PORTO, Liliana. Uma Reflexão Sobre Os Faxinais.

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Uma reflexão sobre os faxinais: meio-ambiente, sistema produtivo, identidades políticas, formas tradicionais de ser e viver Liliana Porto A proposta deste texto é refletir sobre um contexto ambiental, social, econômico e político de fundamental importância para a compreensão da presença e organização de populações tradicionais no Centro-Sul do Paraná, que se explicita através dos vários usos da noção de faxinal. Para tanto, terá como base uma revisão bibliográfica sobre o tema, bem como a experiência de pesquisa de campo em Pinhão/PR município marcado pela presença de matas mistas de araucária, de grandes contingentes de população tradicional, bem como de práticas passadas e presentes de organização produtiva que se estruturam de acordo com a lógica do que a literatura denomina “sistema faxinal”. Ao analisarmos, por sua vez, a maneira como a noção é mobilizada, tanto na bibliografia quanto nos contextos contemporâneos, por historiadores, acadêmicos, moradores locais, agentes estatais ou militantes na luta pela terra, observamos perspectivas distintas sobre os faxinais. Destacam-se três: 1) faxinal como descrição de um determinado meio-ambiente, que em alguns momentos se aproxima da noção de faxinal como criadouro comum; 2) faxinal como sistema produtivo; 3) faxinal como identidade e proposta política de construção de direitos e usos do território. Apesar de distintas, contudo, tais perspectivas não são desarticuladas: dialogam e se contrapõem, resultando tais contatos em uma dinâmica de deslocamentos e resignificações. Além disso, a ordem acima apresentada é também cronológica, sendo a utilização do termo para definir um contexto ambiental (geralmente vinculado a um uso específico: como criadouro comum) anterior àquele que o define como sistema produtivo, e este, por sua vez, antecede sua definição como identidade na luta política. E, ainda, todas elas trazem consigo, embora muitas vezes de maneira não explícita, referência a certa forma de ser e viver que implica em valores que definem as relações com o meio natural, com os demais membros dos grupos sociais e com o mundo sobrenatural. Valores estes que se relacionam com regras de convivência grupal que envolvem respeito, reciprocidade e responsabilidade ambiental e social 1 . Definido como um regionalismo do sul do país, a noção de faxinal como meio-ambiente pode ser encontrada em textos sobre a região desde o século XIX. Assim, por exemplo, ao descrever sua viagem pelos sertões de Guarapuava, José Francisco Nascimento afirma que: A 13 de Maio entramos no Chagú ao rumo de 78 gráos noroeste, e depois de 26 dias de tempo chuvoso e frio conseguimos com difficuldade abrir 9 leguas de picada, por onde passavam 6 cargueiros carregados. No lugar onde fazia as 9 leguas de picada, tivemos de invernar 11 dias, por causa das 1 É necessário, contudo, não construir uma visão romântica idealizada sobre os grupos tradicionais que se vinculam, de formas diversas, aos faxinais. Embora as características citadas sejam efetivas, também se observa a presença de conflitos e tensões significativos na estruturação de tais grupos inclusive vinculados à questão do compáscuo.

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Reflexão sobre os faxinalenses, comunidade tradicional típica do Paraná, marcada pela criação dos animais em um criadouro comunitário.

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  • Uma reflexo sobre os faxinais: meio-ambiente, sistema produtivo, identidades polticas,

    formas tradicionais de ser e viver

    Liliana Porto

    A proposta deste texto refletir sobre um contexto ambiental, social, econmico e poltico de

    fundamental importncia para a compreenso da presena e organizao de populaes

    tradicionais no Centro-Sul do Paran, que se explicita atravs dos vrios usos da noo de

    faxinal. Para tanto, ter como base uma reviso bibliogrfica sobre o tema, bem como a

    experincia de pesquisa de campo em Pinho/PR municpio marcado pela presena de matas

    mistas de araucria, de grandes contingentes de populao tradicional, bem como de prticas

    passadas e presentes de organizao produtiva que se estruturam de acordo com a lgica do

    que a literatura denomina sistema faxinal.

    Ao analisarmos, por sua vez, a maneira como a noo mobilizada, tanto na bibliografia

    quanto nos contextos contemporneos, por historiadores, acadmicos, moradores locais,

    agentes estatais ou militantes na luta pela terra, observamos perspectivas distintas sobre os

    faxinais. Destacam-se trs: 1) faxinal como descrio de um determinado meio-ambiente, que

    em alguns momentos se aproxima da noo de faxinal como criadouro comum; 2) faxinal

    como sistema produtivo; 3) faxinal como identidade e proposta poltica de construo de

    direitos e usos do territrio. Apesar de distintas, contudo, tais perspectivas no so

    desarticuladas: dialogam e se contrapem, resultando tais contatos em uma dinmica de

    deslocamentos e resignificaes. Alm disso, a ordem acima apresentada tambm

    cronolgica, sendo a utilizao do termo para definir um contexto ambiental (geralmente

    vinculado a um uso especfico: como criadouro comum) anterior quele que o define como

    sistema produtivo, e este, por sua vez, antecede sua definio como identidade na luta

    poltica. E, ainda, todas elas trazem consigo, embora muitas vezes de maneira no explcita,

    referncia a certa forma de ser e viver que implica em valores que definem as relaes com o

    meio natural, com os demais membros dos grupos sociais e com o mundo sobrenatural.

    Valores estes que se relacionam com regras de convivncia grupal que envolvem respeito,

    reciprocidade e responsabilidade ambiental e social1.

