Quer ver? Escuta!” -...

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Quer ver? Escuta!”: Dispersões do Encontro Roselete Fagundes de Aviz de Souza 1 Gilka Girardello 2 1 1 Doutoranda em Educação na linha de pesquisa Ensino e Formação de Educadores da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC. Integrante do Núcleo de Pesquisa Infância, Comunicação e arte. É bolsista da Capes. No ano de 2010 realizou estágio de pesquisa Sandwich de Doutorado, financiada por essa mesma agência, em Moçambique, África, da qual provém a escrita da tese em elaboração, cuja experiência, é relatada neste texto-conversa. 2 Gilka Girardello é graduada em Comunicação Social pela UFRGS, mestre pela New School for Social Research e doutora em Ciências da Comunicação pela USP. É professora da Faculdade de Educação da UFSC, na graduação e na pós-graduação. É coordenadora do Núcleo de Pesquisa: Inf6ancia, Comunicação e artes (NICA UFSC). Atualmente, seus interesses de pesquisa são as relações entre mídia e infância.

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“Quer ver? Escuta!”:

Dispersões do Encontro

Roselete Fagundes de Aviz de Souza1

Gilka Girardello2

1

1 Doutoranda em Educação na linha de pesquisa Ensino e Formação de Educadores da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Integrante do Núcleo de Pesquisa Infância, Comunicação e arte. É

bolsista da Capes. No ano de 2010 realizou estágio de pesquisa Sandwich de Doutorado, financiada por

essa mesma agência, em Moçambique, África, da qual provém a escrita da tese em elaboração, cuja

experiência, é relatada neste texto-conversa. 2 Gilka Girardello é graduada em Comunicação Social pela UFRGS, mestre pela New School for Social

Research e doutora em Ciências da Comunicação pela USP. É professora da Faculdade de Educação da

UFSC, na graduação e na pós-graduação. É coordenadora do Núcleo de Pesquisa: Inf6ancia,

Comunicação e artes (NICA – UFSC). Atualmente, seus interesses de pesquisa são as relações entre

mídia e infância.

Este texto não é um texto acadêmico convencional. Ele é uma colagem de

cenas. Cenas de escritas que dão a ver um Encontro íntimo. No Encontro, a

pesquisadora, o público e a conversa: do latim cum, que quer dizer com, e

versare – “dar voltas com” o outro. Um passeio cuja origem está em passar: do

latim passare, pisar, caminhar – de passus, passada, ritmo da caminhada que

tem uma estreita relação com o verbo pandere: espalhar, esticar (a perna) para

trilhar, cujo significado traz a palavra trilha: ato de trilhar, debulha de cereais na

eira.

Este então é só um alerta ao leitor, para que ao seguir as trilhas do texto não

se sinta embaraçado e compreenda que, certamente, ele está “Ouvindo

Coisas”.

2

Ainda no espírito dos sons dos tambores da Cia de Dança Afro Euwá

Dandaras, um convite à canção para que todos pegassem o fio da conversa.

Canção da tradição oral moçambicana, na língua rhonga3:

Yo4 mamana yo5

Yo Tatana yo

Angafamba anisiya

Anisiyela wusiwana

O canto não é o instrumento musical simples: a voz humana, no entanto, é o

único instrumento que todo o ser humano sabe tocar, se quiser, é claro, porque

como disse meu amigo Malangatana6 a Mia Couto, certa vez, diante da

3 Língua original de Maputo, Moçambique. 4 Interjeição que expressa dor. 5 Canção em rhonga que diz: Ai, minha mãe,

Ai, meu pai, que se foram

Deixando-me na tristeza (desamparo)

6 Talvez Mia Couto dispense apresentações, mas Malangatana não. Para melhor apresentá-lo faço minhas

as palavras de Nelson Saúte, poeta moçambicano em depoimento no dia 05 de janeiro de 2011, data da

última viagem do grande mestre: “o mestre embarcou na extraordinária nave da sua obra e emigrou para

as alturas da eternidade. Vieram palavras de todas as partes do mundo, mas todas as palavras estão ainda

para serem ditas sobre a vida e obra deste mago da pintura, deste poeta exuberante, deste cantor

objeção do escritor ao ser convidado a cantar, quando dizia não ter voz: “como

é que há alguém que não saiba cantar? Não há ninguém no mundo que não

saiba cantar!” Porque cantar é também comunicar-se com todos os cantos do

mundo, falando o idioma mais antigo do mundo.

