PORTO, Liliana. Uma Reflexão Sobre Os Faxinais.
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Uma reflexo sobre os faxinais: meio-ambiente, sistema produtivo, identidades polticas,
formas tradicionais de ser e viver
Liliana Porto
A proposta deste texto refletir sobre um contexto ambiental, social, econmico e poltico de
fundamental importncia para a compreenso da presena e organizao de populaes
tradicionais no Centro-Sul do Paran, que se explicita atravs dos vrios usos da noo de
faxinal. Para tanto, ter como base uma reviso bibliogrfica sobre o tema, bem como a
experincia de pesquisa de campo em Pinho/PR municpio marcado pela presena de matas
mistas de araucria, de grandes contingentes de populao tradicional, bem como de prticas
passadas e presentes de organizao produtiva que se estruturam de acordo com a lgica do
que a literatura denomina sistema faxinal.
Ao analisarmos, por sua vez, a maneira como a noo mobilizada, tanto na bibliografia
quanto nos contextos contemporneos, por historiadores, acadmicos, moradores locais,
agentes estatais ou militantes na luta pela terra, observamos perspectivas distintas sobre os
faxinais. Destacam-se trs: 1) faxinal como descrio de um determinado meio-ambiente, que
em alguns momentos se aproxima da noo de faxinal como criadouro comum; 2) faxinal
como sistema produtivo; 3) faxinal como identidade e proposta poltica de construo de
direitos e usos do territrio. Apesar de distintas, contudo, tais perspectivas no so
desarticuladas: dialogam e se contrapem, resultando tais contatos em uma dinmica de
deslocamentos e resignificaes. Alm disso, a ordem acima apresentada tambm
cronolgica, sendo a utilizao do termo para definir um contexto ambiental (geralmente
vinculado a um uso especfico: como criadouro comum) anterior quele que o define como
sistema produtivo, e este, por sua vez, antecede sua definio como identidade na luta
poltica. E, ainda, todas elas trazem consigo, embora muitas vezes de maneira no explcita,
referncia a certa forma de ser e viver que implica em valores que definem as relaes com o
meio natural, com os demais membros dos grupos sociais e com o mundo sobrenatural.
Valores estes que se relacionam com regras de convivncia grupal que envolvem respeito,
reciprocidade e responsabilidade ambiental e social1.
Definido como um regionalismo do sul do pas, a noo de faxinal como meio-ambiente pode
ser encontrada em textos sobre a regio desde o sculo XIX. Assim, por exemplo, ao descrever
sua viagem pelos sertes de Guarapuava, Jos Francisco Nascimento afirma que:
A 13 de Maio entramos no Chag ao rumo de 78 gros noroeste, e depois de 26 dias de tempo chuvoso e frio conseguimos com difficuldade abrir 9 leguas de picada, por onde passavam 6 cargueiros carregados. No lugar onde fazia as 9 leguas de picada, tivemos de invernar 11 dias, por causa das
1 necessrio, contudo, no construir uma viso romntica idealizada sobre os grupos tradicionais que
se vinculam, de formas diversas, aos faxinais. Embora as caractersticas citadas sejam efetivas, tambm se observa a presena de conflitos e tenses significativos na estruturao de tais grupos inclusive vinculados questo do compscuo.
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chuvas e ribeiros cheios; dalli pretendamos seguir quando o tempo melhorasse, visto que o terreno parecia ser menos montanhoso, e menos difficultoso para os trabalhos, porque j se avistavam faxinaes e vestgios de campos (Nascimento, 1886: 269).
Neste contexto, ela se aproxima muito das definies do dicionrio Houaiss sobre o termo
(campo que avana pelo interior de uma floresta ou cercado por altas rvores) ou do
dicionrio Michaelis (campo coberto de mato curto). Distancia-se, no entanto, daquela
utilizada dos depoimentos de moradores de Pinho2, em que faxinal remete s matas de
araucria comuns no local. Nestas, alm da presena do pinheiro, destacam-se a existncia de
madeira de lei como a imbuia, bem como de ervais nativos. Aqui, embora a nfase ambiental
seja clara, h uma relao entre o ambiente e as atividades econmicas nele realizadas, e os
faxinais so pensados a partir de sua oposio s capoeiras. Vistos como adequados tanto
para atividades extrativistas (de erva-mate, pinho e madeira esta ltima restrita devido
atual legislao ambiental) quanto de criao de gado, cavalos e animais de pequeno porte3,
seriam inapropriados (devido excessiva acidez do solo) para a produo agrcola. Tal
atividade, portanto, precisaria ocorrer em uma rea especfica, as capoeiras, pensadas como
terras de cultura em geral situadas em terrenos mais dobrados, sem a presena da floresta
e mais prximas dos rios. Trecho de entrevista com Renato Passos, memorialista de Pinho,
exemplifica tal perspectiva:
R: O faxinal aquele mato mais alto que... vamos distinguir, tem a capoeira, um mato fino, quase sempre formado por bracatinga. Hoje quase no tem mais. E o faxinal aquele que era pinheiro, imbuia, e erva-mate, e canela, um mato mais alto. E embaixo pasto. Que o pessoal costumava criar tambm gado ali, e porco solto, que comia o pinho, e criava muito cabrito, que o cabrito se d bem no faxinal. E muito cavalo tambm que era criado no faxinal (Entrevista com Renato Passos realizada em 09/06/12).
