PROCESSO CIVIL ESTRUTURAL

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2022 3ª edição revista e atualizada TEORIA E PRÁTICA PROCESSO CIVIL ESTRUTURAL Edilson Vitorelli

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2022

3ª ediçãorevista e atualizada

TEORIA E PRÁTICA

PROCESSO CIVIL ESTRUTURAL

Edilson Vitorelli

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Capítulo 1

ESCLARECIMENTOS CONCEITUAIS: O QUE É UM PROCESSO ESTRUTURAL?

1. INTRODUÇÃO1

Nos últimos tempos, diversos processualistas vêm direcionando seus esforços para o estudo e a elaboração de propostas para regular o chamado processo coletivo estrutural, ou, de modo sintético, processo estrutural.2 O resultado mais palpável desse interesse talvez seja a apresentação do Projeto

1. A conceituação básica, constante deste capítulo, foi desenvolvida originalmente em: VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo: dos direitos aos litígios coletivos. 2. ed. São Paulo: RT, 2019. Essa obra foi agraciada com o Prêmio Mauro Cappelletti, atribuído pela International Association of Procedural Law, quadrienalmente, ao melhor livro de processo do mundo. Trata-se da única obra brasileira que recebeu esse prêmio até a presente data.

2. Os trabalhos pioneiros sobre o assunto, no Brasil, são: BAUERMANN, Desirê. Cumprimento das obrigações de fazer ou não fazer: estudo comparado Brasil e Estados Unidos. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 2012; JOBIM, Marco Félix. Medidas estruturantes: da Suprema Corte Estadunidense ao Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. Em período mais recente, diversos outros trabalhos vêm abordando o assunto. Ver, por exemplo, GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; COSTA, Suzana Henriques. O processo para solução de conflitos de interesse pú-blico. Salvador: Juspodivm, 2017; ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marco Félix. Processos Estruturais. Salvador: Juspodivm, 2017; ARENHART, Sérgio Cruz. Processos estruturais no direito brasileiro: reflexões a partir do caso da ACP do carvão. Revista de Processo Comparado, v. 2, 2015; ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no direito processual civil brasileiro. Revista de Processo, v. 225, 2013; VIOLIN, Jordão. Protagonismo judiciário e processo coletivo estrutural. Salvador: Juspodivm, 2013; DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes; OLIVEIRA, Raphael Alexandria. Notas sobre as decisões estruturais. Civil Procedure Review, v. 8, n. 1, p. 46-64, 2017. Nos Estados Unidos, além dos trabalhos mencionados ao longo do texto, ver: FISS, Owen. The Supreme Court. 1978 Term. Foreword: Forms of Justice. Harvard Law Review, v. 93, p. 1-58, 1979; CUMMINGS, Scott L.; EAGLY, Ingrid V. A Critical Reflection on Law and Organizing. UCLA Law Review, v. 48, p. 443-517, 2001; RUSHIN, Stephen. Competing Case Studies of Structural Reform Litigation in American Police Departments. Ohio State Law Journal of Criminal Law, v. 14, p. 113-141, 2016; BERTELLI, Anthony M.; FELDMAN, Sven E. Structural reform litigation: remedial bargaining and bureaucratic draft. Journal of Theoretical Politics, v. 18, n. 2, p. 159-183, 2006; GOLDSTEIN, Brandt. Storming the court: how a band of Yale law students sued the president – and won. Nova York: Scribner, 2005; RATNER, Michael. How We Closed the Guantanamo HIV Camp: The Intersection of Politics and Litigation. Harvard Human Rights Journal, v. 11, p. 187-220, 1998.

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de Lei 8.058/2014,3 em tramitação na Câmara dos Deputados, o qual se destina a regular “o controle e intervenção em políticas públicas pelo Poder Judiciário” e dispõe, já em seu art. 2º, parágrafo único, que o processo, nesse caso, terá carac-terísticas “estruturais, a fim de facilitar o diálogo institucional entre os Poderes”.

Todavia, o que significa dizer que um processo é estrutural? Todo processo que pretende interferir em políticas públicas é um processo estrutural? E todo processo estrutural é um processo coletivo? Trata-se de conceitos superpostos? Por outro lado, alguns autores se referem a “processos de interesse público”. Essa expressão também seria equivalente às anteriores? Como esses conceitos se relacionam com os conceitos de litígios coletivos e de processos coletivos, tradicionalmente apresentados pela doutrina brasileira? E o que seriam “proces-sos estratégicos”? O objetivo do presente capítulo é propor um marco teórico conceitual para solucionar essas dúvidas.

2. CONCEITO DE LITÍGIO COLETIVO

O primeiro conceito que demanda esclarecimento é o de litígio coletivo. Litígios são conflitos relativos a interesses juridicamente relevantes. Em inglês, são referidos como disputes. De acordo com Humberto Theodoro Júnior, “lide e litígio são vocábulos sinônimos e correspondem a um evento anterior ao processo”.4 Litígio coletivo é o conflito de interesses que se instala envol-vendo um grupo de pessoas, mais ou menos amplo, sendo que essas pessoas são tratadas pela parte contrária como um conjunto, sem que haja relevância significativa em qualquer de suas características estritamente pessoais. É isso que distingue o litígio coletivo dos litígios individuais. Dessa forma, o litígio coletivo ocorre quando um grupo de pessoas é lesado enquanto sociedade, sem que haja, por parte do adversário, atuação direcionada contra alguma dessas pessoas em particular, mas contra o todo.

Nesses termos, quando um alfaiate lesa dez de seus clientes, o que existe é uma dezena de litígios individuais, decorrentes de relações que se estabele-cem e se desenvolvem isoladamente, com cada um deles. Mesmo que a lesão

3. Esse projeto de lei, como iniciativa concreta de modificação da realidade processual brasileira, será sucessivamente mencionado ao longo do texto. Ele foi elaborado pela escola de processo civil da Universidade de São Paulo (USP), sob a liderança da professora Ada Pellegrini Grinover e do professor Kazuo Watanabe, com a colaboração do professor Paulo Lucon. Em 2014, o projeto foi apresentado ao Legislativo pelo Deputado Paulo Teixeira. Desde então, até 2020, ele não teve nenhuma movimentação e não chegou a ser apreciado por nenhuma comissão, nem a receber parecer. Assim, não há perspectiva de curto prazo de que venha a ser aprovado. As ideias contidas no seu texto, todavia, são de importante valor doutrinário e merecem consideração.

4. THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2016. §8º.

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ocorrida nos dez eventos seja idêntica, não se tratará de um litígio coletivo, já que, como as relações se desenvolvem intuitu personae, essa identidade decorrerá de cadeias causais distintas, não de uma decisão geral, que incide sobre todos os contratos. Por outro lado, quando uma empresa produtora de alimentos em larga escala reduz o seu controle de contaminação e permite que insetos sejam misturados aos seus produtos,5 atingindo os respectivos compradores, o litígio é coletivo, uma vez que a cadeia de eventos do qual ele decorre não se relaciona com qualquer daqueles consumidores que adquiriam os produtos, mas com a coletividade de clientes da empresa. Essas pessoas se envolvem no litígio enquanto grupo, enquanto sociedade.6

2.1 O conceito de sociedade

Em obra anterior,7 demonstrou-se que o conceito de sociedade admite, para os estudiosos da Sociologia, múltiplas acepções. Na expressão de Bauman,8 ele é performativo, pois cria a entidade que nomeia. Cada sociólogo, ao longo dos mais de duzentos anos com os quais conta a disciplina, criou sua própria sociedade. Definir sociedade, portanto, não é uma tarefa fácil, nem para o sociólogo. Trata-se de uma “categoria zumbi”, na expressão de Ulrich Beck.9 Naquela ocasião, optou-se, entre as várias classificações possíveis, pela que foi realizada por Anthony Elliott e Bryan Turner: a possibilidade de se visualizar a sociedade como estrutura, como solidariedade e como criação.10

A sociedade como estrutura é o conjunto de concepções que veem a socie-dade como um discurso de ordem social, normas e estrutura, com prioridade para o conjunto em detrimento do indivíduo. É uma linha que surge ainda

5. O Superior Tribunal de Justiça já lidou com casos desse tipo, em mais de uma ocasião. Ver, por exemplo, REsp 747.396-DF, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 09/03/2010; REsp 1.239.060-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 10/05/2011; REsp 1.424.304-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 11/03/2014.