E a canção chega como inspiração para contarmos o percurso de uma viagem.

Uma viagem de pesquisa que agora se traduz em escritura.

3

Na escritura da tese ainda em elaboração: “Como um Romance (Des)

Encontros da voz na travessia Brasil-Moçambique e Mais além”7, proponho-me

realizar uma reflexão sobre a voz, a viagem e a formação, justamente por ser a

formação perpassada por uma multiplicidade de vozes que convida à escuta,

ao silêncio, à transmissão, à canção... Porém, a viagem que esta tese evoca

não se faz com itinerário, mas em trilhas. Por esta razão, ela foi elaborada em

Fragmentos de Cadernos de Viagem, a fim de examinar a hipótese de que a

voz é devir8. Por esta razão chama por uma escrita também como escuta. Esta

voz constitui a experiência da viagem de formação.

Em outras palavras, elegendo Fragmentos de Cadernos de Viagem como um

dispositivo, pretende-se com a tese mostrar um percurso de pesquisa que

enuncie uma viagem por alguns lugares que são fundamentais para pensar a

voz como escuta na viagem de formação. Com isto, colocamos em relevo,

através da escritura, os elementos estruturais que sustentam uma importante

reflexão acerca da formação como uma viagem aberta, uma viagem que não

pode estar antecipada, e uma viagem interior, uma viagem na qual, à maneira

de Larrosa (2004), alguém se deixa influenciar a si próprio, se deixa seduzir e

solicitar por quem vai ao seu encontro. Uma viagem na qual é esse próprio

enfeitiçado, deste robusto dançarino, deste encantador, homem bom, artista exemplar, genial criador, que gerou das suas mãos uma das mais inventivas e extraordinárias aventuras da moçambicanidade:

Malangatana.”

Depoimento dado por Nelson Saúte na edição especial sobre Malangatana da revista índico, no. 06,

mar/abril, 2011. 7 Título ainda em elaboração. 8 Conceito cunhado por Deleuze e Guattari como sendo linhas de fuga que partem do Corpo no ato

criativo. São estados intensivos das sensações (afecções e percepções, o que indicaremos como o que

“ganhamos” das experiências, o que fica em nós das experiências), inscritas, marcadas, registradas no

corpo. DELEUZE; GUATARRI; 2001.

alguém, a constituição desse próprio alguém, e a prova e desestabilização e

eventual transformação desse próprio alguém. Por isso, a experiência

formativa, da mesma maneira que a experiência estética, é uma chamada, mas

uma chamada que não é transitiva. Chamada confiável, exaustiva e vibrante,

musical e estremecedora. “o que ela produz é algo que alguém não pode

chamar de transitivo: produz isso e aquilo”.9

Este trabalho, na área de Educação inscreve-se na linha de pesquisa “Ensino e

Formação de Educadores”. O dialogismo entre as vozes dos Fragmentos e de

autores como Paul Zumthor, Roland Barthes, Jacques Derrida, Deleuze

Guattari, Susan Sontag, Francisco Noa, Mia Couto, Malangatana Ngwenya,

Isabel Noronha dentre outros, tem o objetivo de contrastar, confirmar e ampliar

a hipótese de que a voz, na viagem, chama por uma escrita como escuta.

