Rachels, James - Problemas Da Filosofia (Cap. 2)

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  • 2Deus e a origem do unioerso

    Se Deus cessass- a sua co-operao, tudoo que ele crio' ficaria logo reduzido anada, j que a' tes de as coisas terem sidocriadas, antes de Deus ter facultado a suaco-operao, elas nada eram.

    REN DESCARTES, Carta (641)

    2.1. Ser razovel acreditar em Deus?

    Em 2002, o Pew Center, uma empresa de opiniopblica sedeada em Washington, perguntou a pessoasde 44 pases em que medida a religio era importantepara elas. Nos Estados Unidos, 59 por cento disseramque a religio desempenhava um papel muito impor-tante na sua vida. Esta percentagem invulgarmentealta. Em Inglaterra, apenas 33 por cento disseram quea religio era importante. Noutros pases, as percenta-gens foram as seguintes: 27 por cento em Itlia, 21 porcento na Alemanha, 12 por cento no Japo e 11 por

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    cento em Frana. No entanto, as percentagens relati-vas Bolvia, Venezuela e ao Mxico foram seme-lhantes dos Estados Unidos, o que levou os analistasa concluir, de forma pouco generosa, que as atitudesnorte-americanas esto mais prximas das atitudesdas pessoas das naes em vias de desenvolvimentodo que das pessoas das naes desenvolvidas.

    Entretanto, na sondagem Gallup InternationalMillennium Survey, perguntou-se a pessoas de 60pases se acreditavam em Deus. Apenas 45 por centodisseram acreditar num Deus pessoal, ao passo queoutros 30 por cento disseram acreditar numa espciede esprito ou fora vital. A sondagem Gallup mos-trou no s' que a crena religiosa mais forte nosmais velhos e nos que tm menos educao, mas tam-bm que o ndice de crena mais elevado na fricaOcidental, onde o predomina o Islo. A, 99 por centoacreditam num Deus pessoal. Nos Estados Unidos, 86por cento tm essa crena, enquanto os europeus, con-clui a sondagem, so os mais agnsticos.

    A religio costumava desempenhar um papel maisimportante na vida das pessoas. O que explica odeclnio? A explicao seguramente complicada eningum conhece a histria toda. Um factor, pelomenos nos pases desenvolvidos, pode ser o prest-gio da cincia e o predomnio crescente da viso cien-tfica do mundo. Outro factor pode ser a menor impor-tncia da vida familiar e das tradies sociais em geral.Porm, seja qual for a causa, parece claro que mesmonos Estados Unidos as pessoas e as instituies reli-giosas esto hoje numa posio diferente da que esta-vam ainda h pouco tempo. Beneficiam de uma forteposio social e poltica, sem dvida, mas a religio hoje uma entre muitas foras que competem pela aten-o e j no define a viso da sociedade. Quando oslderes polticos invocam as suas crenas religiosas para

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    justificar polticas pblicas, muitas pessoas ficam irri-tadas.

    No entanto, no queremos apenas saber no que acre-ditam as pessoas - queremos saber se as crenas reli-giosas so verdadeiras. Qual ser a forma mais razovelde entender como o mundo? Existir alguma boarazo para acreditar que o mundo foi criado por umadivindade todo-poderosa? Obviamente, pode dizer-seque esta crena uma questo de f, para a qual arazo irrelevante. Pode considerar-se que as declara-es das Escrituras ou da Igreja tm uma autoridadeque no exige confirmao por argumentos racionais.E tentador deixar a questo por aqui - alguns esco-lhem acreditar, outros no, e nada mais h para dizer.Porm, antes de chegarmos a efta concluso, devemosinvestigar as provas disponveis. Ser possvel apre-sentar boas razes que apoien a crena em Deus? Nopodemos dizer que a crena eligiosa apenas umaquesto de f antes de estarmos certos da impossibili-dade de encontrar argumentos racionais.

    2.2. O argumento do desgnio

    O problema, como evidente, o facto de Deus noser acessvel por qualquer meio de investigao co-mum. No pode ser visto, ouvido ou tocado, e os ins-trumentos cientficos so inteis. Algumas pessoasdizem que conseguem sentir a sua presena, mas ou-tras no a sentem. Isto sugere que a crena em Deuspode ser apenas uma questo de convico interna.Ainda assim, os pensadores religiosos ofereceram di-versos argumentos em defesa da crena em Deus. Entreeles, o mais marcante o Argumento do Desgnio.

    A ideia bsica do Argumento do Desgnio a de quepodemos inferir que Deus existe a partir da natureza do

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    mundo que nos rodeia - o mundo est repleto de ma-ravilhas que s podemos explicar se supusermos queelas so obra de um criador inteligente. Como vamosver, esta ideia pode ser elaborada de diversas maneiras.

    As maravilhas da natureza. O mundo est cheio decoisas que tomamos por garantidas, mas que so incr-veis quando paramos para pensar. Considere-se o olhohumano, por exemplo. feito de partes que funcio-nam conjuntamente de formas intrincadas e comple-xas. O olho tem uma abertura pela qual entra a luz, eexiste um mecanismo que torna automaticamente aabertura maior ou menor em funo da quantidade deluz disponvel. A luz atravessa depois uma lente quea foca numa superfcie sensvel, que por sua vez trans-forma os padres em sinais, os quais podem ser trans-mitidos ao crebro atravs do nervo ptico. Se algumdetalhe for alterado, tudo deixa de funcionar. Imagi-ne-se que no havia nenhuma abertura frente doglobo ocular, ou nenhuma lente, ou nenhum nervo quea ligasse ao crebro - ento tudo o resto seria intil.

