelo atendimento de caráter burocrático,

centrado no resultado. Essa forma de intervenção “estreita de tal forma o horizonte para a

prática que, em última instância, esvazia o Serviço Social da sua alma, aspirações e propósitos

ético e políticos” (BRANCO; AMARO, 2011, p. 677).

Diante desse quadro sócio-histórico, resta-nos, enquanto membros de uma categoria

profissional e cidadãos, nos perguntar: que fazer e como enfrentar os sérios desafios que estão

colocados aos trabalhadores em geral e aos assistentes sociais em particular, como

decorrência das transformações se operam no mundo do trabalho e nas políticas sociais?

4.4.8. Como se deu a qualificação das entrevistadas para a realização da seleção

socioeconômica

Neste item, está em pauta a formação recebida pelas entrevistadas para a realização da

seleção socioeconômica situada no campo de instrumentalidade profissional. Trabalhamos

com a hipótese de que as entrevistadas não haviam estudado tal assunto na graduação, uma

vez que sobre ele há apenas pequenos fragmentos na produção bibliográfica do Serviço

Social, conforme já foi tratado. Essa premissa se confirmou nas entrevistas realizadas,

cabendo-nos, então, diante desse fato o equacionamento da questão sobre onde buscaram os

fundamentos para a sua realização.

Alice se manifestou, dizendo:

— Não aprendi... Aprendi na pratica, mas, sobretudo, no Mestrado em Políticas Sociais. [...] as várias disciplinas do mestrado e o meu estudo

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permanente, e estar permanentemente a estudar ajuda-me, portanto, a ler e a ver. Acho que é muito importante o aprofundamento teórico destas realidades para a compreensão do significado das coisas; o significado do que é o Estado e o que são as Políticas Sociais, o que são os critérios, portanto, toda esta aprendizagem. Sobretudo se for feita numa perspectiva crítica, é fundamental para depois lidarmos com este tipo de prática. [...] conhecer as políticas sociais, conhecer o seu significado, conhecer as normas, conhecer a história da Ação Social, a história da nossa profissão. Acho que é extremamente importante conhecer a história da Ação Social, essa coisa bizarra que antes era a Assistência Social e agora já não é Assistência Social, agora é Ação Social, que no fundo é a mesma coisa. E daí por que as pessoas terem medo e vergonha de dizer que estão na Assistência Social? Isto incomoda imenso, sobretudo, os jovens profissionais.

Ela entende que é a formação abrangente do profissional na perspectiva crítica que deve

subsidiar a prática profissional, inclusive a realização da seletividade de acesso aos serviços e

benefícios sociais, sendo que aprofundou essa compreensão destacadamente no mestrado.

Os fundamentos da profissão, do Estado e da política social são referências que

possibilitam ao profissional fazer leituras da realidade próxima e ver para além das

aparências, e a partir daí intervir. Ou seja, a entrevistada não se refere a nenhum elemento

específico da formação no âmbito da instrumentalidade profissional, pois considera que são

aqueles fundamentos que iluminam as leituras que faz acerca das situações que se apresentam

a ela no cotidiano de seu trabalho.

Alice reconhece, entretanto, que os profissionais, para atender as pessoas e fazer um

bom processo seletivo, devem ser formados e preparados, embora não soubesse, naquele

momento, explicitar no quê. A reflexão apresentada refere-se à necessidade de formação no

âmbito teórico e ético-político para indicar os compromissos com quem trabalhamos, para que

possamos nos enxergar do mesmo lado de quem atuamos, ou seja, como trabalhadores

assalariados que se propõem a defender interesses dessa classe. Ela se refere à necessidade do

profissional não julgar moralmente as pessoas com as quais trabalha.

— Eu acho que eu não sei como hei de explicar, isto educa-se. É algo que se educa e fundamentalmente vem de dentro, tem a ver com a relação e fundamentalmente com o acreditar nas pessoas. Nós nos julgarmos... Nós sempre pensamos, eu sempre pensei durante toda a minha vida profissional, se calhar tu tens um trajeto de vida algo parecido ao meu [dirigindo-se à entrevistadora], que eu podia estar, realmente, estar no lugar daquela pessoa que atendo como assistente social. Se não tivesse conhecido aquela outra pessoa, se não tivesse sido aquela circunstância ou outra. Ela, que atendo não é diferente de mim.

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Entendo que sua fala expressa a necessidade de o profissional pensar e repensar

constantemente seus valores e compromissos. Nos cursos de Serviço Social, deve haver

atividades que permitam ao aluno se rever e formar valores condizentes com a defesa dos

interesses dos usuários dos serviços e benefícios sociais, porque isso pressupõe educação e

treinamento, uma vez que não ocorre por geração espontânea, sendo, portanto, uma pauta a

ser claramente trabalhada na formação do assistente social.

Fátima reconhece a necessidade da pesquisa realizada sobre o fazer profissional, do

estudo e da reflexão constante:

— Quem está na prática, assoberbado, com as situações e com as coisas... Trabalha-as e fá-las, mas sem as pensar, sem as teorizar e às vezes, sem pensar sobre as coisas. [...] porque, muitas vezes, nós estamos é preocupada que os alunos recebam as bolsas, porque têm as escolas a pedir os pagamentos das propinas, porque têm de comprar os livros, porque não sei o quê. E nós andamos aqui a correr, a despachar as situações e, muitas vezes, fazemos isso tudo... E depois não temos tempo para analisar o porquê, e o para quê e o como. E esta legislação que temos, enfim, tem alguns aspectos que eram importantes de serem teorizados, serem avaliados e, se calhar, nós depois acabamos por não ter tempo para os analisar também.

Essa fala da entrevistada expressa a necessidade de reflexão sobre a criação de

alternativas de respostas profissionais no Serviço Social para responder às demandas

colocadas, através de pesquisas com as devidas socializações de seus produtos, para subsidiar

a ação dos profissionais que atuam diretamente com a população, pois diante as inúmeras

demandas colocadas pelos usuários e pelas organizações sociais tem impedido um processo

de reflexão permanente, condição para um trabalho na perspectiva crítica. Implica, portanto,

em haver na categoria pesquisadores que se dediquem ao deciframento teórico do cotidiano

visando informar a construção de respostas profissionais.

Ao contrário do que pensa um segmento da categoria profissional — que basta ter

domínio dos fundamentos para que haja um trabalho comprometido com os interesses dos

usuários —, a reflexão contida nesses depoimentos indica que é preciso treino e aprendizagem

para que o profissional relacione teoria e prática. Sem domínio e exercício da mediação como

categoria do método que possibilita essa relação, há o reforço da falsa ideia de que a teoria

não tem relação com a prática. Diante disso, os profissionais passam a criar, por conta própria,

uma teoria da prática que, geralmente, vem para legitimar as suas ações e que, ao final, acaba

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por reforçar o pensamento vigente — que é o senso comum, pensamento predominante no

cotidiano. Ou melhor: sem a apreensão dos fundamentos sócio-históricos, não se faz prática

séria e comprometida; mas apenas com esses fundamentos, sem a detenção de meios para

operacionalizá-los, não há avanços em uma profissão de caráter interventivo.

Fátima reforça essa ideia, ao afirmar que aprendeu a realizar a seleção

socioeconômica na prática, através do estudo da legislação e da participação em eventos

organizados pela Associação Profissional dos Assistentes Sociais e de universidades.

— Não lhe sei dizer rigorosamente nada; não tenho me dedicado a fazer leituras sobre estes aspectos e não lhe sei dizer. [...] Olhe, aprendi a partir da legislação, aquilo que ela dizia era aquilo que eu que tinha que fazer quando estava lá no outro serviço. Para mim é, a legislação é que dizia o que é que eu tinha que considerar e o que é que eu não podia considerar na tal análise socioeconômica do agregado. Não tenho feito leituras nesse aspecto... [...] Não me lembro de nada na faculdade sobre esse aspecto. [...] acho que foi muito mais na prática. [...] Fui à muitas coisas organizadas pela Associação e por algumas universidades também.

Essa fala geralmente recorrente no Serviço Social nos leva a refletir sobre o que

significa um profissional dizer que aprendeu o exercício de uma atividade profissional na

prática. Sem desconsiderar a experiência como elemento fundamental para a nossa

sobrevivência, é necessário apreender o significado dessa afirmação. Aprender na prática

pode significar ato voluntário individual que depende da boa vontade do sujeito, assim como

pode significar aprender com a prática de outros que têm a prática, esta entendida como

sinônimo de saber fazer; ou a aplicação de sucessão de procedimentos.

Quando chamada para indicar como um assistente social poderia se preparar para a

realização da seleção socioeconômica, Fátima declarou:

— Não sei, sabe! Eu acho que a dica principal, é que não fiquem limitados pelas regras e pelas formulas, porque muitas vezes aquelas regras e aquelas fórmulas, não dizem exatamente o que é a situação. É importante falar com as pessoas e é importante perceber, exatamente, perceber qual é a postura do próprio utente face àquilo que está a pedir. Ele próprio considera que aquele apoio é ou não um apoio importante para ele? [...] Partirmos do princípio que a pessoa que está à nossa frente, está ali, porque efetivamente tem necessidade de um apoio para, neste caso, prosseguir os seus estudos e que tem de ser tratada com respeito, independentemente, daquilo que as regras, daquilo que aquela fórmula que temos ali para aplicar. E pode até acontecer que a fórmula diga que aquela pessoa não tem direito, e nós

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até acharmos que tem. E aí, teremos de trabalhar a situação e tentarmos encontrar as justificativas para lhe poder atribuir um apoio, que nem sempre é fácil, mas a gente vai conseguindo atribuir a alguns.

Importante destacar que a entrevistada indica que, embora tenha aprendido a realizar

seleção socioeconômica, estudando a legislação que coloca regras, critérios e procedimentos,

ela mesma reconhece que é preciso ir além desta para realizar leituras sobre o que vive e sobre

as situações apresentadas pelos demandantes do serviço ou benefício social. É preciso, portanto,

ter autonomia e saber realizar leituras das singularidades das situações com que se defronta.

Quando o profissional se pauta na sua atuação somente pelas regras e procedimentos

estipulados pela organização100, reforça o seu papel de funcionário da organização que paga o

seu salário. Para ir além e se colocar também como agente de uma profissão de forma crítica,

é preciso usar o saber, a teoria que a profissão veicula através de suas instâncias organizativas

e de formação da categoria.

Luísa, em seu depoimento, reconhece que sua formação foi pobre. Acrescenta que,

desde que se formou, já participou de vários eventos de curta duração propiciados pela

organização onde trabalha. Mas entende que não é necessário ter muita formação para realizar

seleção socioeconômica, embora na entrevista concedida não tenha sustentado essa ideia em

face das tantas e tão importantes e complexas questões levantadas e tratadas por ela.

— Muito pobre a minha formação. Se calhar, estou a subvalorizar-me, mas as várias formações têm sido formações oferecidas em termos organizacionais, e oferecidas pelas várias formações em diversas áreas; são palestras, são formações de dois ou três dias. Embora, em relação à seleção socioeconômica, essa do meu ponto de vista, objetivamente essa, não carece de grande formação porque no manual está escrito como se faz, é uma questão de somar e subtrair, é a questão objetiva, porque depois a questão subjetiva, que tem a ver com a minha sensibilidade, que tem a ver com a minha compreensão da complexidade que pode trazer-me informação, que um problema tem várias causas, essa formação obviamente, tive-a inicialmente, através da licenciatura. Tenho de alguma forma, feito várias formações.

Considero que Luísa precisa ser escutada, porque representa uma parcela da categoria

profissional que deseja realizar um bom trabalho e se recicla basicamente através de cursos de

pequena duração propiciados pelas organizações em que trabalham. Embora seu depoimento 100 Entender as organizações que contratam o trabalho profissional como espaços sócio-ocupacionais da profissão tem sido estratégia importante no sentido de o profissional poder se colocar a partir da profissão e assim lhe possibilita enxergar o que realiza para além de um funcionário. É preciso entender o assistente enquanto funcionário e agente de uma profissão, ao mesmo tempo em que se tem como horizonte a apreensão crítica.

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diga o contrário, ela não reconhece nesse momento da entrevista que se utiliza das referências

da formação na realização da seleção socioeconômica, ao dicotomizar a objetividade da

subjetividade presentes na ação profissional.

Em relação às fontes nas quais busca se informar sobre o que acontece no mundo e na

profissão, ela diz:

— Já li mais [referindo-se aos jornais]. Leio o jornal de fim-de-semana para estar atualizada, vou vendo o telejornal, mas de fato não sou uma teórica, não utilizo para além daquilo que são os manuais das formações, das reflexões que faço. Em termos das formações, para, além disso, eu não tenho um hábito... A não ser por uma questão muito objetiva, ou que seja preciso para fazer determinado trabalho. Então, eu vou buscar alguma bibliografia para poder fazer aquele trabalho pontual, mas, de fato, é uma necessidade muito sentida, mas que tenho dificuldade neste momento em poder [palavra indecifrável]. O Vicente de Paula Faleiros [autor brasileiro] está muito presente porque há este dilema constante...

A fala de Luísa sugere a necessidade de pensarmos e investirmos nas formas de

trabalhar e atingir esse segmento de profissionais que no Brasil, como constatado

empiricamente, também se mostra significativo.

Merece destaque que Luísa e seus colegas recebem supervisão sistemática de

professores da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa, mas parece que isso não tem

animado muito as suas companheiras de trabalho, pois nem sempre o envolvimento é

satisfatório e depende da motivação de cada profissional aproveitá-lo.

— Nós somos 20 ou 23 ou 24 [assistente sociais], não sei precisar, mas depois também depende da forma como cada um está na profissão, se está para ser profissional e receber o seu vencimento; se está para se interpelar; se reflete, se não reflete; se quer fazer alguma coisa para além daquilo que está a fazer. Por exemplo, nesta supervisão as pessoas não se mostraram. De alguma forma, não estão muito disponíveis para falar da sua prática. E depois há uma outra componente que é aquilo que são as nossas obrigações, que nós temos que cumprir enquanto profissionais, e que são os nossos objetivos profissionais, que é a quantificação de uma parte do nosso trabalho, porque a outra nunca é quantificada; isso é outro desespero outra inquietação.

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Segundo Tília, a ação do assistente social no RSI, do jeito que vem sendo realizada

hoje, está aquém do que pode um profissional, porque trata a seleção socioeconômica somente

do ponto de vista financeiro:

— Não é preciso aprender isso, também é uma conta de somar, dividir e de subtrair e a questão não é essa, para mim não é uma questão de termos capacitação ou não. A minha questão hoje, porque a realidade quando me formei, foi há quase 40 anos, tenho 61 anos, portanto, há quase 40 anos, o público também era diferente porque cá em Portugal vivíamos numa ditadura, os pobres não tinham noção do direito. Há muita coisa que mudou, não sei no Brasil se as pessoas têm noção de têm direitos, [...] mas muda muito pouco na relação... As pessoas exigem agora o dinheiro e muitas vezes a colega não tem; é que a questão é essa, é que se houvesse para todos, tanto fazia.

A entrevistada questiona o tempo todo, na entrevista concedida, a participação do

assistente social na seleção de acesso ao direito ao RSI: se, de fato, fosse universal, não

deveria haver seletividade; e, se há seletividade, os assistentes sociais têm que estar fora dela.

Diante do reconhecimento de que não foram preparadas na graduação para fazer

estudos socioeconômicos de corte avaliativo, cada uma das assistentes sociais portuguesas

entrevistadas lidou com esse fato do seu jeito.

Alice reconhece que foi fundamental ter realizado o mestrado para entender o sentido

da profissão e das políticas sociais numa perspectiva crítica. Ela não explicita a necessidade

da mediação para articular teoria-prática, embora toda a sua fala seja no sentido da

necessidade de haver tal articulação. É preciso considerar que ela, na qualidade de professora

de Serviço Social, tem apreensão crítica acerca da sociedade e da profissão, o que lhe dá,

pessoalmente, a condição dessa apreensão.

Fátima diz que aprendeu a fazer seleção socioeconômica estudando as leis e os

regulamentos, julgando ser isso suficiente, embora em outros momentos da entrevista tenha

reconhecido que é preciso ir para além deles. O risco presente na posição defendida por ela é

o assistente social encarar essa atividade só na perspectiva de funcionário da organização

onde trabalha, o que pode comprometer uma postura crítica, necessária nas decisões

profissionais, como as que envolvem os processos seletivos de acesso aos serviços e

benefícios sociais. Ela tem se esforçado para construir respostas de acesso ao direito à bolsa

de estudos.

Tília e Lurdes, ao considerar que a seleção envolve somente o trato da renda do ponto

de vista estritamente numérico, são de opinião que não é preciso preparo profissional para

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realizá-la. É preciso, no entanto, considerar que as competências e atribuições profissionais

sempre exigem preparo e qualificação do profissional para a leitura das situações e o manejo

dos instrumentos de sua operação. E a seleção socioeconômica pode se pautar em outros

indicadores que vão além do tratamento da renda.

Parece que em Portugal é muito utilizada a supervisão pós-graduada do profissional

pelas organizações sociais como forma de qualificação profissional. Tília atua como supervisora

de profissionais, e Luísa, atualmente, recebe supervisão orientada por professores universitários.

Percebi em todas as entrevistadas a valorização da prática reflexiva e competente, sendo a

supervisão importante estratégia de qualificação profissional nessa direção.

No Brasil, podemos perceber empiricamente que tudo aquilo que o profissional não

aprendeu na sua formação regular na graduação tem eco na supervisão como caixa de

ressonância de dificuldades e lugar que ajuda o profissional a formular respostas profissionais

para as questões que o afligem no seu cotidiano profissional. Daí a necessidade de

qualificação de supervisores para a realização dessa atividade para que essa atividade

contribua para a formação do profissional crítico e comprometido e não seja vista

simplesmente como lugar de criação de respostas de emergência e trabalhe com

conhecimentos de segunda linha. A atividade de supervisão merece ainda ser mais bem

pesquisada no Serviço Social brasileiro no âmbito de sua forma e conteúdo, assim como das

concepções de instrumentalidade que veiculam.

Neste país, a supervisão como forma de formação profissional pós-graduada ainda se

põe como reivindicação da categoria em alguns de seus segmentos, em especial daquele que

lida com situações de violência.

As entrevistadas brasileiras gostaram de relembrar da sua formação nos cursos de

graduação em Serviço Social e trataram do assunto com certo humor.

Isaura diz que não aprendeu especificamente a tratar da seleção socioeconômica na

sua formação, mas que em “Serviço Social de Caso” aprendeu a realizar estudos sociais,

destacando os fundamentos que lhe davam sentido na época. Ou seja, implicitamente diz que

encontra referências para a sua realização nessa disciplina na qual aprendeu a realizar o

estudo socioeconômico.

— Eu me formei em 1967 e a gente aprendia o Serviço Social de Caso com a professora Nadir [Kfouri] e a professora Sonia e eu não tinha [a seleção socioeconômica] na disciplina. O estudo socioeconômico era um destaque, e a gente aprendia a fazer o estudo social muito baseado ainda nas possibilidades das pessoas, na promoção humana, como

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promover as pessoas, e aí conhecer quais eram as condições das pessoas para poder promover as pessoas. A gente perguntava na época como era um homem promovido, a gente queria saber como que podia dizer que promovia. A gente aprendeu lá o que era o bem material, o que era a possibilidade de saída daquela situação, o que era o recurso que você poderia dar para alavancar a pessoa. Ainda o texto e o subtexto era ensinar a pescar; a gente aprendia a dar benéficos que ajudassem a alavancar.

Regina reforça na entrevista essa fala e diz que a seleção socioeconômica apareceu na

sua vida quando se iniciou na prática e teve que lidar com ela.

— Eu me formei em 1973 pela PUC de Campinas. Então, tinha uma preocupação, sim, com o estudo social que a gente tinha vários semestres de estudo do Serviço Social, mas não exatamente com a seleção socioeconômica. A seleção socioeconômica apareceu na minha vida quando eu fui para o trabalho com essa conotação, quando eu fui trabalhar na Unicamp, que era em um hospital público.101

Aqui, como já aparecera na fala das portuguesas, a realização da seleção

socioeconômica vem sendo considerada e tratada pela profissão como atividade que diz

respeito unicamente à prática; nem no âmbito do ensino do Serviço Social de Casos foi tratada

de forma clara. A prática, quando considerada em si mesma, retirada da historia que lhe dá

sentido e utilidade, torna-se questão da cotidianidade e, portanto, passa a ser tratada na sua

imediaticidade, superficialidade e espontaneidade, conforme já tratei antes.

