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RAQUEL GRELLET PEREIRA BERNARDI CONTRATO DE COMPRA E VENDA COMO TÍTULO PARA A TRANSMISSÃO DA PROPRIEDADE MOBILIÁRIA Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, área de concentração Direito Civil Comparado, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Helena Diniz. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2006

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RAQUEL GRELLET PEREIRA BERNARDI

CONTRATO DE COMPRA E VENDA COMO TÍTULO PARA A TRANSMISSÃO DA PROPRIEDADE MOBILIÁRIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, área de concentração Direito Civil Comparado, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Helena Diniz.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

SÃO PAULO 2006

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Banca Examinadora:

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III

DEDICATÓRIA A meus pais Ismar e Cibele, pela base de toda a

minha formação.

A meus irmãos Simone e Fábio, pela convivência

que, hoje rara em razão da distância, legou

lembranças eternas de bons momentos.

A meu sobrinho Alex, por ter ensinado a pessoas

que pensavam que já sabiam tudo uma nova forma

de amar.

A meus avós Virgínia e Gabriel (in memorian),

Julieta (in memorian) e Lauro, pelos ensinamentos

de toda uma vida.

A Renato, por ser muito mais do que marido, meu

companheiro de todos os momentos.

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IV

AGRADECIMENTOS

À Professora Doutora Maria Helena Diniz, como

pessoa e como professora, pela oportunidade de

convivência e por todos os seus ensinamentos, de

direito e de vida.

Ao Dr. Oswaldo (in memorian) e à Dona Zezé, pela

prova irrefutável, durante a convivência aos sábados

no Instituto Internacional de Direito, de que a família

continua a ser a base de tudo.

Às Faculdades Integradas de Ourinhos, na pessoa

de seu diretor, Professor Doutor José Marta Filho,

pelo incentivo ao aperfeiçoamento de seu corpo

docente.

Ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na

pessoa do então Presidente, Desembargador Sérgio

Augusto Nigro Conceição, pela autorização para a

freqüência às aulas do curso de pós-graduação.

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V

“Já foi dito muito bem que a natureza se repete e que só o

homem inova e se transcende. É a essa atividade inovadora,

capaz de instaurar formas novas de ser e de viver, que

chamamos de espírito. O ponto de partida não é, como se vê,

uma hipótese artificial, mas verificação irrecusável de que o

homem adicionou e continua adicionando algo ao meramente

dado. A natureza de hoje não é a mesma de um, dois, ou três

mil anos atrás, porque o mundo circundante foi adaptado à

feição do homem. O homem, servindo-se das leis naturais,

que são instrumentos ideais, erigiu um segundo mundo sobre

o mundo dado: é o mundo histórico, o mundo cultural, só

possível por ser o homem um ser espiritual, isto é, um ente

livre dotado de poder de síntese, que lhe permite compor

formas novas e estruturas inéditas, reunindo em unidades de

sentido, sempre renovadas e nunca exauríveis, os elementos

particulares e dispersos da experiência”.

(Miguel Reale. Filosofia do Direito. 19ª ed. São Paulo: Saraiva,

2002, p. 205)

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VI

RESUMO

O estudo que segue foi realizado com o objetivo de situar o contrato

de compra e venda como título ou negócio causal para a transmissão da

propriedade mobiliária no Brasil, tendo como fundamento a eficácia obrigacional

conferida ao referido contrato pelo sistema de direito brasileiro.

Partiu-se da análise introdutória e resumida da propriedade,

consideradas a propriedade no direito romano e no direito brasileiro, e estudou-se o

objeto da propriedade a partir da classificação dos bens em imóveis e móveis.

Foram estudados os modos considerados universais para a

aquisição da propriedade mobiliária e a tradição.

Os sistemas de direito estrangeiros de transmissão da propriedade

mobiliária foram abordados sob a ótica do reconhecimento do contrato de compra e

venda exclusivamente como título para a transmissão da propriedade mobiliária,

exigido ainda o modo de aquisição consistente na tradição, ou do reconhecimento

da eficácia translativa da propriedade mobiliária ao próprio contrato de compra e

venda. Foram identificados traços peculiares dos sistemas estrangeiros e analisadas

situações específicas cujas soluções são semelhantes às do sistema brasileiro.

Estudou-se o contrato de compra e venda e a sua eficácia

obrigacional ou real nos sistemas de direito estrangeiros, bem como a eficácia

obrigacional do contrato de compra e venda no sistema de direito brasileiro, com as

conseqüências decorrentes.

A final, foram analisadas situações concretas em que a garantia da

efetividade da prestação jurisdicional decorre da identificação do contrato de compra

e venda como título e da tradição como modo de transmissão da propriedade

mobiliária.

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VII

ABSTRACT

The following study was done with the aim of placing sale contract as

the title that functions as the basis for the passing of personal property in Brazil,

considering the obligational power the Brazilian law system confers to given contract.

It started from an introductory and resumed analysis of property,

considered property in Roman law and property in Brazilian law, and studied the

object of property, considered the classification in real property and personal

property.

It was searched the modus aquisitionis said universal for the

acquisition or the passing of personal property, as well as delivery.

The foreigner law systems for passing of personal property were

analyzed under the consideration of recognizing sale contract exclusively as the title

for the passing of personal property, the modus aquisitionis being also demanded, or

recognizing the power of passing of property to sale contract itself. There were

identified the peculiar characteristics of the foreigner systems and there were

analyzed specific situations in which responses of the foreigner systems are similar

to the Brazilian system responses themselves.

In progression, it was studied the sale contract and its obligational or

real power under the foreigner law systems, such as the obligational power of sale

contract under the Brazilian law system, each one with their own consequences.

Finally, there were analyzed concrete situations in which the

effectiveness of judgement is granted for the identification of sale contract as the title

and of delivery as the modus aquisitionis for the passing of personal property.

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VIII

SUMÁRIO

Prefácio......................................................................................................................XI

Capítulo 1 – Propriedade mobiliária...........................................................................01

1.1 – Patrimônio....................................................................................01

1.2 – Propriedade..................................................................................03

1.2.1 – Propriedade no direito romano.........................................04

1.2.2 – Propriedade no direito brasileiro.......................................07

1.2.2.1 – Definição e caracteres.......................................07

1.2.2.2 – Espécies de propriedade...................................11

1.3 – Propriedade e domínio.................................................................13

1.4 – Coisa e bem.................................................................................15

1.5 – Bens imóveis e bens móveis........................................................17

Capítulo 2 – Modos de aquisição da propriedade mobiliária.....................................26

2.1 – Modos universais de aquisição da propriedade

mobiliária....................................................................................................................27

2.1.1 – Usucapião................................................................27

2.1.2 – Ocupação.................................................................29

2.1.3 – Especificação...........................................................31

2.1.4 – Confusão, comistão e adjunção...............................32

2.1.5 – Casamento...............................................................33

2.1.6 – Sucessão.................................................................34

2.2 – Tradição.........................................................................................35

2.2.1 – Definição e requisitos.......................................................35

2.2.2 – Espécies de tradição........................................................38

2.2.2.1 – Tradição real........................................................39

2.2.2.2 – Tradição simbólica...............................................41

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IX

2.2.2.3 – Tradição ficta........................................................43

2.2.2.3.1 – Constituto possessório......................43

2.2.2.3.2 – Cessão de direito de restituição........46

2.2.2.3.3 – Traditio brevi manu............................47

2.2.2.3.4 – Outras hipóteses de tradição ficta.....48

Capítulo 3 – Sistemas de aquisição da propriedade mobiliária.................................50

3.1 – Sistema romano...........................................................................51

3.2 – Sistema alemão...........................................................................61

3.3 – Sistema francês...........................................................................66

3.4 – Sistema inglês.............................................................................73

3.5 – Sistema brasileiro........................................................................76

3.6 – Paralelo entre direito estrangeiro e o sistema brasileiro..............80

Capítulo 4 – Contrato de compra e venda de bem móvel.........................................88

4.1 – Definição de contrato...................................................................88

4.2 – Requisitos de validade.................................................................90

4.3 – Princípios orientadores................................................................92

4.4 – Definição de contrato de compra e venda...................................93

4.5 – Aperfeiçoamento do contrato de compra e venda de bem

móvel.........................................................................................................................94

Capítulo 5 – Contrato de compra e venda de bem móvel nos sistemas de direito

estrangeiros................................................................................................................99

5.1 – Sistema romano..........................................................................99

5.2 – Sistema alemão.........................................................................107

5.3 – Sistema francês.........................................................................110

5.4 – Sistema inglês...........................................................................114

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X

Capítulo 6 – Contrato de compra e venda de bem móvel no sistema de direito

brasileiro...................................................................................................................127

6.1 – Eficácia e conseqüências .........................................................127

6.2 – Questões específicas decorrentes da eficácia obrigacional do

contrato de compra e venda de bem móvel no direito brasileiro..............................153

6.2.1 – Transmissibilidade da propriedade mobiliária pela

tradição independentemente do pagamento do preço.............................................153

6.2.2 – Intransmissibilidade da propriedade mobiliária mediante

o pagamento do preço em caso de não efetivação da tradição...............................156

6.2.3 – Questões processuais.................................................157

– Conclusões............................................................................................................171

– Bibliografia.............................................................................................................179

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XI

PREFÁCIO

O presente trabalho decorreu da constatação da dificuldade da

aplicação da teoria referente à transmissão da propriedade mobiliária tendo como

título ou negócio jurídico causal o contrato de compra e venda e como modo de

aquisição a tradição.

Trata-se de tema conexo tanto com o direito das obrigações (Livro I

da Parte Especial do Código Civil) quanto com o direito das coisas (Livro III da Parte

Especial do Código Civil). Ao direito das obrigações porque nesse Livro se situa o

contrato de compra e venda, com características específicas quanto ao seu

aperfeiçoamento e à sua eficácia; ao direito das coisas porque o contrato constitui

exclusivamente a causa da transmissão da propriedade mobiliária, exigindo-se

cumulativamente o modo – a tradição, prevista no Livro III – para que a propriedade

mobiliária seja efetivamente transferida do vendedor ao comprador.

O estudo individualizado e estanque do contrato de compra e venda

de bem móvel e dos modos de transmissão da propriedade mobiliária enseja grande

dificuldade para a compreensão conjunta dos institutos e para a sua aplicação

também necessariamente conjunta aos casos concretos.

No dia-a-dia acadêmico, é comum e rotineira a surpresa

manifestada pelos alunos ao serem confrontados com a regra do artigo 481 do

Código Civil, que estabelece que por meio do contrato de compra e venda o

vendedor não transfere a propriedade do bem, mas exclusivamente se obriga a

transferi-la, bem como ao serem informados de que o pagamento do preço não

transmite a propriedade do bem do vendedor ao comprador e de que, por outro lado,

a entrega do bem pelo vendedor ao comprador enseja a transferência da

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XII

propriedade do bem do primeiro ao segundo independentemente do pagamento do

preço.

A mesma surpresa se verifica quando aos acadêmicos é enunciada

a regra do artigo 1226 do Código Civil, que prescreve que os direitos reais sobre

bens móveis constituídos ou transmitidos por atos entre vivos somente são

adquiridos com a tradição, bem como a regra do artigo 1267, também do Código

Civil, que estabelece que a propriedade mobiliária não é transferida pelos negócios

jurídicos antes da tradição.

No dia-a-dia forense, acumulam-se os indeferimentos de petições

iniciais de ações cautelares – pretensamente satisfativas – de busca e apreensão de

bens móveis cuja propriedade foi validamente transferida pelo vendedor ao

comprador por meio da tradição, tendo como negócio jurídico causal o contrato de

compra e venda.

Sob o fundamento de que a propriedade imobiliária foi, durante

séculos, e continua sendo a verdadeira prova de riqueza e o alicerce do poder, a

transmissão da propriedade mobiliária tendo como negócio jurídico causal o contrato

de compra e venda e como modo de aquisição a tradição despertou e ainda

desperta pouco interesse dos juristas e dos profissionais do Direito no Brasil.

Fundamenta-se ainda a ausência de interesse específico pela

transmissão da propriedade mobiliária pela tradição, tendo como causa o contrato de

compra e venda, na constatação de que a circulação de riquezas mediante a

celebração de contratos de compra e venda de bens móveis esteve, durante muito

tempo, restrita às próprias comunidades, onde as regras para a solução dos conflitos

eventualmente decorrentes de seu descumprimento eram ditadas pelos costumes do

lugar.

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A disseminação da informação alterou o panorama atual. A

celebração de contratos por meio eletrônicos e virtuais tornou a negociação entre

estranhos uma constante.

Se, por um lado, essa prática facilitou a circulação de bens e a

transferência de riquezas, por outro lado tornou mais provável o descumprimento

das obrigações pelos contratantes e mais importante o conhecimento técnico-jurídico

visando à solução dos problemas decorrentes.

A determinação do momento do aperfeiçoamento do contrato de

compra e venda de bem móvel e o delineamento de sua eficácia obrigacional geram

conseqüências importantes às hipóteses de descumprimento da obrigação de

pagamento pelo comprador e de descumprimento da obrigação de entrega do bem

móvel pelo vendedor.

Com a finalidade de compilar as teorias a respeito da eficácia do

contrato de compra e venda de bem móvel e as teorias a respeito dos sistemas de

transmissão da propriedade mobiliária, bem como de identificar a teoria aceita no

Brasil a respeito dos temas, o presente trabalho foi desenvolvido na tentativa de

contribuir para o estudo contextualizado da transmissão da propriedade mobiliária

tendo como causa o contrato de compra e venda e como modo a tradição.

Afirmamos a importância do estudo do tema tanto para o leigo, que

tem aplicadas a si conseqüências nem sempre esperadas, em razão do

desconhecimento dos institutos, como para o jurista, a quem incumbe o estudo

aprofundado do direito visando à descoberta de novos caminhos a serem trilhados

na busca de soluções adequadas à incessante evolução das relações sociais.

São Paulo, agosto de 2006.

Raquel Grellet Pereira Bernardi

XIII

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Capítulo 1 – Propriedade mobiliária

1.1 – Patrimônio

De acordo com a teoria clássica ou subjetiva, o patrimônio é a

representação econômica de uma pessoa, e não uma soma de bens considerados

concretamente. Ou seja, o patrimônio é uma universalidade abstrata, integrada pelo

ativo, consubstanciado nos bens e direitos, bem como pelo passivo,

consubstanciado nas obrigações e dívidas. De acordo com a referida teoria, o

patrimônio é uma emanação da personalidade no plano econômico e se conserva

durante toda a vida da pessoa, ainda que os bens sejam substituídos, aumentados

ou diminuídos1. “El sujeto no puede liberarse de su patrimônio; puede enajenar

partes y hasta todos los elementos que lo integran en un momento dado, pero lo que

el adquirente recibe no es el patrimonio del enajenante sino la suma de los derechos

que le correspondían en el momento de efectuarse la transferência”2.

A teoria moderna – também chamada realista ou da afetação – nega

a unidade e a indivisibilidade do patrimônio e justifica a coesão dos elementos

integrantes de uma universalidade de direitos pela sua destinação comum. De

acordo com essa teoria, patrimônio é o conjunto de bens coesos pela afetação a um

fim econômico determinado. Mediante tal definição, admite-se a existência de um

patrimônio geral, em que os elementos se unem pela relação subjetiva com a

pessoa, e de patrimônios especiais, em que a unidade resulta objetivamente do fim

1 C. Aubry e C. Rau. Cours de droit civil français. 6eme ed. Paris: Éditions Techniques S.A., 1935. Tome Neuf, p. 253. 2 Andreas Von Tuhr. Derecho civil. Teoria general del derecho civil aleman. Buenos Aires: Editorial Depalma, 1946. Volumen I1, p. 394.

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ao qual foi destacado.3 “El patrimonio especial puede pertencer a una persona,

aparte su otro patrimonio general, como sucede com los bienes reservados que la

mujer casada tiene junto a la dote aportada al matrimonio, o com los bienes

aportados a una empresa comercial con independencia del patrimonio personal del

que los aporta, y puede pertenecer a una pluralidad de titulares, por lo general em el

concepto de una unión de coproprietarios en ‘mano común’, como sucede con el

patrimonio de una sociedad o com los bienes comunes de la sociedad conyugal”4.

Para Caio Mário da Silva Pereira, o patrimônio, abrangendo o

conjunto das relações jurídicas, é realmente uno e indivisível, “porque em qualquer

circunstância, ainda que se procure teoricamente destacar mais de um acervo ativo-

passivo de valores jurídicos, sempre há de exprimir a noção de patrimônio a idéia de

conjunto, de reunião, e esta, segundo a própria razão natural, é una”5. O doutrinador

também explica que as hipóteses que a teoria moderna pretende sejam entendidas

como de divisibilidade do patrimônio – como os casos de regime de bens da

comunhão parcial e de falência – nada mais são do que acervos de bens distintos

pela sua origem ou pela sua destinação, dentro do mesmo patrimônio, sendo este

uno e indivisível6.

Sílvio de Salvo Venosa corrobora tal afirmação e sustenta que o

patrimônio “perdura unido à pessoa durante toda a sua existência e é uno, ou seja,

3 Orlando Gomes. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1996, p. 178. 4 Paulo Oertmann. Introducción al derecho civil. Buenos Aires: Editorial Labor, sem indicação de data, p. 151. 5 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de direito civil – Introdução ao direito civil. Teoria geral de direito civil. 20ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. Volume I, p. 394-395. 6 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Teoria geral, cit., p. 394-395.

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há um único patrimônio para cada pessoa”7.

Para Silvio Rodrigues, mediante referência a Sylvio M. Marcondes

Machado, “o patrimônio é formado pelo conjunto de relações ativas e passivas, e

esse vínculo entre os direitos e as obrigações do titular, constituído por força de lei,

infunde ao patrimônio o caráter de universalidade de direito”8.

A noção de patrimônio tem relevância, considerado o princípio

segundo o qual o patrimônio do devedor responde pelas suas obrigações, nas quais

se incluem as decorrentes do contrato de compra e venda de bem móvel, título a

partir do qual se estudará a transmissão da propriedade mobiliária.

1.2 – Propriedade

A propriedade tem sido objeto de estudo das mais diversas áreas do

conhecimento humano ao longo dos tempos e não admite um conceito inflexível e

estanque. Afirma Caio Mário da Silva Pereira: “Muito erra o profissional que põe os

olhos no direito positivo e supõe que os lineamentos legais do instituto constituem a

cristalização dos princípios em termos permanentes, ou que o estágio atual da

propriedade é a derradeira, definitiva fase de seu desenvolvimento. Ao revés, evolve

sempre, modifica-se ao sabor das injunções econômicas, políticas, sociais e

religiosas.”9

Embora não exista consenso a respeito das formas originárias da

7Sílvio de Salvo Venosa. Direitos reais. 4ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004. Volume 5, p. 184. 8 Silvio Rodrigues. Direito civil: parte geral. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996. Volume 1, p. 111. 9 Caio Mário da Silva. Direitos reais. 18ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. Volume IV, p. 81.

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propriedade10, admite-se que é do direito romano a origem da propriedade individual

como a conhecemos na atualidade11.

1.2.1 – Propriedade no direito romano

Há discussão quanto à existência de uma propriedade coletiva da

gens sobre um determinado território nas origens de Roma12.

