PROTEÇÃO SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL NO BRASIL:...

15
1 PROTEÇÃO SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL NO BRASIL: REFLEXÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE PROTEÇÃO SOCIAL E PRÁXIS DO ASSISTENTE SOCIAL Ana Carolina Becker Nisiide 1 Maria Isabel Formoso Cardoso e Silva Batista 2 RESUMO: Este texto bibliográfico objetiva discutir criticamente a inter-relação entre a proteção social primária e secundária e, a práxis do assistente social no Brasil a elas relacionada. É perceptível um processo de fragilização da proteção social devido à precarização da política social, à instabilidade dos vínculos de sociabilidade cotidiana e à responsabilização da sociedade civil como fonte privada de proteção social, fatores decorrentes do modo de estruturação da sociedade capitalista. Frente a este quadro, a práxis do assistente social deve ser orientada pelas categorias trabalho e “questão social”, embasada no método, na teoria e na história para responder qualificadamente às demandas do usuário, atuando para construção de um novo projeto societário. PALAVRAS-CHAVE: Política social; proteção social; “questão social”; trabalho. INTRODUÇÃO Entendendo que, sob diferentes formas de expressão, não existiu sociedade humana que não desenvolveu algum tipo de proteção social aos seus membros; seja em termos de vínculos de solidariedade ou através de práticas institucionalizadas, a prática protetiva faz parte da história da humanidade. Da mesma forma a práxis do assistente social perpassa historicamente a proteção social, tendo-se diferentes interpretações sobre esta relação. A primeira, toma a proteção social como campo inerente da prática profissional na atuação de situações de vitimização; a segunda, toma-a como campo de ampliação dos direitos humanos e sociais; e a terceira, coloca-a no campo das contradições entre capital e trabalho na sociedade de mercado (SPOSATI, 2013). É necessária a compreensão da dupla face da proteção social, seja como prática vinculada à sociabilidade cotidiana, seja como prática institucionalizada através de políticas sociais, ambas para amparo e proteção dos sujeitos. Todavia, com a atual política econômica neoliberal, os sistemas de proteção social encontram-se cada vez 1 Assistente Social, mestranda do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). E-mail: [email protected]. 2 Psicóloga, Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).

Transcript of PROTEÇÃO SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL NO BRASIL:...

1

PROTEÇÃO SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL NO BRASIL: REFLEXÕES SOBRE A

RELAÇÃO ENTRE PROTEÇÃO SOCIAL E PRÁXIS DO ASSISTENTE SOCIAL

Ana Carolina Becker Nisiide1

Maria Isabel Formoso Cardoso e Silva Batista2

RESUMO: Este texto bibliográfico objetiva discutir criticamente a inter-relação entre a proteção

social primária e secundária e, a práxis do assistente social no Brasil a elas relacionada. É perceptível

um processo de fragilização da proteção social devido à precarização da política social, à instabilidade

dos vínculos de sociabilidade cotidiana e à responsabilização da sociedade civil como fonte privada de

proteção social, fatores decorrentes do modo de estruturação da sociedade capitalista. Frente a este

quadro, a práxis do assistente social deve ser orientada pelas categorias trabalho e “questão social”,

embasada no método, na teoria e na história para responder qualificadamente às demandas do usuário,

atuando para construção de um novo projeto societário.

PALAVRAS-CHAVE: Política social; proteção social; “questão social”; trabalho.

INTRODUÇÃO

Entendendo que, sob diferentes formas de expressão, não existiu sociedade humana

que não desenvolveu algum tipo de proteção social aos seus membros; seja em termos de

vínculos de solidariedade ou através de práticas institucionalizadas, a prática protetiva faz

parte da história da humanidade. Da mesma forma a práxis do assistente social perpassa

historicamente a proteção social, tendo-se diferentes interpretações sobre esta relação. A

primeira, toma a proteção social como campo inerente da prática profissional na atuação de

situações de vitimização; a segunda, toma-a como campo de ampliação dos direitos humanos

e sociais; e a terceira, coloca-a no campo das contradições entre capital e trabalho na

sociedade de mercado (SPOSATI, 2013).

É necessária a compreensão da dupla face da proteção social, seja como prática

vinculada à sociabilidade cotidiana, seja como prática institucionalizada através de políticas

sociais, ambas para amparo e proteção dos sujeitos. Todavia, com a atual política econômica

neoliberal, os sistemas de proteção social encontram-se cada vez

1 Assistente Social, mestranda do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Oeste do

Paraná (UNIOESTE). E-mail: [email protected]. 2 Psicóloga, Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP).

Professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).