6. É claro que essa diferenciação poderá, em alguns casos, ser tênue. Afinal de contas, os indivíduos só existem em sociedade e a sociedade só existe em indivíduos. Pretender fazer uma diferenciação estática e incontornável entre questões individuais e questões coletivas é um exercício artificial, cujo valor se limita aos propósitos que estão abordados no texto.

7. VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo: dos direitos aos litígios coletivos. 2. ed. São Paulo: RT, 2019. Capítulo 2.

8. BAUMAN, Zygmunt. Between us, the generations. In: LAROSSA, Jorge (Org.). On generations: on the coexistence between generations. Barcelona: Fundació Viure i Conviure, 2007. p. 365-376.

9. “Zombie categories are ‘living dead’ categories which govern our thinking but are not really able to capture the contemporary milieu.” SLATER, Don; RITZER, George. Interview with Ulrich Beck. Journal of Consumer Culture, n. 1, p. 261, 2001.

10. ELLIOTT, Anthony; TURNER, Bryan S. On Society. Cambridge: Polity Press, 2012.

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com a Sociologia clássica de Durkheim11 e Marx. A sociedade como estrutura tem uma forte interseção com a teoria do Estado, que é a sua manifestação mais evidente. A sociedade, para Durkheim, é um todo orgânico, e não uma agregação de indivíduos, o que o identifica como fundador do funcionalismo estrutural. O Estado provê a orientação geral da sociedade.12 Os direitos in-dividuais somente podem florescer sob a proteção da autoridade do Estado, que, por isso, intrinsecamente representa os interesses dos governados.13

O segundo viés de análise é o da sociedade como solidariedade. Aqui se encontram os autores com preocupação com as ideias de comunidade e de solidariedade social, unidos por um discurso que busca a realização de um ideal de cuidado, sentimento, afeição e simpatia, capaz de criar uma comunidade de sentimento. Elliott e Turner agregam nesse grupo autores como Ferdinand Tönies, Hegel e Habermas,14 sugerindo que essa linha de pensamento ganhou força no período posterior à Segunda Guerra Mundial, com as políticas key-nesianas que introduziram, no continente europeu, a ideia de que o Estado deveria arcar com provisões que permitissem o bem-estar dos cidadãos. A sociedade como solidariedade é uma sticky society, uma sociedade em que se valoriza a lealdade do membro para com o grupo, na qual é difícil entrar – o que implica restrições à migração – e da qual é difícil sair – o abandono é caracterizado, frequentemente, como deslealdade ou até mesmo traição.15 As teorias da sociedade como solidariedade supõem que a afeição natural e o diálogo, existentes nas comunidades, são a base para a democracia. Os códi-gos morais são espontaneamente compartilhados entre os diversos grupos de indivíduos.

Finalmente, Elliott e Turner elaboram o elenco das teorias que tratam a sociedade como criação. A tentativa aqui é ir além da abstração da sociedade como estrutura, que ignora a singularidade do indivíduo, mas também da

11. Ibid., p. 35. Essa interpretação não é unânime entre os sociólogos. Pedro Bodê de Moraes, por exemplo, afirma que “diferentemente do que se afirma a respeito da inexistência ou desimportância do indivíduo na teoria durkheimiana, acreditamos que a noção de indivíduo é exatamente um dos principais pontos de inflexão e tensão do texto do sociólogo francês [...]”. MORAES, Pedro Rodolfo Bodê de. Émile Durkheim: para uma Sociologia do mundo contemporâneo. In: CODATO, Adriano Nervo (Org.). Tecendo o presente – oito autores para pensar o século XX. Curitiba: Sesc/PR, 2006.

12. ELLIOTT, Anthony; TURNER, Bryan S. On Society, op. cit., p. 50. Ver, de modo geral, DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. 2. ed. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

13. “But Durkheim goes on to suppose that the state thereby inevitably represents the interests of those it rules, save in certain excepcional and ‘pathological’ circumstances.” GIDDENS, Anthony. A contemporary critique of historical materialism: the Nation-State and violence. University of California Press, 1985. p. 18.

14. ELLIOTT, Anthony; TURNER, Bryan S. On Society, op. cit., p. 74.

15. Ibid.

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nostalgia e do sentimentalismo da sociedade como solidariedade. O ponto central, para essas teorias, é a criatividade social, a abertura à inovação. Há um substrato imaginativo no coração das relações sociais. A sociedade, tal como vista nessas concepções, é uma sociedade “elástica”. Explicam Elliott e Turner:16

A metáfora da elasticidade social nos provê uma ferramenta valiosa para a análise das sociedades modernas, que estão atualmente muito afastadas do mundo fixo e estruturado das sociedades tradicionais [...]. Enquanto as sociedades tradicionais eram tipicamente vinculadas ao território, as pessoas agora vivem em sistemas sociais que são apenas indiretamente conectados ao espaço físico. Enquanto as sociedades tradicionais eram ligadas pelo sangue e pelo solo, muitas relações sociais contemporâneas acontecem online. Nós nos propomos a pensar essas sociedades em termos de “elasticidades” porque as relações sociais são esticadas no tempo e no espaço.

Assim, na visão dos autores, não se pode mais compreender a sociedade como se as relações sociais existissem apenas nas formas da Sociologia clássica do século XIX. Por exemplo, não se pode mais ignorar ou pretender descartar as relações sociais conduzidas no mundo virtual, com o simples argumento de que são fragmentadas e não duradouras, o que as tornaria irrelevantes.17 O mundo virtual, inexistente nas origens do pensamento sociológico, vem afirmando, especialmente nos últimos anos, seu potencial para alterar o “mundo real”.

Na sociedade como criatividade, as relações sociais estão em constante mutação, o que a torna radicalmente descentralizada, indeterminada e fluida.18 A melhor referência, entre os sociólogos clássicos, para esse tipo de concep-ção, seria Georg Simmel. Enquanto os outros pais da Sociologia concebem a sociedade como uma totalidade, Simmel a reputa um fenômeno secundário. O principal, para o autor, é o que ele denomina “sociação”, que são as inte-rações, desde as mais efêmeras até as mais duradouras, que ao mesmo tempo aproximam e afastam as pessoas. Nas palavras de Elliott e Turner, “Simmel descreve a sociedade como uma teia de interações entre os indivíduos, composta de fios invisíveis de sociabilidade”.19 Simmel afirma que, em sentido amplo, “a sociedade existe onde quer que vários indivíduos entram em interação”.20 Assim, “unidade em sentido empírico, nada mais é do que interação de

16. Ibid., p. 109.

17. Ibid., p. 110.

18. Ibid., p. 113.

19. Ibid., p. 114.

20. SIMMEL, Georg. Sociologia. Org. Evaristo de Moraes Filho. São Paulo: Ática, 1983. p. 59.

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elementos. [...] Um Estado é uma unidade porque entre seus cidadãos existe a correspondente relação de ações mútuas”.21

Logo, se a sociedade não é nada além das relações entre indivíduos, é preciso abrir mão dos fundamentos metafísicos tradicionais que procuravam fundamentá-la, segundo Elliott e Turner. É impossível tratar a sociedade como um objeto estático. Ela é algo que acontece, que está acontecendo. Não há socie-dade feita. Há o fazer sociedade, um processo que está sempre em andamento.22

2.2 Os litígios coletivos de acordo com os conceitos de sociedade: indicadores

A partir dos conceitos de sociedade, brevemente expostos, e considerando que um litígio coletivo é um conflito que envolve uma sociedade, é possível desenvolver diferentes acepções de litígios coletivos.