    Definido como um regionalismo do sul do pas, a noo de faxinal como meio-ambiente pode

    ser encontrada em textos sobre a regio desde o sculo XIX. Assim, por exemplo, ao descrever

    sua viagem pelos sertes de Guarapuava, Jos Francisco Nascimento afirma que:

    A 13 de Maio entramos no Chag ao rumo de 78 gros noroeste, e depois de 26 dias de tempo chuvoso e frio conseguimos com difficuldade abrir 9 leguas de picada, por onde passavam 6 cargueiros carregados. No lugar onde fazia as 9 leguas de picada, tivemos de invernar 11 dias, por causa das

    1 necessrio, contudo, no construir uma viso romntica idealizada sobre os grupos tradicionais que

    se vinculam, de formas diversas, aos faxinais. Embora as caractersticas citadas sejam efetivas, tambm se observa a presena de conflitos e tenses significativos na estruturao de tais grupos inclusive vinculados questo do compscuo.

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    chuvas e ribeiros cheios; dalli pretendamos seguir quando o tempo melhorasse, visto que o terreno parecia ser menos montanhoso, e menos difficultoso para os trabalhos, porque j se avistavam faxinaes e vestgios de campos (Nascimento, 1886: 269).

    Neste contexto, ela se aproxima muito das definies do dicionrio Houaiss sobre o termo

    (campo que avana pelo interior de uma floresta ou cercado por altas rvores) ou do

    dicionrio Michaelis (campo coberto de mato curto). Distancia-se, no entanto, daquela

    utilizada dos depoimentos de moradores de Pinho2, em que faxinal remete s matas de

    araucria comuns no local. Nestas, alm da presena do pinheiro, destacam-se a existncia de

    madeira de lei como a imbuia, bem como de ervais nativos. Aqui, embora a nfase ambiental

    seja clara, h uma relao entre o ambiente e as atividades econmicas nele realizadas, e os

    faxinais so pensados a partir de sua oposio s capoeiras. Vistos como adequados tanto

    para atividades extrativistas (de erva-mate, pinho e madeira esta ltima restrita devido

    atual legislao ambiental) quanto de criao de gado, cavalos e animais de pequeno porte3,

    seriam inapropriados (devido excessiva acidez do solo) para a produo agrcola. Tal

    atividade, portanto, precisaria ocorrer em uma rea especfica, as capoeiras, pensadas como

    terras de cultura em geral situadas em terrenos mais dobrados, sem a presena da floresta

    e mais prximas dos rios. Trecho de entrevista com Renato Passos, memorialista de Pinho,

    exemplifica tal perspectiva:

    R: O faxinal aquele mato mais alto que... vamos distinguir, tem a capoeira, um mato fino, quase sempre formado por bracatinga. Hoje quase no tem mais. E o faxinal aquele que era pinheiro, imbuia, e erva-mate, e canela, um mato mais alto. E embaixo pasto. Que o pessoal costumava criar tambm gado ali, e porco solto, que comia o pinho, e criava muito cabrito, que o cabrito se d bem no faxinal. E muito cavalo tambm que era criado no faxinal (Entrevista com Renato Passos realizada em 09/06/12).

    Acrescente-se, ainda, serem os faxinais o espao onde se construam as moradias no passado,

    o que leva a que vrios dos grupos rurais de Pinho sejam conhecidos a partir desta

    denominao: como exemplo, Faxinal dos Taquaras, Faxinal dos Ribeiros, Faxinal dos Silvrios,

    Faxinal dos Coutos, entre outros.

    As terras de cultura, a fim de terem a produo protegida da eventual destruio pelos animais

    criados solta nos faxinais, eram ou distantes dos mesmos, ou deles separadas por algum

    acidente natural, ou mesmo por cercas construdas pelos habitantes regionais. Nestas terras se

    localizavam os paiis, utilizados tanto para armazenamento dos produtos agrcolas quanto

    para abrigo e morada durante perodos em que h intensificao do trabalho na lavoura.

    2 rea em que concentro minhas pesquisas sobre o tema, e que reconhecida como um dos principais

    municpios do Paran quando se considera a relevncia da presena de faxinais. tambm o municpio de origem de um dos principais lderes do movimento faxinalense na atualidade. 3 Porcos, cabras, ovelhas, galinhas e outros animais de porte menor.

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    o uso das reas de faxinal como compscuo por grupos rurais tradicionais4 que leva a que o

    termo passe a designar no apenas o ambiente, mas tambm um sistema produtivo complexo,

    marcado pela conjugao da policultura de subsistncia, criao solta e extrao de erva-

    mate (tambm de pinho, madeira, frutos e ervas medicinais). Tal sistema conjugar uso

    familiar e comum do territrio, produes diversificadas destinadas tanto para o autoconsumo

    quanto para o mercado, ciclos produtivos de durao diferenciada (vrios deles ultrapassando

    o mnimo de dois anos como o caso da extrao de erva-mate e madeira, ou criao de

    alguns animais).

    A nova definio, por sua vez, ser desenvolvida em um contexto bastante especfico: a

    produo de pesquisadores vinculados ao IAPAR (Instituto Agronmico do Paran) e com

    insero acadmica, ocorrida na dcada de 1980. O primeiro texto resultante do grupo

    interdisciplinar de pesquisa constitudo pelo IAPAR o de Horcio Martins (1984), no

    publicado. Nele, o autor relata ter partido de uma inquietude pessoal quanto existncia de

    criadouros comunitrios na organizao da produo da pequena burguesia agrria do Estado

    do Paran e de Santa Catarina (:04), e da ausncia de textos acadmicos sobre o tema.

