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Projeto de Lei Geral das Polícias Civis: qual é o tipo de PolíciaCivil que necessitamos?por Bruno Taufner Zanotti[1]

1. INTRODUÇÃO

Há muito tempo, policiais civis de todo o Brasil clamam por uma uniformização no que diz respeitoà regulamentação das regras relativas ao funcionamento e organização da Polícia Civil. É possívelque esse clamor finalmente chegue a um fim, em razão do pedido de prioridade do Ministro daJustiça no trâmite do Projeto de Lei nº 1.949/07.

Sem dúvida, trata-se de um avanço. Como mencionamos em artigo anterior, devemos evoluir ebuscar, no horizonte das possibilidades jurídicas, o tipo de atuação profissional que se mostra maisapropriado ao paradigma que vivemos hoje e que qualificamos como mais adequado para oexercício da atividade policial dentro de um Estado Democrático de Direito.

O Projeto de Lei nº 1. 949/07 avança, por exemplo, ao tratar da Academia de Polícia. O projetoqualifica a Academia de Polícia não só como um órgão voltado para a estrutura interna da PolíciaCivil para a qualificação dos seus membros, mas a institui como um órgão de pesquisa e produçãoacadêmica de doutrina voltado para a atividade policial. Não há dúvida da grande relevância desseavanço, em especial por, atualmente, ser extremamente necessária a produção acadêmica voltadapara a atividade policial. Citam-se, v.g., as previsões do projeto para a Academia de Polícia sobre(a) a função de desenvolver a produção doutrinária e uniformidade de procedimentos didáticos epedagógicos; (b) a função de manter o intercâmbio com as congêneres federal , do Distrito Federale estaduais e com instituições de ensino e pesquisa, nacionais e estrangeiras, sem prejuízo dascompetências do Ministério das Relações Exteriores, visando ao aprimoramento das atividades edos métodos pedagógicos utilizados; (c) a função de produzir e difundir conhecimentos acadêmicosde interesse policial; e (d) a função de observar as exigências e diretrizes educacionais estabelecidasna legislação pertinente, para que funcione como instituição habilitada ao ensino, pesquisa eextensão de nível superior.

O Projeto de Lei também avança no que diz respeito à qualificação do Delegado de Polícia comocarreira jurídica ao exigir como pré-requisito para a investidura no cargo o curso de bacharelado emDireito. Ressalta-se que o trabalho desenvolvido pelos Delegados de Polícia é considerado comoatividade pertencente à área do Direito, não por uma construção doutrinária ou ficção legislativa,mas, sim, com fundamento na natureza e essência de sua atividade.

Outro importante avanço do Projeto de Lei possui relação com a possibilidade de criação de cargospúblicos específicos para as atividades-meio da polícia civil (quadro administrativo), comoadministrador, contador, arquivologista, técnico em informática, entre outros, para que todas aspessoas que sejam, de fato, policiais possam se dedicar exclusivamente a esse mister.

No entanto, após uma análise do conteúdo do projeto de lei, ficamos com a impressão de que algomais pode ser feito em termos de estruturação da Polícia Civil, em especial por esta ser uma lei decaráter nacional. Os motivos para essa conclusão apontamos abaixo e tratamos de forma maisaprofundada no livro “Delegado de Polícia em ação: teoria e prática do Estado Democrático deDireito”, a ser publicado em breve pela Editora Juspodivm, em coautoria com Cleopas IsaíasSantos.[2]

Como bem coloca Lenio Streck[3], não é porque um relógio parado acerta a hora duas vezes ao diaque ele não necessite de ser consertado. Por isso, analisamos abaixo diversos pontos do citadoProjeto de Lei que devem avançar e que necessitam de ser mais bem trabalhados pelos legisladoresdentro de uma perspectiva discursiva com as organizações nacionais da Polícia Civil dos Estados.

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2. INAMOVIBILIDADE

O Projeto de Lei deixa de prever a inamovibilidade para os Delegados da Polícia Civil, uma vez quese limita a estabelecer que o policial civil poderá ser removido de ofício, desde que de maneirafundamentada. Afinal, qual seria a relevância da inamovibilidade para os Delegados da PolíciaCivil?

O Delegado de Polícia é um importante agente responsável pela segurança pública, vinculado adiversos órgãos políticos como o Governador do Estado e a Secretaria de Segurança Pública. AAutoridade Policial, em sua atividade-fim, não pode sofrer ingerências políticas de outrasautoridades, que muitas vezes tentam manipular a investigação policial com base nos seus interessespessoais.