    Poder-se-ia dar inmeros outros exemplos. As plan-tas e os animais que povoam a Terra so compostos departes que funcionam extremamente bem em conjun-to. E eles apiam-se mutuamente, de tal forma queuns proporcionam a comida de que outros precisam.Conjuntamente, formam um ecossistema delicado, masvivel. Alm disso, a prpria Terra est perfeitamenteajustada existncia de vida, pois est distnciaapropriada do Sol e tem a temperatura, a gua e aatmosfera apropriadas. Considerando todos estes as-pectos, podemos muito bem perguntar se tudo istopoderia ter surgido por acaso. Tudo parece antes serobra de um criador inteligente.

    Esta ideia ocorreu a muitas pessoas, mas foiWilliamPaley (1743-1805), um clrigo anglicano e professor na

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    Universidade de Cambridge, quem a desenvolveu daforma mais memorvel. Paley escreveu dois livros- Uma Perspectiva das Provas do Cristianismo (1794) eTeologia Natural: ou Provas da Existncia e dos Atributosde Deus (1802) - nos quais sustentou que a existnciade Deus pode ser inferida dos factos da Criao.

    O olho era um dos exemplos favoritos de Paley,que defendeu que temos precisamente a mesma pro-va de que o olho foi produzido por um criador inte-ligente e de que objectos como os telescpios resultamda inteligncia. Afinal, so feitos dos mesmos princ-pios, estando ambos ajustados s leis que regulam atransmisso e a reflexo dos raios de luz. So os de-talhes, no entanto, que tornam o argumento convin-cente. Como Paley observou, h muito mais indciosde que o olho foi concebido e colocado no seu lugarconscientemente. Esqueamos por um momento a suaengenhosa configurao interna e consideremos ape-nas como este se situa na cabea. Para sua proteco,o olho est alojado numa cavidade ssea profunda,dentro da qual est protegido por gordura. H gln-dulas que produzem constantemente um lquido paramanter o olho hmido, sem o qual, uma vez mais,todo o rgo seria intil.

    Mas, poderemos perguntar, e depois? Depois de seassinalar estes factos notveis, pode-se desenvolver oargumento de duas formas.

    o argumento da negao do acaso. Em primeirolugar, podemos observar que as maravilhas da nature-za precisam de algum tipo de explicao. De que modo a que as vrias partes do olho comearam exacta-mente a existir? Uma possibilidade tudo ter aconte-cido por acaso - a lente, o nervo ptico, a plpebra etudo o resto pura e simplesmente surgiu ao mesmotempo. Que sorte a nossa! Porm, difcil acreditar

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    nisso. Mas o que sobra se eliminarmos o acaso? O de-sgnio inteligente parece a alternativa bvia. O olho eas outras maravilhas da natureza podem ter sido cria-dos por Deus. Obtemos assim o argumento da nega-o do acaso:

    1. Ou as maravilhas da natureza ocorreram aleato-riamente, por acaso, ou so o produto de umdesgnio inteligente.

    2. No podem ter ocorrido por acaso.3. Logo, so o produto de um desgnio inteligente.

    o argumento da igualdade de provas. Uma formadiferente do argumento apela ideia de que as provasde o que o universo foi concebido por um criadorinteligente so as mesmas de que outras coisas, comoautomveis e computadores, foram concebidas. Paraapresentar esta ideia, Paley introduziu uma das maisfamosas analogias da histria da cincia: a analogia dorelojoeiro.

    Suponha-se que encontramos um relgio no cho.Seo inspeccionarmos,concluiremosinevitavelmente queeste tem de ter sido concebido por um ser inteligente.Afinal, o relgio constitudo por muitas pequenaspartes que funcionam conjuntamente ao servio de umpropsito. As provas de que foi concebido para dizeras horas so esmagadoras. Como diz Paley, as suasdiversas partes esto dispostas e reunidas para umpropsito, [...] esto formadas e ajustadas de modo aproduzir movimento, e esse movimento est reguladode modo a indicar as horas. [...] [A]inferncia que julga-mos inevitvel [] a de que o relgio tem de ter tido umrelojoeiro. Deste modo, podemos inferir justificada-mente a existncia de um relojoeiro a partir da existn-cia do relgio. Mas no temos exactamente as mesmasprovas de que o universo foi feito por um criador inte-

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    ligente? O universo tambm consiste em partes dis-postas e reunidas para um propsito. O argumentoda igualdade de provas , ento, o seguinte:

    1. Conclumos correctamente que objectos como osrelgios foram feitos por criadores inteligentesporque tm partes que funcionam conjuntamen-te ao servio de um propsito.

    2. Temos as mesmas provas de que o universo foifeito por um criador inteligente: o universo tam-bm composto de partes que funcionam con-juntamente ao servio de um propsito.

    3. Logo, podemos concluir justificadamente que ouniverso foi feito por um criador inteligente.

    As objeces de Hume. Estes argumentos so im-pressionantes, mas sero slidos? Seria agradvel sefossem slidos, j que dariam um apoio racional a umaforma antiga e reconfortante de entender o universo.Infelizmente, estes argumentos esto sujeitos a diver-sas objeces que os enfraquecem.

    Para comear, podemos salientar que o Argumentodo Desgnio uma tentativa de inferir o que causa umacoisa a partir de informao sobre a prpria coisa. Poroutras palavras, estamos a inferir uma causa a partirdos seus efeitos: a partir da observao de fenmenos,o argumento infere o que tem de ter causado essesfenmenos. As inferncias deste tipo so comuns, masesto justificadas apenas quando dispomos de umacerta informao de fundo.

