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Violência x Cidade O papel do Direito Urbanístico na violência urbana PAULO AFONSO CAVICHIOLI CARMONA Direito, Transdisciplinaridade & Pesquisas Sociojurídicas PRÊMIO JABUTI 2015 3º lugar Categoria: Direito

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Violência x CidadeO papel do Direito Urbanístico na violência urbana

PAULO AFONSO CAVICHIOLI CARMONA

Viver em paz é um dos maiores anseios do homem. Hoje, cerca de 85% da população vive nas cidades brasileiras, onde a preocupação com a violência urbana está diuturnamente em pauta.

Nesse cenário, surgem inúmeros questionamentos: a violência é um fenômeno atual ou sempre existiu? Qual a relação entre violência e urbanização? Por que o ser humano é cada vez mais obstinado a viver nas cidades, se elas estão tão violentas? Como é possível tornar nossas cidades menos violentas e mais seguras?

As respostas para tais questões vão além do âmbito jurídico penal, pois o sentido social do Direito Urbanístico coloca-o como disciplina necessariamente transdisciplinar, já que diversas ciências trazem profícuas contribuições para o estudo da violência nos centros urbanos, tais como a fi losofi a, a sociologia, a psicologia, a arquitetura, o urbanismo, a geografi a, a engenharia, a medicina, a política etc.

Conhecer a experiência colombiana pode indicar um norte para medidas a serem tomadas, uma vez que as cidades de Bogotá e de Medellín, mundialmente conhecidas por enfrentar graves problemas com a criminalidade e violência urbana, após passarem por grandes transformações urbanísticas, viram os índices de criminalidade reduzir substancialmente.

O presente livro, fruto de tese de doutoramento em Direito Urbanístico na PUC-SP, tem por objeto analisar o papel do Direito Urbanístico na violência urbana e na criminalidade, de modo a demonstrar que as políticas de segurança pública não podem prescindir de intervenções no meio ambiente urbano.

Os estudos foram embasados em autores estrangeiros e pátrios de autoridade incontestável, de áreas diversas, com destaque para a cientista política alemã Hannah Arendt; o engenheiro civil e urbanista Hermes Ferraz; o sociólogo colombiano Hugo Acero; o arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl e a urbanista americana Jane Jacobs.

Além disso, foram apontados dados estatísticos de organismos internacionais e nacionais de respeitabilidade, com o fi to de alicerçar sólida argumentação sobre a violência nas cidades.

PAULO AFONSO CAVICHIOLI CARMONA é mestre e doutor em Direito Urbanístico (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Professor de Direito Administrativo e Urbanístico dos cursos de pós-graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT). Professor de Direito Administrativo e Urbanístico da graduação, especialização e mestrado do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). Líder do Grupo de Pesquisa em Direito Público e Política Urbana (GPDPPU – Uniceub). Membro e atual coordenador do Centro-Oeste do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU). Membro do Conselho Deliberativo da Funpresp-JUD. Juiz de Direito (TJDFT).

ISBN 978-85-66722-28-4

Violência x Cidade

COLEÇÃO da FESMPDFT

Direito, Transdisciplinaridade & Pesquisas Sociojurídicas

A complexidade do conhecimento científi co e a espe-cialização das áreas levaram à diferenciação interna da ciência em distintos subsistemas científi cos. Nesse processo, como marco da modernidade, o senso co-mum, invariavelmente, foi relegado à categoria de co-nhecimento menor, não contemplado pelos cânones do rigor epistemológico.

A diferenciação da ciência levou a dois fenômenos distintos: por um lado, a verticalização da produção do saber, nicho ocupado por especialistas, marcado pela escassa ou nula interlocução entre as áreas. Por outro, a natureza disciplinar do conhecimento ensejou o estudo simultâneo de um determinado objeto sob a perspectiva de diferentes tradições. Como resultado, observa-se, inicialmente, a transferência de categorias e métodos entre disciplinas, fenômeno descrito como interdisciplinaridade, marcado pela linearidade e redu-ção a um nível simplifi cado da realidade observada.

A transdisciplinaridade, de outro ângulo, focaliza as virtualidades da interlocução entre as áreas e inves-te nas soluções que superam a cegueira seletiva que não raramente leva à verticalização epistemológica em compartimentos estanques. Inspirada por esse último enfoque, a coleção Direito, Transdisciplinaridade & Pes-quisas Sociojurídicas investe nas pesquisas que privile-giam a interlocução do direito com diferentes áreas do conhecimento. Não se nega a relevância da especiali-zação no direito e há um inequívoco ganho em escala na interlocução. As obras selecionadas pela Coleção evidenciam ressonâncias entre distintos subsistemas científi cos, sem a negação a priori do senso comum e de outros saberes (literatura, cinema e demais manifes-tações artísticas – sistema arte). Ao promover a aber-tura cognitiva às diferentes abordagens, a transdisci-plinaridade privilegia a interseção entre as linguagens e questiona as fronteiras demarcadas historicamente. Ciente da complexidade e policontextualidade da reali-dade contemporânea, a Coleção estimula as pesquisas que apostam na produção do conhecimento inspirado pela reconstrução de novos horizontes entre as diferen-tes áreas do conhecimento.

BRUNO AMARAL MACHADO

Coordenador da Coleção

Direito, Transdisciplinaridade & Pesquisas Sociojurídicas

Próximos títulos desta Coleção

Justiça Criminal e Democracia II Bruno Amaral Machado (Coord.)

Cinema & Criminologia Bruno Amaral Machado Cristina Zackseski Evandro Piza Duarte

PRÊMIO JABUTI 2015

3º lugar

Categoria: Direito

VIOLÊNCIA X CIDADE

O papel do Direito Urbanístico na violência urbana

Paulo afonso CaviChioli Carmona

Violência x Cidade O papel do Direito Urbanístico

na violência urbana

PrefácioDaniela CamPos libório Di sarno

MADRI | BARCELONA | BUENOS AIRES | SãO PAULO

Coleção Direito, Transdisciplinaridade & Pesquisas SociojurídicasCoordenador: Bruno Amaral Machado

Conselho Científico Editorial da Coleção (FESMPDFT): Adilson Abreu Dallari (PUC-SP) / Antonio Henrique Graciano Suxberger (Uniceub/FESMPDFT) / Bruno Amaral Machado (coordenador Uniceub/FESMPDFT) / Cristina Zackseski (UnB) / Ela Wiecko (Unb) / Evandro Piza Duarte (UnB) / Fabio Roberto D’Ávila (PUC-RS) / Gabriel Ignacio Anitua (Universidade de Buenos Aires) / Iñaki Rivera Beiras (Universidade de Barcelona) / Ingo Wolfgang Sarlet (PUC-RS) / Jefferson Carús Guedes (Uniceub) / Julio Zino Torrazza (Universidade de Barcelona) / Luis Manuel Fonseca Pires (PUC-SP) / Márcio Pugliesi (PUC-SP) / Máximo Sozzo (Universidade Del Litoral) / Miguel Etinger de Araújo Júnior (UEL) / Nilo Batista (UERJ) / Paulo Gustavo Branco Gonet (IDP/FESMPDFT) / Roberto Bergalli (Universidade de Barcelona) / Roberto Freitas Filho (Uniceub) / Roger Matthews (Universidade de Kent)

Violência x cidade: o papel do direito urbanístico na violência urbanaPaulo Afonso Cavichioli Carmona

Preparação e Editoração eletrônicaIda Gouveia / Oficina das Letras®

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo – Lei 9.610/1998.

© MARCIAL PONS EDITORA DO BRASIL

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Impresso no Brasil [09-2014]

© Paulo Afonso Cavichioli Carmona© FUNDAÇÃO ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E

TERRITÓRIOS SCRS Quadra 502, Bloco A, Loja 55, Asa Sul, CEP 70330-510 Brasília-DF ( (61) 3226.4643 www.fesmpdft.org.br – [email protected]

Cip-Brasil. Catalogação na publicaçãoSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJC285v

Carmona, Paulo Afonso CavichioliViolência x cidade: o papel do direito urbanístico na violência urbana / Paulo Afonso Cavichioli Carmona ; prefácio Daniela Campos Libório Di Sarno - 1. ed. - São Paulo: Marcial Pons ; Brasília, DF: Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, 2014. (Direito, Transdisciplinaridade & Pesquisas Sociojurídicas)Inclui bibliografiaISBN 978-85-66722-28-4

1. Direito urbanístico - Brasil. 2. Planejamento urbano - Brasil. I. Fundação Escola

Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. II. Título. III. Série.

14-15184 CDU: 349.44

Conselho Administrativo FESMPDFT: Roberto Carlos Silva – Diretor-Geral / Nardel Lucas da Silva – Diretor Administrativo-Financeiro / Bernardo de Urbano Resende – Diretor Cultural / José Firmo Reis Soub – Diretor Editorial / Claudia Braga Tomelin de Almeida – Diretora Extraordinária de Cursos de Pós-Graduação e Pesquisa.

À minha eterna namorada Flávia, com amor, admiração e gratidão por sua compreensão, carinho, presença e incansável

ajuda ao longo do período de elaboração deste estudo.

Aos meus pais, aFonso e ivonete, e às minhas irmãs, AnA elisa e Maria BarBara, pelo apoio, exemplo e incentivo.

Ao meu querido afilhado, Paulo aFonso Correia liMa siqueira Filho, que completou seu terceiro ano de vida,

esperança de um futuro melhor.

AGRADECIMENTOS

À Professora Dra. Daniela Campos Libório Di Sarno, pela atenção e apoio durante o processo de definição e orientação.

Ao Dr. Francisco Roberto Alves Bevilacqua, que, nos anos de convi-vência, muito me ensinou, contribuindo para meu crescimento científico e intelectual.

Aos meus amigos de pós-graduação Edgar Guimarães, Sérgio Banhos, Fernando Canhadas e Rodrigo Colnago, pelo incansável companheirismo.

Aos Drs. Nelson Saule Jr., Luis Manuel Fonseca Pires, Adilson Abreu Dallari e Daniel Ferreira, pelas inestimáveis contribuições prestadas por ocasião da banca de defesa de tese.

Ao povo colombiano, que tão bem me recebeu, em especial Dr. Hugo Acero Velásquez, pela enorme colaboração.

À Professora Maria Derci da Silva Nóbrega, mariliense como eu, pela excelente revisão gramatical.

À Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, inaudita Instituição do saber, à qual sirvo com orgulho.

Não é um dia para política.

Guardei esta oportunidade, o meu único compromisso de hoje, para falar-lhes brevemente sobre a epidemia de violência que assola os EUA e que outra vez mancha nossa pátria e nossas vidas. Isso não diz respeito a nenhuma raça em particular.

As vitimas da violência são negros e brancos, ricos e pobres, jovens e velhos, famosos e desconhecidos.

Elas são, acima de tudo, seres humanos a quem outros seres humanos amavam e de quem necessitavam. Ninguém, não importa onde viva ou que faça, pode estar certo de quem será o próximo a sofrer com o ato absurdo de derramamento de sangue.

E, no entanto, isso continua, e continua e continua a acon-tecer nesse país. Por quê? O que se consegue com a violência? O que se cria com ela?

Cada vez que a vida de um americano é tirada sem necessi-dade por outro, não necessariamente americano, seja isso feito em nome da lei, ou desafiando a lei, por um homem ou por um grupo, a sangue frio ou por impulso, num ataque de violência ou como resposta à violência, cada vez que rasgamos um quadro de uma vida que outro homem com dor e sofrimento pintou para si próprio e para seus filhos, cada vez que fazemos isso, toda nação se degrada. Porém, parecemos tolerar o crescente nível de violência que ignora nossa humanidade e nossa suposta civi-lização.

Muitas vezes defendemos a arrogância e a desordem e aqueles que abusam da força. Várias vezes desculpamos os que querem construir sua própria vida sobre os sonhos destruídos de outros seres humanos.

Mas uma coisa é certa: a violência gera violência, a repressão gera represálias e só a purificação de toda nossa

12 Paulo afonso cavichioli carmona

sociedade pode remover essa enfermidade de nossas almas. Porque, quando ensina um homem a odiar e a temer o seu próximo, quando ensina que é um homem inferior pela sua cor ou sua crença, ou pela ideologia política que segue, quando ensina que os que são diferentes dele ameaçam sua liberdade e seu trabalho, ou sua casa, ou sua família, você o está ensinando a tratar os outros não como cidadãos, mas como inimigos a quem não deve ajudar, mas derrotar, subjugar e dominar.

Ou seja, aprendemos a ver nossos irmãos como estranhos, com que dividimos uma cidade, mas não uma comunidade. Homens que dividem o mesmo espaço físico, mas não os mesmos objetivos. É impossível acreditar...

Aprendemos a compartilhar apenas um medo, só um desejo comum de nos afastarmos um dos outros. Só o impulso comum de responder às diferenças com força.

Nossa vida neste planeta é muito breve. A missão a se cumprir é grande demais para permitir que essa violência siga florescendo nesta nossa terra.

É claro que não vamos resolver isso com um programa, nem com uma resolução, mas, quem sabe, podemos lembrar, nem que seja por um segundo, que os que vivem conosco são nossos irmãos, que compartilham conosco o mesmo breve momento de vida, que eles procuram, como nós, nada mais que a oportuni-dade de viver a vida, com o propósito e felicidade, ganhando a satisfação e a realização que puderem.

Sem dúvida, esse vínculo de destino comum, esse vínculo de metas em comum pode começar a nos ensinar algo. Segu-ramente podemos aprender, pelo menos, a olhar à nossa volta e realmente ver o próximo, e, certamente, podemos começar a nos esforçar um pouco mais para curar nossas feridas e nos tornarmos irmãos e compatriotas outra vez.

(Discurso de Robert Francis Kennedy, senador americano, candidato a presidente dos EUA, proferido em 5 de junho de 1968, no Hotel Ambassador, em Los Angeles. Poucos minutos após o discurso, ao sair pela cozinha do hotel, ele foi atingido por três tiros disparados por Sirhan Bishara, jovem radical palestino, vindo a falecer na manhã do dia seguinte. Robert, conhecido como Bobby ou RFK, era o irmão mais novo de John Fitzgerald Kennedy (JFK), do qual foi secretário de justiça, entre 1961-63. O trecho transcrito foi retirado do filme Bobby, de 2006, escrito e dirigido por Emilio Estevez, que conta os bastidores do discurso.)

ILUSTRAÇÕES

TABELAS

Tabela 1 Gráfico da extensão de vias adequadas ao trânsito de bicicletas em

relação à extensão do sistema viário em cidades do Brasil ............... 72

Tabela 2 Vítimas de guerras entre 1816-1965 ................................................. 82

Tabela 3 Fatores de composição do IGP – Índice Global de Paz .................... 154

Tabela 4 Evolução do Brasil no Índice Global de Paz de 2007-2011 .............. 161

Tabela 5 Percentual de população urbana por continente em 2000 e 2025 ..... 165

Tabela 6 Países com maior população em favelas ........................................... 167

Tabela 7 30 maiores cidades do mundo em população em 2011 ..................... 169

Tabela 8 Cidades brasileiras entre as 600 maiores do mundo em 2011 ........... 171

Tabela 9 30 maiores cidades do mundo em densidade populacional em 2007 172

14 Paulo afonso cavichioli carmona

Tabela 10 Cidades brasileiras entre as 250 mais densas do mundo em 2007 .... 173

Tabela 11 As 10 cidades com maior violência homicida do mundo em 2009 ... 178

Tabela 12 Ranking das 30 eco-cidades Mercer de 2010 .................................... 182

Tabelas 13 e 14 Ranking Mercer – 5 melhores cidades por continente ...................... 184

Tabela 15 Ordenamento das Unidades Federadas por taxas de homicídio (em

100 mil) na população total – Brasil, 1998-2008 .............................. 186

Tabela 16 Ordenamento das capitais por taxas de homicídio (em 100 mil) na

população total – Brasil, 1998-2008 .................................................. 189

Tabela 17 Ordenamento das capitais por taxas de homicídio (em 100 mil) na

população de 15 a 24 anos – Brasil, 1998-2008 ................................ 190

Tabela 18 Taxa de homicídios na população total, por Região Metropolitana –

Brasil, 1998-2008 .............................................................................. 191

Tabela 19 Crescimento % anual do número de homicídios por área geográfica

e períodos – Brasil, 1980-2008 .......................................................... 194

Tabela 20 Evolução das taxas de homicídio na população total segundo área

geográfica – Brasil, 1998-2008 ......................................................... 195

Tabela 21 Estatísticas das taxas de homicídios na Colômbia – 1999-2008 ....... 212

Tabela 22 Taxas de homicídios na Colômbia e Bogotá – 1980-2000 ................ 213

Tabela 23 Taxas de homicídios nos principais centros urbanos da Colômbia –

1995-2000 .......................................................................................... 213

15ilustrações

Tabela 24 Taxa de polícias por 100 mil habitantes em diversas cidades ........... 225

Tabela 25 Gráfico da evolução do homicídio na zona El Cartucho no centro de

Bogotá ............................................................................................... 257

Tabela 26 Esquematização do Modelo Medellín de Bom Governo e Desenvol-

vimento Social Integral ..................................................................... 265

Tabela 27 Relações do Programa Paz y Reconciliación: regreso a la legalidad

com outras instituições ...................................................................... 269

Tabela 28 Gráfico do número de pessoas que circulam por hora numa faixa de

tráfego em São Paulo, 2007 ............................................................... 315

Tabela 29 Gráfico da qualidade do entorno físico e atividades exteriores ......... 317

Tabela 30 Distribuição de acidentes de trânsito no Brasil ................................. 323

FIGURAS

Figura 1 Mapa do deficit habitacional total, segundo Unidades da Federação 65

Figura 2 Exemplo de pichação na cidade de São Paulo .................................. 75

Figura 3 Índice Global de Paz (Global Peace Index) de 2010 ........................ 158

Figura 4 Índice Global de Paz (Global Peace Index) de 2011 ........................ 158

Figura 5 Índice Global de Paz (Global Peace Index) de 2012 ........................ 160

Figura 6 Índice Global de Paz (Global Peace Index) de 2013 ........................ 160

16 Paulo afonso cavichioli carmona

Figura 7 Área do Plano de Desenvolvimento Coordenado das Aglomerações

Urbanas no Delta do Rio Pérola, China ............................................ 164

Figuras 8 e 9 Fotografias de contrastes em Mumbai-Índia ..................................... 169

Figura 10 Diagrama do grau de periculosidade causado pela poluição atmosfé-

rica ..................................................................................................... 176

Figura 11 Fotografia de Bogotá vista do Monserrate, Bogotá ........................... 209

Figura 12 Fotografia de rua de Bogotá .............................................................. 216