Para tanto, é preciso indicar, em primeiro lugar, quais variáveis serão le-vadas em consideração. Quer dizer, quais características desses litígios coletivos são relevantes para distingui-los uns dos outros? A proposta é considerar como indicadores os conceitos de conflituosidade e complexidade.

2.2.1 Conflituosidade

Conflituosidade é o indicador que representa o grau de conflito interno ao grupo que está envolvido no litígio. Os grupos não são entidades monolíticas, cujos integrantes pensam de modo idêntico sobre a solução de um problema. Esse grau de concordância ou discordância, dentro do grupo, pode ser maior ou menor, dependendo das características do litígio. Se os indivíduos são afetados pelo litígio de modo mais grave, é natural que queiram opinar mais e, com isso, divirjam mais. Além disso, se essas pessoas não têm vínculos de solidariedade ou visões de mundo em comum, também é provável que não concordem com as possíveis soluções do problema.

De outro lado, se as pessoas compartilham uma perspectiva social, ou se o impacto individual do litígio coletivo é pequeno, é mais provável que elas possam chegar a um acordo quanto a uma solução ou, pelo menos, que não estejam suficientemente interessadas em fazer suas próprias opiniões preva-lecerem. Em terceiro lugar, se os modos como as pessoas são atingidas pelo litígio são diferentes, é provável que elas tenham divergências acerca do modo

21. Ibid., p. 60.

22. MACEDO, Evaristo de. Prefácio. In: Ibid., p. 21.

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como ele poderá ser resolvido. Como as pessoas tendem a preferir soluções que favoreçam suas próprias situações, a diversidade de impactos fará com que elas passem a divergir entre si, acerca de qual o resultado desejável do litígio.

Embora possa parecer simples, o conceito de conflituosidade rompe com uma importante ideia no âmbito dos litígios coletivos: a noção de que os grupos podem ser tratados como se fossem um indivíduo, ou como se fossem uma entidade amorfa, que tem um pensamento próprio. Grupos são formados por pessoas, as quais, eventualmente, vão discordar da forma como um problema deve ser resolvido.

Dessa mudança de perspectiva deriva o afastamento de uma premissa fundamental do pensamento da doutrina processual coletiva brasileira, que é a ideia de que os direitos transindividuais são indivisíveis. Se há diferentes interesses no seio do mesmo litígio coletivo, isso significa que uma decisão não vai dar a todas as pessoas a mesma tutela. Alguns ficarão satisfeitos, outros não. Não é correto afirmar que a decisão, seja qual for, atenda ou desatenda, na mesma medida, os interesses de todos os integrantes da coletividade.23

Assim, quando se observa o direito transindividual pelo prisma do lití-gio, ele não é indivisível, eis que cada integrante do grupo experimenta seus impactos de forma diferente. A tutela do direito material, obtida ao final, também não será indivisível, eis que impactará de modos distintos nas vidas dos integrantes do grupo, de acordo com suas posições em relação à lesão.

2.2.2 Complexidade

Conforme tratado anteriormente, a conflituosidade é um indicador que analisa o grau de concordância entre os indivíduos que integram o grupo. Quanto maior a intensidade do impacto, a diferença de posições sociais e de modo como o litígio impacta sobre os indivíduos, maior será a conflituosidade.

A complexidade, por sua vez, não deriva da relação entre o litígio e o grupo, mas da relação entre o litígio e o Direito. Complexidade é um elemento que deriva das múltiplas possibilidades de tutela de um direito. Um litígio coletivo será complexo quando se puder conceber variadas formas de tutela da violação, as quais não são necessariamente equivalentes em termos fáticos,

23. Pedro Dinamarco afirma a concepção aqui criticada, nos seguintes termos: “nos interesses difusos, o objeto (ou o bem jurídico) é indivisível, na medida em que não é possível proteger um indivíduo sem que essa tutela não atinja automaticamente aos demais membros da comunidade que se encontram na mesma situação. Ou atinge todos, ou não atinge ninguém”. DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação Civil Pública. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 53.

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mas são cogitáveis, juridicamente. Em outras palavras, a complexidade deriva da dúvida no modo como a decisão acerca do litígio deva ser tomada ou deva ser implementada. A tutela, entendida como resultado concreto da atividade jurisdicional sobre o direito material, não é de fácil apreensão, seja em termos de acertamento do direito, seja em termos de sua implementação empírica.

Assim, por exemplo, um litígio coletivo sobre a despoluição de um rio é complexo, porque há inúmeras formas pelas quais o resultado prático desejado pode ser obtido, sem que se possa dizer, a priori, que uma delas seja a correta, a única exigível, juridicamente. Há, ainda, estratégias de mitigação e de com-pensação do dano ambiental, que são admitidas pelo ordenamento jurídico, com razoável dose de flexibilidade. Quanto mais variados forem os aspectos da lesão e as possibilidades de tutela, maior será o grau de complexidade do litígio.24 Quanto mais fácil for a visualização da solução jurídica e prática da controvérsia, menor será a sua complexidade. Assim, a complexidade é exógena ao grupo, enquanto a conflituosidade é endógena.

A doutrina costuma referir que cabe ao legitimado coletivo pleitear a tutela do direito ameaçado ou violado. Em vários casos, a definição dos contornos do pedido não é problemática. Há litígios coletivos em que a pretensão é unívoca e de fácil apreensão pelo legitimado coletivo, acarretando uma decisão fácil para o juiz. São litígios coletivos simples. Entretanto, há outros litígios coleti-vos, que serão aqui denominados complexos, em que nem a pretensão, nem a tutela jurisdicional a ser prestada podem ser definidas de modo unívoco pelos envolvidos.25 Por exemplo, se um grupo de consumidores adquire um pacote de produto que deveria conter um quilograma, mas tem apenas novecentos

24. Também se vale do conceito de complexidade no contexto da tutela coletiva, embora com outro sentido, GAVROSNKI, Alexandre Amaral. Técnicas extraprocessuais de tutela coletiva. São Paulo: RT, 2011. p. 44.

25. Essa distinção é inspirada no pensamento de HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2001. p. 166. Hart demonstra, ao longo de sua obra, considerável preocupação com a diferenciação entre hipóteses jurídicas que permitem a aplicação imediata das regras e outras que exigem interpretação do juiz. Seu objetivo é demonstrar que ambas as situações convivem no ordenamento jurídico, de modo que não podem ser tratadas uniformemente. Afirma o autor: “À primeira vista, o espetáculo parece paradoxal: os tribunais estão aqui a exercer poderes criadores que estabelecem critérios os últimos, pelos quais a validade das próprias leis que lhes atribuem jurisdição como juízes deve ela própria ser testada. Como pode uma constituição atribuir autoridade para dizer o que é a constituição? Mas o paradoxo desaparece, se nos lembrarmos que embora cada regra possa ser de teor duvidoso em alguns pontos, é, na verda-de, uma condição necessária de um sistema jurídico existente que nem toda a regra esteja sujeita a dúvidas em todos os pontos. A possibilidade de os tribunais disporem de autoridade em certo tempo dado para decidir estas questões de limite respeitantes aos critérios últimos de validade, depende apenas do facto de que, nesse tempo, a aplicação de tais critérios a uma vasta zona do direito, incluindo as regras que atribuem autoridade, não suscita dúvida, embora o respectivo alcan-ce e âmbito preciso suscitem. [...] Os tribunais têm jurisdição para os resolver [os casos nebulosos]

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gramas, há um litígio coletivo simples. Nessa situação, não é preciso grande esforço para definir que a pretensão do grupo lesado será a compensação pelos cem gramas faltantes. Ela assumirá, de modo evidente, uma das três hipóteses de reparação alternativamente previstas no art. 18, §1º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Por via de consequência, a definição da tutela jurisdi-cional a ser prestada se reveste de considerável simplicidade, variando apenas de acordo com a comprovação ou não dos fatos que compõem a causa de pedir.