Essa voz que constitui a experiência da formação. Para isto, a tese se estrutura

em fragmentos. O texto e os fragmentos oferecem ao leitor sempre um

quantum de ilegível, configuram uma estratégia de subversão”10 em que o

“saber-fazer-pesquisa” pode se caracterizar em um “não-saber”, um pedido

para calar: um silêncio. Porque o fragmento, segundo Roland Barthes, artista

dos fragmentos:

Implica um gozo imediato: é um fantasma de discurso, uma abertura de

desejo. Sob a forma de pensamento-frase, o germe do fragmento nos vem em

qualquer lugar: no café, no trem, falando com um amigo (surge naturalmente

daquilo que se diz ou daquilo que digo); a gente tira então o caderninho de

apontamentos, não para anotar um “pensamento”, mas algo como o cunho, o

que se chamaria outrora um “verso” . [...] fragmento (o hai-kai, a máxima, o

pensamento, o pedaço de diário) é finalmente um gênero retórico, e como a

retórica é aquela camada da linguagem que melhor se oferece à interpretação,

acreditando dispersar-me, não faço mais do que voltar comportadamente ao

leito do imaginário.11

Neste sentido, para que a voz se mostrasse em diversas formas, a escritura da

experiência do plano de pesquisa ao qual denomino: Fragmentos de um

9 LEZAMA, J. Paradiso, p. 490 apud Larrosa, 2004, p. 93. 10 COELHO; 1973, p. 29. 111977, p. 102/03 .

caderno de viagem não foi convencional, mas em fragmentos: ora um poema,

um relato, um aforismo, uma entrevista, uma canção... Assim, podemos dizer

que, na viagem da pesquisa, fomos construindo uma cartografia poética12, uma

vez que sua realização advém das variações de busca de caminhos, de rumos,

de abertura de trilhas, uma vez que, assim como a voz, viajar não é algo

preciso.

4

Sempre me intrigaram aqueles livros ou cadernos de viagem escritos par e

passo, em que pontualmente se vão anotando os casos e incidentes de cada

dia, desde o bom almoço mundanal à subtilíssima impressão estética. Acho

que o memorialista faz batota. E não acredito no proveito que possa tirar de

uma viagem quem ande durante o dia a registrar mentalmente o que há-de

escrever à noite, ou pior ainda, quem desvie os olhos do Baptistério de Pisa

para anotar no caderninho uma interjeição ridícula. No meu modesto

entendimento, não há nada melhor do que caminhar e circular, abrir os olhos e

deixar que as imagens nos atravessem como o sol faz à vidraça. Disponhamos

dentro de nós o filtro adequado (a sensibilidade acordada, a cultura possível) e

mais tarde encontraremos, em estado de inesperada pureza, a maravilhosa

cintilação da memória enriquecida. E também, quantas vezes, um riso de troça,

uma careta provocadora, ou uma ameaça de morte,13

5

Roland Barthes argumentou sobre a voz, mas a partir da escuta. Para ele,

escuta e voz são a corporeidade do falar, por esta razão situam-se na

articulação do corpo e do discurso, no movimento do corpo e do discurso.

Estudioso da escuta psicanalítica, Barthes defende a escuta livre14 que, pela

12 Expressão cunhada pela professora doutora Josebel Akel Fares, professora da Universidade do Pará e

coordenadora do grupo de pesquisa Culturas e Memórias Amazônicas (CUMA-UEPA). Seus estudos

foram-me gentilmente apresentados por sua orientanda de mestrado: Daniele dos Santos Pimentel. 13 SARAMAGO; 1996, p. 181 14 Uma escuta livre é essencialmente uma escuta que circula, que permuta, que desagrega, pela sua mobilidade, a rede fixa dos papéis atribuídos à palavra: não é possível imaginar uma