    Por exemplo, suponha-se que nos mostravam umpaciente com SIDA e nos perguntavam o que causoua sua doena. Responderamos, com alguma confiana,que ele no podia deixar de ter o vrus da imunodefi-cincia humana adquirida (VIH) e que isso tinha deser a causa. Mas por que razo poderamos fazer esta

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    inferncia justificadamente? Por causa da nossa expe-rincia passada. No passado encontr mos imensoscasos em que o VIH e a SIDA estavam ligados. Os m-dicos trataram muitos pacientes com SIDA, e em cadacaso o vrus estava presente. Alm disso, os estudosidentificaram o mecanismo que conecta o VIH SIDA.Excluram-se outras causas possveis. Invocamos esteconhecimento de fundo quando somos confrontadoscom um novo caso da doena. Sabemos o que geral-mente causa a SIDA e aplicamos esse conhecimento anovos casos.

    Poderemos inferir, da mesma forma, que um actode criao divina causou o universo? O problema que no possumos o tipo de conhecimento de fundoque autorizaria esta inferncia. Se tivssemos observa-do Deus a criar universos muitas vezes no passado, enunca tivssemos visto um universo que no tivessesido criado por Ele, poderamos inferir justificadamenteque Ele teve de ter criado o nosso universo. Mas, naverdade, no fazemos a menor ideia do que causa aexistncia de universos. Estamos familiarizados ape-nas com um universo, no observmos a sua causa eisto tudo o que sabemos.

    O caso do relgio completamente diferente. Quan-do examinamos o relgio que est no cho, dispomosde muita informao de fundo relevante. J vimosrelgios antes e sabemos que so feitos por relojoeiros.Podemos visitar as fbricas e as oficinas em que soproduzidos, conhecemos os nomes das empresas queos fabricam e sabemos que podemos compr-los emlojas. por isso que podemos afirmar com tanta con-fiana que um certo relgio tem de ter sido feito porum relojoeiro. Isto significa que o argumento da igual-dade de provas est fatalmente errado. No que respei-ta a causas, temos muito mais dados sobre relgios doque sobre universos.

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    Mas suponha-se que ignorvamos este aspecto etentvamos inferir como o mundo comeou a existir.Se fizssemos isso seriamente, o que concluiramos?Que conjectura pareceria mais razovel? A ideia deque o mundo foi criado por uma nica divindadeomnipotente e sumamente boa no seria muito plau-svel. Afinal, o mundo no perfeito. Ainda que sejaimpressionante, o corpo humano fraco e vulnervela doenas. Algumas pessoas sofrem de lepra ou dedistrofia muscular. Se os nossos olhos fossem perfei-tos, no haveria tanta gente a precisar de culos -para no falar, obviamente, do facto de alguns de nsserem cegos. Tendo isto em conta, poderia ser maisrazovel conjecturar que o mundo foi feito por umcriador de mundos um pouco inepto ou malicioso, ouque fomos feitos por um aprendiz de criador de mun-dos que ainda no dominava a sua arte. Alm disso,podemos observar que o mundo contm elementos queesto em conflito - os seres humanos lutam para so-breviver num ambiente que frequentemente lhes hostil. Isto poderia levar-nos a especular que o mundofoi concebido por uma comisso de criadores de mun-dos a trabalharem cada um para seu lado. Como bvio, ningum acredita nestas coisas, mas aquilo queinteressa que estas conjecturas seriam pelo menosto razoveis como a ideia de que o mundo foi criadopor um Deus perfeito, se estivssemos a tentar inferirseriamente a natureza do Criador a partir da naturezada Criao.

    Todas estas ideias foram avanadas por DavidHume (1711-1776),o maior filsofo de lngua inglesado perodo moderno, no seu livro Dilogos sobre aReligio Natural. Hume era cptico quanto religionuma poca em que o cepticismo no podia ser admi-tido publicamente. Assim, nos seus estudos sobrereligio, nunca professou a descrena. Em vez disso,

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    atacou os fundamentos da crena, expondo as fraque-zas de vrios argumentos testas. No permitiu que osDilogos sobre a Religio Natural fossem publicadosdurante a sua vida; estes foram publicados postuma-mente, em 1779.

    2.3. Evoluo e desgnio inteligente

    Quando o sculo XIX comeou, as objecesde Humeao Argumento do Desgnio eram bem conhecidas,mas geralmente no eram consideradas decisivas. Pelocontrrio, os livros de Paley eram mais admirados erespeitados. Nas dcadas que se seguiram, os livrosde Paley, e no os de Hume, eram leitura obrigatrianas universidades britnicas. A razo disto bvia.A hiptese da criao divina proporcionava uma ma-neira de explicar as maravilhas da natureza. Humecriticara esta hiptese, mas nada tinha de substancialpara oferecer em seu lugar. Por que razo as pessoashaveriam de abandonar uma forma til de entender omundo quando no existia uma alternativa melhor?Assim, apesar das fraquezas lgicas que o Argumentodo Desgnio pudesse ter, a hiptese no podia deixarde ser atraente at se oferecer uma explicao alterna-tiva. Nenhuma outra explicao esteve disponvel atque, em 1859, Charles Darwin formulou a Teoria daSeleco Natural.

    Como funciona a seleco natural. Muitas pessoassupem que Darwin foi a primeira pessoa a apresen-tar a ideia de evoluo, mas isto no verdade. Nocomeo do sculo XIX, j se sabia que a Terra era muitoantiga e que tipos diferentes de plantas e de animaistinham vivido em pocas diferentes. Muitas pessoasespecularam que o aparecimento e o desaparecimento

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    de todas essas espcies poderiam explicar-se pela evo-luo (ou descendncia com modificao, comoento se dizia). Porm, os cientistas rejeitaram a evo-luo porque ningum conseguia imaginar como umaespcie se podia transformar noutra. Qual poderia sero mecanismo? Aceitaram antes a teoria do catastrofismo,segundo a qual ocorreram ao longo da histria vriosgrandes desastres - sendo o ltimo deles, talvez, odilvio de No - em que as espcies ento existentesforam destrudas e depois substitudas num novo actode criao divina. Hoje o catastrofismo pode pare-cer absurdo, mas no incio do sculo XIX era a melhorteoria disponvel e muitos cientistas aceitavam-na.Depois Darwin mudou tudo ao propor uma teoriavivel sobre como a evoluo podia ocorrer. A Teo-ria da SelecoNatural, exposta no.seu livro A Origemdas Espcies (1859),apresentava o mecanismo necess-rio para explicar como as espcies podem evoluir aolongo do tempo.