Mas se admite que tenha existido a propriedade privada do

paterfamilias, a qual, com a morte deste, era transmitida aos seus herdeiros, bem

como a propriedade coletiva das terras conquistadas, as quais eram distribuídas

pelo Estado aos particulares ou passavam à propriedade do paterfamilias mediante

a posse continuada durante dois anos13.

São referidas quatro espécies de propriedade: propriedade quiritária,

propriedade pretoriana ou bonitária, propriedade provincial e propriedade peregrina.

A propriedade quiritária14 (ius quiritium) era exclusiva dos cidadãos

10 Vandick L. da Nóbrega discorre a respeito das duas correntes a respeito da origem da propriedade: “Fustel de Coulanges admitia a propriedade individual desde os tempos primitivos, havendo mantido célebre polêmica com Paul Viollet, que defendia a tese da apropriação coletiva do solo” (Compêndio de direito romano. 6ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1971. Volume II, p. 58). 11 Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso de direito civil: direito das coisas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1962. Volume VI, p. 233; Maria Helena Diniz. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 20ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2004. 4º volume, p. 109; Caio Mário da Silva Pereira. Direitos reais, cit., p. 82. 12 Sílvio A. B. Meira afirma que a existência dessa espécie de propriedade não pôde ser demonstrada e que não houve sinais de loteamentos periódicos ou de partilha entre as famílias que compunham a gens (Instituições de direito romano. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1968, p. 216). 13 Ebert Chamoun. Instituições de direito romano. Rio de Janeiro: Edição Revista Forense, 1951, p. 220; Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 216. 14 De acordo com Sílvio A. B. Meira, o antigo direito romano somente admitia essa espécie de propriedade – dominium ex jure Quiritium –, que era protegida por uma ação civil in rem, a reivindicatio. Também conforme o doutrinador, primitivamente a propriedade quiritária era apenas o ager romanus, e foi estendida às terras do Tibur e à costa do Latium pela Lei das XII Tábuas, e posteriormente estendida a toda à Itália por uma série de outras leis (Instituições, cit., p. 215 e 217).

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romanos15 e a única reconhecida pelo ius civile. Aplicava-se apenas às coisas

romanas e somente podia ser transmitida por uma das modalidades admitidas pelos

romanos16.

A propriedade pretoriana ou bonitária teve como origem a permissão

do pretor para que alguém que não tivesse direito reconhecido à propriedade

quiritária conservasse uma determinada coisa no seu patrimônio. Tratando-se de res

mancipi, a propriedade quiritária somente se transferia pela mancipatio ou pela in

iure cessio. Se nenhuma dessas modalidades fosse obedecida na alienação da res

mancipi, a propriedade quiritária não era transferida, ou seja, o adquirente não se

tornava proprietário ex iure Quiritium, embora houvesse pago o preço. Nesse caso, o

pretor reconhecia a validade da alienação feita em desacordo com as formalidades e

o adquirente se tornava proprietário pretoriano17.

Com o tempo, surgiram outras hipóteses de aquisição da

propriedade pretoriana ou bonitária18.

Por meio da posse prolongada e da utilização do instituto da

usucapião, a propriedade pretoriana podia se tornar quiritária, razão pela qual – a

15 Vandick L. da Nóbrega afirma que a propriedade quiritária era excepcionalmente permitida a um peregrino, desde que por um tratado lhe fosse permitido possuir bens romanos (Compêndio, cit., p. 64). 16 Tratando-se de res mancipi, a propriedade quiritária deveria ser transmitida por um dos processos solenes de aquisição, que eram a mancipatio ou a in iure cessio. Tratando-se de res nec manicipi, a simples traditio ensejava a propriedade quiritária. Conferir o item 3.1. 17 Ebert Chamoun leciona que a propriedade pretoriana nasceu da iniciativa do pretor com a finalidade de corrigir a rigidez do ius civile (Instituições, cit., p. 221). 18 A aquisição em bloco do patrimônio do falido; a aquisição da herança por determinação do pretor e não em decorrência da aplicação do ius civile; a aquisição da posse do prédio que ameaçava ruína, garantida pelo pretor ao vizinho ameaçado no caso de o proprietário não prestar a caução exigida; a aquisição do escravo que cometia um crime e cujo senhor se recusava a pagar a multa correspondente (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 222; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 65-66; Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 218).

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propriedade pretoriana – era considerada uma propriedade temporária19.

A propriedade provincial alcançava os bens localizados em solo

itálico e nas províncias, que não eram inicialmente considerados romanos porque se

encontravam fora de seu território delimitado.

Por meio de uma lei agrária do ano de 111 os bens itálicos foram

equiparados aos romanos e considerados, a partir de então, res mancipi, passíveis

de propriedade ex iure Quiritium20.

Os bens provinciais pertenciam ao Estado, mas eram ocupados e

utilizados pelos particulares, que pagavam impostos ao senado nas províncias

senatoriais e ao imperador nas províncias imperiais. A propriedade provincial não

era transmitida pela mancipatio, mas exclusivamente pela traditio.21

A propriedade peregrina era amparada pelo jus gentium e garantida

àqueles que não eram cidadãos romanos22.

Durante a época justinianéia, a propriedade foi unificada para todos

os bens e para todos os cidadãos, em todo o Império Romano23.

19 Enquanto não decorrido o prazo para a usucapião, o bem tinha dois proprietários: o alienante continuava proprietário – quiritário – perante o ius civile, mas conservava apenas o nudum ius Quiritium, que constituía um título desprovido de qualquer utilidade (Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 65); o adquirente – proprietário pretoriano ou bonitário – exercia todos os direitos sobre a coisa, inclusive o de percepção dos frutos, mas não podia aliená-la (Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 218). 20 Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 222. 21 Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 219. 22 O jus civile reconhecia apenas a propriedade quiritária e exclusivamente aos cidadãos romanos. 23 Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 220.

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1.2.2 – Propriedade no direito brasileiro

1.2.2.1 – Definição e caracteres

Clovis Bevilaqua define propriedade como o poder assegurado pelo

grupo social à utilização dos bens da vida psíquica e moral24.

Tito Fulgêncio afirma que propriedade é “o direito que tem uma

pessoa de tirar diretamente de uma coisa toda a sua utilidade jurídica”25.

Orlando Gomes, citando Windscheid, leciona que a propriedade

pode ser conceituada à luz dos critérios sintético, analítico e descritivo. Pelo critério

sintético, propriedade é a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a

uma pessoa. Pelo critério analítico, propriedade é o direito de usar, fruir e dispor de

um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua. E pelo critério descritivo,

propriedade é o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma

coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei26.

Diversas e não consensuais as definições, é consenso que a

propriedade é o direito real por excelência. Daí por que Caio Mário da Silva Pereira

afirma que “a propriedade é o direito subjetivo padrão, dado que confere ao sujeito

toda uma gama de poderes, e encontra na ordem jurídica toda sorte de proteções: a

Constituição Federal o assegura, o Direito Civil o desenvolve, o Direito Processual

oferece as ações defensivas, o Direito Penal pune os atentados contra a

24 Clovis Bevilaqua. Direito das coisas. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1951. 1º volume, p. 116. 25 Tito Fulgêncio. Direitos de vizinhança. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1959, p. 7. 26 Orlando Gomes. Direitos reais. 19ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p. 109.

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propriedade, o Direito Administrativo disciplina vários dos seus aspectos”27.

O legislador brasileiro fez a opção de, em vez de conceituar a

propriedade, descrever de forma analítica os seus elementos constitutivos, ou os

poderes do proprietário (ius utendi, fruendi, abutendi e vindicatio)28.

O direito de uso do bem objeto da propriedade consiste na

possibilidade de o bem ser colocado à disposição do seu titular, que lhe pode retirar

todos os serviços, sem alterar-lhe a substância. Ao titular são facultadas as

possibilidades de utilizar o bem em seu próprio proveito ou em proveito de terceiro,

bem como a possibilidade de não usá-lo, mantendo-o inerte29.

O direito de fruição “consiste em fazer frutificar a coisa e auferir-lhe

os produtos”30, sejam estes os que advêm naturalmente da coisa, como a safra de

laranjas ou a colheita de flores, ou os frutos civis, como o valor dos aluguéis de um

veículo.

O direito de disposição do bem abrange a possibilidade de consumi-

lo, alterá-lo ou transformá-lo em outro bem, assim como abrange a possibilidade de

aliená-lo a qualquer título – como, por exemplo, a partir do título consistente em um

contrato de compra e venda, de permuta ou de doação – e, por fim, até mesmo de

destruí-lo, desde que a destruição não possa ser caracterizada como procedimento

27 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições: direitos reais, cit., p. 115. 28 Código Civil, Art. 1228. “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.” 29 Maria Helena Diniz. Curso: direito das coisas, cit., p. 118. 30 Washington de Barros Monteiro. Curso de direito civil: direito das coisas. 37ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. Volume 3, p. 87.

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anti-social31.

O direito de reivindicação consiste na possibilidade de o proprietário

retomar o bem daquele que injustamente a possua ou detenha. Assim, por exemplo,

pode o proprietário locador pleitear a restituição do veículo ao final do contrato de

locação, bem como pode o proprietário do animal, ao final do contrato de prestação

de serviços e mediante o comprovado pagamento, pleitear a restituição do referido

animal contra o profissional que o detém após o encerramento dos trabalhos de

domesticação.

Adotamos a definição analítica do Código Civil, sob o fundamento de

que as demais definições enfatizam uma ou algumas características do direito de

propriedade, mas não permitem a sua consideração integral. Considera-se que a

multiplicidade e a complexidade dos elementos constitutivos da propriedade

impedem o seu delineamento senão pela sua própria análise, a identificar e definir

cada uma das facetas do direito em questão.

Definido o termo propriedade, consideram-se os seus caracteres de

absoluto, exclusivo e perpétuo.

Por absoluto deve-se entender que o direito de propriedade permite

ao seu titular usar o bem e de dispor dele como o quiser, assim como lhe permite a

sua oposição erga omnes. Deve-se ter em conta que o caráter absoluto há de ser

considerado mediante a utilização do bem de acordo com a sua própria utilidade e

com as limitações que impedem, quanto a todos os institutos, o abuso do direito32.

31 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições: direitos reais, cit., p. 95. Sílvio da Salvo Venosa afirma que o termo abutendi, do direito romano, dá a falsa idéia de abuso, de poder ilimitado, razão pela qual o verbo utilizado pelo Código Civil brasileiro – dispor – é mais adequado (Direitos reais, cit., p. 179-180). 32 Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso: direito das coisas, cit., p. 253.

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A exclusividade da propriedade decorre do princípio de que um bem

não pode pertencer exclusiva e simultaneamente a mais de uma pessoa33. Nesse

sentido, a oponibilidade erga omnes é caracterizada como um atributo do caráter da

exclusividade34.

O condomínio não enseja a desconsideração da característica da

exclusividade, considerando-se que cada condômino ou co-proprietário é,

conjuntamente com os demais, titular do direito de propriedade. O condomínio

implica uma divisão abstrata da propriedade35.

Mas a exclusividade comporta modificações, pois é possível o

desmembramento de parcelas da propriedade e a concessão dessas parcelas a

terceiros. É o que se dá no caso do usufruto, em que o nu proprietário mantém o

domínio e a posse indireta do bem, enquanto o usufrutuário mantém a sua posse

direta36.

Quanto ao caráter de perpetuidade da propriedade, considera-se

que não há prazo para ser exercida37. Ou seja, adquirida a propriedade, esta

subsiste independentemente do seu exercício e, como regra, não pode ser perdida

senão pela vontade do proprietário ou mediante causa extintiva legal38.

33 O condomínio ou a co-propriedade não enseja a desconsideração da característica da exclusividade, considerando-se que cada condômino ou co-proprietário é, conjuntamente com os demais, titular do direito de propriedade. 34 Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso: direito das coisas, cit., p. 254. 35 Almachio Diniz. Direito das cousas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1923, p. 94. 36 Art. 1394 do Código Civil. “O usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos”. 37 Almachio Diniz. Direito das cousas, cit., p. 93. 38 Como se dá nos casos de usucapião e de desapropriação.

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1.2.2.2 – Espécies de propriedade

Reunidos todos os poderes de proprietário em uma única pessoa, a

propriedade é denominada plena. Para que se a reconheça, é preciso que o

proprietário tenha a possibilidade de usar, gozar e dispor da coisa de maneira

absoluta, exclusiva e perpétua, bem como de reivindicá-la de quem quer que

injustamente a detenha.

Mas a propriedade pode ser desmembrada, de forma que alguns

dos poderes que lhe são em princípio inerentes sejam reconhecidos em mãos de

outrem.

Quanto à extensão, a propriedade será limitada nos casos de

constituição de direito real sobre coisa alheia. Instituídos o usufruto, a servidão e a

hipoteca, por exemplo, o nu proprietário, o proprietário do prédio serviente e o

proprietário do imóvel hipotecado têm seus direitos de propriedade restringidos pelos

poderes conferidos aos terceiros mediante a constituição dos ônus referidos.

Além dos casos de direitos reais sobre coisas alheias, também

haverá propriedade limitada no caso de propriedade gravada com cláusula de

inalienabilidade, caso em que o titular da propriedade não poderá dispor livremente

do bem39.

Quanto à duração, o caráter de perpetuidade será afastado nos

casos de propriedade resolúvel, que pode ser definida como a que encontra no seu

próprio título constitutivo a razão de sua extinção40.

39 Maria Helena Diniz. Curso: direito das coisas, cit., p. 125; Silvio Rodrigues. Direito civil: direito das coisas. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. Volume 5, p. 83. 40 Silvio Rodrigues. Direito civil: direito das coisas, cit., p. 83.

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Trata-se de propriedade sujeita a condição resolutiva ou termo final,

já previstos no título que a constituíra e, portanto, passíveis de conhecimento por

terceiros.41 Implementada a condição ou advindo o termo, extingue-se, com efeitos

ex tunc, a propriedade constituída sob tais circunstâncias, bem como, em

conseqüência, todos os direitos reais eventuais constituídos na sua vigência. Ou

seja, extinta a propriedade resolúvel, reconhece-se ao proprietário o direito de

reivindicar o bem de quem quer o detenha42. São hipóteses de propriedade resolúvel

a propriedade do fiduciário, no fideicomisso43, e do comprador, no caso de inclusão

de cláusula especial de retrovenda no contrato de compra e venda de bem imóvel44.

A extinção da propriedade também pode se dar por causa

superveniente à sua aquisição e, portanto, alheia ao título45, com conseqüências

distintas. Porque se presume que terceiros não tenham conhecimento da

possibilidade, a resolução da propriedade se opera a partir do ato que a determinou,

com efeitos ex nunc. Nesse caso, os direitos constituídos anteriormente à resolução

41 Em se tratando de propriedade mobiliária, o título em que consta a cláusula respectiva deverá ser registrado junto ao Ofício de Registro de Títulos e Documentos. 42 Código Civil, Art. 1359. “Resolvida a propriedade pelo implemento da condição ou pelo advento do termo, entendem-se também resolvidos os direitos reais concedidos na sua pendência, e o proprietário, em cujo favor se opera a resolução, pode reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou detenha.” 43 Código Civil, Art. 1951. “Pode o testador instituir herdeiros ou legatários, estabelecendo que, por ocasião de sua morte, a herança ou o legado se transmita ao fiduciário, resolvendo-se o direito deste, por sua morte, a certo tempo ou sob certa condição, em favor de outrem, que se qualifica de fideicomissário.”; Art. 1953 do Código Civil. “O fiduciário tem a propriedade da herança ou legado, mas restrita e resolúvel. Parágrafo único. O fiduciário é obrigado a proceder ao inventário dos bens gravados, e a prestar caução de restituí-los se o exigir o fideicomissário.” 44 Código Civil, Art. 505. “O vendedor de coisa imóvel pode reservar-se o direito de recobrá-la no prazo máximo de decadência de três anos, restituindo o preço recebido e reembolsando as despesas do comprador, inclusive as que, durante o período de resgate, se efetuaram com a sua autorização escrita, ou para a realização de benfeitorias necessárias.” 45 Edson Fachin, atualizador de Orlando Gomes, afirma que a hipótese de extinção da propriedade fundada em causa superveniente à aquisição não constitui caso de propriedade resolúvel (Orlando Gomes. Contratos. 21ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 114).

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da propriedade são válidos e eficazes, o que gera a conclusão de que a transmissão

da propriedade a terceiro de boa-fé é reputada perfeita. É o que se dá na hipótese

de revogação da doação por ingratidão do donatário. Ao doador somente se

reconhece o direito ao próprio objeto da doação se esse bem ainda permanecer na

titularidade do donatário; caso contrário, a revogação ensejará exclusivamente o

direito à indenização pelo valor do bem doado e alienado pelo donatário a terceiro

de boa-fé46.

1.3 – Propriedade e domínio

Maria Helena Diniz leciona sobre o sentido etimológico do termo

propriedade e sobre a utilização dos termos propriedade e domínio no sistema de

direito brasileiro: “Para uns o vocábulo vem do latim proprietas, derivado de proprius,

designando o que pertence a uma pessoa. Assim, a propriedade indicaria, numa

acepção ampla, toda relação jurídica de apropriação de um certo bem corpóreo ou

incorpóreo. Outros entendem que o termo propriedade é oriundo de domare,

significando sujeitar ou dominar, correspondendo à idéia de domus, casa, em que o

senhor da casa se denomina dominus. Logo, domínio seria o poder que se exerce

sobre as coisas que lhe estiverem sujeitas. Percebe-se que, no direito romano, a

palavra dominium tinha um sentido mais restrito do que a propriedade, indicando a

primeira tudo que pertencia ao chefe da casa, mesmo que se tratasse de um

46 Código Civil, Art. 557. “Podem ser revogadas por ingratidão as doações: I - se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele; II - se cometeu contra ele ofensa física; III - se o injuriou gravemente ou o caluniou; IV - se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava”; Art. 563. “A revogação por ingratidão não prejudica os direitos adquiridos por terceiros, nem obriga o donatário a restituir os frutos percebidos antes da citação válida; mas sujeita-o a pagar os posteriores, e, quando não possa restituir em espécie as coisas doadas, a indenizá-la pelo meio termo do seu valor.”

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usufruto, e tendo a segunda uma acepção mais ampla, abrangendo coisas

corpóreas ou incorpóreas. Apesar da distinção que há entre esses dois termos,

emprega-se, comumente, tanto o vocábulo propriedade como domínio para designar

a mesma coisa, uma vez que entre eles não há diferença de conteúdo”47.

De Plácido e Silva define propriedade e domínio respectivamente

como gênero e espécie: “Propriedade é o gênero – que compreende o domínio

como espécie –, abrangendo toda sorte de dominialidades, de dominação ou de

senhoria individual sobre coisas corpóreas ou incorpóreas. É o conjunto de direitos

reais e pessoais. Domínio, no entanto, compreende somente os direitos reais, ou

seja, o direito de propriedade encarado somente em relação às coisas materiais ou

corpóreas.”48

Também ressaltando as concepções de gênero e espécie,

Washington de Barros Monteiro destaca duas acepções do direito de propriedade:

“Num sentido amplo, este recai tanto sobre coisas corpóreas como incorpóreas.