Graziela reforça a ideia de que se aproximou dessa atividade através da prática,

considerando que recebeu no curso de graduação fundamentos teórico-políticos que não lhe

deixavam dúvidas sobre como deveria proceder. Ou seja: coube a ela fazer a relação teoria-

prática e a direção de sua ação.

— Então, a seleção socioeconômica eu não tive com grande ênfase [referindo-se á formação universitária], do jeito que vocês duas estão colocando [referindo-se a Isaura e Regina]. A discussão era mais de organização política da população, era outro momento. Como é que você tinha que sair da faculdade como um agente transformador da sociedade, essa discussão do estudo socioeconômico era seleção dos miseráveis entre os miseráveis. Eu fiz isso no meu período de estágio. Eu fiz três anos e meio de estágio na Prefeitura, antiga Cobes [Coordenadoria do Bem-Estar Social da Prefeitura Municipal de São Paulo] que a Aldaíza [Sposati] era coordenadora geral, e aí o que eu

101 A entrevistada refere-se ao Hospital de Clinicas da Universidade Estadual de Campinas, que se constitui em um hospital-escola mantido pelo Estado.

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fiz foi o que se estava executando na política, trabalhando principalmente com a população que vivia em situação de risco, que tinha sofrido enchente, que estava morrendo de fome, vítima de desabamento. [...] É evidente que minha aprendizagem aqui no Curso de Serviço Social era sempre para usar critérios para dar prioridade a quem tivesse muito menos, garantir o acesso deles, tanto para encaminhar para abrigo como para qualquer outra situação. Eu acho que no decorrer do tempo e depois na docência e também no exercício profissional, acho que os dois começam a ficar juntos.

É preciso reconhecer que há muitos profissionais que conseguem fazer um trânsito e

uma relação entre teoria e prática. A entrevistada aponta também que sua reflexão sobre a

seleção socioeconômica tem sido estimulada pelas supervisões que vêm ministrando a alunos

e profissionais que trazem desafios sobre a sua operação. Ideia que reforça o argumento de

que a seleção de acesso aos serviços e benefícios sociais tem se constituído na profissão como

atividade de competência do assistente social e que os seus desafios são resolvidos na prática

através ou sem de supervisões.

— Talvez eu tenha mais proximidade com essa discussão da seleção socioeconômica através de supervisão dos alunos, de profissionais e da parceria que eu tinha com outros profissionais, dessas seleções de massa do BPC, do Bolsa Família, dos programas de distribuição de renda.

Eunice reforça a ideia do grande peso que teve na sua formação o estágio como forma

de inserção do aluno no exercício profissional. No seu caso específico, a prática se constituiu

em fonte de politização e de grandes descobertas, o que acabou por colocá-la em confronto,

na época, com a direção conservadora do curso de Serviço Social que frequentava; chegando

mesmo a ser punida e reprimida pelo jeito combativo como passou a se posicionar, tendo em

vista os compromissos políticos que assumira. Em sua fala, podemos perceber que foi através

do estágio, através de suas “professoras da prática”, suas “supervisoras de campo” que se

constituíram suas mais densas e fortes referências da formação profissional. Seu depoimento

nos remete a pensar sobre a decisiva importância de cuidar para que nossos alunos hoje

possam ter referências positivas na formação através do estágio.

— Eu me formei na PUC de Campinas em 1979, você imagina o que estava acontecendo nesse país. De 1976 a 1979 o curso de Serviço Social que era dirigido pelas missionárias de Jesus Crucificado já tinha sido incorporado à PUC de Campinas, mas ainda em 1979 foi o último ano que elas estavam na direção, com um contrato; elas ainda ficaram 10 anos na direção e eu peguei o último período delas na direção, e foi

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um período complicado porque era uma faculdade que não estava acompanhando o debate que já vinha acontecendo, não tinha esse debate lá porque eram extremamente conservadores. Dentro da visão social de mundo delas, procuravam fazer as coisas “bem feitas”. Eu estudei Serviço Social de Caso, de Grupo, de Comunidade. [...] E eu entrei no ano seguinte e eu comecei nesses processos dos grandes movimentos sociais que levaram à abertura lenta e gradual. [...] Mas eu tive o privilégio de fazer o estágio, embora fosse na Prefeitura de Valinhos, mas eu tive no estágio o contato com aquela literatura que já tinha Natálio Kisnerman, Boris Alexis Lima, aquelas pessoas [que são autores latino-americanos] que a gente não via na faculdade, Paulo Freire, nós tínhamos no estágio... esse movimento atual da Abepss tentando qualificar o estágio eu acho que é fundamental.

A entrevistada destaca com muito gosto como se dava as atividades no seu estágio e

na supervisão que a qualificou para a ação competente e compromissada com os interesses

dos usuários dos serviços sociais. O respeito e a admiração sentidos por Eunice diante das

supervisoras de campo fez delas referências positivas, gerando um clima cordial e solidário no

processo educativo, assim marcaram a sua vida.

— Eu tinha toda semana supervisão grupal e individual, eu tinha que fazer relatórios de entrevistas, grupos, assembleias, eu fazia estágio com as comunidades num bairro de Valinhos eu tinha uma superviso direta e uma indireta, porque a gente foi ficando muito próximas, as supervisoras eram pessoas muito envolvidas com os movimentos sociais, com as comunidades eclesiais de base. [...] Nossa, eu falo até hoje, eu tenho amizade com as minhas supervisoras até hoje, uma delas se aposentou e foi para o MST trabalhar nas relações internacionais e a outra foi a Isalene, prefeita de Campinas. A Isalene era supervisora indiretamente, no trabalho interdisciplinar e a gente foi pegando amizade e ela fazia a supervisão “indireta”; a Dulcineia que foi para o MST era minha supervisora direta. [...] Para mim sim, eu falo isso até hoje com a Dulcineia e ela diz que é besteira minha, eu falo o quanto ela foi importante na minha formação e é desde a visão política como a questão do fazer mesmo. Eu lembro que eu tive que comprar uma máquina de datilografia porque ela não aceitava relatórios manuscritos e eu tinha que fazer e refazer os relatórios até ter qualidade. Então era de uma exigência que no primeiro momento eu achava que era demais, mas que foi ótimo, havia um compromisso do supervisor com a formação. E na supervisão grupal, que era uma outra assistente social que coordenava, toda a semana a gente tinha que ler um desses textos desses autores e debater e eu ia fazendo um confronto do que eu tinha na Universidade e o que eu tinha no estágio, envolvida com o movimento estudantil, com o movimento social que na época em Campinas começava a ter um movimento social grande da população dos bairros da cidade. Tudo isso foi formação, minha formação não foi só lá dentro dos bancos escolares, ainda bem, e tive muito embates na

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Universidade porque eu não aceitava e, na época, vendo agora eu acho q não deveria ter exagerado, mas quando você é estudando você está querendo que as coisas aconteçam muito rapidamente.

Na época, o que aprendia no estágio entrava em crise com a perspectiva conservadora

do curso de graduação que frequentava, gerando um ônus a ela, pois passou a ser discriminada

e punida por suas posições quando o seu TCC embasado em Paulo Freire foi mal avaliado e

mesmo reprovado pela direção da faculdade. Mas, olhando e avaliando hoje tudo o que viveu

e aprendeu, Eunice diz:

— Eu paguei um preço por aquilo, mas eu não me arrependo, era um compromisso daquele momento histórico e da formação, eu tinha uma formação na faculdade, uma formação no estágio e a formação no movimento social, nas primeiras discussões do PT a retomada a Associação Profissional dos Assistentes Sociais do Estado de São Paulo... [...] Eu fico emocionada falando.

Seu interesse e sua dedicação à pesquisa sobre os laudos, os pareceres e os estudos

sociais, no entanto, tiveram início mais tarde, quando passou a trabalhar no Judiciário e se

deparou com a falta de preparo dos profissionais para lidar com questões tão sérias e

delicadas, quando tinham que emitir pareceres que definiam o futuro da vida das pessoas.

Começou, desde então, a querer entender o poder profissional e outras tantas questões

envolvidas, no sentido de realizar uma prática mais respeitosa e solidária com as causas dos

que vivem do trabalho. Ou seja, a prática na sua formação, entendida na sua possibilidade de

transformação, foi e tem sido a sua fonte inspiradora que a levou à pesquisa e depois, à

docência. Referindo-se ao Judiciário como espaço sócio histórico da profissão, ela disse:

— [...] você tem uma instituição que é da “natureza” dela lidar com o poder sobre a vida das pessoas, ela lida com decisões em tese para garantir, aplicar a justiça, e o profissional, no caso, assistente social, psicólogo, eles vão dar..., na maioria das vezes, um relatório social ou o laudo social vai dar base para um decisão judicial, vai envolver vida de crianças, de adultos, famílias, idosos e aquilo para mim era muito complicado. Aí eu decidi voltar a estudar, já que continuaria sendo assistente social mesmo, então decidi estudar, tentar ver e explicar esse tipo de trabalho para contribuir com o trabalho, porque daquela maneira, pelo menos como eu via naquele espaço... É claro que tinha exceções, em outros espaços, mas naquele local em que eu estava era bastante complicado, foi aí que eu vim para o mestrado para estudar o Serviço Social no Judiciário; como diz a professora Miriam, da angústia ao método, e foram essas angústias que me levaram a estudar.

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Com a participação das entrevistadas, podemos perceber os diferentes atalhos

percorridos por elas e como cada uma, ao seu modo, foi criando respostas e desse modo se

qualificando para tratar da seleção socioeconômica, que representam jeitos de lidar da

profissão em Portugal e no Brasil, no entanto, a reversão do quadro pintado em breves traços

poderá se dar se as respostas às lacunas existentes forem tratadas e construídas coletivamente

através do debate e da pesquisa no âmbito da instrumentalidade profissional.

4.4.9. Os desafios do ensino da instrumentalidade profissional em tempos adversos

A formação profissional do assistente social vem merecendo atenção e tratamento

cuidadoso pela categoria dos assistentes sociais desde as suas origens no Brasil. Porém, no

momento atual, com a mercantilização do ensino superior, que tem gerado uma proliferação

assustadora de faculdades de qualidade duvidosa e com o avanço da tecnologia que permitiu a

criação dos cursos à distância, esse assunto, mais do que nunca, tornou-se pauta que fervilha

constantemente nas instâncias organizativas da profissão, destacadamente na Abepss e no Cfess.

Esses fatos, aliados e inseridos em um quadro sócio-histórico de grandes

transformações que afetam o mundo do trabalho e que redefinem o papel do Estado e das

políticas sociais, impõem novas demandas à profissão, que vão assim acentuando os desafios

colocados à atuação e à formação profissional na perspectiva crítica, se tomarmos por

referência as atuais diretrizes curriculares de Abepss. Ressalte-se que esses novos cursos de

Serviço Social, realizados por unidades de ensino não filiadas à Abepss, acabam por colocar

em risco os patamares de qualidade que obtidos pela categoria desde a década de 1980.

A formação do bacharel em Serviço Social, assumida e defendida pela Abepss na

atualidade, pauta-se em um perfil com os seguintes traços:

Profissional que atua nas expressões da questão social, formulando e implementando propostas para seu enfrentamento, por meio de políticas sociais públicas, empresariais, de organizações da sociedade civil e movimentos sociais. Profissional dotado de formação intelectual e cultural generalista crítica, competente em sua área de desempenho, com capacidade de inserção criativa e propositiva, no conjunto das relações sociais e no mercado de trabalho. Profissional comprometido com os valores e princípios norteadores do Código de Ética do Assistente Social (BRASIL, 1999).

Tomar esse perfil como referência e horizonte do ensino e formação do bacharel em

Serviço Social envolve a formação do aluno como um intelectual e não como um simples

técnico, preparado unicamente para responder de forma direta, ao mercado de trabalho. A

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intensa multiplicação no Brasil de cursos de Serviço Social de qualidade duvidosa coloca dessa

forma em confronto e em pauta a disputa na atualidade entre esses dois perfis de profissional:

[...] o técnico bem adestrado que vai operar instrumentalmente sobre as demandas do mercado de trabalho tal como elas se apresentam ou o intelectual que, com qualificação operativa, vai intervir sobre aquelas demandas a partir de sua compreensão teórico-crítica, identificando a significação, os limites e as alternativas de ação focalizada (NETTO, 1996b, p. 126; grifos do autor).

Raichelis (2011) participa deste debate, observando que, para enfrentar criticamente o

lugar em que hoje está colocado o trabalho do assistente social nas organizações sociais,

cumpre formar e qualificar o profissional para

... muito mais do que apenas a realização de rotinas institucionais, cumprimento de tarefas burocráticas ou a simples reiteração do instituído. Envolve o assistente social como intelectual capaz de realizar a apreensão crítica da realidade e do trabalho no contexto dos interesses sociais e da correlação de forças políticas que o tensionam; a construção de estratégias coletivas e de alianças políticas que possam reforçar direitos nas diferentes áreas de atuação (Saúde, Previdência, Assistência Social, Judiciário, organizações empresariais, ONGs etc.), na perspectiva de ampliar o protagonismo das classes subalternas na esfera pública. Exige, portanto, um conhecimento mais amplo sobre os processos de trabalho, os meios de que dispõem o profissional para realizar sua atividade, a matéria sobre a qual recai a sua intervenção, e também um conhecimento mais profundo sobre o sujeito vivo responsável por esse trabalho, que é o próprio profissional (RAICHELIS, 2011, p. 428; grifo da autora).

Netto, em texto de 1996, ao colocar em questão a formação do assistente social, indicava

a necessidade de refletirmos sobre quem era o aluno que estava chegando à universidade e

quem era o professor que ministrava os cursos de Serviço Social como fatos relevantes a serem

considerados no processo de formação. Sobre esses fatos, o autor entende que

[...] não se conectam obrigatoriamente por uma relação causal, não afetam exclusivamente o Serviço Social; mas na nossa profissão, ganham enorme ponderação: são concomitantes à exigência de maior qualificação intelectual e cultural, derivada da própria consolidação acadêmica do Serviço Social-está posta, aí, uma contradição que não é fácil solucionar com êxito. Quer-me parecer que o perfil econômico social e cultural desse “público-alvo” — sem esquecer o dos docentes mesmos, nem sempre distinto-é um elemento de excepcional importância a ser levado em conta no enfrentamento da problemática da formação (NETTO, 1996b, p. 110).

Este autor notava “perceptível mudança no perfil socioeconômico da massa do

alunado, cada vez mais recrutada em estratos médio-baixos e baixos das camadas urbanas”.

Outra observação dizia respeito ao visível empobrecimento do universo cultural dos alunos

(NETTO, 1996b, p. 110). Não se tratava e não se trata, obviamente, de entender a chegada de

segmentos da classe dos trabalhadores ao ensino superior como um problema ou empecilho ao

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bom andamento da universidade, como quer a crítica conservadora, mas de apontar a

necessidade de considerar o perfil do aluno que está chegando à universidade como mais um

desafio a ser considerado e enfrentado no processo pedagógico do ensino.

Eunice, que viveu intensamente o período de sua graduação, tendo no estágio sua

grande referência profissional, corrobora para explicitar nos dias atuais como está se

expressando essa situação apontada, ao exprimir seu incômodo ao se deparar, assim como as

demais entrevistadas brasileiras, com a falta de disponibilidade do aluno para participar de

novas experiências e se pergunta com inquietação sobre o que fazer diante desse fato.

— Eu vejo agora os alunos, e eu falo, “gente tudo bem”... Não é saudosismo, mas você tirar o aluno de sala de aula para participar de outras coisas é muito difícil, porque é aquele aluno que também está lutando pela sobrevivência, ele não tem tempo de fazer outra coisa além de ir lá e cumprir estritamente o necessário para poder ter a frequência e nota no final.

A entrevistada, ao refletir sobre a alteração do perfil dos alunos dos cursos de Serviço

Social, chama a atenção também para o fato de há um grupo significativo de profissionais que

se aposentou ou está em vias de se aposentar e que carrega um lastro importante da profissão

na perspectiva crítica por ter ajudado a construí-la desde os finais dos anos de 1970 e que fará

falta na profissão, tanto no sentido de colaborar na formação dos alunos, quanto na construção

de respostas profissionais na direção social que se compromete com a defesa dos interesses

daqueles que dependem da venda da sua força de trabalho para viver. A esse respeito ela

assim se manifestou:

— [Em relação ao] perfil dos nossos alunos, são pessoas que também, às vezes, que se confundem com o próprio usuário, não sei a realidade de vocês na PUC [São Paulo], mas no espaço que eu conheço sim. Então, eu acho que são muitos fatores que... [...] Como eu vou ter uma prática crítica frente a todas essas interferências que vão estar me pressionando no dia a dia? Agora eu acho que tem que ter a resistência política, mas a gente sabe também que não é todo mundo que vai se envolver com a resistência política; há sempre uma vanguarda que avança. Então, mas mesmo assim é sempre um grupo que vai à frente, como em todos os espaços. Nós temos ainda, principalmente na capital, devem se aposentar 50% dos profissionais da capital [refere-se ao Judiciário], inclusive eu me aposentei em fevereiro, mas continuo fazendo pesquisa na área.

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Em face desse quadro brevemente delineado sobre os desafios colocados à formação

do assistente social na atual conjuntura, passo agora a equacionar a formação situada no

âmbito técnico-operativo, tendo em vista o caráter interventivo da profissão e o foco de nossa

pesquisa, com a clareza de que o assunto deve ser abordado no domínio da profissão inserida

na sociedade de classes e dos interesses veiculados.

Entendo como Santos (2005, p. 232):

O cuidado com “o que fazer”, com o “para que fazer”, e com o “por que fazer” não pode excluir o “como fazer”. O currículo não pode prescindir de disciplinas que tratem da habilitação para o manuseio dos instrumentos e técnicas no Serviço Social em conjugação com o debate filosófico, teórico, político e ético.

A intervenção profissional qualificada e comprometida não prescinde da teoria, da

ética e da política, mas a estas não se resume.

Quando na academia se considera que para a operacionalização da prática é suficiente um bom ensino teórico, está se acreditando que a teoria transmuta, de forma imediata, em ações e que os instrumentos são aferidos diretamente de uma direção teórica. Está se confundindo, ainda, conforme Netto (2005) denuncia, a relação conhecimento e prática, com a relação teoria e prática. Ou seja, está se privilegiando, na formação, apenas o conhecimento teórico em detrimento dos demais tipos de conhecimento, nesse caso procedimental. Esses equívocos refletem [...] um não entendimento do que seja teoria e prática no materialismo histórico-dialético. (SANTOS, 2005, p. 235).

Tratar da formação do assistente social nessa perspectiva envolve um quadro de

professores com sólida formação teórica e política e a construção de novas estratégias para lidar

com o alunado que vem do ensino médio com muitas deficiências, principalmente para

interpretar textos e se comunicar através da escrita. Não basta que um docente da

instrumentalidade profissional tenha experiência “prática”, embora possa haver ainda esse

equivocado entendimento, pois não podemos defender um pragmatismo, mas o que desejamos é

exatamente a sua superação. Assim como é equivocado pensar que ensinar a instrumentalidade

trata-se da simples atualização do caso, grupo e comunidade e simples discussão das “técnicas”,

ou seja, um tecnicismo. Ou ainda que podem ser dispensadas do currículo pois a transmutação

da teoria em prática, como assinala é ato simples e imediato como assinala Santos (2005), pois

se assim se entende caímos em um teoricismo.

Isaura, professora da “instrumentalidade” e especialista em currículo de graduação em

Serviço Social, tendo participado de todos os processos de revisão curricular que ocorreram

na PUC-SP, desde à época denominada por Netto (1991) de renovação do Serviço Social no

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Brasil, manifesta-se da seguinte forma em relação aos desafios colocados à formação dos

alunos hoje:

— Às vezes eu me sinto um ET, os alunos ficam olhando como se a gente fosse de outro planeta. A gente trabalha com o estudo social, estudo socioeconômico; a gente faz a distinção, a gente amplia, mostra como é no Judiciário, na Saúde e os alunos hoje trazem elementos que vão na contramão absoluta do que você pretende ensinar. É a exigência de produtividade. Uma aluna falou para mim, ela falou com a supervisora que queria atender as pessoas num projeto de habitação do jeito que ela tinha discutido aqui na Universidade aí ela falou assim “pode fazer, vamos ver o tempo que você vai levar.” Aí ela fez uma entrevista bem feita e cuidadosa durante o dia todo e quando terminou, a assistente social falou para ela “muito bem, eu vejo que você está satisfeita, mas isso não será possível porque ao invés de você atender 20 pessoas você atendeu quatro e a exigência não é essa.” A exigência é de produtividade tão violenta que há alunos que relatam como é que hoje os dados são manipulados. Então, ao invés de você escrever que você atendeu 20, você escreve para a Prefeitura que você atendeu 50 ou 100 porque a exigência é essa. Então, a corrida, a exigência de produtividade, vem tirando toda a qualidade do trabalho social. E a outra coisa é o atendimento telefônico, quer dizer, além do computador nós temos hoje o telefone. Em empresa que antes trabalhavam com empréstimo para os trabalhadores e faziam entrevista, levantamento da situação, desconto em folha, hoje é por telefone. Eu tive uma aluna que nunca viu o semblante de um trabalhador porque é feito tudo por telefone. Então, eu acho que isso é gravíssimo, é um retrocesso grande e na formação é um desafio, você só faz intervenção no trabalho do estagiário que a Universidade pode fazer. É um desafio na formação você discutir com os alunos como o trabalho deve ser feito que vá além da possibilidade hoje.

