Questoes de Percepção - Holl Steven

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1 Questões de percepção. Fenomenologia da arquitetura. Steven Holl Texto original em espanhol: Steven Holl (Cuestiones de Percepción: Fenomenología de la arquitectura, GG, 2011) / Tradução: Igor Fracalossi “Não há, certamente, fenomenologia, mas sim problemas fenomenológicos.” Ludwig Wittgenstein Para passar de um espaço discursivo a outro, para avançar mediante o razoamento, um texto se converte num conduto necessário, embora inadequado. Ao escrever sobre arquitetura e percepção nos vemos inevitavelmente cercados pela pergunta: somos capazes de entrever a palavra na forma construída? Se se pretende que a arquitetura trascenda sua condição física, sua função como mero refúgio, então seu significado como espaço interior deve ocupar um espaço equivalente dentro da linguagem. A linguagem escrita deveria, pois, assumir as silenciosas intensidades da arquitetura. Posto que as palavras são abstratas, não se concretam no espaço nem na experiência sensorial material e direta, esta tentativa por entender o significado arquitetônico mediante a linguagem escrita corre o risco de desaparecer. Se poderia propor um espaço impossível, inacessível através da linguagem; não obstante, as palavras não podem substituir a autêntica experiência física e sensorial. A tentativa de transmitir uma consciência fortalecida é, em palavras de Rainer Maria Rilke, “uma questão de passar a ser tão plenamente conscientes de nossa existência como seja possível”. Nossa experiência e nossa sensibilidade podem evolucionar mediante a análise reflexiva e silenciosa. Para nos abrir à percepção devemos transcender a urgência mundana das “coisas que há que fazer”. Devemos tentar aceder a essa vida interior que revela a intensidade luminosa do mundo. Só por meio da solidão podemos

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HOLL, Steven - Questões de percepção

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    Questes de percepo. Fenomenologia da arquitetura.

    Steven Holl

    Texto original em espanhol: Steven Holl (Cuestiones de Percepcin: Fenomenologa de la arquitectura, GG,

    2011) / Traduo: Igor Fracalossi

    No h, certamente, fenomenologia, mas sim problemas fenomenolgicos. Ludwig Wittgenstein

    Para passar de um espao discursivo a outro, para avanar mediante o razoamento, um texto se converte num

    conduto necessrio, embora inadequado. Ao escrever sobre arquitetura e percepo nos vemos inevitavelmente

    cercados pela pergunta: somos capazes de entrever a palavra na forma construda? Se se pretende que a

    arquitetura trascenda sua condio fsica, sua funo como mero refgio, ento seu significado como espao

    interior deve ocupar um espao equivalente dentro da linguagem. A linguagem escrita deveria, pois, assumir

    as silenciosas intensidades da arquitetura.

    Posto que as palavras so abstratas, no se concretam no espao nem na experincia sensorial material e

    direta, esta tentativa por entender o significado arquitetnico mediante a linguagem escrita corre o risco de

    desaparecer. Se poderia propor um espao impossvel, inacessvel atravs da linguagem; no obstante, as

    palavras no podem substituir a autntica experincia fsica e sensorial. A tentativa de transmitir uma

    conscincia fortalecida , em palavras de Rainer Maria Rilke, uma questo de passar a ser to plenamente

    conscientes de nossa existncia como seja possvel.

    Nossa experincia e nossa sensibilidade podem evolucionar mediante a anlise reflexiva e silenciosa. Para nos

    abrir percepo devemos transcender a urgncia mundana das coisas que h que fazer. Devemos tentar

    aceder a essa vida interior que revela a intensidade luminosa do mundo. S por meio da solido podemos

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    comear a nos adentrar no segredo que nos rodeia. Uma conscincia de nossa existncia nica e prpria no

    espao resulta crucial no desenvolvimento de uma conscincia da percepo.

    A introspeco pode suscitar a necessidade de comunicar descobrimentos feitos em solido: a reflexo privada

    provoca a ao pblica. Nosso mundo est repleto de tarefas mundanas das que nos devemos liberar; a vida

    cotidiana est repleta de aparatos que acumulam nossa ateno e satisfazem nossos desejos, reconduzindo-os

    a enganosos fins comerciais. A existncia comercial moderna enturva a questo acerca do essencial. medida

    que nossos meios tecnolgicos se multiplicam, amadurecemos ou mais bem atrofiamos desde um ponto de

    vista perceptivo? Vivemos nossas vidas em espaos construdos, rodeados de objetos fsicos. No entanto,

    havendo nascido neste mundo de coisas, somos capazes de experimentar plenamente os fenmenos de sua

    interrelao, de obter prazer de nossas percepes?

    A arquitetura tem o poder de inspirar e transformar nossa existncia do dia-a-dia. O ato cotidiano de agarrar a

    maaneta de uma porta e abr-la a um campo banhado de luz pode se converter num ato profundo se o

    experimentamos com uma conscincia sensibilizada. Ver e sentir estas qualidades fsicas significa tornar-se o

    sujeito dos sentidos.