Figuras 13 e 14 Fotografias do sistema carcerário de Bogotá ..................................... 233

Figura 15 Gráfico das áreas de ação do Projeto Missão Bogotá ........................ 240

Figuras 16 e 17 Carrera 15 antes e depois da intervenção urbanística, Bogotá .......... 244

Figuras 18 e 19 Exemplo de recuperação do espaço urbano, Bogotá ......................... 245

Figuras 20 e 21 Fotografias do trecho da Avenida Jiménez, no centro de Bogotá,

antes e depois da intervenção urbanística .......................................... 246

Figuras 22 e 23 Fotografias do sistema de transporte público antes e depois do

Transmilenio ...................................................................................... 247

Figura 24 Mapa da ilustração do sistema de ciclovias de Bogotá ..................... 249

Figura 25 Fotografia da fachada da Biblioteca Pública El Tintal, Bogotá ........ 252

17ilustrações

Figura 26 Fotografia da praça da Biblioteca Pública El Tintal, Bogotá ............ 253

Figuras 27 e 28 Fotografia do interior da Biblioteca Pública El Tintal, Bogotá ......... 254

Figuras 29 e 30 Fotografias do Bairro Santa Inês antes da intervenção urbanística ... 255

Figura 31 Fotografia do Parque Terceiro Milênio após a intervenção na zona

de El Cartucho ................................................................................... 256

Figura 32 Fotografia do Parque Metropolitano Simon Bolívar, Bogotá ............ 259

Figura 33 Fotografia da vista aérea de Medellín ................................................ 261

Figuras 34 e 35 Fotografias Los Pájaros de Fernando Botero, Praça San Antonio,

Medellín ............................................................................................. 263

Figura 36 Fotografia do campo de futebol sintético em Granizal, Comuna 2,

Medellín ............................................................................................. 266

Figuras 37 e 38 Fotografias do Programa Força Jovem, Comuna 13, Medellín ......... 272

Figura 39 Fotografia do Parque Biblioteca Espanha, Santo Domingo, Medellín 274

Figuras 40 e 41 Fotografias do Metrocable, Medellín ................................................ 278

Figura 42 Fotografia do Córrego Juan Bobo depois da intervenção urbanística 279

Figuras 43 e 44 Fotografias da Consolidação Habitacional da Quebrada Juan Bobo,

Medellín ............................................................................................. 280

18 Paulo afonso cavichioli carmona

Figuras 45 e 46 Fotografias do Passeio urbano da Rua 107 antes e depois da inter-

venção urbanística, Medellín ............................................................. 281

Figura 47 Fotografia do Morro de Moravia, Medellín ....................................... 283

Figuras 48 e 49 Realocação de famílias do Morro Moravia e Edifício La Aurora ..... 285

Figuras 50 e 51 Fotografias de La Bermejala antes e depois da implantação do Par-

que Linear, Medellín ......................................................................... 285

Figuras 52 e 53 Fotografias comparativas das cidades do Rio de Janeiro (esquerda)

e Medellín (direita) ............................................................................ 287

Figura 54 Tira de Laerte «Não cabe mais nenhum carro nesta cidade» ............ 326

SUMÁRIO

PREFÁCIO – Daniela CaMPos liBório Di sarno .................................... 25

APRESENTAÇÃO ................................................................................... 27

INTRODUÇÃO ........................................................................................ 29

Capítulo I

NOÇÃO GERAL DE DIREITO URBANÍSTICO

1.1 Conceito de Direito Urbanístico, urbanismo, urbanização e urba-nificação......................................................................................... 37

1.2 Identificação da ordem jurídico-urbanística ................................. 44

1.2.1 Princípio da função social da propriedade ......................... 45

1.2.2 Princípio da função social da cidade .................................. 52

1.2.3 Princípio da obrigatoriedade do planejamento participati-vo ........................................................................................ 54

1.2.4 Princípio da justa distribuição dos ônus decorrentes do processo de urbanização ..................................................... 56

1.2.5 Princípio da coesão dinâmica ............................................. 57

1.2.6 Princípio da cooperação entre os setores público e priva-do ........................................................................................ 58

1.3 As funções urbanísticas e as Cartas de Atenas ............................. 61

1.3.1 A Carta de Atenas de 1933 ................................................ 61

1.3.2 A nova Carta de Atenas ..................................................... 62

1.3.3 Habitação ........................................................................... 63

20 Paulo afonso cavichioli carmona

1.3.4 Trabalho ............................................................................. 68

1.3.5 Circulação .......................................................................... 69

1.3.6 Recreação ........................................................................... 74

Capítulo II

A VIOLÊNCIA

2.1 Considerações preliminares .......................................................... 79

2.2 Conceito e objeto de violência ..................................................... 83

2.3 Violência e poder na visão de Hannah Arendt ............................. 91

2.4 Violência urbana: uma construção contemporânea ...................... 95

2.5 Multicausalidade da violência urbana .......................................... 98

2.5.1 Homo sapiens ou homo violens? ........................................ 100

2.5.2 Complexidade das causas da violência .............................. 103

2.5.3 Causas sociais: a pobreza e a segregação do espaço urba-no ........................................................................................ 104

2.5.4 Causas culturais: a cultura da violência e os meios de co-municação ........................................................................... 110

2.5.5 Causas econômicas: a desigual distribuição de renda e a questão da impunidade ....................................................... 115

2.5.6 Causas biopsicológicas: a desproporcionalidade das con-dutas violentas .................................................................... 119

Capítulo III

TIPOS DE VIOLÊNCIA

3.1 Considerações preliminares .......................................................... 125

3.2 Espécies da violência .................................................................... 126

3.2.1 Espécies de violência de acordo com a OMS .................... 126

3.2.2 Espécies de violência de acordo com a natureza ............... 127

3.2.3 Espécies de violência de acordo com Michaud ................. 127

3.3 Formas de expressão da violência ................................................ 131

3.3.1 Violência física .................................................................. 131

3.3.2 Violência sexual ................................................................. 132

21sumário

3.3.3 Violência psíquica .............................................................. 133

3.3.4 Violência moral .................................................................. 135

3.3.5 Violência financeira ........................................................... 135

3.3.6 Violência institucional ....................................................... 136

3.3.7 Violência simbólica ............................................................ 136

3.4 Figuras extremadas da violência .................................................. 143

3.4.1 Gênesis ............................................................................... 143

3.4.2 Extermínio (guerra, massacre e genocídio) ........................ 144

3.4.3 Terrorismo .......................................................................... 147

Capítulo IV

A RELAÇÃO DA VIOLÊNCIA COM O CRESCIMENTO URBANO

4.1 A violência urbana no mundo ...................................................... 153

4.1.1 Análise da violência global ................................................ 153

4.1.2 Comparação do Brasil com outros países .......................... 161

4.1.3 A urbanização do mundo: metropolização dos países do Sul ...................................................................................... 162

4.1.4 As melhores e as piores cidades do mundo ........................ 176

4.2 A violência urbana no Brasil ........................................................ 185

4.2.1 Introdução .......................................................................... 185

4.2.2 Nas capitais e regiões metropolitanas ................................ 188

4.2.3 Nas pequenas e médias cidades: a interiorização da violên-cia ....................................................................................... 191

Capítulo V

CONFLITO URBANO E VIOLÊNCIA NA COLÔMBIA: EXEMPLO DE MEDELLÍN E BOGOTÁ

5.1 Considerações gerais sobre a Colômbia ....................................... 199

5.2 A presença marcante da violência na história da Colômbia ......... 201

5.3 Bogotá: anatomia de uma transformação ..................................... 209

5.3.1 Introdução .......................................................................... 209

5.3.2 Análise da política de segurança e de convivência ............ 216

22 Paulo afonso cavichioli carmona

5.3.3 Urbanismo com fins sociais e sua contribuição à melhoria da segurança ....................................................................... 241

5.3.3.1 Introdução .............................................................. 241

5.3.3.2 Recuperação do espaço público ............................. 243

5.3.3.3 Transmilenio: sistema de transporte em massa ..... 247

5.3.3.4 Promoção do uso da bicicleta ................................ 248

5.3.3.5 Investimento em educação e construção de biblio-tecas públicas .......................................................... 250

5.3.3.6 Recuperação do centro histórico ........................... 254

5.3.3.7 Construção e reabilitação de parques .................... 258

5.4 A experiência de Medellín ........................................................... 261

5.4.1 Introdução .......................................................................... 261

5.4.2 Da capital mundial dos homicídios ao urbanismo social ... 264

5.4.3 Programa de Paz e Reconciliação ...................................... 267

5.4.4 Projetos Urbanos Integrais ................................................. 272

5.4.4.1 Noções gerais ......................................................... 272

5.4.4.2 Programa de Melhoramento Integral de Bairros: o caso de Juan Bobo ................................................. 277

5.4.4.3 O macroprojeto de intervenção integral do bairro Moravia .................................................................. 282

5.4.4.4 Transferibilidade da experiência ao Brasil ............. 287

Capítulo VI

O PAPEL DO DIREITO URBANÍSTICO E A VIOLÊNCIA URBANA

6.1 O Direito Urbanístico e o bem-estar dos habitantes ..................... 295

6.2 A desordem urbana como agressão às funções urbanísticas ga-rantidoras de qualidade de vida na cidade .................................... 296

6.3 Políticas públicas garantidoras das funções urbanísticas e mini-mizadoras dos delitos urbanos ...................................................... 298

6.3.1 O planejamento urbanístico e violência urbana: uma rela-ção indissociável ................................................................. 298

6.3.2 O lazer e sua eficácia no combate à violência urbana sofri-da e praticada por jovens .................................................... 303

23sumário

6.3.3 Garantia do trabalho e de moradia digna com políticas pú-blicas sociais eficazes para o combate à violência urbana . 309

6.3.4 A mobilidade urbana como direito de acesso universal à cidade segura ...................................................................... 314

CONCLUSÃO .......................................................................................... 327

BIBLIOGRAFIA ...................................................................................... 332

PREFÁCIO

O presente trabalho teve sua origem há anos. Ainda estudante de mestrado, o autor, sempre curioso com o saber, procurava entender além das linhas, além das palavras do professor. Despertou para o tema iniciado em pequena parte de minha tese de doutorado: violência urbana.

O destino jogou-lhe no problema, pois, ao se tornar juiz em região peri-férica altamente adensada, conviveu e conheceu todo tipo de história, vivida por uma população desassistida, hipossuficiente e vivendo com um padrão de violência em seu cotidiano impossível de ser tolerado como algo normal e aceitável.

Veio a reflexão: tal violência tem conexão com o espaço em que se vive? A desordem, o caos urbano e a fragmentação na prestação dos serviços públicos criam um espaço próprio para a produção de violência? Essa violência existiria se o lugar fosse ordenado, eficiente e belo?

Sem se descuidar do fato de que o ser humano, por si só, é capaz de produzir violência extrema e aparentemente sem motivo, reforçado pelo fato de que o autor é juiz criminal e conhece bem tais meandros, foi procurar resposta à sua reflexão. Iniciou, então, seu trabalho de doutorado.

Seu trabalho de campo foi brilhante. Foi a Bogotá e a Medellín checar de perto as intervenções urbanísticas que foram realizadas nos bairros violentos, pobres e desordenados dessas cidades. Conversou com pessoas, tirou fotos, levantou dados comparativos. O autor não só reveste-se de coragem ao tratar do assunto, mas mostra-se um incansável pesquisador. Buscou em fontes diversas, nacionais e estrangeiras, dados que demonstrassem os elementos de produção de violência e seus sintomas (os crimes). Obteve um volume tal de dados e escritos que chegou perto do milhar.

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O ineditismo de seu trabalho está resumido neste livro. Responde sua investigação ao comprovar, quantitativa e qualitativamente, que a profunda desordem urbana é espaço propício para a produção e receptora singular de violência sistemática e da prática de crimes.

A importância do trabalho deve ir além. Tal comprovação poderá subsi-diar novos paradigmas no trato da violência urbana, multiplicando elementos que combatam esse mal contemporâneo e que nos encarcera à própria casa, com a elaboração de políticas públicas compatíveis com os fatos e sua origem.

Enfim, o autor cumpriu brilhantemente o objetivo a que se propôs e contribui para um tema multidisciplinar por natureza, abordagem essa ainda tão escassa no Direito pátrio.

São Paulo, outubro de 2013.

Daniela CaMPos liBório Di sarno

Consultora Jurídica. Mestre e Doutora em Direito Urbanístico (PUC-SP). Pós-doutorado na Universidad de Sevilla.

Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU). Professora da PUC-SP.

APRESENTAÇÃO

O presente livro originou-se de tese de doutoramento em Direito do Estado, área de concentração em Direito Urbanístico, defendida em 25 de outubro de 2012 no âmbito do programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, perante banca examinadora integrada pelos ilustres professores doutores Daniela Campos Libório Di Sarno (orientadora), Adilson Abreu Dallari, Nelson Saule Júnior, Luis Manoel Fonseca Pires e Daniel Ferreira, tendo logrado aprovação com nota máxima.

O tema desenvolvido «A Violência Urbana e o papel do Direito Urba-nístico» foi fruto de diversas inquietações advindas da atividade profissional e social. Explica-se: o autor, magistrado desde abril de 2000, passou, a partir de fevereiro de 2005, a atuar na área criminal, de início como juiz titular da 3.ª Vara Criminal de Ceilândia – DF e posteriormente como titular da Vara Criminal e Tribunal do Júri do Riacho Fundo – DF, onde está atualmente lotado.

Ressalta-se que algumas modificações foram realizadas no texto original, por sugestão da banca examinadora, a começar pelo subtítulo do trabalho, que fora invertido para melhor expressar o conteúdo da tese. Essa proposta, aliás, partiu do Prof. Adilson Abreu Dallari, genial como sempre.

Por fim, o leitor perceberá uma abordagem multidisciplinar, pois «o sentido social do urbanismo moderno coloca-o como disciplina interdis-ciplinar», tal como assentado por Toshio Mukai.1 Ademais, o fenômeno da violência urbana também possibilita diversas abordagens. Assim, foram

1 Mukai, Toshio. Direito e legislação urbanística no Brasil (História-Teoria-Prática). São Paulo: Saraiva, 1988, p. 5.

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trazidas as contribuições de arquitetos, urbanistas, sociólogos, filósofos, juristas, engenheiros, cientistas políticos, antropólogos, historiadores, psicó-logos etc.

Com efeito, Nicolescu, autor do «Manifesto da Transdisciplinaridade», ensina que «a pluridisciplinaridade diz respeito ao estudo de um objeto de uma mesma e única disciplina por várias disciplinas ao mesmo tempo. (...) Com isso, o objeto sairá assim enriquecido pelo cruzamento de várias disciplinas». O autor explica, ainda, que, enquanto a pluridisciplinaridade trata de diversas perspectivas sobre um mesmo objeto, a interdisciplinaridade diz respeito à transferência de métodos de uma disciplina para outra.1

Brasília-DF, abril de 2014.

Paulo aFonso CaviChioli CarMona

Juiz de Direito (TJDFT). Mestre e Doutor em Direito Urbanístico (PUC-SP). Membro e atual coordenador do Centro-Oeste do Instituto

Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU). Membro do Conselho Deliberativo da Funpresp-Jud (mandato 2012-2014). Professor de Direito Administrativo e Urbanístico dos Cursos de Especialização da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal Territórios (FESMPDFT). Professor

de Direito Administrativo e Urbanístico do Mestrado, Especialização e Graduação do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

1 niColesCu, Basarab. Manifesto da transdisciplinaridade. Trad. Lucia Pereira de Souza. São Paulo: Triom, 1999, p. 52-53.

INTRODUÇÃO

«A violência é o último estágio do humano», afirma com sabedoria o poeta pernambucano Heron Moura: «A violência, quando deflagrada sem controle e numa corrente, não é parte do humano – é o fim dos elos, não havendo partes discerníveis. Portanto, é uma contradição intrínseca a articulação de uma esté-tica da violência: o poema-revólver, o poema-Kalashnikov».2

A violência urbana, assunto do momento, está em toda parte, em todos os noticiários, em uma centena de livros publicados todos os anos.

Inicia-se esta pesquisa científica com angustiantes questionamentos.

Mais recentemente, especialistas passaram a discutir sobre a relação entre violência e urbanização. Tal relação é real? No momento em que irrompe a violência em algum lugar da cidade, tem-se a noção exata do que ocorre?

Nos bairros pobres – a periferia, a favela, o cortiço – onde nasceram verdadeiras cidades informais e reside parte considerável da população mundial, certamente a violência encontra seu espaço.3

2 Moura, Heron. Poesia e violência. Disponível em: <http://www.heronmoura.com/blog/?p=29>. Acesso em: 17.01.2011. O fuzil Kalashnikov, assim denominado em homenagem ao seu criador, o comunista russo Mikhail Kalashnikov, também é chamado de AK-47, é a arma de fogo mais usada no mundo.3 Dados do Censo 2010 realizado pelo IBGE mostram que 11,4 milhões de brasileiros (6% da população) viviam nos chamados aglomerados subnormais, ou seja, assentamentos irregulares, conhecidos como favelas, invasões, baixadas, ressacas, mocambos e palafitas, com mais de 50 habitantes e com falta de serviços públicos e de urbanização. O estudo também indica que havia 6.329 desses aglomerados espalhados por 323 dos 5.565 municípios do país. Disponível em: <http://www.censo2010.ibge.gov.br>. Acesso em: 15.01.2012. Esses números, no entanto, não correspondem à realidade, pois estão subestimados, haja vista o critério adotado pelo IBGE, que exige mais de 50 habitantes para considerar aglomerado como subnormal. A ONU-Habitat,

30 Paulo afonso cavichioli carmona

Mas os problemas envolvendo a violência urbana são de natureza complexa ou a questão é simples, porém com respostas complexas?

Não é de se questionar como os homens apreciam tanto as grandes cidades, se as metrópoles são tão cruéis com seus habitantes? Por que o ser humano é cada vez mais obstinado a viver nas cidades, se elas estão tão violentas?

Ademais, por que há tanta violência em nossas sociedades, mesmo sob o regime democrático? Quem são os responsáveis por tamanha insegurança em nossas cidades? Como é possível torná-las menos violentas e mais seguras?

E o que é violência de uma cidade? É a do meio construído ou de seus habitantes? Se for dos habitantes, por que apenas uma parcela é violenta? Aliás, todo ser humano é capaz de atos violentos ou é possível separar os habitantes violentos dos pacíficos?

A violência é um fenômeno atual ou sempre existiu? Deve-se falar em «violência urbana» ou em «violências urbanas»? Há uma espetacularização da violência urbana pela mídia? Se a resposta é positiva, o que dificulta a implantação de uma cultura da paz?