Essa questão levantada por Isaura, que se refere às dificuldades do ensino em geral e

especificamente às referentes à dimensão técnico-operativa, em face às difíceis e complexas

condições de trabalho impostas aos profissionais pela reestruturação produtiva na atual

conjuntura, levou as participantes da entrevista coletiva a rapidamente se manifestar a esse

respeito, dizendo:

— O que eu queria falar da formação é que fora alguns professores que sobrevivem disso, eu acho que o Serviço Social hoje não tem interesse nenhum em pensar em produção, não tem o mínimo interesse nessas discussões. Esse é um problema sério porque a gente não discute essa questão teoricamente. A gente continua atribuindo isso a uma questão da prática como se isso fosse ser resolvido no âmbito da

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prática. A gente teria que transformar essa questão cotidiana em um problema teórico (Regina).

— [...] no Serviço Social a gente [...] Não considera que o conhecimento sobre isso é uma discussão fundamental até para o seu enfrentamento. Vocês estão colocando essa questão do computador, mas os nossos alunos não têm nem como enfrentar isso teoricamente, nem para entender e nem para analisar. São poucos os professores hoje que tem essa preocupação para estar discutindo isso (Graziela).

— Você está falando dessa distinção [referindo-se á fala de Graziela], o que é o trabalho profissional que está colado na política está colonizando os assistentes sociais. Os assistentes sociais não tem projeto para discutir com a política (Regina).

Eunice reforça essa apreensão ao dizer:

— Existe muito preconceito sobre o técnico operativo, porque muita gente acha que a gente vai discutir apenas o “técnico”. Eu leciono as disciplinas Fundamentos do Serviço Social 1 e 2 e Processos de trabalho III e IV (a discussão mais conceitual do trabalho é nas disciplinas 1 e 2, com outra professora), E tem professor que só leciona Fundamentos Teórico-Metodológicos que me disse: “mas o que você trabalha nesse técnico operativo?” Como se você trabalhasse as técnicas por si só. Por incrível que pareça, ainda ouvimos colegas falando isso, como se numa disciplina você só trabalhasse a técnica sem fazer articulação com os fundamentos teóricos, metodológicos e éticos. [...] Tem que enfrentar esse debate, porque é nisso que falta a gente investir: como eu articulo essas dimensões, os fundamentos teórico-metodológicos, ético-políticos e o técnico-operativo? Eu acho que o mais grave é vermos essa situação, ver hoje, por exemplo, isso que você está falando, vamos fazer um debate sobre essa questão [refere-se à uma proposta que conversamos antes da entrevista]. Eu acho ótimo, tem que fazer, mas muita gente vai achar que vamos discutir de maneira fragmentada. Infelizmente na própria academia, às vezes, existe esse preconceito; é preciso enfrentar o técnico-operativo, iluminado pelo principal instrumento de trabalho que é o conhecimento.

As falas de Eunice e das outras entrevistadas reforçam a ideia de que, ainda hoje, nos

deparamos com forte resistência na profissão para discutir a instrumentalidade profissional,

porque o entendimento continua preso ao entendimento conservador do nosso passado. Esse

tema denso, tenso e de dificílima abordagem não é ainda largamente entendido sob a

perspectiva crítica, porque implica que o docente tenha profundo domínio teórico-

metodológico e ético-político para poder tratar e decifrar a realidade cotidiana próxima e

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porque, no Serviço Social, é como colocar a mão em verdadeiras feridas vivas e abertas no

nosso passado e, portanto, ainda não tratadas suficientemente, ao ponto de permitir seguir em

frente com tranquilidade, porque não estão cicatrizadas. Parece que há na categoria dos

assistentes sociais uma tendência que entende que na formação, a intervenção profissional

deve ser tratada somente nas disciplinas da instrumentalidade e na supervisão de estágio, pois

lá são os lugares de tratar da “prática real”, como sinônimo de “contaminada”, “suja”,

“difícil”, “sem futuro, sem projeto, sem esperança”.

Nessa apreensão, juntam-se as palavras de Santos (2005, p. 241), que vem

pesquisando sobre o ensino da instrumentalidade no Serviço Social:

A questão relativa ao ensino dos instrumentos e técnicas ainda se expressa mais pelo “receio” de ser “tecnicista” do que pela ousadia de criar alternativas/ experiências explícitas e detalhadas para o desafio de ensinar o “como fazer sem ser “tecnicista”. [...] salvo poucas exceções, reforça-se sempre o como não ensinar os instrumentos e técnicas em detrimento do como deveria ser ensinado.

Torna-se, porém, urgente encarar o desafio colocado pela autora diante do que vem

ocorrendo nas organizações sociais que contratam o trabalho do assistente social: a

incorporação de novas tecnologias que, gradativamente, estão ocupando o lugar das pessoas e

vêm causando impasses no trabalho profissional, ao colocar em xeque princípios e valores do

projeto ético-político da categoria dos assistentes sociais que certamente não se localizam

estritamente na dimensão técnico-operativa. E, nós, assistentes sociais, que achamos disso?

Como podemos e devemos nos colocar diante dessa situação?

Responder de forma crítica às demandas colocadas a uma profissão eminentemente

interventiva, como é o Serviço Social, pressupõe o esforço para colocar a teoria em atos e na

explicitação de saídas e possibilidades do exercício profissional nas organizações sociais,

visando à concretização do assistente social como profissional propositivo, não como mero

executivo das pautas definidas pelas organizações que contratam seu trabalho. Pressupõe

também a reflexão de como trabalhar com o estresse sentido pelos profissionais “da prática

real” compromissados com a defesa dos valores inscritos no nosso projeto ético-político.

Graziela expõe:

— Eu vejo que numa parte [da categoria profissional], eu e a Isaura tivemos uma proximidade, uma parte dos alunos, inclusive que está no Mestrado, que tem menos e cinco anos de formada, e que tem uns três anos agora que entraram na Prefeitura, eles estão vivendo essa crise. Essa capacidade de análise de ter esse impedimento da ação com a burocratização toda da Assistência. Acho que isso para nós, talvez em

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São Paulo mais do que outras cidades, mas a gente tem uma parte da juventude profissional que entrou na Prefeitura e até tirou licença médica com menos de três anos de trabalho em função desse sofrimento vivido por causa da burocratização, da restrição de direitos, e pior do que isso, talvez eu deva estar colocando uma situação dificílima, mas um aprisionamento da legalidade, um aprisionamento àquilo que está colocado no programa se a possibilidade de trabalhar mais com a legitimidade social, de trabalhar mais com as pessoas. Então, para mim a política hoje do SUAS, ela é importante, garante direitos, mas ela ainda tem muitos percalços. Esse aprisionamento à legalidade faz com que esse trabalho de emancipação, de autonomia, de liberdade, pretendido no nosso projeto ético político, fique fissurado, arranhado.

Regina reforça o fato da existência angústia e do estresse vividos pelos profissionais

que se comprometem com valores condizentes com a emancipação humana, a qual, diante de

uma realidade que tem se apresentado de forma tão desumana, acaba por gerar muito

sofrimento aos assistentes sociais, dada a impotência sentida por eles.

— Uma pesquisa que nós fizemos que é da Vania [?] que coordenou em Santa Catarina, os fatores de estresse dos profissionais é o projeto ético-político porque elas têm consciência, mas não chegam lá... Elas não contam e parece que é um dos fatores de estresse e é isso, entre o projeto ético-político e as demandas da prática.

Isaura concorda com essa análise e continua o debate, analisando:

— Eu acho que o estresse de que a Regina está falando, eu penso... E acho que o contato com os estagiários e com os alunos vem mostrando isso hoje. Acho que é um desafio enorme na formação, é que o estresse também está relacionado ao choque que as pessoas pensam... O ideológico preside isso e acho que é o que eu tentei trabalhar naquele texto.102 Os alunos são mais transparentes do que os assistentes sociais, os assistentes sociais aprendem a disfarçar isso, mas o que as pessoas pensam sobre os usuários é uma coisa muitíssimo complicada. Os pobres são pobres porque são preguiçosos, vai ter os que acreditam em deuses e os que não acreditam e levam isso para o trabalho; todas as restrições ideológicas das pessoas sobre a dependência química, ao aborto, ao número de filhos que se têm, enfim, todas as misérias humanas. Os assistentes sociais têm muito preconceito que está impregnado na sociedade e se o conhecimento não mexe com isso, não coloca isso em questão, então o trabalho está comprometido e não há como colocar em prática o projeto ético-político. Acho que há um conflito entre o que as pessoas pensam do

102 Refere-se a Oliveira (2010)

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mundo, da família, das relações, até as coisas mais simples do tipo “também deixou o filho em casa”, toda essa fala que é muito ideologizada ela se contrapõe frontalmente à possibilidade da prática orientada pelo projeto ético-político. Eu acho que o estresse está muito relacionado a isso, porque as meninas aqui ficaram doentes e eu disse a elas numa palestra que teve aqui [referindo-se à PUC-SP] que assistente social não pode ficar doente por causa do Kassab [prefeito da cidade de São Paulo em 2012], tem que ficar doente por causa da miséria que a população vive, porque o Kassab é transitório e há de ser enfrentado coletivamente. Se eu fico doente porque eu não consigo implantar a política porque o Kassab não deixa, aí tá perdido.

Raichelis (2011) analisou essa realidade contraditória vivida pelos profissionais diante

das condições de trabalho colocadas e da violação de direitos do assistente social na atual

conjuntura que vem gerando sofrimento e desgaste físico e emocional.

Trata-se de uma condição de trabalho que produz um duplo processo contraditório nos sujeitos assistentes sociais: a) de um lado, o prazer diante da possibilidade de realizar um trabalho comprometido com os direitos dos sujeitos violados em seus direitos, na perspectiva de fortalecer seu protagonismo político na esfera pública; b) ao mesmo tempo, o sofrimento, a dor e o desalento diante da exposição continuada à impotência frente à ausência de meios e recursos que possam efetivamente remover as causas estruturais que provocam a pobreza e a desigualdade social (RAICHELIS, 2011, 434-435; grifos da autora).

A autora indica que, no “âmbito institucional, torna-se imprescindível fortalecer a

resistência ao mero produtivismo quantitativo, que é medido pelo número de reuniões, de

visitas domiciliares, de atendimentos, sem ter clareza do sentido e da direção social ético-

política do trabalho coletivo” (RAICHELIS, 2011, 435; grifos da autora).

Isaura apresenta outros lados da alienação presente no trabalho profissional que

exemplificam o referido produtivismo, através de situações que surpreendem e mesmo

assustam um professor que vem de um passado de luta pela ampliação de direitos ao se

deparar com alunos e mesmo com profissionais que se portam com indiferença diante de

ocorrências graves, tais como:

— [...] Eu tenho alunos que trabalham em hospital, atendem situações gravíssimas e, quando a pessoa põe o pé na rua, de alta, dois dias depois que deu à luz, acabou, porque “isso não é comigo mais”. E eu trabalhei num hospital onde “isso era comigo”, então era um trabalho que continuava, fazia grupo com as pessoas... Uma adolescente que teve um filho e que não tem quem cuida, vai lá e diz “eu vou sair, vou dar, vou matar”, saiu de alta. O assistente social nem telefona para saber, nem faz nada, porque está escrito que é para ficar lá; o atendimento é lá. O máximo que ela faz é ligar para o Cras. Essa ideia

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de que a situação é aquela, que não atendo, não discuto, não grupalizo, não levo para um trabalho maior, eu acho que é um prejuízo enorme, Acho que tem que cuidar disso na formação, “porque você faz o estudo e tchau? Você pergunta só para saber? Aí chega às raias da curiosidade porque você não vai fazer nada com a informação?” E a gente trabalhava com a ideia de que a informação de saúde era só o ponto de partida para o trabalho social maior. Eu acho que o Serviço Social perdeu a amplitude do seu olhar e do seu trabalho, então é só aquela tensão ali.[...] Eu acho que há muitas teses sobre a política, a favor e contra, demonstrando se é direito se não é, se é focalizada ou não, se tem porta de entrada e saída, mas eu acho que é muito mais do que isso, do que uma preocupação com o trabalho, não é de operação... As pessoas vão cumprindo o que se manda e não há um... Outro dia eu fui numa capacitação e falei que não pode visitar as pessoas sem avisá-las e as pessoas ficaram me olhando. A casa é do outro, você não entra na casa do outro só porque você é assistente social, ou porque você é da Prefeitura, e as pessoas não pensam sobre isso. Não foi para a escola tem que visitar, teve negligência tem que chamar o Conselho Tutelar para tirar a criança; é tudo regrado e estabelecido pelo senso comum, sem maior teorização.

Regina reage ao pensamento colocado, acrescentando:

— Tem um desafio, acho que para nós professoras, acho que isso a gente tem que reconstruir no sentido de estar vendo como é que a gente aprendia, o que é dever do assistente social em termos de atribuições, como é que as políticas estão sendo implantadas e que espaço é esse que os profissionais têm que assumir para não entrar nesse dilema que a Isaura falou de não entrar na doença, o adoecimento individual e até em função de que o sofrimento não seja o mais importante. [...] Mais uma vez vou falar o que vem muito vem na esteira da própria ideologia da formação. Em Santa Catarina o pessoal acha que a formação... Os assistentes sociais vão ser mais qualificados se eles tiverem mais disciplinas relacionadas à teoria crítica. Daí você vai lá e dá um jeitinho, é uma interpretação sua... E não uma condição da profissão. Eu acho que não dá para discutir a seleção socioeconômica sem discutir o que a profissão está pensando na formação dela teoricamente. [...] Nós temos uma visão crítica para analisar tudo isso, mas parece que cada um chega lá e vai fazer do seu jeito, na sua interpretação. E uma profissão, para se sustentar, ela não pode ir só pela interpretação individual, ela tem que ter um a sustentação coletiva.

Diante da fala desta entrevistada, deve ser considerado que o que falta no Serviço

Social é o trato da instrumentalidade profissional em outros moldes, dando ênfase à relação

teoria-prática enquanto unidade indissociável, numa perspectiva da totalidade, passando pelas

mediações como recurso necessário dessa tarefa. Isso exige densa formação de um professor.

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Por outro lado, é preciso frisar que as saídas, as respostas interventivas, cada vez com mais

força, terão que surgir de uma perspectiva de construção mais coletiva na profissão. Do

contrário, as respostas encontradas unicamente na solidão de cada prática acabarão por

reforçar a ideia liberal de que cada um deve encontrar sozinho a própria resposta.

Para encontrar respostas condizentes com nosso projeto ético-político, é preciso suspender

temporariamente o pensamento cotidiano que se fixa quase que só na experiência e nos

acontecimentos vividos, buscando elementos teóricos, filosóficos para que a apreensão possa se

dar para além das aparências e, portanto, fundar as ações em decisões mais conscientes.103 Este

jeito de ser profissional é aprendido, através de denso projeto de formação teórico-prático.

Ao longo dos depoimentos colhidos nesta pesquisa, pudemos perceber que há um

ritmo de trabalho que encolhe o pensar. Temos o profissional atendendo os usuários dos

serviços sociais, mediado pela tela de um computador. É o computador que passa a ter vida e

o assistente social se comporta com o usuário como objeto, ao dizer que “o computador pede

que”, e, se no computador consta que seu filho não frequentou as aulas ou que “seu marido

arrumou emprego”, o benefício é mecanicamente suspenso. Quando não é o computador, são

as fichas a serem preenchidas que passam a pautar o que tratar na entrevista com o usuário.

Nesse processo alienado e alienante, as ferramentas adquirem vida e os sujeitos

passam a se comportar como objetos. Como podemos esperar que desses profissionais que

atuam sob tanta pressão possam sozinhos encontrar e formular respostas profissionais

condizentes com os interesses dos usuários?

Para reverter e atuar nessa situação que marca hoje o trabalho realizado nas organizações

sociais em que o assistente social trabalha, torna-se necessário que haja o exercício permanente da

reflexão, buscando iluminar o que vive e o que se expressa no cotidiano em referências teóricas.

“Cabe ao profissional reconstruir as mediações particulares e buscar, com orientação no projeto

ético-político profissional, desenvolver iniciativas que aproximem sua prática das reais

necessidades da população usuária” (BRITES; SALES, 2004, p. 73).

Sabemos que, o cotidiano engole o sujeito para repetir o que está dado. Então, esperar do

profissional que está na ponta que ele sozinho possa criar respostas, no quadro atual de reforço à

burocratização do atendimento, parece não se apresentar como boa e suficiente estratégia. Torna-

se imperativo que a categoria pense urgentemente sobre isso, como tarefa coletiva, na qual as

pesquisas podem se colocar como ótima estratégia de materialização dessa alternativa.

103 Um profundo e sensível exercício dessa proposta pode ser encontrado em Brites e Sales (2004, p. 67-79), quando tratam de “Ética, cotidiano e práxis profissional”.

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Graziela, entendendo e analisando a fala da colega Regina, pondera que a prática

profissional está perdendo a processualidade, porque não vem sendo valorizada. Ou seja: a

ênfase do atendimento se pauta no produto, no serviço ou benefício social em si mesmo.

— [...] O que você está falando, Regina é um pouco desse esvaziamento do conteúdo metodológico do trabalho que a gente tem a fazer. Eu estava pensando que nós três, apesar das diferenças de formadas... Mas, acho que nós somos da forma antiga... Fazer o estudo social é garantir a processualidade do atendimento, pensar nas diferentes possibilidades da abordagem, ver o que é seguimento. Eu acho que isso nos nossos alunos... Nos últimos quatro, cinco anos, está cada vez mais ficando distante. Esse conteúdo metodológico da ação profissional ele está se perdendo na memória. Não sei se nós professores estamos conseguindo garantir essa memória do ponto de vista de preservar enquanto trabalho profissional, enquanto metodologia de intervenção.

Eunice entra nesse debate, posicionando-se como profissional que sempre esteve

preocupada em qualificar o exercício profissional de forma crítica, comprometida com a

transformação da sociedade. Mas também nos mostra que anteriormente se qualificou teórica

e politicamente para enfrentar a discussão da instrumentalidade profissional. Diante desse

mote, apresenta sérias e importantes questões a enfrentar na categoria dos assistentes sociais:

— [...] eu sempre tive essa preocupação com a questão de como fazer. Claro que, de como fazer iluminado com outros fundamentos, porque eu acho que a gente tem uma lacuna muito grande na nossa profissão e eu fiz um pouco o caminho de ter me dedicado muito à intervenção, à militância política e depois vim para a academia e fazendo as coisas depois paralelamente, mas vim para a academia e para a pesquisa por conta dessas preocupações também. Como é que está sendo nosso dia a dia lá direto com a população? E o que fazemos nós, assistentes sociais? Eu acho que em qualquer área nós temos um acesso privilegiado à informação e nós não sabemos o que fazer com isso; nós eu digo genericamente. Como nós trabalhamos isso na formação? Como o assistente social, no seu dia a dia pode, além do atendimento, trabalhar efetivamente mesmo que seja com dados estatísticos? E a gente até pouco tempo tinha horror a estatística, mas é fundamental. Porque eu não reverto isso? Eu posso ter esse lado que eu não concordo, mas porque eu não pego isso e busco sistematizar, trazer isso que está hoje no nosso projeto, a pesquisa para a intervenção? Porque aí eu posso reverter, contribuindo para a política e eu acho que nós perdemos muito, porque a gente ainda, a gente no Brasil, apesar de todos os avanços do ponto de vista da produção, da pesquisa, nós sabemos, você que está diretamente na prática ou na supervisão alunos, você sabe que, há muitas pessoas que continuam com práticas muito conservadoras. E

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não avança e não sabe o que vai fazer. Eu acho que isso é o mais grave. [...] E desqualifica o próprio saber profissional, você não tem que estar lá para dar jeitinho. Aquilo que a professora Marilda (referindo-se a Iamamoto) fala da questão..., dentro desse projeto o assistente social que precisa ser criativo, propositivo, a gente tem que saber como fazer isso dentro do que propõe a nossa profissão.