Acrescente-se, ainda, serem os faxinais o espao onde se construam as moradias no passado,
o que leva a que vrios dos grupos rurais de Pinho sejam conhecidos a partir desta
denominao: como exemplo, Faxinal dos Taquaras, Faxinal dos Ribeiros, Faxinal dos Silvrios,
Faxinal dos Coutos, entre outros.
As terras de cultura, a fim de terem a produo protegida da eventual destruio pelos animais
criados solta nos faxinais, eram ou distantes dos mesmos, ou deles separadas por algum
acidente natural, ou mesmo por cercas construdas pelos habitantes regionais. Nestas terras se
localizavam os paiis, utilizados tanto para armazenamento dos produtos agrcolas quanto
para abrigo e morada durante perodos em que h intensificao do trabalho na lavoura.
2 rea em que concentro minhas pesquisas sobre o tema, e que reconhecida como um dos principais
municpios do Paran quando se considera a relevncia da presena de faxinais. tambm o municpio de origem de um dos principais lderes do movimento faxinalense na atualidade. 3 Porcos, cabras, ovelhas, galinhas e outros animais de porte menor.
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o uso das reas de faxinal como compscuo por grupos rurais tradicionais4 que leva a que o
termo passe a designar no apenas o ambiente, mas tambm um sistema produtivo complexo,
marcado pela conjugao da policultura de subsistncia, criao solta e extrao de erva-
mate (tambm de pinho, madeira, frutos e ervas medicinais). Tal sistema conjugar uso
familiar e comum do territrio, produes diversificadas destinadas tanto para o autoconsumo
quanto para o mercado, ciclos produtivos de durao diferenciada (vrios deles ultrapassando
o mnimo de dois anos como o caso da extrao de erva-mate e madeira, ou criao de
alguns animais).
A nova definio, por sua vez, ser desenvolvida em um contexto bastante especfico: a
produo de pesquisadores vinculados ao IAPAR (Instituto Agronmico do Paran) e com
insero acadmica, ocorrida na dcada de 1980. O primeiro texto resultante do grupo
interdisciplinar de pesquisa constitudo pelo IAPAR o de Horcio Martins (1984), no
publicado. Nele, o autor relata ter partido de uma inquietude pessoal quanto existncia de
criadouros comunitrios na organizao da produo da pequena burguesia agrria do Estado
do Paran e de Santa Catarina (:04), e da ausncia de textos acadmicos sobre o tema.
Criadouros estes conhecidos como faxinais5. Aproveita, ento, a possibilidade de pesquisa
aberta pelo IAPAR para fazer registros sobre o tema, mas no redige um relatrio, sendo o
texto apresentado uma reflexo que ocorre fora do ambiente institucional e tem como base
estudo de caso realizado no Faxinal Rio do Couro, em Irati/PR. A nfase dada pelo autor no
criadouro comunitrio marcar, como veremos, todas as discusses estatais e acadmicas
posteriores sobre os faxinais. Ele assim os define:
O criadouro comunitrio uma forma de organizao consuetudinria que se estabelece entre proprietrios de terra para sua utilizao comunal tendo em vista a criao de animais. A rea de um criador comunitrio constituda por vrias parcelas de terras de distintos proprietrios, formando, umas ao lado das outras, um espao contnuo (1984: 12).
O criador comunitrio um resultado histrico da criatividade do trabalhador direto na condio de pequena burguesia agrria, sob
4 O dicionrio Houaiss apresenta outra definio de faxinal, como campo de pastagem com presena de
arvoredo esguio, que aponta na identificao entre faxinal e criao de gado. No h, contudo, nenhuma referncia ao carter de pastagem coletiva dos faxinais em qualquer dos dicionrios consultados. 5 No entanto, Carvalho afirma que, embora possa se estabelecer esta relao, criador comunitrio e
faxinal no so sinnimos (retoma a noo de faxinal como descrio de um tipo de meio-ambiente), como se percebe no seguinte trecho: O criador comunitrio tambm denominado de faxinal. Entretanto, ainda que aceito vulgarmente esta sinonmia, faxinal e criador comunitrio apresentam substanciais distines./Originalmente (...) o faxinal se referia ao mato denso ou grosso, ou seja, a rea de vegetao mais cerrada, se comparadas com outras reas s quais se denominava mato ralo. No faxinal ocorria a presena das espcies florestais pinheiro (araucria) e erva mate, alm de apresentar razoveis condies de pastagem natural. O faxinal era preservado para prticas extrativistas da madeira (pinho) e da erva mate, alm de servir de espao para a criao extensiva e semi-extensiva de animais. As derrubadas de mato para a formao de lavouras eram realizadas em reas onde se observava a presena de mato ralo (...)/(...)/Nesse sentido posso afirmar que a expresso faxinal possui um significado mais amplo do que a de criador comunitrio. Este uma forma de organizao da criao de animais em terras de uso comunal que se d em reas de faxinal. Assim, num faxinal pode-se encontrar rea que destinada a criador comunitrio e outra(s) para uso privado (1984: 14-15).