    A genialidade de Darwin esteve em ter compreen-dido que trs factos bem conhecidos, considerados con-juntamente, podiam explicar a mudana evolutiva. Emprimeiro lugar, temos o aumento geomtrico das popula-es. Os organismos reproduzem-se tanto que os mem-bros de qualquer espciedepressa cobririam toda a Terrase no sofressem algum controlo. (Comeando comapenas alguns coelhos, depressa existiriam milhes,que por sua vez produziriam milhes de milhes, atestarmos afogados em coelhos.) Em segundo lugar,temos a hereditariedade de caractersticas. Os descenden-tes de um organismo tendem a assemelhar-se-lhe: cadaindivduo herda as caractersticas dos seus progenito-res. Em terceiro lugar, temos a variao. Embora osindivduos se assemelhem aos seus progenitores, noso exactamente como eles. Existem pequenas diferen-as aleatrias entre si.

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    Reunindo estes trs factos, Darwin argumentou daseguinte maneira:

    1. Os organismos tendem a reproduzir-se tanto que,se todos sobrevivessem e tambm se reproduzis-sem, os membros de qualquer espcie cobririamtoda a Terra. Isto no acontece (e no pode acon-tecer). Nenhuma espcie pode continuar a mul-tiplicar-se desenfreadamente. Cada populaoatinge uma certa dimenso mxima e depois oseu crescimento pra.

    2. Segue-se daqui que uma grande percentagem deorganismos tem de morrer antes de ser capazde se reproduzir. Logo, haver uma luta pela exis-tncia para determinar que indivduos vivem eque indivduos morrem. O que determina o resul-tado desta luta? O que faz certos indivduos vive-rem e outros morrerem? Existem duas possibili-dades: isso pode resultar de causas aleatrias oua razo pode estar relacionada com as diferenasque se verificam entre os indivduos. Por vezesh aleatoriedade. Ou seja, a razo pela qual umorganismo sobrevive at se reproduzir, mas outrono, ser por vezes atribuvel a causas que nadatm a ver com as suas caractersticas particula-res. Por exemplo, um indivduo pode ser aniqui-lado por um raio, mas outro no - e isto podeacontecer por pura sorte. Contudo, por vezes ofacto de um indivduo sobreviver at se repro-duzir, mas outro no, dever-se- s suas caracte-rsticas diferentes. Isto funciona assim:

    Existem diferenas (vvariaes) entre osmembros de uma espcie. Darwin no sabiacomo ou por que razo surgiam essas varia-es, mas hoje sabemos que isso est relacio-nado com mutaes genticas.

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    Algumas dessas diferenas iro afectar a rela-o do organismo com o seu ambiente de for-mas que beneficiam ou prejudicam as suashipteses de sobrevivncia.

    Logo, devido s suas caractersticas particula-res, alguns indivduos tero mais hipteses desobreviver (e de se reproduzir) do que outros.

    Consideremos dois exemplos simples de comoisto acontece. Suponha-se que os lobos vivem numambiente que est a ficar cada vez mais frio.Ne~se caso, os lobos que tiverem uma pelagemmais espessa tero melhores hipteses de sobre-viver e de se reproduzir. A pelagem mais espessano surge em resposta ao ambiente frio - nopassa de uma variao aleatria. Ainda assim,beneficia os lobos no ambiente alterado. Ousuponha-se que os tentilhes migram para umarea em que a comida disponvel consiste emnozes. Ento, da mesma forma, os tentilhescom bicos mais duros tero mais hipteses desobreviver e de se reproduzir. Tero uma vanta-gem na competio pela quantidade limitada decomida, pelo que tendero a deixar mais descen-dentes.

    3. Os organismos transmitem as suas caractersti-cas aos seus descendentes. Darwin tambm nosabia exactamente como isto ocorre, mas evi-dente que ocorre: a descendncia de um organis-mo ter a maior parte das suas caractersticasparticulares. Hoje tambm sabemos que isto estrelacionado com os genes.

    4. Logo, as caractersticas que tm valor de sobre-vivncia so transmitidas e tendem a estar maisrepresentadas nas geraes futuras, ao passo queoutras caractersticas tendem a ser eliminadas da

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    especle. As geraes futuras de lobos e de ten-tilhes tero, em mdia, uma pelagem maisespessa e bicos mais duros.

    5. Desta maneira, uma espcie ser modificada- os descendentes dos indivduos originais terocaractersticas diferentes das dos seus ascenden-tes - e, quando se acumulam modificaes su-ficientes deste tipo, chamamos ao resultado umanova espcie.

    A Teoria da Seleco Natural tornou plausvel anoo de evoluo, e depressa substituiu o catastrofismoenquanto explicao dominante para o facto de esp-cies diferentes terem vivido em pocas diferentes.Tambm proporcionava uma alternativa hiptese dodesgnio inteligente. Agora, em vez de se entender asmaravilhas da natureza como obras de Deus, era pos-svel explic-Ias como resultado da seleco natural.