Muito diferente é a situação com a qual se defrontam os legitimados coletivos em casos atinentes, por exemplo, a conflitos socioambientais. Se uma coletividade é lesada pela construção de usina hidrelétrica que desloca pessoas, alaga terras de comunidades tradicionais, altera o curso do rio, interfere nas relações interpessoais dos moradores, abala a dinâmica socioeconômica da região, diminui a ictiofauna, modifica o trajeto das estradas, extingue espécies animais endêmicas, impede a realização de determinadas atividades produtivas e piora as condições de saneamento, se está diante de uma miríade de pre-tensões coletivas que dificilmente serão unívocas ou de fácil apreensão pelo legitimado coletivo e pelo juiz.26

Conforme se observa, quando se trata de litígios coletivos simples, não é problemático que o legitimado coletivo e o juiz definam a extensão e os contornos da pretensão e da tutela jurisdicional. Todavia, se a situação versar sobre um litígio coletivo complexo,27 haverá possibilidade de que essa tutela se revista de múltiplas formas e não será claro, ex ante, qual, dentre as possibili-dades, é a mais eficaz para a reparação ou prevenção da lesão ao bem jurídico. Também não restará claro qual a pretensão desejada pela coletividade lesada.

Assim, litígios coletivos complexos são aqueles que envolvem, mais do que uma simples aplicação do direito, análises relacionadas à eficiência, à

através da escolha entre as alternativas que a lei deixa em aberto, mesmo se preferirem disfarçar essa escolha apresentando-a como uma descoberta”.

26. Também percebeu essa característica, embora sem fazer a distinção aqui explicitada, MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 9. ed. São Paulo: RT, 2019. p. 80.

27. A terminologia dialoga com a utilizada nos Estados Unidos, embora tenha um sentido diferente. Naquele país, as class actions estão inseridas no gênero complex litigation. Curiosamente, contudo, o significado dessa expressão não é unívoco no seu país de origem, tendo, como dizem Tidmarsh e Trangsrud, um caráter de “I-know-it-when-I-see-it”. Em linhas gerais, sob a designação de complex litigation estão os litígios que demandam do Judiciário atuação para além do que dele se espera em um processo comum, independentemente da natureza do direito material subjacente. São exem-plos dessa modalidade os casos de litígios antitruste de grandes dimensões, a fase de implemen-tação de decisões de dessegregação racial ou as demandas relacionadas às lesões provocadas pela exposição ao amianto. Em outras palavras, complexos são os casos nos quais o sistema processual ordinário não funciona bem para solucionar a disputa. Ver TIDMARSH, Jay; TRANGSRUD, Roger H. Complex litigation: problems in advanced civil procedure. Nova York: Foundation Press, 2002.

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economicidade, à proporcionalidade e à desejabilidade, para a sociedade, de uma determinada solução. É bom lembrar que a ponderação de tais fatores é expressamente autorizada pelo art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), acrescentado em 2018. Nos litígios simples, pelo contrário, a solução para a controvérsia é dada pela subsunção dos fatos à norma jurídica, de modo mais direto.

2.3 Os litígios coletivos de acordo com os conceitos de sociedade: tipologia

Apresentados os conceitos de sociedade que se adotam como marco teórico e construídos os indicadores que poderão ser utilizados para demonstrar, empi-ricamente, as variações existentes entre os tipos de litígios coletivos, é possível delinear uma tipologia dos litígios coletivos. Esses tipos variarão em complexidade e em conflituosidade, em razão das características do grupo que são afetados por eles. Assim, para a teoria dos litígios coletivos, a titularidade do direito é definida a partir das características do litígio, não a partir de uma análise abstrata dos direitos, em situação de integridade. O caso é constitutivo da titularidade.

Cada violação interage com o direito transindividual para fixar-lhe um con-teúdo único e irrepetível, que constituirá o ponto de partida para sua análise. Por exemplo, cada vez que o meio ambiente é violado, produz-se um novo conceito de meio ambiente, cujos titulares serão definidos a partir das características da violação e com o objetivo de se tratar o litígio dela decorrente, oferecendo-lhe, se for o caso, tutela jurisdicional. Logo, cada litígio coletivo apresenta um di-reito transindividual único e específico, decorrente da interação entre o direito íntegro e a violação, que pode ser enquadrado em categorias, de acordo com as diferentes situações de violação. Propõe-se, da mesma forma que Elliott e Tur-ner dividiram os diferentes conceitos de sociedade em três categorias, fixar três categorias de litígios transindividuais, às quais correspondem distintas atribuições de titularidades, de acordo com a natureza da lesão.

2.3.1 Litígios coletivos de difusão global (litígios globais)

A primeira categoria de litígios transindividuais é dada pelas situações nas quais a lesão não atinge diretamente os interesses de qualquer pessoa. Um vazamento de óleo, em quantidade relativamente pequena, em uma perfuração profunda, no meio do oceano,28 não atinge diretamente qualquer pessoa. Fora

28. Em 01/02/2012, o Ministério Público Federal em São José dos Campos instaurou inquérito civil público para investigar um vazamento de quantidade equivalente a 160 barris de petróleo em um

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o interesse compartilhado por todo ser humano em relação ao ambiente pla-netário, ninguém é especialmente prejudicado pelo dano decorrente desse tipo de lesão. Nessa situação, em que a violação a um direito transindividual não atinge, de modo especial, qualquer pessoa, sua titularidade deve ser imputada à sociedade entendida como estrutura. Essa é a categoria que se aproxima das formulações atuais do processo coletivo, que veem a sociedade como um ente supracoletivo, despersonificado, que defende seus interesses pela aplicação do ordenamento jurídico, interpretado por pessoas autorizadas a tanto.29 Aqui não se trata de proteger o bem jurídico porque sua lesão interessa especificamente a alguém, mas porque interessa, genericamente, a todos.

Essa categoria também inclui as situações em que a lesão aos membros do grupo é quantificável individualmente, mas pouco significativa para cada um deles. Nesse cenário, é improvável que eles se importem em participar da definição acerca do modo como o litígio será resolvido, bem como que estejam preocupados em receber a reparação, individualmente. É mais proveitoso para a sociedade que a reparação do dano seja dirigida ao grupo, indiscriminada-mente, evitando que se gastem recursos no direcionamento dos valores para cada um dos indivíduos.

Em outras palavras, litígios coletivos globais são aqueles que afetam a sociedade de modo geral, mas que repercutem minimamente sobre os direitos dos indivíduos que a compõe. Apresentam baixa conflituosidade, tendo em vista o pouco interesse dos indivíduos em buscar soluções para o problema coletivo. Sua complexidade pode ser alta ou baixa, dependendo da dificuldade de se definir antecipadamente o modo de prestação da tutela jurisdicional, mas a tendência é que seja baixa, uma vez que a lesão costuma se espalhar uniformemente pela sociedade.