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determinadas condies de trabalho e a necessidade objetiva de equacionar seus problemas de produo determinaram suas inventivas, dando-lhe a fora da descoberta nas prticas do seu viver com a natureza e com os outros homens (1984: 07).
Abordando o modelo do criador comunitrio fechado em seu permetro, e estabelecendo
relaes no muito claras entre sua existncia e os interesses dos capitalistas, explicita a
relao entre os faxinais como compscuo e o interesse dos proprietrios na extrao de
madeira e erva-mate. Constri, portanto, o modelo do trip econmico fundado no
extrativismo, lavoura e criao animal posteriormente desenvolvido como sistema faxinal por
Man Yu Chang (1988), mas no explora de maneira sistemtica este trip. Com foco
permanente no criador, define como motivo central para sua criao a economia de material
na construo de cercas que separassem as reas de pastagem das de lavoura. No entanto, a
partir do momento em que ele se estabelece, marca a sociabilidade local e instaura relaes
de amizade, vizinhana e compadrio entre os participantes do sistema. Tambm define
padres mais amplos de trabalho, uso da terra, compra e venda, herana.
Menos preocupado com a elaborao de um modelo geral, e voltado anlise do contexto de
pesquisa no Faxinal Rio do Couro, o autor aponta as vrias etapas histricas de constituio,
consolidao e desarticulao do criadouro comunitrio. Ressalta as mudanas ocorridas ao
longo do perodo entre 1910 e 1981, sendo relevantes aspectos como a alterao dos
principais produtos comerciais batata, trigo, erva-mate, sunos, madeira, fumo ,
substituio de mo de obra familiar e processos de trabalho coletivo (mutiro, localmente
denominado puxiro) pelo trabalho assalariado, emigrao de mo de obra local, conjugao
de produtos para o autoconsumo e produtos para o mercado (havendo duplo destino em
alguns casos), ocorrncia de crises econmicas ao longo do perodo. Atravs desta anlise se
esclarece a definio dada pelo autor dos participantes do criador comunitrio como pequena
burguesia agrria pois que proprietrios de terras, produtores para o mercado e, aps um
perodo, contratantes de mo de obra assalariada.
A anlise de um caso particular, se por um lado no permite elaborar um modelo geral na
medida em que, por exemplo, questes como a propriedade das terras no se aplicam a
situaes como a de Pinho, em que predomina o direito pela posse no documentada , por
outro possibilita perceber dinmicas sociais mais detalhadas e que no ocorrem em um
sentido nico. Assim, o criadouro comunitrio coexiste com produes distintas, bem como
com distintos usos da mo de obra. Alm disso, no h um caminho nico no sentido de sua
desagregao (ou seja, mais fcil reconhecer a historicidade prpria do sistema): apesar da
crise identificada pelo autor na dcada de 1970, ele retomado posteriormente, encontrando-
se em posio mais slida na dcada seguinte. Conjugam-se o uso comum e o uso
individual/familiar da terra, a produo para o autoconsumo e para o mercado, a explorao
prpria e por grandes empresas (p.ex. madeireiras) das reas de faxinais, os arrendamentos, a
diferenciao econmica entre as famlias locais ao longo do tempo. Alm disso, apesar de o
foco se dar na produo, h indcios da influncia do criador comunitrio nas relaes sociais
locais.
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No entanto, ao final, apesar de afirmar a organizao slida do criadouro comunitrio em Rio
do Couro no momento da pesquisa, Carvalho aponta foras que indicariam no sentido da
futura dissoluo do criador entre as quais as tendncias de emigrao e assalariamento das
famlias locais, a ao de empresas madeireiras, a modernizao da pecuria, discursos
higienistas. E termina por afirmar a necessidade de resgate desta forma de organizao
produtiva abrindo espao para se pensar o modelo de criador comunitrio como proposta
poltica de organizao de pequenos produtores rurais:
O criador comunitrio, como forma de organizao dos produtores rurais no uso comum da terra para a criao de animais, se constituiu, e se constitui, em parte da histria da agricultura do Paran (e de Santa Catarina), em particular de algumas de suas regies e para determinadas classes sociais. Resgat-la, recuperar seus traos mais relevantes, mobilizar os prprios autores da sua gerao e consolidao para a reconstrurem, e dela tecerem novas ou renovadas alternativas para a organizao da criao de animais, tarefa que no se deveria relegar para tempos futuros. As memrias, como as saudades, necessitam de contnuo alento para se tornarem imorredouras (1984: 78).