sua mobilidade, circula, permuta, desagrega a rede fixa dos papéis atribuídos à

palavra: “a liberdade de escuta é tão necessária como a liberdade de

palavra”.15, mas para isso não basta que cada um tome a palavra. Para ele, a

voz é como a letra num envelope, indica-nos o sujeito, a sua maneira de ser,

sua alegria ou sofrimento. Assim como Zumthor, Roland Barthes recupera a

finalidade arcaica da escuta, sua presença nos mitos ocidentais – como o de

Ulisses preso ao mastro para sucumbir ao canto das sereias. E é partindo

deste mito que o autor argumenta sobre a principal lição de escuta que os

mitos deram à psicanálise: “escuta já não imediata, mas diferida, levada para o

espaço de uma outra navegação feliz, infeliz, que é a da narrativa, o canto já

não imediato, mas contado”16, relembrando o quanto o sonho é feito também

de imagens acústicas.

Em síntese, longe de uma escuta aplicada, Barthes propõe em primeiro, lugar

uma escuta que deixa surgir, em segundo uma escuta que fala, e por fim, em

se tratando da arte (e isto serve obviamente para a produção do audiovisual), a

escuta da significância, que, diferente do significado, caracteriza-se pela

cintilação dos significantes, incessantemente introduzidos na corrida de uma

escuta que produz incessantemente novos significantes, sem nunca parar o

sentido.17

Nessa ótica, a escuta, tanto como a voz, não pertence a nenhuma ciência:

a voz humana é com efeito, o lugar privilegiado (eidético) da

diferença: um lugar que escapa a toda ciência, pois não há

nenhuma ciência (fisiologia, estética, história, psicanálise) que

esgote a voz: classifiquem, comentem historicamente,

sociologicamente, esteticamente, tecnicamente a música,

haverá sempre um resto, um suplemento, um lapso, um não dito

que se designa ele próprio: a voz. (ibidem: 248)

sociedade livre, se aceitarmos antecipadamente preservar nela os antigos lugares de escuta: os do crente, do discípulo e do paciente. BARTHES; 2005: 247. 16 BARTHES; 2005: 245. 17 Ibdem.

No dizer de Barthes, a escuta é “um pequeno teatro onde se confrontam essas

duas deidades modernas, uma má e outra boa: o poder e o desejo.” ( ibidem:

248)

Se a escuta é teatro, o escutar na experiência da viagem de pesquisa, baseia-

se na prerrogativa de ser cosida de dois lados: um interior e outro exterior. No

entanto, é na vocalidade de seus participantes que parece não haver uma

preocupação, em primeira instância, com os fatos exteriores tal e qual se

apresentam e sim como eles repercutem no interior de suas escutas.

6

Eis, então, o motivo de iniciarmos a conversa com a canção. Mas antes do

motivo da canção falemos do motivo do encontro.

Para pensar a voz como escuta na viagem de formação, tomemos como baliza

o conceito bakhtiniano de cronotopo(tempo/espaço)

Bakhtin destaca o motivo do encontro como sendo a mais importante série

cronotópica. Assim trazemos esse motivo para pensar a experiência da

viagem, da pesquisa, da formação.

Bakhtin, em questões de Literatura e Estética – a teoria do romance (1998),

afirma que, na literatura e nas diferentes esferas da vida, o cronotopo do

encontro tem grande importância. Em seus argumentos, o autor apresenta a

diferença do cronotopo real e o encontro no discurso literário. No discurso

literário, o encontro é cercado por uma diversidade de “imprevistos” ou

“surpresas”. Já, os encontros reais referem-se aos encontros do mundo da vida

(os encontros, diplomáticos, os encontros da esfera do trabalho, os encontros

nas esferas acadêmica e escolar, etc.) nesse caso, há rigor, o tempo, o lugar e

a composição dos que se encontram são estabelecidos segundo o grau da

pessoa que é encontrada.

Ligado ao cronotopo do encontro temos o cronotopo da estrada, que possui

volume mais amplo, porém com menos intensidade emocional. No romance, os

encontros ocorrem frequentemente na “estrada”. Ela é o lugar preferido dos

encontros casuais.18

18 BAKHTIN; 1998.

7

Um encontro muito especial.