    Criadouros estes conhecidos como faxinais5. Aproveita, ento, a possibilidade de pesquisa

    aberta pelo IAPAR para fazer registros sobre o tema, mas no redige um relatrio, sendo o

    texto apresentado uma reflexo que ocorre fora do ambiente institucional e tem como base

    estudo de caso realizado no Faxinal Rio do Couro, em Irati/PR. A nfase dada pelo autor no

    criadouro comunitrio marcar, como veremos, todas as discusses estatais e acadmicas

    posteriores sobre os faxinais. Ele assim os define:

    O criadouro comunitrio uma forma de organizao consuetudinria que se estabelece entre proprietrios de terra para sua utilizao comunal tendo em vista a criao de animais. A rea de um criador comunitrio constituda por vrias parcelas de terras de distintos proprietrios, formando, umas ao lado das outras, um espao contnuo (1984: 12).

    O criador comunitrio um resultado histrico da criatividade do trabalhador direto na condio de pequena burguesia agrria, sob

    4 O dicionrio Houaiss apresenta outra definio de faxinal, como campo de pastagem com presena de

    arvoredo esguio, que aponta na identificao entre faxinal e criao de gado. No h, contudo, nenhuma referncia ao carter de pastagem coletiva dos faxinais em qualquer dos dicionrios consultados. 5 No entanto, Carvalho afirma que, embora possa se estabelecer esta relao, criador comunitrio e

    faxinal no so sinnimos (retoma a noo de faxinal como descrio de um tipo de meio-ambiente), como se percebe no seguinte trecho: O criador comunitrio tambm denominado de faxinal. Entretanto, ainda que aceito vulgarmente esta sinonmia, faxinal e criador comunitrio apresentam substanciais distines./Originalmente (...) o faxinal se referia ao mato denso ou grosso, ou seja, a rea de vegetao mais cerrada, se comparadas com outras reas s quais se denominava mato ralo. No faxinal ocorria a presena das espcies florestais pinheiro (araucria) e erva mate, alm de apresentar razoveis condies de pastagem natural. O faxinal era preservado para prticas extrativistas da madeira (pinho) e da erva mate, alm de servir de espao para a criao extensiva e semi-extensiva de animais. As derrubadas de mato para a formao de lavouras eram realizadas em reas onde se observava a presena de mato ralo (...)/(...)/Nesse sentido posso afirmar que a expresso faxinal possui um significado mais amplo do que a de criador comunitrio. Este uma forma de organizao da criao de animais em terras de uso comunal que se d em reas de faxinal. Assim, num faxinal pode-se encontrar rea que destinada a criador comunitrio e outra(s) para uso privado (1984: 14-15).

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    determinadas condies de trabalho e a necessidade objetiva de equacionar seus problemas de produo determinaram suas inventivas, dando-lhe a fora da descoberta nas prticas do seu viver com a natureza e com os outros homens (1984: 07).

    Abordando o modelo do criador comunitrio fechado em seu permetro, e estabelecendo

    relaes no muito claras entre sua existncia e os interesses dos capitalistas, explicita a

    relao entre os faxinais como compscuo e o interesse dos proprietrios na extrao de

    madeira e erva-mate. Constri, portanto, o modelo do trip econmico fundado no

    extrativismo, lavoura e criao animal posteriormente desenvolvido como sistema faxinal por

    Man Yu Chang (1988), mas no explora de maneira sistemtica este trip. Com foco

    permanente no criador, define como motivo central para sua criao a economia de material

    na construo de cercas que separassem as reas de pastagem das de lavoura. No entanto, a

    partir do momento em que ele se estabelece, marca a sociabilidade local e instaura relaes

    de amizade, vizinhana e compadrio entre os participantes do sistema. Tambm define

    padres mais amplos de trabalho, uso da terra, compra e venda, herana.

    Menos preocupado com a elaborao de um modelo geral, e voltado anlise do contexto de

    pesquisa no Faxinal Rio do Couro, o autor aponta as vrias etapas histricas de constituio,

    consolidao e desarticulao do criadouro comunitrio. Ressalta as mudanas ocorridas ao

    longo do perodo entre 1910 e 1981, sendo relevantes aspectos como a alterao dos

    principais produtos comerciais batata, trigo, erva-mate, sunos, madeira, fumo ,

    substituio de mo de obra familiar e processos de trabalho coletivo (mutiro, localmente

    denominado puxiro) pelo trabalho assalariado, emigrao de mo de obra local, conjugao

    de produtos para o autoconsumo e produtos para o mercado (havendo duplo destino em

    alguns casos), ocorrncia de crises econmicas ao longo do perodo. Atravs desta anlise se

    esclarece a definio dada pelo autor dos participantes do criador comunitrio como pequena

    burguesia agrria pois que proprietrios de terras, produtores para o mercado e, aps um

    perodo, contratantes de mo de obra assalariada.

    A anlise de um caso particular, se por um lado no permite elaborar um modelo geral na

    medida em que, por exemplo, questes como a propriedade das terras no se aplicam a

    situaes como a de Pinho, em que predomina o direito pela posse no documentada , por

    outro possibilita perceber dinmicas sociais mais detalhadas e que no ocorrem em um

    sentido nico. Assim, o criadouro comunitrio coexiste com produes distintas, bem como

    com distintos usos da mo de obra. Alm disso, no h um caminho nico no sentido de sua

    desagregao (ou seja, mais fcil reconhecer a historicidade prpria do sistema): apesar da

    crise identificada pelo autor na dcada de 1970, ele retomado posteriormente, encontrando-

    se em posio mais slida na dcada seguinte. Conjugam-se o uso comum e o uso

    individual/familiar da terra, a produo para o autoconsumo e para o mercado, a explorao

    prpria e por grandes empresas (p.ex. madeireiras) das reas de faxinais, os arrendamentos, a

    diferenciao econmica entre as famlias locais ao longo do tempo. Alm disso, apesar de o

    foco se dar na produo, h indcios da influncia do criador comunitrio nas relaes sociais

    locais.

