PRÊMIO ANÍSIO TEIXEIRA 2006 Categoria: Tecnologia em … · entre essas diversas linguagens, com...
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Centro de Referência da Educação Pública da Cidade do Rio de Janeiro
PRÊMIO ANÍSIO TEIXEIRA 2006
Categoria: Tecnologia em Educação
“DO RIO PAPA-COUVES AO TOQUE DO PANDEIRO”:
UMA EXPERIÊNCIA DE ANIMAÇÃO
NO NÚCLEO DE ARTE AVENIDA DOS DESFILES
Renata Wilner
Monografia publicada em: ISBN 978-85-60823-01-7 COLETÂNEA – PRÊMIO ANÍSIO TEIXEIRA 2006 Rio de Janeiro – E/CREP, 2007 Organização: Centro de Referência da Educação Pública da Cidade do Rio de Janeiro
INTRODUÇÃO
Este estudo tem como objeto específico um filme de animação produzido no
Núcleo de Arte Avenida dos Desfiles em 2003, que tem por título “Do Rio Papa-couves ao
toque do pandeiro”. O filme, com duração de quatro minutos e vinte e nove segundos, foi
realizado com a participação de cerca de trinta alunos de faixa etária entre cinco e quinze
anos e teve orientação de Marcos Magalhães, coordenador do Anima Mundi, e da
professora Maria Eloá Ferreira Nery Moreira, da oficina de Artes Visuais do Núcleo de
Arte Avenida dos Desfiles, a quem agradeço imensamente pela colaboração para a
realização desta pesquisa.
O Programa Núcleo de Arte consiste em um dos três programas de extensão que a
Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro disponibiliza aos seus alunos do
Ensino Fundamental e à comunidade (os outros dois são o Clube Escolar e o Pólo de
Educação para o Trabalho). Oferece oficinas de linguagens artísticas, voltadas para uma
formação intensiva nessas áreas, a saber: Artes Visuais, Música, Teatro, Dança, Vídeo e
Arte Literária. O direcionamento pedagógico do Núcleo de Arte procura uma integração
entre essas diversas linguagens, com a equipe docente trabalhando em conjunto. O próprio
aluno pode participar de várias oficinas, se for possível conciliar em seu horário, o que
ajuda na integração das linguagens, tanto do ponto de vista pedagógico quanto de produção
“artística”.1
Atualmente, existem nove Núcleos de Arte no município do Rio de Janeiro: N.A.
Avenida dos Desfiles (Cidade Nova), N.A. George Pfisterer (Gávea), N.A. Alencastro
Guimarães (Copacabana), N.A. Nise da Silveira (Centro Psiquiátrico Pedro II - Engenho
de Dentro), N.A. Grécia (Vila da Penha), N.A. Professor Souza da Silveira (Piedade), N.A.
Silveira Sampaio (Curicica - Jacarepaguá), N.A. Albert Einstein (Barra da Tijuca), e N.A.
Prof. João Fernandes Filho (Campo Grande). Os Núcleos de Arte foram implantados aos
poucos, desde 1993. No Complexo Escolar Avenida dos Desfiles (CEMADE), já
funcionava o Centro de Artes no setor Nove, que foi incorporado ao Programa Núcleo de
Arte a partir de 1998.
1 É um pouco problemático definir como produção artística os processos que ocorrem fora de um meio profissional oficializado, ou reconhecido pela crítica especializada. No entanto, no binômio arte-educação, a palavra arte exerce um papel proeminente do qual não é possível subtrair o caráter dos processos criativos e das poéticas artísticas dessas práticas. Prefiro colocar esta adjetivação entre aspas porque os meios são artísticos, mas os fins são pedagógicos, no contexto de instituições de ensino.
Os Núcleos de Arte são unidades pluriescolares, atendendo a alunos de diversas
escolas municipais e a demais crianças e adolescentes da comunidade, em caso de vagas
disponíveis (nesse caso, há uma prioridade para portadores de necessidades educacionais
especiais). O aluno freqüenta o Núcleo de Arte em caráter optativo, em horário alternativo
ao seu horário escolar.
Os professores dos Núcleos de Arte são profissionais do quadro do magistério
efetivo da Secretaria Municipal de Educação, com formação nas suas linguagens
específicas, ou capacitados para as ministrarem, e são selecionados mediante apresentação
de currículo e sucesso de seu trabalho nas unidades escolares municipais.
O planejamento das atividades segue um “fio condutor” anual cujo tema é decidido
pela equipe de cada Núcleo de Arte, no início do ano letivo. Com o fio condutor definido,
os professores selecionam os conteúdos e traçam estratégias em suas oficinas em
particular, e no Núcleo como um todo. No caso analisado nesta monografia, o fio condutor
que a equipe do N.A. Avenida dos Desfiles escolheu em 2003 relacionava-se com o
aniversário da inauguração do Sambódromo, prestes a completar vinte anos no início de
2004, tornando-se oportuna a apresentação de reflexões acerca desse fato no final de 2003.
O Departamento de Ensino Fundamental da SME orienta as diretrizes curriculares e
acompanha o trabalho pedagógico das escolas, mas possui também outras frentes de
trabalho, como os Programas de Extensão e os Projetos Culturais. Os Projetos Culturais
consistem na promoção de diversos eventos direcionados para a rede municipal de
educação, como Mostra de Dança, Festival da Canção (FECEM), concursos de imagens
para cartazes, apresentações de espetáculos profissionais em escolas, Projeto Escola de
Bamba (preparativo do desfile de carnaval da Escola de Samba Mirim Corações Unidos do
CIEP), entre outros, e também o Anima Escola. Este consiste em uma parceria com a
equipe do Anima Mundi, que oferece oficinas, exibição e produção de filmes para
professores e alunos de escolas municipais e unidades de extensão, mediante prévia
inscrição.
O Anima Mundi é o Festival Internacional de Animação do Brasil, que acontece
anualmente desde 1993, nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Foi criado e é dirigido
por quatro profissionais de animação: Aida Queiroz, Cesar Coelho, Lea Zagury e Marcos
Magalhães. O festival traz ao público brasileiro uma seleção de filmes e vídeos nacionais e
internacionais do mundo da animação – curtas e longas-metragens, seriados e comerciais
realizados em diversos estilos visuais, linguagens narrativas e técnicas de animação. Além
disso, o festival oferece as oficinas do Estúdio Aberto, retrospectivas, workshops,
palestras, Mostras Especiais e um concurso de animações para a internet – “Anima Mundi
Web”.
O Anima Escola nasceu do interesse de professores e alunos de escolas públicas e
particulares pelas oficinas montadas durante o Anima Mundi no “Estúdio Aberto”, que
acontece desde a primeira edição do festival. A equipe do Anima Mundi decidiu então
montar uma versão especialmente concebida para as escolas, a partir de 2001.
Na primeira etapa do projeto, é oferecido um curso de capacitação para os
professores, visando uma orientação prévia de roteiros e pesquisas para os filmes a serem
realizados pelos alunos nas oficinas de animação. Depois a equipe do Anima Mundi entra
em contato com os alunos, através de uma palestra sobre animação, que compreende a
exibição de filmes selecionados, com abordagens críticas e informativas. Na etapa
seguinte, ocorrem as oficinas práticas com experiências rápidas, de resultados imediatos,
em diversas técnicas de animação, tais como flip-book, zootrópio, estúdio de massa de
modelar e estúdio de pixilation. O Anima Escola oferece também, caso exista um interesse
específico, um curso que dá continuidade às oficinas, com 20 horas/aula e a execução do
projeto de um filme.2 Cada escola recebe o material gerado em suas oficinas, editado em
vídeo, alguns dias depois de realizado o evento, que podem ser utilizados durante o ano
letivo como apoio didático nas aulas.
Após algumas bem-sucedidas experiências-piloto com escolas particulares, o
Anima Escola vem realizando desde 2002 um amplo programa de cursos, oficinas e
produção de filmes com alunos e professores em Núcleos de Arte, Pólos de Educação para
o Trabalho e em escolas municipais cariocas, através de um convênio com a Secretaria
Municipal de Educação do Rio de Janeiro. O trabalho apresentado nesta monografia foi
realizado em 2003.
Verificaremos a imbricação dos processos pedagógicos de arte e do conhecimento
do meio em que vivem os alunos, ou seja, da formação de sua visão de mundo. Veremos
como o desenrolar desse processo culminou na animação “Do Rio Papa-couves ao toque
do pandeiro”, por uma feliz coincidência de cronograma do Projeto Anima Escola.3
O filme reúne várias técnicas gráficas e pictóricas como desenho a grafite, lápis de
cor, pintura a guache. A movimentação é de um modo geral realizada através de
sobreposições e encaixes de peças recortadas, mas há também pintura em vidro, pixilation 2 Conforme ocorreu com as turmas de Maria Eloá no Núcleo de Arte Avenida dos Desfiles, em 2003. 3 O Anima Escola realizou sua oficina no N.A. Avenida dos Desfiles em outubro de 2003, quando os alunos já estavam impregnados do tema trabalhado desde o início do ano, processo que será detalhadamente exposto nesta monografia.