Em Moçambique, muitos encontros aconteceram à maneira do encontro no

discurso literário. Um deles foi com o grande artista Malangatana Nwgenya.

Encontrei Malangatana ainda no corredor do Centro de Conferências Joaquim

Chissano. Reconheci-o à distância. Embora, só o tivesse visto no filme

“Ngwenya, o crocodilo”19, naquela inesquecível tarde, no Brasil. O que mais me

chamou a atenção foi seu andar calmo, arrastando os pé como se desenhasse

no chão e seu olhar cheio de luz.

O título do Simpósio Especial da manhã era Literatura e Arte no Contexto

Africano. E ele dividiu a mesa com mais três pessoas.

Foi o último a falar. Com voz cansada, saudou o público. Mas o olhar sereno

com aquela tranqüilidade que lhe é sempre peculiar. Ele foi o único da semana

que não esclareceu o rumo da conversa. E começou com um conto. Sua voz20

já não era a mesma, tinha se transformado. Não demorou muito e seu corpo

também e num instante ele já estava em frente à mesa de conferências

cantando e dançando, como se regesse um grande coral. O público estava em

êxtase. O que ele fazia era desenhar e pintar. Muita gente chorava.

Só então compreendi porque seu filme me puxou com tanta força.

Malangatana não era uma voz, era muitas outras.

Depois de muito tempo, entendi. Naquela manhã, Malangatana não estava

sozinho.

A conferência de encerramento estava marcada para os próximos minutos.

Porém, para o público, era ali que terminara.

19 NGWENYA, o Crocodilo, é o nome do filme realizado pela cineasta moçambicana Isabel Noronha, em

2005 e conta a história do artista em diálogo com a história da cineasta. O filme foi pensado a partir de

uma canção que dá todo o movimento às cenas .

20 Voz no sentido de expressão vocal, sonoridade. A performance da enunciação de Malangartana

provoca-nos a perguntar sobre a linguagem gestual em Moçambique. Os pormenores gestuais muitas

vezes os fazem rir muito mais que as palavras pronunciadas e que nos faz perguntar qual a concepção de

cômico para este povo? Será que os mesmos motivos que os incita gargalhar também o faz com os

diferentes povos acomodados neste auditório?

Foi nesse dia que a ele me apresentei. Talvez, porque eu estivesse tão

emocionada, nunca esquecerei das únicas palavras que gravei daquele

primeiro encontro: (...) “o que estou te a dizer é para nunca esqueceres da

força de uma canção”.

Lembrei-me do conselho de minha bisavó aos seus filhos, conforme contam

meu pai e tios: “Cacumbi é uma obrigação”. É Força Vital21, “é preciso brincar22

de Cacumbi, é preciso aprender suas canções.” Porque o canto também é um

dos elementos constituinte dessa brincadeira-obrigação .23

21 Corpo tomado por uma energia, por uma força. 22

Há uma diferença que quem não conhece não entende. Na religião o africano é capaz de brincar a sério

porque encara a brincadeira como uma coisa séria. Enquanto que os Ocidentais encaram a brincadeira

como um coisa de criança, não é serio não é de adulto. Agora o africano não, para o africano o brincar é

uma coisa séria. Tanto que o famoso Exu que os missionários identificaram como Demônio, Diabo, não é

de jeito nenhum, é um Deus que brinca, só que na mente ocidental cristã, um Deus que brinca é

inconcebível! Então não somos capazes de identificar ou de aceitar que na religião exista brincadeira.

Quando tu dizes brincar o Cacumbi é uma forma de religião para um africano é perfeitamente razoável,

para um cristão e Ocidental, não. (Entrevista com o professor e escritor João Lupi em 15/06/2011, em Florianópolis).