2

mais fragilizados, devido à privatização, à sobreposição do econômico sobre o social e

à omissão do Estado na consolidação de direitos. Frente a esse contexto, Viana e

Levcovitz (2005) afirmam a importância da rediscussão da proteção social para que se possa

avançar e superar uma visão apenas caritativa e paliativa da mesma.

Destarte, propõe-se analisar, aqui, o processo sócio-histórico que caracteriza a

proteção social, delimitando-se a base interpretativa que será utilizada para

compreendê-la e dando maior ênfase à realidade brasileira. A partir do entendimento da

proteção social é possível inscrever a atuação do assistente social tanto no olhar para

sociabilidade cotidiana dos trabalhadores, quanto na conquista de Direitos Humanos e sociais

universais e na garantia de direitos por meio das políticas sociais.

Para tanto será utilizada a análise crítica, fundamentada no método materialista

histórico dialético, que tendo como norte a categoria totalidade visa a partir do entendimento

da realidade refletir sobre ela para que possa ser modificada.

CONTEXTUALIZANDO A PROTEÇÃO SOCIAL

A tarefa de conceituar e delimitar a proteção social não se faz sem dificuldades, e nem

é possível chegar a uma única definição ou sentido ideológico. Viana e Levcovitz (2005, p.

17) apontam que a proteção social consiste “na ação coletiva de proteger indivíduos contra os

riscos inerentes à vida humana e/ou assistir necessidades geradas em diferentes momentos

históricos e relacionadas com múltiplas situações de dependência”. Os mesmos autores,

tomando por base Girotti afirmam que a proteção social e a política social estão

relacionadas historicamente às necessidades de “segurança individuais e familiares que

podem ser satisfeitas pela intervenção de uma pluralidade de atores públicos e privados,

capazes de prover sob títulos diversos e graus variados de eficácia, a tutela e o sustento dos

sujeitos mais débeis” (GIROTTI, 2000 apud VIANA; LEVCOVITZ, 2005, p. 15).

Todavia, Castel (1999) sistematiza e delimita no espaço e no tempo a proteção social,

trazendo uma visão ampla a partir dos atores sociais envolvidos neste processo sejam estes

públicos ou privados. Desse modo, toma-se de empréstimo nesse texto, a conceituação de

Castel (1999) para balizar o entendimento da proteção social.

3

De acordo com esse autor , na sociedade feudal as redes de solidariedade e proteção

eram reguladas pelas interdependências tradicionais. Os desfiliados3, que por algum motivo

como a orfandade ou a doença se desatrelavam dessa coesão grupal, com a ausência de

instituições especializadas tinham sua proteção assegurada pelos próprios recursos da

comunidade. Estas redes de interdependência, que não são mediadas por instituições, mas

pelo pertencimento do indivíduo a um grupo familiar, de vizinhança e de trabalho são

caracterizadas como sociabilidade primária ou como proteção social primária.

Neste período histórico, os feudos eram compreendidos como espaços de proteção e

de dependência, estabilizados por relações de horizontalidade quando compreende a

comunidade rural e de verticalidade quando compreende a sujeição ao senhor feudal. É a

partir desta forma de organização que o indivíduo se inscreve em seu território, como

pertencente a este sistema autorregulado pela solidariedade e pela coerção de linhagem e

vizinhança. Marcada pela guerra e pela fome a precariedade é generalizada, mas não chega a

caracterizar uma “questão social”4, pois os mais carentes não eram fator de desestabilização

frente à rígida organização desta estrutura e a resolução da desfiliação dá-se a partir do

pertencimento comunitário (CASTEL, 1999).

Com a decomposição da sociedade feudal surge a moderna problematização do social.

Esta transformação é demarcada por Cambi (1999, p196) como o declínio da Idade Média

enquanto “sociedade estática, autoritária, tendencialmente imodificável mesmo nas suas

profundas, e constantes, convulsões internas” e a entrada na modernidade. A entrada na

modernidade é caracterizada por Cambi (1999) como período de revolução no âmbito

geográfico (com as grandes navegações ocorrem descobrimentos e colonização novas terras);

econômico (nasce o sistema capitalista, baseado no cálculo econômico, no dinheiro e na

mercadoria, na exploração de recursos e na produtividade); político (nascimento do Estado-

nação e um Estado-patrimônio nas mão de um soberano); social (nasce a burguesia que

promove um novo processo econômico e uma nova concepção de mundo) e ideológico-

3 Castel não utiliza o termo exclusão social por considerá-la banalizada, não mais representando o

movimento sócio-histórico. Assim, se vale do termo desfiliado para se dirigir aos indivíduos

vulneráveis, que vivem situações limites. 4 Para Netto (2001, p.45) “a ‘questão social’ está elementarmente determinada pelo traço próprio e peculiar da

relação capital/trabalho – a exploração”. Compreendendo a importância deste fundamento para o Serviço

Social, essa discussão será melhor desenvolvida no capítulo seguinte.