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    No entanto, ao final, apesar de afirmar a organizao slida do criadouro comunitrio em Rio

    do Couro no momento da pesquisa, Carvalho aponta foras que indicariam no sentido da

    futura dissoluo do criador entre as quais as tendncias de emigrao e assalariamento das

    famlias locais, a ao de empresas madeireiras, a modernizao da pecuria, discursos

    higienistas. E termina por afirmar a necessidade de resgate desta forma de organizao

    produtiva abrindo espao para se pensar o modelo de criador comunitrio como proposta

    poltica de organizao de pequenos produtores rurais:

    O criador comunitrio, como forma de organizao dos produtores rurais no uso comum da terra para a criao de animais, se constituiu, e se constitui, em parte da histria da agricultura do Paran (e de Santa Catarina), em particular de algumas de suas regies e para determinadas classes sociais. Resgat-la, recuperar seus traos mais relevantes, mobilizar os prprios autores da sua gerao e consolidao para a reconstrurem, e dela tecerem novas ou renovadas alternativas para a organizao da criao de animais, tarefa que no se deveria relegar para tempos futuros. As memrias, como as saudades, necessitam de contnuo alento para se tornarem imorredouras (1984: 78).

    Mas se no texto de Carvalho h uma perspectiva do faxinal como um sistema produtivo mais

    complexo e articulando aspectos de economia familiar para o autoconsumo e economia de

    mercado, no de Man Yu Chang (1988), publicado como boletim tcnico n. 22 do IAPAR, que

    ocorre a sistematizao de referncia desta perspectiva marcando a ao posterior do

    Estado, principalmente atravs da publicao do Decreto Estadual 3446/97, que define a

    criao de reas Especiais de Uso Regulamentado (ARESUR) em regies caracterizadas pelo

    sistema faxinal, e da realizao de levantamentos dos faxinais existentes no Paran; bem

    como a discusso do movimento social sobre a caracterizao dos faxinais, a construo de

    uma identidade faxinalense e a elaborao de um mapeamento concorrente queles dos

    rgos estatais. J na primeira pgina da Introduo, a autora traz uma sntese de sua

    abordagem, ao afirmar que:

    O sistema faxinal, objeto central deste estudo, uma forma de organizao camponesa caracterstica da regio Centro-Sul do Paran que ainda se apresenta de forma marcante. Sua formao est associada a um quadro de condicionamentos fsico-naturais da regio e a um conjunto de fatores econmicos, polticos e sociais que remonta de forma indireta aos tempos da atividade pecuria nos Campos Gerais no sculo XVIII, e mais diretamente atividade ervateira na regio das matas mistas no sculo XIX.

    A semelhana dos demais sistemas de produo familiares, o sistema faxinal apresenta tambm os seguintes componentes: produo animal criao de animais domsticos para trao e consumo com destaque s espcies equina, suna, bovina, caprina e aves; produo agrcola policultura alimentar de subsistncia para abastecimento familiar e comercializao da parcela excedente, destacando as culturas de milho, feijo, arroz, batata e cebola; coleta de erva-mate ervais nativos desenvolvidos dentro do criadouro e coletados durante a entressafra das culturas, desempenhando papel de renda complementar.

    (...)

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  • 6

    O que torna o sistema faxinal atpico sua forma de organizao. Ele se distingue das demais formas camponesas de produo no Brasil pelo seu carter coletivo no uso da terra para a produo animal. A instncia do comunal consubstanciada nesse sistema em forma de criadouro comum, espao no qual os animais so criados solta (Chang, 1988: 13-14)6.

    Este trecho j indica a complexidade da anlise da autora, bem como a diversidade de

    caractersticas que mobiliza para construir a definio de sistema faxinal. Um primeiro

    aspecto significativo o carter histrico do sistema: ele se constitui a partir de um contexto

    especfico de relao entre a economia local e a comercializao da erva-mate que, no final

    do sculo XIX e incio do XX, se torna o principal produto de exportao do Paran, chegando a

    ser o terceiro do pas. E, aqui, importante lembrar a afirmao de Magnus Pereira (1996)

    sobre a relevncia da burguesia do mate no estabelecimento de uma indstria em moldes

    capitalistas no Paran, embora a sua produo fosse realizada por populaes rurais

    localizadas em reas de ervais nativos:

    O comrcio do mate entre o Paran e a regio platina, desde a sua legalizao em 1722, esteve nas mos de um pequeno grupo de comerciantes que controlava esse mercado. J a produo estava a cargo de uma infinidade de produtores artesanais autnomos. Em princpio, qualquer pessoa adulta estava habilitada a produzir mate. As tcnicas artesanais de beneficiamento eram de domnio pblico e no exigiam instrumentos ou edificaes dispendiosos. Os arbustos do mate eram nativos e disseminados nas matas que cobriam boa parte da regio. Portanto, em relao erva-mate ou s populaes que dela faziam uso, no havia nada que prenunciasse o ulterior desenvolvimento de tcnicas industriais de beneficiamento. A produo do mate no exigia necessariamente nenhuma concentrao de capital (Pereira, 1996: 42).

    Chang aponta, portanto, para um sistema que, se em uma ponta desenvolve um processo de

    industrializao responsvel pela implantao de processos produtivos em moldes capitalistas

    no Paran, bem como redefine grupos de poder estaduais e altera a configurao de sua

    regio leste principalmente Curitiba , na outra ponta se baseia no trabalho dos produtores

    artesanais que, a fim de conservar os ervais, lidar com um ciclo produtivo de no mnimo dois

    anos, aproveitar com outras atividades as reas onde se encontram, e mesmo facilitar o corte

    do mate, instauram um modelo de uso comum da terra. Em outras palavras, em que ao

    desenvolvimento capitalista esto relacionadas formas de trabalho e territorialidades no

    capitalistas.