23

“Nunca esqueçam que nós somos negros da Costa e que a saúde espiritual e a existência

de cada um de vocês se manterão graças a uma obrigação: o Cacumbi“ ou Catumbi, dizia a

avó do meu pai, a bisa Generosa, quando reuniu a família e passou ao marido, Domingos, a

tarefa de brincar23

de Quicumbi/Cacumbi porque Cacumbi é uma forma de existir na tradução-

narração e não uma tradução-tradição. Uma narração que se compreende enquanto

atualização. A obrigação constitui-se em uma forma de segredo, um segredo que na tradução-

tradição seria violado, ao contrário da tradução-narração em que o segredo é algo a ser

(com)partilhado.

Foi assim que lá pelos anos 40, na localidade de Cachoeira, Biguaçu,23

onde meu pai nasceu,

a família se reunia sempre para celebrar. Eram doze homens, seis de um lado e seis do outro...

(pedir ao pai que me descreva o Cacumbi), o catumbi da família além de religião, em sua forma

era uma luta. Luta porque ao som dos instrumentos musicais dominar o jogo era ter a posse do

próprio corpo. Luta porque só uma pessoa em estado de adoração podia dançar durante dias e

dias com os pés, mãos e todo o corpo em completa harmonia com as vozes das pessoas dos

tempos e de outros e de tudo o que estava a volta. Traduzir o Cacumbi era entrar na dança. E

traduzir bem era conhecer a tática do jogo proposto pela narrativa. A narrativa era a

coreografia, a notação dos passos a reexecutar. A família entrava na dança com os meneios

próprios de uma outra geração e encontrava, então, o melhor jeito de acertar o passo. Tudo

isso, porque “ a dança é o rastro de uma luta – não é por acaso que a palavra dança pode

tomar, em várias línguas, o sentido coloquial de briga (“buena dança se armo!”)”.23

Pode-se

imaginar o significado disto para pessoas cujo corpo era propriedade de outros, que haviam

conhecido a escravidão na infância ou que se lembravam de seus pais escravos?

8

A canção de Sueli Rolnik, ou um fragmento de seu relato, ainda:

(...) Segunda Cena: 1978. Uma aula particular de canto, que venho fazendo com duas amigas, aos sábados à tarde, já há algum tempo. A professora é Tamia, cantora que pesquisa música contemporânea improvisada, vertente muito ativa no momento. Neste dia, para nossa surpresa, ela pede que cada uma de nós escolha uma canção e nos faz trabalhar com isso durante toda a aula.

A canção que me ocorre é uma entre tantas do Tropicalismo – versões musicais do intenso movimento criador que vivíamos no Brasil nos anos sessenta, cuja interrupção brutal pela ditadura fora indiretamente responsável por meu exílio em Paris: “cantar como um passarinho de manhã cedinho... abre as asas passarinho que eu quero voar... me leva pra janela da menina, na beira do rio...” É Gal quem canta, com aquele timbre suave que explora em algumas de suas interpretações e que tem o dom de aconchegar o ouvinte. À medida que vou cantando, uma vibração semelhante toma conta de minha própria voz, cada vez mais firme e cristalina. Sou tomada por um estranhamento: primeiro, a sensação de que este timbre me pertence desde sempre, e que apesar de silenciado por tanto tempo, é como se nunca tivesse deixado de expressá-lo; depois, porque à medida que flui, sua vibração apesar de tão suave parece perfurar meu corpo, que de repente se mostra como petrificado. Sinto o branco da jardineira e da camiseta que estou vestindo como uma pele/gesso compacta envolvendo meu corpo; e mais, esta espécie de carapaça parece estar ali há muito tempo, sem que eu jamais tivesse me dado conta. O curioso é que o endurecimento do corpo revela-se no momento mesmo em que o filete de voz o perfura, como se de algum modo voz e pele estivessem imbricados. Terá o corpo enrijecido junto com o desaparecimento do timbre? Seja como for, o gesso tornara-se agora um estorvo, do qual tinha de me livrar o mais rápido possível.