(animação por fotografia quadro a quadro, com movimentação corporal dos alunos),
efeitos de edição. O processo ainda é muito artesanal, pois o objetivo era a apreensão dos
conceitos básicos relacionados à animação. Esses procedimentos permitem uma
simplificação do processo adequando-o às limitações de faixa etária, tempo de oficina e
iniciação na linguagem. A manipulação manual de peças recortadas e outros
procedimentos artesanais também conferem um caráter mais lúdico ao fazer. O
computador, que hoje é geralmente usado na geração das imagens para animação, só foi
usado para a edição final. Mas a mediação tecnológica esteve presente o tempo todo, no
registro das imagens pelas câmeras, para que fossem depois editadas.
Os alunos elaboraram todo o conjunto do filme, desde o roteiro até a música, um
samba-enredo que hoje é tido por alunos ingressos posteriormente, como o “hino” do N.A.
Avenida dos Desfiles. Esta integração de linguagens, que o trabalho de animação
proporcionou, está bem afinada com a proposta pedagógica do Programa Núcleo de Arte.
Portanto, podemos inserir o conceito de diversidade na própria metodologia de
ensino do Núcleo de Arte, através da combinação da pluralidade de linguagens artísticas,
na composição de suas turmas, envolvendo alunos de faixas etárias variadas e originários
de vários bairros e localidades, do “morro” e do “asfalto”, portadores ou não de
necessidades educativas especiais. As turmas dos Núcleos de Arte já são diversificadas por
natureza, e o professor deve olhar para essas características como qualidades das quais
pode tirar proveito para todos. Além disso, veremos como a diversidade cultural urbana,
problema do qual nos ocuparemos, se refletiu no projeto pedagógico pesquisado.
1- DO RIO PAPA-COUVES AO TOQUE DO PANDEIRO, A HISTÓRIA DO
LUGAR ONDE ESTOU
O filme de animação “Do Rio Papa-couves ao toque do pandeiro” não surgiu de
repente, simplesmente por causa da oportunidade da oficina do projeto Anima Escola no
Núcleo de Arte Avenida dos Desfiles. A oficina aportou na culminância de um processo
ocorrido ao longo de todo o ano de 2003 e que vale à pena investigar, porque o filme é
precisamente sua síntese.
Tendo como fio condutor a construção da Passarela do Samba, mais conhecida
como “Sambódromo”, a professora Maria Eloá Moreira foi fundo na busca dos usos
anteriores do lugar onde este está situado. O projeto todo é repleto de uma significação
muito relevante para os que dele participaram, em primeiro lugar, porque o Núcleo de Arte
ocupa o Setor Nove do próprio Sambódromo. As salas que servem de camarotes, depósitos
e copas no carnaval são utilizadas como salas de aula durante o resto do ano4.
Maria Eloá e seus alunos pesquisaram a história do chão onde estavam pisando e
descobriram que debaixo dele existe ainda um rio, de nome “Papa-couves”, que foi
canalizado quando o bairro foi urbanizado e as ruas asfaltadas. O rio nasce em Santa
Teresa e ali havia hortas da população que vivia às suas margens. Quando o rio enchia (o
que era comum na estação de chuvas no Rio de Janeiro), arrastava as hortaliças plantadas,
daí o nome. Os alunos passaram então a imaginar essa origem bucólica do bairro onde
vivem e estudam. Fizeram pinturas representando um imaginário Rio Papa-couves.
As turmas de Maria Eloá prosseguiram com a prospecção histórica, e um rico
cenário se apresentou na Praça Onze de outrora: o casario de estilo art nouveau que ainda
deteriorado sobrevive, as populações que ali viveram, de uma diversidade cultural e étnica,
a Tia Ciata, o samba e o carnaval.
Esse belo Rio antigo e suas heranças foram abordados nas aulas de Maria Eloá,
proporcionando aos alunos - boa parte constituída de moradores da região - a valorização
do bairro, conseqüentemente um aumento de auto-estima. Os alunos se debruçaram então
sobre o valor histórico das construções, e das práticas culturais cotidianas ou pontuais. A
região do Catumbi e Cidade Nova é repleta de patrimônio histórico e cultural. Uma das
atividades consistiu em pintura representando as fachadas do casario dos arredores do
Sambódromo.
Depois de analisar o espaço desse ambiente, um espaço transverso pelo tempo, que
tem como testemunhas a existência do Rio Papa-couves, encanado no subterrâneo, e a
presença do casario da virada do século XIX às primeiras décadas do século XX, Maria
Eloá e seus alunos dedicaram atenção às pessoas que viveram nesses espaços, no passado.
O que foi a Praça Onze? Berço do carnaval carioca,5 através da proeminente figura de Tia
Ciata, da presença dos baianos e também de negros cariocas. Zona de meretrício de
imigrantes, conhecidas como “polacas”. A esse propósito, Maria Eloá desenvolveu o
conteúdo sobre o gênero “retrato”, organizando uma série de retratos imaginários pintados
pelos alunos, intitulada “Damas da Noite”. E outros tipos humanos que fizeram parte da
4 Outros setores do Sambódromo são usados como escolas regulares da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro e por outros órgãos da Prefeitura, como a RIOTUR e o Conselho Tutelar. 5 Com relação ao carnaval, Maria Eloá participou ativamente naquele ano do desenho de fantasias para a escola de samba mirim composta por alunos de várias escolas municipais, a G.R.C.E.S.M. Corações Unidos do CIEP. Na animação o carnaval está presente pela música, fantasias dos alunos, passistas desenhados e animados por movimentação de recortes.
formação do bairro também foram imaginariamente retratados pelos alunos: os baianos, os
sambistas, os malandros, os turcos.
Até que veio essa grande intervenção do grande arquiteto Oscar Niemeyer. O que
representou a construção do Sambódromo? Qual o impacto sobre o ambiente, sobre a vida
do bairro? E sobre o carnaval? Essas reflexões ficaram patentes para os alunos que
freqüentaram as oficinas ministradas por Maria Eloá naquele momento. Eles tiveram
acesso ao antes para terem instrumentos que permitissem interpretar o depois. Puderam
perceber o Sambódromo como uma intervenção na paisagem urbana. Puderam também
comparar a estética de uma arquitetura ainda muito artesanal, do casario do início do
século XX, para uma totalmente industrial. De um modo mais geral, o episódio anterior e
simples do encanamento do Rio Papa-couves sintetizava o próprio drama do progresso e da
urbanização, onde toda construção requer implicitamente uma destruição. Por isso, na
animação, o cano se antropomorfiza, adquire um rosto, e é voraz, com uma grande boca
com dentes que engole o rio. E o rio, que “papava”, passou a ser “papado”.
Mas detalharemos o processo da animação depois. Voltando à seqüência de
atividades anteriores, os alunos de Maria Eloá fizeram então pinturas que refletem bem
essa intervenção do novo sobre o antigo, e colocaram, de uma forma quase surrealista, o
Rio Papa-couves e o Sambódromo coexistindo (embora na realidade eles coexistam, mas
com o rio silencioso e invisível, encanado sob a passarela de concreto). Nos trabalhos, os
alunos “libertaram” o Papa-couves, junto ao Sambódromo, e o resultado foi muito
interessante.
Na etapa seguinte, o foco de atenção foi o Sambódromo em si, já que todo seu
entorno, histórico e urbanístico, já havia sido abordado. Maria Eloá disse que procurou
cartões postais do Sambódromo para montar um mural, mas não encontrou. Os alunos
pintaram, então, “cartões postais” à mão (medindo cerca de 15 x 12 cm).
Os alunos observaram também detalhes do desenho do Sambódromo, como as
gotas vazadas nas placas de concreto laterais que sustentam as arquibancadas. Essas gotas,
que provavelmente são, ao meu ver, uma alusão à lágrima do Pierrô, foram tema de um
trabalho de interferência no espaço do Núcleo de Arte. Outros desenhos foram feitos a
partir da observação da arquitetura do Sambódromo, tema que Maria Eloá sempre procura
trabalhar, devido à importância de Niemeyer e ao fato do Núcleo de Arte se inserir nessa
obra de sua autoria.
Nesse trabalho ao longo de 2003, a professora cruzou a história da cidade (através
de um local representativo dela) com o imaginário presente na cultura e refletido na
produção dos alunos. O imaginário está presente no carnaval, nos ornamentos
arquitetônicos do casario, nos devaneios de concreto armado de Niemeyer. A história se
nutre e nutre esse imaginário, numa simbiose.
De acordo com ARGAN (citado por IANNI, 1996, p.81-82), a cidade é uma obra-
de-arte, uma criação coletiva, já que está permanentemente, em seu movimento
caleidoscópico e sua polifonia, se refazendo, recriando, alterando as significações.
Segundo o sociólogo Octavio Ianni (1996, p. 85), “a cidade é simultaneamente real e
imaginária”, aspecto que foi bem explorado no trabalho orientado por Maria Eloá.
