Psicanálise

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O presente livro oriundo da clnica psicanaltica e de sua interrogao metapsicolgica. O autor, considerando a clnica psicanaltica como o ponto de partida de sua pesquisa e na qual toda a reflexo terica se apia, encontra a obra de Ferenczi como referncia desta primazia da clnica no pensamento psicanaltico. O leitor encontrar neste volume trs incurses profundas na obra ferencziana, por meio dos percursos dos conceitos de introjeo das pulses, de smbolo e de identificao ao agressor. Nenhuma obra polmica foi evitada, e a controvertida Talassa foi respeitada pelo autor como central no pensamento ferencziano. Mas Freud e Ferenczi no conheceram a criao do Universo Concentracionrio. A hiptese interpretativa deste livro que a herana dos fundadores da doutrina psicanaltica no pode ser aceita como uma ddiva pelos psicanalistas atuais, tornando-os discpulos ou continuadores. A gerao psAuschwitz est na contingncia de recriar ou de refundar a conceptualidade psicanaltica. Os pais da doutrina deixaram indicaes; mas cabe gerao ps-Holocausto a tarefa de pensar como um dos destinos do Outro Homem vem a ser o seu extermnio. Fabio Landa comenta a obra de Nicolas Abraham e de Maria Torok na perspectiva de um psicanalista da segunda gerao do psguerra em contato com psicanalistas que

ENSAIO SOBRE A CRIAO TERICA EM PSICANLISE

FUNDAO EDITORA DA UNESP

Presidente do Conselho Curador Antonio Manoel dos Santos Silva Diretor-Presidente Jos Castilho Marques Neto Assessor Editorial Jzio Hernani Bomfim Gutierre Conselho Editorial Acadmico Antonio Celso Wagner Zanin Antonio de Pdua Pithon Cyrino Benedito Antunes Carlos Erivany Fantinati Isabel Maria F. R. Loureiro Jos Roberto Ferreira Lgia M. Vettorato Trevisan Maria Sueli Parreira de Arruda Raul Borges Guimares Roberto Kraenkel Rosa Maria Cavalari Editor Executivo Tulio Y. Kawata Editoras Assistentes Maria Apparecida F. M. Bussolotti Maria Dolores Prades

ENSAIO SOBRE A CRIAO TERICA EM PSICANLISEDE FERENCZI A NICOLAS ABRAHAM E MARIA TOROK

FABIO LANDA

Seguido de

FORAAS PALAVRAS ANGULOSAS DE NICOLAS ABRAHAM E MARIA TOROKJACQUES DERRIDA

Prefcio de PIERRE FDIDA

Copyright 1998 by Editora UNESP Copyright 1976 by Aubier Ttulo original em francs: "Fors. Les mots angls de Nicolas Abraham et Maria Torok." Direitos de publicao reservados : Fundao Editora da UNESP (FEU) Praa da S, 108 01001-900-So Paulo-SP Tel.: (Oxxl1)232-7171 Fax: (Oxxl1)232-7172 Home page: www.editora.unesp.br E-mail: [email protected]

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Landa, Fabio Ensaio Sobre a criao terica em psicanlise: de Ferenczi a Nicolas Abraham e Maria Torok/Fabio Landa; prefcio de Pierre Fdida. - So Paulo: Editora UNESP: FAPESP, 1999. - (Prismas) "Seguido de FORA as palavras angulosas de Nicolas Abraham e Maria Torok, Jacques Derrida". Bibliografia. ISBN 85-7139-253-6 1. Abraham, Nicolas 2. Ferenczi, Sandor, 1873-1933 3. Psicanlise 4. Psicanlise - Histria 5. Torok, Maria I. Ttulo. II. Srie.

9-3318 ndices para catlogo sistemtico: 1. Psicanlise: Teorias: Psicologia 150.195

CDD-150.195

Editora afiliada:

PREFCIO

Ns fomos numerosos, entre os psicanalistas da minha gerao, a ter pressentido nos anos 60 e 70 que os escritos de Nicolas Abraham e de Maria Torok deviam nos iluminar por muito tempo em nosso trabalho psicanaltico. Antes mesmo que esses escritos fossem reunidos numa primeira coletnea em (1987) L'corce et le noyau, vivemos um intercmbio extremamente fecundo com esses textos, que so (1968) "Maladie du deuil et fantasme du cadavre exquis" ["Luto patolgico e o fantasma do cadver delicioso"], (1971) "La topique ralitaire" ["A tpica realitria"], (1973) "La maladie de soi--soi" ["A doena de si-mesmo-a-si-mesmo"] e, mais tarde, (1976) Le verbier de l'homme aux loups. Textos entre outros que balizam um percurso de trabalho percebido como intenso e no obstante to modesto quanto possvel quando se trata da comunicao entre analistas. Como esquecer a leitura que fez Nicolas Abraham do Vocabulaire de psychanalyse de J. Laplanche e J-B. Pontalis? Era j, pois, o "L'corce et le noyau". Digo hoje que estes textos deviam nos iluminar por muito tempo. No apenas porque eles adquiriram valor de referncia para as publicaes, mas, antes de mais nada, porque sua inteligncia ana-

ltica nos conduzia, na nossa prtica, a trabalhar com a morte e os mortos encriptados na vida psquica. Acontecia ento algo com a linguagem que no espervamos: a ressonncia das palavras aumentava com isso. No faltaram trabalhos tratando das contribuies de Nicolas Abraham e Maria Torok psicanlise. Jacques Derrida e Ren Major marcaram decididamente o que havia de essencial na via aberta por aqueles autores. Quando Fabio Landa quis, por sua vez, explorar esta obra, ele no ignorava que sua prpria pesquisa o conduziria aos confins de questes to essenciais quanto as da emergncia da vida psquica, da memria dos mortos, da linguagem nos seus fragmentos. Talvez ele no soubesse, mas estavam l as questes que o obsedavam em sua prtica analtica com autistas e psicticos. E, nele, o movimento destas questes era sustentado por uma espcie de engajamento poltico de todo o seu pensamento clnico e terico. O livro hoje escrito no apenas um "estudo" sobre uma obra. um estudo no sentido mais silenciosamente ativo do termo e tambm o testemunho de uma inquietao, pois jamais existe repouso para estas coisas que so aqui faladas. s vezes, as palavras podem parecer excessivas: elas diriam excessivamente os eventos diminudos pelo discurso terico. Fabio Landa defende sua paixo pelo excesso porque o mais banal j excessivo. O livro de Fabio Landa no busca as polmicas. Ele diz apenas - com Hannah Arendt e depois dela - que a psicanlise tem tambm a ver com esta mentira absoluta produzida pelos sistemas totalitrios mesmo na vida cotidiana das sociedades liberais. Pierre Fdida

SUMRIO

Introduo Captulo 1 A distino entre a introjeo de pulses e a incorporao de objeto I O nascimento do conceito de introjeo II O conceito de introjeo na obra de Nicolas Abraham e Maria Torok Captulo 2 Smbolo I "La prsentation de Thalassa" de Nicolas Abraham II O smbolo na obra de Ferenczi III O smbolo na obra de Nicolas Abraham Captulo 3 Anasemia I Consideraes prvias ao estudo da anasemia II A psicanlise como teoria se enuncia em um discurso anasmico

9 21

21 49

91 94 101 131 157 159 170

Captulo 4 A criptoforia I O trauma e a clivagem do ego II Introduo clnica da incorporao Concluso Bibliografia de Nicolas Abraham e de Maria Torok Bibliografia sobre Nicolas Abraham e Maria Torok Bibliografia geral Fora As palavras angulosas de Nicolas Abraham e Maria Torok Jacques Derrida

197 201 2 14 233 243 247 253 269

INTRODUO

No h nada que o homem tema mais que o contato com o desconhecido. Quer ver o que vai toc-lo, quer poder reconhec-lo ou, em todo caso, classific-lo. Sempre o homem se esquiva do contato inslito. A noite, e na obscuridade em geral, o assombro de um contato inesperado pode se intensificar em pnico. Mesmo as roupas no so suficientes para garantir a segurana; elas so to fceis de serem rasgadas, to fcil penetrar at a carne nua, lisa e sem defesa da vtima. Todas as defesas que os homens criaram ao seu redor so ditadas por essa fobia do contato. Ele se tranca em fortalezas onde ningum pode entrar, e somente nelas se sente um pouco seguro. O medo que sente do ladro no provm apenas das rapaces intenes deste, tambm o medo de seu aparecimento sbito e inesperado no escuro. A mo deformada em garra sempre o smbolo utilizado dessa angstia. "Agredir" , antes de mais nada, "atacar", o contato inofensivo se interpreta aqui como ataque perigoso, e este ltimo sentido que acaba prevalecendo. Uma "agresso" um contato pejorativo. (E. Canetti, Massa e poder)

Desde o incio do movimento psicanaltico, cada gerao de psicanalistas produz conflitos que acabam em rupturas anunciando uma nova psicanlise; uma nova corrente tenta se impor de maneira hegemnica sobre as outras, assegurando-se os meios de transmisso e de formao de novos psicanalistas. Nada disso acontece em relao obra que examinamos neste estudo sobre os trabalhos de Nicolas Abraham e de Maria Torok, mesmo se se podem observar revolucionrias inovaes do ponto de vista clnico e metapsicolgico. Numa primeira abordagem, observam-se na obra desses autores todos os elementos que poderiam conduzi-los a uma excluso do movimento psicanaltico. Nela encontra-se o questionamento de alguns dos conceitos mais problemticos do conjunto da teoria psicanaltica que se prestam a tomada de atitudes extremamente dogmticas: a pulso de morte, o smbolo, a transferncia, a fantasia, a realidade. Alm disso, desde os primeiros escritos, eles adotam uma atitude toda particular de pesquisa, afastando-se cuidadosamente das correntes dominantes em sua poca (os anos 60 e 70) no movimento psicanaltico mundial, a kleiniana e a lacaniana. Deve-se ressaltar, sobretudo, que o estilo dessa obra no aquele habitual da literatura psicanaltica. O rigor com que os autores efetuam os remanejamentos dos conceitos clssicos (por exemplo, o conceito de introjeo ou a maneira pela qual eles abordam o mito de dipo ou ainda a inveja do pnis pela mulher) nunca implica uma linguagem seca do cientista, mas conduz sempre a uma abertura insuspeitada. Numa outra via, os casos clnicos, apresentados de uma maneira muito sucinta, mostram o essencial, sem o exibicionismo e a pretenso de criar um novo caso princeps. Trata-se de uma linguagem potica que implica imediatamente o leitor, que depara com uma obra cujo estilo , ao mesmo tempo, cientfico e potico, o que provoca uma sensao de estranhamento. Os dois estilos, habitualmente excludentes, coabitam nessa obra, o que nos leva a estabelecer uma analogia com a apresentao de casos clnicos por Freud, tendo o poder de criar uma teoria ou de reconsiderar antigos pontos de vista. O estilo e a clnica podem ser considerados os dois eixos que atravessam e imantam todos os textos de Nicolas Abraham e de