Quando recai exclusivamente sobe coisas corpóreas tem a denominação peculiar de

domínio. A noção de propriedade mostra-se, destarte, mais ampla e mais

compreensiva do que a de domínio. Aquela representa o gênero de que este vem

ser a espécie.”49

Para Lafayette Rodrigues Pereira, o direito de propriedade, em

sentido genérico, abrange todos os direitos que podem ser reduzidos a valor

pecuniário, e que em sentido estrito tem por objeto direto ou imediato as coisas

corpóreas. Afirma que na última acepção se o reconhece como domínio, definido

47 Maria Helena Diniz. Curso: direito das coisas, cit., p. 116. 48 De Plácido e Silva. Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1984. Volume I, p. 123. 49 Washington de Barros Monteiro. Curso: direito das coisas, cit., p. 83.

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este como “o direito real que vincula e legalmente submete ao poder absoluto de

nossa vontade a coisa corpórea, na substância, acidente e acessórios”50.

João Franzen de Lima afirma que, embora propriedade e domínio

possam exprimir a mesma idéia, não se pode afirmar tenham o mesmo significado.

“(Q)uando se fala em domínio está-se referindo, de modo geral, aos direitos reais, e

quando se fala em propriedade, refere-se ao conjunto de todos os direitos que a

pessoa exerce sobre as coisas corpóreas e ainda sobre as incorpóreas”51.

Considerado o consenso dos doutrinadores quanto à afirmação de

que o termo propriedade se refere tanto a bens corpóreos quanto a bens

incorpóreos, enquanto o termo domínio se refere apenas a bens corpóreos, e tendo

em conta o objetivo do presente trabalho, de estudo da transmissão da propriedade

de bens móveis corpóreos, os termos propriedade e domínio são utilizados como

sinônimos.

1.4 – Coisa e bem

A definição de coisa e de bem enseja ampla discussão entre os

doutrinadores brasileiros, não se podendo afirmar a existência de um consenso a

respeito da definição e da classificação dos termos considerados entre si.

Clóvis Bevilaqua afirma a distinção dos termos, mediante a definição

de bens como “valores materiais ou imateriais que servem de objeto a uma relação

jurídica”. E “(a) palavra coisa, ainda que, sob certas relações, corresponda, na

50 Lafayette Rodrigues Pereira. Direito das coisas, 6ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1956, p. 78. 51 João Franzen de Lima. Curso de direito civil brasileiro: contratos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1961. Volume II. Tomo 2º, p. 88.

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técnica jurídica, ao termo bem, todavia dele se distingue. Há bens jurídicos, que não

são coisas: a liberdade, a honra, a vida, por exemplo”52.

Afirma Sílvio Rodrigues que coisa é o gênero do qual bem é espécie,

sendo que a diferença específica está na circunstância de o bem incluir na sua

compreensão a idéia de utilidade e raridade, ou seja, a idéia de possuir valor

econômico, o que não acontece com a coisa, que pode ser conceituada como tudo o

que existe objetivamente53.

Renan Lotufo afirma, diversamente, que “(b)em é gênero do qual

coisa é espécie”, sendo que “as coisas são materiais, têm concretude, enquanto ao

bem é reservada uma idéia mais ampla de objeto da relação jurídica, para designar

também o imaterial, o abstrato”54. E adverte que o termo “(b)ens muitas vezes é

utilizado como sinônimo de coisas, mas a palavra bens tem sentido mais amplo, pois

refere-se tanto a coisas como a direitos, e pode chegar a ter o sentido de

patrimônio”55.

Caio Mário da Silva Pereira distingue os termos coisas e bens

considerando a materialidade das coisas: “As coisas são materiais ou concretas,

enquanto que se reserva para designar os imateriais ou abstratos o nome bens, em

sentido estrito. Uma casa, um animal de tração são coisas porque concretizados

cada um em uma unidade material e objetiva, distinta de qualquer outra. Um direito

de crédito, uma faculdade, embora defensável ou protegível pelos remédios jurídicos

52 Clovis Bevilaqua. Teoria geral do direito civil. 7ª ed. Rio de Janeiro: Editora Paulo de Azevedo, 1955, p. 152. 53 Silvio Rodrigues. Direito civil: parte geral, cit., p. 110. 54 Renan Lotufo. Código Civil comentado: parte geral. São Paulo: Editora Saraiva, 2003. Volume 1, p. 197 e 200. 55 Renan Lotufo. Código Civil: parte geral, cit., p. 200.

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postos à disposição do sujeito em caso de lesão, diz-se com maior precisão, ser um

bem. Sob o aspecto de sua materialidade é que se faz a distinção entre a coisa e o

bem.”56

Washington de Barros Monteiro cita Scuto para referir a

equivocidade dos dois conceitos: “O conceito de coisas corresponde ao de bens,

mas nem sempre há perfeita sincronização entre as duas expressões. Às vezes,

coisas são o gênero e bens, a espécie; outras, estes são o gênero e aquelas, a

espécie; outras, finalmente, são os dois termos usados como sinônimos, havendo

então entre eles coincidência de significação.”57

Ainda de acordo com Washington de Barros Monteiro, a palavra

coisa pode ser entendida, no sentido vulgar ou genérico, como tudo o que existe fora

ou além do homem e, no sentido jurídico, como tudo quanto seja suscetível de

posse exclusiva pelo homem e economicamente apreciável58.

Para os fins do presente trabalho, os termos bens e coisas são

utilizados como sinônimos.

1.5 – Bens imóveis e bens móveis

A classificação dos bens em imóveis e móveis não é consenso entre

os estudiosos do direito romano.

O estudo dos bens no direito romano deve ter como ponto de partida

56 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Teoria geral, cit., p. 401-402. 57 Carmelo Scuto. Instituzioni di diritto privato: Parte generale, volume 1, p. 291 APUD Washington de Barros Monteiro. Curso: parte geral, cit., p. 168. 58 Washington de Barros Monteiro. Curso: parte geral, cit., p. 169.

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a distinção entre res mancipi e res nec manicipi. Pode-se dizer que res mancipi são

as coisas do mancipium, enquanto res nec mancipi são as coisas que não são do

mancipium59.

O critério para a classificação não levava em conta a circunstância

de a coisa ser imóvel ou móvel, mas sim a sua utilidade60. Consideravam-se res

mancipi os bens que eram indispensáveis à manutenção da família e tinham valor

para a organização agrícola da Roma antiga, como os imóveis itálicos, as servidões

de passagem e de aqueduto, os animais de tiro e de carga e os instrumentos de

cultivo e transporte. Todos os demais bens eram res nec mancipi,

independentemente de serem móveis ou móveis, como o dinheiro, o gado pequeno

e os imóveis provinciais61.

As res mancipi obedeciam a uma disciplina própria, especialmente

para fins de alienação, que se dava somente mediante a mancipatio, diversamente

das res nec mancipi, cuja alienação se dava pela traditio, modo mais simples e

rápido (conferir 2.1).

A evolução de Roma, com as conquistas de novos territórios,

ensejou o desenvolvimento da economia individual e capitalista62, que passou a

atribuir maior valor aos bens imóveis, que geravam maior garantia de estabilidade.

No lugar da distinção entre res mancipi e res nec manicipi63, desenvolveu-se a

divisão entre bens imóveis e móveis, classificados como imóveis os terrenos e os

59 Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 25. 60 Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 142. 61 Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 204; Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 141-142. O segundo doutrinador inclui entre as res mancipi os escravos. 62 Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 205. 63 A distinção foi abolida completamente por Justiniano.

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edifícios e como móveis todos os demais bens64.

Conforme Roberto de Ruggiero, embora a classificação dos bens em

imóveis e móveis tenha sido delineada em Roma nos períodos pós-clássico e

justiniano, o seu valor decisivo somente foi reconhecido por influência do direito

medieval e especialmente do direito feudal, em razão da atribuição de importância

absolutamente preponderante à propriedade fundiária, como elemento essencial da

riqueza e modo de conquista de poderes senhoriais, o que ensejou à propriedade

mobiliária uma posição secundária, justificada pelas condições econômicas da

sociedade da época em que, ainda não desenvolvidas as indústrias e sendo limitada

a produção de metais preciosos, as grandes riquezas não podiam, como regra, ser

constituídas por valores mobiliários65.

San Tiago Dantas fundamenta a razão pela qual a propriedade

imobiliária teve e continua a ter tratamento diferenciado nos diversos sistemas de

direito: “Não é porque as coisas móveis sejam menos preciosas que as imóveis, pois

considerado o seu valor pecuniário, móveis há de mais alto preço que os mais

valiosos imóveis. Porém, o direito atende, nesse caso, à estabilidade da fortuna

imobiliária. É que os bens imóveis não desaparecem, constituem um fundo estável

do patrimônio, são mais fáceis de fiscalizar e tutelar. Não se poderia, por exemplo,

pensar, com êxito, num registro para propriedade móvel e, quando, por exemplo,

estamos tratando de bens de órgãos, de bens de pessoas que não podem defender

por si próprias o seu patrimônio, o natural é que pensemos em lhes imobilizar a

fortuna, para pô-la ao abrigo das dilapidações. De sorte que o regime da

64 De acordo com Ebert Chamoun, foi criada uma categoria própria para os escravos e os animais, classificados como res se moventes (Instituições, cit., p. 205). 65 Roberto de Ruggiero. Instituições de direito civil. Campinas: Bookseller, 2005. Volume II, p. 426.

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propriedade imobiliária não pode deixar de ser cercado de tutela especial, de

recursos defensivos que dão a estes bens uma situação à parte no quadro das

coisas”66.

Os bens imóveis podem ser classificados em quatro categorias: os

imóveis por natureza, os imóveis por acessão física, industrial ou artificial, os imóveis

por acessão intelectual e os imóveis por determinação legal.

Primordialmente, apenas o solo poderia ser classificado como bem

imóvel por natureza, já que a sua conversão em móvel somente seria possível

mediante a modificação de sua substância. Mas o legislador ampliou o conceito e

incluiu os acessórios e as adjacências naturais, as árvores, os frutos pendentes, o

espaço aéreo e o subsolo67.

As árvores e tudo o mais que adere ao terreno somente

permanecem imóveis porque normalmente se lhe ligam, e é exatamente essa

normalidade que se considera para fins da classificação estendida da forma como é

reconhecida68.

Quanto ao subsolo, embora seja classificado como bem imóvel

passível de propriedade privada, recebe tratamento especial e a sua exploração

depende de autorização da União, já que as riquezas minerais nele encontradas são

66 San Tiago Dantas. Programa de direito civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001. Volume I, p. 187. José Cretella Júnior afirma que a classificação romana dos bens em res mancipi e res nec mancipi tinha critério econômico, bem como que no direito brasileiro antigo também se fazia uma distinção fundada no mesmo critério econômico, mas entre os bens imóveis, mais valiosos, e os bem móveis, menos valiosos (Curso de direito romano. 24ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 110). 67 Maria Helena Diniz. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral do direito civil. 21ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2004. 1º volume, p. 300. 68 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições. Teoria Geral, cit., p. 416.

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de propriedade desta69.

Os imóveis por acessão física compreendem tudo o quanto se

incorpora permanentemente ao solo, de modo que não se possa retirar sem

destruição, modificação, fratura ou dano. A acessão pode se dar independentemente

do consentimento ou intervenção de pessoas, como ocorre nos casos do artigo

1.248, incisos I a IV, do Código Civil 70, ou mediante a intervenção humana, no caso

do inciso V do mesmo dispositivo legal71. Não são incluídas nessa classe de bens as

construções ligeiras, estas consideradas aquelas que se destinam a posterior

remoção ou retirada, como as barracas de feira, os pavilhões de circos e os parques

de diversões, que são presos ao chão por estacas, mas que para a própria

continuidade de sua utilização normal devem ser retirados e conduzidos para outro

local72.

Os imóveis por acessão intelectual são os bens móveis mantidos

pelo proprietário, de forma duradoura e intencional, na exploração industrial, no

aformoseamento ou na comodidade do imóvel. Diversamente do que se dá na

69 Constituição Federal, “Artigo 20: São bens da União: (...) IX - os recursos minerais, inclusive os do subsolo. Artigo 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. § 1º. A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa da fronteira ou terras indígenas. § 2º. É assegurada participação ao proprietário do solo nos resultados da lavra, na forma e no valor que dispuser a lei. § 3º. A autorização de pesquisa será sempre por prazo determinado, e as autorizações e concessões previstas neste artigo não poderão ser cedidas ou transferidas, total ou parcialmente, sem prévia anuência do poder concedente. § 4º. Não dependerá de autorização ou concessão o aproveitamento do potencial de energia renovável de capacidade reduzida”. 70 Código Civil, Artigo 1.248. “A acessão pode dar-se: I - por formação de ilhas; II - por aluvião; III - por avulsão; IV - por abandono de álveo; (...)”. 71 Código Civil, Artigo 1.248 “A acessão pode dar-se: “V - por plantações ou construções”. 72 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições. Teoria geral, cit., p. 416-7.

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acessão física, no caso da acessão intelectual não se dá uma adesão material do

bem móvel ao imóvel, mas sim o estabelecimento de um vínculo meramente

subjetivo. Ainda, porque a consideração de um bem móvel como bem imóvel ocorre

como um artifício da mente humana, o caráter imóvel não é definitivo, ou seja, a

mesma vontade humana que considerou o bem móvel como imóvel pode retorná-lo

a todo tempo à sua mobilidade natural.

Enquanto Serpa Lopes afirma que, para que se dê a acessão

intelectual, é preciso que se trate de coisa móvel de propriedade do proprietário do

imóvel73, Caio Mário da Silva Pereira afirma que tal premissa não se aplica ao direito

brasileiro, verificando-se a acessão mesmo quando os proprietários são diferentes,

hipótese em que se opera a perda da propriedade móvel em favor do proprietário do

imóvel, com direito a indenização pelo valor da coisa móvel imobilizada sempre que

o responsável pela imobilização estiver de boa-fé e sem nenhum direito em caso

contrário74.

Por fim, são imóveis por determinação legal os direitos reais sobre

imóveis (usufruto, uso, habitação, enfiteuse, anticrese e servidão predial) e as ações

que os asseguram, bem como o direito à sucessão aberta, ainda que a herança seja

formada exclusivamente por bens móveis.

Quanto aos bens móveis, são classificados em três categorias: os

móveis por natureza, os móveis para os efeitos legais – ou por determinação legal –

e os móveis por antecipação.

Os bens móveis por natureza são definidos pelo artigo 82 do Código

73 Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso de direito civil: parte geral. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1962. Volume I, p. 361-2. 74 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições. Teoria geral, cit., p. 418.

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Civil: “São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por

força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social”.

Entre os bens móveis por natureza, os bens móveis propriamente

ditos são as coisas inanimadas que podem ser removidas por força alheia sem a

alteração de sua substância e de sua destinação econômico-social75.

A possibilidade de remoção por força alheia sem alteração da

destinação econômico-social do bem móvel enseja a classificação, como móvel,

de uma casa pré-fabricada, enquanto à mostra para comercialização e

mesmo durante o seu transporte até o local em que será adaptada na fundação

construída pelo adquirente. Apenas após o assentamento adquirirá natureza de

imóvel, pois somente então passará a ter nova destinação econômico-social, a

habitação76.

Também são classificados como bens móveis por natureza os

animais, como semoventes, ou seja, bens que se movem de um local para outro por

movimentos próprios.

O artigo 83 do Código Civil trata dos bens móveis para os efeitos

legais – ou por determinação legal – ao referir “I - as energias que tenham valor

econômico; II - os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes;

III - os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações”.

Quanto às energias que tenham valor econômico, a sua

75 Os navios e aeronaves são bens móveis por natureza, mas podem ser imobilizados para fins de hipoteca, que é direito real de garantia sobre imóveis (artigo 1473, incisos VI e VII, do Código Civil). O parágrafo único do dispositivo legal remete a regulamentação da matéria a lei especial, que, no caso da hipoteca de aeronaves, é o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7565/86), artigos 138 a 147. 76 Renan Lotufo. Código Civil: parte geral, cit., p. 217.

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classificação como bem móvel constituiu inovação do Código Civil de 200277,

embora desde 1940 exista manifestação da Comissão elaboradora do Código Penal

equiparando-a a coisa móvel para os fins da previsão do artigo 155, parágrafo 3º, do

Código Penal78. De acordo com o texto, “(t)oda energia economicamente utilizável e

suscetível de incidir no poder de disposição material e exclusiva e um indivíduo,

pode ser incluída, mesmo do ponto de vista técnico, entre as coisas móveis, a cuja

regulamentação jurídica, portanto, deve ficar sujeita”79.

Os direitos reais sobre objetos móveis (inciso II) abrangem tanto os

direitos reais sobre coisa própria (como a propriedade) e alheia (como o usufruto),

como os direitos reais de garantia (como o penhor e a hipoteca), além das ações

correspondentes a tais direitos.

Entre os direitos pessoais de caráter patrimonial (inciso III)80, estão

as quotas de capital ou ações que o indivíduo tenha em sociedade de qualquer

natureza (simples, em nome coletivo ou por quotas de responsabilidade limitada, em

comandita, anônima ou cooperativa), os títulos patrimoniais de associações e os

títulos de crédito81.

São também bens móveis para os efeitos legais (ou por

77 O Código Civil de 2002 excluiu da previsão da classificação dos bens móveis por determinação legal os direitos de autor, que foram regulamentados pela Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. 78 “Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico”. 79 Francisco Campos. Exposição de motivos da Parte Especial do Código Penal, DJU de 31 de dezembro de 1940. 80 Caio Mário da Silva Pereira sustenta que o termo direitos pessoais constitui terminologia superada e inadequada, e que o termo correto a ser utilizado pelo Código Civil seria direitos de crédito de caráter patrimonial (Instituições. Teoria geral, cit., p. 425). 81 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições. Teoria geral, cit., p. 425.

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determinação legal) os direitos autorais (artigo 3º da Lei n.º 9.610/9882) e os direitos

decorrentes da propriedade industrial (artigo 5º da Lei n.º 9.279/9683).

Para os fins do presente trabalho, são considerados exclusivamente

os bens móveis por natureza.

82 Art. 3º. “Os direitos autorais reputam-se, para os efeitos legais, bens móveis”. 83 Art. 5º. “Consideram-se bens móveis, para os efeitos legais, os direitos de propriedade industrial”.

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Capítulo 2 – Modos de aquisição da propriedade mobiliária

Os modos de aquisição da propriedade mobiliária, à exceção da

tradição, não ensejam grandes controvérsias nos diversos sistemas de direito. Como

regra geral, são reconhecidos a partir do direito romano e apresentam a mesma

definição e as mesmas características fundamentais.