    O uso comum, contudo, se d atravs do modelo de compscuo, e no se estende a todas as

    possibilidades produtivas relacionadas rea abrangida pelo criadouro coletivo aberto ou

    6 interessante observar que, em nota ao longo deste trecho, Chang reconhece a referncia local a

    faxinal como um tipo de vegetao, bem como o uso do termo para se referir exclusivamente ao criadouro comum, alm deste uso em que a referncia a todo um sistema produtivo, que se estende alm dos faxinais ambientalmente definidos.

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  • 7

    fechado7. Com efeito, se a criao de animais solta se d com base no uso comum, as

    atividades extrativas so realizadas pelas famlias que reconhecidamente detm a propriedade

    ou posse de certas parcelas do territrio definido como compscuo. Conjuga-se, portanto, o

    uso familiar e comum de certas regies.

    Acrescente-se a isto um segundo aspecto apontado pela autora: a separao entre reas de

    criao/extrativismo e de lavoura. Esta pode se dar tanto pelo sistema de cercas descrito por

    Carvalho quanto por acidentes naturais, ou ainda a distncia estabelecida entre as terras

    destinadas a cada uma destas atividades. O que indica uma organizao territorial em que h

    descontinuidade entre as parcelas controladas por um nico grupo domstico. Assim, se as

    moradias so construdas nos faxinais, elas se encontram muitas vezes distantes alguns

    quilmetros ou separadas por rios ou outras barreiras naturais das terras de lavoura da famlia.

    Tal fato define, ainda, a importncia dos paiis, que no s permitem o armazenamento da

    produo alimentar, mas tambm so utilizados como moradia temporria, por parte do grupo

    domstico, durante alguns perodos do ciclo agrcola.

    O sistema faxinal tambm se caracteriza pela conjugao da produo para o autoconsumo e

    para o mercado. Quase todos seus produtos inclusive a erva-mate e os produtos agrcolas

    so tanto comercializados quando consumidos localmente. Aqui, importante lembrar a

    definio de Afrnio Garcia Jr. de lavoura de subsistncia, ao abordar regies vinculadas

    plantation nordestina:

    Usamos aqui a expresso lavoura de subsistncia num sentido bem particular (...): trata-se de lavouras (...) que se destinam tanto ao autoconsumo quanto venda eventual. Tm, por conseguinte, a marca da alternatividade: ou uso comercial, ou uso domstico. Identific-las a cultivos no mercantis, economia natural cair no erro... (1989: 87-88).

    No caso dos faxinais, importante ressaltar que esta perspectiva da alternatividade, por sua

    vez, no se aplica apenas lavoura, mas tambm ao extrativismo e criao animal. E no

    adequado, em tal contexto, dar destaque especial s atividades agrcolas (como ocorre nas

    abordagens clssicas sobre o campesinato); ao contrrio, o trip produtivo que envolve

    agricultura, extrativismo e criao pode ter como nfase mais as duas ltimas atividades que a

    primeira.

    Mais um aspecto relevante do sistema se refere diversidade daqueles que fazem parte da

    formao do compscuo. Como apontamos anteriormente, estes podem ser tanto

    proprietrios oficiais de suas parcelas quanto terem seus direitos a elas definidos por posse

    no documentada. Alm disso, Chang ressalta que o criadouro englobava terras de grupos

    distintos: a populao tradicional da regio das matas mistas (os caboclos), imigrantes

    europeus vindos para esta regio entre meados do sculo XIX e as primeiras dcadas do sculo

    XX, grandes proprietrios rurais (os fazendeiros), agregados destas fazendas que no tinham

    7 Os dois modelos se relacionam com a disponibilidade de terras na regio: enquanto o criador aberto

    em geral ou no apresenta cercas quando h outras formas de separao dos animais das terras de cultura ou no as apresenta em toda sua extenso (no havendo divisas em algumas extremidades), o criador fechado todo ele cercado, sendo a responsabilidade na manuteno das cercas distribudas entre seus participantes.

  • 8

    controle direto sobre o territrio. Assim, movimentos de poltica externa de povoamento das

    reas do interior do Paran e a necessidade de readequao de grandes proprietrios

    regionais aps a retrao da atividade do tropeirismo levaram a que os novos habitantes se

    adequassem ao contexto social e ambiental no qual se inseriam, bem como que os grandes

    proprietrios respondessem de novas maneiras a um contexto econmico diferenciado. No

    que se refere especificamente aos imigrantes europeus, a autora ressalta os conflitos

    existentes entre a forma de produo agrcola que tentam implantar e a prtica de criao a

    solta dos moradores regionais e como o compscuo se torna uma soluo interessante para

    conciliar os conflitos surgidos entre estes dois grupos com distintas formas de produo

    camponesa. Novamente, portanto, pode-se inferir a inadequao de um modelo dicotmico

    que tenha por base noes como tradicional x moderno, ou antagonismos como populao

    tradicional x expanso do capitalismo para pensar as dinmicas e a historicidade do sistema

    faxinal.