Maria Torok reunidos no volume L'corce et le noyau,1 bem como no estudo sobre o Homem dos Lobos no Le verbier de l'homme aux loups [O vocabulrio do Homem dos Lobos].1 Antes de se tornar psicanalista, Nicolas Abraham foi tradutor, atividade que manteve por toda sua vida e que marcou seu estilo. A preocupao em considerar o texto, e no autor, o objeto a interpretar (como sua anlise do livro de Conrad Stein, L'enfant imaginaire3), bem como a preocupao em conservar o ritmo do texto de origem conduzem-no a um complexo trabalho de interpretao que deve ser visto, antes de mais nada, como um rigoroso trabalho de traduo. Por exemplo, considerando a estrutura mito-potica de Thalassa de Ferenczi que ele pode qualificar essa obra como uma das mais liberadoras de nosso sculo. seu trabalho de tradutor que permite o surpreendente remanejamento conceituai que leva criao do conceito de anasemia e que s pode ser considerado uma traduo no interior da tpica freudiana, obrigando no apenas a um esforo de traduo, mas tambm a uma verdadeira "converso mental", segundo seus prprios termos. Mas no podemos considerar o estilo apenas como o resultado do seu trabalho de tradutor. Parece-nos que ele est tambm relacionado a um acontecimento que os autores levam em conta sem jamais nome-lo. Trata-se, na nossa opinio, da Shoah. 4 Esse fato impele os autores, segundo nossa interpretao, a se colocarem em uma posio que lhes permite dotar a psicanlise de instrumentos tericos teis para discutir um episdio dessa envergadura. Inmeros textos psicanalticos sobre o anti-semitismo foram escritos anteriormente, alguns se tornaram mesmo verdadeiras referncias. Mas o mesmo no se deu com a Shoah. Considerando Auschwitz um abismo que separa os analistas num antes e num depois supomos que os autores foram conduzidos mesma perspectiva dos fundadores da doutrina; sobretudo considerando que, por sua constituio particular, o movimento psicanaltico foi atingido duramente pelo racismo, que pde atingir os nveis de virulncia que conhecemos. Os autores foram ento compelidos a dialogar permanentemente com Freud e os psicanalistas da primeira gerao. Mas esse dilogo no se desenvolve de uma maneira andina.

Trata-se, sobretudo, de descobrir a falha, as incoerncias, os esquecimentos, a insuficincia. Desde Auschwitz, termos como trauma, catstrofe, mentira se revestem de novas ressonncias. De certa maneira, impe-se reconsiderar as relaes entre fantasia e realidade. Ferenczi foi o porta-voz de alguns desses termos com grande poder de aluso ao afeto. A mentira , para ele, um fator decisivo no trauma. Aps Auschwitz (que os nazistas, em seu humor sui generis, designavam como o "nus do mundo"), veremos Hannah Arendt5 afirmar que dois acontecimentos dos ltimos anos mudaram a condio do homem moderno. O primeiro, que ela nomeia como a Mentira Absoluta, o fato de que nunca antes se tinham visto em tal escala os sistemas totalitrios se servirem da mentira para se impor e dominar suas prprias populaes; o segundo o fato de que o homem, pelos avanos tecnolgicos, pode pretender, concretamente, sair do planeta Terra. Auschwitz catapultou a mentira vislumbrada por Ferenczi Mentira Absoluta sublinhada por Arendt. Para Ferenczi, a mentira acaba por se tornar uma pea essencial na sua viso clnica e em suas relaes com os outros analistas. Se, por um lado, ele considera que os castigos impostos s crianas por causa da mentira levam ao trauma e identificao com o agressor, por outro, no menos verdade que a hipocrisia profissional, "necessria" manuteno de uma atitude de neutralidade do analista, reproduz durante o tratamento analtico as condies traumatizantes familiares. Naturalmente, as condies da clnica mudaram, a psicanlise se desenvolveu enormemente, mas no parece que essa problemtica, tal como formulada por Ferenczi, tenha sido completamente ultrapassada; muito pelo contrrio. Dois exemplos da clnica podem ser considerados paradigmticos dessa hipocrisia profissional, avalista da neutralidade, que serve apenas para criar uma situao ilusria de domnio sobre um enredo que desemboca num impasse, com desfecho por vezes trgico. A filha caula de uma famlia sempre fora a preferida da me, que, de certa maneira, transformava os outros membros da famlia (o pai e a filha mais velha) numa espcie de figurantes de uma corte de vassalos da filha predileta. Essa jovem era aluna brilhante, o que s fazia aumentar a submisso dos outros e as atenes da

me. Por um arranjo entre famlias, a moa acaba se casando com um rapaz de uma famlia de cinco filhos, muito rica. O rapaz, por sua vez, designado pela me, era o herdeiro da fortuna familiar. O jovem casal de mdicos parte para uma viagem de estudos no estrangeiro, onde reproduzem o nvel de vida ao qual estavam habituados no pas de origem. Nesse perodo eles tm quatro filhos. O retorno ao pas de origem marca o fim da carreira profissional da esposa, que se torna dona de casa por imposio do marido, o que a faz naufragar no alcoolismo, tornando-se toxicmana. Aps uma tentativa de suicdio ela se v afastada (por interferncia da sogra) de toda deciso concernente fortuna familiar, em grande parte provinda da famlia do marido. nesse contexto que ela inicia uma psicoterapia e, ao mesmo tempo, segue um tratamento psiquitrico medicamentoso. Pouco tempo depois, interrompe a psicoterapia e faz uma segunda tentativa de suicdio; a psiquiatra recomenda uma lobotomia (esse caso se passa nos fins dos anos 80). A famlia vai em busca do parecer de outro especialista, que desaconselha tal procedimento cirrgico. Todavia, alguns dias mais tarde, a lobotomia realizada. Trs meses aps a cirurgia, ela se suicida saltando da janela do apartamento de sua me. Seis meses depois de seu falecimento, o vivo se casa com a psiquiatra que tratara de sua mulher e que indicara a lobotomia. Para alm da singularidade dos personagens desse caso, seria interessante frisar a importncia de um discurso mdico, tido por neutro e cientfico, postulando uma interveno que poderia mudar o destino da paciente e, de algum modo, traz-la de volta a uma "normalidade". Um pouco mais perto do nosso campo, a psicanlise, podemos citar o caso de um jovem mdico que chega para um segundo perodo de anlise, aps um tratamento de vrios anos com um analista didata. O jovem conta um sonho da ltima sesso de sua anlise precedente: "eu estou efetuando uma espcie de visita guiada a um lugar sombrio. Ouo barulhos estranhos e atemorizantes e meu guia me faz entrar numa sala onde vejo um homem e seu torturador; permanecemos a por um momento e samos; a porta da sala se fecha atrs de mim e ouo um rudo que me diz que o torturador acaba de matar sua vtima. Eu tinha esse sonho na cabea e fui, na manh seguinte, sesso de anlise. Sabia o que meu analis-

ta diria. H bom tempo ele repetia que eu deveria fazer um esforo para sair desse sempre mesmo quadro sadomasoquista. Ele dizia que eu no queria me curar nem progredir. H tempos eu fazia uma espcie de jogo com meu analista que eu julgava poder controlar: eu me via falando, mas eu no estava verdadeiramente l; eu escutava as interpretaes do meu analista de uma forma, eu diria, automtica. Suas palavras no me chegavam mais como palavras; em cada palavra que ele pronunciava eu sentia sempre o mesmo rudo metlico. No fim, eu no estava mais l. Eu me disse ento que aquela seria minha ltima sesso, o jogo tinha ido longe demais". Essa entrevista poderia fazer pensar no que Ferenczi escreve sobre a "franqueza" como o nico elemento de que dispe o analista para permitir a seu analisante de o criticar. Sabe-se que essas consideraes visavam a importantes remanejamentos tcnicos que ele tentava introduzir na poca. As duas situaes esboadas aqui desenham, de alguma maneira, uma configurao que se poderia, grosso modo, considerar um bloqueio por uma razo qualquer, com um desfecho relativamente problemtico. H tempos ns nos interessamos por esse tipo de desfecho de um tratamento analtico. preciso perguntar-se se a imagem do sonho do paciente no , de alguma maneira, indicao de uma situao mortfera muito distante das consideraes do seu antigo analista. De certa forma, h um gro de verdade no sonho do paciente concernente configurao do quadro analtico e que interroga o acolhimento de um analisante pelo analista. O que se observa que, medida que a psicanlise se desenvolve, a espessura terica do pensamento do analista funciona como uma verdadeira parede. Em vez de um contato, podem-se propor estratgias, tticas, para tal ou tal tipo de patologia e, no limite, poder-se-ia quase falar de "especialidades psicanalticas": casos "difceis", psicticos, toxicmanos etc. preciso ento perguntar se a psicanlise no est seguindo o mesmo caminho que a medicina, de uma especializao tendendo atomizao. E, nesse caso, se ainda se pode cham-la de psicanlise. Com base nessas situaes bloqueadas, seria preciso perguntar qual modelo nos permitiria pensar tais situaes e se possvel detectar a questo de uma atividade "iatrognica" da psican-

lise. Essa hiptese no campo da psicanlise nos levou a formular a hiptese da produo de um autismo "iatrognico" no paciente mencionado antes. Uma hiptese em certa medida ingnua, mas que nos impeliu a repensar o modelo do autismo infantil precoce. Percorrendo a literatura a esse respeito, parte alguns avanos clnicos e tericos, encontramos a situao dessa espessura terica que acabamos de mencionar, o que torna a maior parte dessa literatura bastante homognea. Os trabalhos de Tustin, 6 Haag, 7 Laznik-Penot8 buscam, sobretudo a partir da fineza da observao clnica, ultrapassar essa situao, mas no conseguem, todavia, se desvencilhar de certa dificuldade para encontrar as repercusses desses avanos para o conjunto da teoria. O artigo de Fdida 9 sobre o autismo exceo: trata-se precisamente de reconhecer o autismo como portador de uma potencialidade modeladora para a teoria. Se, por um lado, podemos comemorar a massa de produo terica e clnica no campo da psicanlise, por outro, preciso retomar a questo da ressonncia, a capacidade que deve guardar o analista de poder ser abalado em suas referncias tericas pelo discurso do analisante. O que quer dizer, afinal, que a partir do desencadeamento da atividade inconsciente do analista, em razo da presena do analisante, que se atinge a interpretao dita psicanaltica. A rigidez dos modelos tericos que o analista traz acaba agindo como uma barreira de contato, seja na sesso analtica seja na produo terica. O que vem estabelecer uma condio particular nas relaes dos analistas entre si. Num trabalho recentemente surgido na Frana, Besserman Vianna10 conta um episdio extremamente interessante implicando a psicanlise no Brasil e que teve repercusses na Frana. o episdio, bastante conhecido, de um analista brasileiro que, sob a ditadura militar dos anos 60 e 70, dedicava uma parte de seu tempo como conselheiro mdico de um grupo de tortura dos organismos governamentais de represso. Esse personagem fez sua anlise (dita didtica) com um psicanalista que, por sua vez, havia sido analisado por um analista chegado ao Brasil no final dos anos 40, sado dos quadros do Instituto de Psicoterapia que tomara o lugar da Sociedade Psicanaltica de Berlim aps a sua "arianizao" sob o regime nazista. O analista