A visão dos excluídos sociais – aqueles a quem comumente se atribui a autoria da violência urbana, mas que são, ao mesmo tempo, vítimas do fenômeno – deve ser levada em conta ou o problema é técnico, devendo ser resolvido pelos especialistas?

O objetivo desta obra é estabelecer a possível relação entre o morar nas cidades e a produção da violência social, bem como apontar a possibilidade de contribuição do Direito Urbanístico nesse tema.

É certo que se deve reconhecer que a violência segue intrinsecamente ligada a inúmeros atos humanos ao longo da história e que não é um fenô-meno recente, da modernidade. Mas certamente a violência urbana é fruto da nossa época, da nossa nova condição urbana, de homo urbanus. Ou seria homo violens?

A cidade não é um câncer, mas está doente. É preciso reconhecer.

Além disso, a acelerada e caótica urbanização dos países latino-ameri-canos, africanos e asiáticos criou bolsões de miséria nas cidades do chamado «Terceiro Mundo» e, portanto, de certa espécie de violência urbana, ou porque não foi feito planejamento nenhum ou porque ele foi absolutamente insuficiente ou ineficaz.

por exemplo, estimou que a população brasileira vivendo em favelas é da ordem de 45,09 milhões de pessoas.

31introdução

A saída não está na produção de cidades fragmentárias e desiguais, com muros altos, condomínios fechados e propriedades protegidas pelo aparato tecnológico.

«Nenhuma cidade deveria ser habitável se não oferece a seus habi-tantes uma certa segurança física, psicológica e social», exorta um trecho de conclusão da Assembleia Mundial dos Habitantes, denominada Ciudad Segura, realizada no México em outubro de 2000.

É evidente que a segurança de uma cidade não deve restringir-se a uma parcela de seus habitantes e tampouco concentrar-se nas mãos da polícia, mas deve ser dividida entre todos e assumida por todos, sem nenhuma forma de discriminação.

Na verdade, cabe repensar a violência das cidades de forma alternativa, indo além da questão penal ou penitenciária, sob pena de ver a gestão de segurança pública levada ao fracasso.

De outra parte, a miséria é em si uma violência da sociedade globalizada e «civilizada». No entanto, muitos países atribuem a culpa da violência aos pobres e traduzem isso por meio de operações como «tolerância zero», medida implantada originalmente pelo prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, na década de 90, e isso causou elevado custo aos direitos humanos. Com a crimi-nalização da miséria, abriu-se espaço para o preconceito racial e a brutalidade policial.4 É que a violência urbana não pode ser vista e considerada como um fenômeno isolado, longe da urbanização caótica, da privatização dos espaços públicos ou da segregação social e racial.

Assim, nesta obra, de início será analisada a ordem urbanística consti-tucional, sua identificação e o papel que a Magna Carta reservou ao Direito Urbanístico e sua autonomia. Avaliam-se, ainda, os princípios informadores do Direito Urbanístico e as funções urbanísticas elementares.

Em seguida, faz-se análise dos diversos aspectos da violência, tais como conceito, objeto, causas e tipologia.

Analisar-se-á, ainda, a relação da violência com o crescimento urbano, apontando, dentro da análise da patologia das cidades, os índices de criminali-dade em diversos níveis: mundial, latino-americano e brasileiro.

4 Os dados sobre quem são os prisioneiros nos Estados Unidos corroboram essa argumentação: o relatório da Agência de Justiça Criminal da Cidade de Nova York para o ano de 2003 mostra que negros e latinos representaram 78% do total de pessoas presas, número que cresceu para 81% em 2004. Em ambos os anos, mais de 80% do total dos casos foram crimes leves ou contravenções, o que pode tornar Nova York uma cidade mais segura, mas também mais intolerante.

32 Paulo afonso cavichioli carmona

A seguir, será feita uma abordagem sobre a experiência colombiana no conflito urbano, procurando ressaltar pontos importantes na atuação de Bogotá e Medellín, que possam servir de exemplo para as cidades brasileiras.

Passadas essas etapas, será feita uma abordagem acerca do ponto central da presente obra, a partir da análise do pensamento de autores que têm estreita conexão com o tema proposto, como Hannah Arendt e a banalização da violência, Jan Gehl e sua proposta de humanização do espaço urbano e Jane Jacobs e a morte e vida das grandes cidades. Em seguida, esboçam-se polí-ticas públicas protetivas das funções urbanísticas e minimizadoras dos delitos urbanos.

A par disso, como método de interpretação, adotar-se-á essencialmente o sistemático, que se completa com o teleológico, sem se desgarrar de outras diretrizes hermenêuticas acessórias, por ser este cientificamente mais seguro.5

O sistema adotado, ou seja, o método de análise, será a tópica jurídica ou argumentação tópica, proposta por Theodor Viehweg, que a define como «uma técnica de pensar por problemas, desenvolvida pela retórica».6 Vale dizer, parte-se do problema para a norma e não desta para o problema, pois a tópica consiste na arte de pensar por meio de problemas (a violência urbana e urbanização) para ensinar.7

5 Nesse sentido, ensina o nosso maior mestre da exegese, Carlos Maximiliano, que «o processo sistemático encontra fundamento na lei de solidariedade entre os fenômenos coexistentes. Não se encontra um princípio isolado, em ciência alguma; acha-se cada um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem corolários; uns e outros se condicionam restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que constituem elementos autônomos operando em capôs diversos. Cada preceito, portanto, é membro de um grande todo; por isso do exame em conjunto resulta bastante luz para o caso em apreço». No tocante ao elemento teleológico, explica o jurista, «considera-se o Direito como uma ciência primariamente normativa ou finalística; por isso mesmo a sua interpretação há de ser, na essência, teleológica. O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesse para a qual foi regida». In: MaxiMiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 105 e 124-125.6 viehweg, Theodor. Tópica e jurisprudência. Trad. Tércio Sampaio Ferraz Junior. Brasília: UnB, 1979, p. 17.7 A tópica realmente tem um nítido caráter pragmático e concretista, pois, no dizer de Karl Larenz, «em tal discussão são considerados relevantes diversos pontos de vista (topoi) que se mostrem aptos a servir de argumentação pró ou contra a solução ponderada. De entre eles, o argumento sobre as consequências (“o que ocorreria se fosse adotada esta ou aquela solução”)

33introdução

Desse modo, não é possível descrever o direito de forma estática, como Kelsen, pois «uma consideração cega aos fins, ou cega aos valores, é pois aqui inadmissível, e assim também a respeito do direito ou de qualquer fenômeno jurídico» (Radbruch).8

Por fim, há uma humilde homenagem aos cem anos de nascimento do genial Adoniran Barbosa, ocorridos em 06 de agosto de 2010, relatando o conteúdo social e urbanístico de seus sambas, os quais estão imbricados de traços de uma cultura do cotidiano da cidade, em uma São Paulo sob o impacto da modernização industrial.9

desempenha um papel de particular importância». In: larenz, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 170.8 raDBruCh, Gustav. Filosofia do direito. Trad. de Luís Cabral de Moncada. 6. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1997, p. 44. Radbruch (1878/1949), jusfilósofo alemão, catedrático da Universidade de Heidelberg, foi perseguido pelo regime nazista e desenvolveu teoria jusnatu-ralista de proteção aos direitos fundamentais, embasados por uma filosofia dos valores de origem neokantiana. Sua teoria teve influência decisiva em vários autores, com destaque para Miguel Reale e Robert Alexy.9 «Adoniran, como narrador da metrópole, traduz a modernidade a partir de uma percepção que se alimenta de um sentido de cotidiano, negado pela racionalidade que move a transmutação do espaço da cidade – valor de uso – em metrópole – valor de troca. Em sua obra, inscrita no universo da cultura popular, apropria-se do urbano, inventando uma narrativa do moderno à margem das imposições da ordem dominante». In: roCha, Francisco. Adoniran Barbosa, o poeta da cidade. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2002, p. 20.

Aguenta a Mão, João

Adoniran BarbosaComposição: Adoniran Barbosa / Hervé Clodovil

Não reclama Contra o temporal Que derrubou teu barracão Não reclama Guenta a mão João Com o Cibide Aconteceu coisa pior Não reclama Pois a chuva Só levou a tua cama Não reclama Guenta a mão João Que amanhã tu levanta Um barracão muito melhorC’o Cibide coitado Não te contei? Tinha muita coisa A mais no barracão A enxurrada levou seus Tamanco e o lampião E um par de meia que era De muita estimação O Cibide tá que tá dando Dó na gente Anda por aí Com uma mão atrás E outra na frente

Capítulo I

NOÇÃO GERAL DE DIREITO URBANÍSTICO

suMário: 1.1 Conceito de Direito Urbanístico, urbanismo, urbanização e urba-nificação – 1.2 Identificação da ordem jurídico-urbanística; 1.2.1 Princípio da função social da propriedade; 1.2.2 Princípio da função social da cidade; 1.2.3 Princípio da obrigatoriedade do planejamento participativo; 1.2.4 Princípio da justa distribuição dos ônus decorrentes do processo de urbanização; 1.2.5 Princípio da coesão dinâmica; 1.2.6 Princípio da cooperação entre os setores público e privado – 1.3 As funções urbanísticas e as Cartas de Atenas; 1.3.1 A Carta de Atenas de 1933; 1.3.2 A Nova Carta de Atenas; 1.3.3 Habitação; 1.3.4 Trabalho; 1.3.5 Circulação; 1.3.6 Recreação.

1.1 CONCEITO DE DIREITO URBANÍSTICO, URBANISMO, URBANIZAÇÃO E URBANIFICAÇÃO

O Direito Urbanístico, uma disciplina jurídica relativamente nova, é fruto das transformações sociais que vêm ocorrendo nos últimos tempos em decorrência do processo de forte crescimento urbano.

O termo «urbanístico» vem de urbanismo, palavra que vem do latim «urbs», que, por sua vez, significa cidade. O conceito de urbanismo1 é,

1 «O urbanismo é entendido hoje como uma ciência, uma técnica e uma arte ao mesmo tempo, cujo objeto é a organização do espaço urbano, visando ao bem-estar coletivo, realizado por legislação, planejamento e execução de obras públicas que permitam o desempenho harmônico

38 Paulo afonso cavichioli carmona

portanto, estreitamente ligado à cidade e, mais do que isso, às necessidades do ser humano nas cidades. O que é, então, a cidade? Todo núcleo habitacional pode receber o título de urbano?

Existem diversas concepções que tratam do conceito de cidade:

a) critério demográfico-quantitativo – é o mais utilizado e difundido. Por ele se valoriza o número de habitantes e/ou a densidade populacional – como exemplo, no Canadá e Escócia, o critério é de 100 moradores, enquanto para a Holanda, 5 mil habitantes caracterizam uma cidade, para a ONU, 20 mil habitantes, para os EUA, 50 mil;

b) critério econômico – apoia-se na doutrina de Max Weber –, em que se considera cidade uma «localidade de mercado», onde exista um mínimo de comércio, artesanato, negócios, manufaturas, indústrias, fomento de cultura e exercício do poder público – leva em conta a existência de uma camada urbana com produção e consumo;

c) critério funcional – valoriza a influência exercida pela cidade sobre as áreas envolvidas e o tipo de atividades a que a população se dedica, que devem ser, majoritariamente, do setor secundário e terciário;2

d) critério de subsistemas – considera a cidade como um conjunto de subsistemas administrativos (sede de organizações públicas), comerciais (centro de relações comerciais), industriais (centro de produção de manufa-turas), socioculturais (produção educacional, recreativa, cultural, religiosa etc.);

e progressivo das funções urbanas elementares: habitação, trabalho, recreação e circulação no espaço urbano». In: Di sarno, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico. Barueri-SP: Manole, 2004, p. 7. A palavra urbanismo – que etimologicamente quer dizer ciência do planejamento das cidades – apareceu pela primeira vez em 1910 em um artigo de Paul Clerget no Boletim da Sociedade Geográfica de Neufchâtel. Aliás, naquele ano ocorreu o Congresso de Higiene de Londres, em que se encontraram reunidos os grandes pioneiros do urbanismo: o berlinense J. Stübben (autor do primeiro tratado de planejamento das cidades), o escocês Patrick Geddes (biólogo e sociólogo), Louis Bonnier, Thomas Adam, Eugène Hénard (inventor da rotatória e das vias suspensas), Ebenezer Howard (autor da teoria Garden-City), Raymond Unwin, Daniel Burnham, dentre outros. In: BarDet, Gaston. Trad. Flávia Cristina S. Nascimento. O urbanismo. 2. ed. Série Ofício de Arte e Forma. Campinas-SP: Papirus, 2001, p. 23-24.2 De acordo com o Dicionário Aurélio, setor primário é o conjunto de atividades (agricultura, atividades extrativas) voltadas à produção de mercadorias não transformadas; setor secundário é o conjunto de atividades produtivas (indústria de transformação, construção civil) voltadas à transformação de matérias-primas em produtos acabados; setor terciário é o conjunto de atividades produtivas (serviços em geral) de que não resultam bens tangíveis. In: Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo, 2010, p. 1.925.

39noção geral de direito urbanístico

e) critério jurídico-administrativo – aplica-se às cidades definidas por decisão legislativa, como forma de incentivar o povoamento, de recompensar os serviços prestados ou de garantir a defesa de regiões de fronteira.

Assim, em Portugal, por exemplo, conjugam-se os critérios demográfico, funcional e jurídico-administrativo, admitindo-se uma ponderação diferente em casos que, por razões históricas, culturais e arquitetônicas, possam justi-ficar a elevação do centro urbano em cidade.

De acordo com José Afonso da Silva:

«Os conceitos demográfico e econômico não servem para definir as cidades brasileiras, que são conceitos jurídico-políticos, que se aproximam da concepção das cidades como conjuntos de sistemas. O centro urbano no Brasil só adquire a categoria de cidade quando seu território se transforma em Muni-cípio. Cidade, no Brasil, é um núcleo urbano qualificado por um conjunto de sistemas político-administrativo, econômico não-agrícola, familiar, e simbó-lico como sede do governo municipal, qualquer que seja sua população. A característica marcante da cidade no Brasil consiste no fato de ser um núcleo urbano, sede do governo municipal.3

Enfim, do ponto de vista urbanístico, um centro populacional assume carac-terística de cidade quando possui dois elementos essenciais: (a) as unidades edilícias – ou seja, o conjunto de edificações em que os membros de uma comunidade moram ou desenvolvem suas atividades produtivas, comerciais, industriais ou intelectuais; (b) os equipamentos públicos – ou seja, os bens públicos e sociais criados para servir às unidades edilícias e destinados a satis-fazer as necessidades de que os habitantes não podem prover-se diretamente e por sua própria conta (estradas, ruas, praças, parques, jardins, canalização subterrânea, escolas, igrejas, hospitais, mercados, praça de esportes etc.).»4

Assim, não é nada fácil conceituar cidade, porque admitem-se diversos enfoques. Henri Lefebvre, por exemplo, assenta que «a cidade é a projeção da sociedade sobre um local»;5 para Sjoberg Gideon, «é uma comunidade de dimensões e densidade populacional consideráveis, abrangendo uma varie-dade de especialistas não-agrícolas, nela incluída a elite culta»;6 já Philippe

3 Ousa-se discordar de tal entendimento, pois no Brasil existem vários núcleos urbanos que não foram elevados à categoria de Municípios, na forma do § 4.º do art. 18 da CF/1988, e nem por isso deixam de ser objeto do Direito Urbanístico, conforme esclarecido adiante.4 silva, José Afonso. Direito urbanístico brasileiro. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 25-26. 5 leFeBvre, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Documentos, 1969, p. 56.6 sjoBerg, Gideon. Origem e evolução das cidades. Cidades, a urbanização da humanidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1972, p. 38. Anote-se que boa parte dos doutrinadores destaca, tal como o autor citado, o aspecto da concentração populacional como uma consequência natural do sistema de produção capitalista. Citem-se: Castells, Manuel. A questão urbana. Trad. Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000; e singer, Paul. Economia política da urbanização. São Paulo: Brasiliense, 1973.

40 Paulo afonso cavichioli carmona

Panerai destaca que faz mais sentido utilizar a metáfora tecido urbano, cons-tituído pela superposição ou imbricação de três conjuntos: a rede de vias, os parcelamentos fundiários e as edificações.7

Desse modo, a cidade é mais do que uma aglomeração de pessoas (habi-tantes ou visitantes) e de objetos (edifícios, residências, ruas, praças etc.). Ela deve ser entendida em seu aspecto dinâmico. Por isso, Lewis Mumford a concebe como um organismo vivo, palco de vivências humanas complexas (econômicas, políticas, religiosas e culturais).8 Nesse sentido, Hermes Ferraz pontifica que «a cidade é, assim, um organismo vivo em perene transformação, porque o homem, enquanto ser social, transforma-se constantemente».9

Direito Urbanístico, portanto, é conceituado como «um ramo do Direito Público que tem por objeto normas e atos que visam à harmonização das funções do meio ambiente urbano, na busca pela qualidade de vida da coletividade»,10 ou como o «conjunto de normas que têm por objeto organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem na comunidade»,11 ou ainda o «conjunto de técnicas, regras e instru-mentos jurídicos, sistematizados e informados por princípios apropriados, que tenha por fim a disciplina do comportamento humano relacionada aos espaços habitáveis».12

Dessa forma, há que superar, como objeto do Direito Urbanístico, as dicotomias «urbano X rural» e «cidade X campo».

Com efeito, tudo que é relativo à fixação do homem em espaços habi-táveis e que está ligado à geografia, planificação e construção nas cidades deve ser estudado pelo Direito Urbanístico. Essa visão integrada da cidade foi acolhida pelo Estatuto da Cidade, que determina que o plano diretor deverá englobar o território do Município como um todo (art. 40, § 2.º), tendo em vista a integração e a complementaridade entre as atividades urbanas e rurais (art. 2.º, VII).

Nesse sentido, Gastón Bardet assevera que «(...) no presente, portanto, o urbanismo designa o planejamento do solo em todas as escalas, o estudo de

7 Panerai, Philippe. Análise urbana. Trad. Francisco Leitão. Coleção Arquitetura e Urbanismo. Brasília: Ed. UnB, 2006, p. 77-78.8 MuMForD, Lewis. Trad. Neil. R. da Silva. A cidade na história. Suas origens, transfor-mações e perspectivas. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 9 Ferraz, Hermes. Filosofia urbana. Tomo I. São Paulo: João Scortecci, 1997, p. 51.10 Di sarno, Daniela Campos Libório. Op. cit., p. 32. 11 silva, José Afonso da. Op. cit., p. 49.12 Moreira neto, Diogo de Figueiredo. Introdução ao direito ecológico e ao direito urbanístico (instrumentos jurídicos para um futuro melhor). 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 56. Aliás, essa foi a primeira obra geral sobre o tema, publicada no Brasil e cuja primeira edição data de 1975.