4

cultural (com a laicização emancipa-se a mentalidade e com a racionalização aprofunda-se

saberes baseados no livre uso da razão; o iluminismo caracterizará este novo modelo de

mentalidade e de cultura).

Estas transformações sociais, políticas, econômicas e culturais exigem “o atendimento

aos carentes, o que constitui objeto de práticas especializadas” (CASTEL, 1999, p.57). A este

desatrelamento da função protetiva do pertencimento familiar, da vizinhança e do trabalho

para um atendimento assistencial cada vez mais sofisticado, especializado, tecnicista,

discriminatório e institucionalizado, Castel (1999) denominou sociabilidade secundária ou

proteção social secundária, reforçando que até hoje estes pontos organizam o campo sócio

assistencial.

Portanto, é clara a relação da proteção social secundária com o surgimento do

capitalismo. Esta assunção da proteção social secundária é definida por Viana e Levcovitz

(2005, p.18) como função clássica da proteção social e a coloca historicamente

entre os séculos XIX e XX como um “compartilhamento dos riscos gerados pelas situações de

dependência entre Sociedade, Mercado e Estado”, ou seja, pelas intervenções estatais na área

da política social, para dar respostas às demandas sociais fruto da contradição entre capital e

trabalho.

No Brasil, onde se estrutura o capitalismo tardiamente, o primeiro processo de garantia

de direitos data da década de 1930 com o governo populista de Getúlio Vargas, que

centralizava o poder político e administrativo, favorecendo o processo de industrialização e

acumulação capitalista. Consequentemente, a luta de classes e as expressões da “questão

social”, em especial a pauperização e as precárias condições de vida, são expostas e tornam-se

questões políticas. O Estado é convocado a intervir proporcionando condições para produção

e reprodução social, antecipa as demandas dos trabalhadores instituindo os primeiros direitos

trabalhistas.

Ao fazer um resgate histórico da legislação social, Rizotti (2014) mostra que no Brasil

houve muitos fluxos e refluxos no reconhecimento de direitos sociais e no campo da proteção

social; além disso o poder executivo caminhou em descompasso na efetivação destes direitos,

dificultando a concretização dos avanços conquistados.

5

Apenas com a Constituição de 1988, a partir de intensos movimentos sociais para

garantia de direitos e redemocratização do país, é que o Estado ampliou seu sistema de

proteção social, passando a contemplar também os desempregados. A constituição do Estado

Democrático de Direito que afirma ter como um de seus

fundamentos a dignidade humana e que no Art. 3. da Constituição Federal de 1988

coloca como objetivos a constituição de uma sociedade livre, justa e solidária, promovendo o

bem estar para todos e a erradicação da pobreza, da marginalização e da redução das

desigualdades; institui o sistema de seguridade social como importante instrumento de

proteção social.

A seguridade social, fundada no tripé da previdência, saúde e assistência social,

conforme Pierdoná (2007), é garantia e condição de vida a todos através da união destes três

direitos sociais, os quais, dentro de sua área de atuação, protegem os seus destinatários e

assim, no conjunto, todos serão protegidos.

Contudo, não é possível compreender a seguridade social apenas conforme se expressa

em lei, ou seja, saúde, assistência social e previdência. A proteção social do usuário

compreende a garantia efetiva de direitos através de políticas sociais de qualidade que

englobem os mais diversos âmbitos como habitação, educação, cultura, igualdade racial e de

gênero, entre outros, que garantam mais do que a mera manutenção da produção e

reprodução da vida cotidiana.

Outro ponto a ser destacado refere-se aos objetivos para o estabelecimento da

sociedade proposta na Constituição Federal de 1988. Fala-se em redução das desigualdades e

não em sua erradicação; promete-se o fim da pobreza através de uma sociedade “mais” justa,

livre e solidária. Todavia, é claro que esse processo não é possível na sociedade capitalista

fundada na exploração do trabalho, que necessita do exército de reserva, pautada no consumo

exacerbado, na alienação e repleta de contradições e de embates entre capital e trabalho

expressas na “questão social”. Neste sentido, “o capital não tem, por isso, a menor

consideração pela saúde e duração de vida do trabalhador, a não ser quando é coagido pela

sociedade a ter consideração" (MARX, 1996, p. 383), sendo necessária a constituição de uma

nova sociedade comum, onde seja possível a efetiva divisão da riqueza.