A entrevistada reconhece que vivemos uma conjuntura dificílima, que não será uma

profissão que conseguirá, sozinha, revertê-la, mas quer contribuir (e nós também) para fazer

avançar a profissão, porque vê em um significativo número de jovens profissionais séria

vontade de querer se qualificar mais e aprender a fazer melhor o trabalho profissional.

— [...] Apesar de toda a tragédia da educação brasileira, desses cursos à distância que estão cada vez mais acontecendo sem nenhuma qualificação, e que é um risco muito grande, pode trazer um retrocesso para os poucos avanços que a gente conseguiu, mas por outro lado, do que a gente conseguiu nessas últimas décadas, a minha esperança são essas gerações mais jovens. Eu tenho tido oportunidade de participar de vários encontros em vários Estados discutindo o estudo social, e é uma coisa impressionante, o pessoal solicita e eu falo às vezes que não aguento mais falar de estudo social. Às vezes eu falo, “gente, eu preciso estudar mais”; chega uma hora que você começa se achar repetitiva.

A seguir, a entrevistada apresenta alternativas para enfrentar os desafios da formação

tais como a supervisão e os cursos de especialização. Ao analisar, exemplificando o que

percebe, ela nos apresenta algumas saídas.

— A gente precisa, mas como a gente faz? Acho que a gente tem que trabalhar muito na formação e eu acho que precisaria e o que falta na nossa profissão, é a questão da supervisão de quem está entrando. A psicologia, por exemplo, em algumas áreas que ela vai trabalhar, ela precisaria obrigatoriamente de supervisão, eu acho que é uma coisa que está distante da gente conseguir, mas eu acho que a gente deveria pensar em alguma coisa. Muitas vezes o salário você sabe é pouco, a maioria dos lugares o salário é muito baixo, o investimento por si só muitas vezes a pessoa não tem condições fazer. Eu estou agora coordenando uma especialização na Universidade, eu tenho ex-alunas que foram brilhantes, que querem continuar estudando, querem fazer um lato sensu. Algumas até se inscreveram depois eu vi que não foram e eu conversei para saber por quê: “ah professora fiquei com medo de não conseguir pagar porque eu estou numa organização que é terceirizada da Prefeitura e tem mês que recebe e mês que não recebe”. É muita coisa que está envolvida nesse processo. Como eu trabalho na minha formação permanente? Talvez pensar até nos nossos Conselhos [refere-se aos Cress], na Abepss, como a gente pode a médio e longo prazo incorporar a supervisão como uma

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exigência, porque nós trabalhamos com seres humanos em situações extremamente graves; em todos os segmentos a gente trabalha com a população, na grande maioria das vezes extremamente empobrecida, excluída, mas você trabalha em alguns lugares também com pessoas de outros segmentos sociais, e a gente pode não estar instrumentalizada para trabalhar nem com um com outro e para buscar um supervisão quando necessário. Eu penso que são saídas que a gente tem que pensar. [...] Porque se não, eu vou sendo consumida, e às vezes acaba sendo cômodo eu ficar. Isso vale para quem está na política, no judiciário e não quero nem ouvir fala mais em estudo... Eu fico imaginando se quem trabalha com a realidade social pudesse parar de, continuadamente, estar refletindo sobre essa realidade... As pessoas estão buscando. Quando eu vejo isso eu fico feliz. Eu fui para Santa Catarina, ele fizeram um encontro estadual do pessoal do Judiciário e um dos dias era para discutir o processo de construção do conhecimento vindo dessa integração, e eles me convidaram para eu fazer meio que um depoimento -eu já estou virando personagem da história -sobre como foi ter ido da intervenção para a pesquisa. Aí eles me ligaram para falar que se, além disso, eu poderia falar também sobre estudo social, sobre instrumentalidade, para 120 profissionais, então você via as pessoas querendo saber muito mais. Eu acho que se por um lado a gente tem a política extremamente seletiva, por outro lado tem algumas gerações mais jovens que estão já imbuídas num projeto profissional..., estão mais preocupadas realmente em fazer outro serviço social. Eu só não sei do futuro quando essa leva toda que está chegando, como vai ser isso, eu acho que é um perigo que a gente está correndo, porque juntar essa formação precarizada, um trabalho precarizado, um salário muitas vezes extremamente pequeno e a pessoa precisa porque ela tem que se manter...

As entrevistadas brasileiras foram unânimes em reconhecer a necessidade de um

tratamento mais aprofundado, no Serviço Social, da dimensão técnico-operativa. Sem isso,

haverá maior dificuldade para a materialização do projeto ético-político profissional: para sair

do discurso e ganhar materialidade, a instrumentalidade é mediação fundamental.

Eunice contribui com esse debate:

— E a gente vai trabalhar no dia a dia com isso. Eu falo para os meus alunos, às vezes uma estagiária diz: “professora, eu peguei uma situação de violência e eu não sabia o que fazer”. Aí eu digo que “você pode saber todas as técnicas de entrevista, que são comuns a várias profissões, mas se você não souber o que perguntar...” Então, é o conhecimento que você precisa ter acumulado, que instituição é essa, que teoria vai iluminar o meu fazer? O que conheço sobre violência doméstica para poder dialogar com essas pessoas? Então, é esse fundamento teórico-metodológico que vai iluminar o meu fazer concreto, eu vou colocá-lo no operativo, mas esse operativo não se efetiva somente com base no projeto da profissão, se eu não dominar essas várias dimensões. [...] Eu ando pensando como a gente precisa

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pensar numa outra forma de trabalhar a formação dos alunos nos dias que estamos vivendo hoje. Eu ando pensando sobre como fazer isso. Eu não sei ainda porque tem que ter todo um investimento e você trabalhando numa universidade privada isso não é simples.

Graziela destaca mais alguns elementos que podem ser incorporados à proposta que

Eunice vem construindo, ao comentar, em relação à seleção socioeconômica:

— Acho que desde que eu conheci a Pesquisa Condições de Vida [do Seade], lá em 1990 que foi feita a primeira vez lá em São Paulo, eu acho que o Serviço Social tinha que se apropriar mais dessa metodologia e trabalhar menos com indicador de renda. Eu acho que o governo brasileiro não se apropria dessa metodologia. O IBGE, por exemplo, enquanto o Seade e o Dieese trabalhavam na década de 90 com indicador de que existam pessoas com menos de 10 anos de idade que trabalhavam nesse país, isso só vai ser incorporado pelo IBGE no ano 2000. Não sei se é um problema da nossa categoria, mas talvez assim como que nós poderíamos estar mais afinados com a revisão das metodologias sobre pobreza e não ficar prisioneira da renda. Quando apresenta na seleção socioeconômica... Acho que tem dois movimentos: acho que um é esse grande... da gente trabalhar o teórico-metodológico tentando entender a produção de conhecimento da área. Acho que esse era o nosso papel enquanto universidade e o outro movimento era enxergar as possibilidades de adequação, sem ser o jeitinho, nas diferentes situações, bolsa de estudo nas universidades, nos cursos, as questões relacionadas à saúde, creches. Acho que questões mais gerais... São movimentos que são distintos...

O avanço do trabalho profissional na perspectiva teórica e política indicada implica

organização política da categoria e posse de sólida formação do profissional, mesmo em face

de tantos percalços. Porém, a apreensão crítica da realidade por parte do assistente social e

dos usuários dos serviços sociais depende, dentre outros fatores, de que haja conhecimento

disponível acerca da realidade social e a possibilidade de acesso a ele.

Essa ideia é reforçada por Eunice:

— [...] É fundamental, só que para isso temos que estudar, se antenar com a realidade social. Como é que eu vou discutir se não conheço a realidade? Eu estava discutindo isso em Santa Catarina, o pessoal vai discutir a questão do trabalho, a pessoa chega lá sem trabalho, como está a situação do trabalho lá hoje, a indústria têxtil, tudo que você vai comprar é “made in china”, como eu vou explicar para um sujeito que ficou 20, 30 anos nessa indústria, que não teve outra formação, e eu vou dizer que ele é incompetente para cuidar dos seus filhos, que não está sendo provedor da família? Então eu tenho que buscar, aí eu acho

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que dá para fazer um link com as políticas sociais, como eu posso, às vezes, informar o sujeito do seu direito a benefícios (acho que não deveríamos usar essa denominação “benefícios”, é preciso outra palavra), às políticas sociais que ele deveria ter acesso, que às vezes ele não sabe, ou principalmente subsidiar o Judiciário para que o Ministério Público entre com uma ação contra o Estado para ele fazer cumprir a política? Isso é você dar uma outra direção ao poder.

Para fazer avançar a formação que ocorre no circuito universitário, é condição que a

universidade não seja vista apenas como o lugar do ensino, onde simplesmente se consome o

saber produzido, através de sua reprodução pelos professores nas salas de aula do saber

existente, mas que se constitui fundamentalmente como lugar de produção do saber filosófico

e científico que só avança através da pesquisa crítica de qualidade. Nessa perspectiva, a

universidade se caracteriza como o lugar de divulgação do saber existente e constituído, mas

também de onde se explicitam as lacunas existentes entre o que sabemos e o que não

sabemos, indicando a necessidade da pesquisa para fazer avançar o conhecimento e a prática

no âmbito social e profissional. Essa questão se coloca também ao Serviço Social de forma

decisiva, quando se pretende formar intelectualmente seus agentes, reconhecendo que no

âmbito técnico-operativo da profissão existe grande lacuna a ser preenchida pela pesquisa.

Este estudo tem a pretensão de significar uma contribuição nesse sentido.

A seguir, apresento breve problematização da pauta a ser perseguida pela profissão acerca

da seleção socioeconômica situada no âmbito da pesquisa da instrumentalidade profissional.

4.4.10. A pesquisa da instrumentalidade profissional e a seleção socioeconômica

Diante do que pudemos apresentar até aqui, fica claro que é preciso profissionalizar

essa atividade profissional, através da realização de pesquisas, como indicam, principalmente,

os depoimentos as pessoas brasileiras entrevistadas.

Minha intenção aqui será a de demonstrar, através da problematização que me é

possível elaborar no momento, o tanto que nós, assistentes sociais, precisamos pesquisar e

estudar, para que possamos realizar uma prática consistente, visando ao atendimento dos

interesses dos usuários. Trata-se da criação de saídas coletivamente construídas.

Os vários exemplos apresentados pelas assistentes sociais brasileiras e portuguesas

indicam mais do que nunca a urgência da realização de pesquisas sobre a prática profissional

realizada através de atendimentos sociais, para o levantamento de possibilidades para que

tenhamos um repertório de respostas profissionais mais qualificadas.

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Em face do que vem vivendo e pensando como professora e pesquisadora preocupada

em qualificar o trabalho do assistente social que ocorre nas organizações sociais, Eunice,

entrevistada brasileira, destaca a importância da pesquisa sobre a intervenção profissional. Ela

relata como as colegas do Judiciário fizeram parte de uma pesquisa lá realizada e como essa

participação contribuiu para ampliar o olhar e o entendimento delas acerca de sua atuação:

— [...] a importância de quem está na intervenção fazer pesquisa, porque as profissionais que foram fazer a pesquisa, e eu inclusive, dizíamos (eram dez colegas do Judiciário): “nossa eu fiz isso!”, questionando o fazer. Quando você vai com o olhar de pesquisador ler os autos você começa a ver outras coisas, que quando você está consumido pela rotina do dia a dia não vê; assim a gente começou a questionar a nossa própria prática. [...] Fui estudar como é que vão reproduzindo esses poderes no cotidiano, porque lá você tem o poder institucional — o poder da natureza do judiciário que é julgar, decidir a vida, o futuro de pessoas, e o poder dado pelo saber, pela área de formação que vai contribuir para isso, para o bem ou para o mal, dependendo do que a gente entende por bem ou mal.

A entrevistada, pensando no avanço da formação profissional, considera que

— [...] é preciso cada vez mais trabalhar com a pesquisa na formação. Eu acho que essa grade atual é importante, mas penso que seria preciso uma outra forma de distribuição desses conteúdos na grade. [...] Acho que cada vez mais precisamos articular essa dimensão da teoria, metodologia e o técnico operativo, mas por meio de pesquisa. Não sei como ainda. Talvez pensarmos..., tomar uma área, fazer um diagnostico sócio territorial, envolver os alunos nisso, daí ver as várias dimensões a serem trabalhadas nas várias disciplinas...

Regina destaca a necessidade e a importância de ampliação da pesquisa no Serviço

Social como forma de valorizar o desvendamento da realidade próxima e imediata:

— Vou trazer uma questão da minha filha, que é economista. Outro dia ela estava falando que ela não aguenta mais os economistas que acham que tudo pode ser reduzido aos grandes dados, aos macro dados e enquadra todo mundo. Então, na tese dela, queria fazer entrevista com as pessoas que estão com problema, ela quer ir às pessoas que tem o problema. Ela trabalha com a questão da habitação, quem está trabalhando com a questão da habitação. Então eu penso que nós, assistentes sociais, temos isso na mão e queremos sair sempre para os grandes... A gente tem toda essa riqueza da população e das condições e a gente não discute isso no Serviço Social.

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Isaura, concordando com o mote colocado, acrescenta:

— Eu sempre digo isso: a nossa categoria poderia ter publicado os maiores compêndios sobre a pobreza no Brasil e não faz isso porque a ação é mecanizada, não presta atenção e não teoriza.

Regina continua participando do debate e acrescenta:

— Tem umas coisas... O médico tem uma briga de quanto tempo leva uma consulta e quanto vale. Eles têm um parâmetro e nós não temos. [...] Todo mundo que vem diz que “nossa capacidade de trabalho são dez atendimentos” e nós no Serviço Social não temos isso. Vem tudo, ele fica alucinado para... Não consegue fazer tudo, mas quer atender e resolver tudo. O médico tem mais poder de negociação. [...] Eu acho que uma tentativa disso na profissão é a história dos parâmetros, mas que eu acho que na saúde foi um desastre.

Eunice, que, de todas as entrevistadas, foi a que mais trouxe à tona a importância da

pesquisa na área da instrumentalidade como recurso coletivo para buscar saídas aos sérios

desafios e dilemas com que nos deparamos no presente, destaca:

— [...] Mas como que quem está na ponta, acho que não é só o assistente social, poderia ser mais um dentro de uma equipe que contribui para levar essa informação, porque quem está lá não é ouvido ainda para pensar essa política, ou como as pessoas estão preocupadas em fazer isso? Está sistematizando o que acontece no dia a dia para levar isso que você está colocando concretamente, mas para levar números, dados concretos, não ficar só naqueles dados que obrigatoriamente você tem que preencher para alimentar as estatísticas oficiais. Quando a gente fala da dimensão investigativa da profissão a gente não está sabendo como fazer isso.

A entrevistada, ao reforçar a necessidade de ampliação dos estudos sobre a

intervenção visando à qualificação do ensino da instrumentalidade, conta como se sentiu

desde a época do seu mestrado, quando comunicou aos colegas que se dedicaria a conhecer o

trabalho realizado na área do Judiciário.

— Mas aí foi um pouco difícil aqui na academia, naquele tempo era muito complicado você estudar a intervenção, você que é da PUC deve saber disso, me senti um ET porque alguns colegas [da intervenção e da academia diziam] ”você vai estudar o serviço social no Judiciário?!”, aí sentia que a academia não aceitava, não é que não

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aceitava, tanto aceitava como eu ingressei, mas era uma coisa um pouco à parte. Eu fui acolhida pela professora Myriam [Veras Baptista] que me deu orientação e foi pela abertura que ela deu que eu pude estar discutindo essa área. E aí ela que falou “já que você vai estudar o Judiciário porque você não começa pela história?”, porque o professor [José Pinheiro]Cortez, que deu aula aqui [referindo-se à PUC-SP] e a dona Helena Junqueira ainda eram vivos e eles participaram da história do Serviço Social no Judiciário. Então eu fui ouvi-los. Eu ouvi o professor Cortez numa destas salas, foi um dos últimos depoimentos dele. E foi muito rica a conversa com ele, com a dorna Helena [Iracy Junqueira], com a Zilnay [?] — que também era do Judiciário —, cada um com o seu perfil, dentro do que eles acreditavam na época, o que era fundamental para a profissão, eles deram uma contribuição significativa. Eu fui estudando a inserção do Serviço Social que começou com o programa de família acolhedora, que era a antiga lei 500 — que hoje parece uma grande novidade, mas era uma lei de 1949 que o próprio Serviço Social, a dona Helena e o professor Cortez fizeram; na época era um trabalho realizado pelo Judiciário, e depois, em 1956, começa o trabalho de perícia ou de estudo social. Então, eu fui vendo como eles viam essa questão do poder do saber sobre a vida das pessoas.

A entrevistada, tendo em vista o parâmetro de sua experiência, avalia que, hoje, em

alguma medida, já há mais abertura em relação à aceitação de tomar o cotidiano como fonte

inspiradora de pesquisas para tratar do âmbito técnico-operativo. Eunice destaca que é preciso

pesquisar e discutir claramente como o assistente social tem usado seu poder profissional de

funcionário das organizações sociais.

— É preciso fazer pesquisa sobre o dia a dia e provocar a abertura dos núcleos para o estudo do cotidiano. [...] Eu lembro que a Zilnay falou isso, na minha dissertação isso aparece. Eu perguntei “como era estudar a realidade social e econômica das pessoas, vocês elaboravam o relatório, vocês percebiam qual era o poder desse trabalho?” Ela disse algo que eu nunca mais esqueci: “os nossos relatórios eram muito bem feitos, eram até chatos de ler, porque eles eram muito bem fundamentados, e eu dizia para o pessoal ‘vocês tomem muito cuidado com o que vocês vão escrever porque o juiz só vai ler o final’”. Não mudou muito até hoje. Vai ler o final e decidir. E ela disse “a gente tem o poder de vida e de morte sobre a vida das pessoas”. [...] Eu acho que os núcleos de pesquisa, seja da graduação, da pós-graduação, estão cada vez mais abertos para receber quem está na intervenção, fazer pesquisa sobre o cotidiano...

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Cabe esclarecer que quando há referência sobre a necessidade de estudar o cotidiano,

há a proposta ao estudo do dia a dia fundado em perspectiva crítica. Essa fundamentação pode

ser buscada em vários autores que vem tratando densamente do assunto.104

Eunice, que vem estudando os estudos sociais realizados por assistentes sociais,

destaca algumas questões que devem ser tratadas em futuras pesquisas, para oferecer

subsídios à intervenção, tendo como base o seu ponto de partida acerca do tema que vem se

pesquisando. Ela diz:

— No começo era muito a dona Nadir [refere-se a Nadir Gouveia Kfouri], mas a proposta que penso hoje é conhecer do ponto de vista da questão do trabalho, das relações familiares, dos territórios, das políticas sociais, da cidade onde se vive, a capacidade protetiva e de cuidado dessa família. Eu conheço mais amplamente, porque no âmbito do Judiciário, se eu trouxer os fundamentos, devido à qualidade que eu preciso dar no âmbito profissional de uma área de conhecimento, eu tenho certeza -pela minha experiência e de vários colegas que eu conversei por aí -, que de fato vou contribuir para assegurar os direitos, seja de uma criança, de um adulto ou de uma família, mas não para penalizar, não deve ser esse o objetivo. Você vai me dizer “mas todo mundo é assim?” não. No Judiciário como em outros vários espaços, nós profissionais do Serviço Social e profissionais de todas as áreas, podemos ser extremante identificados com o poder no seu sentido negativo. Quando se fala de poder depende da ótica, eu posso usar o poder de uma maneira a contribuir para o acesso aos direitos se eu tiver essa possibilidade, mas contribuir para penalizar eu não vou fazer isso. Eu não estou lá para buscar a ‘verdade’, se a pessoa está mentindo ou não a respeito da relação dela com a criança, ou seja, lá quem realiza o trabalho deve conhecer a realidade social, econômica e cultural dos sujeitos para dar subsídios para acessar e garantir direitos.

Ela mostra toda a dramaticidade da questão social que tem se expressado no tempo

presente com muita força nas pesquisas em que está inserida, indicando a necessidade de

incluir no debate qualificado da profissão seus fundamentos e a construção de respostas

profissionais para lidar com ela. Como nos qualificar para trabalhar com tamanha

desumanização que atravessa o nosso dia a dia de cidadãos e profissionais?