    A seleco natural poder explicar a complexida-de biolgica? Quando Darwin estava matriculado emCambridge no final da dcada de 1820, todos os estu-dantes eram obrigados a ler a Teologia Natural, de Paley.Mais tarde, Darwin escreveu na sua Autobiografia queestava encantado e convencido com essa longa linhade argumentao. Nessa altura, o jovem Darwin pre-tendia tornar-se clrigo. Abandonou esta ambio de-pois de ter completado uma viagem volta do mundono HMS Beagle de 1831 a 1835. Em 1838, tinha formu-lado a Teoria da Seleco Natural. Depois de ter des-coberto a seleco natural, Darwin j no estava en-cantado com o raciocnio de Paley. Via a Teoria daSeleco Natural como uma substituio da ideia deque aspectos particulares da natureza tinham sidoconcebidos conscientemente. O velho argumento dodesgnio na natureza, disse, que antes me parecia

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    to conclusivo, fracassa agora que a lei da seleconatural foi descoberta.

    Hoje existem ainda muitos defensores da hiptesedo desgnio, e sustentam que no conseguimos expli-car rgos complexos como o olho enquanto resulta-dos da seleco natural. Este debate substituiu emgrande medida o velho debate entre evolucionistas ecriacionistas, no qual os segundos defendiam a ver-dade literal do Gnesis. Nas dcadas de 1970 e de 1980,a cincia da criao estava em voga nos Estados Uni-dos. Tentava oferecer princpios para explicar coisascomo a diversidade e a distribuio geogrfica da vida.Os activistas religiosos organizaram uma campanhapara que a cincia da criao fosse ensinada nas esco-las pblicas como alternativa evoluo, mas fracas-saram porque era demasiado bvio que a cincia dacriao no era cincia. Hoje a campanha deslocou-separa uma pretenso mais modesta, nomeadamente ade que o desgnio inteligente seja ensinado comoalternativa evoluo na explicao da origem dasespcies. Em 1996, Michael J. Behe, um bioqumicocristo, publicou um livro intitulado Darioin's Black Box:The Biochemical Challenge to Evolution, em que sustentaque alguns sistemas biolgicos no podem ser o resul-tado da seleco natural porque so irredutivelmentecomplexos. O desgnio inteligente, disse Behe, umaexplicao mais plausvel desses sistemas, e osactivistas fizeram desta ideia a sua nova bandeira. Arevista Christianity Today nomeou Darwin' s Black Boxpara seu Livro do Ano.

    Por que razo se supe que a seleco natural inadequada? Os defensores do desgnio inteligentesalientam que os rgos complexos, como o olho, soconstitudos por inmeras partes, parecendo cada umadelas intil excepto quando funciona com as outras.Como haveremos de conceber a evoluo de todas estas

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    partes? Deveremos imaginar um olho rudimentar, umsaco lacrimal rudimentar, uma plpebra rudimentar etudo o resto a desenvolver-se lado a lado? A Teoria daSeleco Natural diz que estes rgos complexos soo resultado de pequenas variaes que perfazem orgo maduro depois de muitas geraes de modifica-o evolutiva. No entanto, mesmo que seja fcil perce-ber que o olho inteiramente desenvolvido til ao seupossuidor, que utilidade teria um meio-olho que aindativesse de percorrer muitas geraes at ficar con-cludo? Por que razo um meio-olho haveria de serseleccionado e preservado para posterior melhora-mento? Estes problemas, dizem os crticos, so insupe-rveis.

    Porm, este problema no novo. O prprio Darwinestava consciente dele. Para o enfrentar, avanou duasideias. Em primeiro lugar, sublinhou que um pequenotrao anatmico pode ser preservado originalmentepela seleco natural porque serve um propsitoadaptativo diferente daquele que acabar por servir.Mais tarde, esse pequeno trao anatmico pode desem-penhar um certo papel numa estrutura complexa sim-plesmente porque aconteceu estar presente. A natu-reza pode improvisar uma estrutura complexa a partirdos materiais que tenha mo, sejam eles quais forem.Em segundo lugar, Darwin chamou a ateno paraaquilo que os tericos actuais designam por intensifica-o da funo. Nos estdios mais avanados do seudesenvolvimento, uma estrutura biolgica pode con-ferir um benefcio que, nos seus estdios anteriores,conferia num grau muito menor. Para explicar o olho,Darwin apelou a ambas as ideias:

    Supor que o olho, com todos os seus dispositivosinimitveis para ajustar o foco a distncias diferentes,para admitir quantidades diferentes de luz e para corri-

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    DEUS E A ORIGEM DO UNIVERSO

    gir a anomalia esfrica e cromtica, pde ter sido for-mado pela seleco natural parece, confesso livremente,absurdo no maior grau possvel. No entanto, a razo diz--me que, caso se possa mostrar [...] que existem inme-ras gradaes de um olho perfeito e complexo a um muitoimperfeito e simples, sendo cada uma delas til suapredecessora, ento a dificuldade de acreditar que umolho perfeito e complexo pode ter sido formado pelaseleco natural, ainda que insupervel pela nossa ima-ginao, dificilmente pode ser considerada real.

    Basta imaginar que um nervo apenas ligeiramentesensvel luz confere uma pequena vantagem a umorganismo na competio pela sobrevivncia. Podere-mos ento compreender o surgimento do primeiro olhorudimentar. Os nossos olhos complexos acabaro porse desenvolver a partir desse objecto simples.

    Nos corpos vivos, a variao ir causar as ligeirasalteraes, a geraomultiplic-las- quase infinitamente,e a seleco natural escolher cada melhoria com umapercia infalvel. Deixemos este processo decorrer aolongo de milhes e milhes de anos, e durante cada anoem milhes de indivduos de muitos tipos. No podere-mos acreditar ento que um instrumento ptico vivo sepode formar assim, sendo superior a um feito de vidrodo mesmo modo que as obras do Criador so superioress do homem?