    Apesar disto, contudo, algumas das pressuposies de Chang impedem com que ela reconhea

    e desenvolva esta complexidade ao se referir ao presente. A historicidade reconhecida no

    processo de constituio e consolidao do sistema negada quando, a partir do momento

    em que este atinge configurao semelhante do modelo desenvolvido, qualquer mudana

    passa a ser interpretada como desagregao (transformao se apresenta como sinnimo de

    desestruturao cf. 1988: 77). Desagregao esta inevitvel, pois a autora, j no incio do

    texto, afirma que a racionalidade da produo capitalista (que pensada como dada e de

    expanso bvia) definiria a propriedade e uso privado dos meios de produo como suposio

    bsica. E, se o uso comum que determina a inadequao do sistema expanso do

    capitalismo, o criadouro comum, que apenas uma de suas caractersticas, passa a ser o

    aspecto fundamental e, portanto, restries no criadouro comum se tornam sinnimo do fim

    do sistema. Acrescente-se que a nfase excessiva nos ciclos econmicos, a partir da crise da

    economia do mate, refora ainda mais o argumento anterior, na medida em que uma das

    bases de constituio e manuteno do sistema vista como perdendo fora para o ciclo

    madeireiro este com tendncia de destruio das matas mistas, e no de sua conservao.

    So, portanto, quatro os elementos identificados como responsveis por esta desintegrao

    (apresentada, em certa medida, como inevitvel): intensificao e tecnificao da produo

    pecuria; valorizao da terra; reduo das matas nativas (principalmente pela ao de

    madeireiras); polticas desenvolvimentistas estatais. Assim, nas palavras de Chang:

    Finalmente, cremos que podemos sugerir que, se mantido esse ritmo de transformao analisado e desenvolvido nesse trabalho, cremos que dentro de 10 ou 12 anos, o sistema faxinal no mais far parte do setor produtivo rural do Paran, e sim ser lembrado, talvez, como parte da histria da agricultura desse Estado (1988: 109).

    Entretanto, no desta maneira que a autora termina seu texto, mas com o que chama de

    Constataes Ps-Pesquisa, em que relata o impacto das atividades do IAPAR na organizao

    dos moradores de faxinais, que passam a se mobilizar no sentido de constituir um movimento

    de defesa dos criadouros tambm como resposta a determinadas polticas para o

    associativismo de pequenos produtores implementadas pelo governo estadual. Embora esta

    possibilidade se abra, a autora, ao analisar as complexidades envolvidas na manuteno do

    dsdribeiroRealce

  • 9

    criadouro comum, no coloca em xeque sua perspectiva anterior de limitao do sistema

    faxinal a este aspecto, nem da aparente inevitabilidade da desagregao do sistema atravs da

    reduo ou desaparecimento do criadouro. Por fim, refora a importncia da manuteno do

    mesmo no devido estrutura do sistema faxinal, mas experincia do coletivismo que

    instaura, e que aparece como alternativa poltica que pode ser extrapolada para outras

    esferas de produo e organizao (1988: 112).

    H, ainda, duas outras referncias bibliogrficas da produo de autores vinculados a rgos

    pblicos do Paran, que tm em Carvalho e Chang referncias privilegiadas: Gubert Filho

    (1987) e Gevaerd Filho (1986). Apesar da publicao anterior do texto de Geaverd, este cita

    tanto Gubert como Carvalho e Chang, em verses no publicadas de seus trabalhos. Aqui, as

    formaes especficas dos autores marcam sua perspectiva da temtica. Assim, Gubert,

    engenheiro agrnomo, preocupa-se em definir ambientalmente as reas de faxinais, marcadas

    pela predominncia de matas de araucria degradadas pelo pastoreio extensivo, realizado em

    criadores comuns (1987: 32). Concentrando suas reflexes no contexto de Irati, considera

    apenas os criadouros cercados, e destaca a fertilidade natural do solo no perodo de ocupao

    regional como um dos elementos definidores da separao entre reas de lavoura e reas de

    criao-extrativismo (sendo estas significativamente menos frteis). Seu texto tambm traz

    uma questo relevante: como o deslocamento de colonos gachos8 para a regio provocou

    conflitos e uma desarticulao dos criadouros comuns, pois outra concepo de produo e a

    nfase na agricultura colocaram em xeque os modos tradicionais de organizao social e

    produtiva dos faxinalenses9. Conflitos que tambm estimularam os fazendeiros locais a

    fecharem seus pastos. O autor, portanto, destaca elementos muito concretos de inviabilizao

    do compscuo, mas termina por reforar a relao entre este e a definio de faxinal, bem

    como a perspectiva de sua desagregao.

    J no caso de Geaverd (1986), com formao em Direito, a grande questo a presena da

    figura do compscuo na legislao brasileira, e a reflexo sobre como lidar com pedidos de

    usucapio especial por parte de trabalhadores rurais, principalmente no que se refere a

    conflitos relativos a cercamento de pastos comunais. Aqui, a sinonmia entre faxinais e

    compscuo dada, bem como a afirmao de sua extino prxima apesar de ser este um

    modelo poltico pensado como interessante , como se percebe no seguinte trecho:

    bvio que os faxinais ou compscuos encontram-se em fase de extino, devido, entre outras coisas, a brutalidade inerente s formas odiosas e distorcidas de concentrao e explorao de terra vigentes em nosso pas. Essa constatao, todavia, no ilide nem tem o condo de desaconselhar uma anlise cuidadosa e crtica do fenmeno, mormente num momento em que a ateno nacional volta-se para a questo da reforma agrria e da proteo ao meio ambiente. O desprezo com que o historiador e o jurista ptrio contemplaram o instituto no pode ser imitado por aqueles que

    8 Neste caso, assim como em Pinho, os gachos so provenientes do oeste do Paran, sendo

    descendentes de famlias migrantes do Rio Grande do Sul. 9 Aqui, cabe ressaltar que o conflito se d entre dois grupos camponeses tradicionais, mas com distintas

    dinmicas produtivas um deles com foco na agricultura, enquanto outro na criao animal a solta no sistema de compscuo.

  • 10

    sentem-se compromissados com a pesquisa de formas alternativas, comunais e justas de explorao do solo (1986: 46).