— Agora estou coordenando uma pesquisa, que está estudando também em processos, a questão da interface entre a justiça da

104 Netto (1987, p. 64), a esse respeito, cita vários autores (dentre os quais Lefevre, Kosic, Heller e Lukács) e obras e esclarece: “A tradição marxista acumulou, nas últimas quatro décadas, uma significativa massa crítica, apta a configurar — num espectro heurístico diferenciado, que vai do historicismo à impostação ontológica — os componentes essenciais de uma teoria da vida cotidiana.”

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infância e juventude e a política de assistência social nos casos de destituição do poder familiar a partir, tendo como ano base 14 anos depois da primeira pesquisa, que foi a minha tese de doutorado — eu fiz ano base 1996 e agora estou tomando como ano base 2010. O que estamos encontrando hoje? Na anterior a gente via que a questão da pobreza estava em todas as situações, mas os motivos concretos que apareciam eram os mais variados, os que apareciam no imediato, embora a pobreza permeava a vida de todos, e o que está acontecendo na pesquisa atual (ainda não finalizada), um dado que numa primeira leitura a consideramos que é significativo e importante: diminuiu o número de casos de destituição do poder familiar, não vai chegar nem na metade em relação ao número anterior de pessoas que foram destituídas do poder familiar. [...] Eu estou fazendo a pesquisa na cidade de São Paulo, mas cada fórum, cada região, cada “cabeça de juiz” é um pouco diferente. Mas quais estão sendo os casos hoje em que os vínculos são rompidos mesmo, qual está sendo o grande motivo? A miséria generalizada aparece, mas o que aparece concretamente é o crack, a violência, mesmo a morte ou envolvimento na criminalidade e a dependência de álcool; isso aparece em todas as varas da infância que a gente está pesquisando.

Diante de quadro tão dramático, Eunice conta o que tem sentido ao se deparar com tais

processos que está estudando, nos permitindo entender melhor o já referido adoecimento de

profissionais que vem se colocando com força na profissão na atualidade.

— Eu tenho muitos anos de estrada, eu vi de tudo, mas eu lia aqueles processos e às vezes eu saía com ‘dor de estômago’ por ver tanta tragédia, tanta barbárie estampada nos processos. Percebemos que diminuiu o número de destituições do poder familiar. Por algumas informações coletadas verificamos que está se buscando mais preservar a vivência da criança com a família de origem. Agora, tem as situações limite que aquela criança não tem como, uma criança que está vivendo em situação de rua com crack... Não estou dizendo que tem que tirar por conta disso, mas pelo menos, naquele momento, a criança não pode ficar, ela não tem autonomia para se cuidar, ela vai morrer. O que está havendo? A própria família muitas vezes não tem condições e não quer mais cuidar, têm discursos literais que a família diz “eu cansei”. Porque sabemos que é muito difícil lidar com uma pessoa dependente, você tem que ter muita estrutura para você poder enfrentar a situação, conseguir que a pessoa volte a ter uma autonomia, é bastante complicado. Isso temos percebido de uma maneira bastante clara na pesquisa. Ainda vamos analisar, falta ainda uma vara da infância para pesquisar.

Nessa mesma pesquisa, Eunice tem constatado com grande preocupação como vem se

dando a leitura e o registro escrito realizados pelos assistentes sociais, colocando a

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necessidade de incluir na pauta de discussão da categoria a veiculação das informações nas

organizações sociais, tendo por referência o atual Código de Ética do Assistente Social, como

uma expressão do projeto ético-político.

— Mas eu estou dizendo isso porque a gente foi de novo fazer a pesquisa nos processos e percebemos que ainda existe muita dificuldade para boa parte dos profissionais, como eles estão conhecendo a realidade dessas famílias, como estão realizando esses estudos e como estão registrando. Para a questão do registro é preciso tomar muito cuidado, para que o que você coloca no registro seja de fato para garantir pelo menos o direito da criança e do adolescente e não tratar da punição dos afoitos, não é esse o seu objetivo. Mas, por outro lado, tem informações fundamentais para que o juiz entenda a situação antes de tomar uma decisão, se não muitas vezes ele vai decidir com o mínimo de informação, muitas vezes também chocado com aquela realidade e querendo, de alguma forma, proteger a criança.

Eunice, convidada a falar sobre os critérios que vem pensando tendo em vista a

realização dos estudos sociais, pautou sua análise nas pesquisas que vem realizando e nos

desafios colocados à profissão diante das características com que a pobreza vem se

apresentando hoje.

— Eu preciso continuar esse tema. Depois que eu me aposentei pelo Judiciário, na universidade eu pensei que teria mais tempo para estudar e eu tenho menos tempo. Acho que as pessoas consideram que você tem mais tempo e acabam te chamando para mais coisas e também acho que começamos a ficar mais lentos eu não sei. Eu não consigo mais dar conta de tantos compromissos, mas eu quero ainda estudar mais. Agora estou coordenando uma pesquisa, que está estudando também em processos, a questão da interface entre a justiça da infância e juventude e a política de assistência social nos casos de destituição do poder familiar a partir, tendo como ano base 14 anos depois da primeira pesquisa, que foi a minha tese de doutorado — eu fiz ano base 1996 e agora estou tomando como ano base 2010. O que estamos encontrando hoje? Na anterior a gente via que a questão da pobreza estava em todas as situações, mas os motivos concretos que apareciam era os mais variados, os que apareciam no imediato, embora a pobreza permeava a vida de todos, e o que está acontecendo na pesquisa atual (ainda não finalizada), um dado que numa primeira leitura a consideramos que é significativo e importante: diminuiu o número de casos de destituição do poder familiar, não vai chegar nem na metade em relação ao número anterior de pessoas que foram destituídas do poder familiar.

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Ela propõe ainda estudos que possam referenciar os profissionais na elaboração de

estudos sociais, mas que ainda não foram suficientemente debatidos pela categoria dos

assistentes sociais.

— O que eu vinha pensando e agora, com esses grupos, a gente quer discutir mais: o que de fato, quando eu falo em estudo social, quais são os elementos chaves a partir dos quais eu preciso explorar mais esse conhecimento? Não significa que eu vou registrar tudo isso num relatório, num laudo, vai depender muito da finalidade. Sempre discuto muito isso com o pessoal: eu tenho que registrar, eu tenho que fazer uma relação, qual é a finalidade daquele trabalho, eu posso conhecer muito mais do que necessário para o registro, para a finalidade daquele trabalho que eu estou realizando, mas acho que a questão do “trabalho” é fundamental explorar. O que geralmente se constata é se o indivíduo trabalha ou não trabalha, e não é isso. Como é o trabalho na vida dessa pessoa, qual é o acesso que tem ao trabalho, em que condições? Eu tenho buscado estudar um pouco, eu tenho pensado na definição de trabalho decente na realidade atual, nem estou buscando uma condição na sociedade ideal que a gente tem como projeto para o futuro. Na nossa sociedade o que é um trabalho decente? [...] Eu acho que é um conceito que precisamos, dentro do que é possível na nossa realidade, explorar mais. O que envolve o trabalho decente? A OIT tem muito material sobre isso e acho que a gente teria que avançar mais. Eu penso que as famílias — eu gosto de falar no plural considerando a diferentes realidades das famílias —, o que eu preciso conhecer, desde o processo de socialização, a história não para punir, mas para explicar essa realidade e as relações familiares hoje, como é que, para manter uma criança na família, o que eu preciso conhecer e até onde eu devo e posso ir. A questão das políticas sociais, os territórios, como está o acesso dessas famílias aos seus direitos sociais que deveriam ser garantidos pela efetivação das políticas sociais num conceito mais amplo... Política social territorializada. Eu acho que temos que buscar essas reflexões. Eu acho que algo que temos dificuldades para trabalhar, mas que ajuda muito, teríamos que estudar mais, inclusive para não nos deixamos guiar pelos preconceitos, é a questão da cultura. Eu posso ser influenciada pela maneira como eu fui socializada, pela minha cultura, é uma situação completamente diferente daquele sujeito, não para relativizar, mas para eu explicar aquela realidade.

Graziela indica algumas possibilidades de lidar com a política de assistência no Brasil,

reconhecendo que, no momento, os assistente social estão subutilizados.

— [...] que os Cras e Creas possam ser colocados em regiões onde já tenha o mapeamento dos dados secundários anteriormente à concretização dos espaços físicos. Então, a equipe entraria nos

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distritos sabendo onde estão os bolsões de miséria, onde está o narcotráfico, se é cortado por rodovia ou não, onde mora mais criança, porque esses dados a Prefeitura compra tudo do IBGE; tem o Seade, tem um banco de dados absolutamente enorme. Isso daria uma visão social para o trabalho completamente diferenciada, que no caso da cidade de São Paulo, até foram criados os observatórios e agora acho que tem dois anos eles foram retirados regionalmente e foi colocado um central. O observatório seria aquele elemento que poderia arregimentar o dado colhido diariamente com dado secundário que estava lá mapeado censitariamente. Aí o Serviço Social vira um trabalho interdisciplinar e inclusive poderia ser construído em outra perspectiva e não seria essa redução que a Regina citou; que você reduz o estudo social a seleção socioeconômica. Então, hoje os profissionais estão em crise com a criação da política, porque a capacidade de análise dele é muito maior de trabalhar também, mas eles estão reduzidos nesse embate.

Vivemos tempos difíceis no exercício profissional que ocorre no atendimento direto à

população usuária dos serviços sociais e na formação profissional dos assistentes sociais

quando a pretensão se dirige a responder de forma crítica e comprometida aos desafios do

presente. Os profissionais, sujeitos dessa pesquisa, porém, com muita generosidade e espírito

coletivo, trouxeram contribuições valiosas no sentido de indicar algumas possibilidades para o

enfrentamento dos desafios e lacunas existentes. Pudemos perceber e assim demonstrar

através dessa pesquisa que existe uma produção séria no Serviço Social que vem sendo

construída no dia a dia e que precisa ser incorporada no debate da profissão.

Em relação à seleção socioeconômica, especificamente, no Serviço Social, nos

deparamos inicialmente com a praticamente inexistência de bibliografia que tratasse do

assunto, mas essa pesquisa nos faz enxergar que há profissionais comprometidos com o

avanço da profissão em Portugal e no Brasil que vem tratando dela de forma qualificada

através do trabalho que ocorre nas organizações sociais que materializam a política social, nas

supervisões e nas salas de aula.

Se é verdade que para a grande parte dos profissionais há a tendência de ser engolido

pelo cotidiano organizacional, existe, no entanto, um segmento da profissão que se esforça

para inscrever a profissão na sociedade sob outros moldes e que é preciso dar visibilidade a

isso através de pesquisas para que outros possam perceber outras formas de responder às

demandas colocadas à profissão.

Considero que pudemos, através da análise aqui apresentada, dar visibilidade também a

que, através do exposto pelas entrevistadas e dos estudos que realizamos, que assumir os

compromissos do nosso projeto ético-político não se atém a simplesmente repetir um discurso

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sobre ele, mas que, procurando decifrar a realidade imediata que se apresenta aos profissionais,

podemos tomar decisões condizentes com a defesa dos interesses dos usuários dos serviços e

benefícios sociais, mesmo que, por vezes de forma contraditória e limitada. Se a realidade da

nossa sociedade é contraditória, então como negar isso nas nossas próprias vidas?

Nossa posição e a das entrevistadas da pesquisa realizada se constitui em expressão

dessa tendência, quando todas nós temos nos esforçado para pensar política e tecnicamente

sobre os s desafios cotidianos que hoje se apresentam à profissão, no sentido de construir

novas respostas diante das possibilidades e limites colocadas na atual conjuntura.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caetano Veloso, na bela canção que fez em homenagem a São Paulo, denominada

“Sampa”, chama a atenção para o olhar do estrangeiro diante do outro-novo, o que, no seu

caso, foi se deparar com a cidade de São Paulo, a qual, num primeiro contato, ainda não

entendia e por isso se relacionou com ela, comparando-a ao que já conhecia e trazia, que era a

sua experiência de viver em Salvador, na Bahia.

O olhar inicial, contaminado pela lente da experiência como brasileiro baiano,

considerou o que viu de “mau gosto, mau gosto” porque “Narciso acha feio tudo aquilo que

não é espelho”, e, portanto, tentando enquadrar o que vê ao que já conhecia, considera a sua

experiência anterior como a melhor. O autor refere que trazia “um sonho feliz de cidade”.

Assim, diante de “Sampa”, “aprende depressa a chamar o que vê de realidade”.

Ele, quando encarou a cidade e sua gente “frente a frente”, não viu refletido seu rosto

“feliz e bonito” diante de tanta desigualdade e feiúra com que enxergou em São Paulo.

Depois, quando passou, de forma crítica, a observar mais atentamente a cidade, pode discernir

o outro de si mesmo nas igualdades e diferenças consigo mesmo. Aqui, pôde ver e enxergar

“o povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas”, “a força da grana que ergue e destrói coisas

belas”, “a feia fumaça que sobe, apagando as estrelas”.

Afinal, percebeu que essa cidade se constituía “no avesso do avesso do avesso do

avesso” do seu inicial “sonho feliz de cidade”.

Penso que dessa experiência, exposta pelo poeta com tanta beleza que espero não

reduzir, ele também pôde nessa realidade se entender e se conhecer melhor sobre quem era,

porque se aproximou, se distinguiu, se estranhou, se assemelhou, se enriqueceu e virou um

pouco de tudo aquilo que viu e viveu. Talvez pode também ver o lado feio e desigual de sua

cidade, que aqui chamou de realidade. Ou seja, pode se ver como brasileiro-baiano-paulistano

e pode criar essa canção que nos emociona e que se apresenta sob a forma de forte e

encantadora poesia.

A primeira visão do estrangeiro é a de que “Narciso acha feio tudo aquilo o que não é

espelho” e chama o que vê de “mau gosto, mau gosto”. Essa primeira posição de comparação

não permite ver e perceber, assim como não reconhece o outro como outro e com o direito de

ser diferente. Essa primeira visão pode permanecer assim sucessivamente e ser a única, ou

pode evoluir, dando uma nova direção para o estranhamento para que afinal, possamos

também se ver como igual ao outro que critica.

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Acredito que a boa convivência do estrangeiro diante do que já estava ali e do que vive

deve despertar e fazer pensar quem olha pela primeira vez e quem estava lá e nunca percebeu

“a realidade” nas novas possibilidades presentes. A condição para poder ver para que seja

possível enxergar para além do imediato é aceitar conviver com os primeiros impactos que

levam ao estranhamento para que, depois do reconhecimento, possa tornar possível a

instauração do diálogo enriquecedor com aquilo ou aquele que o sujeito estabelece relação.

Para perceber e entender quem somos e quem é o outro, o nosso interlocutor, é

necessário que haja uma relação de alteridade. Sem a convivência e sem a disponibilidade de

nos colocar na perspectiva do outro, não há delimitação de quem somos e nem de quem é o

outro. O eu que sou só se delimita pela relação com o tu, ou seja, quem sou eu só adquire

sentido e aparece na convivência; são definições que nascem da convivência e da

comparação. É preciso que, nesse processo o sujeito que deseja conhecer mantenha um olhar

de perto (de singularidade) e ao mesmo tempo um olhar ampliado, de profundidade, de

totalidade (universal) para que possa conseguir configurar também as particularidades do

objeto, alvo de seu olhar.

Diante do exposto, podemos, portanto, pensar que o que somos só pode se definir em

presença do outro, para afinal descobrirmos o nós, de-todo-o-mundo, as nossas

particularidades, os-alguns-que-somos e ao mesmo tempo as nossas singularidades, o eu,

esse-indivíduo que junto com os outros indivíduos somos os cidadãos do mundo que

habitamos esse planeta, embora haja tantas diferenças a nos separar, “tanto mar”.

Afinal, é preciso que a gente se veja enquanto humano-genérico para podermos

enxergar as desigualdades de classe e outras que nos separam e que vêm caracterizando a

relação entre os homens. E para que, a partir daí, possamos perceber as possibilidades de

sermos juntos e os limites colocados ao projeto coletivo que temos para a sociedade, mas que

é meu também, porque componho aquilo que se chama coletivo. Projeto esse que indica a

direção da ação e que ilumina o nosso fazer na sociedade e na profissão.

Essa reflexão ajuda-me a configurar a relação estabelecida com o meu objeto de

estudo, que é a seleção socioeconômica que, nenhum assistente social entrevistado disse

gostar de realizar e que tem ficado no silêncio ao longo da história da profissão sob uma

perspectiva crítica porque tem sido naturalizada.

Ajuda-me também a configurar a relação de convivência que estabeleci com os

assistentes sociais portugueses, através do estágio realizado em seu país, que me permitiu

perceber, em riqueza de detalhes, de que forma a reordenação do capitalismo internacional

repercute em Portugal, que tem sido um dos países do continente europeu mais atingidos pela

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crise do capitalismo na atualidade. Assim como permite perceber os rebatimentos dessa crise

na política da assistência social. O Brasil, neste momento, é muito menos atingido que aquele

país, mesmo que esse país apresente uma das mais profundas desigualdades sociais do planeta

se se compara a renda dos 10% dos habitantes mais ricos com os 90% mais pobres.

A minha intenção neste estudo foi estabelecer um diálogo como assistente social

brasileira com os assistentes sociais portugueses com o objetivo de poder entender melhor

nossas ações profissionais aqui no Brasil em relação à seleção socioeconômica.

Destaco que as entrevistas realizadas em Portugal mexeram muito comigo, pois pude

vivenciar através delas, sem disfarces, a situação perversa em que têm sido colocados os

assistentes sociais e os beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI), quando o

processo seletivo se apresentou com toda a sua força de desumanidade na realização do

movimento de inclusão-exclusão, sendo que nessa conjuntura foi a face de exclusão a que

mais se mostrou e se mostra, disfarçada na cobrança da quase impagável contrapartida.

Enquanto no Brasil, em 2010, época da realização das entrevistas em Portugal, o

Programa Bolsa Família se mostrava sob a cara da inclusão, quando

12,5 milhões de famílias beneficiárias, cerca de 4,3 milhões superaram a linha de extrema pobreza do Programa (R$70 per capita mês), mas, apesar desses avanços o número de pessoas em situação de pobreza no país ainda é muito alto (por volta de 30 milhões) e a taxa de desigualdade continua entre as mais altas do mundo (YAZBEK, 2012, p. 309).

Pudemos, através desse trabalho, demonstrar que a seletividade de acesso aos serviços

sociais vem acompanhando as formas de proteção social organizadas pela sociedade

capitalista desde a sua emergência no século XVI e que o Serviço Social desde a sua

constituição no final do século XIX vem participando de sua realização.

Através desse estudo procurei resgatar e situar a seleção socioeconômica como

instrumento da política social, operada pelo assistente social de forma datada, entendendo que

ela que não poderia ser apreendida nos seus fundamentos se a tentativa se dirigisse para

explicá-la em si mesma. Os fundamentos sócio-históricos da seletividade de acesso foram

buscados nas formulações presentes na emergência do Serviço Social, criado para fazer frente

ao enfrentamento da questão social, distinguindo-se da filantropia e da caridade. No contexto

do reordenamento do capitalismo, no início do século XX, configurando a sua fase

monopolista, a profissão do assistente social é institucionalizada e legitimada pelo Estado que,

ao passar a assumir o papel de regulador das relações sociais, se utiliza da criação da política

social como forma de enfrentamento da questão social.

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O assistente social, como agente do Serviço Social, nesse contexto, passa a ser

requisitado pelas organizações sociais públicas e privadas para materializar os seus programas

e serviços sociais na qualidade de seus funcionários. Na ordem institucional, o caráter político

das demandas apresentadas pelos usuários dos serviços sociais, enquanto expressões da

questão social, são transmutadas em questão de foro íntimo e privado dos indivíduos e

tratadas de forma a isolar o caráter sócio-político dessas demandas, quando passam a ser

consideradas e tratadas como questão de ordem “técnica”.

Nos programas de política social, o acesso aos serviços e benefícios sociais se realiza

mediante a comprovação da necessidade pelo indivíduo e após a avaliação profissional sobre

a detenção de méritos dos indivíduos. O assistente social, nesse processo, passa a assumir o

papel de árbitro, de juiz, fazendo a mediação entre a demanda dos que pleiteiam o

atendimento e os recursos disponibilizados.

Na profissão, inicialmente, os fundamentos da seleção socioeconômica se pautam na

apreensão da questão social como questão moral. O tratamento das demandas dos usuários se

realiza no caso a caso, a partir de leituras de caráter moralizador, levando à culpabilização dos

indivíduos pela situação de carência e pobreza em que se encontram — visão essa que

continua ainda hoje a se apresentar com muita força na sociedade e na profissão.