didata que conduziu a terapia, aps terem sido reveladas as atividades duvidosas de seu analisante, participou com alguns dirigentes do IPA de certa manobra de abafamento do episdio. Recentemente, por ocasio de um voto no seio da Sociedade qual pertence esse analista didata, relativo ao procedimento visando sua expulso, foi decidido por expressiva maioria mant-lo em suas funes.11 evidente que os membros dessa associao, eles mesmos em parte formados sobre o div desse analista, no poderiam ter votado de outra maneira na ocasio. preciso perguntar se a expulso desse analista didata pode ser justificada; ao menos a concluso qual chegou uma comisso nomeada pelo organismo internacional para examinar o caso. Esse ato acarretaria conseqncias importantes para seus atuais e antigos analisantes. Seria til acrescentar um ltimo detalhe: o analista didata em questo de origem judaica. Estamos diante, pois, de um episdio no qual um judeu foi analisado por um analista que fora dirigente de um Instituto tutelado pelos nazistas. Para darmos conta dessa situao, seria necessrio encontrar os elementos tericos que permitissem praticar uma poltica psicanaltica que fosse efetivamente, ao mesmo tempo, poltica e psicanaltica. Devemos levar em conta a situao bastante problemtica de um analisante que tenha tido por analista algum que fora conivente com a tortura e participara do abafamento dos fatos. Vemos nesse episdio um modelo muitas vezes repetido na histria da psicanlise, em que a espessura terica desliza rapidamente para tergiversaes burocrticas e posies doutrinrias, erigindo verdadeiros delrios (como veremos no terceiro captulo deste estudo) em teoria, sem que o delrio sofra os remanejamentos imprescindveis antes de fornecer um modelo terico. Com base nas consideraes aqui esboadas, colocamo-nos a questo do acolhimento do analista a seu analisante. Esta pesquisa nos conduziu aos trabalhos de Derrida e Lvinas. A via a partir da tica permite responder a algumas de nossas questes. , se podemos dizer, "desconstruindo" alguns conceitos que algumas questes puderam ser formuladas. O acolhimento do analista a seu analisante pode se resumir numa questo de tcnica psicanaltica a ser examinada em uma superviso ou esse acolhimento depende

da herana freudiana? Interrogar Freud e seus estudos s pode nos afastar de toda abordagem apologtica de sua biografia e de sua obra. No que concerne ao trabalho analtico, seria interessante ver Freud a partir dos dilogos que ele manteve ao longo de toda a sua obra. Nesse sentido, a correspondncia uma fonte inestimvel. A psicanlise seria, talvez, inconcebvel sem se levar em considerao as foras que poderiam destru-la ou impedi-la de existir. A maneira com que essas foras se organizaram em Freud e passaram aos analistas, de todas as correntes, uma questo que nos colocamos e que, em certo momento, nos levou a tomar a deciso de ver Freud a partir de um olhar sobre Freud (neste estudo, o olhar de Ferenczi, por razes que se explicitaro mais frente). Em outros termos, a histria da medicina deve incluir Mengele, 12 pois, sem ele, deparamos com uma lacuna que impede de ver por que a medicina guarda certa fobia do contato com os pacientes e se enriquece de to grande nmero de meios "tcnicos", a tal ponto que por vezes se pode perguntar se ainda razovel falar-se de uma relao mdico-paciente. Sem um Freud potentemente antipsicanaltico, com dificuldade se pode compreender por que a chamada "clnica" psicanaltica recua cada vez que se fala de "teoria" psicanaltica. Essas questes relacionadas "clnica", por assim dizer, sustentam nosso estudo e este trata de relatar um trecho do caminho que percorremos. preciso assinalar que os pontos de referncia desse caminho foram a obra de Derrida e de Fdida. Chegar obra de Nicolas Abraham e de Maria Torok foi apenas uma conseqncia dessas leituras. Pensamos que nenhum analista pode escapar, num momento ou noutro, necessidade de criar sua prpria teoria. A maioria recusa essa eventualidade. Mas cada analista, num dado momento, se encontra diante de um analisante que o interroga continuamente. Pode-se supor que aps esse tratamento, ou aps cada sesso desse tratamento, que o analista se pergunta sobre o fato de ser analista e sobre sua prpria anlise pessoal, uma anlise que no termina jamais. As questes que esboamos at aqui encontram, na obra de Nicolas Abraham e de Maria Torok, um lugar to importante que esses dois autores se tornaram nossos principais interlocutores. A

"clnica" ocupa um lugar central em sua obra. Poder-se-ia mesmo dizer que as orientaes tericas que eles to naram foram determinadas pela clnica. E se, em sua obra, a clnica muito brevemente expressa em termos de apresentao de caso porque a visada clnica para eles onipresente como especulao. No se trata de um desfile de casos clnicos, mas sim de uma interminvel pesquisa de legibilidade e de traduo. Os pontos de vista metapsicolgicos dos autores devem dar conta do esforo de legibilidade que eles desenvolvem em relao a seus pacientes. No h "pacientes difceis". Eles esto sempre prontos a interrogar seus modelos tericos e a modific-los diante da clnica; desse modo que eles encontram, a partir da clnica, os elementos que possibilitam efetuar algumas precises conceituais como, por exemplo, a distino entre a introjeo de pulses e a incorporao de objeto. O trabalho de tradutor de Nicolas Abraham marca seu estilo de terico da psicanlise; sabe-se que ele chamava algumas de suas tradues dos poetas hngaros de "poesias mimetizadas". O trabalho de escritura dos autores procura imitar seu tema. Deparamos ento com um estilo a um s tempo cientfico e potico, guardando uma fora performativa; os desenvolvimentos que esta proporciona aos seus leitores ultrapassam a leitura e implicam as cadeias associativas. O compromisso dos autores com a clnica os leva a escrever em um dos seus trabalhos: "salvar a anlise do homem dos lobos, nos salvar". O encontro de sua obra com a de Ferenczi seria pois inevitvel. Sabe-se dos esforos clnicos de Ferenczi que o conduziram beira de uma ruptura com Freud. Com base nessa convergncia entre os autores e Ferenczi desenvolvemos nosso estudo. Assim, as referncias aos conceitos analticos so feitas tomando-se Ferenczi por base, para no perder de vista nosso ponto de partida: as questes com base na clnica. Na biografia de Nicolas Abraham ( qual neste estudo nos referimos, deliberadamente, muito pouco), encontra-se um momento de impasse importante no decurso de sua anlise pessoal. Nesse episdio, que referido ao longo deste estudo, houve a participao de um terceiro personagem. Trata-se de Ren Major, que teve acesso s cartas que o analista de Nicolas Abraham encaminhou Sociedade de Psicanlise de Paris recomendando a recusa de sua candidatura a membro

efetivo dessa associao. O ato de Ren Major de mostrar essas cartas a Nicolas Abraham pode ser tomado como um modelo de ruptura com uma atitude virulentamente antianaltica dos analistas. Cremos que o ato de Ren Major teve o efeito de um ato analtico que restitui sua dimenso metafrica a uma situao que havia perdido essa dimenso. Neste nosso estudo, os captulos em geral se organizam seguindo uma mesma estrutura: partimos da obra de Ferenczi para apresentar, num segundo momento, os pontos de vista de Nicolas Abraham e de Maria Torok. O Captulo 3 o nico a apresentar uma estrutura distinta: tomamos um trabalho de Pierre Fdida para raciocinar primeiramente sobre a questo da teorizao no campo da psicanlise. Podem-se distinguir na obra de Nicolas Abraham e de Maria Torok algumas particularidades que formam uma rede de interseces bastante complexa. Primeiramente, preciso assinalar um dilogo entre os dois autores que no tem simplesmente a caracterstica de uma complementaridade ou de uma justaposio de textos. A assinatura dos dois livros, L'corce et le noyau e Le verbier de l'homme aux loups, pelos dois autores, parece ser o resultado de um mtodo denominado por um deles de "transfenomenal", ao mesmo tempo "trans-subjetivo" e "trans-objetivo". De certa forma, encontramos a mesma relao entre Jacques Derrida e os autores. Um segundo ponto se refere ao dilogo com os textos de Imre Hermann, Dominique Geahchan, Ilse Barande, Denise Braunschweig, Conrad Stein, Laplanche e Pontalis (Vocabulaire de Ia psychanalyse). Mencionamos antes a importncia do trabalho de traduo de Nicolas Abraham; a relao com a literatura seria um terceiro ponto. E, por fim, evidentemente, o ponto constitudo pela relao com os mestres: Freud, Husserl, Ferenczi. O caminho que percorremos nos conduz da distino entre a "introjeo de pulses" e a "incorporao de objeto" criptoforia, passando pelo smbolo e a anasemia. Procuramos nos manter o mais prximo da interseco entre a clnica e o mtodo interpretativo de textos tericos dos autores, preocupados em discernir os movimentos de transformao dos conceitos e os elementos que permitiram essa transformao at a criao da nova figura da

metapsicologia, ou seja, a "cripta". Nesse sentido, os captulos sobre o smbolo e a anasemia podem ser considerados uma tentativa de discernir o mtodo pelo qual se chega figura da "casca-eo-ncleo", que parece ser a chave e o coroamento desse mtodo. Nos captulos sobre o smbolo e sobre a anasemia, procuramos explicitar os protocolos de leitura que permitiram aos autores considerar "que todos os conceitos psicanalticos autnticos se reduzem a estas duas estruturas, alis Complementares: smbolo e anasemia .

NOTAS1 2 3 4 Abraham & Torok, 1987a. Idem, 1976. Stein, 1987. Holocausto, o genocdio dos judeus europeus, pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. 5 Arendt, 1983. 6 Tustin, 1989. 7 Haag, 1983. 8 Laznik-Penot, 1995. 9 Fdida, 1990. 10 Vianna, 1997. 11 Esse episdio todo terminou com a expulso do analista didata de suas funes. 12 Mdico SS encarregado das "selees" e "experincias mdicas" em Auschwitz.

CAPTULO I A DISTINO ENTRE A INTROJEO DE PULSES E A INCORPORAO DE OBJETO

I O NASCIMENTO DO CONCEITO DE INTROJEO Pode-se percorrer a obra de Nicolas Abraham e de Maria Torok com a distino que eles estabeleceram entre introjeo e incorporao1 da mesma maneira que se pode "percorrer a obra de Ferenczi com o conceito de introjeo".2 Para eles, a introjeo "constitui a pea mestra, o motor da vida psquica no seu conjunto".3 Segundo Nicholas Rand, em sua introduo edio americana de L'corce et le noyau, para Nicolas Abraham e Maria Torok uma primeira definio seria: a introjeo se equipara ao trabalho que continuamente estende nossas possibilidades de acolher nossos prprios sentimentos e desejos nascentes, o mesmo se dando com os acontecimentos e influncias do mundo externo.4 O conceito de introjeo foi criado por Ferenczi para definir um fato caracterstico dos neurticos. Esse conceito se opunha ao de projeo, que seria o fenmeno caracterstico dos paranicos. no artigo "Transferi et introjection"5 ["Transferncia e introjeo"] (de 1909) que se pode encontrar, pela primeira vez, o