Para fins de apresentação84 como segue, serão considerados

inicialmente os modos de aquisição da propriedade mobiliária reconhecidos pelo

84 A classificação considerada principal quanto aos modos de aquisição da propriedade mobiliária os diferencia entre modos de aquisição da propriedade móvel originários e derivados. Essa distinção tem por fundamento a existência ou inexistência de relação entre os sujeitos de direito precedente e conseqüente (Orlando Gomes. Direitos reais, cit., p. 161). Darcy Bessone afirma que a aquisição é considerada originária nos casos em que o adquirente é o primeiro proprietário, ou seja, nos casos em que o direito de propriedade nasce da primeira aquisição (Darcy Bessone. Direitos reais. 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1996, p. 164). Carlos Alberto da Mota Pinto define a aquisição originária como o fato jurídico que faz surgir, na pessoa do adquirente, um direito de propriedade ex novo, independentemente de ter existido domínio anterior sobre a coisa ou apesar de ter existido esse domínio (Carlos Alberto da Mota Pinto. Teoria geral do direito civil. 3ª ed. Lisboa: Coimbra Editora, 1985, p. 360.). Miguel Maria de Serpa Lopes define a aquisição originária como aquela que surge “no titular do domínio sem que para ela tenha concorrido qualquer outro fator de transmissão que não o próprio fato considerado legalmente como apto a transmitir o domínio. Na aquisição originária, o domínio nasce, por assim dizer, sem qualquer relação de paternidade, sem qualquer vínculo de parentesco com o passado” (Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso: direito das coisas, cit., p. 506). Maria Helena Diniz acrescenta que na aquisição originária não existe qualquer ato volitivo de transmissão da propriedade (Maria Helena Diniz. Curso: direito das coisas, cit., p. 304). Por sua vez, diz-se que a aquisição é derivada nos casos em que o direito deriva de um proprietário anterior. Considera-se a coisa em função de seu dono atual, ou seja, tem-se em conta a titularidade do domínio em relação a outra pessoa que já era proprietária dessa mesma coisa e que transmitiu a propriedade ao adquirente então considerado (Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Direitos reais, cit., p. 116). No Brasil, são considerados modos de aquisição da propriedade mobiliária originários a usucapião, com a consignação da posição divergente de Caio Mário da Silva Pereira (conferir nota 86), e a ocupação. E são considerados modos de aquisição da propriedade mobiliária derivados a especificação, a confusão, a comistão e a adjunção, o casamento, a sucessão e a tradição. Além da classificação dos modos de aquisição da propriedade mobiliária em originários e derivados, há diversas outras classificações, como a que leva em conta a distinção dos bens, classificados em modos de aquisição peculiares aos bens móveis, peculiares aos bens imóveis e comuns aos bens móveis e imóveis; a que leva em conta a individualização dos bens, classificados em modos de aquisição a título singular e a título universal; e a que leva em consideração as circunstâncias da transmissão, classificados em modos aquisição inter vivos e causa mortis. A respeito das diversas classificações, conferir: Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1956, p. 25-294. Tomo XV; Orlando Gomes. Direitos Reais, cit., p. 159-162; Maria Helena Diniz. Curso – Direito das Coisas, cit., p. 132-133; Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Direitos Reais, cit., p. 115-119; Silvio Rodrigues. Direito Civil: Direito das Coisas, cit., p. 92-93.

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sistema de direito brasileiro e pelos sistemas de direito estrangeiros85, com as

referências legislativas pertinentes ao sistema nacional.

A tradição será estudada à parte, por se tratar de modo de aquisição

exigido por alguns sistemas de direito e rejeitado por outros, o que a converte no

grande diferencial a ser considerado para fins de aquisição da propriedade

mobiliária.

2.1 – Modos universais de aquisição da propriedade mobiliária

2.1.1 – Usucapião

Usucapião86 é “a aquisição da propriedade ou outro direito real pelo

decurso do tempo estabelecido e com a observância dos requisitos instituídos em

lei”87. O fundamento do instituto consiste em “emprestar juridicidade a situações de

fato que se alongaram no tempo”88.

São requisitos da usucapião a posse e o tempo.

85 Por sistemas de direito estrangeiros devem ser entendidos os sistemas de direito vigentes alemão, francês e inglês, além do sistema romano. 86 A título de consignação, quanto à classificação dos modos de aquisição da propriedade mobiliária originários e derivados, Caio Mário da Silva Pereira diverge da grande maioria dos doutrinadores brasileiros e afirma que a usucapião constitui modo de aquisição derivada da propriedade, “porque é modalidade aquisitiva que pressupõe a perda do domínio por outrem, em benefício do usucapiente”, ou seja, considerada “a circunstância de ser a aquisição por usucapião relacionada com outra pessoa que já era proprietária da mesma coisa, e que perde a titularidade da relação jurídica dominial em proveito do adquirente, conclui-se ser ele uma forma de aquisição derivada” (Instituições – Direitos reais, cit., p. 138). Mas o doutrinador faz a ressalva de que não há dúvida de que falta ao instituto a circunstância da transmissão voluntária, que está presente ordinariamente nos modos de aquisição derivada. Essa posição não encontra ressonância na parcela majoritária dos doutrinadores brasileiros, que classifica a usucapião como modo originário de aquisição da propriedade. A respeito: Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso: direito das coisas, cit., p. 506; Maria Helena Diniz. Curso: direito das coisas, cit., p. 132); Silvio Rodrigues. Direito Civil:direito das coisas, cit., p. 93. 87 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Direitos reais, cit., p. 138. 88 Silvio Rodrigues. Direito civil: direito das coisas, cit., p. 193.

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Quanto à posse, não se exige seja exercida durante todo o período

pela mesma pessoa, mas, para ser considerada ad usucapionem, há de ser

contínua, pacífica e incontestada durante todo o período estipulado. Ou seja, exige-

se que essas características sejam reconhecidas em relação a cada um dos

possuidores e a cada um dos períodos a serem considerados. Por fim, a posse há

de ser exercida com a intenção de dono.

Por sua vez, o tempo necessário para usucapir configura problema

de política legislativa, que se resolve de forma distinta nos diversos sistemas

jurídicos e pode inclusive variar com o tempo no mesmo sistema jurídico89.

No sistema brasileiro, quanto aos bens móveis, configura-se a

usucapião ordinária no caso de posse com animus domini, ininterrupta e sem

oposição, durante três anos, exigidos ainda, nesse caso, o justo titulo e a boa-fé90. E

se verifica a usucapião extraordinária no caso de posse com animus domini,

ininterrupta e sem oposição, durante cinco anos, no último caso independentemente

do justo título e da boa-fé91.

Por fim, é preciso que o bem a ser considerado seja suscetível de

aquisição por usucapião, o que exclui da incidência do instituto os bens que estão

fora do comércio pela sua própria natureza e os bens públicos92.

89 Quanto aos bens imóveis, conferir os artigos 550 e 551 do Código Civil de 1.916 e os artigos 1238 e 1242 do Código Civil de 2002. 90 Artigo 1260 do Código Civil. 91 Artigo 1261 do Código Civil. 92 Artigo 183, parágrafo 3º, da Constituição Federal.

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2.1.2 – Ocupação

A ocupação93 é “o ato pelo qual alguém se apodera de coisa móvel

ou semovente, sem dono, por não ter sido ainda apropriada, ou por ter sido

abandonada, não sendo essa apropriação defesa por lei”94. Constitui modo originário

de aquisição de bem móvel, que consiste na tomada de posse de coisa sem dono,

com a intenção de tornar-se seu proprietário. Ocupar significa assenhorear-se de

coisa sem dono, ou porque nunca foi apropriada (res nullius) ou porque foi

abandonada por seu proprietário (res derelicta)95.

A ocupação apresenta três formas distintas.

A primeira delas é a ocupação propriamente dita, que tem por objeto

seres vivos – por meio da caça e da pesca, disciplinadas por leis especiais, como a

Lei n.º 5.197/67 (Proteção à fauna) e o Decreto-lei n.º 221/67 (Proteção à pesca) –

e coisas inanimadas.

A ocupação pela caça96 se efetiva pela apreensão do animal

abatido. Para que o caçador adquira a propriedade do animal, é preciso que tenha

obtido do proprietário do terreno o consentimento para caçar. Inexistente a

autorização, a propriedade do animal caçado será do proprietário do terreno e o

caçador ainda terá de indenizá-lo pelos eventuais danos causados.

93 Código Civil, Art. 1263. “Quem se assenhorear de coisa sem dono para logo lhe adquire a propriedade, não sendo essa ocupação defesa por lei”. 94 Clovis Bevilaqua. Direito das coisas, cit., p. 207. 95 Orlando Gomes. Direitos reais, cit., p. 200. 96 Eduardo Espínola afirma que o direito de caçar caracteriza direito subjetivo público, sujeito a regulamentação especial. Sob esse aspecto, o estudo do direito à caça pertence ao ramo do Direito Administrativo (Posse, propriedade, compropriedade ou condomínio, direitos autorais. Campinas: Bookseller, 2002, p. 186).

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Quanto à pesca, pertence ao pescador o peixe que pescar, mas

desde que tenha a autorização do proprietário das águas em que realiza a pesca,

sob pena de perder, assim como na caça não autorizada, ao proprietário das águas

o que pescar e ainda ficar obrigado a lhe ressarcir eventuais danos.

As coisas abandonadas também são suscetíveis de apropriação,

mediante a consignação de que coisa abandonada não se confunde com coisa

perdida97.

O abandono, no mais das vezes, resulta das circunstâncias que o

induzem. “Não se requer, na caracterização do abandono, uma declaração expressa

do dono. Basta que o propósito se infira inequívoco do seu comportamento em

relação à coisa, como as que são deixadas em locais públicos, em terrenos baldios,

e mesmo em lugares policiados ou fechados”98.

Por fim, a terceira forma de ocupação é a achada, que caracteriza

espécie de ocupação incidente no tesouro99. Tesouro é o depósito antigo de moeda

ou coisas preciosas, enterrado ou oculto, de cujo dono não se tenha memória. O

97 A descoberta, prevista nos artigos 1.233 a 1.237 do Código Civil, é o achado de coisa que foi perdida por seu dono. O Código Civil de 1.916 lhe atribuía a denominação invenção e seu regramento constava de subtítulo da seção da ocupação. O Código Civil de 2002 passou a regular a descoberta em seção própria, no capítulo da propriedade em geral. Não se trata, de fato, propriamente de modo de aquisição da propriedade móvel, porque o descobridor, de regra, não adquire a propriedade do bem encontrado, mas sim deve devolvê-lo a seu proprietário ou possuidor e, caso não o encontre, deve entregá-lo à autoridade competente. Encontrado o proprietário da coisa, o descobridor tem direito a uma recompensa, denominada achádego, acrescida dos valores gastos com a conservação – e o transporte, se o caso – da coisa. O proprietário fica obrigado ao pagamento desses valores, mas pode exonerar-se dessa obrigação mediante o abandono da coisa. Nesse caso, o descobridor lhe adquire a propriedade. Não encontrado o proprietário e decorridos sessenta dias da publicação de editais, pela autoridade competente, informando a descoberta, a coisa deverá ser vendida em hasta pública e, deduzidas as despesas com os atos praticados e a recompensa do descobridor, o valor restante pertencerá ao Município onde foi descoberto. Tratando-se de objeto de pequeno valor, o Município poderá abandonar a coisa em favor de quem a achou. Essa é a segunda e última hipótese em que o descobridor se torna proprietário da coisa descoberta, com a ressalva de que nas duas situações houve o abandono da coisa pelo proprietário (no primeiro caso o proprietário primitivo e no segundo caso o Município que lhe adquirira a propriedade). 98 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Direitos reais, cit., p. 160. 99 Artigos 1264 a 1266 do Código Civil.

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tesouro achado pelo proprietário do terreno, intencional ou casualmente, pertence-

lhe com exclusividade. O tesouro encontrado por quem o procure mediante ordem

do proprietário do terreno também pertence com exclusividade ao próprio

proprietário do terreno. Ainda, o tesouro localizado por quem intencionalmente o

procure sem ordem do proprietário do terreno pertence também com exclusividade

ao proprietário do terreno, considerada, nesse caso, a invasão da propriedade alheia

pelo pesquisador. E o tesouro encontrado casualmente por alguém que não o

proprietário do terreno pertencerá ao proprietário e ao descobridor, dividido em

partes iguais.

2.1.3 – Especificação

Especificação100 é “a transformação definitiva da matéria-prima em

espécie nova, mediante o trabalho ou indústria do especificador”101 e ocorre quando

uma “coisa móvel pertencente a alguém é transformada em espécie nova pelo

trabalho de outrem”102. O que, na especificação, gera o direito é o trabalho criador,

que transforma a matéria informe em obras de arte, da ciência ou de utilidade para a

vida social. E essa criação se verifica, de modo claro, quando, na tela, que não é

sua, o artista pinta um belo quadro; ou do mármore alheio o escultor faz uma

estátua; ou no papel, de outrem, o escritor data a ciência ou a literatura com um

produto de valor intelectual. Para a sociedade e para a civilização, a matéria utilizada

perde todo o interesse, que se volve para a forma nova, que a inteligência fez

100 Artigos 1269 a 1271 do Código Civil. 101 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Direitos reais, cit., p. 166. 102 Orlando Gomes. Direitos reais, cit., p. 204.

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surgir103.

A espécie nova será do especificador se a matéria era sua, ainda

que só em parte, e não se puder restituí-la à forma anterior. Se a matéria não

pertencer ao especificador e não se puder restituí-la à forma anterior, a espécie nova

pertencerá ao especificador de boa-fé. E, se o especificador agiu de má-fé, a

espécie nova pertencerá ao dono da matéria, ainda que seja possível a restituição à

forma anterior.

Em qualquer caso, ainda que constatada a má-fé do especificador, a

obra de arte lhe pertencerá se o seu valor exceder consideravelmente o valor da

matéria-prima. E, também em qualquer caso, os prejudicados deverão ser

indenizados, à exceção do especificador de má-fé, quando a obra de arte

não exceder consideravelmente o valor da matéria-prima e for irredutível a

especificação.

2.1.4 – Confusão, comistão e adjunção104

A confusão, como forma de aquisição da propriedade móvel, é a

mistura de coisas líquidas pertencentes a diferentes donos, sem que se possam

separar. A comistão é a mistura de coisas sólidas ou secas, nas mesmas condições.

A adjunção é a justaposição de uma coisa a outra, de tal modo que não possam ser

separadas sem deterioração.

103 Clovis Bevilaqua. Direito das coisas, cit., p. 222. 104 As previsões legais a respeito da confusão, da comistão e da adjudicação constam dos artigos 1272 a 1274 do Código Civil.

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Nas três hipóteses, é preciso que não se produza coisa nova, pois

nesse caso haveria especificação.

Se as coisas pertencem a donos diversos e foram misturadas sem o

consentimento deles, continuam a lhes pertencer, desde que seja possível separar a

matéria-prima sem deterioração. Se não for possível a separação ou se esta exigir

dispêndio excessivo, o todo subsistirá indiviso. Nesse caso, a espécie nova

pertencerá aos donos da matéria-prima, cada qual com o seu quinhão proporcional

ao valor do seu material. Se uma das coisas puder ser considerada principal em

relação às outras, o seu proprietário terá o domínio da espécie nova, com a

obrigação de indenizar os demais.

Todas as previsões têm por fundamento a boa-fé do causador da

mistura das coisas. Em caso de má-fé, caberá ao proprietário que não deu causa ao

novo estado das coisas o domínio sobre o todo, pagando o valor proporcional do

que não é seu, ou, alternativamente, renunciar à coisa que lhe pertence, mediante

indenização.

2.1.5 – Casamento105

No Brasil, o casamento realizado sob o regime de bens da

comunhão universal enseja a aquisição, por cada um dos cônjuges, da meação de

todos os bens móveis – e imóveis – de propriedade do outro cônjuge, à exceção das

105 O casamento não é reconhecido como modo de aquisição da propriedade mobiliária por todos os sistemas de direito.

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hipóteses legalmente previstas106.

A aquisição da propriedade – da meação – dos bens, nesse caso,

independe da tradição, visto que decorre da solenidade inerente ao próprio ato do

casamento107.

O casamento e os temas adjacentes são objeto de estudo específico

em matéria própria108 e não são considerados para a finalidade do presente

trabalho.

2.1.6 – Sucessão

O Brasil adotou um sistema singular de transmissão causa mortis109,

diverso do sistema romano, que exigia a aceitação dos herdeiros e a apreensão

material dos bens da herança, e do sistema germânico, em que apenas os herdeiros

legítimos – e não os testamentários – adquirem a propriedade dos bens da herança

106 Art. 1667. O regime de comunhão universal importa a comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas, com as exceções do artigo seguinte; Art. 1668. São excluídos da comunhão: I - os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar; II - os bens gravados de fideicomisso e o direito do herdeiro fideicomissário, antes de realizada a condição suspensiva; III - as dívidas anteriores ao casamento, salvo se provierem de despesas com seus aprestos, ou reverterem em proveito comum; IV - as doações antenupciais feitas por um dos cônjuges ao outro com a cláusula de incomunicabilidade; V - Os bens referidos nos incisos V a VII do art. 1.659 (Art. 1659. Excluem-se da comunhão: V - os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão; VI - os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge; VII - as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes). 107 A menção à dispensa da tradição se refere à tradição real, com a consignação de que a aquisição da propriedade móvel por meio do casamento realizado sob o regime da comunhão universal se enquadra na hipótese de tradição jurídica ou ficta. O casamento realizado sob o regime da comunhão parcial, da separação legal ou convencional e da participação final nos aquestos não apresenta utilidade prática para o presente estudo, já que a aquisição da meação da propriedade de um dos cônjuges somente será possível após o casamento e nas hipóteses legais, razão pela qual afasta o casamento, em si, como modo de aquisição da propriedade. 108 Livro IV- Do Direito de Família (artigos 1511 a 1783 do Código Civil). 109 A sucessão, assim como o casamento, enquadra-se na hipótese de aquisição da propriedade móvel por meio da tradição ficta (conferir 2.2.2.3).

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mediante a morte de seu autor.

Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery afirmam que o sistema

brasileiro uniu as vantagens dos sistemas romano e germânico para incluir os

herdeiros testamentários na regra da transmissão ipso iure da herança; admitir que

há transferência tanto da posse direta quanto da indireta; admitir que a transferência

automática da posse ao herdeiro é ficção jurídica, pois não depende nem da

apreensão física da coisa, nem do conhecimento do herdeiro de que ostenta essa

condição para aperfeiçoar-se a transmissão; admitir que a transmissão se dá no

momento da morte, independentemente da aceitação da herança pelo herdeiro;

admitir que não existe herança sem dono, razão de ser da transferência imediata e

automática da herança aos herdeiros, no momento da morte do de cujus110.

O fundamento do sistema brasileiro de transmissão causa mortis da

propriedade está previsto no artigo 1784 do Código Civil (“Aberta a sucessão, a

herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”) e o

estudo específico da matéria tem lugar no Livro respectivo111.

2.2 – Tradição

2.2.1 – Definição e requisitos

Sem prejuízo de outras definições possíveis para finalidades

diversas, a definição aqui desenvolvida tem por objetivo específico o estudo da

tradição como modo de transferência da propriedade mobiliária do vendedor ao

110 Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. Código Civil anotado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 778. 111 Livro V – Do Direito das Sucessões (artigos 1784 a 2022 do Código Civil).

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comprador.

Nesses termos, tradição é “a expressão empregada para designar o

ato que consuma o contrato, no momento em que a coisa se desliga do domínio do

vendedor, para incorporar-se ao patrimônio do comprador”112. É o ato em virtude do

qual o direito obrigacional, que resulta do negócio jurídico realizado entre vivos,

transforma-se em direito real, e consiste na entrega do bem alienado a quem o

adquiriu”113, transformando a inicial declaração translatícia de vontade em direito

real114.