    Se o olho em si se pode formar deste modo, o mes-mo se pode dizer dos sacos lacrimais, das plpebras,do osso e do resto. Considere-se a plpebra, por exem-plo. Imagine-se que se formou um olho rudimentar eque, em alguns organismos, uma ligeira variao re-sultou numa fina camada de pele que de algum modoo protege. A pele no est l de modo a proteger o olho.Desenvolveu-se originalmente porque conferia uma

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    vantagem diferente, mas agora, estando l, pode serviro seu novo propsito, e esta nova caracterstica serseleccionada, e ulteriormente modificada, da formahabitual. A anlise de Darwin resistiu ao teste do tempo.Hoje constitui ainda a base do pensamento cientficosobre estas questes. as cientistas no esto impressio-nados com os desafios dos crticos religiosos.

    Depois de Darwin, o argumento da negao doacaso foi finalmente refutado. Hume e os outros crti-cos filosficos do argumento do desgnio assinalaramas suas deficincias lgicas, mas no podiam ofereceruma forma melhor de entender o aparente desgnioda natureza. Depois de terem afastado a explicaodo desgnio, nada deixaram no seu lugar. No sur-preendente, pois, que no comeo do sculo XIX, mesmoas pessoas mais brilhantes continuassem a acreditarno desgnio. Mas Darwin fez o que Hume no pdefazer: ofereceu uma alternativa, dando s pessoas algodiferente em que podiam acreditar. a argumento danegao do acaso dizia-nos que s existem duasformas de explicar as maravilhas da natureza: o acasoe o desgnio. Depois de Darwin, havia uma terceiraforma.

    2.4. O argumento da causa primeira

    Hoje sabemos - ou pelo menos julgamos saber-que o universo comeou com um Big Bang h cercade catorze mil milhes de anos e que a Terra se for-mou cerca de nove mil milhes de anos depois disso.Mas, podemos perguntar, o que causou o Big Bang?a que explica o facto de haver um universo em vezde nada? Esta questo exige algum tipo de resposta, eaqui, uma vez mais, pode-se sugerir que a hiptese dacriao divina proporciona aquilo de que precisamos.

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    DEUS E A ORIGEM DO UNIVERSO

    Podemos conjecturar que Deus foi a causa primeirado universo.

    Tambm esta ideia pode ser desenvolvida de vriasmaneiras. a Argumento da Causa Primeira pode assu-mir pelo menos trs formas.

    A ideia de que Deus foi a primeira causa numalonga cadeia causal. Uma linha de raciocnio, porexemplo, apela ao princpio de que tudo o que existe temde ter uma causa. a meu relgio foi feito por relojoeirosque trabalharam com metais extrados da Terra. Deonde vieram os relojoeiros e os metais? as relojoeirosvieram dos seus pais, ao passo que os processos geo-lgicos explicam como surgiram os metais. Podemosfazer recuar ainda mais a cadeia causal: esses paisdescenderam de outras pessoas, que por sua vez des-cenderam de outras pessoas, a prpria Terra formou--se a partir de matria que se movia pelo espao, eassim por diante. Se recuarmos o suficiente, acabare-mos por chegar ao Big Bang, que por sua vez tem deter sido causado por algo. Mas, poder-se- dizer, acadeia causal tem de parar em algum lado. Temos deacabar por chegar a uma Causa Primeira de Tudo. Eassim obtemos este argumento:

    1. Tudo o que existe tem de ter uma causa.2. A cadeia causal no pode recuar indefinidamente.

    Em algum ponto, temos de chegar a uma CausaPrimeira.

    3. Causa Primeira podemos chamar Deus.

    Enquanto declarao de f, esta linha de raciocniopode parecer atraente, mas fracassa se o objectivo forproporcionar um apoio racional crena em Deus.a problema principal este raciocnio ser autocontradi-trio. Parte da afirmao de que tudo tem de ter uma

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  • PROBLEMAS DA FILOSOFIA

    causa, mas depois postula a existncia de algo, Deus,que no tem uma causa. Temos de escolher: acredi-tamos ou no seriamente que tudo tem de ter umacausa? Se acreditamos seriamente que tudo tem de teruma causa, temos de perguntar o que causou Deus, eassim por diante. Por outro lado, se acreditamos quea cadeia causal tem de parar em algum lado, porque no haveremos de dizer que pra no Big Bang?Afinal, o Big Bang o acontecimento mais remoto aque a cincia consegue chegar, e por isso parece umlugar to bom para parar quanto se pode desejar.

    A ideia de que Deus deu origem existncia douniverso como um todo. Existe uma forma de evitarestes problemas. Podemos pensar em Deus no comoapenas outro elemento da cadeia causal, mas como afonte de toda essa cadeia.A cadeia de causas e efeitosocorre dentro do universo - na verdade, o universoconsiste em toda a srie de causas e efeitos observveis,que recua at ao BigBang. Mas agora queremos expli-car toda essa srie - por que razo o universo existe?A cincia, poder-se- dizer, lida apenas com causas eefeitos dentro do universo, e assim nenhuma cinciapoder dizer-nos por que razo o prprio universoexiste. Para isso, precisamos da religio.

    Deste modo, uma forma diferente do argumentopode ser a seguinte:

    1. Tudo o que existe dentro do universo faz partede um vasto sistema de causas e efeitos.

    2. Mas o prprio universo exige uma explicao-por que razo existe?

    3. A nica explicao plausvel a de que Deus acausa do universo. .

    4. Logo, para explicar a existncia do universo, razovel acreditar em Deus.

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    DEUS E A ORIGEM DO UNIVERSO

    Todavia, esta linha de pensamento tem os seus proble-mas. Assemelha-se muito ao Argumento do Desgnio,j que uma tentativa de inferir a causa do universoa partir da existncia do prprio universo. O universoexiste - disso no h dvida - e somos convidadosa inferir qual ter sido a sua causa. Dada a nossa tradi-o religiosa, podemos estar dispostos a dizer que Deustem de o ter originado. Mas tambm aqui as observa-es de Hume so relevantes. Para inferir a causa deuma coisa, precisamos de um certo tipo de informaode fundo. (Para inferir a causa de um relgio, precisa-mos de informao geral sobre o que deu origem existncia dos relgios.) Contudo, no temos o tipo deinformao de fundo relevante sobre universos. Nosabemos o que originou a sua existncia e a pretensode que temos esse conhecimento infundada.