Mas se no texto de Carvalho h uma perspectiva do faxinal como um sistema produtivo mais
complexo e articulando aspectos de economia familiar para o autoconsumo e economia de
mercado, no de Man Yu Chang (1988), publicado como boletim tcnico n. 22 do IAPAR, que
ocorre a sistematizao de referncia desta perspectiva marcando a ao posterior do
Estado, principalmente atravs da publicao do Decreto Estadual 3446/97, que define a
criao de reas Especiais de Uso Regulamentado (ARESUR) em regies caracterizadas pelo
sistema faxinal, e da realizao de levantamentos dos faxinais existentes no Paran; bem
como a discusso do movimento social sobre a caracterizao dos faxinais, a construo de
uma identidade faxinalense e a elaborao de um mapeamento concorrente queles dos
rgos estatais. J na primeira pgina da Introduo, a autora traz uma sntese de sua
abordagem, ao afirmar que:
O sistema faxinal, objeto central deste estudo, uma forma de organizao camponesa caracterstica da regio Centro-Sul do Paran que ainda se apresenta de forma marcante. Sua formao est associada a um quadro de condicionamentos fsico-naturais da regio e a um conjunto de fatores econmicos, polticos e sociais que remonta de forma indireta aos tempos da atividade pecuria nos Campos Gerais no sculo XVIII, e mais diretamente atividade ervateira na regio das matas mistas no sculo XIX.
A semelhana dos demais sistemas de produo familiares, o sistema faxinal apresenta tambm os seguintes componentes: produo animal criao de animais domsticos para trao e consumo com destaque s espcies equina, suna, bovina, caprina e aves; produo agrcola policultura alimentar de subsistncia para abastecimento familiar e comercializao da parcela excedente, destacando as culturas de milho, feijo, arroz, batata e cebola; coleta de erva-mate ervais nativos desenvolvidos dentro do criadouro e coletados durante a entressafra das culturas, desempenhando papel de renda complementar.
(...)
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O que torna o sistema faxinal atpico sua forma de organizao. Ele se distingue das demais formas camponesas de produo no Brasil pelo seu carter coletivo no uso da terra para a produo animal. A instncia do comunal consubstanciada nesse sistema em forma de criadouro comum, espao no qual os animais so criados solta (Chang, 1988: 13-14)6.
Este trecho j indica a complexidade da anlise da autora, bem como a diversidade de
caractersticas que mobiliza para construir a definio de sistema faxinal. Um primeiro
aspecto significativo o carter histrico do sistema: ele se constitui a partir de um contexto
especfico de relao entre a economia local e a comercializao da erva-mate que, no final
do sculo XIX e incio do XX, se torna o principal produto de exportao do Paran, chegando a
ser o terceiro do pas. E, aqui, importante lembrar a afirmao de Magnus Pereira (1996)
sobre a relevncia da burguesia do mate no estabelecimento de uma indstria em moldes
capitalistas no Paran, embora a sua produo fosse realizada por populaes rurais
localizadas em reas de ervais nativos:
O comrcio do mate entre o Paran e a regio platina, desde a sua legalizao em 1722, esteve nas mos de um pequeno grupo de comerciantes que controlava esse mercado. J a produo estava a cargo de uma infinidade de produtores artesanais autnomos. Em princpio, qualquer pessoa adulta estava habilitada a produzir mate. As tcnicas artesanais de beneficiamento eram de domnio pblico e no exigiam instrumentos ou edificaes dispendiosos. Os arbustos do mate eram nativos e disseminados nas matas que cobriam boa parte da regio. Portanto, em relao erva-mate ou s populaes que dela faziam uso, no havia nada que prenunciasse o ulterior desenvolvimento de tcnicas industriais de beneficiamento. A produo do mate no exigia necessariamente nenhuma concentrao de capital (Pereira, 1996: 42).
Chang aponta, portanto, para um sistema que, se em uma ponta desenvolve um processo de
industrializao responsvel pela implantao de processos produtivos em moldes capitalistas
no Paran, bem como redefine grupos de poder estaduais e altera a configurao de sua
regio leste principalmente Curitiba , na outra ponta se baseia no trabalho dos produtores
artesanais que, a fim de conservar os ervais, lidar com um ciclo produtivo de no mnimo dois
anos, aproveitar com outras atividades as reas onde se encontram, e mesmo facilitar o corte
do mate, instauram um modelo de uso comum da terra. Em outras palavras, em que ao
desenvolvimento capitalista esto relacionadas formas de trabalho e territorialidades no
capitalistas.
O uso comum, contudo, se d atravs do modelo de compscuo, e no se estende a todas as
possibilidades produtivas relacionadas rea abrangida pelo criadouro coletivo aberto ou
6 interessante observar que, em nota ao longo deste trecho, Chang reconhece a referncia local a
faxinal como um tipo de vegetao, bem como o uso do termo para se referir exclusivamente ao criadouro comum, alm deste uso em que a referncia a todo um sistema produtivo, que se estende alm dos faxinais ambientalmente definidos.
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fechado7. Com efeito, se a criao de animais solta se d com base no uso comum, as
atividades extrativas so realizadas pelas famlias que reconhecidamente detm a propriedade
ou posse de certas parcelas do territrio definido como compscuo. Conjuga-se, portanto, o
uso familiar e comum de certas regies.
Acrescente-se a isto um segundo aspecto apontado pela autora: a separao entre reas de
criao/extrativismo e de lavoura. Esta pode se dar tanto pelo sistema de cercas descrito por
Carvalho quanto por acidentes naturais, ou ainda a distncia estabelecida entre as terras
destinadas a cada uma destas atividades. O que indica uma organizao territorial em que h
descontinuidade entre as parcelas controladas por um nico grupo domstico. Assim, se as
moradias so construdas nos faxinais, elas se encontram muitas vezes distantes alguns
quilmetros ou separadas por rios ou outras barreiras naturais das terras de lavoura da famlia.