6

Além disto, enquanto o Brasil estava no processo de implantação do Estado

democrático de direito, a ordem econômica internacional já declinava na manutenção do

Estado de Bem-Estar Social. Destarte, o Brasil, que não chegou a implantar o Estado de Bem-

Estar Social, passa a gerir e ser gerido pela política neoliberal,

pelas estratégias de mundialização e financeirização do capital, com a sua direção

privatizadora e focalizadora das políticas sociais, enfrentando a “rearticulação do bloco

conservador” com a eleição de Fernando Collor que busca de diversas formas obstruir

a realização dos novos direitos constitucionais. (YAZBEK, 2014, p.17).

Este processo de desresponsabilização do Estado se reflete diretamente no

sistema de proteção social que, “subordinado às instituições políticas e econômicas nacionais,

desenvolveu-se marcado pelo papel hegemônico que o modelo de desenvolvimento

conservador desempenhou na trajetória brasileira” (RIZOTTI, 2014), com políticas sociais

enviesadas pelo controle e pela repressão dos movimentos sociais e por uma perspectiva de

privatização e de retomada da filantropia, colocando na sociedade civil a responsabilidade

pelas ações de garantia de direitos que são do Estado.

Concomitantemente às dificuldades apresentadas para efetivação da proteção social

secundária, devido à precariedade de acesso à política social além da regulamentação jurídica,

o capitalismo e as determinações neoliberais também incidem diretamente na proteção social

primária.

De acordo com Teixeira (2010) a família, constituindo-se locus essencial da proteção

primária, é resgatada e se torna foco das políticas sociais. Fato que não necessariamente

representa a superação das fragilidades dos serviços ou o efetivo acesso e garantia de

direitos, mas que coloca a família como “parceira” do Estado na proteção social, diminuindo

as responsabilidades estatais e as colocando no âmbito privado. Isso incide no aumento das

responsabilidades familiares, reafirmando obrigações femininas de proteção social primária e

dispensando ou retardando a montagem da proteção social secundária (COSTA, 2002).

Ao discutir o lugar que a família ocupa na política social, Carvalho (2002, p.16)

retoma que com o Estado de Bem-Estar Social a família “pareceu ser descartável”, na medida

em que o Estado de direito e o mercado promoviam a ideologia do pleno emprego e de

políticas sociais de qualidade, que garantissem a partilha mais equitativa da riqueza. Em 1990,

com a reforma do Estado, esta ilusão cai por terra e o cenário das redes de sociabilidade e

7

solidariedade embasadas na família são convocadas como parceiras na partilha da

responsabilidade da proteção social.

No Brasil, o cenário tem suas peculiaridades devido à implantação de um pluralismo

de bem-estar e não de um Estado de bem-estar. Este modelo plural de bem- estar deriva de

uma partilha de responsabilidades entre o Estado, o mercado, e a sociedade civil,

especialmente as organizações voluntárias e caritativas e a rede familiar. Essa partilha de

responsabilidades coloca o Estado como setor oficial da proteção social, que oferece o recurso

de poder e de coação; o mercado como setor comercial com o recurso do capital; e a

sociedade como setor voluntário e recurso de solidariedade, tanto formal através das

organizações não governamentais (ONGs) quanto informal através de redes de solidariedade

e dos vínculos de pertença como a família e a vizinhança (ABRAHAMSON, 1992 apud

PEREIRA, 2010, p.32).

Com esta partilha o Estado cada vez mais se afasta de suas responsabilidades com as

políticas sociais. O mercado quando pratica a filantropia é em busca de marketing, preferindo

investir na sua especialidade de incentivo ao consumo e aumento de lucro e não em

necessidades sociais. Cada vez mais fica a cargo da sociedade e da família um papel

voluntarista ou de fonte privada de proteção social (PEREIRA, 2010).

Dentro de um contexto de idealização social espera-se que a família seja espaço de

produção de “cuidados, proteção, aprendizado dos afetos, construção de identidades e

vínculos relacionais de pertencimento, capaz de promover melhor qualidade de vida a seus

membros e efetiva inclusão na comunidade e sociedade em que vivem” (CARVALHO, 2002,

p. 15). Todavia, estas funções atribuídas à família podem ou não ser efetivadas, afinal, a

família pode ser espaço de proteção ou desproteção; de fortalecimento ou esfacelamento do

sujeito.