    Os quatro autores aqui considerados permitem perceber que se constri, a partir de meados

    da dcada de 1980, no interior dos rgos estatais de reflexo sobre a terra e a questo

    ambiental no Paran, o faxinal como uma temtica relevante de pesquisa, reflexo e ao

    poltica. E, se podemos ver principalmente nos textos de Carvalho (1984) e Gevaerd Filho

    (1986) estmulos importantes para a percepo do faxinal (pensado como criadouro comum)

    como proposta poltica de organizao de grupos rurais (embora tambm aqui haja a previso

    de sua dissoluo inevitvel), o trabalho de Chang ser a grande referncia para as aes

    estatais posteriores sobre esta temtica10. No entanto, no por sua descrio refinada e

    historicizada do sistema, mas principalmente a partir da tese de sua desagregao, tendo

    como referncia o criador comum. Com efeito, em todos os textos do perodo, este passa a ser

    sinnimo de faxinal, invisibilizando os outros aspectos do sistema, retirando sua dinamicidade

    e desconsiderando as estratgias e a agncia dos sujeitos que vivem na regio das matas

    mistas e estruturam suas relaes com o territrio e suas formas de produo de maneiras

    especficas. E se a previso de Chang do fim dos faxinais no se concretizou, ela continua

    aparecendo como discurso oficial de agentes estatais o que pode ser percebido no

    levantamento realizado por Cludio Marques (2004) para o Instituto Ambiental do Paran.

    contra a perspectiva de inevitvel desagregao dos faxinais que, j neste sculo, se

    desenvolve uma nova produo sobre o tema, relacionada diretamente organizao da

    Articulao Puxiro dos Povos Faxinalenses (inicialmente Articulao Puxiro dos Povos dos

    Faxinais), bem como ao Projeto Nova Cartografia Social, coordenado pelo antroplogo Alfredo

    Wagner Almeida. Roberto Martins de Souza (2010, in Almeida, Souza, 2009), um dos principais

    expoentes desta reflexo, parte do questionamento das concepes vigentes de faxinal por

    seu carter evolucionista, anulador da agncia dos sujeitos envolvidos, baseado

    exclusivamente nas questes produtivas com a consequente desconsiderao dos aspectos

    culturais, polticos e identitrios. Escrevendo no contexto acadmico, mas a partir de uma

    relao direta com a Articulao Puxiro, o autor aponta a necessidade de uma abordagem

    que, ao considerar tais aspectos, possibilite ao movimento se fortalecer nos processos de luta

    pela garantia no apenas do acesso ao territrio, mas tambm do direito manuteno de sua

    diversidade sociocultural e de um sistema de organizao produtiva baseado no uso comum. A

    nfase no uso comum, por sua vez, define estratgias polticas prprias: no a proposta de

    regularizao fundiria de lotes familiares, mas a definio de reas Especiais de Uso

    Regulamentado (ARESUR), tendo por base o Decreto 3446/97 do Estado do Paran, que faz

    referncia especfica ao sistema faxinal.

    O acesso a direitos a partir da definio de determinadas reas como ARESUR e dos grupos,

    consequentemente, como faxinalenses coloca, ento, uma questo crucial para o

    10

    Assim, em 1997 o Estado do Paran publica o Decreto 3446/97, que cria as reas Especiais de Uso Regulamentado (ARESUR) para as pores territoriais caracterizadas pelo sistema faxinal, tal como definido por Chang com nfase no criadouro comum. Tambm a ideia da desagregao est presente na lei, que prev registro dos faxinais no Cadastro Estadual de Unidades de Conservao (CEUC), diferenciados por estgios de desenvolvimento, bem como avaliao anual de cada um dos faxinais registrados.

  • 11

    movimento e para intelectuais a ele vinculados: a necessidade no somente de definir faxinal,

    mas tambm de mapear a presena de faxinais no Paran. Roberto Souza trabalha

    diretamente neste mapeamento, que se contrape a levantamentos anteriores realizados pelo

    Estado, como o de Marques (2004). Assim, enquanto este falava em no mnimo 44 faxinais

    em 2004, em sua tese de doutorado de 2010, Souza afirma o mapeamento de 227 faxinais, em

    32 municpios do Paran11 45 deles se situando em apenas 3 municpios da microrregio de

    Guarapuava: Pinho, Incio Martins e Turvo (cf. Souza in Almeida e Souza, 2009: 63). Estes

    nmeros, por sua vez, so atingidos a partir da seguinte definio de faxinal:

    Deste modo, quando fao uso da expresso faxinal ou terras de faxinais (...) me refiro ao seguinte significado: terras tradicionalmente ocupadas que designam situaes onde a produo familiar, de acordo com suas possibilidades, variavelmente combinam apropriao privada e comum dos recursos naturais, tendo o controle e uso dos recursos considerados comuns existncia fsica e social especialmente pastagens naturais, cursos dgua e recursos florestais , e exercido de maneira livre e aberta de acordo com normas especficas consensualmente definidas por grupos de pequenos criadores e agricultores que, circunstancialmente, denominam suas reas de uso comum por expresses locais, a saber: criador comum aberto, criador comum cercado, criador criao alta e mangueiro, presentes no Sul do Brasil (Souza, 2010: 15-16).

    A nova definio proposta por Souza traz questes relevantes para a reflexo. Em primeiro

    lugar, flexibiliza a noo de sistema faxinal presente no Decreto 3446/97 que, ao tomar o

    modelo ideal de Chang como referncia, exige a presena tanto da criao animal solta em

    criadouros coletivos, quanto da policultura de subsistncia e do extrativismo florestal de

    baixo impacto para a definio de uma determinada rea como adequada aplicao da lei.