Tal fato define, ainda, a importncia dos paiis, que no s permitem o armazenamento da
produo alimentar, mas tambm so utilizados como moradia temporria, por parte do grupo
domstico, durante alguns perodos do ciclo agrcola.
O sistema faxinal tambm se caracteriza pela conjugao da produo para o autoconsumo e
para o mercado. Quase todos seus produtos inclusive a erva-mate e os produtos agrcolas
so tanto comercializados quando consumidos localmente. Aqui, importante lembrar a
definio de Afrnio Garcia Jr. de lavoura de subsistncia, ao abordar regies vinculadas
plantation nordestina:
Usamos aqui a expresso lavoura de subsistncia num sentido bem particular (...): trata-se de lavouras (...) que se destinam tanto ao autoconsumo quanto venda eventual. Tm, por conseguinte, a marca da alternatividade: ou uso comercial, ou uso domstico. Identific-las a cultivos no mercantis, economia natural cair no erro... (1989: 87-88).
No caso dos faxinais, importante ressaltar que esta perspectiva da alternatividade, por sua
vez, no se aplica apenas lavoura, mas tambm ao extrativismo e criao animal. E no
adequado, em tal contexto, dar destaque especial s atividades agrcolas (como ocorre nas
abordagens clssicas sobre o campesinato); ao contrrio, o trip produtivo que envolve
agricultura, extrativismo e criao pode ter como nfase mais as duas ltimas atividades que a
primeira.
Mais um aspecto relevante do sistema se refere diversidade daqueles que fazem parte da
formao do compscuo. Como apontamos anteriormente, estes podem ser tanto
proprietrios oficiais de suas parcelas quanto terem seus direitos a elas definidos por posse
no documentada. Alm disso, Chang ressalta que o criadouro englobava terras de grupos
distintos: a populao tradicional da regio das matas mistas (os caboclos), imigrantes
europeus vindos para esta regio entre meados do sculo XIX e as primeiras dcadas do sculo
XX, grandes proprietrios rurais (os fazendeiros), agregados destas fazendas que no tinham
7 Os dois modelos se relacionam com a disponibilidade de terras na regio: enquanto o criador aberto
em geral ou no apresenta cercas quando h outras formas de separao dos animais das terras de cultura ou no as apresenta em toda sua extenso (no havendo divisas em algumas extremidades), o criador fechado todo ele cercado, sendo a responsabilidade na manuteno das cercas distribudas entre seus participantes.
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controle direto sobre o territrio. Assim, movimentos de poltica externa de povoamento das
reas do interior do Paran e a necessidade de readequao de grandes proprietrios
regionais aps a retrao da atividade do tropeirismo levaram a que os novos habitantes se
adequassem ao contexto social e ambiental no qual se inseriam, bem como que os grandes
proprietrios respondessem de novas maneiras a um contexto econmico diferenciado. No
que se refere especificamente aos imigrantes europeus, a autora ressalta os conflitos
existentes entre a forma de produo agrcola que tentam implantar e a prtica de criao a
solta dos moradores regionais e como o compscuo se torna uma soluo interessante para
conciliar os conflitos surgidos entre estes dois grupos com distintas formas de produo
camponesa. Novamente, portanto, pode-se inferir a inadequao de um modelo dicotmico
que tenha por base noes como tradicional x moderno, ou antagonismos como populao
tradicional x expanso do capitalismo para pensar as dinmicas e a historicidade do sistema
faxinal.
Apesar disto, contudo, algumas das pressuposies de Chang impedem com que ela reconhea
e desenvolva esta complexidade ao se referir ao presente. A historicidade reconhecida no
processo de constituio e consolidao do sistema negada quando, a partir do momento
em que este atinge configurao semelhante do modelo desenvolvido, qualquer mudana
passa a ser interpretada como desagregao (transformao se apresenta como sinnimo de
desestruturao cf. 1988: 77). Desagregao esta inevitvel, pois a autora, j no incio do
texto, afirma que a racionalidade da produo capitalista (que pensada como dada e de
expanso bvia) definiria a propriedade e uso privado dos meios de produo como suposio
bsica. E, se o uso comum que determina a inadequao do sistema expanso do
capitalismo, o criadouro comum, que apenas uma de suas caractersticas, passa a ser o
aspecto fundamental e, portanto, restries no criadouro comum se tornam sinnimo do fim
do sistema. Acrescente-se que a nfase excessiva nos ciclos econmicos, a partir da crise da
economia do mate, refora ainda mais o argumento anterior, na medida em que uma das
bases de constituio e manuteno do sistema vista como perdendo fora para o ciclo
madeireiro este com tendncia de destruio das matas mistas, e no de sua conservao.
So, portanto, quatro os elementos identificados como responsveis por esta desintegrao
(apresentada, em certa medida, como inevitvel): intensificao e tecnificao da produo
pecuria; valorizao da terra; reduo das matas nativas (principalmente pela ao de
madeireiras); polticas desenvolvimentistas estatais. Assim, nas palavras de Chang:
Finalmente, cremos que podemos sugerir que, se mantido esse ritmo de transformao analisado e desenvolvido nesse trabalho, cremos que dentro de 10 ou 12 anos, o sistema faxinal no mais far parte do setor produtivo rural do Paran, e sim ser lembrado, talvez, como parte da histria da agricultura desse Estado (1988: 109).