Os estudos realizados nos mostraram que o assistente social, como funcionário das

organizações sociais, reproduz o controle e a pressão junto à população usuária dos serviços

sociais, após ter ele mesmo, em primeiro lugar, sofrido, na sua própria pele, aquela pressão e

controle exercido pela organização sobre a sua própria intervenção, sob a forma de regras,

ritmos e procedimentos a cumprir. Assim, o assistente social na qualidade de trabalhador

assalariado, se insere no processo de trabalho estabelecido pelas organizações sociais, o que

impõe limites à atuação profissional. Porém, como o profissional tem uma autonomia relativa

pode, contraditoriamente, também realizar os interesses da população.

A natureza dos serviços sociais se apresenta sob o discurso da igualdade, mas, na

realização de fato, é reiteração da desigualdade. No processo de seleção socioeconômica, se

realiza ao mesmo tempo e pelo mesmo processo a inclusão-exclusão, porque ao final só

alguns e não todos serão atendidos.

O discurso do direito não garante o acesso a todos os demandantes dos serviços e

benefícios sociais: refere-se ao fato de todos poderem se inscrever como candidatos. Esse

processo que legitima o acesso ao serviço ou benefício social através de seleção, a partir de

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critérios estabelecidos, também legitima, ao mesmo tempo, o não acesso, daqueles que

ficaram de fora do atendimento.

Como a seleção é individual, ao término do processo, quem ficou de fora entende que

isso se deu porque não cumpriu os critérios estabelecidos, mas sem o esclarecimento ao

mesmo tempo de que não havia recursos colocados para atender a todos. O acesso ou não aos

serviços sociais se dá mediante a realização da equação entre o número de inscritos e os

recursos disponíveis.

Na sociedade capitalista, um candidato, por exemplo, que ficou de fora, poderia estar na

lista dos escolhidos se houvesse menos candidatos, ou se diante de outros candidatos com o

mesmo perfil, pudesse apresentar em um desempate alguma vantagem em relação aos demais.

A seleção socioeconômica se constitui, dessa forma, em instrumento de legitimação do não

acesso de uma parcela da população que deseja ou necessita dos serviços e benefícios sociais.

Podemos empiricamente perceber no cotidiano que o indivíduo excluído do ingresso

ao que pleiteia poderá lamentar, mas afinal geralmente acaba por se conformar. Poderá até

questionar o fato de ter ficado de fora do atendimento, colocando em dúvida a lisura do

processo ou mesmo se culpabilizar pelo fracasso de não ter conseguido o acesso ao serviço ou

benefício social pleiteado.

Mas, derradeiramente, através de pequenas estratégias de controle utilizadas, tudo

volta ao “normal”, porque “vivemos em uma sociedade competitiva em que sempre alguém

fica de fora e porque não há recursos para atender a todos”. É “normal” e “natural”, então, que

sempre alguns fiquem de fora.

O resultado final desse sofisticado e complexo processo seletivo é a legitimação da

desigualdade social, ao tornar aceitável a exclusão do acesso, ou do direito.

O acesso aos serviços e benefícios sociais vem se dando através de dois modos

básicos. O primeiro ocorre quando o indivíduo solicita e comprova que preenche os quesitos

estabelecidos na lei para o acesso àquilo que se constitui em direito legal, como é o caso, por

exemplo, no Brasil do BPC. O segundo se dá mediante a inscrição e a apresentação de provas

pelo candidato que confirmem, por exemplo, sua situação de pobreza. A seleção nesses casos

se faz por meio de seleção e escolha, entre os candidatos inscritos, daqueles que se

aproximam mais do perfil traçado, tendo em vista que há um limite de verba ser respeitada e

que deverá ser gerenciada. Essa se constitui na forma mais antiga, normalmente denominada

por meritocrática.

No primeiro cenário, todos os indivíduos que preenchem o perfil têm acesso garantido,

porque é um direito inscrito e previsto na lei e, portanto, tem caráter mais universalizante. Na

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segunda situação, é a verba ou o número de vagas disponíveis de um serviço que definem o

acesso; quanto maior o número de inscritos, mais criteriosa e exigente deverá ser a seleção e

mais difícil será o acesso — consequentemente, mais excludente será o processo.

A seletividade de acesso, dado seu caráter de legitimação da desigualdade social, tem

a utilidade de manter a exclusão ao direito de acesso sob controle, ao torná-la suportável pelos

indivíduos que se mantêm excluídos e pela população em geral. Tem se constituído em parte

integrante da política social do capitalismo; portanto, acabar com ela pressupõe a superação

dessa forma de sociedade.

Diante do exposto, podemos projetar que, no futuro, o Serviço Social poderá até deixar

de realizar a seletividade de acesso aos serviços e benefícios sociais, o que é bem provável

que venha acontecer em breve, porque já há um processo em curso nesse momento, pelo

acelerado avanço das tecnologias e da computação. Atualmente, já podemos perceber

claramente que é o “programa criado” que “autoriza ou não o acesso”, dependendo dos dados

colocados que alimentam o programa, criado para controlar o acesso.

Atualmente, vem se acentuando a burocratização dos programas sociais, tendência

essa que se expressa também nos processos seletivos de acesso. Mas isso não indica a

extinção da seleção socioeconômica no acesso aos serviços e benefícios sociais; muito pelo

contrário, expressa uma sofisticação e complexificação de sua operação ao contribuir para

fortalecer a falsa ideia de que é algo “simples” e “natural” e “impessoal” e, portanto, “justo”;

é “o computador que decide”.

A seletividade de acesso pode e está se complexificando, e passa a se apresentar sob o

disfarce de novas e sofisticadas formas. Mas sua natureza de inclusão-exclusão se mantém,

porque nela reside a utilidade desse poderoso mecanismo de controle social.

No estudo realizado, apresentei a densa problematização envolvida nos processos

seletivos de acesso aos serviços e benefícios sociais a ser incorporada na pauta de estudos e

discussão do exercício profissional do Serviço Social. Merece destaque a necessidade urgente

de refletirmos sobre as decisões profissionais, porque estão correndo sérios riscos, diante das

mudanças que vêm se operando nos processos de trabalho, quando o trabalho morto adquire

vida e o trabalho vivo vai nos tornando reféns dele.

As decisões profissionais, como expressão de nossa autonomia relativa, vêm sendo

comprimidas, com a intensificação da cobrança do produtivismo quantitativo referente ao

trabalho dos assistentes sociais, em detrimento do processo da intervenção profissional que

envolve a relação entre o profissional e os usuários.

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Merece ser considerado, no entanto, que é possível o assistente social contribuir com o

acesso da população aos serviços e benefícios sociais, tendo em vista o projeto ético-político

expresso no atual Código de Ética Profissional, na Lei que Regulamenta a Profissão e nas

diretrizes curriculares da Abepss.

Para que o atendimento possa indicar possibilidades concretas na atuação do assistente

social, tendo em vista o atendimento dos interesses dos usuários da política social, impõe-se

em primeiro lugar que o profissional tenha condição de se manter próximo dos usuários, para

que possa perceber as demandas em pauta nas situações que trazem e, ao mesmo tempo,

mantenha um distanciamento crítico que lhe permita uma suspensão temporária da

cotidianidade, e para que possa refletir e pensar no sentido de equacionar as necessidades em

face das regras vigentes, reinterpretando-as sob a gerência dos pressupostos teóricos e

políticos que lhe servem de referência.

A conjuntura internacional atual impõe à profissão a apreensão crítica do que se passa

no mundo como exigência para ir além da mera adaptação aos novos tempos, pois nos

encontramos em face de conjuntura complexa e sabemos que, sozinhos e isolados, será difícil

a visualização de saídas aos desafios colocados. Isso demanda a formação do assistente social

como um intelectual crítico, não o simples adestramento do aluno para ser e se comportar no

futuro como mero técnico que realiza mecanicamente a pauta definida pela instituição que

paga o seu salário.

A direção social estratégica da ação profissional a ser fortalecida se dirige àquela que

visa à defesa dos interesses dos que vivem ou dependem do trabalho para viver, embasada em

projeto profissional, profundamente articulado nas suas bases com um projeto societário de

classe que objetiva a emancipação humana.

Como observa Iamamoto (2007, p. 171), pensar o projeto profissional supõe articular

uma dupla dimensão:

a) de um lado, as condições macrossocietárias que tecem o terreno sócio-histórico em que se exerce a profissão, seus limites e possibilidades que vão além da vontade do sujeito individual; b) e, de outro lado, as respostas de caráter ético-político e técnico-operativo — apoiadas em fundamentos teóricos e metodológicos — de parte dos agentes profissionais a esse contexto. Elas traduzem como esses limites e possibilidades são apropriados, analisados e projetados pelos assistentes sociais. O exercício da profissão exige, portanto, um sujeito profissional que tem competência para propor, para negociar com a instituição os seus projetos, para defender o seu campo de trabalho, suas qualificações e atribuições profissionais. Requer ir além das rotinas institucionais para buscar apreender, no movimento da realidade, as tendências e possibilidades ali presentes, passíveis de serem apropriadas pelo profissional, desenvolvidas e transformadas em projetos de trabalho.

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Fundada nessa apreensão, entendo que ser comprometido com esse projeto pressupõe

ter vivacidade e disponibilidade constante para, ao realizarmos as leituras das tendências e dos

processos em curso na sociedade e nas instituições sociais, optarmos pelo apoio e adesão

àqueles que mais se aproximam dos compromissos assumidos, o que representa, muitas vezes,

escolhermos o “menos pior” diante da conjuntura que se apresenta a nós e na qual estamos

inseridos como sujeitos.

Esse jeito de viver comprometido implica a realização permanente de escolhas, dentre

as alternativas possíveis, por aquelas que mais se aproximam de nosso projeto em detrimento

daquelas que mais nos distanciam dele. Trata-se, portanto, de ato consciente permanente que,

não é só discurso, implica ação cotidiana pautada na crítica.

Grandes desafios se colocam claramente aos profissionais na atual conjuntura, diante

do compromisso assumido com os interesses daqueles que dependem do trabalho para viver.

Pudemos, através deste estudo, presenciar como atua e pensa o grupo de assistentes

sociais entrevistadas em Portugal, constituído por mulheres que, à exceção de Luiza, que é

mais jovem, teve ativa participação na construção da profissão no e a partir do processo de

redemocratização do país a partir de 1974. Elas se envolveram desde então na construção e

desenvolvimento de políticas sociais, entendidas como fruto das lutas sociais empreendidas

pelos trabalhadores, e têm consciência da perda brutal quanto aos direitos sociais na

contemporaneidade e de sua repercussão direta no dia a dia do seu trabalho.

Através das entrevistas realizadas no Brasil, pudemos perceber claramente que se

sentem desorientadas em diferentes graus e mesmo em crise, ao se deparar com uma nova

geração de profissionais que chega a colocar em dúvida os seus “ensinamentos” nos cursos

em que são docentes. A prática profissional tarefeira e burocratizada que se apresenta hoje no

exercício profissional, à qual elas têm contato através das supervisões que realizam em vários

espaços da profissão, faz com que ouçam com certa constância a fala dos alunos de que os

conhecimentos “não funcionam na prática”. Diante dessa grave situação, entram em profundo

questionamento, põem-se em busca de novas saídas coletivas para os desafios colocados à

profissão na atualidade.

Há um reconhecimento geral das profissionais entrevistadas de que precisamos

pesquisar melhor o cotidiano profissional para a construção de mediações, para que possamos

reatualizar nosso projeto ético-político, incorporando as novas demandas da atualidade, de

modo a reafirmar os compromissos assumidos com os interesses dos que vivem-do-trabalho.

Em Portugal, a perspectiva mais crítica é denominada “reflexiva”.

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Naquele país, pude perceber, principalmente por Tília, que é uma liderança sindical,

que estão com fraca organização política da categoria, e a capacidade de análise individual

não dá conta de entender os reflexos da reordenação do capitalismo internacional que rebate

no país e no exercício profissional em dois sentidos mais fortes: enquanto categoria

assalariada, os assistentes sociais vêm perdendo direitos como os demais trabalhadores; como

profissional, vive o aumento do controle sobre o seu trabalho, a aceleração do ritmo do

trabalho, e a insatisfação da população que também perde benefícios sociais.

No Brasil, percebo os assistentes sociais com grande capacidade de crítica, a

organização é mais expressiva, mas aqui também há perplexidades significativas diante dos

novos profissionais que estão se inserindo no mercado de trabalho, advindos dos cursos de

Serviço Social que estão proliferando em cada canto do país todo dia, sob a forma presencial

ou à distância, que fragilizam as conquistas organizativas obtidas pela categoria desde a

década de 1980. Também preocupa o agravamento das expressões da questão social e a

cobrança de “produtividade” a que os profissionais, a cada dia, e, com mais intensidade

passam a ser cobrados.

Os rebatimentos da “crise” nos espaços sócio-ocupacionais da profissão são evidentes

e dramáticos, como pudemos expor ao longo desta pesquisa.

Em relação ao produto das entrevistas realizadas, considero que obtive uma riqueza

tão grande de fatos que foram tratados por mim de acordo com o meu amadurecimento atual e

o tempo disponível para essa pesquisa. No Capítulo 4, em que tratei da análise das entrevistas,

creio que em alguns itens consegui apresentar sínteses de forma refinada, enquanto que em

outros as ideias ainda se apresentam como “pedras brutas a lapidar”.

Considero que este estudo teve e tem eco na profissão, pelo tão forte empenho

demonstrado pelos assistentes sociais nas entrevistas, quando se dispuseram com muita

prontidão a revelar o que passa nas organizações sociais e nas salas de aula. Quando as

convidei, coloquei as condições que elas prontamente aceitaram, concordando em participar.

Todas elas reconheceram a importância e a necessidade da realização de pesquisas que

coloquem em debate o exercício da profissão no âmbito da dimensão técnico- operativa do

Serviço Social.

Diante da focalização da política social, acompanhada de cortes no orçamento e

burocratização do atendimento, gera-se uma crise no exercício profissional, quando prevalece

a legalidade sobre a legitimidade do direito, e o assistente social vem recebendo com muita

intensidade as repercussões da execução dessa política.

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Pudemos mesmo perceber em Portugal um clima de violência presente no ambiente de

trabalho dos assistentes sociais que operam o RSI, quando passam a receber até ameaças de

agressões físicas dos usuários que recebem a notícia de que seu benefício foi ou será cortado,

porque não cumpriram, principalmente, a contrapartida, que é provar que estão procurando

trabalho. Nos locais de trabalho, a presença da polícia visa “manter a ordem pública”.

Diante da realização da execução de política pública tão perversa, na qual os

profissionais são colocados como linha de frente, há dificuldades para estabelecer o

distanciamento crítico necessário nessa hora.

Importa assinalar que a crise econômica europeia vivida pelo povo português na

atualidade, em 2010, já aparece de forma apreensiva na fala de todas as entrevistadas, embora

em diversos tons de dramaticidade. De lá para cá, no entanto, a situação tem se agravado,

piorando ainda mais a vida para aqueles que dependem do trabalho e dos benefícios sociais para

viver, o que nos leva a deduzir que, se as entrevistas dessa pesquisa fossem realizadas neste

momento, o discurso das colegas assistentes sociais seria ainda mais dramático e complexo.

Desde que retornei ao Brasil, venho acompanhando, dentro do possível, os

desdobramentos da crise do padrão de acumulação do capital no continente europeu, mais

especificamente em Portugal. Destaco e comento a seguir alguns fatos noticiados através da

grande imprensa em Portugal que interferem diretamente no trabalho das entrevistadas, o que

torna relevante publicizá-los no sentido de dar contexto a essa ideia.

No Jornal de Notícias, de 17 de julho de 2012,105 tomamos conhecimento que o

Ministério da Solidariedade e da Segurança Social iria contratar 50 inspetores para fiscalizar o

cumprimento das regras de atribuição do Rendimento Social de Inserção. Esse fato significa

que haverá maior controle do trabalho dos assistentes sociais que atuam com o RSI, uma vez

que haverá maior fiscalização para a verificação da aplicação das regras de acesso e das

condicionalidades, gerando quase que uma tensão permanente nos sujeitos implicados,

comprometendo a autonomia profissional.

Em outra notícia, de 23 de agosto de 2012, tomamos conhecimento de que o Conselho

de Ministros

aprovou um diploma que institui a prestação de trabalho social por parte das pessoas em idade ativa que recebam subsídios do Estado, incluindo o Rendimento Social de Inserção, para os quais haverá um máximo de 15 horas de trabalho semanal, num máximo de três dias úteis. [...] O governo pretende apostar na capacitação e na valorização dos cidadãos que recebem estes subsídios: “Quanto mais integrado estiver o cidadão, mais facilidade terá em criar redes de ligação com ofertas de

105 http://www.jn.pt.

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emprego e oportunidades que venham a surgir”, afirmou Pedro Mota Soares [ministro da Solidariedade e Segurança Social], que acrescentou ter a “certeza que a esmagadora maioria dos portugueses compreende esta lógica e apoia esta lógica”.106

Entendemos que essa decisão afeta diretamente a intervenção profissional, ao implicar

cobrança de um novo item de contrapartida quando os indivíduos beneficiários dos serviços

sociais terão que oferecer 15 horas de trabalho ao Estado como condição de permanência no

atendimento. Embora a medida apresentada pelo ministro se dê sob a justificativa da

necessidade de integração, de capacitação e de valorização do indivíduo, deve ser destacado

que é apresentada em um quadro geral de desemprego estrutural e de grandes cortes de verbas

nos programas sociais de Portugal. De fato, a justificativa real é que está havendo no país a

operacionalização do sistema de proteção social denominado workfare, que significa

a transição do welfare-capitalismo para o workfare-capitalismo, ou seja, a passagem para uma forma de regulação do bem-estar descentrada da produção de bem-estar e centrada na inserção dos usuários das políticas sociais no mercado de trabalho [...] a reconfiguração do welfare na perspectiva do workfare não se processa necessariamente por meio do desmonte de sistemas de proteção social. No entanto, ela altera a regulação da produção de bem-estar — transformando, por exemplo, a assistência social em instrumento de controle social a serviço do capitalismo globalizado (WYSS, 2007, apud WEHRLE, 2011, p. 682).

Merece destaque também que, em 2011, Portugal perdeu significativo número de

postos de trabalho. Em notícia de 3 de abril de 2011, intitulada “O sector do comércio em

Portugal, que emprega cerca de 750 mil pessoas, perdeu nos últimos cinco anos 50 mil

empregos com a crise”, consta que,

[...] um ano depois de ter tomado posse como presidente da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP), João Vieira Lopes faz o retrato do sector do Comércio e dos Serviços, este último com 1.800 postos de trabalho. Segundo João Vieira Lopes, o número de empresas diminuiu, tendo a área do comércio perdido nos últimos cinco anos cerca de 50 mil postos de trabalho e só no último ano essa perda foi na ordem dos 40 mil.107

Em uma conjuntura de desemprego que pressiona pela demanda de mais serviços sociais,

o acesso aos benefícios sociais vem sendo dificultado através da criação de mais empecilhos ao

acesso para que, ao final, seja excluída uma parcela significativa da população hoje atendida pelo

RSI. Assim, a política social de caráter mais universal, praticada no continente europeu, vai, aos

poucos, se focalizando para atender alguns segmentos dos “pobres”, entendidos como separados 106 http://economico.sapo.pt/. 107 http://economico.sapo.pt/.

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da classe dos trabalhadores, considerados como subcidadãos. Isso faz com que, aos poucos, os

mecanismos mais universais de acesso sejam extintos.

O acesso ao RSI mediante a cobrança da contrapartida de serviços de 15 horas

semanais do indivíduo significa, de fato, um pagamento pelo serviço prestado, pois o Estado

deixará de contratar funcionários, por exemplo, para cuidar de jardins, praças e ruas. O

indivíduo que necessita do RSI, na sociedade do mercado, tem que pagar o preço imposto pela

crise do capital, quando o fundo público passa a ser destinado prioritariamente para o

pagamento da dívida externa, diminuindo-se o orçamento destinado às políticas sociais, e

agora passa a ter que pagar, também, pelo benefício recebido do Estado, através da prestação

de serviços forçada.

No Brasil, onde nunca se chegou de fato a implantar o Estado do bem-estar social nem

o workfare, também há cobrança da contrapartida, que se dá sob outras formas que não a do

trabalho, como atualmente na Europa. São esses mecanismos que, ao final, vão tornando a

política social focalizada, em detrimento dos direitos conquistados através da luta

empreendida pelos trabalhadores.