    Algumas pessoas quiseram chamar Deus quiloque originou o universo, seja isso o que for. Mas,mesmo que aceitemos isto, no teremos proporcionadoassim qualquer razo para pensar que Deus a divin-dade omnipotente e benevolente do tesmo tradicio-naLA palavra Deus pode agora (tanto quanto sabe-mos) nomear um ponto incrivelmente denso de massae de energia que precedeu o Big Bang. Quando com-preendemos esta ideia, torna-se claro que no h qual-quer razo para usar a palavra Deus desta forma.Faz-lo s cria confuso.

    O Argumento da Causa Primeira como muitosoutros argumentos filosficos: partimos de uma ideiapromissora - neste caso, de que a criao divina podeexplicar a origem do universo -, mas metemo-nos emproblemas quanto tentamos formul-Ia numa cadeiade raciocnio explcita. Podemos ter agora a tentaode abandonar a ideia inicial, concluindo que, afinal,no era uma boa ideia. Porm, antes de desistirmos,devemos considerar outra linha de pensamento.

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  • PROBLEMAS DA FILOSOFIA

    2.5. A ideia de que Deus um ser necessrio

    Peter van Inwagen um distinto filsofo contem-porneo que se converteu ao cristianismo em adulto,depois de ter desenvolvido um trabalho considervelde primeira categoria em filosofia. Van Inwagen escre-ve que, depois de se ter tornado cristo, o mundo lhepareceu um lugar muito diferente. Sobre o perodo queprecedeu a sua converso, diz-nos o seguinte: Con-sigo recordar-me de ter uma imagem do cosmos, douniverso fsico, como uma coisa auto-subsistente, comoalgo que simplesmente est a e no precisa de expli-cao. Mas agora van Inwagen j no consegue pen-sar no mundo desta maneira:

    Posso ainda trazer a imagem mente (julgo que amesma imagem), e esta ainda representa o mundo intei-ro, mas est agora associada convico sentida de queaquilo que representa no auto-subsistente e tem dedepender de outra coisa, de algo que no est represen-tado por qualquer aspecto da imagem e que tem de ser,de uma forma que a experincia deixa indeterminada, deum tipo radicalmente diferente daquilo que a imagemrepresenta. [...] S consigo representar o mundo para mimprprio como algo dependente.

    Se o universo no auto-subsistente, ento nopode existir por si. Tem de ser sustentado por outracoisa. Mas que tipo de outra coisa poder sustentaro universo inteiro? Tem de ser algo que seja auto-sub-sistente. Deus o candidato bvio para algo que temeste estatuto peculiar. Segundo o pensamento religiosotradicional, Deus auto-suficiente. a causa de tudoo resto, mas ele prprio no tem causa. Existe eterna-mente, sem causa e sem comeo ou fim.

    Que tipo de ser poder ser auto-suficiente? O quepoderia ser a causa de tudo o resto e, no entanto, no

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    DEUS E A ORIGEM DO UNIVERSO

    precisar de causa? Tudo isto parece muito misterioso.Mas, segundo alguns filsofos, h um tipo de ser quepode ter todas estas caractersticas, nomeadamente umser necessrio. Um ser necessrio um ser que, pela suaprpria natureza, no poderia deixar de existir.

    Se aceitarmos esta distino entre a) coisas queexistem, mas cuja existncia depende de outra coisa, eb) coisas que existem necessariamente, ento podemosformular uma verso final do Argumento da CausaPrimeira. Esse argumento o seguinte:

    1. O universo uma coisa dependente. No podeexistir por si; pode existir apenas se for susten-tado por algo que no seja dependente.

    2. Deus, um ser necessrio, a nica coisa que no dependente.

    3. Logo, o universo sustentado por Deus.

    Ser que este argumento nos d uma boa razo paraacreditar que Deus existe? No h dvida de que estrepleto de noes enigmticas. A razo pela qual ouniverso tem de ser dependente enigmtica. Por querazo no poder existir sem ser sustentado por outracoisa? Mas o aspecto mais enigmtico a noo de umser cuja existncia necessria. Como se poder com-preender isto?

    A ideia de Deus como um ser necessrio remontapelo menos a Santo Anselmo (1033-1109), o mongeingls a quem chamam por vezes o pai do escolasti-cismo medieval. Anselmo sugeriu que devemos enten-der Deus como aquele a partir do qual nada maior sepode conceber. Por outras palavras, Deus tem todasas perfeies possveis: perfeito no conhecimento, nopoder, na bondade e em todos os outros aspectosimaginveis. Torn-lo melhor de alguma forma inconcebvel. Alm disso, Anselmo sustentou que isto

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  • PROBLEMAS DA FILOSOFIA

    verdadeiro por definio - tentar imaginar Deus comuma imperfeio como tentar imaginar um solteirocasado ou um tringulo com cinco lados. Podemosseguramente imaginar um ser semelhante a Deus a quemfalta alguma perfeio, mas nesse caso no estare-mos a pensar em Deus. O conceito de Deus o con-ceito de um ser perfeito, tal como o conceito desolteiro o conceito de um homem no casado ou oconceito de tringulo o conceito de uma figura comtrs lados.