A tradição não gera o domínio, mas sim o pressupõe existente e

limita-se a transferi-lo de uma pessoa a outra115.

Para que a tradição produza o efeito da transferência da

propriedade, diversos requisitos devem ser preenchidos.

Quanto ao alienante e ao adquirente, exige-se, inicialmente, a sua

capacidade, como de regra para a prática de qualquer ato da vida civil, nos termos

do artigo 104, inciso I, do Código Civil116.

112 J. M. de Carvalho Santos. Código Civil brasileiro interpretado. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1961. Volume XVI, p. 43. 113 Clovis Bevilaqua. Direito das coisas, cit., p. 225. 114 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Direitos reais, cit., p. 170. 115 Lafayette Rodrigues Pereira. Direito das coisas, cit., p. 131; Almachio Diniz. Direito das cousas, cit., p. 166. 116 “Apelação cível – Ação anulatória de ato jurídico – (...) É válida a venda de bem imóvel pelo ascendente a descendente, após ratificado expressamente o ato, através de escritura pública de aditamento firmada pelos demais herdeiros e, após atingida a maioridade, pelo herdeiro relativamente incapaz” (Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina – Apelação Cível n.º 2005.016957-4 – Origem: Joinville – 3ª Câmara de Direito Civil – Relator: Des. Wilson Augusto do Nascimento – J. 25.11.2005).

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Ainda quanto ao alienante, exige-se a sua titularidade em relação ao

bem alienado mediante determinado título e por meio da tradição117. A hipótese será

sanada se o alienante, que não era proprietário do bem à data da tradição, adquirir-

lhe posteriormente a propriedade, desde que constatada a boa-fé do adquirente.

Nesse caso, a aquisição posterior revalida a transferência feita e a tradição opera os

seus efeitos jurídicos retroativamente, desde o momento de sua ocorrência118.

Para a efetividade da transmissão da propriedade mobiliária pela

tradição também se exige o acordo de vontades. Ou seja, no caso da tradição que

tem como título o contrato de compra e venda, exige-se que o tradens entregue o

bem com a intenção de transferir a sua propriedade e sem a pretensão de

devolução, como se daria nos casos de tradição que tivesse como título um contrato

de locação, de comodato ou de depósito; e que o accipiens receba o bem com a

intenção de adquirir a sua propriedade.

A manifestação de vontade das partes deve decorrer de um ato

jurídico válido, que configura a (justa) causa – titulus adquirendi – da tradição.

117 Código Civil, Art. 1268. “Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono”. A propósito: “Apelação cível – Ação declaratória c.c. indenização por perdas e danos e lucros cessantes – Ônus da prova – Venda por quem não é proprietário – Recurso improvido – No ordenamento jurídico brasileiro existe uma regra geral dominante no sistema probatório, qual seja, à parte que alega a existência de determinado fato para dele derivar a existência de algum direito incumbe o ônus de demonstrar sua existência. O Código de Processo Civil, em seu artigo 333, afirma que o ônus da prova cabe ao autor relativamente ao fato constitutivo de seu direito, e ao réu, em relação à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Sendo o documento do Detran prova relativa de propriedade do veículo, tal presunção deve ser refutada por outras provas idôneas, que demonstrassem ter a parte recorrente adquirido o veículo de quem de direito (o proprietário). A tradição do veículo, por si só, não pode oferecer prova firme e segura de venda do veículo à parte recorrente, que demonstrou ter efetuado pagamento a terceiras pessoas, não provando que tais pessoas integraram a cadeia dominical do veículo objetivado. Nos termos do artigo 622 do CC/1916, feita por quem não seja proprietário, a tradição não alheia a propriedade. Recurso improvido” (Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul – Apelação Cível n.º 2004.004126-8/0000-00 – Origem: Campo Grande – 3ª Turma Cível – Relator: Des. Oswaldo Rodrigues de Melo – J. 20.12.2004). 118 Nos termos do artigo 1268, parágrafo 1º, do Código Civil.

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“Qualquer ato nullo que sirva de titulo à tradição, é bastante para que não se

transfira absolutamente o domínio pela tradição. Assim, quem não for proprietário

não alheiou a propriedade das cousas móveis entregues a outrem por tradição, que

é a entrega com ânimo de transferir o domínio”119.

Por fim, exige-se a imissão do adquirente na posse do bem, o que

caracteriza a tradição real, sem prejuízo das exceções expressamente previstas,

consistentes na tradição simbólica e na tradição ficta.

2.2.2 – Espécies de tradição

Há três espécies de tradição referidas pela doutrina: tradição real,

tradição simbólica e tradição ficta120.

119 Almachio Diniz. Direito das cousas, cit., p. 167. Prevê o artigo 1.268, parágrafo 2º, do Código Civil: “Não transfere a propriedade a tradição, quando tiver por título um negócio jurídico nulo”. Nesse sentido: “Compra e venda – (...) É da tradição de nosso direito, que vem desde as Ordenações Manuelinas, proibir a venda de ascendente a descendente, sem o consentimento dos demais, considerada nenhuma e de nenhum efeito jurídico, para se evitar enganos e demandas em função de dissimular doações inoficiosa e prejudiciais aos outros descendentes. Idêntica a conseqüência jurídica. Seja a venda direta, seja a venda por interposta pessoa, porque aquilo que a lei veda fazer pelos meios diretos, veda, igualmente, que se faça pelos meios indiretos, pois, do contrário, seria o mesmo que não proibir. O negócio, simuladamente feito por interposta pessoa, está vinculado ao negócio real, não podendo ser apreciado em separado, se é inquinado de ofensivo à norma do artigo 1.1132. Não há de se processar uma ação anulatória fundada m simulação contra a interposta pessoa: para em seguida ser pleiteada a declaração de nulidade do negócio jurídico proibido. Numa ou noutra situação a venda é nula e prescreve no prazo de vinte anos contados da data do ato, consoante previsto na Súmula 494 do Supremo Tribunal Federal. E sendo nulo o ato descabe a invocação da usucapião ordinária por faltar-lhe os requisitos do justo título e da boa-fé” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 77.980-4 – Origem: Franca – 9ª Câmara de Direito Privado – Relator: Ruiter Oliva – J. 22.06.99 – V.U.); “Reivindicatória julgada procedente, porque a autora demonstrara ser proprietária do lote possuído pelos réus – Alegação de prescrição rejeitada, em face da prova. Tradição reputada inoperante, porque se baseara em titulo nulo” (Supremo Tribunal Federal – RE n.º 48211 – 2ª Turma – Relator Antônio Villas Boas – J. 01/08/1961). 120 Lafayette Rodrigues Pereira, J. M. Carvalho Santos e Jefferson Daibert referem a tradição nua (nuda traditio) e a definem como a simples entrega da coisa, desacompanhada da intenção de transferir o domínio, como a conduta que se verifica no comodato, pelo comodante, no depósito, pelo depositante, e na locação, pelo locador (respectivamente Direito das coisas., cit., p. 131; Código Civil brasileiro interpretado. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1961. Volume VIII, p. 276; e Direito das coisas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1979, p. 289).

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2.2.2.1 – Tradição real

A tradição real é o modo mais comum de transmissão da

propriedade mobiliária e consiste no ato material da entrega da coisa ao adquirente,

ou seja, na transferência da coisa de mão a mão, passando do antigo ao novo

proprietário121. A tradição real – fundada no título translativo consistente em um

contrato de compra e venda – enseja a perda da propriedade pelo alienante. Nesse

sentido: “Compra e venda – Bem móvel – Entrega do veiculo não obstante sem

provisão de fundos o segundo cheque dado em pagamento – Perda da propriedade

do bem consumada (artigo 620 do Código Civil), independentemente de assinatura

no documento de transferência – Reintegração de posse improcedente, sendo certo

reconhecer-se o pedido desconstitutivo do documento de trânsito porque

evidenciada a falsificação – Recurso parcialmente provido para esse fim” (Primeiro

Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0480230-0 – Origem:

Sumaré – 5ª Câmara – Relator: Juiz Nivaldo Balzano – J. 29/09/1993 – V.U).

Também se considera real a tradição operada por terceiro que, por

ordem do alienante, entregue a coisa ao adquirente ou à pessoa que este

designar122.

Efetivada a tradição real – fundada no título consistente em um

contrato de compra e venda –, a propriedade do bem móvel é transmitida

independentemente de quaisquer outros atos de natureza administrativa, como no

caso de veículo automotor, cujo registro junto ao Departamento de Trânsito tem

121 Washington de Barros Monteiro afirma que a tradição real era conhecia do direito romano como traditio longa manu e significava a entrega efetiva ao accipiens, diretamente ou em sua residência, mediante ordem (Curso: direito das coisas, cit., p. 201). 122 Clovis Bevilaqua. Direito das coisas, cit., p. 226.

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caráter administrativo e desvinculado da transmissão da propriedade: “(...). A

exigência administrativa de registro de veículos no Departamento de Trânsito visa o

controle e a fiscalização de trânsito, não se constituindo em modo de aquisição, que

se opera pela tradição. A autorização de transferência de veículo para essa

finalidade assinada em branco equivale à outorga de mandato ao portador para o

seu preenchimento. Não comprovada a falsidade da assinatura, não se segue que a

morte do vendedor em data anterior, àquela que consta da referida autorização

assinada em branco implica na inexistência do negócio de compra e venda”

(Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Embargos Infringentes n.º 45.057-4 –

Origem: Vargem Grande do Sul – 9ª Câmara de Direito Privado – Relator: Ruiter

Oliva – 19.05.98 – M. V.)123.

Embora a entrega efetiva da coisa seja o modo mais comum de

transmissão da propriedade mobiliária, são reconhecidas outras espécies de

tradição, as quais, identificadas, ensejam a mesma conseqüência, ou seja, efetivam

a transmissão da propriedade mobiliária.

Vale a consignação, entretanto, de que as espécies de tradição que

não se efetivam pela entrega material do bem não podem ser caracterizadas como

hipóteses de ausência de tradição, mas sim devem ser consideradas como

situações específicas que, por previsão expressa, são tidas como tradição,

123 A confirmar a regra de que a transmissão da propriedade mobiliária se dá com a tradição, julgado em que se decidiu que a convenção entre as partes, não seguida pela tradição, não enseja a transmissão da propriedade: “VEÍCULO – Compra e venda - Assinatura do termo de autorização para transferência do bem – Assinante, entretanto, que não figurou como alienante do bem, não podendo, assim, responder pela não concretização do negócio, ante a ausência de tradição, junto ao comprador – Ausência, ademais, de provas de que teria o assinante agido com má-fé ou de que teria o alienante do veículo agido em seu nome – Ação improcedente – Recurso não provido. A transferência de propriedade de bem móvel somente se perfaz pela tradição. A simples convenção entre as partes interessadas não é suficiente para a aquisição da propriedade” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 12.420-4 – Origem: São José dos Campos – 1ª Câmara de Direito Privado – Relator: Guimarães e Souza - 13.08.96 - V. U.).

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dispensado exclusivamente o ato material da entrega.

2.2.2.2 – Tradição simbólica

A tradição simbólica se verifica no ato representativo da

transferência da coisa124.

A primeira hipótese se dá nos casos em que é entregue ao

adquirente não a própria coisa, mas algo que a represente, como a chave de um

veículo, a demonstrar que a propriedade deste está sendo transferida125.

Afirma Pietro Bonfante: “Simbólica si disse nel médio evo la

consegna delle chiave, di cui non è che um ulteriore progresso la odierna consegna

dei titoli rappresentativi”126.

Também se verifica a tradição simbólica quando um determinado ato

praticado pelas partes comprova a sua intenção de transmissão da propriedade. A

propósito: “A inscrição do recibo de compra de automóvel no registro público

dispensa a tradição, ou vale como tradição, simbólica, para o efeito de transmitir o

domínio ao comprador. Pode este, em conseqüência, reclamar a imissão na posse,

com fundamento no Código de Processo Civil, artigos 381, I, e 382 (Código de

124 “Concordata – Penhor mercantil – Bens fungíveis e consumíveis – Tradição simbólica – Admissibilidade – Penhor mercantil. Bens fungíveis e consumíveis. Tradição simbólica. Art. 274 do Código Comercial. Ainda que se cuide de bens fungíveis e consumíveis, é admissível a tradição simbólica no penhor mercantil. Recurso Especial conhecido e provido" (STJ – Resp 147.898 – RS – 4ª T. – Relator: Min. Barros Monteiro – DJU 09.12.2003 – p. 290). 125 “Cominatória – Obrigação de dar - Transferência de direitos possessórios – Impossibilidade de preceito cominatório – Súmula 500 do STF – Entrega da chave e outorga da escritura que caracterizam, respectivamente, a forma simbólica e definitiva do cumprimento da obrigação de dar - Transferência, entretanto, que se perfaz pela mera tradição – Carência decretada – Recurso não provido” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 188.770-2 – Origem: Caraguatatuba – Relator: Torres de Carvalho – 21.05.92). 126 “Simbólica se dizia na idade média a entrega da chave, da qual não é senão um progresso posterior a entrega do título representativo” (Instituzioni, cit., p. 237).

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Processo Civil de 1939)” (Supremo Tribunal Federal – RE n.º 51952 – 1ª Turma –

Relator: Ministro Victor Nunes – J. 17/05/1963)127.

Para que a tradição simbólica seja considerada como tal, é

imprescindível que se revista dos mesmos requisitos necessários à caracterização

da tradição real. Isso significa que somente se a verifica se o bem cuja propriedade

foi transmitida pela tradição simbólica estiver na posse do adquirente, não se a

reconhecendo se o bem estiver na posse de terceiro, já que nesse caso não se pode

falar em transmissão, ainda que simbólica, a quem não teve e não tem a posse do

bem128.

Espécie de tradição simbólica é a traditio longa manu, “in cui

l’oggetto non é consegnato proprieamente, ma indicato e messo a disposizione

dell’adquirente”129. A sua origem é do direito romano, com utilização indicada no

caso de alienação de imóveis de grandes dimensões, as quais não era possível ou

não era comum percorrer130.

127 Jefferson Daibert afirma que a transcrição do título aquisitivo no registro imobiliário, para fins de aquisição da propriedade imobiliária, caracteriza a tradição simbólica (Dos contratos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1980, p. 181). 128 “Embargos de terceiro – Ilegitimidade ‘ad causam’ – Transmissão simbólica da posse ‘per instrumentum’ que só equivale à tradição real quando o tradente estiver na posse da coisa e esta não for possuída por terceiro – Hipótese na qual o imóvel foi adquirido pelo marido da apelada quando na posse dos apelantes – Ação ajuizada por quem não possuía a qualidade de terceiro – Exame da doutrina e da jurisprudência – Carência reconhecida – Recurso provido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação n.º 0570474-1 – Origem: Itapecerica da Serra – 9ª Câmara – Relator: Armindo Freire Mármora – J. 19/03/1996 – V.U.). 129 “em que o objeto não é entregue propriamente, mas indicado e posto à disposição do adquirente” (Pietro Bonfante. Instituzioni, cit., p. 237-238). 130 Sílvio de Salvo Venosa. Direitos Reais, cit., p. 254.

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2.2.2.3 – Tradição ficta

Na tradição jurídica ou ficta, a transmissão da propriedade mobiliária

se opera por força de uma norma jurídica, sem que se efetive a entrega material da

coisa alienada. Verifica-se nas hipóteses do artigo 1.267, parágrafo único, do Código

Civil131, ou seja, nos casos de constituto possessório, de cessão de direito à

restituição da coisa que se encontra em poder de terceiro e de traditio brevi manu,

sem prejuízo das demais hipóteses legais.

2.2.2.3.1 – Constituto possessório

O constituto possessório é o modo de transmissão da propriedade

por meio do qual o proprietário, que aliena um bem de sua propriedade, mantém a

posse desse bem, a partir de então alieno nomine.

Ou seja, aquele que possuía e tinha o domínio do bem passa, por

convenção, a possuí-lo sem domínio, em razão da transferência deste ao

comprador. É a “operação jurídica, em virtude da qual, aquele que possuía em seu

próprio nome, passa, em seguida, a possuir em nome de outrem”132.

De acordo com Pietro Bonfante, “il costituto possessorio é quasi

l’inverso della traditio brevi manu. L’alienante, in luogo di operare la transmissione

131 Código Civil, Artigo 1267. “A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição. Parágrafo único. Subentende-se a tradição quando o transmitente continua a possuir pelo constituto possessório; quando cede ao adquirente o direito à restituição da coisa, que se encontra em poder de terceiro; ou quando o adquirente já está na posse da coisa, por ocasião do negócio jurídico”. 132 Clovis Bevilaqua. Direito das Coisas, cit., p. 50. A propósito: “Posse. Ação de reintegração. ‘Cláusula constituti’. Outorga uxória. O comprador de imóvel com ‘cláusula constituti’ passa a exercer a posse, que pode ser defendida através da ação de reintegração. Recurso não conhecido” (Superior Tribunal de Justiça – RESP n.º 173183/TO (199800313923) – Origem: Tocantins – 4ª Turma – Relator: Ministro Ruy Rosado de Aguiar – J. 01/09/1998).

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effetiva del possesso, conchiude coll’acquirente una convenzione, che gli permetta di

ritenerlo sott’altro titolo, locazione, deposito, comodato e simili, e a questo titolo si

costituisce rappresentante nel possesso. É questo peraltro um modo e um istituto

giustinianeo.”133

Pode ser identificado, por exemplo, no caso do proprietário de um

bem que o vende a alguém e imediatamente o loca desse novo proprietário. O

alienante, em vez de proceder à entrega da coisa vendida ao alienatário, retém a

coisa em suas mãos por um outro título, então de locatário. De regra, deveria o

alienante entregar a coisa ao alienatário para que este, a seguir, devolvesse a coisa

ao primitivo alienante, que, com a entrega, tornar-se-ia locatário. Para evitar essa

dupla e recíproca entrega do bem móvel, o legislador supõe que ela existiu,

admitindo a tradição ficta134.

A boa-fé do possuidor é requisito essencial para a caracterização do

constituto possessório. Nesse sentido: “Possessória – Manutenção de posse – Bem

móvel – Veículo adquirido, que permaneceu provisoriamente em poder do alienante

- Legitimidade da adquirente possuidora indireta, diante do constituto possessório –

Posse de boa-fé existente ao tempo da apreensão – Embargos de terceiro

procedentes – Recurso improvido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo –

133 “o instituto do constituto possessório é quase o inverso da traditio brevi manu. O alienante, em vez de operar a transmissão efetiva da posse, celebra com o adquirente uma convenção, que lhe permite reter a posse a outro título, como locação, depósito, comodato ou outro similar, e a esse título se constitui representante da posse. Trata-se de um modo e de um instituto do direito justinianeu” (Instituzioni, cit., p. 238). 134 Silvio Rodrigues. Direito Civil: Direito das Coisas, cit., p. 188. A jurisprudência: “I – A aquisição da posse se dá também pela cláusula constituti inserida em escritura publica de compra-e-venda de imóvel, o que autoriza o manejo dos interditos possessórios pelo adquirente, mesmo que nunca tenha exercido atos de posse direta sobre o bem. II – O esbulho se caracteriza a partir do momento em que o ocupante do imóvel se nega a atender ao chamado da denúncia do contrato de comodato, permanecendo no imóvel após notificado (...)” (Superior Tribunal de Justiça – RESP n.º 143707/RJ (199700563545) 4ª Turma – Relator: Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira – J. 25/11/1997).