Se tomarmos por referência os fundamentos do acesso aos serviços sociais nas suas

origens na Política Social e no Serviço Social, conforme exposto nos Capítulos 1 e 2 do presente

estudo, chegamos mesmo a tomar um susto, ao perceber que, apesar de tanta luta empreendida

pelos trabalhadores, as mudanças ainda são tão pequenas e que os fundamentos da seleção

socioeconômica praticada pelos primeiros assistentes sociais, ainda são presentes de forma viva. E

não é por acaso: o neoliberalismo atualiza, sobre os mesmos fundamentos, o liberalismo.

Diante desses significativos fatos que se apresentam, podemos perceber como o

agravamento da crise do capital e a consequente focalização das políticas sociais vem

tornando as condições de vida mais difíceis em Portugal e no Brasil, trazendo rebatimentos

diretos nas organizações sociais que materializam a política social, nas quais os assistentes

sociais se apresentam à população como seus representantes. Nesse sentido, as condições de

trabalho dos assistentes sociais vêm se tornando muito difíceis e dramáticas e sobre elas

deveremos continuar a refletir na busca da construção de respostas, visando atender os

interesses dos trabalhadores ou daqueles que dependem dele para viver. Porém, tendo como

horizonte que

[...] A gente não quer só comida A gente quer comida Diversão e arte A gente não quer só comida A gente quer saída

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Para qualquer parte... A gente não quer só comida A gente quer bebida Diversão, balé A gente não quer só comida A gente quer a vida Como a vida quer... [...] A gente não quer só comer A gente quer comer E quer fazer amor A gente não quer só comer A gente quer prazer Pra aliviar a dor... A gente não quer Só dinheiro A gente quer dinheiro E felicidade A gente não quer Só dinheiro A gente quer inteiro E não pela metade... (Comida, Arnaldo Antunes/Marcelo Fromer/Sérgio Britto)

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______. Serviço Social: visão internacional. Rio de Janeiro: Agir, 1982. VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Pobreza e assistência no Rio de Janeiro na Primeira República. História, Ciências, Saúde, Rio de Janeiro, Manguinhos, v. 18, supl. 1, p. 179-197, dez. 2011. WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro. Editora Revan, 2007. WEHRLE, Tuto Beat. Aproximação à encíclica Rerum Novarum no contexto da reação católico-liberal ao movimento socialista e do surgimento do Serviço Social. Texto apresentado à disciplina Tendências Teórico-Metodológicas do Serviço Social, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2007. Mimeografado. WEHRLE, Tuto Beat. Timm Kunstreich: por uma teoria crítica do Serviço Social. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, Cortez, n. 108, p. 680-691, out./dez. 2012. WELCOWICKI, José. O discurso da cidadania e a independência de classe. Marxismo Vivo: Revista do Koorkom, São Paulo, Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado, n. 1, p. 66-77, jun./set. 2000. YAZBEK, Maria Carmelita. Classes subalternas e assistência social. São Paulo: Cortez, 1996. ______. Estudo da evolução histórica da Escola de Serviço Social de São Paulo no período de 1936 a 1945. 1977. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) — Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1977. ______. Fundamentos históricos e teórico-metodológicos do Serviço Social. In: CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS)/ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENSINO E PESQUISA EM SERVIÇO SOCIAL (ABEPSS). Serviço Social e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009a. p. 143-163. ______. O Serviço Social como especialização do trabalho coletivo. In: CENTRO DE EDUCAÇÃO ABERTA CONTINUADA A DISTÂNCIA (CEAD)/CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS)/ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENSINO E PESQUISA EM SERVIÇO SOCIAL (ABEPSS). Capacitação em Serviço Social e política social. Módulo II: Reprodução social, trabalho e Serviço Social. Brasília: Cead, 1999. p. 87-100. ______. O significado sócio-histórico da profissão. In: CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS)/ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENSINO E PESQUISA EM SERVIÇO SOCIAL (ABEPSS). Serviço Social e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009b. p. 125-141. ______. Pobreza e exclusão social: expressões da questão social no Brasil. Temporalis, Brasília, Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), n. 3, p. 33-40, 2001.

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______. Pobreza no Brasil contemporâneo e formas de seu enfrentamento. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, Cortez, n. 110, p. 288-322, abr./jun. 2012. ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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ANEXOS

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ANEXO 1

Ficha de Identificação do Entrevistado

Nome:_________________________________________________________________ Idade:__________

Ano em que concluiu a graduação em Serviço Social: _____ Unidade de Ensino em que realizou a graduação em Serviço Social: ________________

______________________________________________________________________ Fez ou faz o Mestrado? Sim ___ Não ___

Fez ou faz o Doutorado? Sim___ Não___ Especialização? Especificar_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ Formas de Participação na Profissão:

Atuou ou atua em organizações públicas ___ privadas____

Atuação direta com a população____ por quanto tempo?_________

Atuação em gestão e planejamento _____Por quanto tempo? _______

Atuação como docente na área do Serviço Social. Sim___ não_____ Por quanto tempo? ______________

Disciplinas que ministrou ou ministra: _______________________________________ ______________________________________________________________________

______________________________________________________________________ Atuação em entidades organizativas da profissão sim___ não __ Por quanto tempo? _________

Especificar: _______________________________________________________________________________________________________________________________________ Utilize o verso da folha para acrescentar outras informações que julgar necessárias. Local____________________ Data _____________

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ANEXO 2 Roteiro das entrevistas realizadas em Portugal Marli Pitarello 1. As condições de acesso (universal ou restrito) às políticas sociais têm comparecido com freqüência à pauta da discussão profissional desde os tempos do processo de democratização que ocorreram no Portugal e no Brasil. Qual é o seu entendimento das relações entre estudos socioeconômicos e direitos sociais? 2. Considerando que o atendimento aos usuários dos serviços sociais é atravessado por regras, normas, critérios e condições de acesso, acabando por colocar limites à ação profissional, o que pensa sobre os critérios de acesso às políticas sociais (como se apresentam hoje aos assistentes sociais em Portugal) e como lidou ou se lida com eles, no nível da operação concreta? 3. A realização da seleção socioeconômica tem sido uma atribuição dos assistentes sociais desde os primórdios da profissão. Gostaria que falasse um pouco sobre como a entende: o que é, papel, utilidade e significado social da seleção socioeconômica. 4. Em geral qual acredita que é a reação dos assistentes sociais ao terem de realizar seleções socioeconômicas, tanto em termos até mesmo pessoais, de seus sentimentos? Qual é o seu julgamento sobre esse procedimento dentro da profissão? 5. A ação do assistente social nos processos seletivos, ao final, faz com que alguns tenham acesso aos serviços e outros não, ou seja, alguns sejam aceitos e outros recusados. O que pensa sobre isso? As seleções em geral tendem a fazer com que os candidatos fiquem nos lugares certos? 6. Como acha que um assistente social deve lidar com aqueles que se sentiram injustiçados e que consequentemente fazem reclamações por não terem sido selecionados? 7. Tendo em vista o seu entendimento você pensa que as seleções socioeconômicas são formas pelas quais se pode realizar justiça social e promover a igualdade? Poderia dar exemplos? 8. Na realização dos processos seletivos, deparou- se com situações de pressão de caráter político para que privilegiasse alguém em detrimento dos critérios colocados? Gostaria que falasse sobre de que forma lidou com elas, exemplificando se possível com seus exemplos ou com o que ouviu de colegas. 9. Acha que os regulamentos acabam impondo muitos e insuperáveis limites ao profissional na seleção socioeconômica, ou acredita que, no entanto, na sua operação concreta, há a possibilidade dele realizá-la de várias maneiras? Mais de acordo com seu entendimento, fundado em seus preceitos teóricos e políticos, considera que há margem de manobra na operação dos critérios e diretrizes de tal forma que vale a pena investir nessas ou naquelas ações? Você até diria que na prática a teoria é outra? Se possível, dê exemplos de que forma isso pode ser feito.

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10. Quanto aos procedimentos (recursos? meios?) característicos de todo processo de seleção sócio-econômica, o que acha: a) da forma tradicional de qualificar e quantificar as situações específicas apresentadas pelos demandantes dos serviços, em relação à sua situação social e econômica, baseada unicamente no critério de renda, tanto no caso de uma caracterização e mensuração desta de forma individual, como de percapita familiar. O que você pensa a respeito e qual tem sido a sua experiência? b) do uso constante das entrevistas e das visitas domiciliares, entendidas como instrumentos privilegiados de operação. c) o que mais teria a dizer? 11. Gostaria que falasse um pouco sobre sua formação em relação a essa atribuição do assistente social: como e onde aprendeu a fazer seleções ou estudos de avaliação socioeconômica? Quais foram, enfim, as suas referências teórico- práticas? 12. Para ampliar e qualificar as respostas do profissional, mediante o domínio do desenvolvimento do processo de seleção socioeconômica, o que poderia indicar de leituras a um assistente social que deseja se instrumentalizar na realização de estudos sócio- econômicos? 13. Embasado na sua experiência, o que poderia dizer a um profissional recém formado sobre como deve ser realizado um bom processo seletivo? 14. Outras considerações que queira fazer em relação ao tema da entrevista, ou mesmo comentários que dizem respeito a sua participação como entrevistado nesta pesquisa. Roteiro elaborado na sua forma final em 15/11/2010

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ANEXO 3 a) Perfil das entrevistadas em Portugal, em dezembro de 2010

Nome e instituição Idade Graduação Pós-Graduação Experiência profissional prática

Experiência em docência

Disciplinas ministradas

Atuação em entidades

representativas da profissão

Alice Atua no Instituto Português de Oncologia de Lisboa (IPO).(1)

62

Em 1969, no Instituto de Educação de Luanda (Angola).

Mestrado. Doutorado (em curso). Especialização em Saúde: Oncologia. Tema: Práctica do Assistente em cuidados em fim de vida.

Na esfera pública: atuação direta com a população. Experiência em Gestão e Planejamento por três anos.

Há 30 anos.

Teoria e Metodologia do Serviço Social (graduação). Intervenção do Serviço Social em Saúde (pós-graduação). Curso de Gerontologia Social por 10 anos.

Experiência política significativa em Angola: antes, durante e depois da independência do país.

Fátima Atua na Acção Social do Instituto Politécnico de Lisboa.(2)

53 Em 1981, no ISSSL. Especialização em Administração Social.

Na esfera pública e privada: atuação direta com a população por 30 anos. Atuação em Gestão e Planejamento por oito anos, concomitante à atuação direta na intermediação entre alunos e o Estado.

Não tem. Não atuou como docente.

Atuação na Associação Profissional dos Assistentes Sociais por 30 anos

Notas: (1) Esse instituto é um centro de assistência/atendimento, de ensino e de investigação na área oncológica. Há um convênio entre o IPO e a Liga Portuguesa Contra o Cancro, estabelecendo que esta paga os medicamentos dos doentes que não têm meios para comprá-los, a partir de alguns critérios. A Liga dá por ano ao IPO uma simples quantia de 100 mil euros, advindos dos peditórios. “Há em Portugal o dia Nacional do Peditório, em que o povo dá dinheiro e depois usam esse dinheiro... Parte desse dinheiro é usada por nós, pelos nossos doentes e, nós, assistentes sociais somos quem fazemos a avaliação da situação” (depoimento de Alice). (2) O Instituto Politécnico de Lisboa é uma universidade pública situada em Lisboa. A equipe do Serviço Social desse serviço, constituída por quatro assistentes sociais, administra, durante o ano, em torno de 2.500 processos de solicitação de bolsas de estudo. A equipe realiza o estudo e a avaliação socioeconômica dos candidatos às bolsas de estudo, a partir da legislação vigente e das situações apresentadas pelos candidatos.

(continua)

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a) Perfil das entrevistadas em Portugal, em dezembro de 2010 (conclusão)

Nome e instituição Idade Graduação Pós-Graduação Experiência profissional prática

Experiência em docência

Disciplinas ministradas

Atuação em entidades

representativas da profissão

Luísa Atua na Santa Casa de Misericórdia de Lisboa.(3)

42 Em 1998, no ISSSL. Não tem.

Atua em entidade “semipública”. Atuação direta com a população há 13 anos.

Não tem. Não atuou como docente. Não atuou.

Tília Atua na Segurança Social (Seguridade Social) do Ministério da Solidariedade e da Segurança Social Portuguesa da cidade do Porto.(4)

61 Em 1970, no ISSSP. Mestrado.

Na esfera pública e privada; atuação direta com a população. Experiência em Gestão, Planejamento e Supervisão por três anos.

Há 25-30 anos.

No ISSSP (Instituto Superior de Serviço Social do Porto). Seminário de Investigação em Serviço Social. Seminário de Estudo das Prácticas do Serviço Social.

Atuação no Sindicato dos Assistentes Sociais.

Notas: (3) A Acção Social da Social da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa engloba o atendimento de demandantes do RSI, porque há um convênio com o Ministério da Solidariedade e da Segurança Social Português. A Santa Casa de Lisboa foi fundada em 1498, pela rainha d. Leonor, instituindo-se a Irmandade de Invocação a Nossa Senhora da Misericórdia na Sé de Lisboa. Foi a primeira das santas casas de Portugal. Hoje tem ramificações em todo o país, sendo que a de Lisboa é a maior, constituindo-se em tradicional campo de trabalho do assistente social na área da Assistência Social. A fonte de recursos dessa organização advém de jogos, uma vez que o Estado português concedeu a essa instituição o direito de monopolizar as seguintes loterias: Euromilhões, Totoloto, Totobola, Loto 2, Joker, Lotaria Clássica, Lotaria Popular e Instantânea. (4) A Segurança Social (Seguridade Social) Portuguesa, que integra o Ministério da Solidariedade e da Segurança Social Português.

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b) Perfil das entrevistadas brasileiras, em abril de 2012

Nome e instituição Idade Graduação Pós-graduação Experiência profissional

prática Experiência em

docência Disciplinas ministradas

Atuação em entidades representativas da profissão

Eunice Teresinha Fávero Atua na Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul).

55 1979 na PUC-Campinas.

Mestrado e doutorado em Serviço social.

Na esfera pública: atuação direta com a população por 29 anos. Atuação em gestão e planejamento por 14 anos. Pesquisadora do CNPQ. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre políticas e práticas sociais com famílias.

Há 11 anos

Na Unicsul: Fundamentos do Serviço Social (graduação). Oficinas de Áreas Temáticas: Criança e Adolescente. Relações de Gênero e Etnia. Processos de Trabalho (graduação). Poder público, Programas Sociais e Famílias (mestrado). Metodologia de Pesquisa (mestrado).

Primeira-secretária da diretoria executiva dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, gestões 2001/2005). Delegada do Cress-SP, Sorocaba, 1984/1985. Associação Profissional dos Assistentes Sociais do estado de São Paulo, Coordenação de Sorocaba, 1982/83. Assessoria eventual ao Cress sobre temas relacionados ao Serviço Social na área judiciária atual.

(continua)

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b) Perfil das entrevistadas brasileiras, em abril de 2012 (continuação) Nome e

instituição Idade Graduação Pós-graduação Experiência profissional prática

Experiência em docência

Disciplinas ministradas

Atuação em entidades representativas da profissão

Graziela Acquaviva Pavez Atua na PUC-SP.

57 1977 na PUC-SP.

Mestrado e o doutorado (em curso).

Na esfera pública: atuação direta com a população por 23 anos; atuação em gestão e planejamento por 14 anos. Atuou na Vara da Infância e Juventude do TJESP e na Casa Eliane de Grammont; em ambos os trabalhos, concentrou atividades relacionadas ao atendimento de vítimas de violência entre pessoas conhecidas (familiares, entre pais contra filhos e de homens contra mulheres, no interior das relações amorosas e conjugais, legalmente constituídas ou não). Participou de 1998 a 2010 do Fórum Paulista de Não Violência contra as Mulheres. De 1998 a 2003 foi pesquisadora da Fapesp no Programa de Políticas Públicas. Atuou e continua a atuar como consultora e assessora e supervisora de programas e profissionais que trabalham com atendimento a mulheres vítimas de violência.

Há 33 anos.

Na PUC-SP: Investigação em Serviço Social, Supervisão Acadêmica de Estágio, Oficina do Trabalho Profissional, Seminários de TCC, Orientação de TCC, Integra Coordenação do Núcleo “Violência e Justiça” (todas na graduação).

Não atuou.

(continua)

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b) Perfil das entrevistadas brasileiras, em abril de 2012 (conclusão) Nome e

instituição Idade Graduação Pós-graduação Experiência profissional prática

Experiência em docência

Disciplinas ministradas

Atuação em entidades representativas da profissão

Isaura Isoldi de Melo Castanho e Oliveira Atua na PUC-SP.

66 1967 na PUC-SP. Mestrado.

Na esfera pública e privada: atuação direta com a população por 30 anos. Atuação em Gestão e Planejamento por 15 anos

Na PUC-SP: Supervisão Acadêmica de Estágio, Oficina do Trabalho Profissional, Projetos de Investigação e Prática, Orientação de TCC, Integra Coordenação do Núcleo “Violência e Justiça” (todas na graduação).

Por cinco anos no Cress-SP.

Regina Célia Tamaso Mioto Atua na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

61 1973 na PUC-Campinas.

Mestrado e doutorado.

Na esfera pública: atuação direta com a população por 12 anos. Atuação em gestão e planejamento por dois anos Pesquisadora do CNPQ. Grupo de estudos e pesquisas em Serviço Social (GEPSS), da UFSC

UFSC: Estágio Supervisionado, Processos de Trabalho, Serviço Social: família e segmentos vulneráveis, Planejamento e Avaliação

Por 10 anos. Diretoria executiva da Abepss, dois anos; como colaboradora: representação, participação em fóruns; produção de material didático, etc.

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ANEXO 4

Roteiro da entrevista coletiva com assistentes sociais brasileiras

Comentários sobre três temas principais das entrevistas com as assistentes sociais portuguesas, discriminados abaixo:

a) como aparecem nas entrevistas com as assistentes sociais portuguesas; b) como têm aparecido em sua experiência pessoal e profissional (docente e de campo)

1. Formação para a realização da seleção socioeconômica

● Sua própria formação: gostaria que falasse um pouco sobre como se deu e vem se dando a sua formação em relação a essa atribuição do assistente social;

● Quanto aos assistentes sociais no Brasil: como analisa a situação atual e que caminhos vê para ampliação e aprofundamento;

● Em relação às assistentes sociais portuguesas (a partir da análise das respostas dadas na entrevista enviada);

● Principais obstáculos que encontrou pessoalmente em situações de decisão, teorização ou execução do processo de seleção socioeconômica.

2. Problematização da realização (instrumentalidade) da seleção socioeconômica pelos assistentes sociais nas organizações sociais

● Os entrevistados dessa pesquisa em Portugal foram unânimes em dizer que não gostam de realizar estudos socioeconômicos, pelas variadas pressões que sofrem; pelo desgaste emocional que geram e enfim pela frustração de não poder atender a todos. Mas, alguns deles conseguiram levantar algumas razões para satisfação em realizá-los. Como, na sua análise, essa questão se coloca aos assistentes sociais aqui no Brasil? ● Tendo em vista a sua inserção na categoria dos assistentes sociais quais são os principais desafios postos hoje aos profissionais na operação dos processos seletivos de corte socioeconômico?

● A seleção socioeconômica se pauta em normas e critérios impondo limites à ação do profissional. Na sua operação concreta, há a possibilidade do profissional proceder de várias maneiras, de acordo com seu entendimento próprio, fundado em preceitos teóricos e políticos. Considera que vale a pena investir na flexibilização dos critérios e qual deveria ser a direção das manobras possíveis? Exemplos sempre ajudam. ● As contrapartidas como condição de acesso e permanência aos serviços sociais estão na pauta da agenda profissional dos ASs na atualidade. O que vem refletindo sobre essa questão?

● A adoção do CRITÉRIO RENDA como critério para qualificar e quantificar as situações específicas apresentadas pelos demandantes dos serviços/benefícios, em relação à sua situação social e econômica, em três modalidades:

a) como ÚNICO ou BÁSICO na avaliação,

b) como INDIVIDUAL ou como PERCAPITA FAMILIAR,

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c) com base na RENDA BRUTA ou LÍQUIDA. d) OUTROS CRITÉRIOS de maior abrangência visando o enriquecimento da avaliação das situações (sugestões e análise de sua contribuição específica na qualificação e quantificação das situações apresentadas pelos candidatos, em termos de efetividade e eficiência. Incluir o parecer sobre o uso dos critérios próprios da avaliação da situação de Vulnerabilidade);

● Nível de decisão sobre os critérios (opções): a) definidos pelos níveis centrais (instâncias dos vários níveis de governo responsáveis pelo estabelecimento das políticas e programas); b) no nível de coordenação da execução dos serviços e prestação de benefícios;

c) o nível do próprio assistente social responsável pela seleção, que poderá fazê-lo conforme as situações que se apresentam no cotidiano com que lida.

d) Quais as questões aí envolvidas? Uso alternativo de instrumentos:

a) Entrevistas b) Visitas Domiciliares

c) Apresentação de Documentos e Comprovantes. d) Outros

● APRECIAÇÃO ESPECÍFICA dos ATUAIS CRITÉRIOS de acesso às políticas sociais (como se apresentam hoje aos assistentes sociais brasileiros, tanto nos de transferência direta de renda a famílias como em outros que quiser referir em outras áreas: habitação, saúde, proteção à criança, etc.).