41noção geral de direito urbanístico

todas as formas de localização humana sobre a terra. Partindo da organização de grupos densos, ele teve que se estender a toda a “economia territorial” (G. Sébille), não tendo outro limite a não ser o oceano. Pode-se dizer que o Urbanismo tornou-se um Orbanismo».13

Assim, a legislação urbanística cuidará da política de expansão urbana (passagem de área da zona rural para urbana – art. 182, § 1.º, CF/1988), da proteção dos recursos naturais necessários ao desenvolvimento da cidade como um todo, da promoção de condições adequadas de saneamento básico para população rural (arts. 48, VII, e 49, IV, Lei 11.445/2007), da proteção das áreas rurais de interesse turístico etc. O limite é o Direito Agrário, cujo objeto é a política agrária e a reforma agrária, disciplinadas nos arts. 184/191 da CF/1988, de competência privativa federal (art. 22, I, CF/1988).

A par disso, a recente urbanização brasileira – como fenômeno de concentração populacional urbana – fez nascer uma série de problemas socio-econômicos, como a carência de habitação e educação, desemprego, degra-dação ambiental, ausência de segurança pública e saneamento básico.

A palavra urbanização tem sido utilizada com diversos significados. Urbanização significa processo de criação ou de desenvolvimento de orga-nismos urbanos, segundo os princípios do urbanismo; conjunto dos traba-lhos necessários para dotar uma área de infraestrutura (por exemplo, água, esgoto, gás, eletricidade); e/ou de serviços urbanos (por exemplo, transporte, educação, saúde); fenômeno caracterizado pela concentração cada vez mais densa, de população em aglomerações de caráter urbano.14

José Afonso da Silva emprega-a para designar o processo pelo qual a população urbana cresce em proporção superior à população rural, esclare-cendo que não se trata de mero crescimento das cidades, mas de um fenômeno de concentração urbana. Assim, a sociedade de determinado país reputa-se urbanizada quando a população urbana ultrapassa 50%.15

Conforme ensina o doutrinador português Luís Filipe Colaço Antunes, o termo foi utilizado pela primeira vez pelo engenheiro Ildefonso Cerdà, na sua Teoría General de La Urbanización y Aplicación de sus Principios y Doctrinas a La Reforma y Ensanche de Barcelona, Madrid (1867), para denominar a ciência da organização espacial da cidade, tarefa do urbanista.

13 Op. cit., p. 33.14 Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Op. cit., p. 2.118. Neste último sentido, Gaston Bardet ensina que o fenômeno da urbanização é conhecido como fenômeno do «repleto», em que «Tudo está repleto. Nada é suficientemente grande para conter as multidões: nem as cidades, nem os edifícios, nem os lugares. É a época das massas, trazendo com ela a época do colossal (...)». Op. cit., p. 7-8.15 Op. cit., p. 26.

42 Paulo afonso cavichioli carmona

Na atualidade, urbanização ainda pode significar a organização de um terreno para habitar.16

Com efeito, urbanização, usualmente, é um fenômeno associado ao desenvolvimento das cidades. Assim, a concepção de urbanizar não deveria se desvincular da noção de cidadania, que é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (CF/1988, art. 1.º, II), aspecto enfatizado pela geógrafa Elza Maria Alves Canuto:

«Adotando-se o conceito demográfico de urbanização – aumento do percentual da população urbana em relação ao total – ou seja, o crescimento da população urbana em relação à rural, percebe-se a inconsistência da reali-dade, em face do significado de urbanização, correlacionado ao habitante da cidade. O seu sentido, como implantação de equipamentos e benfeitorias para urbanizar o espaço, usualmente utilizado pelos arquitetos e urbanistas, também destoa do significado da palavra, em relação ao cidadão. A Geografia utiliza os dois conceitos de urbanização, mas, em qualquer deles, constata-se, o sentido da palavra está diminuído, está lacerado, pois não é possível pensar em urba-nizar sem que se pense o cidadão, sem que se pense no cidadão. Não se pode entender o processo de urbanização de favelas como civilizar. Tornar urbano é tornar o indivíduo civil, polido, dando-lhe conhecimento e condições de viver e conviver dignamente em sociedade.»17

No presente estudo, adotam-se as duas concepções do termo, a demográ-fica – para a qual se prefere a palavra urbanização – e a técnica, no sentido de processo de implantação de infraestrutura urbana a fim de atender à cidadania e à dignidade da pessoa humana – para a qual se utiliza o vocábulo urbanifi-cação.18

16 antunes, Luís Filipe Colaço. Direito urbanístico. Um outro paradigma: a planificação modesto-situacional. Coimbra: Almedina, 2002, p. 59-60. 17 Canuto, Elza Maria Alves. Direito à moradia urbana. Aspectos da dignidade da pessoa humana. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 200.18 José Afonso da Silva ensina que a «urbanificação assume várias formas, que se agrupam numa espécie de urbanificação comum e numa espécie de urbanificação especial. A primeira realiza-se pelo parcelamento urbanístico do solo, que se aperfeiçoa mediante as chamadas urbanificação primária e urbanificação secundária. A segunda realiza-se por meio da renovação urbana, da urbanificação prioritária, da urbanificação compulsória, e outras (...), sob a denominação geral de ordenação de áreas de interesse urbanístico especial (...). São de urbani-ficação prioritária as obras de arruamento, de espaços para estacionamento, de escoamento de águas pluviais, de coleta, tratamento e despejo de águas servidas e suas respectivas redes, de alimentação e distribuição de água potável e respectiva rede, de distribuição de energia elétrica e de gás, de colocação de guias e sarjetas, de iluminação pública, e semelhantes. São de urbanificação secundária todas as obras que servem para obter o beneficiamento completo do território, como as de ligação da zona com os serviços públicos, a instalação de escolas, mercados, praças de esporte, centros sociais, culturais, igrejas e outros edifícios para serviços religiosos, áreas verdes, parques etc.» (op. cit., p. 325).

43noção geral de direito urbanístico

O Brasil passou por um veloz crescimento urbano no século passado, a ponto de ter, de acordo com as estatísticas oficiais, cerca de 85% de sua população de quase 200 milhões de habitantes vivendo no espaço urbano de 5.565 municípios, segundo dados do Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano de 2010.19

Ademais, as desigualdades sociais e regionais são assustadoras. A região Sudeste concentra 42% da população nacional e, juntamente com a região Nordeste, responde por 75% do deficit habitacional brasileiro. Enquanto na região Sudeste mais de 80% dos domicílios são servidos pela rede geral de esgoto sanitário, no Nordeste esse índice não chega a 40%. No Maranhão, um dos Estados mais pobres da Federação, 55% das famílias têm renda mensal inferior a um salário mínimo.

Um em cada vinte brasileiros vive em São Paulo, a cidade mais populosa do país, na qual a mais absoluta pobreza contrasta com o território de «ilhas» urbanas de luxo e riqueza. As outras regiões metropolitanas brasileiras não discrepam do abismo social, econômico e urbanístico que atinge a capital paulistana.

Além disso, dados de 2003 divulgados pelo IBGE20 comprovam que 36,8% dos municípios brasileiros têm loteamentos irregulares ou ilegais e 23% possuem favelas. Não bastasse isso, todas as cidades brasileiras com mais de 500 mil habitantes possuem tanto favelas quanto loteamentos irregulares ou ilegais, sendo certo que 70% de todas as favelas estão nessas cidades. Nas regiões metropolitanas a situação é pior ainda, já que 79% das cidades têm favelas. Ademais, 47% das prefeituras declararam não ter qualquer programa ou ação habitacional.

Os índices de urbanização e de desigualdades sociais também são alar-mantes na América Latina, visto que, de cada 10 latino-americanos, 4 são favelados ou residem em moradias precárias.21 Aliás, a ONU, em seu «Rela-tório Global sobre Aglomerações Urbanas» (resumo do encontro Conferência Habitat II, realizada em Istambul, Turquia, em 1996), revela que, de 1995

19 Disponível em: <http://www.censo2010.ibge.gov.br/>. Acesso em 15.01.2012. Ainda de acordo com o IBGE, em 2010, a população brasileira residente em área urbana era de 84,36% dos 196.655.014 habitantes. O mesmo estudo aponta Burindi, na África Oriental, como país com a menor percentual da população urbana (11%), enquanto Cingapura, Mônaco, Vaticano e Nauru (na Micronésia) possuem os maiores índices (100%). Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/paisesat/>. Acesso em: 15.01.2012.20 Trata-se da pesquisa Perfil dos municípios brasileiros/2001, divulgada em 13.11.2003. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em 15.11.2009.21 Para uma consulta mais detalhada, confira-se em alFonsiM, Betânia & FernanDes, Edésio (Orgs.). Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 23-25.

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a 2015, a população urbana nos países subdesenvolvidos deve crescer 52%, enquanto nos industrializados esse índice poderá atingir até 7%.22

Daí o porquê de o estudioso do tema José Carlos Freitas ter salientado que:

«Nesse contexto de cidades despreparadas para acolher o imenso contin-gente humano e absorver as demandas sociais, era de se esperar algumas consequências negativas, como o colapso do sistema de transportes, os conges-tionamentos no trânsito, o aumento de processos erosivos, os assoreamentos dos rios e a impermeabilização do solo como fatores desencadeantes das inundações, a proliferação de habitações subnormais, a ocupação de áreas de proteção ambiental, a precariedade do saneamento básico, a “favelização”, o desemprego e a violência.»23

A solução desses problemas advém da intervenção do Poder Público, especialmente o municipal, ao procurar transformar o meio urbano, corrigindo as mazelas trazidas pela urbanização (cuja designação, cunhada por Gastón Bardet,24 deve ser urbanificação), consistente na aplicação dos princípios do urbanismo, advertindo que esta é o remédio para aquela, que é o mal.

1.2 IDENTIFICAÇÃO DA ORDEM JURÍDICO-URBANÍSTICA

Para Carlos Ari Sundfeld, a ordem urbanística é um conceito caro ao Estatuto da Cidade e possui dois sentidos diferentes: o primeiro é o de ordena-mento: a ordem urbanística é o conjunto orgânico de imposições vinculantes (são as normas de ordem pública a que alude o art. 1.º, parágrafo único) que condicionam positiva e negativamente a ação individual na cidade; o segundo sentido é o de estado: a ordem urbanística é um estado de equilíbrio, que o conjunto de agentes envolvidos é obrigado a buscar e preservar.25

Não se pode olvidar que, no Brasil, o Direito Urbanístico é a expressão jurídica dos conflitos existentes no meio ambiente urbano e seus pressupostos devem estar obrigatoriamente relacionados à dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, da CF/1988), que é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, bem como à erradicação da pobreza e à redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3.º, III, da Carta Magna), objetivos fundamentais do Estado brasileiro.

22 ONU. As situações das cidades no mundo. Relatório Global sobre as Aglomerações Humanas. Nações Unidas, 1996.23 Freitas, José Carlos. O Estatuto da Cidade e o equilíbrio do espaço urbano. Temas de Direito Urbanístico 3. Centro de Apoio das Promotorias de Justiças da Habitação e Urbanismo – CAOHURB. São Paulo: Ministério Público do Estado de São Paulo/Imprensa Oficial, 2001, p. 441.24 Op. cit., p. 7, nota 2.25 Op. cit., p. 54.

45noção geral de direito urbanístico

A existência de uma ordem urbanística tem sua afirmação nos seguintes princípios, em uma visão ampla: função social da propriedade, função social da cidade, obrigatoriedade do planejamento participativo, justa distribuição do ônus decorrente do processo de urbanização, coesão dinâmica e coope-ração entre os setores público e privado.

1.2.1 princípio da função social da propriedade

A propriedade pode ser conceituada como um vínculo jurídico que une uma pessoa (sujeito ativo) a uma coisa, de tal forma que todas as outras pessoas (sujeito passivo) têm o dever de respeitá-la (erga omnes), não podendo violá-la. Essa é uma visão civilista, muito limitada e ultrapassada, prevista no Código Civil de 1916, que estabelece, no art. 524, que ao proprietário cabe o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, podendo reavê-los de quem quer que injustamente os possua. O art. 1.228, caput, do NCC repetiu referido dispositivo, porém seu § 1.º deixou claro que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com suas finalidades econômicas e sociais.26

Vale lembrar que essa concepção do direito de propriedade, marcada-mente individual, também prevaleceu na Antiguidade (Roma).

Durante a Idade Média, entretanto, o Regime Feudal fragmentou os poderes inerentes à propriedade (domínio eminente para a nobreza e domínio útil para os servos), o que foi um importante fator para manter o poder da realeza.

Todavia, com a Revolução Francesa, que repudiou o sistema feudal e tentou abolir as diferenciações sociais (liberdade, fraternidade e igualdade), foi revivido o sistema anterior (período romano), ou seja, uma concepção individualista da propriedade. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, proclamada pela Assembleia Constitucional da Revolução Francesa, consagrava a proteção aos direitos naturais, entre eles a propriedade, considerada inviolável e sagrada.

Os graves problemas sociais, que envolveram o Ocidente em conse-quência da I Guerra Mundial, alteraram a estrutura conservadora dos governos.

26 Convém salientar que não se confundem os conceitos de propriedade e direito de propriedade, assim como são distintos os de liberdade e direito de liberdade, pois o direito de propriedade é expressão da propriedade tal como admitido no sistema jurídico (o modo como o Direito brasileiro abriga a propriedade). «Por isso, rigorosamente falando, não há limitações adminis-trativas ao direito de liberdade e ao direito de propriedade – é brilhante a observação de Alessi –, uma vez que estas simplesmente integram o desenho do próprio perfil do direito. São elas, na verdade, a fisionomia normativa dele». In: alessi, Renato. Sistema Instituzionale del Diritto Administrativo Italiano. 3. ed. Milão: Giuffrè, 1960, p. 533, apud BanDeira De Mello, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 693.

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Passaram a ser acatados os direitos sociais e o Estado, cada vez mais, passou a intervir na sociedade, de tal forma que os direitos individuais não foram abolidos, mas comprimidos, alterados. O que antes era só direito transforma--se em direito-dever, pois há de cumprir sua função social, razão pela qual, atualmente, fala-se em propriedade-função social.27

Não poderia ser diferente, já que o direito se transforma continuamente no ritmo da história cuja evolução ele segue, refreia ou incentiva, de maneira que traduz as condições de seu tempo e traz os estigmas da época em que se formou.28 Nesse sentido, tem-se a conhecida crítica que Julius Von Kirch-mann fez à ciência jurídica, em 1847: «o sol, a lua, as estrelas brilham hoje da mesma forma que há milhares de anos; a rosa desabrocha ainda hoje tal como no paraíso; o Direito, porém, tornou-se desde então diferente. O casamento, a família, o Estado, a propriedade passaram pelas mais diversas configurações».29

No Brasil, antes de aparecer expressamente mencionado na Constituição Federal de 1967, o princípio da função social da propriedade já serviu de inspiração para a inclusão de nova modalidade de desapropriação (por inte-resse social – Lei 4.132/1962), durante a vigência da CF/1946.30

A referida Carta de 1967 incluiu a função social da propriedade como um dos princípios da ordem econômica e social (art. 160, III), que coexistia com o direito de propriedade individual (art. 153, § 22). Tais prescrições tiveram inspiração na doutrina social da Igreja Católica, expostas nas Encíclicas Rerum Novarum31 (1891), do Papa Leão XIII, Mater et Magistra (1961), do

27 Ver, a propósito, raBahie, Marina Mariani de Macedo. Função social da propriedade. In: Dallari, Adilson Abreu & FigueireDo, Lúcia Valle (Coords.). Temas de Direito Urbanístico 2. São Paulo: RT, 1991, p. 213 e ss.28 Bergel, Jean-Louis. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 135.29 O Promotor de Justiça prussiano Julius Hermann Von Kirchmann utilizou as transcritas palavras em uma conferência pronunciada em Berlim em 1847. In: kirChMann, Julius Hermann Von. Die Wertlosigkeit der Jurisprudenz als Wissenschaft – Vortrag gehalten in der Juristischen Gesellschaft zur Berlin, 1848.30 A CF de 1946 incluiu o princípio da função social da propriedade no Título da Ordem Econômica e Social, nos seguintes termos: «O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos» (art. 147). De modo semelhante, a CF/1934 prescreve que «É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar» (art. 113, n. 17). As Constituições de 1824, 1891 e 1937 não contemplaram o princípio.31 «A propriedade particular, já o dissemos mais acima, é de direito natural para o homem: o exercício deste direito é coisa não só permitida, sobretudo a quem vive em sociedade, mas ainda absolutamente necessária» (santo Tomás, Sum. Teol., II-II, q. 66, a. 2). Agora, se se pergunta em que é necessário fazer consistir o uso dos bens, a Igreja responderá sem hesitação: «A esse respeito o homem não deve ter as coisas exteriores por particulares, mas sim por comuns,

47noção geral de direito urbanístico

Papa João XXIII, e Centesimus Annus (1991), do Papa João Paulo II, que tratou, de perto, a questão urbana.

A moderna doutrina passa, então, a desenvolver o tema, salientando que a propriedade deve cumprir sua função social, mas que esse princípio não autoriza esvaziar o conteúdo mínimo do direito de propriedade (usar, gozar e dispor). Daí por que acuradamente assevera Celso Antônio Bandeira de Mello que:

«O direito de propriedade – ou seja, o reconhecimento que a organização jurídica da Sociedade (Estado) dispensa aos poderes de alguém sobre coisas – encarta-se, a nosso ver, no Direito Público e não no Direito Privado. É evidente que tal Direito comporta relações tanto de Direito Público quanto de Direito Privado. Entretanto, o direito de propriedade, como aliás sempre sustentou o prof. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello é, essencialmente, um direito confi-gurado no Direito Público e – desde logo – no Direito Constitucional.»32

A Carta Magna de 1988, imbuída da melhor doutrina, dá tratamento especial ao tema, já que pela primeira vez na história de nossas Constituições dedica capítulo específico à Política Urbana.

O Texto Constitucional, ao mesmo tempo em que garante o direito da propriedade (art. 5.º, XXII), determina que esta deve cumprir sua função social (XXIII), que também é incluída como princípio da ordem econômica (art. 170, III). Prevê ainda o princípio, no tocante à propriedade urbana, no art. 182, §§ 2.º e 4.º, e para propriedade rural, no art. 186, sob pena de desapro-priação para fins de reforma agrária (art. 184).