No Brasil, a globalização tem seu poder de penetração até certo ponto, porque a
cultura local é muito forte e enraizada. A cultura globalizada é deglutida
“antropofagicamente”, como há bastante tempo já temos experiência em tais processos. O
casario da Praça Onze que os alunos de Maria Eloá desenharam são de estética francesa. Os
habitantes, europeus, judeus, árabes, baianos e cariocas. Talvez a Praça Onze e o Rio de
Janeiro já sejam globalizados há muito tempo. Caso isso seja um exagero, pelo menos um
caldeirão de diversidade cultural. Por ter sido a capital da República do século XIX à
primeira metade do século XX, o Rio de Janeiro protagonizou esse processo antropofágico,
com muita influência externa e muita elaboração interna. Mas com o advento de Brasília,
São Paulo tem se tornado o centro de diversidade cultural do Brasil, já que continha
anteriormente influências de populações imigrantes de muitas nações e migrantes de várias
regiões nacionais.
De acordo com IANNI (1996, p. 65), no Brasil, São Paulo seria uma cidade mundial
(megalópole), enquanto o Rio de Janeiro uma metrópole mais local. Mas na hierarquia
mundial (centros internacionais, centros de zonas particulares e centros regionais), São
Paulo estaria na terceira categoria: centro regional. Nova York, Londres e Paris são
exemplos de centros internacionais e Hong Kong e Los Angeles, de centros de zonas
particulares.
Octavio Ianni chama atenção para o aspecto cosmopolita da cidade global,
justamente o da - não tão pós-moderna assim - diversidade cultural. Ao reboque da
globalização, o autor enumera uma penca de problemas sociais e urbanos (violência,
narcotráfico, racismo, pobreza, carência de recursos de atendimento à população). Em
termos sociais, Ianni aponta o surgimento de uma subclasse, devido ao desemprego
estrutural, que pode se tornar o perfil de bairros inteiros. Este produto de uma crescente
desigualdade está presente em nações desenvolvidas e no terceiro mundo, indistintamente.
A decadência do bairro do Catumbi e da antiga Praça Onze, que possibilitou a inserção do
monumental Sambódromo em seu espaço (o que implicou no derrubamento de uma grande
área), a própria construção da Cidade Nova, dos prédios da Prefeitura e de outros centros
administrativos públicos e privados, foi conseqüência de um empobrecimento e desse
desemprego crescente, ao mesmo tempo em que os subúrbios cresciam, ou seja, a
população era jogada para a periferia.
Mas ali, nas imediações do Sambódromo, ainda há resistência cultural, ainda há
moradores, ainda há o humilde e memorável bloco carnavalesco Bafo da Onça, vizinho da
grande passarela das “superescolas” de samba. Assim como o casario antigo que insiste em
permanecer, talvez porque seus moradores não tenham dinheiro para interferir e
descaracterizá-los.
A vida urbana está permeada de uma dialética, em sua realidade contraditória. Neste
caso, de uma condição adversa advém uma resistência de toda uma área urbana; de sua
decadência, a sua resistência; do seu novo (Sambódromo), a sua história (carnaval).
Construir implica em destruir, como mostram os alunos de Maria Eloá na visão do Papa-
couves ou no contraste da arquitetura moderna do Sambódromo com o casario antigo.
Na “cidade global” de Octavio Ianni, “são múltiplas e contraditórias as formas
sociais de tempo e espaço que aí prevalecem, vivificando o caleidoscópio global”.
(IANNI, 1996. p. 73). Podemos aplicar essa fórmula a qualquer metrópole do porte do Rio
de Janeiro, independente de sua posição na hierarquia da globalização.
A cidade pode ser vista como um caleidoscópio enlouquecido no qual movimentam-se grafites, colagens, montagens, bricolagens, pastiches, video-clips, desconstruções, simulacros, virtualidades. Mas esse caleidoscópio também pode ser lido, compreendido e interpretado, da mesma maneira que indivíduos, grupos, classes e coletividades nele se movimentam, organizam, reivindicam, questionam, lutam. (IANNI, 1996. p. 77)
Esses grupos reivindicam sua identidade, seu sentido de pertencimento ao grupo, à
rua, à favela, ao bairro, à cidade. Quanto mais excluídos, maior o potencial de tensão
social. A desigualdade é outra faceta da diversidade, revela Ianni. A violência urbana, os
preconceitos e a intolerância crescem ao mesmo passo que a liberdade e a diversidade.
Ninguém (politicamente ético) defenderia a supressão da liberdade e da diversidade, no
entanto, trata-se de compreender que ela engendra também essa sombra social. Talvez o
melhor meio de lidar com a diversidade e com a liberdade seja através da arte, porque aí
vai se renovar essa carga de sentidos e permitir a troca de experiências e leituras, em um
diálogo franco que não acolhe o preconceito. Na arte-educação, como é o caso das
experiências aqui descritas, essa possibilidade é ampliada, pois ela é inclusiva.
Um aluno que freqüenta um Núcleo de Arte dificilmente tenderá para o isolamento
e apatia, a um estado que “leva a um embotamento afetivo e perda da capacidade de
discernimento” (IANNI, 1996. p. 74) de inúmeros habitantes de uma grande cidade. Um
aluno que desenhou, percebeu, pesquisou a história do seu meio, do espaço onde vive e
circula diariamente, não pode ser indiferente a esse meio. A experiência da arte-educação
vem na direção contrária a esse embotamento dos sentidos que o excesso de informações, o
isolamento e a comunicação unilateral das mídias massivas levam. Não pretendo ser
“apocalíptica” com relação aos meios tecnológicos de comunicação: eles são valiosos e
importantes, uma necessidade do tempo presente. Mas sem o contraponto, do qual as
experiências de arte-educação seriam um exemplo, o indivíduo só pode ser levado a uma
situação de desequilíbrio que tende de um lado para o isolamento e apatia, e do outro, para
uma violência extrema.
O conceito mais significativo de Octavio Ianni com relação ao processo
desenvolvido por Maria Eloá em 2003 é, no entanto, o da cidade como cruzamento entre
geografia e história. A professora soube mostrar, nas propostas que desenvolveu com os
alunos, como aquele lugar só era dotado de sentido através de uma existência histórica. E
como ali floresceu uma vida cultural porque houve contato entre portadores de
características culturais e étnicas que na sua geografia original estavam separadas. O
estudo da Praça Onze traduziu bem aquilo que Octavio Ianni chama de “síntese
privilegiada do encontro entre a geografia e a história” (IANNI, 1996. p. 59).
O ponto de vista de Zygmunt Bauman a esse respeito é discordante e pessimista,
talvez porque construído a partir de um centro hegemônico de poder, já que a globalização
mantém e até aprofunda os mecanismos do imperialismo (desta vez não centrado nas
nações, mas nas corporações empresariais). Bauman cita Paul Virilio criticando a
declaração de Francis Fukuyama sobre o “fim da história” como prematura, no entanto
“pode-se cada vez com mais confiança falar atualmente do ‘fim da geografia’ ”
(BAUMAN, 1999, p. 19). Para Bauman a geografia se dissolve, enquanto para Ianni ela se
fortalece, ao se imbricar com a história. Em Bauman as identidades se diluem, enquanto
em Ianni ocorre o oposto, já que a história reforça o sentido da localidade. Para BAUMAN
(1999, p. 8), “ser local num mundo globalizado é sinal de degradação social”, referindo-se
à perda de identidade do local e à elitização da desterritorialização (proprietários ausentes,
empresas transnacionais, investidores internacionais, passageiros de aviões, comunicação
imediata por telefone e internet). No quadro de Bauman, a distância física não existe mais,
em seu lugar, há a distância social. Neste último ponto achamos concordância com a
posição de Ianni, quanto à exclusão social crescente. Mas ao contrário do que advoga
Bauman, ser local não é sinal de degradação, pelo contrário, é encontrar valores de
dignidade própria.
BAUMAN (1999, p. 19-20) tem em parte razão ao dizer que a cultura cosmopolita
é uma mesma cultura das elites de vários lugares, que apaga a coloração local, e nisso
podemos bem retratar a elite brasileira que subestima o valor de sua brasilidade, negando o
senso de pertencimento a essa nação e identificando-se mais com as elites estrangeiras, seja
na moda ou em outros sinais. Isso não é um fenômeno da globalização ou da pós-
modernidade, embora esteja acentuado neste contexto. As elites brasileiras já preferiam,
por exemplo, a moda e os costumes franceses no século XIX e primeiras décadas do XX.
Mas isso não significa que uma parcela da elite não busque alternativas em termos de
referenciais culturais, nem que a população com identidade local esteja necessariamente
fadada à degradação social. Tomando a parte pelo todo, a visão de Bauman carece de
sutilezas.
A cultura local, na ótica de Bauman, é aquela identificada com a população do
território. A comunicação veloz e barata, e o excesso de informação sufocam a memória
(cultura local), que depende da educação (informação baseada na memória, que é um
processo seletivo) (BENEDIKT citado por BAUMAN, 1999, p. 22-23). No caso do Brasil,
creio que o que sufoca a memória e o saber local é a falta de informação, ou a informação
de baixa qualidade, desprovida de sentidos relacionados com esse percurso histórico. De
qualquer forma, voltamos a desembocar no papel da educação na seleção da informação
para construir sentido histórico, do qual não se furtou a Professora Maria Eloá, no trabalho
aqui exposto.