A família é dinâmica, espaço de organização – desorganização – reorganização. Está

perpassada por hierarquias de poder, por diversidades de tipos de famílias. A família não é

uma ilha, sobre ela incidem determinações públicas, exigências sociais, sendo complexo

delimitar uma linha rígida entre Estado, mercado e família, pois essa divisão é porosa.

Portanto, “o objetivo da política social em relação à família, ou ao chamado setor informal,

não deve ser o de pressionar as pessoas para que elas assumam responsabilidades além de

8

suas forças e de sua alçada, mas o de oferecer-lhes alternativas realistas de participação

cidadã” (JOHNSON, 1990 apud PEREIRA, 2010, p.40). Para tanto, o Estado deve assumir a

sua prioridade na garantia de direitos, reinstitucionalizando e reprofissionalizando as políticas

de proteção social e levando-as a sério (PEREIRA, 2002).

Com isso, não se desconsidera a importância dos vínculos de solidariedade. Torna-se

tarefa complexa, mas nem por isso menos cara, o sugerido por Costa (1995b) como prática do

Serviço Social, ou seja, o resgate no interior dos processos sociais dos vínculos de

solidariedade, que fortaleçam as relações humanas, sociais e comunitárias.

Em contraponto, Iamamoto (2007) reafirma a importância do olhar para sociabilidade

cotidiana dos trabalhadores, mas alerta que a práxis direcionada apenas para

experiências autogestionárias em tempo neoliberal serve aos interesse do poder, coadunando

para desresponsabilização do Estado, responsabilização da sociedade civil e privatização, ou

seja, colaboram com o desmantelamento da política social e com o reforço do pluralismo de

bem-estar.

É neste espaço de contradições que a atuação do assistente social se dá, perpassada

pelas inter-relações da proteção social primária e secundária, das contradições entre

o público e o privado, fruto do modo de estruturação social, político e econômico da

sociedade capitalista.

PROTEÇÃO SOCIAL, SERVIÇO SOCIAL E PRÁXIS PROFISSIONAL

O Serviço Social no Brasil surge para responder às expressões da “questão social” que

o início da industrialização coloca. É visto como vocação, prática caridosa das senhoras

burguesas, embasada nos ideais da Igreja Católica. Para Iamamoto (1997) além do exercício

da prática caridosa, o assistente social intervia ideologicamente na vida da classe

trabalhadora, promovia ações organizativas e educativas à família trabalhadora, de adaptação

dos problemas individuais. Essa atuação produzia efeitos políticos de enquadramento dos

trabalhadores e reforçava as relações de colaboração entre capital e trabalho. É neste sentido

que Costa (1995b) inscreve a proteção social na origem da profissão, enquanto ocupação

histórica dos assistentes sociais, prática cuidadora e de organização da vida individual e

coletiva no campo da reprodução social.

9

Na década de 1930, o Serviço Social surge e em 1949 é regulamentado e responde

como profissão especializada. No princípio, a formação se embasava em teorias

positivistas e conservadoras de origem franco-belga e, a partir de 1940 se funda na sociologia

conservadora norte-americana. O conservadorismo tem como alguns traços o retorno ao

passado experimentado como virtualmente presente; o incentivo a força da comunidade

fundada na ideia de “boa sociedade”, como forma de legitimar as relações sociais vigentes; a

valorização de elementos sagrados e irracionais em detrimento da razão; a radicalização da

individualidade afirmando os homens enquanto essencialmente desiguais; o pensamento

imediatista que valoriza os detalhes, os casos particulares, os dados qualitativos em

detrimentos da visão totalitária; entre outras características que embasaram

teoricamente o Serviço Social na sua origem (IAMAMOTO, 1997).

Somente na década de 1960, o Serviço Social brasileiro, em consonância com o

movimento Latino Americano, passa a questionar essas bases teóricas a partir da observação

das mudanças societárias e de sua prática, movidos pela luta contra o Serviço Social

tradicional. Este questionar leva, de acordo com Netto (2004), a três perspectivas para o

Serviço Social: a perspectiva modernizadora, que tinha como fundamento o funcionalismo e o

estruturalismo e baseava-se num reformismo conservador de viés desenvolvimentista; a

reatualização do conservadorismo que tinha por fundamento a fenomenologia e centralizava-

se nas dinâmicas individuais sob um viés psicologizante; e a intenção de ruptura que

tinha como fundamento a teoria marxista, baseava-se na leitura crítica da sociedade

capitalista e remete a profissão à consciência da luta de classes.