O princípio em tela é importantíssimo para a disciplina urbanística, de tal monta que se pode afirmar, sem qualquer excesso, que falar de função social da propriedade é falar de Direito Urbanístico. Por outras palavras, o Direito Urbanístico tem como núcleo central a função social da propriedade.

Conforme salientado, a CF/1988 trouxe importantes avanços ao trata-mento conferido ao direito de propriedade e à sua função social, pois tratou de definir o seu conteúdo e de instituir formas de sanção para garantir seu cumprimento. Fixado o princípio de que a propriedade deve atender à sua função social, questiona-se o que vem a ser tal função.

Ensina, mais uma vez, Bandeira de Mello:

de tal sorte que facilmente dê parte delas aos outros nas suas necessidades. É por isso que o Apóstolo disse: Ordena aos ricos do século (...) dar facilmente, comunicar as suas riquezas» (Santo Tomás, Sum. Teol., q. 65, a. 2). LEÃO XIII (1891: 14).32 BanDeira De Mello, Celso Antônio. Novos aspectos da função social da propriedade no direito público. Revista de Direito Público, São Paulo, vol. 84, out.-dez. de 1987, p. 39-45.

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«Existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer deter-minadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são instru-mentais ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na função não teria como se desincumbir do dever posto a seu cargo. Donde, quem os titulariza maneja, na verdade, “deveres-poderes”, no interesse alheio.»33

Sem sombra de dúvida, a grande novidade está em atribuir «função» ao proprietário particular, já que na atividade dos particulares prevalece a sua vontade, pois lhe são permitidos todos os comportamentos não proibidos pela lei (decorrência do princípio da legalidade – art. 5.º, II, CF/1988).

Discorrendo acerca do tema, Carlos Ari Sundfeld certifica que a CF/1988, ao acolher o princípio da função social da propriedade, pretendeu imprimir--lhe uma significação pública, isto é, pretendeu trazer ao Direito Privado algo até então tido por exclusivo do Direito Público – o condicionamento do poder a uma finalidade. Esclarece ainda que não se trata de extinguir a proprie-dade privada, mas de vinculá-la a interesses outros que não os exclusivos do proprietário.34

Tal evolução histórica do conceito do direito de propriedade encerra suas origens na construção jurídica de Léon Duguit, que, em sua célebre obra Les Transformations Générales du Droit Privé depuis le Code Napoleón (1911), propôs o conceito de propriedade-função social, demonstrando-a da seguinte forma:

«Todo indivíduo tem a obrigação de cumprir na sociedade uma certa função, na razão direta do lugar que nela ocupa. Ora, o detentor da riqueza, pelo próprio fato de deter a riqueza, pode cumprir uma certa missão que só ele pode cumprir. Somente ele pode aumentar a riqueza geral, assegurar a satisfação das necessidades gerais, fazendo valer o capital que detém. Está, em consequência, socialmente obrigado a cumprir esta missão e só será socialmente protegido se cumpri-la e na medida em que o fizer. A propriedade não é mais o direito subjetivo do proprietário; é a função social do detentor da riqueza.»35

33 Op. cit., p. 43. Aliás, a Administração Pública exerce função (denominada função adminis-trativa) porque está atrelada ao cumprimento de certas finalidades (como garantir o bem-estar dos habitantes da cidade), sendo-lhe obrigatória objetivá-las no interesse de outrem: a coleti-vidade. Na irrepreensível lição de Ruy Cirne Lima, «na administração o dever e a finalidade são predominantes; no domínio, a vontade», ou ainda, «Administração é a atividade do que não é senhor absoluto» (liMa, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo. 3. ed. São Paulo: RT, 1982, p. 45 e 21).34 sunDFelD, Carlos Ari. Função social da propriedade. In: Dallari, Adilson Abreu & FigueireDo, Lúica Valle (Coords.). Temas de Direito Urbanístico 1. São Paulo: RT, 1987, p. 5.35 Duguit, Léon. Les Transformations Générales du Droit Privé depuis le Code Napoleón. 19. ed. Paris: Librairie Félix Alcan, 1920, p. 158.

49noção geral de direito urbanístico

Donde se pode concluir que o particular-proprietário possui, na reali-dade, um dever-poder, e não um simples direito de propriedade marcado pelo jus utendi, fluendi et abutendi, já que tais poderes são instrumentos dispostos ao alcance das finalidades sociais.

Das afirmações feitas decorre, logicamente, outra indagação: quando uma propriedade está atendendo à sua função social?

Teoricamente, a questão é de difícil trato, mas certamente não estará atendendo à sua função social a propriedade que estiver sendo utilizada para fins de especulação imobiliária, a qual não pode ser considerada mais mero exercício do direito de propriedade, mas sim um violento atentado cometido contra a coletividade. Pode-se atestar que, embora não seja a única causa que leva ao não atendimento da função social, seguramente é a mais importante.

Por essa razão asseverou Adilson Abreu Dallari:

«A ideia de propriedade como função social, encampada pela Constituição, abre imensas possibilidades de uma atuação urbanística eficiente por parte do Poder Público. Pelo menos, de imediato, já revela que a detenção da terra urbana com propósitos puramente especulativos, para auferir as plusvalias decorrentes do trabalho da coletividade não tem e não pode ter amparo legal.»36

Cabe, então, ao Poder Público, tomar as medidas para solucionar problemas de índole urbanística, tentando ao menos diminuir essa tendência – que parece ser natural, mas não é – de o particular proprietário utilizar-se do bem para fim especulativo.

Para tanto, a CF/1988 inova, fixando o conteúdo da função social da propriedade (§ 2.º, art. 182), nos exatos termos: «a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação das cidades expressas no plano diretor», regra esta reiterada no art. 39, caput, do Estatuto da Cidade.

O Plano Diretor, por sua vez, é o instrumento básico da política de desen-volvimento e expansão urbana (§ 1.º do art. 182 da CF/1988 e art. 40, caput, da Lei 10.257/2001), ou seja, o mais importante instrumento de planejamento urbano municipal. Deve ser aprovado por lei, ser parte integrante do processo de planejamento municipal, ser revisto, pelo menos, a cada dez anos, ser elaborado de maneira participativa e englobar todo o território do Município (§§ 1.º a 4.º do art. 40 do Estatuto da Cidade). Enfim, o plano urbanístico diretor é instrumento pelo qual a Administração Pública local poderá deter-minar quando, como e onde edificar e/ou utilizar o imóvel pelo proprietário, tendo em vista o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à quali-

36 Dallari, Adilson Abreu. Direito à habitação. Revista da Secretaria de Assuntos Jurídicos, Prefeitura da Cidade do Recife, Ano V, n. 5, p. 127.

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dade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas (art. 39, in fine, Estatuto citado).

Nesse sentir, os princípios – ensina Celso Antônio Bandeira de Mello – são as vigas mestras do edifício jurídico, ou seja, são as regras básicas, implícitas ou explícitas que, por sua grande generalidade, ocupam posição de destaque no mundo jurídico e, por isso, vinculam o entendimento e a aplicação, desde os simples atos normativos, até os próprios mandamentos constitucio-nais. Daí se pode afirmar que a desobediência a um princípio é mais danosa ao sistema jurídico, porque gera consequências mais graves. Transcrevem-se as suas refletidas palavras:

«Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qual-quer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade, ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do prin-cípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.»37

Ressaltada a importância dos princípios, cumpre, agora, inquirir qual a sanção prevista constitucionalmente para o descumprimento do princípio da função social da propriedade, outra inovação importante trazida pela CF/1988, em seu art. 182, § 4.º.

Verifica-se que do dispositivo mencionado extraem-se diversas ideias importantes:

(1) dever-poder do poder público local e não uma mera faculdade como parece estar contido na dicção constitucional («é facultado»), dando ensejo à interpretação equivocada de que o Poder Público não está obrigado a exigir dos proprietários de bens imóveis inseridos em seu território urbano que promovam seu adequado aproveitamento, o que ensejaria a possibilidade de descumprimento do princípio da função social da propriedade, em total desrespeito ao preceito constitucional inserido no inciso XXIII do art. 5.º;38

37 Op. cit., p. 808.38 Advirta-se, no entanto, que, a nosso ver, fere o princípio da razoabilidade um plano diretor que estenda a toda cidade a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar compulsoriamente a propriedade, pois isso não redunda em um planejamento sério, mas sim uma forma indireta de aumento de arrecadação pela cobrança de IPTU progressivo no tempo, em flagrante desvio de finalidade.

51noção geral de direito urbanístico

(2) ao fazer a exigência que se acabou de mencionar, deverá fazê-lo do proprietário do imóvel39 (particular ou público?),40 que deve necessariamente ser localizado em área urbana41 e que descumpre sua função social, ou seja, que esteja não edificado ou esteja subutilizado ou não utilizado;

(3) tendo essa exigência como conteúdo a ordem para que promova seu adequado aproveitamento, isto é, para que, nos termos do plano diretor da cidade, promova-se sua utilização, edificação ou parcelamento;

(4) sob pena de se ver o proprietário sujeito a penalidades previstas nos incisos do § 4.º do dispositivo (utilização, edificação ou parcelamento compulsórios, IPTU progressivo no tempo e desapropriação com títulos da dívida pública);

(5) e que são penas sucessivas, nos termos da lei (Estatuto da Cidade), devendo ser aplicadas na ordem disposta, sendo certo que somente será possível a aplicação da penalidade seguinte quando a penalidade anterior, já aplicada, não tiver sido suficiente para gerar o pretendido efeito de forçar o proprietário a dar à sua propriedade a função que dela a sociedade espera;

(6) tudo mediante lei específica para a área incluída no plano diretor, que se trata de uma lei municipal ou distrital.

39 Discorda-se daqueles que defendem que a única pessoa que pode sofrer a sanção é proprietário, pois considera-se que o titular do domínio útil ou o possuidor a qualquer título também possam ser obrigados a dar adequado aproveitamento ao seu imóvel; a matéria, porém, é controversa na doutrina. 40 Acerca do princípio da função social da propriedade pública, confiram-se dois destacados trabalhos: Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Função social da propriedade pública. In: wagner junior, Luiz Guilherme da Costa (Coord.). Direito público. Estudos em homenagem ao Professor Adilson Abreu Dallari. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 561-572; e roCha, Sílvio Luis Ferreira da. Função social da propriedade pública. São Paulo: Malheiros, 2005.41 Algumas das referências legislativas existentes no sistema jurídico nacional para que deter-minado local possa ser considerado área urbana encontram-se no art. 32, §§ 1.º e 2.º, do CTN e no art. 4.º, I, do Estatuto da Terra (este último, em verdade, define «imóvel rural», mas, desta definição, retira-se, por interpretação a «contrario sensu», uma noção de imóvel urbano). Entretanto, parece-nos que, acertadamente, para fins urbanísticos, «o solo qualifica-se como urbano quando ordenado para cumprir destino urbanístico, especialmente a edificabilidade e o assentamento de sistema viário (...)» (silva, José Afonso. Op. cit., p. 71). Por sua vez, a Lei 11.977/2009 (Lei de Regularização Fundiária) prescreve, em seu art. 47, que, «para efeitos da regularização fundiária de assentamentos urbanos, consideram-se: I – área urbana: parcela do território, contínua ou não, incluída no perímetro urbano pelo Plano Diretor ou por lei municipal específica; II – área urbana consolidada: parcela da área urbana com densidade demográfica superior a 50 (cinqüenta) habitantes por hectare e malha viária implantada e que tenha, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implantados: a) drenagem de águas pluviais urbanas; b) esgotamento sanitário; c) abastecimento de água potável; d) distribuição de energia elétrica; e) limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos».

52 Paulo afonso cavichioli carmona

Por fim, salienta-se que a solução constitucional, esmiuçada pelo Esta-tuto da Cidade (arts. 5.º e 6.º), implica a imposição de verdadeira obrigação de fazer aos proprietários de imóveis urbanos. Essa ideia – de que a propriedade obriga – resulta do conceito de função social da propriedade, inserta em cons-tituições modernas pós-II Guerra Mundial, sendo as mais assinaladas delas as Constituições Mexicana de 1917 e de Weimar de 1919 (Alemanha).

1.2.2 princípio da função social da cidade

Cabe relembrar que os espaços urbanos são delimitados pelo exercício das funções tidas como elementares para uma cidade, as quais, conforme pres-crevem os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM), desde a famosa Carta de Atenas de 1933, encerram as atividades de habitar, trabalhar, recrear e circular. A propósito, a função social da cidade, princípio consagrado no Texto Constitucional (art. 182, caput), traduz a ideia fundamental de que a cidade é de todos, ou seja, que essas funções básicas devem ser possibilitadas a cada um dos cidadãos com a finalidade de construir uma sociedade justa, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, enfim promover o bem de todos (art. 3.º da CF/1988).

Desse modo, o princípio da função social da cidade dá respaldo e sustenta o princípio da função social da propriedade, posto que, mais que a proprie-dade, a cidade deve existir e servir a seus habitantes. Não se pode olvidar que a Carta Magna, em seu capítulo «da Política Urbana», relaciona de forma inconteste as funções sociais da propriedade urbana e da cidade.

Nesse ponto, o art. 182, caput, prescreve que «a política de desenvolvi-mento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes».

Em seguida, o seu § 2.º determina que «a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor», o que resulta na interdependência de ambos os institutos.

Além disso, esses dispositivos têm papel fundamental no direciona-mento da atuação tanto dos proprietários, como dos representantes do Poder Público, porque determinam os parâmetros a serem observados no atendi-mento da função social da propriedade em relação à cidade e da cidade em relação à propriedade, seus proprietários e habitantes, não ao acaso denomi-nados cidadãos.

Ademais, pela simples análise do § 4.º do mesmo art. 182, já se pode concluir em qual rumo deverão seguir as diretrizes gerais que serão fixadas pela lei federal, pelo Estatuto da Cidade e pelo plano diretor.

53noção geral de direito urbanístico

Nesse sentir, o proprietário de imóvel urbano será penalizado se o bem não for edificado, for subutilizado ou não utilizado, desde que haja essa previsão no plano diretor, o instrumento básico da política de desenvolvi-mento e expansão urbana, visto que, no contexto de uma cidade, as condições para a habitação, trabalho, lazer e até mesmo para a circulação dependem da disponibilidade de área urbana. Não é possível, então, que terrenos, casas, prédios ou até espaços vazios sejam não utilizados e deixem de colaborar com o bem-estar de todos os cidadãos.

Assim, caso a propriedade não atenda à sua função social de ser bem aproveitada dentro de uma cidade, colaborando para seu bom funcionamento, as sanções previstas buscarão, primeiro, compelir os proprietários a provi-denciarem sua utilização satisfatória e, em seguida, se não o fizerem, exigir o ressarcimento social – pelo pagamento de imposto progressivo e, por fim, pela desapropriação sanção, levando o proprietário à perda de seu bem para que o próprio Poder Público solucione a questão em prol da coletividade.

A par disso, o art. 183 da CF/1988 prescreve que «aquele que possui, como sua, área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural». Note-se, no entanto, que a usucapião especial urbana não atinge as áreas públicas, nos exatos termos do § 3.º do referido dispositivo constitucional («os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião»).42

Percebe-se que a Constituição não só penaliza aqueles que não dão função social à sua propriedade, como também garante o direito à moradia àqueles que mantêm imóveis antes abandonados, hoje cumpridores de sua função social.

Dito de outra forma, tanto a sanção aos proprietários de imóveis não edificados, subutilizados ou não utilizados, quanto a garantia de moradia aos que mantêm propriedades como suas são caminhos indicados pela Consti-tuição Federal para o atendimento das funções sociais das cidades.

Além desses parâmetros básicos apresentados pela Magna Carta, ela determina que cada um dos planos deverá estabelecer as exigências funda-mentais de cada cidade, com base nas diretrizes gerais fixadas em lei federal: o Estatuto da Cidade.

42 A mesma ressalva se estende para os imóveis públicos rurais (parágrafo único do art. 191 da CF/1988).

54 Paulo afonso cavichioli carmona

1.2.3 princípio da obrigatoriedade do planejamento participativo

A Constituição alberga a concepção de que o planejamento é obrigatório para o Estado e indicativo para o setor privado (art. 174), tendo o art. 182 definido qual é a principal ferramenta de planejamento das cidades: o plano diretor, que passa a ser o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.

O planejamento é, como salienta Carlos Ari Sundfeld,43 o verdadeiro pressuposto da ordem urbanística, advertindo, porém, que, «se é verdade que a própria existência do direito urbanístico é uma reação ao crescimento urbano sem ordem e aos caos gerado pelas atuações individuais, ele não pode traduzir-se na substituição do caos privado pelo caos estatal».

A finalidade do planejamento local é o adequado ordenamento do território municipal com o objetivo de disciplinar o uso, o parcelamento e a ocupação do solo urbano (art. 30, VIII, CF/1988). Em vista disso, a Lei da Política Nacional da Mobilidade Urbana determinou que, em Municípios acima de 20 mil habitantes e em todos os demais obrigados, na forma da lei, à elaboração do plano diretor, deverá ser elaborado o Plano de Mobilidade Urbana, integrado e compatível com os respectivos planos diretores ou neles inseridos (Lei 12.587/2012, art. 24, § 1.º).

Questiona-se, então: em que consiste o planejamento urbano? A Carta dos Andes, fruto do Seminário Internacional de Técnicos e Funcionários de Planejamento Urbano, realizado em 1958 em Bogotá, Colômbia, já assentava que planejamento:

«É o processo de ordenamento e previsão para conseguir, mediante a fixação de objetivos e por meio de uma ação racional, a utilização ótima dos recursos de uma sociedade em uma época determinada. O planejamento é, portanto, um processo de pensamento, um método de trabalho e um meio para propiciar o melhor uso da inteligência e das capacidades potenciais do homem para benefício próprio e comum.»44

De mais a mais, não basta o planejamento pura e simplesmente. Ele há de ser participativo, por expressa determinação constitucional (art. 29, XII), que estabelece a obrigatoriedade da cooperação das associações representativas no planejamento municipal. Não é por outra razão, aliás, que os arts. 2.º, II, e 40, § 4.º, ambos do Estatuto da Cidade, prescrevem, respectivamente, que a gestão democrática por meio da participação da população e de associa-

43 Op. cit., p. 56.44 Centro Interamericano de Vivenda e Planejamento (Cinva). Seminário de técnicos e funcio-nários em planejamento urbano. Carta dos Andes. Trad. Gustavo Neves da Rocha Filho. São Paulo: Bem-Estar, 1960, p. 9.

55noção geral de direito urbanístico

ções representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvol-vimento urbano, bem como os Poderes Legislativo e Executivo municipais devem garantir no processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade; II – a publicidade quanto aos documentos e infor-mações produzidos; III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos.