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Apelação n.º 0577657-8 – Origem: Ribeirão Preto – 6ª Câmara Especial de Janeiro –

Relator: Des. Castilho Barbosa – J. 30/01/1995 – V.U.).

Após transcrever parte dos votos dos Ministros Artur Ribeiro e

Carvalho Mourão, do Supremo Tribunal, na Apelação Cível n.º 5.165, J. M. Carvalho

Santos manifesta seu entendimento de que o constituto possessório deve ser

reconhecido não apenas quando se usam palavras sacramentais, mas sempre que

do texto do contrato se puder concluir que o possuidor deixou de ter o domínio sobre

o bem porque o alienou, e passou a ter o bem em nome do comprador, a quem o

domínio fora transferido135.

Por outro lado, ainda que não conste do contrato celebrado pelas

partes o termo expresso, é imperioso que sejam identificados elementos que

permitam a conclusão de que as partes pretenderam a utilização do instituto, sob

pena de restar inviabilizado o seu reconhecimento. Nesse sentido: “Possessória –

Compra e venda de safra de laranjas Inexistência de cláusulas indicando

transferência simbólica da posse – Esbulho descaracterizado, inocorrendo o alegado

constituto possessório, por não se identificarem cláusulas indicativas da suposta

transferência – Ações de reintegração e manutenção de posse improcedentes –

Recurso parcialmente provido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo –

Apelação n.º 0680661-9 – Origem: Monte Azul Paulista – 8ª Câmara – Relator:

135 J. M. de Carvalho Santos. Código Civil brasileiro interpretado. Volume VII, cit., p. 64-67. Também nesse sentido: “Constituto possessório – Reintegração de posse. 1. Para a existência do constituto possessório e consequente transferência da posse indireta ao beneficiário dela, não há necessidade de o instrumento conter as palavras cláusula constituti’, ‘constituto possessório’, nem mencionar que o transmitiu, se demitiu da posse e a conserva em nome do adquirente. Basta que o transmitente declare que imite na posse o adquirente ou a ele a transfere. (...)” (Supremo Tribunal Federal – RE n.º 65681 – Origem: Guanabara – 1ª Turma – Relator: Ministro Aliomar Baleeiro – J. 20/02/1973).

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Araldo Telles – Revisor: Carlos A Hernández – J. 19/08/1998)136.

Embora a prova do constituto possessório seja admitida

independentemente da menção expressa do termo no contrato, não se sobrepõe ao

título, que tem validade por si. A propósito: “Possessória – Insurgência contra liminar

de reintegração de posse – Alegação do réu de que se tornou possuidor da área em

virtude de constituto possessório – Imóvel que, todavia, estava sendo ocupado pelo

autor – Inoponibilidade da cláusula contratual contra terceiro que dispõe de título

próprio – Prova suficiente à concessão da tutela liminar – Recurso improvido”

(Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Agravo de Instrumento n.º

1057687-1 – Origem: Cachoeira Paulista – 12ª Câmara – Relator: Campos Mello – J.

26/02/2002).

A restrição se justifica, sob pena de o instituto ser utilizado sem

critério e visando à burla do sistema137.

2.2.2.3.2 – Cessão de direito de restituição

Essa espécie de tradição ficta se dá no caso de o proprietário alienar

um bem que, quando da alienação, encontra-se na posse de um terceiro, em

decorrência de um contrato de comodato ou de locação, por exemplo.

136 No mesmo sentido: “Embargos de terceiro – Constituto possessório – Cláusula não expressa, que não se presume e que não resulta das demais disposições contidas na escritura – Escritura não matriculada – Embargos rejeitados – Decisão mantida” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 253.119-1 – Origem: São Paulo – 9ª Câmara de Direito Privado – Relator: Franciulli Netto – 05.11.96 – V.U.). 137 “Penhora – Embargos de terceiro – Oposição por mãe do executado sob alegação de ser ela proprietária do bem, tendo ocorrido a tradição ficta do mesmo em razão do constituto possessório – Inexistência de prova nesse sentido, não constituindo o registro do veículo em nome da embargante meio suficiente para demonstrar a propriedade – Constrição mantida – Embargos improcedentes – Recurso improvido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0598558-0 – Origem: Garça – 2ª Câmara – Relator: Nelson Ferreira – J. 31/05/1995 – V.U.).

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Enquanto não se der a restituição, o comprador, como novo

proprietário do bem, terá apenas a posse indireta deste, a qual decorre da cessão do

direito de restituição que o vendedor fez ao comprador. Essa cessão do direito de

restituição equivale à tradição138.

Ou, dito de outra forma, a “transferência envolve a posse indireta

que é acompanhada do direito à restituição, isto é, o direto de reaver a coisa locada

na época oportuna”139.

Expirado o prazo do contrato, o direito de reivindicar o bem (Artigo

1.228 do Código Civil: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da

coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou

detenha”) se reconhece ao comprador e não mais ao vendedor, visto que, por meio

do contrato de compra e venda celebrado, o vendedor cedeu ao comprador o direito

de pleitear, na oportunidade adequada à hipótese concreta, a restituição do bem.

2.2.2.3.3 – Traditio brevi manu

A traditio brevi manu, que também caracteriza tradição ficta, é o

instituto por meio do qual o possuidor de coisa alheia passa, por convenção, a

possuir a coisa como própria.

Pode ser identificado, por exemplo, no caso do locatário que adquire

a coisa locada. De regra, deveria o alienatário devolver – como locatário, no exemplo

referido – a coisa ao alienante para que este, a seguir, entregasse a coisa ao

primitivo locatário, então como alienatário, o qual, com a entrega, tornar-se-ia

138 J. M. de Carvalho Santos. Código Civil. Volume XVI, cit., p. 44; Maria Helena Diniz. Curso: Direito das coisas, cit., p. 317. 139 Sílvio de Salvo Venosa. Direitos reais, cit., p. 254.

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proprietário da coisa.

Assim como se dá no caso do constituto possessório e da cessão de

direito de restituição de bem que se encontra em poder de terceiro, para evitar a

dupla e recíproca entrega do bem móvel, o legislador supõe que ela existiu,

admitindo também neste último caso a tradição ficta.

2.2.2.3.4 – Outras hipóteses de tradição ficta

Além do constituto possessório, da traditio brevi manu e da cessão

de direito de restituição de bem que se encontra em poder de terceiro, existem

outros diversos dispositivos legais que estabelecem expressamente o modo da

tradição ficta para a transmissão da propriedade.

Quanto à compra e venda de títulos de dívida pública da União, dos

Estados e dos Municípios, por expressa determinação legal, o próprio contrato

transfere ao comprador a propriedade dos títulos, nos termos do artigo 8º, caput, do

Decreto-lei n.º 3.545/41 (“A celebração do contrato transfere imediatamente ao

comprador a propriedade do título”).

De acordo com o artigo 31, caput, da Lei n.º 6.404/76 (Lei das

Sociedades Anônimas), “A propriedade das ações nominativas presume-se pela

inscrição do nome do acionista no livro de ‘Registro de Ações Nominativas’ ou pelo

extrato que seja fornecido pela instituição custodiante, na qualidade de proprietária

fiduciária das ações”. O parágrafo 1º do referido dispositivo legal estabelece que “A

transferência das ações nominativas opera-se por termo lavrado no livro de

‘Transferência de Ações Nominativas’, datado e assinado pelo cedente e pelo

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cessionário, ou seus legítimos representantes”140.

Nos termos do artigo 66, caput, da Lei n.º 4.728/65, com a redação

do Decreto-lei n.º 911/69, “A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o

domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente

da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto

e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de

acordo com a lei civil e penal”141.

J. M. de Carvalho Santos, referindo Maynz e Lacerda de Almeida,

cita ainda o caso de “contrato de sociedade de todos os bens, em que a

transferência se opera com a assinatura do contrato, entendendo-se haver tradição

tácita”, bem como o caso da “sociedade particular, em que a transferência se opera

com a simples aquisição dos bens comunicáveis”142.

140 Washington de Barros Monteiro. Curso: Direito das coisas, cit., p. 202; Maria Helena Diniz. Curso: Direito das coisas, cit., p. 315-316. 141 Maria Helena Diniz. Curso: Direito das Coisas, cit., p. 316. 142 J.M. de Carvalho Santos. Código Civil. Volume VIII, cit., p. 277.

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Capítulo 3 – Sistemas de aquisição da propriedade mobiliária

O estudo dos sistemas de aquisição da propriedade mobiliária tem

por objetivo, no presente trabalho, a resposta à questão se a propriedade mobiliária

é transmitida pelo contrato compra e venda, por si, ou se é necessário algum outro

ato para que a aquisição se aperfeiçoe e produza os resultados jurídicos decorrentes

(da propriedade transmitida). Ou, dito de outra forma, se o contrato é reconhecido

exclusivamente como título – ou causa – para a transmissão da propriedade

mobiliária ou se efetivamente a transfere.

Teoricamente, são referidos quatro sistemas de aquisição de

propriedade: o sistema romano, o sistema francês, o sistema alemão e o sistema

soviético.

Com a dissolução oficial da União das Repúblicas Socialistas

Soviéticas143 no dia 25 de dezembro de 1991, o sistema soviético não pode ser

considerado um sistema vigente. É referido para fins acadêmicos, mas não será

estudado à parte, como os demais.

O sistema soviético não se vincula exclusivamente nem ao contrato

e nem à tradição como princípio geral de transmissão da propriedade mobiliária.

Tanto o contrato, por si, quanto a tradição são dotados de igual valor e cada um tem

o seu próprio campo de aplicação. Tratando-se de coisas individualmente

143 A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas foi um país de proporções continentais, cobrindo praticamente um sexto das terras emersas do planeta, fundado no dia 30 de dezembro de 1922 pela reunião dos países que formavam o antigo Império Russo, na Europa e na Ásia. O número de repúblicas constitutivas variou ao longo do tempo, mas foi de 15 (Rússia, Ucrânia, Bielorrússia Usbequistão, Cazaquistão, Geórgia, Azerbaijão, Moldávia, Quirguízia, Tadjiquistão, Armênia, Turcomenistão, Estônia, Letônia e Lituânia) durante a maior parte da existência do país. A União dissolveu-se oficialmente em 25 de dezembro de 1991 (disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Uni%C3%A3o_Sovi%C3%A9tica).

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determinadas, a propriedade se adquire pelo consenso, no momento em que se

conclui o contrato; tratando-se de coisas determinadas apenas pelo gênero, que

devem ser contadas, pesadas ou medidas, a aquisição é diferida para o momento da

tradição144.

Quanto ao sistema romano, embora não vigente, justifica-se o seu

estudo em razão de sua importância para a fundamentação e o desenvolvimento do

sistema brasileiro de transmissão da propriedade mobiliária, que também será

estudado.

Ainda, optou-se por estudar, além do sistema francês, o sistema

inglês de transmissão da propriedade mobiliária, em razão de apresentar

características similares às do sistema francês e, conseqüentemente, distintas das

do sistema brasileiro.

3.1 – Sistema romano145

No sistema de direito romano anterior a Justiniano não se utilizava a

distinção entre bens móveis e móveis146, mas sim a distinção entre res mancipi e res

nec mancipi, ou seja, “coisas que exigem ou não exigem o emprego da mancipatio

144 Washington de Barros Monteiro. Curso de direito civil: direito das obrigações – 2ª Parte. 34ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. Volume 5, p. 89. R. Limongi França afirma que o artigo 39 do Código Soviético de 1962 revogou o sistema da forma como existia e “parece ter adotado o sistema alemão” (Manual de Direito Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1969. 4º Volume, Tomo II, p. 75-76). Consideradas as características referidas pelos doutrinadores, pode-se afirmar o sistema soviético apresentava semelhança com os demais sistemas de aquisição da propriedade mobiliária, já que a postergação da aquisição da propriedade dos bens móveis que dependem de contagem, pesagem ou medição não pode ser considerada característica exclusiva do primeiro. 145 Porque o direito romano antigo não reconheceu a classificação atual dos bens em imóveis e móveis, o estudo do sistema romano de transmissão da propriedade não se refere especificamente à propriedade mobiliária. 146 Conferir 1.5.

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para a sua transferência”147.

O contrato era constitutivo apenas de obrigações, do vínculo jurídico

que ligava exclusivamente os próprios contratantes. Ou seja, o contrato fazia nascer

um vínculo jurídico entre as partes, mas não tinha força para constituir o direito real.

O título – entendido como o ato jurídico por meio do qual uma parte manifesta

validamente a sua vontade de alienar um bem e a outra parte manifesta

também validamente a sua vontade de adquirir o referido bem – não era suficiente à

transmissão da propriedade, para a qual se exigia também um modo de aquisição.

Não se concebia a constituição de um direito real, oponível contra

todos, por efeito exclusivo da vontade das partes. As partes de um contrato tinham

capacidade para estabelecer vínculos obrigatórios para si mesmas, mas não

podiam, por meio de sua mera manifestação de vontade em relação a um bem,

vincular toda a sociedade, o que seria próprio do direito real, reputado absoluto.

Determinados contratos, como o mútuo, o comodato e o depósito

eram classificados como reais, mas essa classificação não dizia respeito ao direito

constituído por meio do contrato, mas sim exclusivamente à formação do contrato.

Ou seja, os contratos reais eram assim classificados porque não se aperfeiçoavam

mediante a manifestação do consentimento das partes, o que se verificava nos

contratos consensuais, mas sim mediante a entrega da coisa objeto do contrato148.

De acordo com o sistema romano de transmissão da propriedade, a

147 Washington de Barros Monteiro. Curso de direito civil: parte geral. 39ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. Volume 1, p. 171. 148 De acordo com Darcy Bessone, por causa dessa noção de contractus, os romanos não incluíram as convenções relativas à transmissão da propriedade na teoria das obrigações, mas sim as situaram na teoria dos modos de adquirir, “dissimulando-as e ocultando-as sob exterioridades” (Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 48).

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aquisição voluntária derivada149 podia se dar exclusivamente por meio da

mancipatio, da in iure cessio e da traditio.

Esses modos de transmissão da propriedade romana existiam por si,

ou seja, não eram vinculados a nenhum contrato e tampouco a nenhum ato jurídico

anterior que lhe fosse causal.

A mancipatio era a forma mais importante para a transferência da

149 Os modos de aquisição da propriedade em Roma eram classificados em originários, derivados voluntários e derivados não voluntários. Os modos originários eram a ocupação, a acessão, a confusão, a comistão e a especificação; os modos derivados voluntários compreendiam a mancipatio, a in iure cessio e a traditio; e os modos derivados não voluntários consistiam na usucapião e na adjudicação. Os modos originários apresentavam o fundamento e as características absorvidas pelo sistema brasileiro (a respeito, conferir o Capítulo 2 – Modos de aquisição da propriedade mobiliária). Os modos derivados voluntários – a mancipatio, a in iure cessio e a traditio – são estudados no texto principal. Quanto aos modos derivados não voluntários, a usucapião já apresentava o fundamento e as características que foram absorvidas pelo direito brasileiro (a respeito, conferir o Capítulo 2) especificamente quanto à posse prolongada, ao justo título e à boa-fé. Mas a aplicação do instituto no direito romano se dava em casos desconhecidos do direito brasileiro. O primeiro ocorria quando uma res mancipi, cuja alienação deveria necessariamente ser feita pela mancipatio, fosse alienada pela traditio, ato que dava enseja ao nascimento apenas da propriedade pretoriana ou bonitária, não da propriedade quiritária. Nesse caso, a propriedade quiritária podia ser adquirida depois de decorrido o prazo previsto para a usucapião. Ou seja, por meio da usucapião, a propriedade pretoriana ou bonitária se tornava propriedade quiritária. Também se aplicava o instituto da usucapião nos casos em que a alienação fosse feita a non domino. Apesar de o adquirente obter a posse, não obtinha a propriedade em razão da nulidade da alienação, reconhecendo-se, entretanto, o justo título para os fins da usucapião, que se dava ao final de um ano, tratando-se de bem móvel, e de dois anos em se tratando de bem imóvel. O mesmo raciocínio quanto à alienação a non domino e à aquisição da propriedade do adquirente por usucapião era aplicado aos escravos, considerados res se moventes. Reconhecia-se ainda a possibilidade de aquisição da propriedade por meio da usucapião na hipótese em que o justo título não consistia num ato jurídico, o que se dava quando alguém entrava na posse de um bem abandonado de fato, mas cujo proprietário não havia manifestado expressamente a sua intenção de abandono. Também nesse caso, a propriedade quiritária podia ser adquirida pela usucapião. Em todos os casos referidos exigia-se, além da posse prolongada no tempo e do justo título, que o bem não fosse produto de crime e que o adquirente houvesse agido com boa-fé. O direito romano reconhecia ainda três hipóteses excepcionais de usucapião sem justo título e boa-fé. A primeira era permitida ao herdeiro que estivesse na posse de bens hereditários, decorrido um ano da posse. A segunda hipótese se dava no caso de alienação fiduciária. Se o devedor não restituísse o bem alienado, como havia prometido, mas o antigo proprietário adquirisse a posse imediata desse bem, tornar-se-ia seu proprietário depois de decorrido um ano. A última hipótese era uma instituição de direito público, que se verificava quando o Estado vendia um bem que lhe havia sido entregue em garantia por um devedor. Se o devedor se tornasse novamente possuidor imediato do bem alienado pelo Estado, tornar-se-ia seu proprietário depois de decorrido o prazo da usucapião. Por fim, o segundo modo derivado não voluntário de aquisição da propriedade, a adjudicação, consistia na atribuição de um bem a uma pessoa por meio de sentença judicial. A adjudicação tinha lugar nas ações de partilha de herança, nas ações de partilha de um bem indiviso e nas ações de retificação dos limites de imóveis, inclusive para fins de atribuição de parcelas de terra a um confrontante (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 229-249; Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 221-226; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 69-94).

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propriedade de res mancipi150. Tratava-se de instituto de jus civile, que podia ser

utilizado exclusivamente pelos cidadãos romanos151 e dava ensejo à aquisição da

propriedade quiritária. “Nella lingua latina classica essa dicevasi ancora mancipium

come il domínio. Mancipatio significava allora propriamente l‘acquisto in cotesta

forma, emancipatio l’alienazione. Mancipio dare, accipere sono ancora le forme

usuali presso giureconsulti classici: certo ne più antichi tempi il significato loro era

‘dare o ricevere in proprietá’”152.

O ato exigia a presença do alienante, do adquirente, de cinco

cidadãos romanos púberes que serviam como testemunhas e do libripens, que

carregava a balança. O adquirente, denominado mancipio accipiens, tomava em

suas mãos a própria res ou algo que a simbolizasse e pronunciava as seguintes

palavras (no caso de um escravo): “Hunc ego hominem ex iure Quiritium meun esse

aio isque mihi emptus esto hoc aere aeneaque libra”153. Em seguida o libripens

tocava a balança com a barra de bronze e a entregava ao alienante como preço. A

propriedade era transferida e a negociação estava concluída154.