2- ANIMANDO O SAMBÓDROMO
O projeto Anima Escola aportou coroando o processo de trabalho desenvolvido no
N.A. Avenida dos Desfiles ao longo de 2003. A oficina do Anima Escola se deu em
outubro daquele ano, e consistiu em um total de oito aulas, ao longo das quais foi
produzido o filme “Do Rio Papa-couves ao toque do pandeiro”.
Primeiramente, a equipe do Anima Escola, coordenada por Marcos Magalhães,
realizou, com professores e alunos, experiências de animação com massa de modelar. Esta
não foi a técnica escolhida para dar suporte ao filme, porque já havia um conjunto de
trabalhos em pintura a guache realizados ao longo do ano, que foram aproveitados. A
animação produzida apresenta uma linguagem toda em meios bidimensionais6, excetuando
apenas os próprios corpos dos alunos e a indumentária utilizada, como elementos
tridimensionais.
Na etapa preliminar, a equipe do Anima Escola exibiu, através de aparelho de
vídeo, filmes de animação do acervo do festival Anima Mundi. Estes filmes caracterizam-
se pela qualidade artística, com diversas propostas estéticas e experimentações técnicas,
além da diversidade cultural devido à proveniência de vários países e regiões. Maria Eloá
observou que esse momento de fruição foi muito importante para ampliar os referenciais
da linguagem de animação dos alunos, que são os veiculados na televisão, em geral
composta de desenhos americanos ou japoneses que seguem determinados padrões e
estereótipos.
Participaram do Anima Escola e da elaboração de “Do Rio Papa-couves ao toque
do pandeiro” um total de quase trinta alunos. Os desenhos que aparecem no filme são de
autoria de cerca de vinte e cinco alunos, tendo eles optado pelo caráter coletivo de criação.
Embora houvesse muito material interessante, e que poderia ser aproveitado para o filme,
não foi possível inserir todos os desenhos por motivo de tempo da oficina e da duração do
filme. Foi necessário então uma difícil seleção de alguns trabalhos, feita pelos próprios
alunos. Alguns desses trabalhos eram originalmente individuais, outros realizados em
equipe, como a seqüência de movimentação da boca com a laringe na forma da Apoteose,
que acompanha a flexão da palavra “oba!” no canto do samba.
Para a elaboração do filme, os alunos fizeram um storyboard, divididos em equipes.
O roteiro mais detalhado foi o escolhido pela turma. Nos trabalhos de storyboard aparecem
desenhos de vários alunos e é criada a noção de seqüência da narrativa. Narrativa esta que
sintetiza os aspectos históricos e geográficos do local, já analisados: a evolução urbana, os
usos do espaço, as intervenções sofridas nesse espaço. O tratamento do tema é feito com
muito humor e muita cor, onde as crianças e adolescentes puderam dar asas à imaginação.
O roteiro definido pelos alunos possui a seguinte seqüência:
1- O Rio Papa-couves correndo limpo, com poucas casas, mostrando a origem do
bairro.
2- Crescimento do bairro. O Rio Papa-couves ficando poluído devido ao excesso de
esgoto das moradias.
6 A rigor, como na animação a imagem se dá em movimento, sua espacialidade seria então quadridimensional, pois inclui a quarta dimensão, o tempo. Mas no processo de construção da animação em questão, o meio usado foi o bidimensional.
3- Início das obras de canalização dos rios. Os canos ganharam “rostos”, em
linguagem caricatural.
4- O Rio Papa-couves praticamente canalizado. Ação do cano engolindo o rio.
5- A chegada das máquinas para remover as árvores e a terra.
6- O Rio Papa-couves canalizado e soterrado.
7- O cimento sendo despejado por um caminhão betoneira.
8- O Sambódromo nascendo em concreto armado, representado por uma pintura sobre
vidro, seguindo um desenho em perspectiva colocado sob ele, cuja animação é a
seqüência de pinceladas.
9- O desfile diário dos alunos no Sambódromo.7
10- O desfile de carnaval.
Várias técnicas foram utilizadas para dar origem à animação, como desenho a lápis-
de-cor, pintura a guache, canetas hidrográficas. Algumas pinturas em papel de gramatura
mais grossa (Canson ou cartolina) formaram os cenários e planos de fundo, o primeiro
deles, a paisagem natural de terra com o rio. Nessas pinturas eram feitos recortes para
encaixes que permitiam a movimentação do rio ou do cano, por exemplo, e sobrepostos
elementos, como as árvores e os tocos das árvores cortadas, as máquinas. Essas peças
(desenhos recortados) eram soltas e iam sendo movimentadas sobre o cenário, enquanto
eram filmadas no modo do quadro a quadro para compor a animação. Ao final do processo,
Maria Eloá montou painéis expositivos no corredor do Núcleo de Arte com os desenhos
dos roteiros elaborados pelos alunos (storyboard) e com os cenários e peças usados
efetivamente no filme.
Outra técnica que aparece no filme, “costurando” as diversas cenas, é a imagem dos
próprios alunos cantando e dançando, o que reforça o caráter de integração entre diversas
linguagens artísticas do Programa Núcleo de Arte. O filme “Do Rio Papa-couves ao toque
do pandeiro” inclui linguagens de quase todas as oficinas do Núcleo de Arte: vídeo, artes
visuais, música, dança (expressão corporal) e arte literária (roteiro). A única linguagem que
não está presente é a do teatro, embora a ação dos “personagens” desenhados (cano, água,
peixes, árvores, máquinas) seja um pouco “tragicômica”, de um certo ponto de vista,
trazendo uma sensibilidade com afinidades ao teatro.
7 O uniforme da rede municipal de educação do Rio de Janeiro foi trocado para a atual camisa com gola laranja e estampa preta em 2004. Em 2003, ano do referido projeto, o uniforme ainda era camisa toda branca com estampa azul-marinho, conforme aparece nos desenhos e no filme.
A imagem dos alunos é editada por uma técnica conhecida como “pixilation”, onde
se monta uma seqüência de fotos a partir de movimentos lentos e pausados. O ritmo da
movimentação também é editado, neste caso, na cadência do samba cantado. Em “Do Rio
Papa-couves ao toque do pandeiro”, a imagem dos alunos é mesclada com a pintura do
fundo, por exemplo, criando um efeito de transparência nas mãos e roupas. Tal efeito foi
editado no computador. A equipe do Anima Escola montou a ilha de edição no recinto do
Núcleo de Arte, e os alunos acompanharam todo o processo.
A imagem dos alunos como interferência nos desenhos é pertinente por dois
aspectos: o psicopedagógico, pois reforça a auto-estima dos alunos, ao se virem inseridos
em sua própria criação; e o do roteiro do filme, que compara o desfile diário dos alunos no
Sambódromo ao extraordinário do carnaval. Por isso os alunos aparecem cantando,
sambando e vestindo fantasias.
Assim como o roteiro e os desenhos, a trilha sonora também é de autoria dos
alunos. Ela se resume em um curto samba-enredo composto especialmente para o filme por
dois alunos e pela professora Maria Eloá, e entrou por último na montagem. A música é
cantada pelos alunos e acompanhada por um pandeiro. De acordo com o depoimento de
Maria Eloá, a professora de música Neila Pataro chegou a preparar com os alunos um
arranjo de acompanhamento instrumental8, mas a acústica do ambiente não permitiu uma
gravação de boa qualidade, embora a equipe do Anima Escola tivesse levado equipamento
para essa finalidade. A opção final foi usar apenas voz e pandeiro, e o resultado foi
satisfatório, pois a letra do samba desempenha uma função fundamental na inteligibilidade
do filme:
O que é que houve com o Rio Papa-couve Foi encanado e soterrado pelos homens Mas o desfile vai continuar Porque o samba não pode acabar Desfila peixe Desfila aluno Desfila o povo Assim o Rio recomeça aqui de novo É Niemeyer É Passarela É a apoteose genial Onde o Rio desemboca em carnaval Oba!
8 Os Núcleos de Arte são providos de diversos instrumentos musicais.
O filme “Do Rio Papa-couves ao toque do pandeiro” alcançou alguma repercussão,
embora, por sua qualidade, mereça ser mais divulgado.9 Foi exibido no Festival Anima
Mundi do ano seguinte (2004), no Brasil e no exterior.10 Naquela ocasião, saiu uma
reportagem com Marcos Magalhães na revista Megazine que é encartada no jornal O
Globo, ilustrada por um desenho que compõe o filme. Em 2004, também foi exibido no
Festival Rio de Cinema, no Espaço Unibanco, quando os alunos puderam assisti-lo
projetado na tela de cinema, com grande empolgação. No mesmo ano, a MULTIRIO11
realizou uma reportagem sobre o filme, divulgando-o em programa de televisão e na
revista Nós da Escola. Outro reflexo do sucesso do trabalho foi o grande interesse de dois
alunos que se matricularam na Oficina de Cinema de Animação da UERJ, dando
continuidade à aprendizagem.
Além do contato com a técnica da animação e o exercício de um processo criativo
coletivo através dela, a Professora Maria Eloá destacou algumas considerações avaliativas
do trabalho realizado na oficina. Em primeiro lugar, a ampliação do universo estético
referente à linguagem de animação, conforme anteriormente citado. Não só porque
puderam assistir a filmes que não são usualmente exibidos nos veículos de comunicação de
massa, mas também por experimentarem a linguagem por dentro, através de seu processo
de criação e de produção.12
Isso despertou uma consciência crítica com relação à manipulação de imagem.