Acerca do tema, bem coloca a questão Victor Carvalho Pinto:

«Embora os princípios do urbanismo sejam de fácil compreensão, a sua aplicação concreta exige conhecimento técnico específico. Por esta razão, os planos e projetos têm que ser elaborados por profissionais qualificados. Isto não significa que os projetos urbanísticos não devam ser amplamente discu-tidos por toda a sociedade. Pelo contrário é preciso que a legislação garanta a possibilidade de participação da comunidade, já que é sua qualidade de vida que será diretamente afetada. Entretanto, não é possível uma discussão séria dos projetos urbanísticos pela sociedade na ausência de estudos técnicos a respeito de seus possíveis impactos.»45

Nesse sentido, o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo, Lei 13.430/2002, dispõe acerca da gestão democrática do sistema de planeja-mento urbano, verbis: «a elaboração, a revisão, o aperfeiçoamento, a imple-mentação e o acompanhamento do Plano Diretor Estratégico e de planos, programas e projetos setoriais, regionais, locais e específicos serão efetuados mediante processo de planejamento, implementação e controle, de caráter permanente, descentralizado e participativo, como parte do modo de gestão democrática da Cidade para a concretização das suas funções sociais» (art. 260).46

45 Pinto, Victor Carvalho. Notas introdutórias ao direito urbanístico. CAOHURB – Centro de Apoio das Promotorias de Justiças da Habitação e Urbanismo. Temas de Direito Urbanístico. São Paulo: Ministério Público do Estado de São Paulo/Imprensa Oficial, 1999, p. 155.46 Dispõem, ainda, normas sobre a participação popular na gestão da política urbana da cidade, estipulando quais as instâncias de participação: «é assegurada a participação direta da população em todas as fases do processo de gestão democrática da Política Urbana da Cidade mediante as seguintes instâncias de participação: I – Conferência Municipal de Desenvol-vimento Urbano; II – Assembleias Regionais de Política Urbana; III – Conselho Municipal de Política Urbana; IV – audiências públicas; V – iniciativa popular de projetos de lei, de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; VI – conselhos reconhecidos pelo Poder Executivo Municipal; VII – assembleias e reuniões de elaboração do Orçamento Municipal; VIII – programas e projetos com gestão popular; IX – Comissão de Legislação Participativa da Câmara Municipal de São Paulo» (art. 279), assim como a forma de participação popular: «A participação dos munícipes em todo processo de planejamento e gestão da Cidade deverá basear-se na plena informação, disponibilizada pelo Executivo com antecedência» (art. 280).

56 Paulo afonso cavichioli carmona

Por fim, cabe salientar que, na realidade, o «planejamento» urbano até aqui desenvolvido pelas cidades brasileiras é, via de regra, deficiente, improvi-sado e mantém um padrão tradicionalmente perverso, que leva a um processo de urbanização excludente e ofensor ao meio ambiente. Exatamente por isso, Edésio Fernandes e Betânia Alfonsin pontificam:

«De modo geral, as tentativas de regulação via planejamento urbano, contudo, e em alguma medida inclusive a atual leva de planos diretores, ainda não conseguiu estabelecer uma relação clara e proativa com as forças do mercado, com freqüência gerando forte aumento dos preços de terrenos e novas formas de segregação socioespacial. Um aspecto fundamental desse debate tem a ver com o fato de que, embora esse seja um princípio estrutural da política urbana tal como indicado pelo Estatuto da Cidade (e como tal não se trata de faculdade do poder público, mas sim de uma obrigação legal), o planejamento urbano que se tem praticado na maioria das cidades brasileiras não tem envolvido a gestão pela comunidade da valorização imobiliária gerada pela ação do poder público, seja através de obras e serviços que valorizam os bens de particulares, seja através da própria legislação urbanística.»47

1.2.4 princípio da justa distribuição dos ônus decorrentes do processo de urbanização

O princípio da justa distribuição do ônus decorrente da urbanização, por sua vez, advém do princípio da isonomia e implica distribuir de forma equâ-nime as mais-valias do solo urbano, levando o princípio da capacidade contri-butiva à organização do solo urbano. Encontra fundamento constitucional no disposto no art. 3.º, notadamente no inciso III (erradicação da pobreza e redução das desigualdades regionais e sociais).

Nesse sentido, o Estatuto da Cidade tem como diretrizes: justa distri-buição dos benefícios e dos ônus decorrentes do processo de urbanização e recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos (art. 2.º, IX e XI, Lei 10.257/2001).

Uma aplicação concreta desse princípio é o instituto da contribuição de melhoria, previsto no inciso III do art. 145 da CF/1988 e com disciplina nos arts. 81 e 82 do CTN.48

47 FernanDes, Edésio; alFonsin, Betânia. Coletânea de legislação urbanística: normas internacionais, constitucionais e legislação ordinária. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 22.48 Ensina Roque Antônio Carrazza que «a contribuição de melhoria é um tipo de tributo que tem por hipótese de incidência uma atuação estatal indiretamente referida ao contribuinte (Geraldo Ataliba). Esta atuação estatal – porque assim o exige o art. 145, III, da Constituição da República – só pode consistir numa obra pública que causa valorização imobiliária, isto é, que aumenta o valor de mercado dos imóveis localizados em suas imediações». In: Carrazza, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 494-495.

57noção geral de direito urbanístico

Liana Portilho Mattos esclarece o alcance do referido princípio:

«As diretrizes dos incisos IX, X e XI do artigo 2.º do Estatuto da Cidade têm um traço comum que as caracteriza que é o escopo de frear, de minimizar a segregação social no território urbano. Mais que as distâncias que quase sempre separam – e distinguem – os pobres dos mais favorecidos, no espaço da cidade, a exclusão social exterioriza marcas e padrões urbanos nítidos e bem definidos, em que o processo de urbanização privilegia infinitamente mais os “incluídos”.

O princípio da justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização pretende estabelecer um equilíbrio na distribuição das vantagens e dos prejuízos característicos a esse processo, em obediência estrita ao princípio da isonomia consagrado na Constituição da República. Não é justo que um bairro ou uma região comporte sozinho e sem nenhuma compensação determinada atividade não desejada pelas áreas centrais e mais valorizadas da cidade. Por outro lado, o Poder Público municipal não pode destinar uma parcela maciça do seu orçamento para as áreas já dotadas de melhor infraestrutura, enquanto as áreas periféricas permanecem desprovidas das condições mínimas para a vida humana digna.»49

1.2.5 princípio da coesão dinâmica

Trata-se de princípio implícito no Direito Urbanístico e peculiar a ele, refletindo sua dinamicidade.

Coesão é a qualidade de um todo cujas partes estão todas interligadas, ou seja, aquilo que tem harmonia ou associação íntima. Dinâmico é algo ativo, que está sempre em movimento, que se modifica continuamente.50 Assim, em termos semânticos, coesão dinâmica significa que existe harmonia naquilo que está em transformação.

Em matéria urbanística, a questão é bem explicada por Daniela Campos Libório Di Sarno:

«O princípio da coesão dinâmica surge justamente para que as modifica-ções feitas pelas interferências urbanísticas sejam continuadas por ações que tenham pertinência e nexo com o contexto. As mesmas prioridades, o mesmo enfoque deverá ser dado para as ações urbanísticas de um certo local em certo tempo. A dinâmica do planejamento é fundamental para a eficácia deste prin-cípio. Na medida em que certo plano seja aplicado, ele vai se desatualizando com relação ao seu objeto, justamente por transformá-lo. Assim, o plano deverá prever mecanismo de revisão e atualização de seu conteúdo.»51

49 Mattos, Liana Portilho (Org. e Autora). Estatuto da Cidade comentado. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 93.50 Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Op. cit., p. 524 e 718.51 Op. cit., p. 51.

58 Paulo afonso cavichioli carmona

Analisando as características das normas de Direito Urbanístico, José Afonso da Silva, citando o doutrinador italiano Pierandrea Mazzoni, afirma que as normas urbanísticas possuem uma característica própria, que não se encontra em outras normas jurídicas, denominada coesão dinâmica, a fim de denotar que sua eficácia somente (ou especialmente) decorre de grupos complexos e coerentes de normas e tem seu sentido transformacionista da realidade:

«É isso porque a norma urbanística é, por sua natureza, uma disciplina, um modo, um método de transformação da realidade, de superposição daquilo que será a realidade do futuro àquilo que é a realidade atual.

Poder-se-ia objetar que toda norma que, de qualquer modo, atribui uma faculdade, ou estabelece um procedimento, disciplina uma transformação da realidade jurídica e estabelece os modos, os procedimentos e as consequências da transformação.

Mas a objeção não colhe nesse ponto por dois motivos distintos.

O primeiro consiste no fato de que também as normas que disciplinam uma faculdade não podem ser examinadas na sua característica estática, mas os valores que delas emergem podem colher-se só se se adota uma perspectiva de estudo prevalecentemente dinâmica.

O segundo, mais relevante, consiste no fato de que a normatividade urba-nística impõe uma visão dinâmica dirigida ao complexo das normas e dos instrumentos urbanísticos e não, como no caso da faculdade jurídica, à norma singular e à consequência que a mesma produz.»52

1.2.6 princípio da cooperação entre os setores público e privado

Em busca de um equilíbrio entre os interesses em jogo, o Estatuto da Cidade estabeleceu como diretrizes: cooperação entre os governos, a inicia-tiva privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social, bem como isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social (art. 2.º, incisos III e XVI).53 Note-se que, em ambas as hipóteses, a lei preocupou-

52 Op. cit., p. 62-63.53 Note-se que a norma do inc. XVI «não deve ser interpretada casuística e isoladamente, de forma a servir de amparo às pretensões de privatização das funções tipicamente estatais em prol do interesse privado. O fim a que essa norma se destina, ao que se chega com a leitura sistemática das demais que compõem o Estatuto da Cidade, é a realização do bem comum, a justa distribuição dos ônus e benefícios decorrentes do processo de urbanização, a democra-tização do acesso à terra e a promoção da garantia do direito à moradia, sendo que o Estatuto prevê, para isso, o papel ativo e empreendedor também do agente privado». In: Mattos, Liana Portilho (Org. e Autora). Op. cit., p. 98-99.

59noção geral de direito urbanístico

-se em ressaltar a necessidade de atendimento ao «interesse social», o que aproxima o presente princípio da cooperação aos princípios da função social da propriedade e da cidade.

Uma forma de cooperação entre os setores público e privado aparece expressamente na CF/1988 e consiste na cooperação das associações repre-sentativas no planejamento municipal (art. 29, XII).

Houve, nesse sentido, a partir da década de 90, notável crescimento de instrumentos de parceria do setor público com o setor privado. Citem-se, como exemplos, consórcios e convênios administrativos (Lei 8.666/1993, art. 116), concessões e permissões comuns (Lei 8.987/1995), contratos de gestão com as Organizações Sociais (Lei 9.637/1998), termo de parceria com as OSCIPs (Lei 9.790/1999), operações urbanas consorciadas e consórcio imobiliário urbanístico (Lei 10.257/2001, arts. 32-34 e 46), parcerias público-privadas (Lei 11.079/2004) e concessões florestais (Lei 11.284/2006, art. 3.º, VII).

Convém assinalar, porém, que alguns autores preferem falar em subsi-diariedade, e não em cooperação entre os setores público e privado.

O princípio da subsidiariedade foi formulado pela doutrina social da Igreja Católica, principalmente nas Encíclicas Rerum Novarum (1891), do Papa Leão XIII, Quadragesimo Anno (1931), do Papa Pio XI, Mater et Magistra (1961), do Papa João XXIII, e reafirmado, mais recentemente, na Centesimus Annus (1991), do Papa João Paulo II.

Tal princípio importa a abstenção da intervenção estatal onde a iniciativa privada é suficiente para atender adequadamente às necessidades públicas, observando a proporcionalidade dessa intervenção, especialmente quando o particular toma a iniciativa de propor ao Poder Público ações urbanísticas e assume a responsabilização pelos custos da operação de acordo com os parâ-metros legais.

Acerca da subsidiariedade, pontifica Regina Helena Costa, ancorada na doutrina do espanhol Jesus Gonzalez Perez, que «o princípio comporta a abstenção de toda intervenção dos entes públicos onde o livre jogo da inicia-tiva privada é suficiente para atender adequadamente as necessidades públicas, observada, sempre, a proporcionalidade dessa mesma intervenção».54

Assim, há quem encontre fundamento constitucional do princípio da subsidiariedade no art. 173, caput, que, embora diga respeito à excepcio-

54 Costa, Regina Helena. Princípios de direito urbanístico na Constituição de 1988. In: Dallari, Adilson Abreu & FigueireDo, Lúcia Valle (Coords.). Temas de Direito Urbanístico 2. São Paulo: RT, 1991, p. 117.

60 Paulo afonso cavichioli carmona

nalidade da intervenção direta do Estado no domínio econômico, abarcaria, também, a política urbana e, portanto, o Direito Urbanístico.55

Note-se, entretanto, que eventual delegação de ações urbanísticas ao particular não exime o Poder Público de exercer a necessária e indispensável supervisão e fiscalização da atividade urbanística. Por isso mesmo, esclarece Daniela Campos Libório Di Sarno:

«Para o Direito Urbanístico, este princípio sustenta suas normas e ações, tendo em vista que a tradição brasileira de visão privatista da propriedade difi-culta a eficácia de suas normas. Assim a existência de tal mandamento respalda o legislador e o administrador público na perseguição dos atos que busquem harmonia e qualidade de vida para a coletividade, mesmo que, para isso, tenha de restringir certos interesses individuais.»56

Como princípio do Direito Urbanístico, prefere-se a cooperação à subsi-diariedade, pois este, ao contrário daquele, apresenta, ao mesmo tempo, uma contradição e uma insuficiência.

Na medida em que a subsidiariedade impõe limites à atuação do Estado e, simultaneamente, torna indispensáveis a ajuda e o estímulo estatal quando ineficiente ou insatisfatória a ação do particular para realizar suas próprias necessidades, o princípio em tela cria um paradoxo entre um dever de não ingerência e de ingerência.57

A insuficiência, por sua vez, decorre do papel determinante e preponde-rante que o Estado desempenha no urbanismo, que é uma função pública e que municia o Direito Urbanístico de instrumentos pelos quais o Poder Público atua no domínio privado para ordenar a realidade ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana. Assim, diante do caos urbanístico que atinge as cidades brasileiras, não há que esperar que a atuação estatal seja meramente subsidiária.

O próprio Estatuto da Cidade corrobora esse entendimento na medida em que estabelece que suas normas são de ordem pública e de interesse social (art. 1.º, parágrafo único, Lei 10.257/2001). Da mesma forma, a CF/1988 determina aos Municípios (e ao DF) que promovam o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (art. 30, VIII).

55 Nesse sentido: sant’anna, Mariana Senna. Planejamento urbano e qualidade de vida – Da Constituição Federal ao plano diretor. In: Dallari, Adilson Abreu; Di sarno, Daniela Campos Libório (Coords.). Direito urbanístico e ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 147.56 Op. cit., p. 53.57 Nesse sentido: torres, Silvia Faber. O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 7.

61noção geral de direito urbanístico

Com isso, não se quer, evidentemente, a substituição do caos privado pelo caos estatal. É importante o Estado não virar as costas para a economia urbana e o capital privado, que tem participação inevitável na dinâmica imobiliária urbana. O Estado, na função urbanística, cumpre papel de gestor, pactuador, coordenador e fiscalizador, estabelecendo permanentes mecanismos de contra-partida, indução ou até mesmo de proibição, quando necessária para garantia do bem-estar dos habitantes. Assim, é fundamental inserir o setor privado e a sociedade nos mecanismos de pactuação da regulação e do sistema decisório em matéria urbanística, sob pena de continuar a fissura entre a cidade real e a idealizada pelos técnicos do Poder Público.

1.3 AS FUNÇõES URBANÍSTICAS E AS CARTAS DE ATENAS

1.3.1 A Carta de Atenas de 1933

Dentre as várias concepções de urbanismo existentes, a que desperta atenção é aquela extraída do 4.º Congresso Internacional da Arquitetura Moderna (CIAM), realizado na Grécia em 1933, palco da edição da chamada Carta de Atenas.

Naquela oportunidade, o urbanismo restou caracterizado como respon-sável por quatro funções básicas para o cidadão e a sociedade, quais sejam: a habitação, o trabalho, a circulação no espaço urbano e a recreação do corpo e do espírito, sob a inspiração dos trabalhos do arquiteto suíço Le Corbusier (1887-1965).58

Para o urbanista francês Gastón Bardet, no entanto, a primeira Carta do Urbanismo foi a Lei Cornudet, promulgada na França em 14 de março de 1919, fruto do trabalho do Museu Social, entidade fundada em 1908, e sua Comissão de Higiene Urbana e Rural, presidida por Georges Risler (1853-1941). Segundo essa lei:

«Todas as cidades de mais de 10 mil habitantes; as comunidades do departamento do Sena; as comunidades em vias de crescimento cuja lista seria

58 Registre-se que «Le Corbusier» era, na verdade, o pseudônimo do arquiteto suíço Charles Edouard Jeanneret. Considerado um dos pais da arquitetura moderna e criador do movimento conhecido como Purismo, foi ainda escritor e sua contribuição pode ser notada em todo o mundo, como no Brasil, onde influenciou nossos principais arquitetos. Esteve três vezes no Brasil e foi amigo dos principais arquitetos do país, como Oscar Neimeyer, Lúcio Costa e Pietro Maria Bardi. Sua influência sobre eles pode ser sentida em diversas construções, como no edifício do MEC, no Rio de Janeiro, na concepção do MASP e da Cidade Universitária, em São Paulo, e na construção de Brasília, da qual lamentou não participar. Na arquitetura, projetou edifícios que se tornaram monumentos da arte moderna, como a capela de Ronchamp e os edifícios públicos de Chandigard, na Índia, com suas formas puras, blocos concretos e frios, que ele chamava de «caixas de morar».