A tutela jurisdicional, nos litígios globais, deve buscar realizar o bem-es-tar coletivo, prendendo-se pouco à satisfação dos indivíduos que integram a sociedade. Como eles são pouco lesados, é mais interessante buscar soluções coletivamente valiosas do que empreender esforços para que pequenas repara-ções individuais sejam realizadas.

dos campos de perfuração do pré-sal. A referência ao caso pode ser encontrada em: http://g1.globo.com/economia/noticia/2012/02/mpf-abre-inquerito-para-apurar-vazamento-de-oleo-no-pre-sal.html. Acesso em: 01/05/2020.

29. Ver item 2.1 e ELLIOTT, Anthony; TURNER, Bryan S. On Society, op. cit., p. 41. Agradeço a Hermes Zaneti Jr. pelos comentários que propiciaram o melhor esclarecimento deste tópico.

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Capítulo 3

MEDIDAS ESTRUTURAIS EXTRAJUDICIAIS: IMPLEMENTANDO MUDANÇAS ESTRUTURAIS

PELA VIA DO CONSENSO

1. INTRODUÇÃO

Este capítulo pretende explorar o melhor dos cenários para uma mudança estrutural, qual seja, aquela promovida pela via do consenso. O processo coletivo brasileiro tem uma característica que o diferencia significativamente, tanto do modelo norte-americano quanto do europeu: a existência do inquérito civil. Esse instrumento, colocado à disposição do Ministério Público pela Lei 7.347, de 1985, aliado ao perfil constitucional do Ministério Público, permitiu que a instituição desenvolvesse uma série de importantes trabalhos de alteração estrutural, sem a necessidade de intervenção judicial.

É claro que essas mudanças só são possíveis pela via do consenso. O inquérito civil é, originalmente, uma ferramenta de instrução processual e de obtenção de informações para o ajuizamento de futura ação. Ocorre que, no contexto da obtenção dessa informação, é frequente que se apresentem gestores, pessoas responsáveis pelas instituições rés, com verdadeiro interesse em produzir alterações que, apesar de necessárias, não foram possíveis até aquele momento. O Ministério Público acaba funcionando, nesse contexto, como o agente de quebra da inércia, para permitir que as mudanças sejam feitas. Surgem, assim, inquéritos civis estruturais, algo inédito em qualquer outro sistema jurídico. Neles, um tema pode ser debatido com fluidez entre os diferentes polos de subgrupos interessados, gerando um plano compreensivo e consensual de transformação, a ser implementado pelas próprias autoridades responsáveis. Isso permite a mi-nimização das técnicas de intervenção, com a maximização de seus resultados.

2. O PERFIL CONSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO

A Constituição de 1988, ao estender o papel do Ministério Público, tradicionalmente ligado ao processo penal, para a defesa dos direitos sociais,

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os quais o Código de Defesa do Consumidor depois viria a classificar como difusos, coletivos e individuais homogêneos, criou as condições perfeitas para que a instituição funcionasse como um agente de mudança social. Essa cons-trução não foi acidental, mas fruto da visão de diversas pessoas que ocupavam papéis relevantes naquele momento de transição, como José Paulo Sepúlveda Pertence, Aristides Junqueira Alvarenga, Celso de Mello, Antônio Herman Benjamim e tantos outros.

A genialidade e elegância da solução está na sua simplicidade. O Ministério Público é uma instituição pública, financiada com recursos provenientes do ente federado ao qual pertence, que tem autonomia administrativa, financeira, orçamentária e organizacional. Subjetivamente, seus integrantes têm a mesma autonomia que os juízes, não havendo hierarquia que permita aos níveis su-periores determinar a conduta dos inferiores.

A rigor, a autonomia dos membros do Ministério Público é até maior que a dos juízes, quando considerada do ponto de vista interno. É que as de-cisões judiciais estão sempre sujeitas a recurso. No Brasil, ao contrário do que ocorre em outros países, não há uma única situação em que a decisão de 1º grau seja soberana. A possibilidade de correção, pelas instâncias superiores, é ampla. No Ministério Público, pelo contrário, a única decisão de um membro do 1º grau que está sujeita a correção interna é o arquivamento do inquérito civil. Em todos os demais casos, sua autonomia é total. Ele pode continuar conduzindo a investigação pelo tempo que achar necessário para formar o seu convencimento, pode expedir recomendações e fazer os acordos que julgar cabíveis e pode propor as ações judiciais que considerar pertinentes, sem que haja possibilidade de controle interno. Ajuizada a ação, é o Poder Judiciário que definirá o seu mérito, de modo que o controle será externo.

Em síntese, enquanto instituição, o Ministério Público tem recursos para se auto-organizar e para conduzir as investigações necessárias para a adequada instrução dos seus inquéritos. Com isso, ele não está vinculado a outros po-deres públicos nem a organismos privados, que poderiam capturá-lo e pres-sioná-lo para que agisse sem a necessária isenção ou sem o necessário rigor. A independência financeira assegura a independência na atuação. Do ponto de vista subjetivo, os membros que ocupam as funções de direção não têm autoridade para comandar a atuação dos que estão em 1º grau e raramente são capazes sequer de corrigir a atuação destes. Isso favorece a criatividade no desenvolvimento de novas teses e na forma de encarar os problemas, fatores que são inibidos em uma instituição hierarquizada. Trata-se de perfil bastante distinto do que existe, por exemplo, nos Estados Unidos, onde os membros não

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Cap. 3 • MEDIDAS ESTRUTURAIS EXTRAJUDICIAIS 149

gozam de estabilidade e a chefia do Department of Justice pode se sobrepor à atuação dos membros subordinados.1

É evidente que esses fatores organizacionais criam condições, não garantem resultados. Também é evidente que as pessoas que ingressam no Ministério Público não são santas. Elas podem se deixar levar pela vaidade, pela pregui-ça, pelo rancor, enfim, por todas as fraquezas humanas que afetam quaisquer pessoas. Bons arranjos institucionais são um bom começo, mas não são tudo. A qualidade dos resultados depende das pessoas.

Esse arranjo institucional e subjetivo, promovido pela Constituição, foi somado a outro fator significativo pela lei e pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: a dispensa de que o Ministério Público, assim como todos os demais legitimados coletivos, adiante despesas processuais dos atos que requer, bem como que restitua ao réu aquelas que ele adiantou, em caso de derrota, salvo se tiver havido má-fé. As despesas processuais deverão ser custeadas pela fazenda pública a qual se vincula o órgão do Poder Judiciário perante o qual tramita a ação.2

A lógica, aqui, é cristalina. Propor ações judiciais e conduzir inquéritos civis complexos é uma atividade pela qual o membro do Ministério Público não

1. Como notoriamente ocorreu, no início de 2020, no caso Roger Stone. Quatro Federal Prosecutors emitiram um parecer quanto a pena a ser fixada para o réu, condenado por diversos crimes relacio-nados a sua participação nas eleições norte-americanas. O presidente Donald Trump afirmou, no Twitter, que a opinião dos promotores constituía “uma situação horrível e injusta”. No dia seguinte, o Attorney General William Barr apresentou um parecer em sentido contrário, desfazendo o parecer dos promotores anteriores. Os quatro deixaram o caso e dois se demitiram do cargo. Essa atuação do Procurador-Geral não seria possível no Brasil. No fim, a posição de Trump e Barr prevaleceu. Stone foi sentenciado a apenas quarenta meses de prisão, quando a recomendação original era para que ele cumprisse 9 anos. Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/02/11/politics/roger--stone-sentencing-justice-department/index.html. Acesso em: 09/04/2020.