Maria Eloá comentou como os alunos se surpreenderam com a alteração de escalas e
proporções, como uma figura pequena podia aparecer enorme, em um close-up,
exponencialmente quando projetado na grande tela da sala de cinema. Sem haver
provocado intencionalmente essa discussão, mas como conseqüência natural, houve esse
momento de reflexão sobre o jogo entre o real e o ilusório nas linguagens onde existe
manipulação de imagens. O maior tesouro pedagógico foi obtido ao chegar a essa questão 9 No Brasil há uma grande carência em espaços para divulgação de trabalhos de arte-educação. Os museus e centros culturais já possuem um setor educativo, para dinamizar sua relação com o público escolar, através de visitas guiadas e oficinas, mas ainda não há um espaço público, nem esporádico, muito menos sistemático, de mostra de experiências realizadas em escolas ou em instituições de ensino de arte. Ficando a produção restrita a ser exibida apenas em seu local de origem, ou em eventos pontuais como congressos e seminários. 10 Maria Eloá não soube informar o nome e local do festival, já que o envio do material foi intermediado pela equipe do Anima Mundi. 11 MULTIRIO é a Empresa Municipal de Multimeios, a qual produz programas de televisão, para canal aberto em concessão e para canal fechado, conteúdos para seu site na internet, material multimídia, revista Nós da Escola e outras publicações. 12 Uma pesquisa recente de Analice Dutra Pillar revela a curiosidade das crianças acerca do processo de produção da animação. As crianças pesquisadas questionaram “como os desenhos se mexem”. PILLAR, Analice Dutra. Regimes de visibilidade nos desenhos animados da televisão. In: Arte em pesquisa: especificidades. Ensino e Aprendizagem da Arte; Linguagens Visuais / Maria Beatriz de Medeiros (org.) – Brasília, D.F. : Editora da Pós-graduação em Arte da UnB, 2004, v. 2.
ética crucial: de como a manipulação de imagem pode ser usada para ludibriar, enganar o
espectador, que é levado a crer na informação transmitida como verídica, ou, por outro
lado, pode também ser usada para pesquisa de efeitos interessantes do ponto de vista
artístico, constituindo assim a própria linguagem e, portanto, uma nova verdade autônoma,
a da poética da obra.
3- REFLEXÕES ACERCA DO USO DE TECNOLOGIAS NO ENSINO DE ARTE
A experiência da Professora Maria Eloá e seus alunos com a linguagem do cinema
de animação, a proposta do Anima Escola como um todo, apontam para uma tendência no
ensino de arte que requer maiores considerações teóricas e análise crítica.
Primeiramente, fica patente, em um trabalho de animação, como a estética dota de
sentido a técnica, que por si só não é capaz de gerar sentido. Por isso não se trata só de
defender o uso de tecnologias na educação, mas de entender como elas podem ser
utilizadas como ferramentas de educação. Ou seja, não basta apenas oferecer ao aluno a
técnica pela técnica, justificando um discurso de inclusão, mas sim de a partir dessa
inclusão, gerar um saber que envolve processos criativos, filosóficos e epistemológicos.
Nas teorias mais recentes de arte-educação está muito em voga o termo “cultura
visual”,13 que amplia o campo das Artes Plásticas para Artes Visuais, abrangendo a
questão da imagem e sua virtualidade, já que o termo “plástica” requer uma materialidade
do suporte. Pois bem, quanto mais modalidades de experiências com imagem forem
propiciadas ao aluno, maior seu repertório de cultura visual. A animação, a imagem em
movimento, é uma dessas modalidades, a qual engloba uma infinidade de possibilidades
técnicas. Na medida em que adquire um conhecimento do processo produtivo das
linguagens, maior a capacidade de leitura crítica diante da enxurrada de informação da
cultura visual contemporânea. Por isso defendo a idéia do uso da tecnologia acompanhado
de uma educação estética, pois só puramente o ensino da técnica não passa de uma
instrumentalização vazia. O fundamental é o que se produz com a técnica, e não a técnica
em si.
O professor Hélcio Gurgel de Amorim coordena um projeto de oficinas de vídeo na
rede municipal de educação. Ele defende que a inclusão dos alunos aos meios tecnológicos, 13 O campo de estudo da cultura visual é um desdobramento da linha de pesquisa acadêmica conhecida como “Estudos Culturais”, originária do Centre for Contemporary Studies da Universidade de Birmingham, Inglaterra, em 1964. Os Estudos Culturais, de caráter interdisciplinar, se difundiram para fora da Inglaterra a partir da década de 1980.
para ter eficiência crítica, deve ser feita junto aos dois pólos: consumidor e produtor.
Assim, o aluno sai da condição passiva de espectador de vídeo para a ativa, de produtor. E
ele pode se colocar dentro da linguagem, ou seja, utilizá-la como meio de expressão. Com
relação a esse ponto, Hélcio Amorim (2003, p. 60) faz uma crítica à grande quantidade de
aparelhos de televisão e vídeo nas escolas do país, em contraste com a pequena quantidade
de filmadoras, denotando que as escolas reproduzem, mas não criam, em linguagens
audiovisuais.
Para uma educação audiovisual, Hélcio Amorim sugere a metodologia triangular de
Ana Mae Barbosa, que consiste na produção (criação), fruição (leitura) e contextualização
histórico-cultural. Metodologia essa que norteia os Núcleos de Arte, conforme podemos ver
claramente no exemplo do trabalho de Maria Eloá em 2003, objeto deste estudo. Para o uso
dessa metodologia, Amorim destaca o papel do professor como mediador na discussão dos
valores que circulam na sociedade (inclusive através dos meios tecnológicos de
informação). A posição distanciada da escola14 torna-se privilegiada para promover a
análise crítica desses valores.
A importância da cultura visual e audiovisual na educação se dá devido ao contexto
que vem se desenhando desde o século XX, mas mais acentuadamente no panorama do
século XXI que está sendo preparado desde o final da década de 1980. Nesse cenário não é
possível manter o modelo tradicional da escola centrada na escrita (AMORIM, 2003, p. 56),
embora tais códigos sejam também imprescindíveis. A resistência dos alunos quanto à
linguagem escrita aparece em seus constantes erros de ortografia e concordância.15 Através
da linguagem audiovisual, é possível estimular o interesse pela leitura e escrita, pois as
diversas linguagens não se anulam, muitas vezes se complementam. Criação de roteiros,
adaptação de obras literárias e análise de filmes são exemplos de atividades de integração
entre a linguagem escrita e a audiovisual.
AMORIM (2003, p. 58) comenta também sobre a questão da identidade e da auto-
estima do aluno, quando lida com sua própria imagem na tela de televisão, ou com
imagens de sua comunidade. Essa estratégia passa pelo viés vigotskiano do papel da
afetividade na construção do conhecimento e também pelo espelho que a linguagem visual
se torna, um espelho que reflete imagens e também valores, através do processo seletivo e
do discurso aí elaborado. Este ponto já foi abordado também com relação à inserção dos 14 O termo “escola” aqui abrange instituições de ensino de um modo geral. As Unidades de Extensão, como os Núcleos de Arte, nada mais são, como o próprio nome diz, que uma extensão da escola. 15 Além disso, hoje já despontam novos códigos de linguagem escrita, como uma série de abreviações para correspondência via internet.
alunos em “Do Rio Papa-couves ao toque do pandeiro”, entremeando toda a narrativa com
seu desfile de samba, e cuja imagem é sobreposta aos seus próprios desenhos, ao fundo.
Pela sua experiência, Hélcio Amorim (2003, p. 77) destaca o interesse dos alunos
pela linguagem do vídeo, também devido à rapidez no processo de produção, já que se
pode assistir simultaneamente ao fazer. No caso da animação com processos artesanais, a
fase preparatória é um pouco mais trabalhosa (mas não menos lúdica), porém a montagem
da movimentação pode ser vista logo a seguir da montagem seqüencial da mesma. Os
meios eletrônicos e digitais permitem uma aceleração do processo, já que não requerem
revelação de filmes ou outras mediações técnicas indiretas. Com a câmera de vídeo
conectada ao aparelho de TV, é possível ver o produto (e ter controle sobre ele)
simultaneamente.
Hélcio Amorim também tece considerações acerca das alterações nas relações de
espaço e tempo, na linguagem audiovisual. O(s) autor(es) pode(m) alterar proporções,
distâncias, velocidades, introduzir cortes e optar por seqüência cronológica ou não da
narrativa. Este aspecto foi ponto de análise a respeito do próprio trabalho pelos alunos de
Maria Eloá, principalmente no que se refere ao problema das escalas.
De posse da compreensão desses mecanismos, que só pode ter efeito a partir de
uma experimentação prática pelo aluno, é possível desenvolver uma leitura crítica dos
produtos audiovisuais em circulação na sociedade. Isso é precisamente a proposta
metodológica triangular de Ana Mae Barbosa, e para que ela seja levada a cabo não basta
apenas introduzir as tecnologias, é preciso fazer as mediações. No caso da escola, o
mediador é por excelência o professor.