3. O significado sociopolítico da seleção socioeconômica ● Nesse tipo de estudo socioeconômico, podemos afirmar que a ação do assistente social, ao final, faz com que alguns tenham acesso aos serviços/benefícios, e outros não, ou seja, alguns sejam aceitos e outros recusados. O que pensa sobre isso? A seleção socioeconômica, ao fazer essa separação, tende em geral a fazer com que os candidatos fiquem nos lugares certos?

● Qual é o seu entendimento sobre as relações entre estudos sócio-econômicos e direitos sociais?

● Tendo em vista o seu entendimento nesse aspecto você pensa que a seleção sócio-econômica é uma forma pela qual se pode realizar de alguma maneira a justiça social e promover a igualdade? Poderia dar exemplos?

São Paulo, 23 de abril de 2012 Marli Pitarello

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ANEXO 5

Recorte da entrevista realizada com Tília na cidade do Porto, em dezembro de 2010

... A entrevistadora pergunta: - Você não acha Tília, que a

teoria nos ajuda a entender o que está acontecendo conosco para não

ser só uma coisa muito emocional; que sociedade é essa que a gente

vive, que papel desempenhamos nela enquanto profissionais? Tudo

isso não poderia abrir um caminho?

Entrevistada: - Podia e eu acho que é um caminho possível.

Acho que é um bocadinho possível fazer a distância necessária

refletindo e é isto que eu me proponho fazer.

A entrevistadora: - Se você não sair da banalização do

cotidiano, da naturalização dos problemas, da idéia de que sempre foi

assim e, portanto, sempre será para poder entender... Você tem que

entender como é que funciona a sociedade para poder entender o que é

que se pode fazer nela.

A entrevistada: - Estou de acordo e à partida é isto que eu, ou

melhor, que eu esperava, gostava de fazer, o que eu esperava fazer

com as pessoas. Só que é tão difícil fazer com que as pessoas reflitam,

que não estou me achando capaz de conseguir isso. No fim da reunião

(referindo- se à reunião de supervisão já referida) eu propus, porque

depois há muitas... Isto é um jogo que é atravessado por muitas

questões: medo do chefe; medo de falar porque o chefe manda; porque

agora dizem-nos “para dar menos dinheiro”; depois dizem que “já há

dinheiro”. A gente nunca sabe o amanhã. Outras pessoas dizem que

“nem sequer se pode mais dizer algo alto; temos que obedecer porque

apesar de tudo, também existem dependências hierárquicas”. E então,

eu me dei conta... Então, também houve uma colega que disse “que

também não adianta, porque não é aqui que nós podemos resolver,

porque quem pode resolver isto, não resolve e nem quer e nós nem

podemos falar.”

A entrevistadora diz: - Parece que a gente para poder fazer um

bom trabalho, a gente precisa conhecer o lugar que a gente trabalha, a

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organização; perceber que é uma arena que tem muitas forças

presentes e pensar sobre como é que nos situamos e como podemos e

devemos nos situar naquela correlação de forças.

Entrevistada: - Mas se quiser pôr nesses termos, acho que as

minhas colegas vivem numa situação de alienação, exatamente,

porque o trabalho que elas fazem é dar dinheiro no imediato, sem

análise e sem possibilidade de reflexão. Eu fiquei tão preocupada

nesse dia porque podia sentir-se o medo e o risco; não se esqueça que

agora há polícia lá na sala de atendimento, há polícia porque há

beneficiários que entram lá exaltados. E eu achei que apesar do medo,

sobretudo, algumas pessoas revelaram o seu medo e chegaram a dizer

que “a culpa é dos chefes, porque os chefes se quisessem ajudavam, se

quisessem que fosse de outra maneira, poderia ser de outra forma.”

Entrevistadora: Tília, esta é uma conjuntura que está colocando

muito medo na sociedade, porque tem uma mudança, uma reviravolta

do orçamento do Estado, e isso acaba por ter repercussões na vida das

pessoas, mas teve algum momento nestes anos todos em que você

percebeu que isso era possível?

Entrevistada: - Achei que era possível.

Entrevistadora: - Esse grupo com que está trabalhando é novo?

Entrevistada: - Não, quer dizer, têm de todas as idades, tem

pessoas de 60anos, mas a grande maioria talvez seja de gente nova;

reformaram-se muitas pessoas ultimamente, algumas com 50 e tal, 60

anos. Mas há muitas pessoas jovens, mas para mim a questão é que

também as pessoas jovens, não trazem diferença no discurso, não há

diferenças na prática das jovens e das menos jovens. Acho que há aqui

um processo que é delicado também, porque acho que há muito pouco

entusiasmo dos profissionais, muito pouco entusiasmo dos assistentes

sociais. Eu não sei como é que se pode dar a volta, mas ao mesmo

tempo, isto é muito agressivo dizer isto dos profissionais, é agressivo

dizer isso dos profissionais que eu conheço, é muito agressivo. De

outro lado, as pessoas precisam de trabalhar, precisam do salário, e eu

recuso-me a entrar nesse discurso; temos de nos centrar, sobretudo, na

nossa missão, que é a de trabalhar com as pessoas que, de alguma

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maneira, tem problemas de inserção social. E sabe o que acontece?

Muitas vezes, começam a discutir a sua própria situação, isto acontece

em muitas situações; para muitos são os salários baixos, para outros os

cortes nos salários que vamos ter agora, aqui.

Entrevistadora:- Quem sabe se aquilo que está a falar seja um

caminho de recomeçar, quer dizer, neste momento, parece que a

situação dos usuários, se confunde um pouco com a própria condição

de trabalho dos assistentes sociais, talvez por isso se apresenta como

uma coisa nova, o empobrecimento de uma classe média, às vezes

pode nos fazer deslumbrar caminhos também.

Entrevistada:- Pois, mas eu própria também... Isso é novo,

quer dizer para mim é novo e, de fato, também é objetivo. Há colegas

minhas que eu sei que os maridos já perderam o emprego, há colegas

minhas que têm problemas familiares de desemprego de maridos, e

elas apesar de tudo, hoje em dia, ser funcionário público, pode-se ter o

salário cortado, mas ainda se vai tendo alguma segurança no trabalho,

pelo menos, por enquanto. Mas eu queria voltar a esta questão da

capacidade de reflexão, porque apesar de tudo, eu também tenho um

enquadramento institucional, e eu pensei, naquele momento, que se as

pessoas fizessem uma reflexão escrita sobre aquilo que sentiam, o que

gostam de fazer ou não gostam de fazer, daquilo que sentem na

situação atual, o que é que achavam que deveriam fazer, que se fosse

uma reflexão sozinha, sem nome, para dizer tudo o que lhes

apetecesse, sobre a instituição, sobre a sua atividade, se fossem elas a

decidir, porque elas disseram muito, o chefe é que manda, nós só

fazemos o que nos mandam, muito dominante este discurso e então eu

propus-lhes, neste momento que fizessem. Só tenho uma, são cartas

anônimas e todos disseram que sim, que faziam e que já uma

entregou, em principio, será até ao fim do ano e fiquei impressionada

com este testemunho que li. Como é que se faz com este testemunho,

que é...? Ela não gosta de fazer nada do que faz, “não gosto de dar

dinheiro, não gosto de ser maltratada pelos chefes, não gosto de vir

para o trabalho, não gosto de ser maltratada nas reuniões do Núcleo de

Inserção”, que é uma instância do programa do RSI, “sinto-me

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desvalorizada, acho que já nem sei ser assistente social”. Ou seja, é

impressionante o estado em que aquela mulher, profissional, pessoa,

está. E eu queria tanto pensar sobre isto.

Entrevistadora: - Vai acabar por chegar um momento na sua

vida em que tem de pensar sobre aquilo que diz respeito à sua

atividade profissional, não é?

Entrevistada: - Estou muito curiosa, queria fazer um

tratamento disto, porque, não sei, eu penso também que neste

momento, as instituições estão muito desorganizadas, é uma

burocracia enorme que submergiu as pessoas, e havendo burocracia,

põem-nos sempre a fazer coisas com papeis, fazer coisas que eles não

gostam de fazer e isso cria muito, aí minando, vai esvaziando.

Entrevistadora: - Você acha que há espaço de reflexão, por

exemplo, da acumulação teórica sobre política social e a legislação?

Entrevistada: - Acho, acho, mas acho que sem reflexividade,

sem nós levarmos a sério de que isto é uma profissão, que nós temos

uma formação teórica também, e é com essa formação teórica que nós

temos de fazer a diferença e criar um espaço, refletindo sobre as

práticas e, a partir do que fizermos, encontrarmos outras direções na

prática, e não é pela via do dar dinheiro.

Entrevistadora: - Você pode dar dinheiro e não fazer diferença

nenhuma na vida de uma pessoa embora ela tenha direito, e você pode

não dar dinheiro nenhum para dar a essa pessoa e fazer toda a

diferença na vida dela. Mas, para dar dinheiro, talvez você não

precisasse estudar 4 anos, mas para fazer um trabalho com as pessoas ,

talvez você tem que estudar a vida inteira. Por exemplo, eu só consigo

fazer um bom trabalho como professora se eu estudo, se vibro com os

meus estudos e com as minhas reflexões. Se não passo vida, esperança

no mundo ou algo do gênero aos meus alunos e para as pessoas, não

contribuo para nenhuma formação, para nenhuma mudança. [...]

Entrevistada: - Mas, de qualquer modo, penso que não é isso

que nos falta (referindo- se à teoria), não vou dizer que não falta às

nossas colegas, mas o que falta é usar tudo o que sabemos para pensar

em direções, orientações da nossa intervenção. Enquanto não houver

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aqui uma vanguarda, desculpe eu dizer assim, mas é uma vanguarda

no sentido de quem esteja mesmo preocupado em pensar isto que, não

é um pensar desligado. Isto para mim, só é possível com pessoas que

estejam na prática também, porque grupos de pessoas sós como eu,

por exemplo, a pensarmos, não encontram saída. Esta discussão tem

de ser teoricamente fundamentada e tem que ser também aqui

alimentada com as práticas de pessoas, com pessoas que estejam no

terreno e que possam ser desafiadas para isto. Eu fui a esta tertúlia e

cheguei aqui ao Porto e pensei isto, que isto é que era preciso. Tertúlia

é um debate pequeno, tipo conversa, não é um encontro com muitas

pessoas, portanto, a conversa possível, eu digo uma coisa o outro

completa por hipótese de eu estar a falar. Não é por ordem de, é mais

completar a idéia e pensei… [...] Eu vou me perguntando, pode me

interromper, mas só para acabar esta idéia, falei com uma senhora,

com uma colega que não era assistente social e disse-lhe, vim de

Aveiro com esta preocupação, quer me ajudar a pensar nisto? E

achamos que era muito difícil, onde é que nós vamos arranjar aqui

pessoas que estejam no terreno a fazer coisas e que queiram pensar

também isto com a ajuda da universidade, com a ajuda ou a

colaboração de pessoas que teoricamente estejam informadas?

Entrevistadora: É lógico que uma profissão é para o

profissional poder sobreviver como todas as pessoas, mas é também

para tirar algum prazer, gostando do que faz. Se a gente não sente

prazer naquilo que a gente faz, fica meio insustentável, precisa de

voltar a pensar nisto…

Entrevistada: Mas a minha questão é que eu não sei se é junto.

Muitas vezes é difícil, porque junto com isso pode perturbar a tal

relação de confiança e reciprocidade, de uma relação de ajuda, se

quiser. Não sei como é que vocês chamam lá, mas nós chamamos de

relação de ajuda, relação profissional de apoio, fazer um caminho com

a pessoa. [...] Nunca é neutra, mas eu acho que é possível fazer-se um

caminho lado a lado com a pessoa numa direção de libertação daquele

ser humano que está aprisionado por dificuldades.

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Entrevistadora: Mas você tem que lidar com um conflito

permanente entre os interesses dos dominantes do trabalho ou do

capital, como você quiser. Você precisa definir um pouco, quais são

os interesses que você vai defender, por exemplo, e a gente não faz

isso de forma tranquila, porque a realidade é contraditória. Mas, ao

você trabalhar você pode ressaltar, por exemplo, em vez de usar o

usuário, você usar a instituição na sua plenitude para poder ajudar o

usuário, não é?

Entrevistada: Pode usar na mesma a instituição, só que não tem

de ser assistente social.

Entrevistadora: - Não, mas eu estou falando dos assistentes

sociais. Você acha que é uma profissão que está a prestes a acabar

ou…?

Entrevistada: Não, o que acho é que nunca devia ser um

mediador em termos da prestação, exatamente, para tornar mais

possível, a outra relação, porque é possível estabelecer uma relação de

apoio, de ajuda, de comunicação recíproca, porque já chegaram a me

dizer assim, “deu ao meu vizinho e ele não precisa tanto como eu”.

[...] Eu só me refiro... Talvez na realidade brasileira seja possível. Eu

vou-lhe pôr esta questão, tentar ser útil, eu estava a pensar que

argumento é que eu vou dar agora a essa questão que me está a

propor? É que recentemente em Portugal houve cortes e houve cortes

no dinheiro da pobreza, no dinheiro da Ação Social, da assistência,

houve cortes muito grandes, poupou-se 1 milhão e tal. Eu estou a falar

mesmo do dinheiro dos pobres. Ontem o Presidente da República,

esteve num casamento de um sem-abrigo, foi padrinho dele e disse

que as pessoas têm direito à dignidade, a ter um teto, a não ter fome,

que devíamos ter vergonha que as pessoas tivessem fome, isto é uma

coisa. Agora há outra coisa que eu quero dizer que é se devem ser

dadas oportunidades às pessoas para sair da pobreza. Como é que

depois há uma inconsciência dos direitos e as pessoas vão lá ao

assistente social exigir e dizem, eu tenho direito, eu quero assim.

Porque é que há de ser ao assistente social que vai pedir? Por que é

que não há uma repartição onde vão e dizem, “eu não tenho

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rendimentos”, Pronto.Por que é que não se pensa nisso como um

direito, como um abono de família? É como qualquer outro direito,

quando vai dizer mal a uma pessoa, o assistente social, claro, que tipo

de relação pode fazer para além dessa, mais do que ouvir as pessoas

que, no fundo, vão ali reclamar um direito, e não é na assistente social

que têm de reclamar, tem de ser numa instituição que o garanta e pode

ser a Segurança Social.

Entrevistadora: Mas um assistente social, não é uma pessoa

que representa a instituição? Você fala em nome dela, porque quando

você é contratado…

Entrevistada: Mas não é só, pode haver vários profissionais.

[...]

Entrevistadora: - É que o profissional que sofre tanto parece

que vive sozinho, não se reúne, por exemplo. Os assistentes sociais

que trabalham na Segurança Social, talvez não se reúnam para

conversar que nós temos esse desafio, e aí pensar junto sobre que é

que nós podemos fazer coletivamente. Buscar e encontrar caminhos,

chamando um ou outro para encontrar caminhos talvez seja um jeito

de se protegerem; ter uma posição um pouco comum, talvez seja uma

estratégia. Eu sei que no Brasil, o pessoal que trabalha na área da

justiça, criança abrigada, sabe, têm uma organização incrível. Eles

fizeram um grupo para poder pensar suas situações e aí, quando cada

um volta para o trabalho, ele não se sente sozinho. Há estratégias que

são encontradas de forma coletiva.

Entrevistada: - Mas eu acho que o Serviço Social brasileiro

está muito à frente de nós, exatamente por isso, porque tem essa

tradição, mesmo a reconceitualização, eu lembro-me de um professor

brasileiro, tinha eu 20 e poucos anos, olhe, quando eu entrei para o

Serviço Social, quando comecei a trabalhar, que se chamava, não me

lembro do nome dele, mas lembro-me que ele veio cá, era o

Movimento da Reconceitualização, em 72 ou 73. Nessa fase, está a

ver, já vinham a Portugal, com percepções que nós ficávamos ali,

completamente... Nunca tínhamos pensado nessas coisas. Eu acho que

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o bom caminho é o vosso, mas acho, também, que cá em Portugal é

tão difícil isso, tão difícil.

Entrevistadora: - Lá também não é fácil. Mas, é através dos

instrumentos que você põe a teoria em atos, que você põe a política

em atos, quer dizer, através dos instrumentos, ou melhor, é no manejo

do instrumento... Essa formulação, não é minha, mas é através do

instrumento que você põe a teoria em atos, então se você não tem a

teoria, a reflexão constante, essa compreensão, a gente acaba sendo

engolido pelo cotidiano e a gente fica só legitimando esse cotidiano da

gente. Precisa ter teoria, precisa ter espaços organizativos, não é?

Entrevistada: - Sim, mas eu não sei se lhe estou a dar a idéia de

que estou a ser céptica, eu estou entusiasmada, mas quer dizer dentro

dos nossos contextos, mas há uma análise que não posso deixar de

fazer, porque esta é objetiva, quer dizer, não há movimentos

profissionais, não há. Estou aqui a constatar que não existem, das

escolas entre si, não estão juntas, estão separadas e até há em certos

momentos de rupturas de escolas, mas, estão a nascer outras

universidades novas, tem a ver com a escola Serviço Social, mas cada

uma por si, quer dizer, nós cá em Portugal, temos tido e temos

mostrado uma incapacidade de nos juntarmos.

Entrevistadora: - Olho para você e percebo que está angustiada

por ter se deparado com um grupo de profissionais que não está vendo

saídas e, talvez, esse coletivo, por exemplo... Paulo Freire tem uma

frase muito linda, que diz assim: o impossível só irá se tornar possível

se a gente começar a fizer o que é possível agora. Então eu vou

perguntar para você: e aí, nós estamos todos angustiados, resignados,

perdidos, mas o que é que nós podemos fazer? E se as pessoas

começassem a trabalhar no coletivo porque parece que a nossa

situação está igual a dos usuários e o que é que nós vamos fazer? Para

começar essa reflexão é preciso começar aqui, porque, quer dizer, a

gente não começa lá. Não dá para você ser um profissional... O que

quer dizer quando um aluno fala, eu só vou participar quando eu me

formar? Ou você começa agora, ou você não começa, então podemos

começar a criar alguma coisa agora. Eu estou me lembrando de uma

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oportunidade em que eu acompanhava um grupo lá do Brasil e eu

comecei a dar supervisão a eles e quando eu propunha coisas novas

eles me diziam assim, como estava muito difícil, eles diziam assim,

“olha você fala isso porque você conhece na teoria, você não está na

prática, vem viver aqui para ver...” Aí eu respondi a eles, “se a prática

em si fosse um critério de verdade, quem tem dez filhos deveria ser

melhor mãe do que quem tem um filho ou nenhum. Mas, olhando para

a realidade percebo que há mães que têm dez filhos e é um problema e

às vezes vejo uma que só tem um ou não tem nenhum e é um ótimo

educador. O critério então não é esse, o critério é o da reflexão, de

você pensar ao que você veio fazer, se faz aquilo com clareza ou não.”

Então, como é que você pode caminhar? Aí eu desafiava e dizia, “e aí,

como é que é isso para você?” Porque só o fato de pôr isso, já começa

a refletir. Eu não sei muito bem, mas eu acho que a gente não precisa

ter ótimas condições para poder começar. Tem pessoas na

universidade que defendem que é necessário ter situações especiais

para aprender uma boa prática. Eu não penso assim. Não, o aluno tem

de aprender naquela realidade difícil, agora faz toda a diferença se ele

tem um supervisor que tem esperança, que lida com as contradições

ou não. Quando um profissional se posiciona tentando criar caminhos

diante das situações que vão se apresentando no cotidiano, já cria a

possibilidade de um bom aprendizado para o aluno.

Entrevistada: - Isto, eu estou de acordo, em relação à questão

do ensino, acho que podemos ter imensa influência e que se pode

fazer a diferença, por exemplo, constrói-se sempre, há sempre

hipótese de intervenção, não sei a maneira...