Há quem afirme que, concretamente, a mancipatio tinha a natureza

150 De acordo com Vandick L. da Nóbrega, porque não se reconhecia a distinção dos bens em imóveis e móveis, a mancipatio podia ter por objeto tanto bens imóveis como bens móveis. Em caso de bens imóveis, uma parte móvel era destacada e representava, simbolicamente, o todo. Um ramo de árvore simbolizaria uma árvore e uma porção de terra simbolizaria um terreno (Compêndio, cit., p. 79); Sílvio A. B. Meira afirma que uma das prováveis origens do termo mancipatio seria a junção das palavras manu e capere, isto é, a apreensão, pela mão, do bem adquirido (Instituições, cit., p. 221-222). 151 Segundo A. Santos Justo, também era utilizado pelos peregrinos que gozassem do direito de comércio (Direito privado romano III: direitos reais. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 94-95). 152 Pietro Bonfante. Instituzioni di diritto romano. Terza edizione. Milano: Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 1902, p. 239. 153 “Digo que este homem me pertence pelo direito dos Quirites, e que o mesmo seja vendido por meio desta balança” (Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 79). 154 A. Santos Justo. Direito Privado Romano, cit., p. 94-95; Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 239-240; Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 222; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 79-82.

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jurídica de uma venda real realizada sempre à vista, considerada a barra de bronze

como instrumento de troca e a sua pesagem real155. Por outro lado, há quem

defenda a tese de que, quanto à forma, tratar-se-ia de ato unilateral, já que o

alienante, embora presente ao ato, não se manifestava, mas apenas se limitava a

ouvir as palavras que do adquirente sobre o bem do qual se apropriava156.

Com a introdução da moeda cunhada, que substituiu o pagamento

em bronze, a função da balança desapareceu. A mancipatio tornou-se um ato

abstrato – imaginaria venditio – passível de ser usado em qualquer caso que

implicasse uma alienação, como na venda, na doação, na constituição de um dote e

mesmo na constituição de uma garantia real157.

O segundo modo romano de adquirir a propriedade consistia na in

iure cessio. Tratava-se também de instituto de jus civile que ensejava a transmissão

da propriedade quiritária tanto das res manicipi quanto da res nec mancipi.

A in iure cessio era realizada perante o magistrado (em Roma, o

pretor; nas províncias, o governador), presentes o alienante e o adquirente. O

adquirente tomava em suas mãos a res, se fosse móvel, ou um símbolo, se fosse

imóvel, e proferia as seguintes palavras (tratando-se de um escravo): “Hunc ego

hominem ex iure Quiritium meum esse aio”158. Na seqüência, o magistrado

perguntava ao alienante se este não contestava a propriedade reivindicada pelo

adquirente e, na negativa ou no silêncio daquele, adjudicava o bem ao adquirente.

155 A. Santos Justo. Direito Privado Romano, cit., p. 94; Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 239. 156 Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 80. 157 Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 239; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 80. 158 “Eu digo que este escravo me pertence pelo direito dos Quirites” (Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 82).

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Reconhece-se que se tratava de um processo fictício, porque a anuência do

alienante diante da reivindicação da propriedade do bem pelo adquirente não refletia

a realidade dos fatos, já que o alienante se sabia proprietário do bem até o momento

em que este era adjudicado ao adquirente, assim como o magistrado sabia que a

propriedade não era do reivindicante antes da adjudicação. Afirma-se ainda que a in

iure cessio foi pouco utilizada mesmo na época clássica, devido à dificuldade

concreta de comparecimento das partes perante o magistrado. A última referência

ao instituto se encontra numa constitutio de Diocleciano do ano 293 e se considera

que provavelmente desapareceu depois do séc. III159.

O terceiro modo romano de aquisição da propriedade era a traditio.

Tratava-se de um modo não formalista de aquisição da propriedade e era originário

do ius gentium e não do ius civile, razão pela qual podia ser utilizado tanto pelos

romanos como pelos não romanos.

A eficácia translativa da traditio dependia do cumprimento de

diversos requisitos.

Quanto ao tradens, exigia-se que tivesse capacidade e estivesse

apto ao exercício do seu direito, bem como que tivesse legitimidade, ou seja, que

fosse o proprietário do bem, com a ressalva de que se admitiam diversas exceções

para a prática efetiva da entrega, como aos tutores e curadores e aos mandatários

especialmente designados para o ato.

Quanto ao objeto, era preciso que fosse corpóreo, que fosse

passível de alienação – que estivesse no comércio – e que a sua alienação não

159 A. Santos Justo. Direito Privado Romano, cit., p. 97-98; Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 240-241; Pietro Bonfante. Instituzioni, cit., p. 240; Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 222-223; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 82-83.

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fosse proibida por lei, por magistrado ou por vontade das partes160.

A mera entrega da coisa não bastava à caracterização da traditio, já

que poderia não ter ocorrido a título de transferência da propriedade, mas sim de

mera detenção ou posse, como no caso de depósito ou comodato. Por essa razão

se afirma que a traditio consistia na entrega material do bem com a finalidade de

transferir o seu domínio, o que possibilita a identificação de seus dois elementos: a

entrega material da coisa e a justa causa.

Quanto à entrega, inicialmente somente se a admitiu na forma

efetivamente material, ou seja, mediante a apreensão física do bem pelo adquirente.

Tratando-se de bem que não pudesse ser transportado, admitia-se a entrega

simbólica de algo que o representasse, como um galho de uma árvore para a

representação da própria árvore. Tratando-se de uma área de terra, de início se

exigia que o adquirente o percorresse a pé ou a cavalo. Com o tempo, passou a

admitir a imissão de posse pelo olhar, hipótese em que o adquirente deveria subir no

local mais elevado do imóvel com o objetivo de enxergá-lo, entrega à qual se deu o

nome de traditio longa manu. Também se admitiu a tradição pelo simples ânimo,

independentemente da manifestação física da entrega, tanto no caso da traditio

brevi manu – hipótese em que o detentor ou possuidor passava a possuir a coisa a

título de dono – como no caso do constituto possessório – hipótese em que o

proprietário alienava o bem, mas mantinha a sua posse a título diverso (conferir

2.2.2).

Além da entrega – material, simbólica ou fictícia – do bem, a justa

causa também era indispensável à transmissão da propriedade por meio da traditio.

160 A. Santos Justo. Direito Privado Romano, cit., p. 99.

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A justa causa se consubstanciava no negócio jurídico anterior e necessariamente

válido, cuja conseqüência, por meio da entrega do bem, era a transferência do

domínio. Sem a justa causa, a tradição não teria razão de ser, já que não transferiria

a propriedade. A justa causa era considerada o elemento subjetivo e propriamente

jurídico em virtude do qual a transferência da posse do bem produzia a transferência

de sua respectiva propriedade161.

Os três modos de aquisição da propriedade no direito romano são

aceitos sem controvérsias pelos estudiosos do tema, inexistindo dúvida de que os

três existiram e tiveram aplicação prática, com a ressalva da popularidade restrita da

in iure cessio em decorrência da necessidade de sua realização perante um

magistrado162.

A natureza dos institutos, entretanto, não pode ser considerada

aceita de forma pacífica. No Brasil, Darcy Bessone, a respeito dos modos romanos

de transmissão da propriedade, afirmou que ”a propriedade transferia-se, entre os

romanos, por efeito do acôrdo de vontades ou, mais precisamente, do contrato. A

mancipatio, em sua segunda fase, e a in jure cessio eram já contratos consensuais,

pois que se concluíam através de simples convergência de vontades, sem a entrega

imediata da coisa. A própria traditio também se espiritualizou, ao surgirem o

constitutum possessorium, a traditio brevi manu, a traditio longa manu e, mesmo, a

tradição simbólica. Destinando-se a transmitir o domínio, tais modos de adquirir

eram contratos reais pelos efeitos”163.

161 Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 242. 162 Conferir a nota 159. 163 Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 52.

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A posição do doutrinador reflete uma discussão que remonta à

própria época a respeito do ato que dava ensejo à transmissão da propriedade e do

próprio momento em que se a reconhecia transmitida.

A. Santos Justo afirma que, enquanto os romanos seguiam

rigidamente o princípio de que a transferência voluntária da propriedade somente

podia se realizar mediante um ato típico, necessariamente a mancipatio, a in iure

cessio ou a traditio, outros povos consideravam que a transferência se dava

mediante a redação e a entrega de um documento que indicava o negócio jurídico

efetuado. E que a expansão das conquistas romanas e o conseqüente aumento das

relações comerciais com outros povos tornaram inevitável o choque entre os dois

princípios164.

É inegável que, ao longo do tempo, a tradição sofreu alterações que

ensejaram inclusive o seu reconhecimento na forma imaterial nos casos

especificamente previstos, mas tais circunstâncias não permitem a conclusão de que

tenha sido considerada extinta como modo de transmissão da propriedade

mobiliária.

“Nondimeno cotesto modo di manifestare la rispettiva intenzione

dell’alienante e dell’acquirente, trattandosi di mero fatto sociale da interpretare via via

secondo l’evoluzione psicologica e civile della società, venne naturalmente, per

opera della giurisprudenza, a staccarsi via via dalla pura materialità dell’atto. Nel

diritto giustinianeo la transmissione del possesso si può compiere in modi cosi

dissimulati e quasi spirituali, che a dichiarare il transferimento della proprietà per

mutuo consenso no v‘è più che un passo. Tali sono i casi delle tradizione simbolica,

164 Direito Privado Romano, cit., p. 105.

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longa manu, brevi manu e del costituto possessório; tutti riassunti nella categoria

generale della traditio ficta”165.

Afirma-se que a imaterialidade da tradição nos casos

especificamente detalhados ao longo da história romana não comprova que a

transmissão da propriedade passou a ser reconhecida mediante a mera

manifestação de vontade das partes, mas antes confirma a regra de que no direito

romano a transmissão da propriedade pela traditio dependia necessariamente da

entrega – material ou imaterial, nos casos especificamente previstos – do bem e do

justo título (ou justa causa).

Essa a lição romana aceita pelo direito brasileiro, que reconhece a

distinção entre titulus adquirendi e modus acquisitionis. Titulus adquirendi é “a causa

jurídica ou razão de ser da transmissão da aquisição ou transmissão do direito”;

modus acquisitionis é “o fato ao qual a lei atribui o efeito de constituir um direito real

ou operar a sua transmissão”166.

De acordo com a máxima romana “traditionibus et usucapionibus

dominia rerum, non nudis pactis transferuntum”, o domínio das coisas se transfere

por tradição e usucapião, nunca por simples pactos. E, se por um lado o contrato por

si não transfere o domínio, por outro lado a tradição por si também não é suficiente à

transmissão da propriedade, porque é necessário que seja precedida de uma justa

causa. Ou seja, para a aquisição da propriedade, no sistema romano, de acordo com

a teoria aceita no direito brasileiro, o título não é suficiente para transferir o domínio

e o modo só transfere o domínio se o título for justo. Vale dizer, são necessários o

165 Pietro Bonfante. Instituzioni, cit., 1902, p. 237. 166 Orlando Gomes. Contratos, cit., p. 224.

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título e o modo167.

Qualquer outra posição a respeito do direito romano, em que pese a

sua relevância em termos de pesquisa e de desenvolvimento teórico, não pode ser

aceita, porque em desacordo com os institutos romanos em que se fundamenta o

direito brasileiro, como se verá no estudo do sistema brasileiro de transmissão da

propriedade mobiliária (item 3.5).

3.2 – Sistema alemão

O sistema alemão de transmissão da propriedade tem sua origem no

direito romano e exige, para a transmissão da propriedade dos bens móveis, “la

entrega de la cosa com la voluntad de las partes dirigida a la transmissión” ou seja,

“la transmissión se verifica por entrega y acuerdo sobre el traspasso de la

propriedad”168.

A entrega “se verifica generalmente mediante dar y recibir

corporalmente, y no es, em tal caso, una declaración bilateral de voluntad, sino un

acto real”169.

167 Orlando Gomes. Direitos reais, cit., p. 157. 168 Ludwig Enneccerus; Theodor Kipp; Martin Wolff. Tratado de derecho civil. Derecho de cosas (por Martin Wolff). Barcelona: Bosch, Casa Editorial, 1951. Tercer Tomo, Volume II, p. 372. 169 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de cosas (por Martin Wolff), cit., p. 372. A respeito da classificação do ato de disposição como contrato real, Andréas Von Tuhr adverte: “Como en el comienzo los juristas han advertido la naturaleza abstracta del acto dispositivo en materia de cosas, y especialmente de contratos reales, ha podido abrirse paso el hábito de designar al acto dispositivo como negocio real, por la circunstancia de que es abstracto. Por ejemplo, para distinguir el pactum de cedendo de la cesión, se ha clasificado a esta última como contracto real, incurriendo en error, pues la cesión no es y no puede ser contrato real, ya que su objeto es uma obligación”. O autor também refere que “parece que los redactores de los Motivos no tuvieram conciencia de haber creado com la expresión ‘disposición’ um nuevo término técnico, que es suficiente para designar a los negócios que afetan el activo del patrimônio, em oposición a los que fundamentan obligaciones” (Teoria general del derecho civil aleman. Buenos Aires: Editorial Depalma, 1947. Volumen II1, p. 283-284).

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Como característica peculiar e diversa do sistema romano, a

transmissão da propriedade mobiliária no sistema alemão não se verifica por meio

de um título – negócio jurídico – e de um modo, mas sim por meio de dois negócios

jurídicos. “La transmissión es contrato real y debe, por lo tanto, diferenciarse del

negocio que obligue a la transmissión”170.

Ou seja, para a transmissão da propriedade é necessário um outro

ato, além do contrato, mas esse outro ato não está condicionado necessariamente

ao contrato, porque para a transmissão da propriedade se abstrai a causa171, o que

permite afirmar que, ainda que lhe falte um negócio causal válido, a transmissão

será eficaz. “O sistema alemão dá eficácia real à entrega-tomada, sem permitir que

se veja, através da transparência do acordo, a causa do negócio jurídico básico”172.

Tratando-se de dois negócios jurídicos desvinculados, não é

suficiente que as partes tenham manifestado seu consentimento quanto ao negócio

causal antecedente (o contrato de compra e venda, por exemplo), mas sim é

necessário que o manifestem válida – e novamente – quando da efetivação da

tradição. Para a transmissão da propriedade mobiliária por meio da entrega do bem

móvel, portanto, a entrega “há de ser la expressión de la voluntad de transmitir, la

aquisición de la possessión, expressión de la voluntad de adquirir la propriedad”173.

Embora seja possível, quando do aperfeiçoamento do ato de

disposição - ou contrato real de entrega –, o reconhecimento de que as partes já

170 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de cosas (por Martin Wolff), cit., p. 375. 171 Orlando Gomes. Direitos reais, cit., p. 158. 172 Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1956. Tomo XV, p. 239. 173 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de cosas (por Martin Wolff), cit., p. 376.

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haviam manifestado validamente o seu consentimento e de que nenhum elemento

permite a conclusão de que haveria modificação de sua vontade, exige-se que no

momento da entrega subsistam os requisitos do primeiro contrato, como a

capacidade das partes para contratar.

O sistema alemão admite a transmissão da propriedade por traditio

brevi manu, desde que o adquirente já esteja na posse do bem. Nessa hipótese, é

indiferente que o adquirente tenha obtido a posse do próprio alienante ou de um

terceiro, porque o negócio jurídico causal será reconhecido como suficiente à

transmissão da propriedade mobiliária. A transmissão da propriedade mobiliária,

nesse caso específico, será reconhecida pela manifestação de vontades das partes

contratantes.

A entrega, como contrato real desvinculado do acordo que lhe pode

ser considerado causal, também pode ser substituída pelo constituto possessório e

pela cessão da pretensão de entrega.

O constituto possessório apresenta as mesmas características do

sistema romano e do sistema brasileiro e funciona de forma inversa em relação à

traditio brevi manu. Os dois institutos – o constituto possessório e a traditio brevi

manu – permitem a alteração do título sob o qual o possuidor mantém consigo o

bem objeto do contrato, sem que o referido bem mude de mãos.

No constituto possessório, o alienante, titular do domínio e da posse

de um bem, celebra um contrato – que constitui a causa da transmissão da

propriedade – com o adquirente. Mediante previsão expressa – ou implícita – no

referido contrato, o alienante transfere o seu domínio, mas sob o fundamento do

mesmo contrato mantém consigo a posse do referido bem, como se dá no caso do

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proprietário do veículo que o aliena, mas o mantém na qualidade de locatário ou de

comodatário. São necessários dois requisitos à transmissão da propriedade: o

acordo entre o alienante e o adquirente a respeito da transmissão da propriedade e

o acordo entre ambos a respeito da relação jurídica que fundamenta a manutenção

do bem sob a posse do antigo proprietário e atual possuidor a título diverso. Ou seja,

a retenção do bem pelo alienante que deixa de ser proprietário deve ser justificada

pela circunstância de se tornar possuidor.

Na traditio brevi manu, aquele que mantinha a posse direta ou

imediata do bem, mas não era o titular do seu domínio, celebra um contrato de

compra e venda com o proprietário do bem, titular da propriedade e da posse

indireta. Mediante previsão expressa – ou implícita – no contrato, o adquirente, que

era apenas possuidor, passa a ser o titular da propriedade, como se dá no caso em

que o locatário adquire do locador o bem locado174.

A cessão da pretensão de entrega, por fim, pressupõe a posse do

bem por um terceiro, que a mantém, já que também nesse caso não se verifica

entrega material do bem cuja propriedade é transmitida.

Quanto à aquisição de bem a non domino, o sistema alemão exige

distinção entre a aquisição de coisa extraviada e de coisa não extraviada.

Tratando-se de coisa extraviada, que se considera aquela cuja

posse foi perdida pelo possuidor imediato sem a manifestação de sua vontade, “se

excluye em principio la adquisición de la propriedad, aunque el adquirente proceda

174 Andréas Von Tuhr faz referência a uma situação que afirma ser bastante importante e pouco estudada, quanto ao momento da transmissão da propriedade por meio da traditio brevi manu: “Si el adquirente ya tiene la posesión, el consentimiento le transforma, sin más, en proprietário (brevi manu traditio), siempre que el acuerdo sea en el sentido de transferir inmediatamente la propriedad En cambio, si se convino en que el adquirente podrá apropriarse de la cosa que está en su posesión sólo en un momento ulterior, no adquiere la propriedad inmediatamente, sino la facultad de adquirirla más tarde por efecto de su voluntad” (Teoria. Volumen II1, cit., p. 217-218).

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de buena fe”, mas essa regra não se aplica ao dinheiro e aos títulos ao portador,

bem como não se aplica aos bens vendidos em hasta pública175.

Por sua vez, a propriedade da coisa não extraviada, do dinheiro e

dos bens vendidos em hasta pública é considerada transmitida inclusive a non

domino, desde que preenchidos dois requisitos: “la buena fé del adquirente y una

adquisición de la posesión de carácter diverso según sea el modo de transmisión. El

fundamento de este principio es que se considera digno de protección a quien creu

en la propriedad del enajenante que le procuro la posesión”176.