Mas o educador deve estar consciente de que não é o único mediador na cultura
audiovisual do aluno, para que possa interagir com as outras mediações atuantes. Em um
livro com o sugestivo título “Dos meios às mediações” (2003), Jesús Martín-Barbero
analisa as mediações articuladas pela relação entre comunicação, cultura e política. Essas
mediações, em resumo, de tecnicidade, institucionalidade, socialidade e ritualidade
(MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 11-21), são mapeadas pelo autor em um complexo
esquema que não cabe reproduzir aqui, mas apenas pinçar algumas considerações que
possam elucidar questões levantadas neste trabalho.
Martín-Barbero faz a crítica do mercado e da lógica neoliberal como mediadores
entre tecnologia e sociedade. Analisa como as mudanças tecnológicas são assimiladas
rapidamente na América Latina, mas as mudanças de valores, normas éticas e virtudes
cívicas são lentas e dolorosas. Em contraponto, a educação escolar deveria ser mediadora
no uso das tecnologias para a formação de valores morais. Mas convém reconhecer que sua
ação carece do poder de sedução das mídias mercadológicas, devido também às ações
coercitivas que a instituição escolar exerce, das quais iniciativas como os Núcleos de Arte
são modestas alternativas. As instituições escolares públicas latino-americanas sofrem
justamente do paradoxo desse contexto social: se, por um lado, carecem de recursos
tecnológicos, que são os meios de rápida aceitação de inovação na sociedade, por outro
lado, procuram consolidar valores morais e virtudes cívicas que não se refletem nas
práticas sociais correntes. O que acaba por gerar um desencaixe entre escola e sociedade, a
partir do que seria desejável na escola e não se concretiza, e o que seria desejável na
sociedade e não se efetua, com reflexos danosos para ambas esferas.
Dentro dessa rede complexa de relações, é possível perceber a evolução tecnológica
a partir de motivações não tão nobres, como os fins militares (citando como exemplo a
própria origem da internet) e as demandas de mercado. A história das técnicas contém
inúmeros exemplos de uma adaptação aos fins mercadológicos, como o caso da litografia
que deu origem à impressão por off-set, ou seja, industrializou-se, visando lucro capitalista.
Nesse sentido, a arte é um grande repositório de tecnologias que se tornam obsoletas para o
fim de sua origem. A pintura, por exemplo, não deixou de existir a partir do surgimento da
fotografia, mas sofreu uma revolução estética. E a própria fotografia tornou-se,
crescentemente, meio de produção artística. Na arte, a inovação estética é preponderante
em relação à inovação técnica, e tecnologias novas aí convivem com técnicas milenares,
podendo inclusive gerar híbridos entre elas (como é o caso do próprio filme “Do Rio Papa-
couves ao toque do pandeiro”, que mescla edição por computador e fotografia com
desenho, pintura, recorte e colagem).
Quanto aos meios tecnológicos de comunicação, também atendem prioritariamente
a uma função mercadológica, além da manipulação política através da veiculação de
informação. No caso da educação, a mediação desses meios é de outra natureza: além do
material informativo de caráter didático que propiciam, possibilitam o exercício da
discussão reflexiva. O que nos leva ao ponto de Martín-Barbero, da preponderância das
mediações em relação aos meios: as tecnologias, em si, não são dotadas de valor moral,
mas as funções para as quais são destinadas, sim.
Para Martín-Barbero, o meio de comunicação não reproduz, mas constitui a cena da
vida pública. O que leva a uma atenção especial à sua dimensão política, que deve estar
presente nos horizontes do educador. Comparando a mediação do mercado com a da
política:
O mercado não pode criar vínculos societários, isto é, entre sujeitos, pois estes se constituem nos processos de comunicação de sentido, e o mercado opera anonimamente mediante lógicas de valor que implicam trocas puramente formais, associações e promessas evanescentes que somente engendram satisfações ou frustrações, nunca, porém, sentido. (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 15)
Lidar com esses paradigmas das mediações dos meios tecnológicos de
comunicação é lidar com a cultura de massas. É através dessa categoria, também, que
podemos analisar a linguagem em questão, da animação. Martín-Barbero traça um
histórico que traz em seu bojo os conceitos de povo e classe, desde o século XVIII, até a
eclosão da sociedade de massa, no século XX, mas que se origina no século XIX.
Não convém aqui expor todo esse longo percurso histórico. O autor chega ao debate
de Frankfurt como ponto crucial da teoria, onde por um lado há o discurso de Adorno e
Horkheimer, e por outro, a posição então marginalizada de Walter Benjamin. MARTÍN-
BARBERO (2003, p. 78) critica Adorno e Horkheimer por sua visão elitista da arte e da
cultura. Tais autores vêem na indústria cultural a degradação da cultura em indústria de
diversão, que esvazia a visão crítica do espectador e tende a conformá-lo na
desmobilização. Para Adorno e Horkheimer, o prazeroso e o lúdico são um extravio, uma
fonte de confusão. Assim Adorno desqualifica, por exemplo, o jazz, o cinema e o humor.
MARTÍN-BARBERO (2003, p. 82) escreve que a crítica adorniana “cheira demais a um
aristocratismo cultural que se nega a aceitar a existência de uma pluralidade de
experiências estéticas, uma pluralidade dos modos de fazer e usar a arte”. Adorno faz a
distinção entre arte, que tem o estranhamento como condição, e pastiche, arte inferior que
explora a emoção, o riso. Uma visão datada do alto modernismo, a qual não se sustentaria
no pós-modernismo. A essa posição MARTÍN-BARBERO (2003, p. 88) vai contrapor
Walter Benjamin, que tinha uma visão menos preconceituosa, “uma sensibilidade
desprendida do etnocentrismo de classe”, e lidou com o lúdico com outra qualificação16.
Benjamin vai se debruçar justamente sobre as margens da cultura e as chamadas
“artes menores”. MARTÍN-BARBERO (2003, p. 84) assinala que para os racionalistas de
Frankfurt, Adorno e Horkheimer, a experiência é o obscuro, o opaco, o impensável. Já para
Benjamin é na experiência que se tece a história. Podemos considerar a abordagem de
Benjamin mais fenomenológica, pois ele estava preocupado com a percepção sensível das
coletividades e sua mudança, com o tempo. Nessa mudança de sensibilidade, a própria
sociedade se transforma. De acordo com MARTÍN-BARBERO (2003, p. 86), para 16 Walter Benjamin escreveu até sobre a criança e sobre o brincar: Reflexão sobre a Criança, o Brinquedo e a Educação.
Benjamin, “a nova sensibilidade das massas é a da aproximação”. As tecnologias mediam
essa aproximação.
Muitas idéias de Benjamin encontram ainda ressonância neste despontar do século
XXI. Aceitando os novos meios como arte, Benjamin define a nova forma de recepção (da
obra) como coletiva, cujos dispositivos estão na dispersão, na imagem múltipla e na
montagem (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 88).
Outro aspecto abordado por Benjamin é o da relação da cultura de massa com a
vida urbana, ao qual ele chega através da poesia de Baudelaire. Nela encontra uma nova
subjetividade dos habitantes através do ambiente da taverna, como “conspiradores” contra
a ordem social dominante (voltando ao tema da marginalidade, que observamos nas
considerações de Ianni), e também o caráter coletivo do anonimato e da multidão, que para
Baudelaire era uma experiência prazerosa.
Para não perdermos de vista o trabalho realizado por Maria Eloá no N.A. Avenida
dos Desfiles em 2003, devemos levar em conta essa inserção teórica da relação apontada
por Benjamin, entre a vida urbana e a cultura de massa. Daí o sentido que liga o tema (vida
da cidade) à técnica (filme de animação), pois une dois aspectos de uma mesma
sensibilidade, da qual participam os alunos, no seu cotidiano.
Prosseguindo com a teoria, Martín-Barbero encontra uma conexão entre o
pensamento radical de Benjamin e o de autores a partir da década de sessenta, como Edgar
Morin, os situacionistas, Baudrillard, Foucault e Habermas.
Em Morin, “’indústria cultural’ passava a significar o conjunto de mecanismos e
operações através dos quais a criação cultural se transforma em produção” (MARTÍN-
BARBERO, 2003, p. 93). Segundo Martin-Barbero, Morin desmonta o mal-entendido de
Adorno e Horkheimer: “o de que algo não poderia ser arte se era indústria”. Morin
demonstra como a divisão do trabalho e a mediação tecnológica, e até mesmo certa
estandardização, não são incompatíveis com a criação artística, por exemplo, no cinema
(MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 93).
Em O Espírito do tempo II, Morin opõe acontecimento a código e estrutura. O
acontecimento é definido como a “irrupção do singular concreto no tecido da vida social”
e a crise é o “momento em que emerge o sentido dos conflitos latentes que fazem e desfazem
permanentemente o social” (MORIN citado por MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 95). Deve-
se levar em conta o contexto da produção da teoria, na década de sessenta, quando
eclodiram movimentos reivindicatórios feministas, homossexuais, negros, etc. Essa crise
tornava “caduca uma arte separada da vida ou uma cultura separada da cotidianidade que
vinha ‘conferir e recobrir de espiritualidade o materialismo burguês’ .” (MARTÍN-
BARBERO, 2003, p. 95-96). O que, em outras palavras, implodia a visão adorniana de arte
e cultura.