Entretanto, no desta maneira que a autora termina seu texto, mas com o que chama de
Constataes Ps-Pesquisa, em que relata o impacto das atividades do IAPAR na organizao
dos moradores de faxinais, que passam a se mobilizar no sentido de constituir um movimento
de defesa dos criadouros tambm como resposta a determinadas polticas para o
associativismo de pequenos produtores implementadas pelo governo estadual. Embora esta
possibilidade se abra, a autora, ao analisar as complexidades envolvidas na manuteno do
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criadouro comum, no coloca em xeque sua perspectiva anterior de limitao do sistema
faxinal a este aspecto, nem da aparente inevitabilidade da desagregao do sistema atravs da
reduo ou desaparecimento do criadouro. Por fim, refora a importncia da manuteno do
mesmo no devido estrutura do sistema faxinal, mas experincia do coletivismo que
instaura, e que aparece como alternativa poltica que pode ser extrapolada para outras
esferas de produo e organizao (1988: 112).
H, ainda, duas outras referncias bibliogrficas da produo de autores vinculados a rgos
pblicos do Paran, que tm em Carvalho e Chang referncias privilegiadas: Gubert Filho
(1987) e Gevaerd Filho (1986). Apesar da publicao anterior do texto de Geaverd, este cita
tanto Gubert como Carvalho e Chang, em verses no publicadas de seus trabalhos. Aqui, as
formaes especficas dos autores marcam sua perspectiva da temtica. Assim, Gubert,
engenheiro agrnomo, preocupa-se em definir ambientalmente as reas de faxinais, marcadas
pela predominncia de matas de araucria degradadas pelo pastoreio extensivo, realizado em
criadores comuns (1987: 32). Concentrando suas reflexes no contexto de Irati, considera
apenas os criadouros cercados, e destaca a fertilidade natural do solo no perodo de ocupao
regional como um dos elementos definidores da separao entre reas de lavoura e reas de
criao-extrativismo (sendo estas significativamente menos frteis). Seu texto tambm traz
uma questo relevante: como o deslocamento de colonos gachos8 para a regio provocou
conflitos e uma desarticulao dos criadouros comuns, pois outra concepo de produo e a
nfase na agricultura colocaram em xeque os modos tradicionais de organizao social e
produtiva dos faxinalenses9. Conflitos que tambm estimularam os fazendeiros locais a
fecharem seus pastos. O autor, portanto, destaca elementos muito concretos de inviabilizao
do compscuo, mas termina por reforar a relao entre este e a definio de faxinal, bem
como a perspectiva de sua desagregao.
J no caso de Geaverd (1986), com formao em Direito, a grande questo a presena da
figura do compscuo na legislao brasileira, e a reflexo sobre como lidar com pedidos de
usucapio especial por parte de trabalhadores rurais, principalmente no que se refere a
conflitos relativos a cercamento de pastos comunais. Aqui, a sinonmia entre faxinais e
compscuo dada, bem como a afirmao de sua extino prxima apesar de ser este um
modelo poltico pensado como interessante , como se percebe no seguinte trecho:
bvio que os faxinais ou compscuos encontram-se em fase de extino, devido, entre outras coisas, a brutalidade inerente s formas odiosas e distorcidas de concentrao e explorao de terra vigentes em nosso pas. Essa constatao, todavia, no ilide nem tem o condo de desaconselhar uma anlise cuidadosa e crtica do fenmeno, mormente num momento em que a ateno nacional volta-se para a questo da reforma agrria e da proteo ao meio ambiente. O desprezo com que o historiador e o jurista ptrio contemplaram o instituto no pode ser imitado por aqueles que
8 Neste caso, assim como em Pinho, os gachos so provenientes do oeste do Paran, sendo
descendentes de famlias migrantes do Rio Grande do Sul. 9 Aqui, cabe ressaltar que o conflito se d entre dois grupos camponeses tradicionais, mas com distintas
dinmicas produtivas um deles com foco na agricultura, enquanto outro na criao animal a solta no sistema de compscuo.
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sentem-se compromissados com a pesquisa de formas alternativas, comunais e justas de explorao do solo (1986: 46).
Os quatro autores aqui considerados permitem perceber que se constri, a partir de meados
da dcada de 1980, no interior dos rgos estatais de reflexo sobre a terra e a questo
ambiental no Paran, o faxinal como uma temtica relevante de pesquisa, reflexo e ao
poltica. E, se podemos ver principalmente nos textos de Carvalho (1984) e Gevaerd Filho
(1986) estmulos importantes para a percepo do faxinal (pensado como criadouro comum)
como proposta poltica de organizao de grupos rurais (embora tambm aqui haja a previso
de sua dissoluo inevitvel), o trabalho de Chang ser a grande referncia para as aes
estatais posteriores sobre esta temtica10. No entanto, no por sua descrio refinada e
historicizada do sistema, mas principalmente a partir da tese de sua desagregao, tendo
como referncia o criador comum. Com efeito, em todos os textos do perodo, este passa a ser
sinnimo de faxinal, invisibilizando os outros aspectos do sistema, retirando sua dinamicidade
e desconsiderando as estratgias e a agncia dos sujeitos que vivem na regio das matas
mistas e estruturam suas relaes com o territrio e suas formas de produo de maneiras
especficas. E se a previso de Chang do fim dos faxinais no se concretizou, ela continua
aparecendo como discurso oficial de agentes estatais o que pode ser percebido no
levantamento realizado por Cludio Marques (2004) para o Instituto Ambiental do Paran.