Portanto, é a partir desse movimento que o Serviço Social se compromete com a

ruptura com o conservadorismo e com as antigas bases profissionais e, mesmo com bases

teóricas da linha histórico crítica ainda incipientes, se posiciona politicamente e se aproxima

dos movimentos sociais. A renovação do Serviço Social no Brasil levou a um Serviço Social

laico, sintonizado com a realidade sociopolítica e ideoculturais brasileiras (NETTO,

2004). A partir de muitos debates, a profissão se apropria da teoria marxista e propõe uma

nova vertente balizadora da formação e atuação profissional, a teoria social crítica baseada no

método do materialismo histórico dialético.

10

Com o Movimento de Reconceituação e o novo projeto ético-político profissional,

discutia-se a base que fundamentaria e explicaria o trabalho do assistente social e,

consequentemente, sua formação. Na década de 1990 a discussão sobre a reformulação das

Diretrizes Curriculares do curso de Serviço Social é colocada em pauta. A categoria trabalho,

enquanto fundante do humano e demonstrativo de sua relação natural e eterna com a natureza

é considerada central na práxis do assistente social. Afinal, conforme Luckács (2010, p.46), o

trabalho deve ser tomado enquanto “base fundadora de socialização humana, mesmo da mais

primitiva – destaca tendencialmente o ser humano da esfera das necessidades biológicas [...]

tornando determinantes, em seu lugar, os pores teológicos”, portanto compreender a ontologia

do ser social pressupõe compreender sua relação íntima com o trabalho.

Porém, o embate se dava em relação à segunda categoria central. De um lado, a

discussão tinha por fundamento a “questão social” como produto das contradições entre

capital e trabalho. Para Iamamoto (2001, p.16),

a questão social diz respeito ao conjunto das expressões das desigualdades sociais

engendradas na sociedade capitalista madura, impensáveis sem a intermediação do Estado.

Tem sua gênese no caráter coletivo da produção, contraposto à apropriação privada

da própria atividade humana – o trabalho – das condições necessárias à sua realização,

assim como de seus frutos

Todavia, essa expressão surge sob uma perspectiva conservadora, como expressão de

“disfunções sociais” e de ameaças a “coesão social”. É por isso, que Netto (2001) afirma que

o movimento revolucionário passa a identificar nessa expressão uma transfiguração

conservadora e quando a usa o faz indicando esse traço mistificador. O autor passa a usá-la

com aspas, indicando que a “questão social” que o Serviço Social vem tratar remete a luta de

classes relacionada ao modo de produção da sociedade capitalista, desnaturalizando-a a

inserindo-a em um contexto sócio-histórico. Destarte, o assistente social historicamente é

convocado para atuar nas suas expressões, portanto fundamento básico de sua existência

enquanto profissão interventiva na realidade social.

De outro lado do debate, Costa (1995b) sustentava a proteção social como fundante do

Serviço Social e referência para atuação profissional. Para esta autora a proteção social é voltada

para famílias em situação de perda da autonomia em relação à sua sobrevivência, sendo

fundamentais iniciativas que resgatem os processos de ajuda mútua, de solidariedade e de

11

autonomia dos sujeitos. Afirma a proteção social como fio condutor para compreender a história e a

cultura da profissão. Critica a imprecisão no campo teórico das habilidades profissionais, baseados

em um legado marxista economicista, afirmando que o “curso de Serviço Social tem por objetivo

conhecer e compreender a experiência humana da proteção social com parte da realidade. Isso

imprime ao curso uma certa marca, delimita bastante mais seu campo” (COSTA, 1995a, p.61).

Quanto a esta tese da proteção social, Iamamoto (2007) tece críticas à autora, que

afirmou que o Serviço Social se baseia em concepções genéricas de um dado legado

economicista. Refuta esta afirmação que, ao restringir a teoria marxista ao econômico

expressa uma visão restrita de sua teoria e alastra reações neoconservadoras. Afinal, esta vai

além do legado econômico englobando a produção e a reprodução das relações sociais.

Portanto, Costa (1995a) imprime uma conotação de cuidado à prática protetiva. Da

mesma forma, Faleiros (2013) reafirma o cuidado na prática histórica do Serviço Social, em

um primeiro momento sob uma perspectiva funcionalista e adaptativa do sujeito e após o

Movimento de Reconceituação de uma forma crítica na estrutura e história do capitalismo.

Para o autor “o Serviço Social tem na sua dimensão relacional uma dimensão política geral de

defesa dos direitos e da justiça, e uma dimensão de cuidado, inclusive por estar em mais

interação com os mais explorados e dominados” (FALEIROS, 2013, p. 88).