2. O STJ definiu essa questão em recurso repetitivo, Tema 510: “Não é possível se exigir do Ministério Público o adiantamento de honorários periciais em ações civis públicas. Ocorre que a referida isenção conferida ao Ministério Público em relação ao adiantamento dos honorários periciais não pode obrigar que o perito exerça seu ofício gratuitamente, tampouco transferir ao réu o encargo de financiar ações contra ele movidas. Dessa forma, considera-se aplicável, por analogia, a Súmula n. 232 desta Corte Superior (‘A Fazenda Pública, quando parte no processo, fica sujeita à exigência do depósito prévio dos honorários do perito’), a determinar que a Fazenda Pública ao qual se acha vinculado o Parquet arque com tais despesas. Precedentes: EREsp 981949/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, Primeira Seção, julgado em 24/02/2010, DJe 15/08/2011; REsp 1188803/RN, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 11/05/2010, DJe 21/05/2010; AgRg no REsp 1083170/MA, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 13/04/2010, DJe 29/04/2010; REsp 928397/SP, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 11/09/2007, DJ 25/09/2007, p. 225; REsp 846.529/MS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 19/04/2007, DJ 07/05/2007, p. 288. 4. Recurso especial parcialmente provido. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ n. 8/08”. REsp 1253844/SC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 13/03/2013, DJe 17/10/2013.

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é diretamente remunerado. É claro que todo membro da carreira que tem essa atribuição é remunerado para isso. Mas ele não é especialmente remunerado pelo número de inquéritos em que atua, pela importância, complexidade ou qualidade dos resultados que obtém. Quanto mais complexo o inquérito ou a ação, mais trabalhosos eles serão, sem que haja algum tipo de bonificação. Em segundo lugar, a instituição ministerial não é premiada pela vitória no processo. Os valores recuperados e as obrigações cumpridas não se revertem em favor do MP, mas integralmente em favor da sociedade lesada.3

Isso significa que nem o membro do Ministério Público, subjetivamente, nem a instituição têm estímulos racionais para litigar excessivamente, já que nada têm a ganhar com isso. Assim, impor a eles o financiamento dos processos seria um estímulo excessivo para a não atuação, para que eles optassem pela inércia em casos nos quais deveriam atuar. Se a sociedade espera um nível ótimo de litigância coletiva, é preciso que haja equilíbrio de estímulos. Se não há premia-ção pela vitória, não pode haver, em situações normais, punição pela derrota. Também não se pode esperar que a instituição financie o custo do processo, se ela não irá recuperá-lo, nem em caso de vitória.4 Em outras palavras, impor ao autor coletivo o financiamento do processo significa criar um jogo absurdo, em que esse agente não ganha quando ganha, mas perde quando perde.

A solução brasileira, tal como descrita pela Lei 7.347/1985, afasta uma série de inconvenientes do modelo norte-americano das class actions, no qual o advogado que propõe a ação assume todos os custos do processo, com a

3. Tratando de ação proposta por associação, o STJ decidiu: “A indenização imposta ao réu transgressor da natura, mesmo que fração dela, não pode ser direcionada para a parte autora da respectiva ação civil pública, devendo, ao invés, ser integralmente carreada para os Fundos de que trata o art. 13 da Lei n. 7.347/85” (REsp 1779097/SC, Rel. Min. Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 12/03/2019, DJe 24/04/2019). São conhecidos acordos, firmados pelas Defensorias Públicas, em que parte da indenização paga pelo réu é revertida ao fundo de estruturação da Defensoria Pública, a título de honorários. Cláusulas desse tipo são ilegais e promovem conflitos de interesse entre o legitimado coletivo e a sociedade, titular do direito, que não participa do processo e não tem meios efetivos para intervir na celebração do acordo.

4. No sentido criticado no texto, decisão monocrática do Ministro Ricardo Lewandowski, ACO 1560/MS, afirmando: “Destaco que o fortalecimento do processo coletivo brasileiro passa, necessaria-mente, pela maior equiparação do poder das partes, pela melhor calibração dos incentivos para o agir responsável e pelo fortalecimento da atuação dos agentes privados, como forma de estimular a advocacia a envolver-se e a comprometer-se com este ramo da ciência processual, que é mais condizente com as necessidades atuais da burocratizada e complexa sociedade brasileira”. O racio-cínio é insustentável. Não se motiva alguém (a advocacia) a engajar-se em algo inibindo que outra pessoa (o Ministério Público) o faça. Não há sequer consistência lógica nessa proposição. Nem a obrigação de que o ente Ministério Público arque com custas periciais tem o condão de estimular a litigância responsável, porque o agente que toma a decisão de processar, que é o que atua em 1º grau, não é o gestor orçamentário da instituição. E o gestor orçamentário não pode compelir ou inibir o ajuizamento de demandas, em virtude da garantia de independência funcional contida no art. 129 da Constituição.

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promessa de que, caso seja vitorioso, será premiado pelo resultado. As class actions são um empreendimento de risco, relativamente ao qual o advogado poderá se envolver ou não. Se considerar que tem mais a ganhar, assumirá a causa. Quanto maior for o investimento e quanto maior for o risco, maior deverá ser a promessa de recompensa.

O problema é que isso fomenta conflitos de interesse entre o grupo e o seu advogado, na perspectiva do resultado ótimo do litígio. Deborah Hensler et al. a explicam em detalhes, a partir de pesquisa empírica. Os advogados que atuam em favor dos autores, em ações coletivas, assumem os riscos financeiros do processo, sendo remunerados pelo êxito.5 Contudo, como a maioria abso-luta das ações termina em acordo, o advogado pode ter interesse em fazer um acordo pior para a classe, mas que reduza o custo do processo, potencializando, assim, sua margem de lucro. A redução de custo pode decorrer da redução do tempo de tramitação, celebrando-se um acordo precoce, que diminui o número de horas dedicadas ao processo, ou da restrição à produção de provas, que são dispendiosas e também custeadas pelo advogado.6

Em uma class action, o mais provável é que o advogado ganhe mais que cada um dos membros da classe e, possivelmente, mais que todos eles juntos. Basta recordar o caso Greenberg v. Procter & Gamble Co.,7 em que o acordo firmado, embora não homologado judicialmente, previa US$ 1.000,00 para cada representante processual do grupo, por filho machucado pelas fraldas defeituosas, nenhuma compensação financeira para os ausentes, que seriam beneficiados apenas por mudanças na conduta da empresa, e US$ 2,73 mi-lhões para os advogados.

Nesse contexto, a doutrina estadunidense tem imputado ao juiz o papel de fiscal da regularidade dos acordos. Já que a maioria dos indivíduos está ausente do processo e o representante não tem razões para exercer essa atuação com rigor, deverá o juízo avaliar, precipuamente, se o acordo traz benefícios suficientes para a classe. Concretamente, contudo, o juiz tem poucas ferramentas para fazer essa avaliação, afinal, estará jungido, em grande medida, aos elementos apresentados nos autos pelas partes, ambas interessadas na homologação do

5. Para um estudo empírico sobre os valores atribuídos aos advogados nos acordos, ver EISENBERG, Theodore; MILLER, Geoffrey P. Attorney Fees and Expenses in Class Action Settlements: 1993-2008. Journal of Empirical Legal Studies, v. 7, n. 2, p. 248-281, 2010; FITZPATRICK, Brian T. An Empirical Study of Class Action Settlements and Their Fee Awards. Journal of Empirical Legal Studies, v. 7, n. 4, p. 811-846, 2010. O autor examinou 688 acordos firmados em cortes federais, nos anos de 2006 e 2007, totalizando US$ 33 bilhões, dos quais US$ 5 bilhões foram pagos aos advogados.

6. HENSLER, Deborah et al. Class Action Dilemmas: Pursuing Public Goals for Private Gain. Santa Monica: RAND, 2000. p. 79 e ss.