termo "introjeo". Esse termo s aparecer na obra de Freud alguns anos mais tarde, em 1915 mais exatamente, em Pulsions et destins des pulsions6 [Pulses e destino das pulses], como assinala James Strachey. 7 O artigo de Ferenczi "Transfert et introjection" dividido em duas partes (I. Introjection dans la nvrose [Introjeo na neurose], II. Rle du transfert dans 1'hypnose et la suggestion [Papel da transferncia na hipnose e a sugesto]) e constitui, com o artigo precedente (de 1908) "Psychanalyse et pdagogie" ["Psicanlise e pedagogia"], o princpio de uma primeira teorizao aps o seu encontro com Freud. Trata-se de uma tomada de posio em relao s doenas "nervosas". Esse texto estabelece uma fronteira clara entre as perspectivas anteriores e posteriores s hipteses freudianas (sobre o inconsciente e as diferentes instncias do aparelho psquico). No artigo de 1909, Ferenczi retoma as descobertas de Freud sobre a transferncia (sobretudo o caso Dora) e faz uma longa interpretao das relaes entre esta, de um lado, e a sugesto e a hipnose, de outro. No seu artigo de 1908, Ferenczi afirma que possvel mudar o homem. Uma verdadeira revoluo estaria no horizonte e poderia ser realizada com base nos ensinamentos de Freud. A possibilidade dessa revoluo na educao das crianas, "um mergulho nos jardins de infncia", lhe permite avanar a hiptese de que, em se mudando a atitude em relao s crianas, cessando as "mentiras" 8 e as falsas informaes, poder-se-ia mudar o homem. Ele lana as bases de todo um programa de trabalho terico. Nada menos que o de fundar uma pedagogia e um programa prtico, "preventivo", uma "pedagogia fundada na compreenso, na eficcia e no nos dogmas". 9 Pode-se observar a presena, desde seu primeiro artigo at 1933 ("La confusion de langue entre les adultes et Penfant" ["Confuso de lngua entre os adultos e a criana"]), 10 dos temas que sero constantes em sua obra: a criana, a mentira, a influncia do ambiente, as primeiras relaes com os pais. No artigo que nos interessa mais de perto aqui, "Transfert et introjection", Ferenczi tem, como no artigo anterior, a preocupao de estabelecer os limites e as possibilidades de um antes e de um aps os postulados de Freud. Faz tambm um balano e uma

reinterpretao de sua atividade pr-analtica como hipnotizador. A estratgia argumentativa desse artigo admiravelmente eficaz. Ela evita toda discusso sobre uma classificao, bastante problemtica, das neuroses, e afasta tambm toda definio, no menos problemtica, das psicoses. Quando fala das neuroses, em geral, e quando ope os mecanismos desta aos da parania, Ferenczi se encontra num terreno seguro. Ele pode afirmar (a partir de uma abordagem suficientemente detalhada e fundada em seus conhecimentos clnicos, mas ao mesmo tempo suficientemente genrica permitindo uma viso de conjunto) que a projeo a caracterstica da parania, enquanto a introjeo a caracterstica das neuroses em geral. A partir dessa perspectiva, o artigo de 1909 uma seqncia do artigo de 1908. Se no artigo de 1908 trata-se da preveno das neuroses em geral (a partir da fundao de uma "pedagogia"), no de 1909 trata-se da formulao dos princpios gerais de uma teoria da clnica psicanaltica. O trao fundamental do procedimento ferencziano de escutar, antes de mais nada, o sofrimento, para estabelecer, em seguida, uma teoria. Quando a teoria se revela insuficiente, ele retoma a clnica. H pois um ir-e-vir permanente entre a clnica cotidiana e o esforo para torn-la compreensvel e eficaz. Mais tarde, veremos Nicolas Abraham retomar esses princpios ferenczianos para op-los utilizao da teoria como um dogma. Depois de ter encontrado um ponto suficientemente prximo para ver o detalhe e suficientemente afastado para ter uma viso de conjunto, isto , aps ter encontrado a necessria distncia, Ferenczi define a transferncia como o fenmeno psicanaltico por excelncia, mas tambm como um fenmeno bastante freqente, que se encontra na base de toda relao humana, seja no homem "normal" seja no "neurtico". Segundo Ferenczi, em toda manifestao neurtica h, no fundo, uma transferncia. Trata-se de um "esbanjamento aparente" das energias afetivas. Esse "esbanjamento aparente" visto, num primeiro momento, como um "deslocamento da energia afetiva dos complexos de representaes inconscientes sobre as idias atuais, exagerando sua intensidade afetiva".11

Em Ferenczi, entretanto, os mdicos se encontram com freqncia severamente questionados: "o comportamento excessivo das histricas bem conhecido e suscita os sarcasmos e o desprezo; mas desde Freud sabemos que a ns, mdicos, que os sarcasmos deveriam ser dirigidos, ns que no reconhecemos a representao simblica histeria, fazendo figura de analfabetos diante da rica linguagem da histeria".12 Nessa passagem, Ferenczi no fala ainda da atitude antianaltica do mdico. Pode-se perceber, contudo, uma primeira aluso existncia de uma contratransferncia onde existe transferncia. No apenas o paciente que pode no querer saber nada de anlise; sobretudo o mdico que tomado por uma cegueira voluntria. Todo o artigo se dirige ao mdico que quer guardar suas crenas (religiosas? mgicas?) em uma cincia tranqilizadora que o colocaria fora do circuito mais problemtico da clnica, e que lhe permitiria um lugar honrado e protegido. Logo, ser possvel observar o surgimento de uma fina ironia em Ferenczi em relao ao "charme irresistvel" do mdico ou do hipnotizador, como explicao dos estados amorosos de seus pacientes. Se no nos deixarmos enganar pelo estilo inocente de Ferenczi, apresentando no comeo de seu artigo o papel do mdico, poderemos detectar as bases de uma atitude clnica bem particular. Nessa atitude, a preocupao de compreender, de estar o mais perto possvel do sofrimento e de ser til se desenvolve medida que sua prtica clnica avana. Ela levou Ferenczi a experimentar atitudes teraputicas relativamente problemticas, como foi o uso da "tcnica ativa", que quase o conduziu a uma ruptura com Freud. No seria sem proveito estudar em detalhe esse artigo, pois trata-se de examinar o contexto do nascimento de um conceito que no teve o mesmo destino que a noo de identificao, que por sua vez tornou-se um dos pilares da doutrina freudiana. Para Nicolas Abraham, contudo, o conceito de introjeo "crucial". Ele diz claramente que o "problema, crucial, do conflito de introjeo o ltimo objetivo do que se chama o desejo e do qual as fantasias so apenas eventualidades".13 Num primeiro momento, trata-se de constatar que aquilo que constitui o pilar da obra de Freud, a identificao, um conceito secundrio na de

Abraham & Torok. Para eles, a introjeo que desempenha o papel principal. Essa distino carrregada de conseqncias para o desenvolvimento da obra de Abraham & Torok. Retomando o conceito de introjeo criado por Ferenczi e levando-o ao limite ao radicaliz-lo, os autores chegaro a concluses bastante diferentes das de Freud quanto clnica, como por exemplo a retomada do caso do "Homem dos Lobos" 14 e as surpreendentes interpretaes a que chegam os autores.

A introjeo, caracterstica da neurose. A projeo, caracterstica da paraniaO conceito de introjeo foi criado com base no conceito de transferncia (no caso Dora). 15 Para Ferenczi, no artigo de 1909, as transferncias so as reedies, as reprodues de tendncias e de fantasias que a progresso da anlise desperta e deve trazer conscincia, e que se caracterizam pela substituio da pessoa do mdico por pessoas outrora importantes.16 A transferncia , contudo, rapidamente reconhecida como um fenmeno muito mais amplo para ficar restrito ao quadro de uma psicanlise. A transferncia descrita como um "mecanismo psquico caracterstico da neurose em geral, que se manifesta em todas as circunstncias da vida e est subjacente maioria das manifestaes mrbidas" 17 nos neurticos. A transferncia, caracterstica dos neurticos, vista como parte de um quadro mrbido ao lado da "imitao" e do "contgio psquico"; isto , da capacidade do "enfermo" de se apropriar das caractersticas e dos sintomas de outra pessoa. Trata-se da identificao histrica. Ferenczi acrescenta que se trata da capacidade desses "enfermos" de se colocarem no lugar de uma outra pessoa, de sentirem intensamente o que acontece aos outros. Essa caracterstica indica-

tiva de um "lugar" est na origem de uma das distines conceituais efetuadas por Nicolas Abraham e Maria Torok - a distino entre introjeo e identificao: Na literatura analtica reina uma certa confuso entre introjeo e identificao. Esta entra, seguramente, no processo daquela, mas os dois mecanismos no devem ser confundidos. O resultado da introjeo uma relao com o objeto interno, enquanto o de identificao a designao de um lugar eleito momentaneamente como domiclio pelo sujeito.18 Essa distino entre introjeo e identificao,19 estabelecida por Nicolas Abraham, no um simples detalhe terico. Ela indica uma retomada do conceito ferencziano, que no do domnio retrico. Trata-se de atualizar um instrumento para o trabalho clnico. O resultado da introjeo uma relao com um objeto interno e, por isso, indica a via dos conflitos entre o sujeito e este objeto. A introjeo , pois, o processo determinante da problemtica do dentro e do fora, do estrangeiro e do prprio. A identificao, por sua vez, o processo pelo qual o sujeito pode se deslocar e ocupar diferentes posies. Para Ferenczi, essa capacidade de identificao (identificao do "paciente" com outro ou identificao das funes de nutrio e de secreo com as funes sexuais) que explica a concentrao dos sintomas da histeria na boca e no esfago. Aqui Ferenczi emprega as expresses deslocamento e transferncia indiferentemente, sendo a transferncia apenas "um caso particular da tendncia geral ao deslocamento dos neurticos". 20 Com efeito, o deslocamento o mecanismo fundamental pelo qual o neurtico pode escapar aos "complexos penosos e portanto reprimidos". Se a transferncia um fenmeno presente nas condies "normais" da vida cotidiana, as condies de um tratamento analtico so muito propcias ao seu aparecimento. Quando descreve os mecanismos de transferncia no tratamento analtico Ferenczi estabelece uma analogia com a qumica, comparando os afetos reprimidos que aparecem medida que se desenvolve o tratamento aos elementos qumicos que buscam a saturao de suas valncias qumicas no saturadas. O analista seria, ento, o "catalisador" 21 des-

se processo. Ferenczi assinala, contudo, que, em uma anlise corretamente conduzida, o carter dessas combinaes "qumicas" transitrio e deve conduzir o "paciente" s "fontes primitivas escondidas, criando uma combinao estvel com os complexos at ento inconscientes".22 Observa-se nessa analogia a estratgia ferencziana de um tratamento analtico no qual o conceito de introjeo desempenhar um papel particular. Se o analista apenas um "catalisador", ele no participa verdadeiramente do desenvolvimento do fenmeno. Em contrapartida, em sua ausncia, a "reao qumica" no ocorre. O papel do catalisador-analista ser um mediador entre o ego e o inconsciente. O analista s existe para melhor desaparecer. De fato, o analista se torna uma representao de uma pulso, enquanto o espao analtico se torna o duplo de uma configurao psquica que ser sempre desconhecida se no puder se desenvolver no espao geogrfico cujos limites seriam os de uma sesso analtica. Como diz Neyraut: a problemtica da transferncia ento territorial. A situao analtica se torna ela mesma um terreno onde se operam as anexaes, os ganhos... Uma metfora poltica derivada do espao vital poderia facilmente explicitar: assimilao dos elementos estrangeiros mais desejveis por naturalizao, expulso dos causadores de problema.23 Se o analista desaparece imediatamente aps ter desempenhado o papel de "catalisador", resultar disso uma apropriao de uma parcela do inconsciente pelo analisante. Neste sentido, pode-se dizer que h uma ampliao do ego. Ocorre ento uma "introjeo de pulses". Trata-se de um "processo", como assinala Maria Torok, quando ela ope "introjeo de pulses" a "incorporao de objeto". Esta no um processo, mas um ato de carter imediatista, um ato mgico. Para Ferenczi, a transferncia um fenmeno bastante freqente nos neurticos e que se desencadeia muito facilmente. Trata-se, para ele, alis, da caracterstica mais especfica dos neurticos. Ferenczi pensa que quase "ridculo" constatar que a transferncia pode se desencadear a partir de "semelhanas nfimas" (identificao do mdico com o "mdico" das brincadeiras infantis, se-