    Na definio de Souza, os limites so menos restritivos, havendo referncia a uma produo

    familiar que tem por base tanto a apropriao privada quanto comum dos recursos naturais,

    de acordo com normas definidas pela tradio. Vemos, portanto, um embate poltico por

    definies da lei semelhante quele ocorrido com relao ao Decreto Federal 4887/03, que

    normatiza o acesso a direitos de remanescentes de comunidades de quilombos.

    Por outro lado, contudo, ao final a definio de Souza restringe a perspectiva de faxinal

    existncia de alguma forma de criadouro solta e com carter, mesmo que relativo, de uso

    comum. Assim, embora afirme a importncia de aspectos identitrios e socioculturais para

    uma perspectiva mais ampla dos povos dos faxinais, termina refm de limitaes colocadas

    pelos trabalhos anteriores pois apenas um elemento do sistema produtivo, o criadouro,

    tomado como sinnimo das possibilidades de construo da identidade faxinalense.

    Acrescente-se, ainda, que as categorias selecionadas, e que orientam o processo de

    mapeamento (na medida em que os faxinais so registrados a partir de sua classificao em

    uma das formas de criadouro citadas), trazem consigo uma perspectiva que remete ao

    evolucionismo e desagregao do sistema questionados pelo autor. Assim, o criador comum

    aberto tomado como o modelo original, que sofre modificaes a partir de conflitos e

    presses com seus antagonistas, e a partir de ento se transforma nas demais configuraes

    11

    O autor afirma, ainda, que estes so nmeros parciais, pois houve indcios da presena de faxinais em outros municpios que a equipe de pesquisa no conseguiu visitar.

  • 12

    de criador. Em outras palavras, mesmo no sendo cada um dos tipos visto como uma etapa

    pois possvel passar diretamente do tipo 1 ao tipo 3 ou 4 h um modelo original, o

    criador comum aberto.

    Desta forma, toda a complexidade do sistema faxinal apresentada no trabalho de Chang

    passa a ser desconsiderada tanto por ela quanto pelos autores posteriores. Alm disso, a

    diversidade de vises de mundo, organizao social, formas de ser e de viver acaba subsumida

    na noo restrita de criador comum. A potencialidade de um modelo ideal pensado como uma

    matriz a partir da qual as aes dos sujeitos frente a novos contextos, sempre complexos,

    produzem novas configuraes, em que alguns elementos so mantidos, enquanto outros

    transformados ou descartados, no se realiza. E tambm no se desenvolve uma reflexo mais

    sofisticada sobre a construo de identidades e seu vnculo com o jogo poltico de luta por

    direitos. A objetividade do criador leva a crer que seu fim implica no fim de uma forma mais

    ampla de pensar o mundo e ser no mundo.

    A pesquisa entre grupos rurais tradicionais de Pinho/PR, no entanto, aponta em sentido

    distinto daquele indicado pela simplificao resultante do estabelecimento de uma sinonmia

    entre criadouro comum e faxinal. Aqui, gostaria apenas de destacar alguns aspectos, como

    ilustrao das possibilidades de reflexo que os faxinais colocam no apenas para a

    antropologia, mas tambm para os debates em torno das relaes entre populaes

    tradicionais e meio-ambiente. Dentre tais aspectos, ressalto: 1) a estruturao de um sistema

    produtivo que conjuga a criao a solta, o extrativismo e a policultura de subsistncia em reas

    ambientalmente diversas e muitas vezes descontnuas permite um aproveitamento das

    possibilidades produtivas do meio em um processo de manejo bem sucedido; 2) tal modelo

    assegura autonomia dos grupos sociais, pois estes garantem boa parte das matrias-primas

    necessrias vida e reproduo fsica e social do grupo e de suas tradies tendo por base

    seu prprio ambiente; 3) a agncia dos sujeitos em processos de conflitos e presses externas

    e internas no sentido de modificao do sistema pode levar a opes que limitem ou acabem

    com o criadouro coletivo, mas isto no implica na desagregao de uma forma de vida,

    concepo de mundo e relao com o ambiente; 4) os contextos de faxinais, em suas vrias

    concepes, apontam para a complexidade das relaes entre capitalismo e comunidades

    tradicionais, que no devem ser pensadas apenas como antagonismo simples; 5) a

    tradicionalidade dos grupos rurais no deve ser tomada como sua no historicidade.

    Para concluir, afirmo a importncia de um estudo mais aprofundado de grupos rurais que se

    autodenominam faxinais sua religiosidade, sociabilidade, relao com o territrio e o meio-

    ambiente, estratgias polticas de luta pela terra, bases da construo de sua identidade.

    Reconhecendo que a autodenominao de um grupo como faxinal, ou de seus membros como

    faxinalenses, abrange questes mais amplas que apenas um uso comum do territrio para

    criao animal ou um sistema produtivo. Seu Dominguinhos, 81 anos, morador do Faxinal dos

    Taquaras, fala de um jeito antiguinho de ser, que remete a uma religiosidade prpria a

    leitura de sinais do ambiente e dos animais, o domnio de tcnicas de cura, a realizao de

    rituais coletivos e de deveres religiosos ; a uma forma particular de relao com a vizinhana,

    em que o trabalho e o apoio mtuo em caso de necessidade so como obrigaes;

    valorizao da famlia; ao domnio de tcnicas tradicionais de cultivo (tanto nos aspectos

    tcnicos quanto religiosos); importncia do trabalho na roa e do produto deste trabalho,

  • 13

    bem como da sade que vem do mato e dos alimentos tradicionalmente cultivados. Esta

    perspectiva mais abrangente dos grupos tradicionais faxinalenses amplia tanto as

    possibilidades econmicas quanto de acesso a direitos polticos de tais grupos, que falam de

    um jeito de ser e viver especfico.

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