62 Paulo afonso cavichioli carmona

estabelecida de acordo com uma proposição da Comissão Departamental de Planejamento, Embelezamento e Extensão das cidades e aldeias; as estações balneáreas, marítimas, hidrominerais, climáticas, esportivas e outras; as aglo-merações de qualquer importância, apresentando um caráter pitoresco, artís-tico ou histórico inscritas numa lista estabelecida pela Comissão de Terrenos e Monumentos Naturais; os grupos de habitações e loteamentos, enfim, as comunidades total ou parcialmente destruídas em consequência de acidentes de guerra, tremores de terra ou outro cataclisma, seriam obrigadas a ter um projeto de planejamento, embelezamento e extensão.»59

1.3.2 A nova Carta de Atenas

Note-se que, em fevereiro 1998, foi editada pelo Conselho Europeu de Urbanistas a «Nova Carta de Atenas», subscrita pelas associações nacionais e institutos de urbanistas de onze países da União Europeia (Bélgica, Dina-marca, Alemanha, Grécia, França, Irlanda, Itália, Países Baixos, Espanha, Portugal e Reino Unido).60

Tal documento, ao mesmo tempo em que reconhece a grande influência da Carta de 1933, ressalta as deficiências dos tipos de estruturas e planos urba-nísticos resultantes de sua aplicação, razão pela qual se prepara uma Carta mais adequada à geração atual e às futuras, que coloca o cidadão em destaque no momento de tomar decisões de planejamento. Destaca, ainda, os temas relacionados com as novas necessidades urbanas, em particular em quatro áreas fundamentais: promover o desenvolvimento econômico e o emprego, favorecer a coesão econômica e social, melhorar o transporte e as redes tran-seuropeias, além de promover um desenvolvimento sustentável e uma boa qualidade de vida.

Em seguida, destaca dez grupos de recomendações para um desenvol-vimento sustentável como parte integrante do processo de planejamento: 1) garantir uma cidade para todos; 2) promover a participação efetiva; 3) valo-rizar o contato humano como forma de evitar a erosão das estruturas sociais; 4) garantir a continuidade na vocação das cidades; 5) destacar os benefícios das novas tecnologias; 6) estimular a sustentabilidade do meio-ambiente; 7) combinar os aspectos físicos com os sociais e econômicos; 8) contemplar uma gestão do tráfego de forma a garantir a mobilidade e acessibilidade; 9) promover variedade e diversidade com o abandono das grandes zonas de usos monofuncionais; e 10) tutelar as questões envolvendo saúde e segurança, incorporando medidas de proteção contra as catástrofes naturais, criminali-dade e conflitos sociais.

59 Op. cit., p. 24-25.60 Disponível em: <www.urbanismo-portugal.com/principal.html>. Acesso em 10.10.2009.

63noção geral de direito urbanístico

Diante das novas funções da cidade contemporânea e a partir das dire-trizes da Nova Carta de Atenas, podem-se apontar as novas funções da cidade no século XXI: cidade para todos, cidade participativa, cidade refúgio, cidade saudável, cidade produtiva, cidade inovadora, cidade do movimento racional e da acessibilidade, cidade do meio ambiente (ecológica/sustentável), cidade da cultura, cidade e a continuidade de caráter (histórica).

Jorge Luiz Bernardi propõe interessante divisão das funções sociais da cidade em três grupos, cada um com quatro funções, todos inter-relacionados.61

FUNÇÕES SOCIAIS DA CIDADE

FUNÇÕESURBANÍSTICAS

FUNÇÕES DECIDADANIA FUNÇÕES DE GESTÃO

Habitação Educação Prestação de Serviços

Trabalho Saúde Planejamento

Lazer Segurança Preservação do Patrimônio Cultural e Natural

Mobilidade Proteção Sustentabilidade Urbana

1.3.3 Habitação

Não se pode olvidar que a habitação é parte integrante dos direitos funda-mentais do cidadão, razão pela qual o Estado tem a obrigação e a responsabi-lidade de protegê-la. Habitar é uma necessidade intrínseca à existência do ser humano, razão pela qual o direito à habitação é inerente à vida. Daí o conceito de Le Corbusier62 de que a moradia é o local onde o homem ou a família «vive, dorme, anda, ouve, vê e pensa».

A moradia, aliás, por conta da Emenda Constitucional n. 26 de 2000, passou a integrar o rol dos direitos sociais positivados na Carta Constitucional (art. 6.º, caput).

Além disso, a Carta Magna revela a importância da habitação quando reconhece a casa como asilo inviolável do indivíduo (art. 5.º, XI); elege a moradia como necessidade vital básica do trabalhador e de sua família para justificar o percebimento do salário mínimo (art. 7.º, IV); atribui à União, Estados e Municípios competência comum para legislar sobre programas de

61 BernarDi, Jorge Luiz. Funções sociais da cidade: conceitos e instrumentos. Dissertação de Mestrado. Curitiba: Pontifícia Universidade Católica do Paraná, 2006, p. 59.62 le CorBusier. Planejamento urbano. Trad. Lúcio Gomes Machado. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 67.

64 Paulo afonso cavichioli carmona

construção de moradias e melhoria das condições habitacionais (art. 23, IX); confere à moradia condição imprescindível para a aquisição da propriedade urbana por usucapião (art. 183).

Ainda com relação aos diversos aspectos da habitação José Carlos de Freitas bem coloca a questão, citando Nelson Hungria:

«A casa, numa visão egoística, é “um dos redutos da liberdade individual” que se relaciona com o “interesse da tranquilidade e segurança de vida íntima ou privada do indivíduo” e com as “condições indeclináveis à livre expansão da personalidade humana”. Mas além de sua acepção individualista, a casa contém um significado urbanístico. Ela é a célula de um bairro e, portanto, deve conformar-se com as imposições relativas à taxa de ocupação, ao índice de aproveitamento, ao gabarito, aos recuos, ao seu uso, enfim, com as regras estruturais e funcionais de edificação urbana coletivamente considerada, que impõem restrições padronizadas voltadas ao bem-estar de todos. O desajuste com os modelos urbanísticos pode afetar a vizinhança ou comprometer difu-samente a região. Edificações excessivamente altas projetam sombras nas residências vizinhas, privando-as de insolação e aeração; o maior adensamento ou o desvirtuamento do uso de uma casa residencial para o comércio, por exemplo, acarreta maior volume de tráfego, movimentação de veículos para carga e descarga de mercadorias, emissão de gases e poeira, ruídos desmedidos, e também a diminuição dos espaços na via pública para estacionamento.»63

O deficit habitacional no Brasil é imenso. Era estimado, para o ano de 2005, em 7,9 milhões de residências, sendo que 96,3% dessa demanda se concentrava na faixa de renda de até cinco salários mínimos, bem como existiam cerca de 1,96 milhão de domicílios em aglomerados subnormais no Brasil.64

Os dados mais recentes demonstram que, em 2008, o deficit habitacional era estimado em 5,546 milhões de domicílios, dos quais 4,629 milhões, ou 83,5%, estão localizados nas áreas urbanas. As famílias com renda até 5 salários mínimos totalizam 96,6% do deficit habitacional urbano (89,6% se considerado até 3 salários mínimos), ou seja, houve um acréscimo de 0,3% em 3 anos. Do total do deficit habitacional, 36,9% localiza-se na região Sudeste, conforme se pode observar no mapa abaixo. Na comparação entre 2008 e a

63 Op. cit., p. 294.64 Fonte: IBGE, PNAD 2005 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em 15.10.2011. Segundo definição do IBGE, aglomerado subnormal é conceito que se aproxima de favela, pois se trata do «conjunto constituído por no mínimo 51 unidades habitacionais (casas, barracos etc.) ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular), dispostas, em geral, de forma desordenada e densa. Em sua maioria são carentes de serviços públicos essenciais».

65noção geral de direito urbanístico

estimativa recalculada de 2007 houve queda de 442.754 unidades habitacio-nais no montante considerado como deficit habitacional no Brasil.65

FiGURA 1 – Mapa do deficit habitacional total, segundo Unidades da Federação – 2008

Fonte: Dados básicos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), 2008. Elaboração: Centro de Estatística e Informações/Fundação João Pinheiro.

Para enfrentar esse enorme desafio, a Lei 11.124/2005 criou o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), com o objetivo de: I – viabilizar para a população de menor renda o acesso à terra urbanizada e à habitação digna e sustentável; II – implementar políticas e programas de investimentos e subsídios, promovendo e viabilizando o acesso à habitação

65 Ministério Das CiDaDes. Deficit habitacional no Brasil 2008. Secretaria Nacional de Habitação. Elaboração: Fundação João Pinheiro, Centro de Estatística e Informações. Brasília: Ministério das Cidades, 2011, p. 29 e 35.

Até 100 mil

De 100 a 200 mil

De 200 a 500 mil

Mais de 500 mil

Déficit Habitacional(n. de domicílios)

Projeção Latitude/LongitudeDatum SAD69

0 200 400 800 Km

N

66 Paulo afonso cavichioli carmona

voltada à população de menor renda; e III – articular, compatibilizar, acom-panhar e apoiar a atuação das instituições e órgãos que desempenham funções no setor da habitação (art. 2.º).

Dentre vários recursos que compõem o SNHIS (art. 6.º da citada Lei), destaca-se o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), criado pela mesma Lei 11.124/2005 (arts. 7.º a 13), com o objetivo de centralizar e gerenciar recursos orçamentários para os programas estruturados no âmbito do SNHIS, destinados a implementar políticas habitacionais direcionadas à população de menor renda.66

Por sua vez, a Lei 11.977/2009 criou o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), com a finalidade de criar mecanismos de incentivo à produção e à aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias com renda mensal de até R$ 4.650,00 (art. 1.º, caput, com redação dada pela Lei 12.424/2011).

Tal programa habitacional compreende (art. 1.º):

I – o Programa Nacional de Habitação Urbana (PNHU), que tem por objetivo promover a produção ou a aquisição de novas unidades habitacionais ou a requalificação de imóveis urbanos (art. 4.º, com redação dada pela Lei 12.424/2011). Assim, fica a União autorizada a conceder subvenção econô-mica ao programa para facilitar a aquisição, a produção e a requalificação do imóvel residencial, ou complementar o valor necessário para assegurar o equilíbrio econômico-financeiro das operações de financiamento realizadas pelas entidades integrantes do Sistema Financeiro da Habitação (SFH) – art. 6.º;

II – o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), que tem como finalidade subsidiar a produção ou reforma de imóveis aos agricultores familiares e trabalhadores rurais, por intermédio de operações de repasse de recursos do orçamento geral da União ou de financiamento habitacional

66 Os recursos do FNHIS – que serão aplicados de forma descentralizada por intermédio dos Estados, Distrito Federal e Municípios ou por meio de repasse a entidades privadas sem fins lucrativos (art. 12) – serão destinados a ações vinculadas aos programas de habitação de interesse social que contemplem (art. 11): a) aquisição, construção, conclusão, melhoria, reforma, locação social e arrendamento de unidades habitacionais em áreas urbanas e rurais; b) produção de lotes urbanizados para fins habitacionais; c) urbanização, produção de equipamentos comunitários, regularização fundiária e urbanística de áreas caracterizadas de interesse social; d) implantação de saneamento básico, infraestrutura e equipamentos urbanos, complementares aos programas habitacionais de interesse social; e) aquisição de materiais para construção, ampliação e reforma de moradias; f) recuperação ou produção de imóveis em áreas encortiçadas ou deterioradas, centrais ou periféricas, para fins habitacionais de interesse social; g) outros programas e intervenções na forma aprovada pelo Conselho Gestor do FNHIS.

67noção geral de direito urbanístico

com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) (art. 11, redação da Lei 12.424/2011). Nessa hipótese, a União também está autorizada a conceder subvenção econômica ao programa para facilitar a produção ou reforma do imóvel residencial, complementar o valor necessário a assegurar o equilíbrio econômico-financeiro das operações de financiamento realizadas pelos agentes financeiros, ou, ainda, complementar a remuneração do agente financeiro, nos casos em que o subsídio não esteja vinculado a financiamento (art. 13, redação da Lei 12.424/2011);

III – a autorização, prevista no art. 18, para a União transferir recursos ao Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) e ao Fundo de Desenvolvimento Social (FDS).67 O FAR financia o Programa de Arrendamento Residencial, instituído pela Lei 10.188/2001, para atendimento da necessidade de moradia da população de baixa renda, sob a forma de arrendamento residencial com opção de compra, programa cuja gestão cabe ao Ministério das Cidades e sua operacionalização à Caixa Econômica Federal (CEF). O FDS, criado pelo Decreto 103/1991 e disciplinado pela Lei 8.677/1993, também é gerido pela CEF e destina-se ao financiamento de projetos de investimentos de relevante interesse social nas áreas de habitação popular, saneamento básico, infraestru-tura urbana e equipamentos comunitários (art. 2.º, Lei 8.677/1993);

IV – a autorização para a União participar do Fundo Garantidor da Habitação Popular (FGHab), que tem natureza privada e patrimônio próprio, separado do patrimônio dos cotistas, bem como visa garantir o pagamento aos agentes financeiros de prestação mensal de financiamento habitacional, no âmbito do SFH, devida por mutuário final, em caso de desemprego e redução temporária da capacidade de pagamento, ou assumir o saldo devedor do financiamento imobiliário, em caso de morte e invalidez permanente, e as despesas de recuperação relativas a danos físicos ao imóvel; em ambos os casos para mutuários com renda familiar mensal de até R$ 4.650,00 (art. 20, redação da Lei 12.424/2011). O FGHab concederá garantia para até 1.400.000 financiamentos imobiliários contratados exclusivamente no âmbito do PMCMV (art. 29, redação da Lei 12.424/2011), bem como as coberturas do FGHab, descritas no art. 20, serão prestadas às operações de financiamento habitacional para produção ou aquisição de imóveis novos em áreas urbanas, requalificação de imóveis já existentes em áreas consolidadas no âmbito do PNHU, ou para produção de moradia no âmbito do mesmo Programa (art. 30, redação da Lei 12.424/2011); e

67 As operações realizadas com recursos advindos da integralização de cotas no FAR e recursos transferidos ao FDS são limitadas a famílias com renda mensal de até R$ 1.395,00, conforme estabelece o art. 6.º-A da Lei 11.977/2009 (incluído pela Lei 12.693/2012).

68 Paulo afonso cavichioli carmona

V – a autorização para a União conceder subvenção econômica ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) especificamente nas operações de financiamento de linha especial para infraestrutura em projetos de habitação popular (art. 33).

1.3.4 Trabalho

O trabalho é um direito fundamental e vários comandos constitucionais asseguram tal direito. Conforme o art. 1.º, inciso III, a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento a dignidade da pessoa humana; no inciso IV estão assegurados os valores sociais do trabalho. No art. 6.º, o trabalho é consagrado um direito social. O art. 170 estatui que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, observando vários princípios, entre eles, a busca do pleno emprego. O art. 193 dispõe que a ordem social tem como base o primado do trabalho.

Tudo isso tem a finalidade de reconhecer que o direito social ao trabalho efetiva a dignidade do indivíduo. Deve-se aprofundar a reflexão sobre o trabalho e o diagnóstico do flagelo do desemprego para esclarecer e denunciar o negativo e denso impacto social da política que traz instabilidade ao traba-lhador, apontando para o caminho infausto da violência. O desemprego é um dos dilemas cruciais dos tempos hodiernos, que impossibilita um mundo mais justo e igualitário.

Pela leitura da CF/1988 nos seus dispositivos relativos à dignidade da pessoa humana, direitos do trabalhador e meio ambiente, conclui-se que o legislador constituinte garantiu a proteção do meio ambiente do trabalho e, por conseguinte, a saúde do trabalhador, como se pode inferir do disposto no art. 200, incisos II e VIII.68

O trabalho, como função urbanística, revela que determinadas atividades exigem, para seu sucesso, condições mínimas de sossego e tranquilidade.

É que, conforme ensina José Carlos Freitas:

«O trabalho realiza-se, de ordinário, em locais fechados, o que reclama a observância das condições mínimas de higiene, segurança, sossego e salubri-dade física e mental em favor dos que labutam, quer as ditadas pela legislação

68 CF/1988, art. 200: Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: I – controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemode-rivados e outros insumos; VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.

69noção geral de direito urbanístico

da infortunística, quer pelas normas técnicas de engenharia sobre insolação, aeração, estabilidade, solidez e funcionalidade das edificações.»69

Efetivamente, é difícil de imaginar a convivência harmônica entre uma barulhenta ferraria e um prédio de escritórios, disputando o mesmo espaço na urbe, o que demonstra a importância que o zoneamento70 desenvolverá nesse tema.

Ressalte-se, ainda, que, doutrinariamente, Fernando Célio de Brito Nogueira observou que:

«Os ruídos urbanos que atormentam a população na forma de poluição sonora podem ser tutelados pela ACP (ação civil pública), em face do interesse difuso que encerram, pois o repouso, o sossego e mesmo o trabalho em condi-ções auditivas salubres são direitos assegurados a todos, tanto que a pertur-bação do trabalho ou do sossego alheio constitui contravenção penal com objetividade jurídica de interesse público. A ação é pública é incondicionada. O ruído provoca a diminuição da capacidade de concentração do indivíduo, dispersa sua atenção, incomoda os nervos e provoca irritabilidade, podendo chegar até a perturbações mentais.»71

Ademais, é por meio do trabalho que a pessoa garante a sobrevivência de sua família e o crescimento do país.

Os locais de trabalho, nas grandes cidades, não estão dispostos de forma racional no complexo urbano, pois geralmente as pessoas residem em áreas distantes deles, tornando a circulação um pesadelo permanente para o cidadão.

1.3.5 Circulação

A atenção ao sistema viário urbano surge como a terceira função urbanística, visto que a adequada circulação das pessoas que convivem em um território é elemento necessário para seu equilíbrio e desenvolvimento, merecendo, aqui, alusão ao inciso XV do art. 5.º da Constituição Federal, que garante ao cidadão o direito de liberdade de locomoção, além do disposto no § 2.º do art. 230, que assegura a gratuidade para pessoas maiores de sessenta e cinco anos nos transportes coletivos.

69 Freitas, José Carlos de. Dos interesses metaindividuais urbanísticos. In: CaohurB – Centro de Apoio das Promotorias de Justiças da Habitação e Urbanismo. Temas de Direito Urbanístico. São Paulo: Ministério Público do Estado de São Paulo/Imprensa Oficial, 1999, p. 295.70 Conforme Hely Lopes Meirelles, o zoneamento urbano consiste na repartição da cidade e das áreas urbanizáveis segundo a sua precípua destinação de uso e ocupação do solo, como, por exemplo, residenciais, comerciais, industriais e institucionais. Direito de construir. 9. ed. atualizada por Eurico de Andrade Azevedo; Adilson Abreu Dallari e Daniela Libório Di Sarno. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 127.71 nogueira, Fernando Célio de Brito. Ação civil pública por poluição sonora, cabimento e legitimidade do MP. RJ 239, set. 97, p. 21-25.

70 Paulo afonso cavichioli carmona

Anotem-se ainda os seguintes dispositivos constitucionais relacionados ao tema: art. 7.º, inciso IV (transporte como uma das necessidades básicas vitais que o salário mínimo deverá abarcar), art. 21, incisos XII, alíneas d e e, XX (competência material da União em transportes), art. 22, incisos IX e XI (competência legislativa privativa da União sobre trânsito e transporte), art. 30, inciso V (competência dos Municípios e Distrito Federal acerca do transporte coletivo), e art. 208, inciso VII (ensino público fundamental com programas suplementares de transporte, entre outros).