7. Greenberg v. Procter & Gamble Co., n. 11-4156 (6o Cir. 02/08/2013).

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acordo. Portanto, não será fácil descobrir qual é, como dizem Hensler et al., o valor “real” dos direitos, para que seja confrontado com o valor do acordo e se descubra se ele é ou não vantajoso.8

Logo, embora a solução brasileira de legitimação coletiva tenha os seus inconvenientes, ao confiar em legitimados coletivos públicos, ela contorna um sério problema do modelo norte-americano. Qualquer comparação entre os dois países e entre o papel dos legitimados coletivos, aqui e lá, deve considerar essa diferença de perfil. O Ministério Público é um legitimado financeiramen-te desinteressado, que atua em defesa do interesse público. Pretender impor restrições à sua atuação, fazendo com que arque com os ônus das ações que propõe, significa reforçar os estímulos para que não existam processos e, com isso, a sociedade não seja beneficiada pelos seus resultados.

Em resumo, deixando de lado os possíveis conflitos e distorções, tanto o modelo brasileiro quanto o norte-americano são equilibrados, em termos de es-tímulos racionais. Aqui não há custo nem risco para o legitimado, mas também não há prêmio pela vitória, assim como não há punição pela derrota. Lá, há custo, risco e prêmio pela vitória, bem como prejuízo na derrota. A manutenção desse equilíbrio é importante para que haja uma quantidade ótima de processos.

3. A TUTELA EXTRAJUDICIAL DE CONFLITOS ESTRUTURAIS

A atuação extrajudicial do Ministério Público é regulada nos arts. 8º, 9º e 10 da Lei da Ação Civil Pública, que dispõem sobre o inquérito civil (IC). O procedimento, introduzido em 1990, tem como propósito central, na sua feição originária, a colheita de informações capazes de embasar a propositura de uma ação. Sua condução é exclusiva do Ministério Público, mas a Lei Complementar 75/93 e a Lei 8.625/93, que regulam o Ministério Público da União e dos estados, embora façam referência ao IC, não contêm dispositivos que impactem na sua regulamentação.

O inquérito civil acabou sendo verdadeiramente regulamentado pela Re-solução 23/2007, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Ela minudenciou as questões relacionadas à instauração, publicidade, andamento e controle do inquérito. Em seu art. 1º, a Resolução informa que o objetivo do inquérito civil é “apurar fato”. Se o fato for ilícito, gerará a propositura de ação. Ao mesmo tempo, se as informações indicarem que não há ato ilícito praticado, o inquérito é arquivado e submetido a controle interno, no âmbito do próprio Ministério Público.

8. HENSLER, Deborah et al. Class Action Dilemmas: Pursuing Public Goals for Private Gain, op. cit.

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Como se percebe, em sua estrutura básica, o inquérito civil trabalha com a lógica binária do lícito = arquivamento / ilícito = ajuizamento de ação. No entanto, o perfil de diversos litígios coletivos com os quais o Ministério Público se deparou, ao longo do tempo, não se enquadra na simplicidade desse binômio. Com isso, o inquérito civil e o seu papel foram expandidos e repensados. A solução dos conflitos pode não estar nem no arquivamento, nem na propositura da ação, mas em uma recomendação, um compromisso de ajustamento de conduta ou mesmo em uma reunião. O inquérito civil passou a ser encarado, para além de um instrumento de investigação, como uma ferramenta para intervir na realidade, na busca pela solução de um problema.

3.1 O perfil do litígio estrutural: retomada

Conforme mencionado no Capítulo 1, um litígio estrutural não se resolve na lógica lícito-ilícito. Ele decorre do modo como determinada estrutura opera na sociedade, gerando determinadas consequências, que se pretende modificar. Embora tenha-se, inicialmente, mencionado que o comportamento da estrutura é causa de uma “violação” de direitos, o termo violação precisa ser entendido em um contexto significativamente mais amplo.

Por exemplo, litígios estruturais relacionados à falta de oferta adequada e suficiente de tratamentos de saúde violam o direito à saúde. Mas nem a lei, nem a Constituição definem o que seria uma oferta adequada e suficiente. Para o paciente que aguarda uma cirurgia, por exemplo, provavelmente uma hora de espera já representa um atendimento insuficiente. Porém, do ponto de vista da técnica médica, pode ser que aquela pessoa possa esperar dias ou até meses, sem que isso implique agravo significativo à sua saúde.

Então, em que momento se pode dizer que a oferta de serviços de saúde viola o direito previsto no art. 196 da Constituição? O critério de suficiência será o do paciente, titular do direito, ou o do serviço médico tecnicamente adequado? Quando se considera que cada serviço de saúde terá que ter critérios diferentes e que cada critério levará em conta aspectos diferentes do atendimento (por exemplo, relação de custo-benefício, facilidade de administração, conforto etc.), fica claro que a legalidade-ilegalidade não oferecerá respostas sólidas.

O mesmo se pode dizer quando se abordam aspectos qualitativos da prestação de um serviço, ou seja, quando não se analisa apenas a oferta de um serviço, mas também as condições em que ele é oferecido. Políticas de huma-nização do atendimento, de melhoria do conforto do paciente, de prevenção à violência obstétrica, dentre outras, constituem um desafio para o tratamento na via do processo coletivo. Por exemplo, no caso da violência obstétrica, sempre

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será difícil definir até que ponto ela é atribuível ao profissional que a pratica, individualmente, e até que ponto ela decorre de uma cultura institucional, que desafia mudança estrutural.

Do mesmo modo, na educação, é comum que se investigue, por exemplo, a qualidade da prestação do serviço, bem como a efetividade de providências determinadas em lei, como o exercício do controle social, desempenhado pelos conselhos municipais de educação e de alimentação escolar. Nesses casos, o parâmetro de verificação não é dado por uma lógica binária, mas pela gra-dação qualitativa. Não há política de educação lícita ou ilícita, mas sim uma política melhor ou pior, de acordo com o contexto de um determinado local, região ou até mesmo país. Não se podem comparar os resultados de escolas periféricas, em municípios pobres, com os de escolas centrais, em municípios ricos. Políticas públicas dependem, inerentemente, do contexto, e este não está apenas na esfera da legalidade.

Logo, pensar em um inquérito civil, que como diz o art. 1º da Resolução 23/2007, do CNMP, “será instaurado para apurar fato que possa autorizar a tutela dos interesses ou direitos a cargo do Ministério Público”, é inviável. O litígio estrutural não depende, em vários casos, da apuração de um fato. Ele depende da compreensão das interfaces desse fato com o contexto da sua ocorrência, para permitir o desenvolvimento de uma estratégia de resolução do problema. É aí que está a dificuldade, sobretudo em decorrência do caráter policêntrico desses litígios. Quando se altera um eixo da política, outros setores são impactados. Quando se aumentam recursos para a educação, vão faltar para assistência social, a saúde ou o lazer. Não há soluções simples para casos complexos.

Se o problema coletivo não é puramente de legalidade ou ilegalidade, então o inquérito civil passa a ser não apenas uma investigação de fato para ser declarado lícito ou ilícito, mas uma técnica para interferir na realidade. E, em diversos casos, isso significa soluções intermediárias, distintas do ajuiza-mento de ação ou do arquivamento da investigação. São essas possibilidades, distribuídas em um plexo que admite diversas nuances e combinações, que merecem ser exploradas.

3.2 Procedimentos administrativos estruturais

Em 2017, o CNMP, por intermédio da Resolução 174, regulamentou o denominado procedimento administrativo (PA), que se apresenta como um instrumento mais flexível, apto a ser aplicado em situações nas quais os fatos são menos definidos e os prazos, mais longos que os horizontes de um inquérito civil. O PA pode ser utilizado, dentre outras finalidades, para acompanhar e

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fiscalizar, de forma continuada, políticas públicas ou instituições, bem como para embasar outras atividades, não sujeitas a inquérito civil.