É dentro desse contexto político que se visualiza a relevante garantia da inamovibilidade. UmaAutoridade Policial, que deve atuar de forma imparcial e buscar os meios mais adequados para aresolução de um caso concreto, não pode sofrer ingerências externas.

Magistrados e Promotores de Justiça possuem a prerrogativa constitucional da inamovibilidade, oque lhes concede liberdade e independência no exercício das suas funções. Essa prerrogativa, decerto modo, acaba prejudicada quando não é estendida ao único presidente e condutor do inquéritopolicial, o qual será responsável pela produção probatória que servirá de base para o oferecimentoda denúncia e que, em muito, será utilizada como parâmetro para a ação principal.

Certamente, trata-se de uma inamovibilidade limitada, uma vez que os juízes, por exemplo, podemser removidos, colocados em disponibilidade ou aposentados por interesse público, desde que pordecisão da maioria absoluta do respectivo tribunal ou do Conselho Nacional de Justiça, assegurada,nas duas hipóteses, a ampla defesa (art. 93, inciso VIII, da Constituição Federal).

A questão está sendo abordada no Projeto de Emenda Constitucional nº 293 de 2008, mas nadaobsta e, na verdade, sugere-se que a inamovibilidade seja implementada nesse Projeto de Lei. Umaemenda constitucional não constitui pré-requisito para esta prerrogativa que pode ser, inclusive,prevista em portaria, como fez o Estado de São Paulo na Portaria DGP-22/10.

3. INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL:

O projeto de Lei é silente acerca do Delegado de Polícia possuir independência funcional. Nãonegamos que essa prerrogativa seja decorrência implícita do atual sistema constitucional vigente,como bem colocam Fábio Scilar e Luiz Flávio Gomes[4] e como abordamos no livro Delegado dePolícia em Ação; contudo, a previsão legal deixaria explícito algo que já se encontra implicitamenteno ordenamento jurídico brasileiro.[5]

4. PRERROGATIVAS PROFISSIONAIS: COMUNICAÇÃO DA INVESTIGAÇÃO EOITIVA COM HORA MARCADA

Só para citar duas hipóteses de prerrogativas funcionais que deveriam ser estendidas ao Delegadode Polícia, podemos citar a necessidade de se comunicar uma investigação policial contra umDelegado de Polícia ao Chefe da Polícia Civil e a prerrogativa do Delegado de Polícia ser ouvido,em qualquer processo ou procedimento, em dia, hora e local previamente ajustados com aautoridade competente.

Um ponto que o Projeto de Lei nº 1.949/07 pouco avança diz respeito às prerrogativas acerca dacomunicação de eventual investigação em trâmite contra um Delegado de Polícia, atualmenteprevista para membros da magistratura, do Ministério Público e para a Defensoria Pública. A títulode exemplo, segue, abaixo, a que modalidade de prorrogativa estamos nos referindo:

Art. 128 da LC 80/94. São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública do Estado,dentre outras que a lei local estabelecer:

Parágrafo único. Quando, no curso de investigação policial, houver indício de prática de

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infração penal por membro da Defensoria Pública do Estado, a autoridade policial, civilou militar, comunicará imediatamente o fato ao Defensor Público Geral, que designarámembro da Defensoria Pública para acompanhar a apuração.

A finalidade da disposição legal pode ser verificada pela simples leitura do dispositivo legal, qualseja, busca-se majorar a fiscalização da investigação criminal, pois, além da Autoridade Policial quea preside, haverá um acompanhamento de perto pela instituição que possui um dos seus membrosinvestigados. Nesse contexto, eventual previsão legal desse sentido para o Delegado de Polícia teriapor fim impossibilitar que a investigação fosse utilizada com qualquer viés político-repressivo, emespecial para “minar” a independência funcional dos Delegados de Polícia.

Não há margens para dúvida de que determinados órgãos – Delegados de Polícia, Magistratura,Promotores de Justiça e Defensores Públicos –, por exercerem atividade ímpar na Justiça brasileira,devem ter sua atuação preservada contra pressões políticas, tal como se busca com a citada previsãolegal.

No mesmo sentido é a questão referente à prerrogativa funcional do Delegado de Polícia ser ouvido,em qualquer processo ou procedimento, em dia, hora e local previamente ajustados com aautoridade competente, do mesmo modo como esse prerrogativa atualmente é prevista para aMagistratura, Ministério Público e Defensoria Pública.