Neste instante decido voltar ao Brasil. E, no entanto, objetivamente, nada em minha vida em Paris teria me levado a tomar tal decisão – gostava de viver lá, tinha um círculo de amizades que conservo até hoje, trabalhava com psicóticos e dava aula de análise institucional, como

eu queria, tanto que nunca tinha pensado em ir embora e muito menos feito qualquer plano nesta direção. Mas voltei, e nunca duvidei do acerto de minha decisão.

Levei alguns anos para entender o que havia acontecido naquela aula de canto, e outros tantos para perceber que aquilo podia ter uma relação com o trabalho que me havia proposto Deleuze muito tempo antes.

O que o canto anunciava em meu corpo naquela tarde de sábado, é que a ferida no desejo causada pela ditadura cicatrizara o bastante para me permitir voltar ao Brasil se eu quisesse. (...)

Alguns meses após a morte de Guattari, escrevi a Deleuze contando onde aquilo tinha ido desembocar. Como sempre, sua resposta foi de uma densa e generosa simplicidade, própria de uma fala onde não faltam nem sobram palavras. Numa carta de junho de 94, ele me escrevia: “Nunca perca sua graça, quer dizer, os poderes de uma canção”.24

Deleuze, Malangatana e a bisa Generosa? Quantas vozes para falar da

importância da canção! Onde essas vozes se encontram? Onde se distanciam?

Poderíamos partir deste ponto, mas este deixaremos para uma próxima

conversa.25

9

Malangatana gosta de falar da narrativa como tradição. Um tradição como

aquilo que diz respeito ao tempo, não ao conteúdo. Aquilo que Bhabha, citando

Lyotard tão bem esclarece em seus argumentos sobre a identidade:

“ A tradição é aquilo que diz respeito ao tempo, não ao conteúdo. Por

outro lado o que o Ocidente deseja da autonomia, da invenção, da

24 ROLNIK; 1996, p. 82-89 (grifos nossos) 25 Canção é a nossa casa. Não a canção por ela mesma, e sim um estado de ânimo que evoca. Não é a

canção pelo seu sentido estético musical, mas pelo momento e situação que ela é convocada em nós, o

instante em que somos tomados a murmurar, assoviar, cantar, batucar, mentalizar sonoridades, linhas

melódicas, timbrísticas, rítmicas ou de qualquer outra espécie. Linhas que constituem o território, este se

cria por necessidade e urgência com instinto de preservação e para afastar forças do caos. Deleuze e

Guatarri dedicaram um capítulo de sua obra Mil Platôs, vol. 04, ao estudo da canção: “Sobre o Ritornello

“ , cujo conteúdo traz todo o desenvolvimento de seu pensamento sobre território.

novidade, da autodeterminação, é o oposto – esquecer o tempo e

preservar, acumular conteúdos, transformá-los no que chamamos de

história e pensar que ela progride porque acumula. Ao contrário, no

caso das tradições populares...nada se acumula, ou seja, as

narrativas devem ser repetidas o tempo todo porque são esquecidas

todo o tempo. Mas o que não é esquecido é o ritmo temporal que não

para de enviar as narrativas para o esquecimento.

...

Esta é uma situação de constante encaixe, que torna impossível

encontrar um primeiro enunciador. (93)

E talvez, essa tenha sido a grande lição de Malangatana: o tempo. Esse

lentamente moçambicano que nos chamava a pensar na premissa de que há

um aprendizado da escuta, do ouvir da passagem pela escuta para a

constituição disso que a gente chama de escritura na pesquisa, bem como

vestígios para encontrarmos essa escuta e que vem ao encontro daquilo que

Harry Meschonnic diz: “ o lugar onde essa escuta se dá é no ritmo”. Esse autor

argumenta sobre o ritmo como um conceito cultural e relativo, não apenas

individual. O ritmo seria uma espécie de formulação espectante, do desejo de

escutar como a escuta que Barthes evoca nos pode ensinar. Aquela escuta

que nos deixa fissurado por um poema, por um romance, uma canção, uma

peça de teatro, por um “Ouvindo Coisas”... Não seria num desejo de escutar?