melhanas fsicas insignificantes como os gestos, a cor dos cabelos etc). Ele retoma aqui a representao pelo detalhe ("Darstellung durch ein kleinstes"). Neyraut assinala: Poder-se-ia melhor traduzir, na minha opinio, pelo "o menor", isto : o elemento prprio a suportar a transferncia dos afetos inconscientes. Mas este "Kleinstes" para Ferenczi parece mais um detalhe, um fragmento, uma pequena realidade que um elemento que somente pequeno por se referir a um maior e sendo no apenas um pedao, mas eventualmente o smbolo. Um ligeiro desvio mas cheio de conseqncias o faz, em sua interpretao da transferncia, privilegiar o deslocamento do afeto em relao ao de representao. Freud reservava em sua definio a possibilidade de um deslocamento de representao: "deslocamento de tendncias, de fantasias". Para Ferenczi, a representao permanece fixada aos complexos reprimidos, apenas os afetos em excesso e os gases sob presso buscam se fixar sobre outras representaes.24 Nestas condies, o analista ou antes um detalhe nfimo de sua pessoa se torna a nova representao: a nova representao.25 O que Neyraut escreve aqui nos permite compreender melhor o procedimento de Ferenczi e suas conseqncias. Para Ferenczi, trata-se de discernir um fenmeno cuja importncia antes de mais nada econmica. Ele insiste sobretudo no carter macio e onipresente da transferncia e descreve a transferncia em geral e a transferncia sobre o mdico (que apenas uma manifestao da "tendncia geral dos neurticos a transferir") como uma "tendncia", uma "impulso", um fenmeno inevitvel, quase que a "natureza" mesma do neurtico, e que determinada pela economia libidinal. Trata-se de afetos livremente flutuantes, resultado de um recalcamento que no permite sequer um mnimo interesse pelas representaes de prazer tornado desprazer por causa de uma incompatibilidade com a conscincia do ego civilizado. Esses afetos livremente flutuantes sero a custo tolerados pelo psiquismo. Segundo Ferenczi, na histeria, o "paciente" converter uma parte da "quantidade de excitao" em sintoma orgnico e, na neurose obsessiva, ele a deslocar para uma idia compulsiva. Entretanto, "subsiste uma quantidade de excitao livremente flutuante, cen-

trfuga diramos, que tenta ento se neutralizar sobre os objetos do mundo exterior. a esta quantidade de excitao 'residual' que se imputar a disposio dos neurticos transferncia".26 A noo de introjeo aparecer, pois, tendo por bases a noo de transferncia e consideraes de ordem essencialmente econmica. Como escreve Fdida: Ora, a transferncia um sintoma como o tambm o sonho: ela participa dos mesmos mecanismos de formao. E da mesma forma que o sonho, ela assegura no apenas os meios de conhecer a vida psquica inconsciente do paciente, mas tambm os meios de agir sobre a economia27 deste.28 Em 1909, Ferenczi tenta estabelecer as fronteiras entre introverso, projeo e introjeo.29 Cada um desses termos remeter a um modelo psicopatolgico. A introverso ir concernir os "dementes precoces" ("o demente retira totalmente seu interesse do mundo exterior, se torna infantil e auto-ertico"). A projeo ser a caracterstica dos paranicos ("o paranico incapaz de retirar seu interesse do mundo exterior; ele se contenta em repelir esse interesse para fora do seu 'ego', de projetar no mundo exterior os desejos e as tendncias e cr reconhecer no outro todo o amor, todo o dio que ele nega em si-mesmo". Na neurose, observamos um processo diametralmente oposto ( parania). Pois enquanto o paranico projeta no exterior as emoes que se tornaram penosas, o neurtico procura incluir na sua esfera de interesses uma parte to grande quanto possvel do mundo exterior, para torn-lo objeto de fantasias conscientes ou inconscientes. Esse processo ... considerado um processo de diluio, pelo qual o neurtico tenta atenuar a tonalidade penosa dessas aspiraes "livremente flutuantes", insatisfeitas e impossveis de satisfazer. Proponho denominar esse processo inverso da projeo: introjeo.30 A introverso, a projeo e a introjeo so concebidas, num primeiro momento, como mecanismos de defesa; modalidades astutas que os "pacientes" utilizam para se desfazer dessas quantidades de energia livremente flutuantes resultado do processo de recalcamento e que contrariam o princpio de prazer.

No mesmo artigo, algumas pginas frente, encontra-se o conceito de introjeo apresentado como um mecanismo de defesa que faz parte de uma argumentao com base num hipottico adversrio da psicanlise se exprimindo atravs de Ferenczi: "poder-se-ia objetar-me que a extenso da esfera de interesses, a identificao do 'ego' com numerosas pessoas ou mesmo com a humanidade inteira, a receptividade com as estimulaes exteriores, so qualidades compartilhadas pelos indivduos normais, at mesmo os da elite, e que a introjeo no pode ento ser considerada um processo psquico caracterstico dos neurticos". 31 Ferenczi responde a essa hipottica objeo com o mesmo argumento de universalidade: "segundo a doutrina psicanaltica, no existe uma diferena fundamental entre normalidade e neurose". 32 A deciso de incluir o processo de introjeo entre os mecanismos de defesa bastante problemtica. Ferenczi nos fornece, ele mesmo, argumentos contra essa assimilao. Acabamos, no entanto, tendo a impresso, no artigo que estamos examinando, de que, afinal, para ele, a introjeo (como processo caracterstico dos neurticos) pode ser sinnimo de transferncia.33 Ele indica apenas uma ligeira distino, como nesta passagem: O termo "transferncia" criado por Freud deve ser conservado para designar as introjees que se manifestam no decurso da anlise e que visam pessoa do mdico, em razo de sua importncia prtica excepcional. O termo "introjeo" convm a todos os outros casos implicando o mesmo mecanismo.34 Nessa perspectiva, a parania e a neurose seriam os dois modelos distintos pelos quais o problema econmico dessa quantidade de excitao livremente flutuante, contrariando o princpio de prazer, poderia ser resolvido. Os dois mecanismos essenciais - a projeo e a introjeo - se tornariam, para Ferenczi, os mecanismos que ultrapassam a patologia e abrem a via para uma abordagem ontogentica. No se trata mais de compreender a neurose ou a parania, mas de atribuir uma caracterstica de universalidade a esses mecanismos assim descritos com base na patologia - uma maneira que se tornou clssica a partir de Freud, para compreender o desenvolvimento do homem a partir de sua infncia.

A projeo e a introjeo como modelos de funcionamentoA hiptese de Ferenczi descrita em termos muito simples. Tem-se quase a impresso de que ele faz simples conjeturas. Pode-se, contudo, vislumbrar as pistas complexas, para estabelecer um estatuto do ego. Ferenczi nos diz: Pode-se pensar que o recm-nascido experimente todas as coisas de uma maneira monista, diramos ns, quer seja um estmulo exterior ou um processo psquico. apenas posteriormente que ele aprender a conhecer a "malcia das coisas", as que so inacessveis introspeco, rebeldes vontade, enquanto outras permanecem sua disposio e submetidas ao seu querer. O monismo se torna dualismo.35 A passagem do monismo ao dualismo se faz mediante a "malcia das coisas", o que supe o recurso linguagem e a aceitao de uma limitao dos poderes da vontade. A "malcia das coisas" tanto um recurso linguagem que no se pode deixar de fazer referncia aos mitos (por exemplo, o mito do pecado original, no qual a "malcia das coisas" aparece por meio da serpente que instiga Ado e Eva contra Deus). O monismo seria ento o herdeiro do estado do ventre materno. A passagem ao dualismo implica uma atividade de descoberta e um agir. Ferenczi prossegue: Quando a criana exclui os "objetos" da massa de suas percepes, at ento unitria, como formando o "mundo exterior" e que, pela primeira vez, ela lhe ope o "ego" que lhe pertence mais diretamente; quando pela primeira vez ela distingue o "percebido" objetivo ("Empfindung") do "vivido" subjetivo ("Gefhl"), ela efetua, na realidade, sua primeira operao projetiva, a projeo primitiva.36 V-se aqui o conceito de projeo passar de um estatuto de simples mecanismo de defesa37 a um estatuto de modelo fundador de um funcionamento. preciso notar, contudo, que esse evento primeiro no considerado "originrio", mas "primitivo". 38 Se o conceito de projeo fosse considerado "originrio", poder-se-ia facilmente ser levado a pensar em uma causalidade. Primitivo pres-

supe que h uma iteratividade, o que muda completamente a perspectiva. No basta mais encontrar alguma coisa que tenha ocorrido num dado momento. Trata-se de constatar o comeo de um funcionamento que est sempre l, sempre presente no tratamento analtico e, mais especificamente, como um dos componentes da fenomenalidade da transferncia.39 , pois, sobre o modelo da transferncia que Ferenczi afirma que a criana, aps ter descoberto esse "mtodo" (a projeo), pode se desfazer de afetos desagradveis de uma maneira paranica. Para isso, basta repetir o mtodo da objetivao de uma parte de sua sensorialidade. Basta expulsar uma parte do ego para o mundo exterior. A projeo e a introjeo no so mais encaradas como mecanismos oriundos da parania e da neurose. Elas adquirem agora a dimenso de um modelo de funcionamento. De um ponto de vista ontogentico, a introjeo no mais considerada uma oposio projeo. Se, em um momento, ela o foi, era simplesmente para melhor esclarecer o modo de funcionamento paranico em relao ao neurtico. Trata-se agora de descrever o estabelecimento de algumas modalidades de funcionamento. Do ponto de vista de seu funcionamento, a projeo precede a introjeo. a partir do modelo da projeo que a introjeo pode se constituir. A propsito da introjeo, Ferenczi assinala: Uma maior ou menor parte do mundo exterior no se deixa expulsar to facilmente do ego, mas persiste em se impor, como um desafio: ame-me ou odeie-me, "combate-me ou torne-se meu amigo!". E o ego cede a esse desafio, reabsorve uma parte do mundo exterior e estende seu interesse a essa parte: assim se constitui a primeira introjeo, a "introjeo primitiva".40 A introjeo primitiva um fracasso da projeo. As partes do mundo exterior interiorizadas que resistem expulso so introjetadas e sero consideradas como fazendo parte do ego. Pode-se colocar a questo de saber o que quer dizer sujeito e objeto nesse contexto, ou ainda, o que quer dizer mundo interior e mun-