O sistema viário é composto por vias extraurbanas (fora do perímetro da cidade ou de áreas urbanizadas, tais como ferrovias, rodovias, estradas e cami-nhos) e vias urbanas, que são os logradouros (compreendem ruas, avenidas, alamedas, praças, largos, travessas, becos, jardins, ladeiras, parques, viadutos, pontes, galerias, rodovias, todos de uso comum do povo). É por essas vias de circulação que se desenvolvem o trânsito e o tráfego, que, para Hely Lopes Meirelles,72 significam o deslocamento de pessoas e coisas pelas vias públicas, ainda que o trânsito tenha por objeto a circulação, e o tráfego, o transporte; assim, se um caminhão circula vazio por uma rodovia está em trânsito; se carrega mercadoria, está em tráfego.

A par disso, resta evidente que o planejamento urbanístico deve também levar em conta a circulação de pessoas e semoventes em condições adequadas, ou seja, o sistema viário deve ser ordenado de modo a dar cumprimento às funções urbanas.73

José Afonso da Silva destaca as funções estética e psicológica do traçado urbano, esclarecendo, quanto à primeira, que «elementos de destaque do traçado urbano, como pontes, viadutos, arcos, passeios devem merecer toda a atenção do urbanista, porque distinguem a imagem da cidade»; já no tocante à segunda, aduz que «a multiplicidade e diversidade de formas não devem ser exageradas, para não dificultar a orientação».74

72 Meirelles, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1985, p. 319. Ressalta-se que esta obra praticamente inaugurou o Direito Urbanístico no Brasil.73 «A cidade é palco de permanentes contradições econômicas, sociais e políticas. Essas contradições podem ser vistas nos espaços de circulação da cidade, onde há permanente disputa entre seus diferentes atores, que se apresentam como pedestres, condutores e usuários de veículos motorizados particulares ou coletivos. A necessidade de movimento dos cidadãos depende de como a cidade está organizada territorialmente e vinculada funcionalmente com as atividades que se desenvolvem no espaço urbano. Essas duas esferas, organizacional e física, e suas contradições, atingem primeiramente as populações mais pobres e menos protegidas, onde a circulação e a acessibilidade ao espaço urbano são intensamente reduzidas». In: Duarte, Fábio, liBarDi, Rafaela e sánChez, Karina. Introdução à mobilidade urbana. Curitiba: Juruá, 2007, p. 11.74 Op. cit., p. 309-310.

71noção geral de direito urbanístico

Para Le Corbusier, as circulações eram como o próprio sangue das cidades, ligando as unidades de habitação, trabalho, cultura do espírito e do corpo, e agrárias.75 Todavia, o intenso e muitas vezes caótico trânsito nas grandes cidades brasileiras degrada a qualidade de vida do cidadão, demons-trando que as veias da urbe estão entupidas, prontas para um verdadeiro infarto.

Os carros são, na maioria das grandes cidades, os principais responsáveis por congestionamentos e ocupação de ruas e praças, originando dificuldades de mobilidade que atrasam o normal desenrolar da vida das urbes, causando enormes prejuízos econômicos e psicológicos.76 São também os principais responsáveis pela ineficiência ambiental e pelo descumprimento das metas do Protocolo de Kyoto.77

Esse terrível quadro do cotidiano só demonstra a imediata necessidade de se adotarem soluções inteligentes, que já resolveram em muitos países, grandes problemas de tráfego, congestionamento e poluição sonora. O uso da bicicleta como transporte urbano é sem dúvida a solução de maior êxito, moderna e inteligente que se pode ter de exemplo.

A bicicleta foi eleita pela Organização das Nações Unidas (ONU) como símbolo de transporte sustentável do planeta, já que reúne várias qualidades como: baixo custo de aquisição;78 excelente exercício físico para todas as idades; simplicidade de funcionamento; ausência de poluição química ou sonora; diminui o congestionamento da cidade; importante instrumento de inclusão social.

75 «As capitais não têm artérias, têm apenas capilares; o crescimento marca-lhes a doença e a morte. Para sobreviverem, sua existência está há muito tempo nas mãos de cirurgiões que retalham sem cessar». In: le CorBusier. Urbanismo. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 07.76 Como exemplo, na véspera do feriado de Corpus Christi em São Paulo, dia 10.06.2009, houve novo recorde nacional de congestionamento: 293 km. Na capital paulista são 6,4 milhões de veículos (mais de um para cada dois habitantes), dos quais 500 mil são motos, que poluem, no mínimo, seis vezes mais do que os veículos; 100 mil são motoboys, dos quais dois perdem a vida por cada dia. 77 O Protocolo de Kyoto é um instrumento internacional, ratificado em 15 de março de 1998, que visa reduzir as emissões de gases poluentes. Estes são responsáveis pelo efeito estufa e o aquecimento global. O Protocolo de Kyoto entrou oficialmente em vigor no dia 16 de fevereiro de 2005, após ter sido discutido e negociado em 1997, na cidade de Kyoto (Japão).78 A conta é simples: se uma empresa adquirir para seus empregados 100 bicicletas a um custo unitário de R$ 200,00, gastaria R$ 20.000,00, enquanto, com vales-transportes para os mesmos 100 trabalhadores, a empresa gastaria R$ 129.600,00 por ano. A economia seria, portanto, de R$ 109.600,00 em um ano, isso se considerado que todas as bicicletas tivessem apenas a durabilidade anual, o que não corresponde à realidade. Programa da sPortv «Sportv Repórter» de 08.04.2012. Disponível em <http://sportv.globo.com>. Acesso em: 20.04.2012.

72 Paulo afonso cavichioli carmona

O Brasil é o terceiro maior fabricante e possui a quinta maior frota de bicicletas do mundo (a primeira é a China), porém tem uma baixa quantidade de ciclovias, que normalmente se confundem com áreas de lazer.79 A criação de ciclovias ou ciclofaixas80 bem projetadas e sinalizadas aumentaria conside-ravelmente a segurança no trânsito, diminuiria drasticamente acidentes com ciclistas e aumentaria o incentivo do uso desse meio alternativo de transporte em nosso país.

Nessa área, a cidade mais lembrada é Amsterdã, que possui mais bici-cletas do que habitantes.81 Aliás, na Holanda existem 16,2 milhões de pessoas e quase 16,2 milhões de bicicletas. Uma brincadeira que o povo de lá usa é: «se a sua bicicleta vale mais que o cadeado dela, ela será roubada».

TABELA 1 – Gráfico da extensão de vias adequadas ao trânsito de bicicletas em relação à extensão do sistema viário

em cidades do Brasil, 2008

Fonte: Mobilize Brasil – Mobilidade Urbana Sustentável. Disponível em: <http://www.mobilize.org.br/estatisticas>.

A investigação indica que as cidades que investem em planejamento e desenho urbano adequados para o uso da bicicleta têm alcançado resultados

79 Hamburgo é campeã mundial: 1.850 km de ciclovias, seguida Berlin (650), Nova York (675), Paris e Bogotá – ambas com 350 km.80 As ciclovias são pistas exclusivas com separações físicas de outros elementos viários, como nos interiores dos parques ou na cidade de Bogotá; já as ciclofaixas são áreas partilhadas com outros sistemas de transporte, em geral a beirada das ruas, como ocorrem em Toronto, Washington ou Paris, e, por isso, dependem de uma sinalização adequada para a separação de outros sistemas de transporte. 81 A cidade de Sapiranga, na região metropolitana de Porto Alegre, destaca-se no tema, pois tem cerca de 77.000 habitantes, 40.000 bicicletas e 35.000 carros, sendo considerada, no Brasil, «a cidade da bicicleta». Disponível em: <http://www.sapiranga.rs.gov.br/index.php/municipio_hoje>. Acesso em: 15.02.2012.

300

250

200

150

100

50

0São Paulo Cuiabá Porto

AlegreRio de Janeiro

Curitiba Sorocaba Brasília BeloHorizonte

240

118

7047 35,7

19 18 14,5 7,8

Salvador

73noção geral de direito urbanístico

positivos quanto à mobilidade urbana em geral, com notável diminuição do uso de transportes automotores, valorização do uso de sistemas coletivos, diminuição dos níveis de poluição aérea e sonora, resultando em melhor quali-dade de vida para todos.

Pode ser observado que, embora a maioria dos casos referenciais esteja em países fora dos limites sul-americanos, um dos principais destaques é o caso de Bogotá, na Colômbia, a quarta cidade mais populosa da América do Sul, atrás apenas de São Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires. A cada dia, mais de 350 mil colombianos usam a bicicleta em Bogotá, o que representa 5% dos deslocamentos. Isso a converte na cidade latino-americana que mais utiliza a bicicleta de forma cotidiana, graças aos seus muitos quilômetros de ciclovias bem sinalizadas e distribuídas por todas as regiões da cidade.

Paris também passou por uma experiência recente no assunto. Nas pala-vras do ex-prefeito Bertrand Delanoé, «em termos de locomoção, o século XXI tem que ser ecológico antes de tudo. E para que as pessoas não queiram usar o carro, que é muito poluente, é preciso que elas tenham várias opções: metrô ou ônibus, aluguel de carros menos poluentes, bonde elétrico, barcas e, agora, bicicletas públicas». Trata-se do projeto público VELIB (mistura das palavras velocípede e liberté, bicicleta e liberdade), com uma estação de aluguel e devolução de bicicletas a cada 300 metros (são cerca de 750 na cidade, com 20 mil bicicletas), o que aumenta a disposição de utilizar o sistema, cujo aluguel é feito por meio de cabines usando o cartão de crédito, e é exatamente essa combinação de meios de transporte livres e não poluentes que compõe uma cidade moderna.82

A recente Lei 12.587/2012 instituiu a Política Nacional de Mobilidade Urbana, que tem por objetivo contribuir para o acesso universal à cidade, o fomento e a concretização das condições que contribuam para a efetivação dos princípios, objetivos e diretrizes da política de desenvolvimento urbano, por meio do planejamento e da gestão democrática do Sistema Nacional de Mobilidade Urbana (art. 2.º). Tal política de desenvolvimento urbano (art. 21, XX, CF/1988) tem fundamento nos seguintes princípios: I – acessibili-dade universal; II – desenvolvimento sustentável das cidades, nas dimensões socioeconômicas e ambientais; III – equidade no acesso dos cidadãos ao transporte público coletivo; IV – eficiência, eficácia e efetividade na prestação dos serviços de transporte urbano; V – gestão democrática e controle social do planejamento e avaliação da Política Nacional de Mobilidade Urbana;

82 Programa da TV Globo News «Cidades e Soluções» de 14.05.2008. Disponível em <http://g1.globo.com>. A cidade do Rio de Janeiro adotou sistema de compartilhamento de bicicletas semelhante ao de Paris, com o programa Bike Rio, iniciado em outubro de 2011, que contém 60 estações de locação espalhadas pela cidade.

74 Paulo afonso cavichioli carmona

VI – segurança nos deslocamentos das pessoas; VII – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do uso dos diferentes modos e serviços; VIII – equidade no uso do espaço público de circulação, vias e logradouros; e IX – eficiência, eficácia e efetividade na circulação urbana (art. 5.º).83

1.3.6 Recreação

Por fim, destaca-se, de forma complementar à vida urbana, a questão da recreação, uma vez que é necessário também que o cidadão tenha como refazer suas forças após o trabalho, o que está consagrado no texto consti-tucional, no citado art. 6o, que prevê expressamente o lazer entre os direitos sociais. Além disso, deverá ser incentivado como forma de promoção social (art. 217, § 3.º, Carta da República).

Segundo José Afonso da Silva, há de se distinguir lazer e recreação: enquanto esta é a entrega ao divertimento, ao esporte, ao brinquedo, aquele é a entrega à ociosidade repousante; porém ambos possuem a mesma finalidade, qual seja, «refazer as forças depois da labuta diária e semanal», bem como «requerem lugares apropriados, tranquilos, repletos de folguedos e alegrias em outro», que são os jardins, parques, praças de esporte, praias e áreas verdes.84

Uma atividade que não pode ser considerada lazer ou recreação e que, normalmente desenvolvida por jovens das grandes cidades, degrada a urbe e deteriora o espaço público é a pichação.

Rodolfo de Camargo Mancuso defende raciocínio no sentido de que «há um interesse difuso a que seja preservada a estética urbana, e não há dúvida de que esse valor jurídico vem sendo diuturnamente ameaçado em alguns e afrontado em outros, em razão das pichações prometidas ou concretizadas», citando como exemplo a pichação em edifícios de grande interesse estético, histórico e artístico, como o Teatro Municipal e o Museu de Arte, constantes alvos dos pichadores, recordando a realizada no Cristo Redentor, no Rio de

83 Referida lei prescreve, no art. 24, § 2.º, que, nos Municípios sem sistema de transporte público coletivo ou individual, o Plano de Mobilidade Urbana deverá ter o foco no transporte não motorizado e no planejamento da infraestrutura urbana destinada aos deslocamentos a pé e por bicicleta. Estabelece ainda que o Plano de Mobilidade Urbana é o instrumento de efetivação da Política Nacional de Mobilidade Urbana, obrigatório para Municípios acima de 20.000 habitantes e em todos os demais obrigados, na forma da lei, à elaboração do plano diretor. Tais cidades terão o prazo máximo de três anos a contar da promulgação da referida lei para elaborá-lo, findo os quais, ficarão impedidas de receber recursos orçamentários federais destinados à mobilidade urbana até que atendam à mencionada exigência.84 Op. cit., p. 279.

75noção geral de direito urbanístico

Janeiro, quase sempre feitas por gangues que disputam pichações mais acro-báticas e arriscadas.85

Assim, tem proeminência, no meio ambiente artificial,86 a degradação do patrimônio urbano histórico e cultural, notadamente por meio de pichações.

As diversas construções da grande São Paulo são vítimas da ação dos grupos de pichadores, que utilizam um estilo único com letras, denominado Tag Reto.87

FIGURA 2 – Exemplo de pichação com Tag Reto na cidade de São paulo

Fonte: Pichação.com. Disponível em: <http://www.pichacao.com/adrenalina.htm>. S/d.

85 ManCuso, Rodolfo de Camargo. Aspectos jurídicos da chamada «pichação» e sobre a utilização da ação civil pública para tutela do interesse difuso à proteção da estética urbana. RT 679/62.86 «Meio ambiente artificial abrange o meio ou os elementos que sofreram intervenção do ser humano, transformando seu aspecto ou essência, dando-lhes utilidade ante as necessidades do ser humano» (In: Di sarno, Daniela Campos Libório. Op. cit., p. 91).87 Tag é um termo que deriva da denominação utilizada pelos grafiteiros e tem origem em Nova York e quer dizer assinatura. O tag reto foi difundido pelos pichadores de São Paulo e é mais que uma assinatura, já se tornou um estilo de letra. Surgiu como elemento diferenciador dos grupos de pichadores que foram buscando desenhos próprios para as letras. Esse estilo de letra é caracterizado por letras retas, alongadas e pontiagudas, que procuram ocupar o maior espaço possível no suporte e o surgimento desse estilo de letras típico de São Paulo é único no mundo. Disponível em: <http://www.pichacao.com/adrenalina.htm>. Acesso em: 22.11.2011. Acerca do tema: lassala, Gustavo. Os tipos gráficos da pichação: desdobramentos visuais. Dissertação de mestrado em educação, arte e história da cultura. Universidade Mackenzie, 2007.

76 Paulo afonso cavichioli carmona

A Lei 9.605/1998 estabelece crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural (arts. 62/65) e, entre eles, tipificou como crime a atividade de pichação no seu art. 65, cuja nova redação, dada pela Lei 12.408/2011 descriminalizou o ato de grafitar, assim entendido o grafite realizado com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística.

Despejo na Favela

Adoniran Barbosa

Quando o oficial de justiça chegou Lá na favela E, contra seu desejo entregou pra seu Narciso um aviso pra uma ordem de despejo Assinada seu doutorAssim dizia a petição: dentro de dez dias quero a favela vazia e os barracos todos no chão É uma ordem superior, Ô meu senhor, é uma ordem superior Não tem nada não, seu doutor, não tem nada não Amanhã mesmo vou deixar meu barracão Não tem nada não seu doutor, vou sair daqui pra não ouvir o ronco do trator Pra mim não tem problema, em qualquer canto me arrumo, de qualquer jeito me ajeito Depois, o que eu tenho é tão pouco, minha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás Mas essa gente ai hein, como é que faz?

Capítulo II

A VIOLÊNCIA

suMário: 2.1 Considerações preliminares – 2.2 Conceito e objeto de violência – 2.3 Violência e poder na visão de Hannah Arendt – 2.4 Violência urbana: uma construção contemporânea – 2.5 Multicausalidade da violência urbana; 2.5.1 Homo sapiens ou homo violens?; 2.5.2 Complexidade das causas da violência; 2.5.3 Multicausalidade da violência; 2.5.4 Causas sociais: a pobreza e a segregação do espaço urbano; 2.5.5 Causas culturais: a cultura da violência e os meios de comunicação; 2.5.6 Causas econômicas: a desigual distribuição de renda e a questão da impunidade; 2.5.7 causas biopsicológicas: a despropor-cionalidade das condutas violentas.

2.1 CONSIDERAÇõES PRELIMINARES

Ceilândia-DF.1 Era um dia comum na Panificadora e Confeitaria Dupão, localizada na QNP 14. Dona Lola, a proprietária, abriu o estabelecimento por volta das 6 horas da manhã, como normalmente fazia. Enquanto o padeiro João estava nos fundos da padaria, na produção, a proprietária estava mais à frente, varrendo o chão. Era o último dia do mês de julho de 2005. O dia amanhecia com sol.

1 Ceilândia, situada a 26 km do Plano Piloto de Brasília, é Região Administrativa do Distrito Federal e a cidade-satélite mais populosa, marcada pela exclusão social, pobreza e violência urbana, surgiu a partir da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI – daí seu nome CEI-lândia), que aconteceu em 27 de março de 1971 pelo governo local.

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Paulo Afonso Cavichioli Carmona é mestre e doutor em Direito Urbanístico (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Professor de Direito Administrativo e Urbanístico dos cursos de pós-graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT). Professor de Direito Administrativo e

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Urbanístico da graduação, especialização e mestrado do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). Líder do Grupo de Pesquisa em Direito Público e Política Urbana (GPDPPU – Uniceub). Membro e atual coordenador do Centro-Oeste do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU). Membro do Conselho Deliberativo da Funpresp-JUD. Juiz de Direito (TJDFT).