contra a perspectiva de inevitvel desagregao dos faxinais que, j neste sculo, se
desenvolve uma nova produo sobre o tema, relacionada diretamente organizao da
Articulao Puxiro dos Povos Faxinalenses (inicialmente Articulao Puxiro dos Povos dos
Faxinais), bem como ao Projeto Nova Cartografia Social, coordenado pelo antroplogo Alfredo
Wagner Almeida. Roberto Martins de Souza (2010, in Almeida, Souza, 2009), um dos principais
expoentes desta reflexo, parte do questionamento das concepes vigentes de faxinal por
seu carter evolucionista, anulador da agncia dos sujeitos envolvidos, baseado
exclusivamente nas questes produtivas com a consequente desconsiderao dos aspectos
culturais, polticos e identitrios. Escrevendo no contexto acadmico, mas a partir de uma
relao direta com a Articulao Puxiro, o autor aponta a necessidade de uma abordagem
que, ao considerar tais aspectos, possibilite ao movimento se fortalecer nos processos de luta
pela garantia no apenas do acesso ao territrio, mas tambm do direito manuteno de sua
diversidade sociocultural e de um sistema de organizao produtiva baseado no uso comum. A
nfase no uso comum, por sua vez, define estratgias polticas prprias: no a proposta de
regularizao fundiria de lotes familiares, mas a definio de reas Especiais de Uso
Regulamentado (ARESUR), tendo por base o Decreto 3446/97 do Estado do Paran, que faz
referncia especfica ao sistema faxinal.
O acesso a direitos a partir da definio de determinadas reas como ARESUR e dos grupos,
consequentemente, como faxinalenses coloca, ento, uma questo crucial para o
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Assim, em 1997 o Estado do Paran publica o Decreto 3446/97, que cria as reas Especiais de Uso Regulamentado (ARESUR) para as pores territoriais caracterizadas pelo sistema faxinal, tal como definido por Chang com nfase no criadouro comum. Tambm a ideia da desagregao est presente na lei, que prev registro dos faxinais no Cadastro Estadual de Unidades de Conservao (CEUC), diferenciados por estgios de desenvolvimento, bem como avaliao anual de cada um dos faxinais registrados.
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movimento e para intelectuais a ele vinculados: a necessidade no somente de definir faxinal,
mas tambm de mapear a presena de faxinais no Paran. Roberto Souza trabalha
diretamente neste mapeamento, que se contrape a levantamentos anteriores realizados pelo
Estado, como o de Marques (2004). Assim, enquanto este falava em no mnimo 44 faxinais
em 2004, em sua tese de doutorado de 2010, Souza afirma o mapeamento de 227 faxinais, em
32 municpios do Paran11 45 deles se situando em apenas 3 municpios da microrregio de
Guarapuava: Pinho, Incio Martins e Turvo (cf. Souza in Almeida e Souza, 2009: 63). Estes
nmeros, por sua vez, so atingidos a partir da seguinte definio de faxinal:
Deste modo, quando fao uso da expresso faxinal ou terras de faxinais (...) me refiro ao seguinte significado: terras tradicionalmente ocupadas que designam situaes onde a produo familiar, de acordo com suas possibilidades, variavelmente combinam apropriao privada e comum dos recursos naturais, tendo o controle e uso dos recursos considerados comuns existncia fsica e social especialmente pastagens naturais, cursos dgua e recursos florestais , e exercido de maneira livre e aberta de acordo com normas especficas consensualmente definidas por grupos de pequenos criadores e agricultores que, circunstancialmente, denominam suas reas de uso comum por expresses locais, a saber: criador comum aberto, criador comum cercado, criador criao alta e mangueiro, presentes no Sul do Brasil (Souza, 2010: 15-16).
A nova definio proposta por Souza traz questes relevantes para a reflexo. Em primeiro
lugar, flexibiliza a noo de sistema faxinal presente no Decreto 3446/97 que, ao tomar o
modelo ideal de Chang como referncia, exige a presena tanto da criao animal solta em
criadouros coletivos, quanto da policultura de subsistncia e do extrativismo florestal de
baixo impacto para a definio de uma determinada rea como adequada aplicao da lei.
Na definio de Souza, os limites so menos restritivos, havendo referncia a uma produo
familiar que tem por base tanto a apropriao privada quanto comum dos recursos naturais,
de acordo com normas definidas pela tradio. Vemos, portanto, um embate poltico por
definies da lei semelhante quele ocorrido com relao ao Decreto Federal 4887/03, que
normatiza o acesso a direitos de remanescentes de comunidades de quilombos.