do exterior. H partes do ego que absolutamente no lhe pertencem. So os atributos que se instalam no ego a partir de um logro, um logro primitivo, poder-se-ia dizer. Mas h tambm partes do ego que so sentidas como absolutamente estrangeiras, o que constituiria a outra face do mesmo logro primitivo. Aqui se vislumbra j um esboo do princpio de clivagem do ego. Desse ponto de vista, a questo do fora e do dentro impe de chofre muitos problemas. , contudo, importante seguirmos a indicao de Ferenczi: O primeiro amor, o primeiro dio se realizam graas transferncia: uma parte das sensaes de prazer ou de desprazer, auto-erticas em sua origem, se desloca sobre os objetos que os suscitaram. No comeo, a criana s ama a saciedade, pois ela aplaca a fome que a tortura - depois chega a amar a me, esse objeto que lhe traz a saciedade. O primeiro amor objetai, o primeiro dio so, pois, a raiz, o modelo de toda transferncia ulterior que no ento uma caracterstica da neurose, mas a exagerao de um processo mental normal.41 O primeiro amor, o primeiro dio, da mesma maneira que a projeo, tm menos um sentido de originrio que um sentido de primitivo. Ilse Barande, em seu livro sobre Ferenczi, no hesita em denominar Ur-transferncia, Ur-projeo, Ur-amor etc. 42 De fato, trata-se da fora de um modelo, e do comeo de um funcionamento iterativo. Observa-se tambm que, quando Ferenczi atribui ao autoerotismo um papel central, ele estabelece um raciocnio, ao mesmo tempo clnico e terico, cujo desenvolvimento ser concludo em Thalassa. Para Ferenczi, o papel do auto-erotismo jamais ser substitudo pelo do narcisismo. Ele raciocinar antes em termos de auto-erotismo do que de narcisismo. Pode-se pensar que esse raciocnio uma das diferenas maiores da obra de Ferenczi em relao de Freud. Depois de "Pour introduire le narcissisme" ["Para introduzir o narcisismo"], o auto-erotismo praticamente desaparece dos eixos maiores da obra freudiana. Em Ferenczi, jamais. Essa fidelidade ao conceito de auto-erotismo poderia explicar, em sua obra, a importncia que ele confere ao trauma. Segundo Ferenczi,

em relao ao amor que a criana tem pela saciedade, o amor da me apenas uma transferncia, a primeira transferncia. A me se torna o objeto que propicia a saciedade. a nica maneira que ela dispe de ser amada. 43 A transferncia , pois, um mecanismo que se estabelece com o primeiro amor ou o primeiro dio, pelo deslocamento dos prazeres auto-erticos para os objetos que os propiciam. A leitura do artigo em que Ferenczi desenvolve o conceito de introjeo nos leva ento a algumas concluses. A introjeo : concebida como um mecanismo defensivo e uma etapa do desenvolvimento do ego; concebida como uma "diluio" e como um meio de aumentar o ego; concebida como um mecanismo que se ope projeo, quando esses dois mecanismos so definidos como caractersticos do neurtico e do paranico ("o ego do neurtico patologicamente dilatado, enquanto o paranico sofre, por assim dizer, de um encolhimento do ego");44 um mecanismo que se segue ao da projeo no desenvolvimento do ego. O conceito de introjeo depende extensamente do de transferncia, a tal ponto que eles no podem ser distinguidos, a no ser por um artifcio, o de considerar que um deles ocorre na sesso analtica e o outro, fora ("o termo 'transferncia' criado por Freud deve ser conservado para designar as introjees que se manifestam no decorrer da anlise e que visam pessoa do mdico, em virtude da sua importncia clnica excepcional. O termo 'introjeo' convm a todos os outros casos implicando o mesmo mecanismo"). 45 A introjeo o mecanismo fundamental da passagem do auto-erotismo ao amor objetai. A introjeo e a projeo so os mecanismos pelos quais a problemtica do fora e do dentro pode se colocar numa perspectiva de um "logro primitivo".

A preocupao em acabar com a confuso ao redor do conceito de introjeoEm 1912, em seu artigo "Le concept d'introjection" ["O conceito de introjeo"], 46 escrito no quadro de uma discusso a propsito do termo "introjeo" (em relao ao termo "exteriorizao" proposto por Maeder), Ferenczi acrescenta algumas precises sobre a definio que ele prope do conceito de introjeo. Muito cedo (apenas trs anos aps a sua criao), o conceito de introjeo se torna um conceito polmico. Em seu artigo "Maladie du deuil et fantasme du cadavre exquis" ["Luto patolgico e fantasma do cadver delicioso"] 47 , Maria Torok sublinha a confuso existente ao redor desse conceito desde a sua criao. Segundo ela, na literatura psicanaltica, esse conceito serviu a tudo e a seu contrrio. O mrito desse artigo ter retomado rigorosamente as formulaes de Ferenczi sobre o tema. A confuso qual se presta o conceito de introjeo devida a uma configurao aparentemente simples, mas submetida, todavia, a mltiplos fatores que devem ser levados em conta sob pena de tornar esse conceito aportico. Em 1912, Ferenczi avana algumas precises que devem ser sublinhadas. No quadro do artigo que examinamos anteriormente, a introjeo o mecanismo fundamental da neurose, pelo qual o neurtico procura "diluir" os afetos livremente flutuantes. O neurtico atrai tudo o que ele pode para sua esfera de interesses, com o objetivo de "diluio". Ele "dispersa [seus afetos] por objetos que absolutamente no lhe dizem respeito, para deixar no inconsciente suas emoes ligadas a certos objetos que, sim, absolutamente lhe dizem respeito". 48 De outro modo, o paranico, quando se utiliza do mecanismo fundamental oposto, o da projeo, est tambm numa busca contnua de objetos, mas " para lhe 'colar' a libido que o incomoda". 49 Em 1912, Ferenczi acrescenta: "Eu descrevi a introjeo como a extenso ao mundo exterior do interesse, originalmente auto-ertico, pela introduo dos objetos exteriores na esfera do ego". 50 Nota-se, primeiramente, que o conceito de auto-erotismo o ponto de partida do pensamento de Ferenczi. Em segundo lugar,

se os objetos do mundo exterior entram na esfera do ego, isso equivale a dizer que o ego reconhecer como seus os elementos estrangeiros. Pelo processo de introjeo, o ego se torna uma amlgama de elementos que lhe pertencem e de elementos que no lhe pertencem. pelo processo de introjeo que ele ultrapassa o auto-erotismo custa de um logro inevitvel (o de tomar alguma coisa que no lhe pertence como algo dele). Ele vela para sempre o amor da saciedade, como dizia Ferenczi no artigo precedente. 51 V-se a importncia que Ferenczi confere a esses aspectos: Insisti sobre essa "introduo" para ressaltar que considero todo amor objetai (ou toda transferncia) uma extenso do ego ou introjeo, tanto no indivduo normal quanto no neurtico (e no paranico tambm, naturalmente, na medida em que ele conservou essa faculdade).52 Observa-se que nesse artigo de 1912 o conceito de introjeo muda completamente. A introjeo no depende mais da projeo, em relao qual ela foi definida. Ela no depende mais tampouco da transferncia, da qual ela no se distinguia (salvo pelo fato de dizer que ela ocorria fora da cura analtica). A introjeo se torna um mecanismo fundamental pelo qual o ego pode se expandir, como observamos um pouco antes. Ela sobretudo co-essencial ao auto-erotismo. 53 Supor, como fazemos aqui, que o auto-erotismo e o processo de introjeo so co-essenciais nos permite compreender a possibilidade, para o recm-nascido, de instaurar um processo iterativo de carter eminentemente psquico, que seria o equivalente do ato de suco. Essa suposio parece-nos corresponder ao que Ferenczi descrevia como o resultado da introjeo, em um exemplo surpreendente: Em ltima anlise, o homem s ama a si-mesmo, e apenas a si-mesmo; amar um outro equivale a integrar esse outro em seu prprio ego. Como a mulher do pobre pescador do conto que sente como parte integrante de sua pessoa a salsicha que desponta em seu nariz com o auxlio de palavras mgicas e protesta contra a ablao dessa excrescncia desagradvel, ns experimentamos como nossas as dores que atingem os objetos que amamos. essa unio entre os

objetos e o ego, que chamei de introjeo e - lembro - estimo que o mecanismo dinmico de todo amor objetai e de toda transferncia sobre um objeto uma extenso do ego, uma introjeo.54 Efetivamente, v-se com dificuldade como o auto-erotismo e a introjeo poderiam no ser co-essenciais, sobretudo quando se pensa em certos eventos da clnica do autismo, como a criana que lana gritos de dor quando tocam em seu barbante (objeto autstico, 55 segundo Frances Tustin) que ele faz girar sem parar. Com base no que diz Ferenczi da relao entre o auto-erotismo e a introjeo, pode-se visualizar esse estado em que o processo de introjeo muito precoce e muito severamente impedido. 56 Compreende-se facilmente que o barbante seja uma parte importante do corpo da criana, talvez a mais importante para ela. Em seu artigo de 1912, Ferenczi mudar o estatuto do conceito de introjeo, em relao ao seu artigo de 1909. Se, em 1909, ele considerava a introjeo um caso particular de deslocamento, em 1912 ele inverte as coisas: o deslocamento apenas um caso particular do mecanismo de introjeo. O argumento sempre econmico, isto , trata-se de conter os afetos livremente flutuantes. Observa-se assim que a introjeo e a projeo so confirmadas como os mecanismos fundamentais da neurose e da parania. Porm, em seu artigo de 1913 ("Le dveloppement du sens de ralit et ses stades" ["O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estdios"], 57 vislumbra-se j a importncia que ser conferida ao mecanismo de introjeo, considerado o mecanismo mais arcaico no homem.

A introjeo e a projeo se tornam as duas fases do desenvolvimento do egoO artigo de 1913, "certamente o primeiro artigo jamais escrito sobre o desenvolvimento do ego", 58 um momento crucial no pensamento de Ferenczi. Corresponde tambm a uma mudana do conceito de introjeo. O pensamento de Ferenczi exprime aqui uma preocupao ao mesmo tempo ontogentica e filogen-

tica. Ferenczi prepara ento seu livro Thalassa59 (que ser terminado em fins de 1913, apresentado a Freud em 1915 e publicado nos anos 20). Em Thalassa, encontra-se um captulo ("Le dveloppement du sens de ralit rotique et ses stades" ["O desenvolvimento do sentido de realidade ertica e seus estdios"] onde ele tenta abordar a mesma problemtica de outro ngulo, como veremos em seguida. Pode-se dizer que esses dois artigos constituem um conjunto. , pois, dessa forma, como um conjunto nico, que os abordaremos. A reviravolta no pensamento de Ferenczi, representada por esse artigo de 1913, parece ter sido desencadeada pelo artigo de Freud de 1911 citado por Ferenczi - "Formulations sur les deux prncipes du fonctionnement psychique" ["Formulaes sobre os dois princpios do funcionamento psquico"] (Freud, 1995a). Como assinala Strachey,60 Freud faz uma recapitulao de seus conhecimentos psicanalticos a partir da Esquisse d'une psychologie scientifique [Esboo de uma psicologia cientfica] e do captulo VII de L'interprtaion des rves [A interpretao dos sonhos]. Essa recapitulao trouxe conseqncias. Segundo Strachey, Freud preparava novas etapas tericas: "Pour introduire le narcissisme" ["Para introduzir o narcisismo"], seguido pelos escritos metapsicolgicos. O artigo de Freud, muito condensado, como ele mesmo comentou, no apenas e to simplesmente uma recapitulao. Parece anunciar alguns eixos de pesquisa que Ferenczi imediatamente percebeu. Ferenczi tomou duas indicaes de Freud, nos artigos "Le dveloppement du sens de ralit et ses stades" e "Le dveloppement du sens de ralit rotique et ses stades", que constituem um prosseguimento da pesquisa freudiana. A primeira indicao a seguinte: A substituio do princpio de prazer pelo princpio de realidade, com as conseqncias psquicas decorrentes, foi aqui apresentada esquematicamente e mesmo reduzida a uma s proposio; na realidade, ela no se d nem de uma s vez nem simultameamente em seu conjunto. Ao contrrio, enquanto o desenvolvimento prossegue para as pulses do ego, as pulses sexuais se separam das pulses do ego significativamente.61