    .Mas ~nselmo reparou que algo notvel parece se-gUIr-se disto: se um ser perfeito por definio, entoesse ser tem de existir. Afinal, se no existisse, noseria perfeito. (Os seres que no existem so, pelomenos neste aspecto, inferiores aos seres que existem.)Por esta razo, impossvel que Deus no exista e isto que se entende por um ser necessrio. Um sernecessrio um ser que no poderia deixar de existir.Ns no somos seres necessrios, j que poderamosno ter existido se a histria tivesse corrido de outraforma. Mas Deus diferente. Ele no poderia no terexistido.

    Est~ l~nha de raciocnio conhecida por ArgumentoOntolgico. O Argumento Ontolgico difere do Argu-mento do Desgnio e do Argumento da Causa Primei-ra porque estes ltimos Ocorrem frequentemente apessoas com~ns inteligentes. Qualquer pessoa refle-xrva, ao considerar as maravilhas da natureza e a ori-gem do universo, capaz de se perguntar se a hip-tese. da criao divina no ser necessria para asexplicar. O Argumento Ontolgico, pelo contrrio,po.de

    A

    p~recer um truque de filsofo. Como poder aexistncia de alguma coisa seguir-se da sua simplesdefinio?. No entanto, o Argumento Ontolgico persuadiu

    diversos pensadores. Ren Descartes (1596-1650), que

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    DEUS E A ORIGEM DO UNIVERSO

    voltaremos a encontrar neste livro, e Gottfried WilhelmLeibniz (1646-1716), o cientista filsofo que descobriuo clculo a par de Newton, acreditavam que o Argu-mento Ontolgico era slido. Porm, outros pensaramque no passava de um truque.

    Na poca do prprio Anselmo, um monge chamadoGaunilo sustentou que, se este argumento provava queDeus existia, provava tambm a existncia de uma ilhaperfeita. Vamos supor que I~hndia ? .n~me p~rao nosso conceito de ilha perfeita. Por definio, Ilhan-dia perfeita - no pode ser melhorada. Segue-se,ento, que Ilhndia tem de existir, pois no seria per-feita se no existisse. Pelo mesmo mtodo, podera-mos provar que existe uma banana perfeita ou queexiste um homem perfeito. Mas isto, observou Gau-nilo, absurdo. Logo, o argumento ontolgico nopode ser slido.

    O raciocnio de Gaunilo mostra que o ArgumentoOntolgico errado, mas no explica a natureza doerro. Esta tarefa ficou para Immanuel Kant (1724-1804),que muitos consideram o maior filsofo do pero~omoderno. Kant observou que a perfeio de uma COIsadepende das suas propriedades - a perfeio de ~mailha, por exemplo, depende do seu t~manho~ c~Im~,beleza natural e assim por diante. Porem, a existnciano uma propriedade neste sentido. Se uma tal ilhaexiste ou no a questo de se saber se h ~o mundoalguma coisa que tenha essas propriedades. Destemodo, no podemos provar que a ilha - ou qualqueroutra coisa - existe se nos limitarmos a estipular que perfeita por definio: A ~efir:io de. I~h~di~diz-nos apenas como sena Ilhndia se existisse: naopode dizer-nos se esta ilha existe realmente. Do mes-mo modo, a definio de Deus diz-nos apenas quetipo de ser seria Deus, se existisse. Saber se existe ouno outra questo.

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  • PROBLEMAS DA FILOSOFIA

    Concluso. Toda a actividade de procurar argu-mentos a favor da existncia de Deus pode ser vistacom suspeita. As pessoas raramente acreditam em Deuspor causa de argumentos. Em vez disso, limitam-se aaceitar os ensinamentos da sua cultura ou acreditamdevido a uma convico interna imperiosa. Os argu-mentos parecem irrelevantes.

    Porm, os argumentos no so irrelevantes se que-remos saber no que razovel acreditar. Uma crena razovel apenas se existem provas da sua verdade.Os argumentos que examin mos so as tentativas maismarcantes j realizadas de reunir essas provas. Visamoferecer razes que qualquer pessoa reflexiva devaaceitar. Porm, nenhum destes argumentos bem su-cedido. Todos contm erros e, por isso, tm de serconsiderados um fracasso.

    O facto de estes argumentos fracassarem no signi-fica que Deus no possa existir - significa apenas queestes argumentos particulares no provam que exista.Podem existir outros argumentos, ainda por descobrir,que tenham mais sucesso. Entretanto, a ideia de queDeus criou o universo pode continuar a desempenharum papel importante no pensamento dos crentes reli-giosos. A criao divina pode ser aceite como parte deuma viso gratificante do mundo, ainda que no sejaracionalmente necessria. semelhana de vanInwagen, muitas pessoas reflexivas podem mesmoconsiderar irresistvel esta maneira de pensar. No en-tanto, pelo menos por agora, essas crenas tm de servistas como uma questo de convico interna, e nocomo algo que todas as pessoas razoveis tenham deaceitar. Esta concluso no surpreender as pessoasreligiosas que, em todo o caso, viram sempre as suasconvices como uma questo de f, e no de lgica.

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    3o problema do mal

    A misria o rio do mundo.

    TOM W AITS, Blood Money (2002)

    3.1. Por que razo as pessoas boas sofrem?

    Job era um homem prspero. Possua terras e gadoe tinha uma famlia que inclua dez filhos, aos quaisele era dedicado. Ele era um bom homem, generosopara os seus vizinhos e lder da vida religiosa da suacomunidade. Esta combinao de riqueza e virtudefaziam dele o homem mais admirado da regio. De-pois tudo correu mal. As suas terras foram invadidaspor estrangeiros, que mataram os seus criados e leva-ram a maior parte do seu gado. Um incndio destruiuo resto, deixando-o na pobreza. Pouco depois, umatempestade fez a sua casa desabar, matando todos osseus filhos. De seguida, o prprio [ob contraiu umadoena que o deixou coberto de chagas, to desfigura-do que as pessoas no conseguiam reconhec-lo.

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