Por outro lado, contudo, ao final a definio de Souza restringe a perspectiva de faxinal
existncia de alguma forma de criadouro solta e com carter, mesmo que relativo, de uso
comum. Assim, embora afirme a importncia de aspectos identitrios e socioculturais para
uma perspectiva mais ampla dos povos dos faxinais, termina refm de limitaes colocadas
pelos trabalhos anteriores pois apenas um elemento do sistema produtivo, o criadouro,
tomado como sinnimo das possibilidades de construo da identidade faxinalense.
Acrescente-se, ainda, que as categorias selecionadas, e que orientam o processo de
mapeamento (na medida em que os faxinais so registrados a partir de sua classificao em
uma das formas de criadouro citadas), trazem consigo uma perspectiva que remete ao
evolucionismo e desagregao do sistema questionados pelo autor. Assim, o criador comum
aberto tomado como o modelo original, que sofre modificaes a partir de conflitos e
presses com seus antagonistas, e a partir de ento se transforma nas demais configuraes
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O autor afirma, ainda, que estes so nmeros parciais, pois houve indcios da presena de faxinais em outros municpios que a equipe de pesquisa no conseguiu visitar.
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de criador. Em outras palavras, mesmo no sendo cada um dos tipos visto como uma etapa
pois possvel passar diretamente do tipo 1 ao tipo 3 ou 4 h um modelo original, o
criador comum aberto.
Desta forma, toda a complexidade do sistema faxinal apresentada no trabalho de Chang
passa a ser desconsiderada tanto por ela quanto pelos autores posteriores. Alm disso, a
diversidade de vises de mundo, organizao social, formas de ser e de viver acaba subsumida
na noo restrita de criador comum. A potencialidade de um modelo ideal pensado como uma
matriz a partir da qual as aes dos sujeitos frente a novos contextos, sempre complexos,
produzem novas configuraes, em que alguns elementos so mantidos, enquanto outros
transformados ou descartados, no se realiza. E tambm no se desenvolve uma reflexo mais
sofisticada sobre a construo de identidades e seu vnculo com o jogo poltico de luta por
direitos. A objetividade do criador leva a crer que seu fim implica no fim de uma forma mais
ampla de pensar o mundo e ser no mundo.
A pesquisa entre grupos rurais tradicionais de Pinho/PR, no entanto, aponta em sentido
distinto daquele indicado pela simplificao resultante do estabelecimento de uma sinonmia
entre criadouro comum e faxinal. Aqui, gostaria apenas de destacar alguns aspectos, como
ilustrao das possibilidades de reflexo que os faxinais colocam no apenas para a
antropologia, mas tambm para os debates em torno das relaes entre populaes
tradicionais e meio-ambiente. Dentre tais aspectos, ressalto: 1) a estruturao de um sistema
produtivo que conjuga a criao a solta, o extrativismo e a policultura de subsistncia em reas
ambientalmente diversas e muitas vezes descontnuas permite um aproveitamento das
possibilidades produtivas do meio em um processo de manejo bem sucedido; 2) tal modelo
assegura autonomia dos grupos sociais, pois estes garantem boa parte das matrias-primas
necessrias vida e reproduo fsica e social do grupo e de suas tradies tendo por base
seu prprio ambiente; 3) a agncia dos sujeitos em processos de conflitos e presses externas
e internas no sentido de modificao do sistema pode levar a opes que limitem ou acabem
com o criadouro coletivo, mas isto no implica na desagregao de uma forma de vida,
concepo de mundo e relao com o ambiente; 4) os contextos de faxinais, em suas vrias
concepes, apontam para a complexidade das relaes entre capitalismo e comunidades
tradicionais, que no devem ser pensadas apenas como antagonismo simples; 5) a
tradicionalidade dos grupos rurais no deve ser tomada como sua no historicidade.
Para concluir, afirmo a importncia de um estudo mais aprofundado de grupos rurais que se
autodenominam faxinais sua religiosidade, sociabilidade, relao com o territrio e o meio-
ambiente, estratgias polticas de luta pela terra, bases da construo de sua identidade.
Reconhecendo que a autodenominao de um grupo como faxinal, ou de seus membros como
faxinalenses, abrange questes mais amplas que apenas um uso comum do territrio para
criao animal ou um sistema produtivo. Seu Dominguinhos, 81 anos, morador do Faxinal dos
Taquaras, fala de um jeito antiguinho de ser, que remete a uma religiosidade prpria a
leitura de sinais do ambiente e dos animais, o domnio de tcnicas de cura, a realizao de
rituais coletivos e de deveres religiosos ; a uma forma particular de relao com a vizinhana,
em que o trabalho e o apoio mtuo em caso de necessidade so como obrigaes;
valorizao da famlia; ao domnio de tcnicas tradicionais de cultivo (tanto nos aspectos
tcnicos quanto religiosos); importncia do trabalho na roa e do produto deste trabalho,
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bem como da sade que vem do mato e dos alimentos tradicionalmente cultivados. Esta
perspectiva mais abrangente dos grupos tradicionais faxinalenses amplia tanto as
possibilidades econmicas quanto de acesso a direitos polticos de tais grupos, que falam de
um jeito de ser e viver especfico.
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