Apesar de o cuidado ser parte da prática profissional e estar relacionado à proteção

social, não podemos perder de vista que este não explica a natureza profissional, a qual

deve ser vista além da caridade e da solidariedade para que possa dar conta das contradições

da realidade e do movimento capitalista, a partir de uma prática crítica.

O que vem explicar a natureza da profissão e dar fundamentos à sua práxis e à sua

formação, inclusive no que se compreende por proteção social, é o trabalho e a “questão social”.

A análise da “questão social” é indissociável do modo de produção e das relações

de trabalho. De acordo com Marx (1996, p. 210) a produção da miséria é correspondente à

acumulação do capital, onde “a acumulação da riqueza num pólo, é, portanto, ao mesmo tempo à

acumulação da miséria, tormento de trabalho, escravidão, ignorância, brutalização e degradação

moral no pólo oposto, isto é, do lado da classe que produz seu próprio produto como capital”.

Neste sentido, as expressões da “questão social” são reflexos da apropriação privada da riqueza

12

socialmente produzida, em uma sociedade onde poucos detêm os meios de produção e a maioria

sobrevive da venda de sua força de trabalho.

A “questão social” é reconhecida a partir da emergência da classe trabalhadora no

cenário político, reivindicando direitos. Foram as lutas sociais que extrapolaram “a questão

social para a esfera pública, exigindo a interferência do Estado para o reconhecimento e a

legalização dos direitos e deveres” (IAMAMOTO, 2001, p.17).

Portanto, são as contradições inerentes ao sistema capitalista, como resultado da

exploração do trabalho, que colocam a demanda e a necessidade de intervenção do Estado

com políticas protetivas.

Destarte, pensar a práxis do assistente social, enquanto relação teoria e prática, que

aspira mudanças societárias e um melhor porvir humano, é compreender que o Serviço Social

tem sua razão de existir na “questão social” e que, para construção de uma nova forma de

sociabilidade é necessário a extinção da propriedade privada. Só com a derrota do capital e

com a divisão equitativa da riqueza socialmente produzida, que se terá condição de suprimir a

escassez e superar a “questão social” (NETTO, 2001, p.49).

Desta forma, de acordo com a Lei das Diretrizes Curriculares aprovadas pela ABEPSS

(1996, p. 5)

O processo de trabalho do Serviço Social é determinado pelas configurações estruturais e

conjunturais da questão social e pelas formas históricas de seu enfrentamento, permeadas

pela ação dos trabalhadores, do capital e do Estado, através das políticas e lutas sociais.

Portanto, a práxis do assistente social deve ter sempre em vista as categorias trabalho e

“questão social”, fundados em uma formação em que a história, o método e a teoria são

indissociáveis. Desta maneira, haverá o embasamento necessário a uma práxis crítica e

qualificada, que possibilite o assistente social intervir nas expressões da “questão social” na

direção de construção de um novo projeto societário.

Este embasamento lhe possibilitará a leitura desse imbricado entre proteção

social primária e secundária, que como antes explicitado, se encontram fragilizados devido às

conformações da sociedade capitalista, em especial do Estado neoliberal. O assistente social

poderá, a partir do fundamento teórico metodológico, elaborar leituras de realidade que

13

ampliem seu olhar sobre a proteção social para além da prática do cuidado e, que o permitam

atuar na conquista e efetivação de Direitos Humanos e sociais universais.

CONCLUSÃO

No Brasil, com a Constituição Federal de 1988, é possível observar significativo

avanço na regulamentação de direitos sociais, ampliando a proteção social a partir de um

sistema abrangente de seguridade social.

Apesar dos avanços conquistados no sistema protetivo, é mister salientar que em

tempos de política neoliberal a precarização das políticas sociais e da proteção social é fato. É

necessária mobilização e controle social pressionando o Estado no cumprimento de seus

deveres, na real aplicação das leis e na efetiva garantia de direitos.

Assiste-se na sociedade contemporânea um declínio dos sistemas de proteção baseados

em direitos, com uma tentativa de desresponsabilização do Estado e responsabilização da

sociedade civil, e do mercado. A família enquanto lugar privilegiado de proteção social passa

a ser tomada como “parceira” do Estado e foco das políticas sociais.

Exige-se que a família cumpra determinadas funções de reprodução, de formação

do indivíduo, de proteção e de socialização. Todavia, para que ela possa ser espaço de

proteção ela precisa ser protegida, precisa acessar seus direitos. A família continua sendo

espaço de conformação ou de crítica, de pertencimento a um grupo e um lugar social, porém,

ela não pode ser um substituto do Estado e nem eximi-lo de suas responsabilidades.