Em síntese, podemos perder uma excelente oportunidade para tratarmos das prerrogativas dosDelegados da Polícia Civil, em especial porque a lei não dedica qualquer artigo sobre essa relevantetemática.

5. CONCLUSÃO:

Não podemos negar os diversos avanços que o Projeto de Lei nº 1.949/07 proporciona em termos demelhorias para a Polícia Civil. Não obstante, o Projeto necessita ser mais bem debatido dentro deuma ideia de diálogo constante com as entidades de classe de âmbito nacional e estadual. Comobem coloca Habermas, “o procedimento democrático deve fundamentar a legitimidade do direito”.[6]

A democracia, com base em tal fundamento, não deve focar no resultado, mas na consolidação dascondições procedimentais que possibilitem a participação dos afetados (os policiais civis, no caso)no debate que construirá a decisão final (a lei). Esta, portanto, é decorrência do debate eaprofundamento das ideias nas arenas de discussão (Parlamento). A produção legítima do direitodepende disso.

A consolidação de uma democracia voltada para o procedimento permite que o direito não seja umevento exclusivamente estatal (do Poder Legislativo), mas que dele façam parte todos que compõemuma sociedade aberta de intérpretes[7], como os policiais civis. Com isso, o pluralismo presente nasociedade passa a incorporar a construção dos enunciados normativos do Poder Legislativo.

É nesse contexto que, não só se mostra importante, mas se mostra imprescindível a integração detodos os policiais civis na consolidação do Projeto de Lei nº 1.949/07 como um instrumento devalorização e organização da Polícia Civil em âmbito nacional. Será que uma audiência pública noCongresso Nacional não seria um instrumento legítimo e democrático para se alcançar tal fim?

Enquanto a Polícia Civil – em especial os Delegados de Polícia – ainda caminha a passos lentos navalorização da instituição, a Defensoria Pública, cada vez mais, mostra-se como um órgão maisorganizado e voltado para o seu crescimento concreto, como se verifica pelo pedido de urgência notrâmite da PEC nº 487/05, que prevê, entre outros direitos, (a) a vitaliciedade; (b) a criação eextinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público, a políticaremuneratória e os planos de carreira, sem o intermédio do Poder Executivo; e (c) a necessidade deescolha do defensor público geral em razão da nomeação pelo Presidente da República com baseem lista tríplice encaminhada pela Defensoria Pública, mediante votação dentre os integrantes da

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carreira, maiores de 35 anos. São conquistas necessárias e imprescindíveis para a DefensoriaPública, como também devem ser para a Polícia Civil. Por isso, ficam os questionamentos: O que oPoder Legislativo tem feito para melhorar a investigação policial no Brasil? A quem interessa umapolícia civil amordaçada por um controle político? E mais, o que você está fazendo pela melhoriada Polícia Civil? E, ainda, o que as entidades de classe estão fazendo pela Polícia Civil? E, por fim,como podemos consertar esse relógio parado?

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[1] Aluno especial no Doutorado em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direitode Vitória (FDV). Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV. Especialista em DireitoPúblico pela FDV. Professor de Direito Constitucional e Direito Penal. Professor da especializaçãoem Direito Público da Faculdade Estácio de Sá. Delegado da Polícia Civil do Estado do EspíritoSanto. Autor dos livros “Controle de Constitucionalidade para Concursos” e, no prelo, “Delegadode Polícia em Ação: teoria e prática no Estado Democrático de Direito”. Autor do blog sobrecontrole de constitucionalidade www.brunozanotti.blogspot.com.br e colunista do sitehttp://www.delegados.com.br.

[2] Sobre o autor, conferir o seu currículo lattes no linkhttp://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4294775D4.

[3] Disponível em http://www.conjur.com.br/2013-mar-21/senso-incomum-fontes-direito-rotulos-agua-mineral. Acessado em 22/03/2013.

[4] GOMES, Luiz Flávio e SCILAR, Fábio. Investigação preliminar, polícia judiciária eautonomia. 2008. Disponível em <www.lfg.com.br>.

[5] O tema também consta do Projeto de Emenda Constitucional nº 293 de 2008.

[6] HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de FábioBeno Siebeneichler. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a. v. 1, p.191.

[7] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: A sociedade aberta de intérpretes daConstituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição.Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1997, p. 20-22