Uma escuta que implica corpo, um corpo atravessado nessa organização

temporal que é o ritmo. Mas essa aprendizagem não é automática, tem gente

que chega à academia sem ainda ter sido tocado por essa experiência. Ainda

bem que já temos encontros como o “Ouvindo Coisas”!

Mas, voltando a Meschonnic “ o ritmo seria, então, essa subjetivação do tempo

que a linguagem retém do corpo: o ritmo é a subjetivação do tempo que a

linguagem retém do corpo” ou numa outra citação: “Porque o poema é um

momento de uma escuta e o signo não faz mais do que dar a ver.” Ele vai opor

a escuta do poema a noção de signo. A noção de signo é uma noção visual

para Meschonnic: “O signo é surdo e nos torna surdo.” Só o poema pode nos

levar a voz, nos fazer passar de voz em voz, fazer de nós uma escuta, porque

“o poema não sabe mais. Não ensina um saber. Não ensina. Evidentemente.

Mas ele mostra. Trabalha o insabido. Nem à margem. Nem fora dela. Sua

utopia é estar aqui. Seu partido, e também o da crítica, é o partido do ritmo.

Sua política.”26 Nesse sentido, podemos perguntar como o poema de

Francisco Alvin: Quer ver? Escuta!

10

Ouçamos. Ouçamos a única canção com tantas vozes sobrepostas. Essas

vozes que se encontram na viagem, na formação, no “Ouvindo Coisas”... são

as vozes da celebração: celebração da voz humana, como bem faz Eduardo

Galeano, em seu “O Livro dos Abraços”. Vozes que nos convidam a parar para

pensar no silêncio que se faz canção. Que silêncio seria esse associado à

canção? Talvez possamos dizer, completando a idéia da voz como um devir

que perseguimos nessa conversa, que se faz em dispersões do encontro, que

o silêncio aqui, é aquele silêncio do “Ouvindo Coisas” - Encontro que aspira a

conservar o silêncio: o silêncio da voz. Um silêncio que não é um calar

intimidado, que se produz quando o poder é o único que fala, como nos lembra

Larrosa (2004), mas “o silêncio como o de certas músicas, o de suave calar

contido em uma forma”.27 Momento em que paramos para perceber que ainda

há alegria no estar juntos, “senso comum, comunitário, bichinho duro de

matar”, como bem diz Eduardo Galeano. E ainda nas palavras deste grande

artista:

Porque não reconheço maior alegria do que a de nos reconhecermos

nos demais. Talvez essa seja, para mim, a única imortalidade digna

de fé. Reconhecer-me nos demais, reconhecer-me em minha pátria e

em meu tempo, e também reconhecer-me em mulheres e homens

que são meus compatriotas, nascidos em outras terras, e reconhecer-

me em mulheres e homens que são meus contemporâneos, vividos

em outros tempos. Os mapas da alma, não têm fronteiras.28

26 MESCHONNIC; 2006, p. 06 27 LARROSA; 2004, p. 47. 28 Os mapas da alma não têm fronteiras. In: LAZZARIN, Flávio. A Terceira Margem do Rio: Ensaio

sobre a Realidade do Maranhão no Novo Milênio. EDUFMA, São Luís: Instituto Ekos, 2009.

E pensar que tem gente que nem se quer imagina!

E você?

REFERÊNCIA:

BAKHTIN, Mikail. Questões de Literatura e Estética: a teoria do romance.

São Paulo: UNESP, 1998.

BARTHES, Roland. O Óbvio e o Obtuso. Lisboa : Edições 70, 2009.

_______________. Escuta. In: Oral e escrito, argumentação. Enciclopédia

Einaudi. Vol. XI. Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1987.

_______________ Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Cultrix

1977.

BHABHA; Homi k. O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia.

Rio de Janeiro, Editora 34. 3ª. Reimpressão 2007.

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