De acordo com MARTÍN-BARBERO (2003, p. 94), Morin desenvolve a análise da
cultura de massa em duas direções: a estrutura semântica e os modos de inscrição no
cotidiano. Quanto à estrutura semântica, Morin detecta uma fusão dos espaços da
informação e do imaginário ficcional. Executa então um rastreamento histórico dessa fusão,
chegando ao folhetim como primeiro meio de osmose entre realismo burguês e literatura
popular fantástica, além de ter como veículo o jornal. O que traz à tona um caráter da
cultura de massa que no Brasil é sintomático: a realidade ficcional (noticiário, por exemplo)
e o realismo da ficção (folhetim, telenovela).
No caso do meio da animação, o aspecto irreal de sua forma pode ser usado de
modo puramente ficcional ou colocar doses de humor ou efeitos especiais em uma temática
real, como é o caso de “Do Rio Papa-couves ao toque do pandeiro”, que trata de aspectos
da realidade urbana, como sua memória histórica e os usos do espaço coletivo projetado por
Niemeyer. Nas produções profissionais isso ocorre com freqüência nas séries
contemporâneas, como “Os Simpsons”, que têm como característica a caricatura dos
hábitos, modos de vida e valores morais da realidade social.
Antônio Moreno faz essa distinção no próprio processo de elaboração técnica, entre
o cinema de animação, quadro a quadro, e o cinema ao vivo, com a câmera girando
ininterruptamente, captando as imagens em movimento em tempo real. No processo da
animação, a seqüência de imagens é arbitrariamente construída:
O cinema de animação prima por trabalhar com a irrealidade. Ele reproduz, cria movimentos que na verdade não existem. Está sempre no mundo do absolutamente virtual. Esse movimento que ele cria só existe no momento da projeção.17
Fato que amplia a possibilidade de se criar um universo novo, já inerente ao próprio
desenho, mesmo sem movimento. Isto, claro, do ponto de vista formal. Não existe temática
inocente, ou abstrata o suficiente, que não tenha algum conteúdo que revele um
posicionamento político, ideológico ou sociológico por trás, consciente (metafórico) ou
inconsciente.
Quanto aos modos de inscrição no cotidiano, MORIN (citado por MARTÍN-
BARBERO, 2003, p. 94) associa o conjunto dos “dispositivos de intercâmbio cotidiano 17 Entrevista do Professor Antonio Moreno, da UFF, na matéria “Mundo mágico da irrealidade e da técnica”. In: Revista Nós da Escola, nº 28, Rio de Janeiro : Multirio, 2005, p. 7.
entre o real e o imaginário” – crítica do conceito de alienação relacionado à passagem para
o imaginário, presente em Adorno e Horkheimer. Morin realiza uma análise, através de
uma perspectiva freudiana, de como os mecanismos de identificação e projeção, como
necessidade social, geram uma demanda de mitos e heróis na era da racionalidade
instrumental (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 95). Aí encontramos o universo dos
quadrinhos e, na sua linha técnica de desenvolvimento, do cinema de animação, onde
muitos personagens atendem a essa demanda. Portanto, mesmo que o produto seja
puramente ficcional, ele atende a necessidades reais. A carga de violência de certas séries
de animações, não só de heróis mas também de personagens cômicos, como Tom e Jerry,
apelam a um mecanismo de identificação na energia agressiva infantil natural. Esta
“agressividade” na realidade é um processo de autoconhecimento e teste de limites, um
jogo de relações e domínio do ambiente e do convívio com outras crianças. Nos desenhos
animados elas aparecem como “linguagem lúdica tão explorada nos rituais de perseguição
contra os adversários e nos escapes de ameaças”.18 Os mecanismos de identificação e
projeção são particularmente fortes entre a criança e o desenho animado, principalmente no
caso de animais com características humanas, que remetem ao repertório infantil das
tradicionais fábulas.
O jogo dialético entre o real e o imaginário fecha o círculo de idéias deste trabalho,
pois está tanto presente na cultura de massa quanto na vida urbana, a ela associada em sua
base, como demonstra Benjamin. E ao perfazer essa volta, chegamos novamente à análise
da cidade no panorama da pós-modernidade e da globalização, de Octavio Ianni. A título de
reforço, repito aqui a citação deste autor anteriormente inserida nesta monografia,
afirmando que “a cidade é simultaneamente real e imaginária” (IANNI, 1996, p. 85). Essa
percepção vem ao encontro da teoria de Morin, quanto ao jogo entre real e imaginário, e de
Benjamin, quanto ao jogo entre ambos (sensibilidade da massa) e a cidade.
No caso do desenho animado, enquanto produto da indústria cultural, está presente
no cotidiano das crianças brasileiras, que assistem a cerca de seis horas diárias de televisão
(PILLAR, 2004, p. 55). O projeto Anima Escola vem justamente complementar essa
informação já presente no cotidiano da criança e do adolescente, transformando sua
condição de consumidor passivo para a de leitor crítico e produtor da linguagem. Este é o
papel transformador da educação frente à cultura de massa: ao invés de negá-la, como se
faria numa perspectiva adorniana, ela é acolhida enquanto sensibilidade estética do tempo
18 Depoimento de Raquel Salgado, doutora em Psicologia pela PUC-Rio na reportagem “Sonhos em movimento”. In: Revista Nós da Escola, nº 28, Rio de Janeiro : Multirio, 2005, p. 21.
presente, mas acrescida de sentidos diferenciados dos veiculados nos meios de
comunicação de massa. A escola é capaz de oferecer o que a televisão não consegue: a
inserção ativa do aluno na linguagem, através de variadas formas de expressão, e de abrir a
caixa de truques, revelando a técnica por trás da magia. Na escola também pode se construir
a leitura crítica, através da possibilidade de se oferecer uma seleção de produções que não
são veiculadas na mídia, e de se discutir e analisar o que é cotidianamente consumido.
Muitas crianças reproduzem graficamente personagens de séries televisivas. Ao
introduzir a possibilidade de criar, a criança terá que gerar seus próprios personagens e
roteiros, e passará de uma condição passiva para uma ativa, requisito básico de formação de
cidadania. Esse é o caráter político da introdução da linguagem da animação na escola.
Com relação à criança, esse papel político só poderia caber à escola, ou aos
programas educativos. Os desenhos animados veiculados nas séries televisivas apelam, em
seu mundo fantasioso, ao consumo generalizado, atendendo aos objetivos do mercado. A
criança torna-se então um consumidor em potencial, através dos desenhos animados, que
geram brinquedos, capas de cadernos e materiais escolares, estampas de roupas, álbuns de
coleção de figurinhas, enfeites para festas infantis e a mais variada gama de artefatos
comerciais. Quanto a esse aspecto, Raquel Salgado diz:
Como contrapartida ao consumo como critério definidor da técnica e do enredo de muitos desenhos animados contemporâneos, entendo que essas narrativas, por serem tão íntimas do universo infantil, devam estar mais abertas à criação de outras histórias por parte das crianças e ter como característica a diversidade estética, explorando o uso de múltiplas linguagens e técnicas, ao invés de estarem tão atreladas aos apelos e às regras ditadas pelo mercado globalizado.19
Além disso, os mais aparentemente inocentes desenhos animados (como os dos
estúdios Disney) são muitas vezes portadores de ideologias de dominação, sejam de
hegemonia de uma determinada cultura sobre as outras, ou de preconceitos de gênero,
classe e etnia.20 Essa característica reforça a necessidade de uma pedagogia audiovisual
crítica.
Uma pedagogia crítica da mídia, possibilitando que indivíduos entendam a cultura e a sociedade em que vivem a partir de um instrumental crítico que os
19 Depoimento de Raquel Salgado, doutora em Psicologia pela PUC-Rio na reportagem “Sonhos em movimento”. In: Revista Nós da Escola, nº 28, Rio de Janeiro : Multirio, 2005, p. 23. 20 A respeito desse aspecto, ver como exemplo de preconceito de gênero a análise do filme “A pequena sereia” em BRAGA, Mônica Mitchell de Morais. Saga da Pequena Sereia: os estudos culturais “no maravilhoso mundo da Disney”. In: Arte em pesquisa: especificidades. Ensino e Aprendizagem da Arte; Linguagens Visuais / Maria Beatriz de Medeiros (org.) – Brasília, D.F. : Editora da Pós-graduação em Arte da UnB, 2004, v. 2., p. 155 – 159.
ajude a evitar a manipulação da mídia, permitindo que outras formas de transformação cultural e social sejam produzidas. (BRAGA, 2004, p. 156)
Com relação a outros meios de comunicação, como a internet, também devem se
tornar objeto de reflexão e ação pedagógica. Mas, no que concerne à realidade da escola
pública brasileira, a mídia televisiva ainda está muito mais presente no cotidiano dos alunos
que a internet, tornando prioritário o trabalho pedagógico acerca da linguagem audiovisual.