E a segunda indicao: Enquanto o ego cumpre sua transformao de ego-prazer em egorealidade, as pulses sexuais sofrem as modificaes que as conduzem, por diversas fases intermedirias, do auto-erotismo inicial ao amor de objeto que est a servio da funo de reproduo. Se exato que cada estdio dessas duas linhas de desenvolvimento pode se tornar a sede de uma predisposio a uma afeco neurtica ulterior, somos levados a fazer depender o que determina a forma desta (a escolha da neurose) da fase do desenvolvimento do ego e da libido na qual interveio a inibio de desenvolvimento predisponente. As caractersticas temporais dos dois desenvolvimentos, que no foram estudados ainda, e a possibilidade de seu deslocamento de um em relao ao outro tomam assim uma importncia insuspeitada.62 Se citamos to longamente essas duas passagens de Freud para termos presente um eixo de pesquisa freudiana que em Ferenczi vai ter um desenvolvimento completamente diferente. Se, para Freud, trata-se de isolar os elementos que permitiro efetuar a difcil passagem do auto-erotismo ao narcisismo e seu desenvolvimento ("Pulsions et destins des pulsions" ["As pulses e os destinos das pulses"], "Deuil et mlancolie" ["Luto e melancolia"] e "Psychologie des masses et analyse du moi" ["Psicologia das massas e anlise do ego"], para Ferenczi trata-se de estabelecer um raciocnio embasado numa abordagem palingentica,63 que culminar em Thalassa. Essa diferena no de pouca importncia: trata-se de uma diferena de perspectivas significativa. Se, para Freud, trata-se de afinar a noo de aparelho psquico, para Ferenczi trata-se de tomar os ensinamentos de Freud como fatos estabelecidos de uma vez por todas e de conceber a evoluo do homem com base em uma abordagem psicanaltica.64 As questes que trataremos aqui ocuparo um lugar importante no pensamento de Ferenczi. Ele retornar a elas ainda em 1926, 65 quando de um balano sobre o conceito de introjeo. A questo aqui tratada saber se a passagem do princpio de prazer ao princpio de realidade se faz de uma s vez ou por etapas (e, nesse caso, quais seriam essas etapas). Ferenczi raciociona tomando por base a clnica dos obsessivos, tal como Freud desenvol-

veu em "Remarques sur un cas de nvrose obsessionnelle" ["Observaes sobre um caso de neurose obsessiva"].66 Ele responde a essa questo dizendo: os obsessivos reconhecem "no poder se desfazer da crena na onipotncia de seus pensamentos, de seus sentimentos, de seus desejos bons ou maus". 67 Freud se interroga sobre esse sentimento de onipotncia, bem como sobre a base que o sustenta. Para ele, a passagem do princpio de prazer ao princpio de realidade essencial para compreender o desenvolvimento do ego. Se, para Freud, inconcebvel imaginar uma organizao submetida ao princpio de prazer, para Ferenczi trata-se de descobrir uma etapa do desenvolvimento humano onde essa perspectiva se realiza "no apenas na imaginao e aproximativamente, mas na realidade e efetivamente". o estado em que o ser humano ainda mais que um parasita no ventre da me, pois mesmo um verme intestinal, na comparao feita por Ferenczi, deve fazer muito mais esforo para modificar o mundo exterior em relao ao feto que no precisa fazer nada para se desenvolver. o "perodo da onipotncia incondicional". Para Ferenczi, o estado do feto nesse perodo permanecer o estado que atrair constantemente o ser humano, no importa o estado de seu desenvolvimento. Em alguns trabalhos posteriores, ele falar mesmo de uma "pulso de regresso maternal". 68 em relao a esse perodo de onipotncia incondicional, que supe uma vida psquica intra-uterina (o que para Ferenczi evidente), que ele descrever todas as outras etapas do desenvolvimento. O recm-nascido se acomoda antes mal que bem ao novo estado, no qual repentinamente ele obrigado a toda uma srie de esforos, como respirar. O primeiro desejo da criana s pode ser o de se reencontrar na situao de antes do nascimento. Os gritos e os gestos do recm-nascido, to inadequados quanto possam ser, desencadeiam nos circunstantes toda uma srie de cuidados para lev-lo a sentir-se em um estado tal em que ele poderia reencontrar o estado de felicidade perdido. Contudo, no compreendendo nada do que se passa ao seu redor, a criana deve se sentir "de posse de uma fora mgica capaz de realizar efetivamente todos os seus desejos apenas pela representao de sua satisfao" por um "reinvestimento alucinatrio do estado perdido". o "perodo da onipotncia alucinatria mgica".69

Ferenczi liga a esse perodo o sono, o sonho e a realizao alucinatria dos desejos nas psicoses. Ele afirma, seguindo Freud, que "todo sistema que vive segundo o princpio de prazer [supe] a posse de mecanismos que lhe permi am escapar aos estmulos da realidade". 70 Segundo Ferenczi, trata-se, tambm nesse caso, de encontrar uma via de regresso (que ser em seguida percorrida constantemente) permitindo estabelecer um ritmo que ser obrigatrio durante toda a vida. Trata-se de uma pulsao com uma componente fortemente regressiva (o estado de onipotncia incondicional) e uma componente progressiva (o encontro com a realidade psnatal). Ferenczi nos fornece uma intuio: que o primeiro sono do recm-nascido seria "a reproduo bem-sucedida da situao intra-uterina que o preserva tanto quanto possvel das excitaes externas". Ele atribui um sentido a esse fenmeno cujo fim seria o de permitir que toda a energia se "concentre sobre o processo de crescimento e de regenerao". E a partir desse modelo que todo sono ulterior se tornar uma realizao desse percurso de "regresso peridica e repetida ao estdio de onipotncia alucinatria 71 e por este meio onipotncia absoluta da situao intra-uterina". 72 Quando ele atribui ao sono um papel de crescimento e regenerao, no est longe de o considerar como um estado de coma que se segue a um grave traumatismo, o do nascimento. Mas o fato de que a criana experimenta necessidades que o mundo exterior no pode adivinhar obriga-a a um novo passo: a emisso de certos "sinais". A criana , pois, levada a realizar um novo esforo motor. Se, no estdio anterior, os afetos de desprazer provocavam descargas motoras descoordenadas, elas sero agora "utilizadas como sinais mgicos cuja emisso realiza prontamente a percepo da satisfao, naturalmente graas a uma ajuda exterior da qual a criana no tem nenhuma suspeita". A medida que a complexidade de seus desejos aumenta, ela obrigada a melhor precisar seus sinais. Enfim, uma "verdadeira linguagem gestual" se estabelece e a criana se torna capaz de exprimir (mesmo que de uma maneira rudimentar) suas necessidades, que sero efetivamente satisfeitas. o "perodo da onipotncia com o auxlio de gestos mgicos". Ferenczi associa a esse perodo a epilepsia es-

sencial (durante os perodos de descargas motoras descoordenadas)73 e a converso histrica (enquanto regresso ao estdio de magia gestual), bem como os gestos supersticiosos. Seguindo o raciocnio de Ferenczi nesse artigo, chega-se a um estdio no qual a complexidade dos desejos e das necessidades atinge um nvel em que "a mo estendida retorna freqentemente vazia, o objeto cobiado no segue o gesto mgico". Os gestos mgicos que proporcionavam a satisfao no so mais suficientes para esconder "certas coisas malignas que resistem sua vontade". E se "at ento o ser onipotente podia se sentir um com o universo que o obedecia e seguia seus sinais, uma discordncia dolorosa vai pouco a pouco se produzir no seio do seu vivido". A essa altura do raciocnio de Ferenczi sobre a introjeo, seria til assinalar o que ele mesmo diz: Ele [o ser onipotente] obrigado a distinguir de seu ego, como constituindo o mundo exterior, certas coisas malignas que resistem sua vontade, quer dizer, separar os contedos psquicos subjetivos (sentimentos) dos contedos objetivados (impresses sensveis).74 A argumentao aqui oposta quela desenvolvida antes, em 1909. Aqui, segundo o artigo de 1912, a introjeo ocorre antes da projeo, ao passo que, em 1909, era o contrrio: a partir do modelo da projeo, Ferenczi "deduz" o conceito de introjeo. Essa inverso, como j assinalamos antes, importante no que concerne ao lugar que o conceito de introjeo ocupar na obra de Nicolas Abraham e de Maria Torok, que o concebem como um processo que permite a expanso do ego, e que seria o mais arcaico dos mecanismos psquicos - o que est na origem das distines fora/dentro, eu/no-eu. E Ferenczi prossegue: anteriormente, chamei de fase de introjeo do psiquismo o primeiro desses estdios em que todas as experincias so ainda inclusas no ego, e fase de projeo, a que se segue. Segundo essa terminologia, poder-se-ia chamar os estdios de onipotncias fases de introjeo, e o estdio de realidade fase de projeo do desenvolvimento do ego.75

Essa descrio em termos de fases uma prova da anterioridade da introjeo em relao projeo. tambm um distanciamento em relao posio de 1909 (na qual a introjeo e a projeo eram descritas como os processos fundamentais da neurose e da parania). Entretanto, a noo de "fase" em relao de "processo" coloca alguns problemas. Descrita como fase de onipotncia, a introjeo seria um estado de partida. Em seguida, tratar-se-ia sempre da perda de um territrio indevidamente ocupado. De outro modo, a introjeo concebida como processo seria a possibilidade de uma expanso do ego enquanto modelo iterativo da passagem do auto-erotismo ao amor objetai.76 Da mesma forma que seguimos, no artigo de 1909, os avatares da transferncia e do deslocamento como os avatares da introjeo, nesse artigo de 1913, por fidelidade ao texto ferencziano, devemos, por ora, seguir os avatares da onipotncia como os avatares da introjeo. A passagem de uma fase de introjeo a uma fase de projeo leva Ferenczi a falar de um perodo animista77 de apreenso da realidade: um perodo em que a ligao entre eu e no-eu no foi ainda decidida. o perodo no qual a criana investe o mundo exterior "das qualidades que ela descobriu em si-mesma, isto , das qualidades do ego ... na qual toda coisa se apresenta a ela como animada e na qual ela tenta reencontrar em toda coisa seus prprios rgos ou seu funcionamento". 78 Aps ter adquirido a capacidade de estabelecer relaes simblicas79 e a capacidade do simbolismo verbal,80 a criana vai ser satisfeita pelos seus circunstantes como o foi nas etapas anteriores. o "perodo dos pensamentos e palavras mgicas". Ferenczi relaciona a esse perodo a regresso dos neurticos obsessivos, bem como os pensamentos e frmulas verbais que mantm seu sentimento de onipotncia. tambm o perodo ao qual se ligam as supersties e a magia pelas frmulas verbais, por exemplo as rezas. Enfim, partindo dessas consideraes, pode-se dizer que a infncia do homem caracterizada por essa iluso de onipotncia que acaba apenas quando "a criana est completamente desligada de seus pais no plano psquico, segundo Freud". 81 ento que a

onipotncia cede lugar ao reconhecimento das circunstncias e atinge seu apogeu na cincia. Reconhecer que "nossos desejos e nossos pensamentos so condicionados significa o mximo de projeo normal e a passagem da fase de introjeo (onipotncia) fase de projeo (realidade)".82 O artigo que examinamos aqui foi escrito no quadro da primeira tpica. V-se o rigor com o qual Ferenczi mantm a discriminao entre as pulses do ego e as pulses erticas. Ele fala de um descompasso entre os estdios de desenvolvimento da realidade (em termos de "pulses do ego") e a sexualidade, do fato de que a realidade estabelece relaes mais profundas com o ego do que com a sexualidade, porque esta pode se abster mais tempo da realidade, pela possibilidade de uma satisfao auto-ertica; em vista disso, "a sexualidade permaneceria toda a vida antes submetida ao princpio de prazer, enquanto o ego sofreria a mais amarga das decepes por qualquer desconhecimento da realidade". 83 Se consideramos que o auto-erotismo e o narcisismo so os estdios da onipotncia do erotismo, e que jamais se abandona o narcisismo, do ponto de vista da sexualidade, podemos conservar por toda a vida a iluso de onipotncia. A seqncia dessas consideraes se encontra em "Le dveloppement du sens de ralit rotique et ses stades". 84