    Para avanar a estas experincias ocultas devemos atravessar o vu onipresente dos meios de comunicao

    em massa. Devemos fortalecer nossas defesas para resistir ante as distraes calculadas que podem minguar

    tanto a psique como o esprito. Devemos prestar ateno em tudo aquilo que est tangivelmente presente. Se

    os meios de comunicao nos convertem em receptores passivos de mensagens vcuos, devemos nos

    posicionar firmemente como ativistas da conscincia. S ao reafirmar enrgica e apaixonadamente nossa

    existncia poderemos aceder a aquilo que Stphane Mallarm denominava a fora do negativo [...] que elimina

    a realidade das coisas e nos libera de seu peso.

    Mais plenamente que o resto das outras formas artsticas, a arquitetura capta a imediatez de nossas

    percepes sensoriais. A passagem do tempo, da luz, da sombra e da transparncia; os fenmenos cromticos,

    a textura, o material e os detalhes, tudo isso participa na experincia total da arquitetura. A representao

    bidimensional -em fotografia, em pintura o nas artes grficas- e a msica se encontram sujeitas a limites

    especficos e, por isso, captam s parcialmente a multido de sensaes que evoca a arquitetura. Embora a

    potncia emocional do cinema irrefutvel, s a arquitetura pode despertar simultaneamente todos os

    sentidos, todas as complexidades da percepo.

    Ao unificar o primeiro plano, o plano mdio e as vistas longnquas, a arquitetura ata a perspectiva ao detalhe e o

    material ao espao. Uma experincia cinemtica de uma catedral de pedra pode levar o observador atravs e

    por cima dela, ou inclusive faz-lo retroceder fotograficamente no tempo, mas s o edifcio real permite que o

    olho deambule livremente por entre os detalhes engenhosos; s a arquitetura oferece as sensaes tteis da

    textura da pedra e dos bancos polidos de madeira, a experincia da luz cambiante com o movimento, o cheiro e

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    os sons que ecoam no espao e as relaes corporais de escala e proporo. Todas estas sensaes se

    combinam numa experincia complexa que passa a estar articulada e a ser especfica, embora sem palavras. O

    edifcio fala dos fenmenos perceptivos atravs do silncio.

    Embora as sensaes e impresses nos envolvam silenciosamente nos fenmenos fsicos da arquitetura, a

    fora generativa radica nas intenes que residem alm dela. O comentrio de Goethe de que uma pessoa

    deveria buscar nada alm dos fenmenos; estes constituem lies em si mesmos fica curta frente a uma

    postura filosfica mais moderna, que teria sua origem em Franz Brentano e Edmund Husserl e que mais tarde

    desenvolveria Maurice Merleau-Ponty.

    As questes da percepo arquitetnica subjazem nas questes de inteno. Esta intencionalidade afasta a

    arquitetura da pura fenomenologia associada s cincias naturais. Seja qual for a percepo de uma obra

    construda -problemtica, desconcertante ou banal-, a energia mental que a gerou resulta a final de contas

    deficiente, a menos que no se haja articulado o propsito. A relao entre as qualidades experienciais da

    arquitetura e os conceitos generativos anloga tenso que existe entre o emprico e o racional; aqui onde

    a lgica dos conceitos preexistentes se encontra com a contingncia e particularidade da experincia.

    Na cidade moderna, as complexidades fenomnicas e experienciais se desenvolvem s parcialmente mediante

    o propsito e muito frequentemente se originam de forma acidental a partir da superposio semi-ordenada,

    embora imprevisvel, de propsitos individuais.

    Segundo Franz Brentano, os fenmenos fsicos captam nossa percepo exterior, enquanto que os

    fenmenos mentais concernem a nossa percepo interior. Os fenmenos mentais tm uma existncia real e

    intencional. Desde o ponto de vista emprico, um edifcio poderia nos satisfazer como uma entidade puramente

    fsico-espacial, mas desde o ponto de vista intelectual e espiritual necessitamos entender as motivaes que

    encerra. Esta dualidade de inteno e de fenmenos similar interao que existe entre o objetivo e o

    subjetivo ou, dito de um modo mais simples, entre o pensamento e o sentimento. O desafio da arquitetura

    consiste em estimular tanto a percepo interior como a exterior, em realar a experincia fenomnica

    enquanto, simultaneamente, se expressa o significado, e desenvolver esta dualidade em resposta s

    particularidades do lugar e da circunstncia.

    Para entender a interao entre os fenmenos experienciais e seu propsito, disseccionamos o todo e

    analisamos nossas percepes parciais. Da mesma forma que na experincia perceptiva direta, a arquitetura se

    entende inicialmente como uma srie de experincias parciais mais que como uma totalidade.