CONCLUSÃO
O filme “Do Rio Papa-couves ao toque do pandeiro” representa uma experiência
de ampla significância no contexto da arte-educação do Brasil. Primeiramente, ele aponta
para um exercício de construção de identidade, por parte de uma comunidade local. Nessa
construção de identidade é que se insere a apreensão de técnicas e de conteúdos de arte,
como a estética modernista de Niemeyer, por exemplo. O conteúdo não foi simplesmente
imposto para os alunos. Foi parte intrínseca de um conjunto proposto pela professora Maria
Eloá Moreira, sim, mas também concatenado aos interesses dos alunos.
Com relação à metodologia, Alice Fátima Martins (2004, p. 23-31) detecta que, de
um modo geral, o ensino de arte no Brasil sempre se coloca um passo atrás do contexto da
produção artística. Quando houve a introdução da estética modernista, que tem como um
dos marcos a data de 1922, a pedagogia artística ainda era pautada na cópia e nas técnicas
acadêmicas do século XIX. E no momento atual, a Proposta Triangular de Ana Mae
Barbosa tem sido distorcida ou parcialmente aplicada, já que a maioria dos professores de
arte utiliza como referência os cânones da arte moderna, à revelia da produção e
questionamentos da pós-modernidade.
O que a Proposta Triangular de Ana Mae Barbosa conseguiu com sucesso foi trazer
um equilíbrio entre a falta de liberdade de expressão, dos métodos acadêmicos tradicionais
(ou das cópias mimeografadas de imagens não artísticas pelas antigas professoras
primárias – atual primeiro segmento do Ensino Fundamental) e a total liberdade de
expressão, concebida pelas Escolinhas de Arte, na qual o adulto não deveria interferir. Na
Proposta Triangular, existem as mediações da informação trazida pelo professor, da obra
de arte e produção imagética em circulação, e do contexto sócio-cultural dessa produção.
São mediações que possibilitam ao aluno um conhecimento que visa nutrir, e não sufocar,
sua auto-expressão. Portanto, o uso da Proposta Triangular só pode ser bem sucedido se o
profissional estiver adequadamente preparado para utilizá-lo.
A maneira como a professora Maria Eloá enfrenta os novos desafios da arte-
educação revela essa possibilidade, pós-moderna, do convívio entre o novo e o antigo, da
conciliação entre o artesanal e o tecnológico. Na pós-modernidade, não existe a
“revolução”, termo obsoleto de ideologias utópicas que embasou o vanguardismo
modernista. Em seu lugar, uma trama complexa: a hibridização das linguagens, o ecletismo
e a citação. O modelo de racionalidade científica que embasava o modernismo não se
sustenta mais, depois da Segunda Guerra Mundial, com os campos de concentração e a
bomba atômica, e com os meios de comunicação a serviço do poder totalitário. Se, por um
lado foram as tecnologias que permitiram a formação do atual panorama sócio-cultural
(“multifacetado, essencialmente heterogêneo, desdobrado em possibilidades...” -
MARTINS, 2004, p. 24), por outro, as conseqüências humanas devem sempre ser
ponderadas, limitando a ação dessas tecnologias, ou ao menos a colocando sob constante
análise crítica.
Na produção de “Do Rio Papa-couves ao toque do pandeiro”, as técnicas pré-
modernas, como a pintura, convivem em perfeita sintonia com os equipamentos
tecnológicos, como câmeras, monitores, computadores. Efetuando inclusive uma simbiose
entre o artesanal e o tecnológico. Processo que não é mais corrente em meios profissionais,
embora a maioria dos desenhos animados ainda nasça do traço de seus autores, para depois
serem digitalizados. Mas o trabalho de Maria Eloá com seus alunos (assim como outros, de
caráter profissional, inclusive) mostra que uma técnica não exclui outras. A despeito de sua
origem histórica, elas constituem múltiplas ferramentas que podem ser usadas para
encadear um processo produtivo intrincado.
O trabalho desenvolvido no Núcleo de Arte Avenida dos Desfiles em 2003 permite
ao aluno uma prospecção de seu próprio cotidiano através de uma dupla inserção: 1) a
leitura do espaço desse cotidiano (o bairro, o Sambódromo), incluindo a dimensão
temporal/ histórica, e 2) o domínio dos meios de circulação de imagens desse cotidiano,
como o dos desenhos animados que são apresentados diariamente na televisão. Ao atingir
esse duplo objetivo, há uma superação da dicotomia forma e conteúdo, pela natureza do
processo de significação que se constrói. No percorrer desse processo, o aluno não apenas
aprofunda o conhecimento de seu meio, como o interpreta e expressa essa interpretação
(representa), neste caso de forma coletiva, estimulando o diálogo.
O trabalho da turma de Maria Eloá mostra como as mesmas tecnologias - que são
apontadas por teóricos como promotoras de uma crise de identidade, dissolução das
fronteiras pelos mecanismos de globalização, fragmentação do sujeito e das comunidades -
através da mediação da educação, podem justamente proporcionar o oposto: o reforço da
identidade, do senso de pertencimento ao lugar, das narrativas comunitárias, da memória
coletiva e a integração do indivíduo ao grupo. Ao invés de distanciar ou atomizar o sujeito,
o uso das tecnologias através da arte-educação aproxima, traduzindo uma sensibilidade que
Walter Benjamin já havia anunciado.
Por outro lado, o tema aprofundado no projeto pedagógico que culminou no filme
abordou diversas questões, configurando uma pesquisa sobre os processos históricos onde
as transformações do meio ambiente e a ocupação humana são os pontos de destaque. O
problema da diversidade aparece tanto no tempo como no espaço: diversidade estética,
cultural, traduzida nas várias formas arquitetônicas, nos imigrantes e migrantes que
construíram a história da Praça Onze, nas múltiplas realidades vivenciadas pelos próprios
alunos em seu bairro. Compreender a cidade, e trazê-la para a sala de aula, implica em
trabalhar com conceito de diversidade, em defrontar-se com a multiplicidade de sentidos e
de experiências que a cidade suscita. A história em si aponta para uma relação de
alteridade, esse “outro” no tempo, diferentes configurações e relações sociais. No entanto,
para conhecer o “eu”, construir sua própria identidade, é preciso resgatar esse processo
histórico que gerou o bairro, sua ocupação cultural, através dos espaços construídos nas
formas arquitetônicas e dos grupos humanos que aí viveram e vivem, suas festas, seus
modos de viver.
Falta ao povo brasileiro uma consciência maior de sua riqueza, que consiste
justamente na diversidade natural e cultural do país. O projeto “Do Rio Papa-couves ao
toque do pandeiro” relacionou ambos aspectos, natural e cultural do meio ambiente, e
mostrou que a diversidade pode estar presente em único bairro. Conhecer o próprio bairro
não é construir uma visão monolítica, e sim contemplar sua multiplicidade étnica, social,
estética e ambiental. Combinando tal perspectiva de abordagem com o uso da linguagem
da animação, presente no cotidiano de crianças e adolescentes dos grandes centros urbanos,
há um encaixe de propósitos, intuitivamente e de forma feliz, mobilizados na prática
pedagógica da Professora Maria Eloá Nery Moreira, que procuramos aprofundar através
das considerações teóricas efetuadas ao longo deste trabalho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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A democratização da imagem contemporânea. In: PRÊMIO ANÍSIO TEIXEIRA –
Coletânea de monografias / 2003. Rio de Janeiro : SME - Centro de Referência da
Educação Pública da Cidade do Rio de Janeiro, 2003.
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maravilhoso mundo da Disney”. In: Arte em pesquisa: especificidades. Ensino e
Aprendizagem da Arte; Linguagens Visuais / Maria Beatriz de Medeiros (org.) – Brasília,
D.F. : Editora da Pós-graduação em Arte da UnB, 2004, v. 2.
IANNI, Octavio. A era do globalismo. Rio de janeiro : Civilização Brasileira, 1996.
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SONHOS EM MOVIMENTO. In: Revista Nós da Escola, nº 28, Rio de Janeiro : Multirio,
2005, p. 7.
FONTES DA INTERNET
www. animaescola.com.br
www. animamundi.com.br
www. rio.rj.gov.br/sme
FONTES AUDIOVISUAIS
Do Rio Papa-couves ao toque do pandeiro. In: Anima Escola 2003. Edição em vídeo VHS,
4 min. 29 seg. Rio de Janeiro : Anima Mundi, 2003.
Making of de todo o projeto. In: Anima Escola 2003. Edição em vídeo VHS, 7 min. 16 seg.
Rio de Janeiro : Anima Mundi, 2003.
ILUSTRAÇÕES
1- Pintura imaginária representando o Rio Papa-couves.
2- Fachada do casario nas proximidades do Sambódromo.
6 e 7 – “Cartões postais” do Sambódromo
8 e 9 – Um cenário e peças da animação. Movimentação através de recortes.
10- Parte das peças recortadas para gerar os movimentos na animação
11- Boca que acompanha a flexão de “oba!” na música, através da seqüência de três quadros. Trabalho coletivo de colagem e pintura.
15 e 16 – Imagens do filme: urbanização do bairro.
17- Imagem do filme: cidade moderna sendo construída.
18- Animação através de pintura sobre vidro: construção do Sambódromo.
19 – Imagem do filme: o desfile diário dos alunos.