0 complemento ao desenvolvimento do sentido de realidade: o desenvolvimento do sentido de realidade ertica Judith Dupont, grande leitora de Ferenczi, diz, em sua introduo ao terceiro volume das Obras completas do autor, que Thalassa uma publicao um pouco marginal no conjunto de sua obra. 85 Outros autores, como Lacan, consideram Thalassa um "delrio biolgico".86 Freud, em uma nota acrescentada em 1924 ao Trois essais sur Ia thorie sexuelle [Trs ensaios sobre a teoria sexual], fala de um "escrito (Thalassa) seguramente aventuroso, mas de uma extrema fineza de Ferenczi, no qual este faz derivar a vida sexual dos animais superiores da histria de sua evoluo biolgica".87

Seria difcil saber em que Thalassa poderia no ser uma obra central no conjunto dos escritos de Ferenczi. Encontram-se nela os grandes eixos de sua construo terica e alguns conceitos que sero a chave de seu pensamento: a "anfimixia", a "pulso de regresso maternal", suas primeiras consideraes sobre o trauma (tema polmico ainda hoje), a fundamentao e o desenvolvimento de seus pontos de vista filogenticos, o mtodo "utraqustico", 88 suas consideraes sobre o smbolo etc. Esses temas retornaro, alis, nos seus ltimos escritos, isto , em seu Journal clinique [Dirio clnico]. A leitura que Ferenczi nos d de Trois essais sur Ia thorie sexuelle de Freud uma indicao desse lugar particular que ele ocupa em relao s descobertas freudianas: ele toma as teorias e os pontos de vista de Freud como fatos estabelecidos, e pensa com base nesses fatos.89 No comeo do captulo "Le dveloppement du sens de ralit rotique et ses stades", de Thalassa, Ferenczi diz que se trata de um complemento s idias que ele desenvolveu em seu artigo "Le dveloppement du sens de ralit et ses stades". Para nosso objetivo - o estabelecimento de uma histria do conceito de introjeo para discernir as razes psicanalticas do pensamento de Nicolas Abraham -, esse captulo de Thalassa mais que um complemento; uma parte essencial para compreender o papel do conceito de introjeo no pensamento de Nicolas Abraham. 90 Poder-se-ia dizer que a idia central desse texto que, a partir de Freud, as fases de desenvolvimento da sexualidade seriam uma srie de tentativas, de incio titubeantes e canhestras, depois cada vez mais explcitas, de retornar ao ventre materno, enquanto a fase terminal de toda esta evoluo, o desenvolvimento da funo genital, representa o paralelo ertico da "funo de realidade", isto , o acesso ao "sentido de realidade ertica"91 ... Pois o ato sexual permite o retorno real, ainda que parcial, ao tero materno.92 Para demonstrar essa idia, Ferenczi se servir dos conceitos de "anfimixia"93 e de "relaes simblicas", dos quais j havia in-

dicado a importncia no artigo que comentamos anteriormente. Ele introduzir tambm sua definio de smbolo. A fase ertica oral mantm a iluso da situao intra-uterina. Graas aos cuidados que os circunstantes trazem ao recm-nascido, este no tem outra coisa a fazer seno mamar. Ferenczi insiste sobre a importncia do ritmo de suco que "permanecer para sempre um elemento essencial de toda atividade ertica ulterior e se integrar anfimicticamente ao ato masturbatrio e ao coito". 94 No conceito de "anfimixia" encontra-se a elaborao ferencziana do aspecto econmico, ou seja, que os afetos livremente flutuantes terminam por desafiar o princpio de prazer, como assinalamos antes. Segundo Ferenczi, essas "tendncias libidinais recalcadas se entremeiam e acabam por se concentrar em um reservatrio especial de prazer, o aparelho genital, para da serem periodicamente descarregadas". 95 A partir do Trois essais sur Ia thorie sexuelle, Ferenczi concebe a primazia genital como um fato que vem substituir os auto-erotismos anteriores ("excitaes das zonas ditas ergenas"). Esses auto-erotismos constituiro ento os componentes que vo tecer a organizao genital. Como diz Ferenczi, ao analisar o problema da ejaculao precoce, so os componentes anal e uretral que vo se misturar para permitir a ejaculao. Se houver predominncia da componente uretral, ocorrer ejaculao precoce; se houver predominncia da componente anal, haver dificuldade de ejaculao. A anfimixia dos erotismos parciais , pois, ao mesmo tempo, um conceito econmico e uma possibilidade de reunio em unidades progressivamente mais elevadas que, no caso da primazia genital, conduz descarga do organismo como um todo. O aparelho genital, no ato sexual, , por isso, o representante do organismo inteiro. Retomando a idia que ele j havia apresentado no artigo "Le dveloppement du sens de ralit et ses stades", que a criana durante a gravidez um parasita (um parasita particular que no tem nem a necessidade de modificar o meio para se implantar), o recm-nascido concebido como um ectoparasita que, rapidamente, vai desenvolver os meios de mastigao. A fase ertica oral de-

semboca ento numa fase canibal. nesse momento que a me comea a experimentar a necessidade de desmamar. Mas, para Ferenczi, o canibalismo no serve apenas ao instinto de autoconservao: "os dentes 96 so ao mesmo tempo as armas a servio de uma tendncia libidinal, os instrumentos com os quais a criana procura penetrar no corpo da me". 97 Segundo esse raciocnio, o dente "propriamente dito, um pnis arcaico (Urpenis), a cujo papel a criana deve renunciar no momento do desmame". 98 O conceito de anfimixia, da mesma forma que se pde observar para o conceito de introjeo no artigo de 1909, concebido com base em outro fato: o deslocamento. Nesse captulo de Thalassa, Ferenczi nos mostra como entende a agressividade do "canibalismo" da fase oral se deslocando para a fase sdico-anal: "o motivo desse deslocamento a reao de desprazer suscitada na criana quando os pais ou seus substitutos exigem dela o respeito de certas regras de higiene".99 Nesse estdio sdico-anal, como na fase oral, a criana no renuncia "regresso maternal". Aqui, contudo, ela se utiliza de um mecanismo muito mais complicado e de grandes conseqncias. Essa tendncia regresso maternal aparece na criana sob a forma de uma identificao: a identificao das fezes com a criana. Ferenczi nos diz que tudo se passa como se a criana, aps essa recusa bastante impactante da agresso libidinal oral-ertica da parte da me, tivesse retornado sua libido para si-mesma. Sendo ela prpria, ao mesmo tempo, a me e a criana (contedo intestinal), ela pode se tornar independente, no plano libidinal, da pessoa que toma conta dela (a me).100 Dois aspectos desse raciocnio devem ser destacados. A identificao da criana com as fezes, num primeiro momento, e, num segundo, a da criana com a me; em seguida, a de uma agresso (a recusa que ocorreu durante a fase oral-ertica). Essa identificao se tornar, em Ferenczi, o conceito de identificao ao agressor.101 No que concerne independncia da criana em relao me no plano libidinal, deve-se sublinhar aqui o que ser um dos desenvolvimentos fundamentais de Nicolas Abraham e de Maria Torok, a distino entre introjeo e incorporao. Nessa passagem de

Ferenczi, deve-se reter o que permitir a Abraham & Torok concluir que o processo de introjeo leva independncia em relao ao objeto. A fase seguinte, o perodo de masturbao, considerada por Ferenczi "a primeira fase que desencadeia a primazia da fase genital". 102 Pode-se seguir o deslocamento da agressividade, da fase oral at a fase genital, passando pela fase sdico-anal. A equao criana-fezes substituda pela equao criana-pnis. E, em decorrncia da bissexualidade, observa-se a criana desempenhando subjetivamente o duplo papel masculino e feminino. Aps essa fase, segundo Ferenczi, veremos a criana com uma arma ofensiva muito mais adequada: o pnis ertil perfeitamente capaz de encontrar o caminho da vagina materna. O objetivo principal de Ferenczi, no texto que examinamos, demonstrar que em todas as fases do desenvolvimento ertico encontra-se a pulso de regresso maternal. Com a introduo do conceito de anfimixia dos erotismos ou das pulses parciais no pensamento de Ferenczi, os afetos livremente flutuantes, que so originalmente um problema econmico, se tornam uma mistura de mltiplos erotismos parciais constituindo unidades progressivamente mais abrangentes, e terminam por concernir o organismo inteiro, na fase genital. Para Ferenczi, nesse conceito, no se trata apenas de constituir unidades mais abrangentes, mas tambm de passar a um estdio mais elevado do desenvolvimento. Pode-se ver a, tambm, a ao de mltiplos processos de introjeo. Cada vez que ocorrer uma mistura de erotismos, novas representaes de pulses se apresentam ao ego, que deve se expandir para poder encontrar os meios de satisfao; o que acarreta um desenvolvimento do sentido de realidade e de realidade ertica obrigando o desenvolvimento de novos grupos de sinais, cada vez mais complexos, como se pode observar no artigo "Le dveloppement du sens de ralit et ses stades". A partir dessas consideraes, pode-se supor a existncia no raciocnio ferencziano de um nvel que se poderia denominar inicitico: cada vez que uma nova constelao anfimctica de pulses se organiza, toda a tpica que colocada em questo e que deve se transformar. 103

Il O CONCEITO DE INTROJEO NA OBRA DE NICOLAS ABRAHAM E MARIA TOROK

Um ponto nunca abordado na obra de Nicolas Abraham e Maria Torok: a distino entre transferncia e introjeo Vimos que o conceito de introjeo foi isolado a partir do conceito de transferncia, tal como ele aparece na leitura ferencziana do caso Dora 104 ("Transfert et introjection" 105 e "Le concept d'introjection"). 106 Esse conceito sofreu uma importante transformao a partir da leitura ferencziana de "Formulations sur les deux principes du cours des vnements psychiques" 107 ("Le dveloppement du sens de ralit et ses stades" 108 e "Le dveloppement du sens de ralit rotique et ses stades".) 109 O conceito de introjeo, no artigo de Ferenczi de 1909, aparece quase como indistinguvel do de transferncia. Na seo I deste captulo, vimos que nessa poca Ferenczi dizia simplesmente que a transferncia dizia respeito ao que se passava na sesso analtica e que, fora da sesso, os mesmos fatos diziam respeito ao conceito de introjeo. Mesmo se, ulteriormente, na obra de Ferenczi, introjeo e transferncia se tornam indissociveis, seria til, aqui, precisar a distino que as diferencia, ainda mais porque em nenhuma parte de sua obra Nicolas Abraham e Maria Torok se detm nesse aspecto. A assimilao dos dois conceitos (transferncia e introjeo) em um s (quer seja o alvo o analista ou no) inaceitvel para Neyraut. 110 O argumento que ele utiliza de ordem essencialmente clnica: se a anlise da transferncia tem por efeito principal destru-la, no se pode analisar a transferncia como se analisa a introjeo. Se o conceito de introjeo foi definido por oposio ao de projeo, eles no tm, contudo, o mesmo valor. A introjeo no pode ser apagada pela