Frente este contexto e, compreendendo a importância da proteção social na práxis do

assistente social, faz-se necessário uma prática orientada pelas categorias trabalho e “questão

social”, embasada no método, na teoria e na história. Apenas com uma base teórica consistente, o

assistente social poderá perceber o caráter contraditório da profissão e responder qualificadamente

ao usuário, que no contexto do capitalismo encontra-se cada vez mais desprotegido.

REFERÊNCIAS

ABEPSS. Diretrizes gerais para o curso de Serviço Social. Rio de Janeiro: 1996. Disponível em:

<http://www.cressrs.org.br/docs/Lei_de_Diretrizes_Curriculares.pdf>. Acesso em: 16 maio 2014.

14

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado

Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.

CAMBI, F. Características da educação moderna. In: ______. História da Pedagogia. Trad. Álvaro

Lorencici. São Paulo: Unesp, 1999. Cap. 1 da 3ª parte. p. 195-219.

CARVALHO, M. do C. B. O lugar da família na política social. In: CARVALHO, M. do C. B. (Org.).

A família contemporânea em debate. São Paulo: EDUC/ Cortez, 2002.

CASTEL, R. As Metamorfoses da Questão Social: uma crônica do salário. Petropólis, RJ: Vozes,

1999.

COSTA, S. G. A 'Invenção das Tradições': a proteção social e os cursos de graduação em Serviço

Social. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, v. 48, p. 58-68, 1995a.

______. Signos em transformação: a dialética de uma cultura profissional. São Paulo: Cortez, 1995b.

______. Proteção Social, maternidade transferida e lutas pela saúde reprodutiva. Revista estudos

feministas, Florianópolis, v. 10, n.2, p. 301-324, 2002.

FALEIROS, V. P. Desafios de cuidar em Serviço Social: uma perspectiva crítica. Revista Katálises,

Florianópolis, v. 16, n. esp., p. 83-91, 2013.

IAMAMOTO, M. V. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e

questão social. São Paulo: Cortez, 2007.

______. Conservadorismo e Serviço Social. In: ______. Renovação e conservadorismo no Serviço

Social: ensaios críticos. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1997. Cap. 1. p. 17-53.

______. A questão social no capitalismo. Temporalis, Brasília, ano II, n.3, p. 9-33, jan./jul. 2001.

LUKÁCS, G. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. São Pulo: Boitempo, 2010.

MARX, K. O Capital: crítica da economia política v. 1. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

NETTO, J. P. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós- 64. 7. ed. São

Paulo: Cortez, 2004.

______. Cinco notas a propósito da “questão social”. Temporalis, Brasília, ano II, n.3, p. 41-51,

jan./jul. 2001.

PEREIRA, A. A. P. Mudanças estruturais, política social e papel da família: crítica ao pluralismo de

bem-estar. In: SALES, M. A.; MATOS, M. C. de; LEAL, M. C. (Org.). Política social, família e

juventude: uma questão de direitos. São Paulo: Cortez, 2006.

PIERDONÁ, Z. L. A proteção social na Constituição de 1988. Revista de Direito Social Notadez,

Porto Alegre, n.28, p. 11-29, 2007. Disponível em: <http://www.reid.org.br/arquivos/00000028-

001_Zelia.pdf>. Acesso em: 13 maio 2014.

15

RIZOTTI, M. L. A. A construção do sistema de proteção social no Brasil: avanços e retrocessos na

legislação social. Disponível em:

<http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/construcao.pdf>. Acesso em: 13 maio 2014.

TEIXEIRA, S. M. A família na trajetória do sistema de proteção social brasileiro: do enfoque difuso à

centralidade na política de Assistência Social. Emancipação, Ponta Grossa, v. 10, n.2, p. 535-549,

2010.

SPOSATI, A. Proteção social e seguridade social no Brasil: pautas para o trabalho do assistente social.

Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 116, p. 652-674, out./dez. 2013.

VIANA, A. L. D.; LEVCOVITZ, E. Proteção social: introduzindo o debate. In: VIANA, A. L. D.;

ELIAS, P. E.; IBAÑEZ, N. (Orgs) Proteção social: dilemas e desafios. São Paulo: Hucitec, 2005.

YAZBEK, M. C. Sistema de Proteção Social brasileiro: modelo, dilemas e desafios. Disponível

em:< http://www.mds.gov.br/saladeimprensa/eventos/assistencia- social/seminario-internacional-

bpc/sobre-o- evento/apresentacoes/arquivos/Maria%20Carmelita%20Yazbek%20-

%20Protecao%20Social.pdf/download>. Acesso em: 14 maio 2014.