Como se percebe, trata-se de um instrumento de caráter bastante amplo, cuja proposta não é investigar um fato definido, mas fazer um acompanha-mento contínuo de uma instituição ou de uma política em relação à qual o Ministério Público pretende agir. Como diz o art. 8º, parágrafo único, da Resolução, “o procedimento administrativo não tem caráter de investigação cível ou criminal de determinada pessoa, em função de um ilícito específico”. Nada impede que, caso surjam fatos específicos, que demandem a atuação do MP, seja instaurado inquérito civil, em paralelo ao PA.

O reconhecimento de que o PA não se insere na dualidade lícito-ilícito é claro no art. 12 da Resolução, que prevê que o seu arquivamento, nos casos de acompanhamento de política pública, não está sujeito a controle interno. Ele é promovido pelo próprio membro que conduz o caso. Não faria sentido imaginar que o órgão superior revisasse os critérios utilizados pelo membro do MP, no acompanhamento da política, se eles não são dados pela lei. Há, aqui, algum grau de liberdade de apreciação para se estabelecer um parâmetro próprio de conclusão do acompanhamento, de acordo com a sensibilidade das circunstâncias do caso.

Em virtude desse perfil flexível, o PA é um excelente instrumento para produzir reformas estruturais pela via do consenso. Metodologicamente, o PA se desenvolve de maneira similar ao IC, pela colheita de informações sobre a situação acompanhada, por intermédio de documentos, oitivas e, sobretudo, reuniões técnicas. Porém, como ele não investiga fato específico, é mais fácil alterar o seu foco, na medida em que o perfil do litígio estrutural vai se tor-nando mais claro.

Além disso, como o PA não investiga um ilícito que se pretenda imputar a alguém, ele tem mais chances de evitar o ambiente adversarial do inqué-rito civil, em que o Ministério Público quer descobrir quem está errado e o investigado quer provar que está certo. Ao enfocar a melhoria institucional, sem cogitar de um ilícito propriamente dito, torna-se mais fácil promover negociações a partir de interesses, não de posições.9 O que se espera é somar os esforços dos agentes públicos envolvidos, abrindo caminhos para que a instituição possa desenvolver melhor o seu papel. Não se quer punir culpados. Não há autor nem réu. É mais fácil separar as pessoas dos problemas, criar um ambiente favorável ao diálogo e produzir ideias que sejam consensuais e passíveis de implementação acordada.

9. FISHER, Roger; URY, William; PATTON, Bruce. Getting to Yes: Negotiating Agreement Without Giving in. Nova York: Penguin Books, 2011.

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Desse modo, o PA estrutural se desenvolve, predominantemente, por in-termédio de reuniões, envolvendo os gestores da instituição, os representantes da sociedade impactada e, se for o caso, pessoas especializadas no assunto téc-nico objeto da controvérsia. Esses eventos permitem perceber em que medida a atuação do Ministério Público pode contribuir para remover cargas de inércia burocrática ou de inércia política, abrindo espaços para que as transformações e a melhoria da instituição acompanhada ocorram. Muitas vezes, essas reuniões geram microacordos que, registrados em ata, constituem título executivo (art. 784, IV, do CPC) e servem para promover avanços graduais no comportamento institucional. Esses compromissos, ainda que parciais ou provisórios, são exce-lentes instrumentos para produzir melhoria institucional progressiva e contínua.

Nada impede que, ao longo do procedimento administrativo, condutas específicas sejam apuradas em inquéritos civis paralelos. O importante é que o ambiente do PA seja dedicado à discussão do problema estrutural e dos caminhos para a sua melhoria, não para a apuração de responsabilidades.

3.3 Recomendação estrutural

A recomendação é um ato unilateral, por intermédio do qual o Ministério Público informa a alguém qual é a sua visão acerca da legalidade ou ilegalidade de uma conduta e recomenda que ela seja modificada. O ato tem previsão no art. 6º, XX, da Lei Complementar 75/93: “Compete ao Ministério Público da União: [...] expedir recomendações, visando à melhoria dos serviços pú-blicos e de relevância pública, bem como ao respeito, aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis”.

Como se percebe, a recomendação é um instrumento eminentemente promocional. Ela pretende a mudança de um comportamento para o futuro, melhorando a atividade pública existente. Não se parte, necessariamente, da premissa de um ilícito, mas da necessidade de melhora. Em razão desse perfil, a recomendação também pode ser utilizada para promover a implementação de medidas estruturais.

O CNMP regulamentou a recomendação por intermédio da Resolução 164/2017, ressaltando o seu caráter persuasivo, não coercitivo. Trata-se de uma declaração simbólica e solene de que o Ministério Público considera que determinada realidade deve ser alterada. Coloca-se, com isso, uma espada de Dâmocles sobre o gestor: ou cumpre a recomendação, ou convence o Minis-tério Público de que seu teor está equivocado, ou se arrisca a ser processado e responsabilizado, inclusive pessoalmente, pelo seu comportamento. Uma das vantagens da recomendação, aliás, é exatamente evitar a alegação de ignorância

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quanto ao fato, em uma ação futura. Assim, a recomendação não se aproxima de um conselho, como pode parecer, à primeira vista. Na verdade, ela está mais para um “quem avisa, amigo é”.

No entanto, no contexto de uma mudança estrutural, complexa e policêntrica, dificilmente uma recomendação lavrada unilateralmente será eficaz. Problemas complexos não existem porque alguém não fez o que deveria fazer, mas pela confluência de uma série de fatores, intencionais e acidentais, que desembocam no comportamento institucional indesejado. Apesar disso, é comum que se encontrem recomendações que pretendem que o gestor público apresente a solução para um problema grave, em curtíssimo prazo, adotando uma espécie de lógica de “só faltava alguém mandar”. Essas recomendações têm baixa efetividade e contribuem pouco para a melhoria dos comportamentos institucionais.

As recomendações, porém, podem cumprir bem o papel de remover obstáculos ao desenvolvimento da melhoria estrutural. No contexto de um inquérito civil ou de um procedimento administrativo sobre um problema estrutural, é comum que se percebam embaraços que, se resolvidos, poderão ajudar a encaminhar a situação para melhor. Também é frequente que os ges-tores, que lidam diretamente com o problema, tenham boa-vontade, planos e interesse em produzir uma solução, mas sejam incapazes de promovê-la, porque as estruturas burocráticas são amarradas demais, ou porque há objeções políticas à realização daquela providência.

Nesse ponto, uma recomendação focada no cerne do problema, even-tualmente, combinada com os próprios gestores, pode ser o propulsor da transformação. Por exemplo, uma recomendação para a alocação de verbas em determinada política, na lei orçamentária do ano seguinte, pode influenciar o legislativo a priorizar aquela atividade. Ou uma recomendação para que seja feita a licitação para implementar um determinado serviço. Não se pode imaginar que a recomendação será a causa eficiente da solução do problema. Ela poderá auxiliar no rompimento de amarras que impediam a transformação, que já era impelida também por outros atores políticos e sociais.

Um interessante exemplo concreto pode ser apresentado a partir de uma atuação do Ministério Público Federal, relacionada à reforma estrutural dos serviços públicos de saúde. A prestação de serviços de saúde pública e a sua respectiva qualidade é um dos problemas estruturais mais sérios do Estado brasileiro, para o qual não existe uma solução simples. No entanto, por volta do ano de 2012, o MPF constatou que uma das dificuldades da saúde pública decorria do fato de que os profissionais médicos, que são, usualmente, os mais bem-remunerados do serviço público municipal, não cumpriam a carga horária