Por fim, quanto à transmissão a non domino por entrega (tradição

real) ou por acordo (tradição ficta), tem-se que a boa-fé do adquirente do bem

mediante entrega deve existir no momento da entrega, não se lhe aplicando

qualquer sanção se posteriormente vem a saber que o alienante não era o

proprietário do bem.

No caso da traditio brevi manu, exige-se a boa-fé do adquirente no

momento do acordo, bem como que se exige que o adquirente tenha obtido a posse

do bem do próprio alienante (a non domino) e não de terceiro.

O constituto possessório não enseja a transmissão da propriedade a

non domino, ainda que ao adquirente de boa-fé, considerando-se que a posse é

mantida nas mãos do próprio alienante a non domino. A única hipótese de

aperfeiçoamento da transmissão da propriedade nesse caso se dará mediante a

entrega do bem pelo possuidor/alienante ao adquirente, desde que a este se

reconheça ainda a boa-fé.

175 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de cosas (por Martin Wolff), cit., p. 394-395. 176 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de cosas (por Martin Wolff), cit., p. 396.

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E, quanto à cessão da pretensão de entrega, se o alienante é

possuidor mediato do bem, transmite ao adquirente a posse mediata e, juntamente

com esta, o adquirente recebe a propriedade do bem, desde que tenha agido de

boa-fé no momento da cessão. Mas a propriedade não será transmitida ao

adquirente se o alienante a non domino não for possuidor mediato do bem cuja

cessão de pretensão se transmite. Nesse último caso, o adquirente do bem

mediante a cessão da pretensão de entrega somente adquirirá a propriedade se

receber a posse do terceiro possuidor e desde que, ao recebê-la, seja-lhe

reconhecida a boa-fé.

3.3 – Sistema francês

No direito francês anterior ao chamado Code Napoléon, datado de

1804, o conceito teórico da compra e venda era o mesmo aceito pelo direito romano.

Aubry e Rau explicam que, de acordo com a doutrina antiga,

“l’aquisition des droits réels, et principalement celle du droit de proprietè, supposerait

em general le concours de deux éléments distincts, à savoir le titre e le mode

d’acquérir. D’après cette doctrine, le titre serait la cause juridique qui rendrait

l’acquisition légalement efficace, et le mode d’acquérir le fait par lequel elle se

consommerait”177.

Na prática cotidiana francesa, o princípio romano foi considerado

arbitrário e deixou de ser utilizado. Com o tempo, tornou-se usual, amparada pelo

177 “a aquisição dos direitos reais e especificamente do direito de propriedade supunha em geral o concurso de dois elementos distintos, a saber o título e o modo de adquirir. De acordo com essa doutrina, o título era a causa jurídica que tornava a aquisição legalmente eficaz, e o modo de adquirir era o fato por meio do qual a aquisição se consumava” (C. Aubry et C. Rau. Cours. Tome Douze, cit., p. 74/75).

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costume, a introdução da cláusula denominada dessaisine-saisine, que permitia a

transmissão da propriedade por tradição ficta e dispensava a entrega real e efetiva

do bem.

Quando das discussões a respeito da elaboração do Code Civil, “la

Commission chargée de présenter le projet de ce Code admit en principe que la

propriété, soit des meubles, soit de immeubles178, devait, indépendamment de la

tradition, et même de tout clause expresse destinée à y suppléer, se transférer par le

seul effet des conventions ayant pour object d’en opérer la transmission. Ce príncipe

fut adopté sans opposition par le Conseil d’Etat et par le Tribunat”179.

A partir do entendimento reconhecido como aceito pelo Código Civil

francês, nesse sistema se reconheceu à convenção o efeito translativo, o que

equivale a dizer que o título, por si, é suficiente para transferir a propriedade. Não é

necessário o modo, o que significa que, aperfeiçoada a convenção, não se reputa

necessária a formalidade da tradição.

A propriedade é transmitida solu consensu. “Dans le système du

Code Napoléon, les conventions ayant pour objet de transférer ou de constituer des

droits personnels ou réels, una fois parfaites comme telles, transmettent et

178 Considerado o objeto do estudo do presente trabalho, o sistema francês foi considerado exclusivamente quanto à transmissão da propriedade mobiliária. 179 “a Comissão encarregada de apresentar o projeto do Código admitiu que a propriedade, fosse de bens móveis ou imóveis, devia, independentemente da tradição, e independentemente de qualquer cláusula expressa para supri-la, ser transferida pelo efeito das convenções que tivessem como objeto o bem a ser transferido. Esse princípio foi adotado sem oposição pelo Conselho de Estado e pelo Tribunat” (C. Aubry et C. Rau. Cours, cit., p. 74/75). Pontes de Miranda afirma que a aceitação da mudança do sistema de transmissão da propriedade mobiliária não foi consensual e que a melhor doutrina francesa lhe foi contrária, para cuja comprovação transcreve Pothier: “La chose que le débiteur s’est obligé de donner, continue donc de lui appartenir, et le créancier ne peut devenir propriétaire que par la traditión réelle ou feinte, que lui en fera le debiteur em accomplisant son obligatión” (Robert Joseph Pothier. Oeuvres, I, n.º 151, 39 APUD Pontes de Miranda. Tratado. Tomo XV, cit., p. 243 (“A coisa que devedor está obrigado a entregar continua a lhe pertencer, e o credor não pode se tornar proprietário senão pela tradição real ou ficta que lhe fará o devedor em cumprimento de sua obrigação”).

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établissent ces droits par elles-mêmes, c’est-à-dire indépendamment de toute

formalité extrinsèque, et de tout acte d’exécution; et ce, non seulement en ce qui

concerne les rapports des parties contractantes, mais encore vis-à-vis des tiers,

auxquels telle ou telle convention serait oposable de sa nature, et d’après les règles

établies em matière de preuve”180.

Especificamente quanto aos bens móveis, o artigo 2279 do Código

Civil francês estabelece que “la possession vaut titre”181 e é utilizado para fins de

solução de litígios envolvendo bens dessa natureza182.

O fundamento da regra é a ausência de proteção do adquirente de

um bem móvel. Embora a reivindicação do bem móvel pelo proprietário obedecesse

à lógica jurídica de que ninguém pode alienar o que não é seu, considerava-se que

causava insegurança nas relações jurídicas do dia-a-dia. “Ahora bien, es muy difícil,

en ocasión en que se trata de un mueble, el verificar los derechos de su causante;

las operaciones mobiliarias no constan geralmente por escrito; los muebles se

transmiten, de vendedor a comprador, por ejemplo, muy simplesmente de mano a

mano, sin que la transferencia de propriedad deje huellas; de hecho, el comprador

de um mueble no dispone de ningún medio eficaz para verificar la situación jurídica

180 “No sistema do Código napoleônico, as convenções que têm por objeto transferir ou constituir direitos pessoais ou reais, uma vez aperfeiçoadas, transmitem e estabelecem esses direitos por si mesmas, ou seja, independentemente de qualquer formalidade extrínseca e de qualquer ato de execução, e isso não apenas em relação às partes contratantes, mas também em relação aos terceiros em relação aos quais a convenção seria oponível por sua natureza, de acordo com as regras estabelecidas em matéria de prova” (C. Aubry et C. Rau. Cours, cit., p. 77). 181 A posse equivale ao título. 182 “Como la excepción está siempre en oposición con el principio al que se opone, es preciso llegar a la conclusión de que ese principio consiste aqui en la negativa de la reividicatión contra el poseedor de um mueble. El artículo 2279 debe, pues, entenderse de la manera siguiente: 1º en tesis general, no se reivindican los muebles (1er. apartado); 2º por excepción, la víctima de una pérdida o de un robo tiene la acción de reivindicación durante cierto tiempo” (Louis Josserand. Derecho civil. La propriedad y los otros derechos reales y principales. Buenos Aires: Bosch y Cia. Editores, 1950, p. 208-209).

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de su causante; y por eso, es injusto que quede expuesto a la reivindicación por

parte de um tercero; la equidad exige que quien entró en posesión de um mueble en

condiciones normales, no pueda ser inquietado”183.

A aplicação desse dispositivo legal pode funcionar como uma regra

de prova ou como um princípio. “Pour régler ce conflit entre titulaires de droits réels

concurrents en l’absence de publicité foncière, l’article 2279, al. 1er fournit une

solution fort utile en faisant présumer que le possesseur a acquis par juste titre le

meuble litigieux. Le possesseur est donc dispensé de rapporter la preuve de son

droit sur le meuble. Le texte procède ainsi à um renversement de charge de la

preuve car c’est à la personne revendiquante ou à ses ayants droits qu’il revient de

prouver que le possesseur n’a pas acquis la propriété de la chose184. A segunda

função, ou seja, a aplicação da regra do artigo 2279 como princípio se verifica na

hipótese de aquisição a non domino. “Dans ce cas, um possesseur a cru acquérir

valablement une chose d‘une personne qui n’en était pás le propriétaire.

L’application du principe selon lequel la possession vaut titre va permettre ici de

transférér instantanément le droit de propriété au possesseur a non domino sans que

le revendiquant puisse rapporter la preuve contraire. La présomption de propriété est

irréfragable et fait disparaître le conflit de droits entre acquéreur et véritable

183 Louis Josserand. Derecho civil, cit., p. 210. 184 Jean-Louis Bergel; Marc Bruschi; Sylvie Cimamonti. Traité de droit civil – Les biens. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, E.J.A., 1999, p. 243-244. “Para solucionar o conflito entre titulares de direitos reais concorrentes na ausência de publicidade na sua origem, o artigo 2279, alínea primeira, estabelece uma solução de grande utilidade ao estabelecer a presunção de que o possuidor adquiriu mediante justo título o bem móvel litigioso. Essa presunção dispensa o possuidor de produzir a prova de seu direito sobre o referido bem. O texto impõe a inversão do ônus da prova, recaindo sobre o reivindicante a necessidade da prova de que o possuidor não adquiriu a propriedade do bem litigioso”.

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propriétaire”185.

As duas aplicações da regra do artigo 2279, alínea primeira, do

Código Civil francês, não permitem a conclusão de que, quanto aos bens móveis, a

tradição foi (re)admitida por aquele sistema de direito como modo de transmissão da

propriedade mobiliária186.

Considera-se que a alínea segunda do mesmo dispositivo legal

(“Néanmoins celui qui a perdu ou auquel il a été volé une chose peut la revendiquer

pendant trois ans à compter du jour de la perte ou du vol, contre celui dans les mains

duquel il la trouve; sauf à celui-ci son recours contre celui duquel il la tient”187)

restringe consideravelmente a aplicação da alínea primeira e afasta a possibilidade

de reconhecimento de posse como comprobatória da propriedade, como regra.

Nesse caso, a posse daquele que pensou ter adquirido o bem validamente – posse,

portanto, de boa-fé, reconhecida como apta a comprovar a propriedade, nos termos

da alínea primeira – cede à prova da propriedade sem posse daquele que, tendo

sido proprietário e possuidor, perdeu a posse em decorrência da perda ou do furto

do bem em questão.

Por outro lado, tem-se que a regra do artigo 2279, alínea primeira,

do Código Civil francês, embora não admita a conclusão de que o sistema francês

185 “Nesse caso, um possuidor acredita ter adquirido validamente um bem de uma pessoa que não era o proprietário. A aplicação do princípio segundo o qual a posse vale como título permite transferir imediatamente o direito de propriedade ao possuidor a non domino, sem que o reivindicante possa produzir prova em contrário. A presunção de propriedade é irrefragável e faz desaparecer o conflito de direitos entre o adquirente e o verdadeiro proprietário” (Jean-Louis Bergel et AL. Traité – Les Biens, cit., p. 244). 186 Lafayette Rodrigues Pereira afirma que o direito francês cedeu “à força das coisas” e restabeleceu de fato a tradição como modo de transmissão da propriedade mobiliária por meio da previsão do artigo 2279 do Código Civil Francês (Direito das Coisas, cit., nota 2). 187 “Não obstante, aquele que perdeu um bem ou o teve furtado pode reivindicá-lo durante três anos a contar da data da perda ou do furto contra aquele que a encontrou; salvo a este o direito de regresso contra aquele de quem o adquiriu”.

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(re)admitiu a tradição como modo de transmissão da propriedade mobiliária,

comprova que o sistema que admite a transmissão da propriedade mobiliária por

meio das convenções apresenta falhas graves que, em casos de discussão a

respeito de (des)cumprimento de contratos de compra e venda de bens móveis,

poderão ensejar problemas da mesma natureza dos problemas identificados nos

sistemas que exigem, além do título (ou convenção), o modo para a transmissão da

propriedade mobiliária.

Considera-se a situação concreta em que duas partes celebraram

um contrato escrito de compra e venda de um aparelho de som. Suponha-se que o

comprador pagou o preço quando da celebração do contrato, mas não recebeu

imediatamente o bem porque foi providenciar os meios necessários ao seu

transporte, por exemplo. Em razão da eficácia conferida pelo sistema de direito

francês ao contrato de compra e venda, a celebração do contrato, por si, transferiu a

propriedade do aparelho de som ao comprador. Em conseqüência, a recusa do

vendedor à entrega do bem enseja ao comprador o direito à reivindicação do

aparelho de som, como proprietário. Para a reivindicação, o comprador deverá

comprovar a celebração do contrato de compra e venda, mediante os meios de

prova admitidos pela legislação francesa pertinente. No caso concreto referido, o

comprador dispõe do próprio contrato escrito, como justo título, a comprovar a

transmissão da propriedade do bem móvel.

Comprovada a celebração do contrato, aplicar-se-á a regra geral de

que a propriedade se transmite pela convenção e independentemente de qualquer

ato externo, e o aparelho de som deverá ser entregue ao comprador, como

proprietário.

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A solução será diversa se o contrato de compra e venda tiver sido

celebrado de forma verbal e na presença exclusiva das artes. Suponha-se ainda que

o comprador tenha feito o pagamento do preço, em dinheiro, no ato da celebração,

sem exigir recibo ou qualquer outra prova da quitação de sua obrigação. O

comprador, que, além de proprietário do aparelho de som como conseqüência da

própria celebração do contrato, cumpriu a sua obrigação de pagamento do preço,

não tem a posse do aparelho de som. Mantém-na o próprio vendedor, e a posse (do

vendedor) é injusta a partir da recusa ao pedido de entrega feito pelo comprador.

Considerada a ausência de prova da celebração do contrato, porque

se tratou de contrato verbal celebrado na presença exclusiva das partes, bem como

a ausência de prova do pagamento do preço pelo comprador, é de se reconhecer a

inviabilidade concreta da produção da referida prova, que permitiria, por sua vez,

a prova da transmissão da propriedade e daria ao comprador o direito à

reivindicação do aparelho de som como proprietário, conforme o exemplo

anteriormente utilizado.

Nesse caso, inviabilizada a prova da convenção, restará a aplicação

do disposto no artigo 2279, alínea primeira, do Código Civil francês, que, como regra

de prova, ensejará a conclusão de que ao vendedor não se impõe o ônus de

comprovar que o aparelho de som é seu, embora não o seja, conforme o exemplo

elaborado. E o comprador não disporá de nenhum meio de prova dos fatos

constitutivos de seu direito de propriedade, que somente se sabe existente em

decorrência da narrativa.

Considerados os dois exemplos, a conclusão é de que, quanto aos

bens móveis, a posse equivale ao título somente em caso de não comprovação da

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existência do próprio título pela parte a quem este beneficiaria.

No segundo exemplo, em que será aplicada a regra do artigo 2279

do Código Civil francês e será reconhecida a propriedade ao vendedor, pode-se

alegar que a solução – injusta – não decorre de um problema do sistema de direito

francês de transmissão da propriedade mobiliária, mas sim das regras de prova do

referido sistema. Considera-se, entretanto, que se trata de regras de prova

decorrentes da aplicação dos próprios institutos de direito material previstos no

artigo 2279 do Código Civil francês.

A conseqüência é que a regra criada com o objetivo de prestigiar o

concreto e beneficiar a situação fática, em detrimento da teoria – da transmissão da

propriedade mobiliária por meio da convenção –, pode acabar por beneficiar a má-fé

em detrimento da boa-fé.

O problema não é exclusivo do sistema que reconhece às

convenções a eficácia da transmissão da propriedade, como se verá quando do

estudo do sistema brasileiro.

3.4 – Sistema inglês188

O principal diploma legal referente à transmissão da propriedade

188 A Inglaterra, a Escócia, o País de Gales e a Irlanda do Norte formam o Reino Unido, cujo sistema de direito é, em tese, uno. No entanto, existem previsões específicas, como por exemplo a Section 11 do Sale of Goods Act 1979, que estabelece que as subseções 2 a 4 e 7 não se aplicam à Escócia e a que a subseção 7 se aplica somente à Escócia. Outro exemplo é o limite de dez libras para que o contrato precise ser celebrado na forma escrita ou tenham sido dadas arras ou exista alguma prova concreta de sua celebração para que esse contrato possa ser discutido em juízo, regra que vigora na Irlanda do Norte, mas não vigora na Inglaterra. Ainda, por se tratar de países de common law, a interpretação das regras pelos tribunais não é necessariamente a mesma. Por tal razão, tendo sido estudada a lei inglesa aplicada aos casos concretos daquele país, a opção foi pela referência exclusiva ao sistema inglês e não ao sistema do Reino Unido.

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mobiliária na Inglaterra é o Sale of Goods Act189, datado de 1893, reeditado em 1979

e emendado em algumas oportunidades desde então.

As regras estabelecidas pelo Sale of Goods Act a respeito da

transmissão da propriedade mobiliária decorreram da influência comercial vigente

no século XIX, ocasionada pelo expansionismo inglês durante a era vitoriana. As

regras anteriores à era vitoriana tinham por fundamento exclusivamente os costumes

estabelecidos pelas partes nas respectivas regiões onde os contratos eram

celebrados. Por causa do expansionismo decorrente do estabelecimento de diversas

colônias inglesas ao redor do mundo e do crescimento da indústria inglesa, que

ensejou o crescimento do comércio com outros países, os vitorianos decidiram que

seria necessário racionalizar. Pretenderam formular regras que tivessem validade

para o país e também internacionalmente. Desse pensamento resultaram as regras

referentes à transmissão da propriedade mobiliária como se as reconhece

atualmente190.

A propriedade mobiliária é transmitida por meio da manifestação do

consentimento das partes, independentemente de qualquer ato externo, ou seja, no

caso do contrato de compra e venda, independentemente do pagamento do preço e

da entrega do bem, com a ressalva de que o bem objeto do contrato deve ser

passível de entrega imediata.

O acordo que dá ensejo à transmissão da propriedade mobiliária

pode ser inclusive verbal, e não existe limite de valor para que o acordo verbal tenha

validade entre as partes e perante terceiros. Isso significa que a propriedade

189 Disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7. 190 Tony Lancaster, Magistrado da Newcastle Upon Tyne Crown Court, em entrevista realizada no dia 26 de julho de 2005, em Newcastle, Inglaterra.

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mobiliária é transferida pela manifestação da vontade das partes tanto no caso de o

objeto ser uma caneta, no valor de uma libra, como no caso de ser um anel de

diamante, no valor de dez mil libras.

Tony Lancaster, magistrado da Newcastle Upon Tyne Crown Court,

apresenta o seguinte exemplo: duas pessoas celebram um contrato de venda de um

anel de diamante. O bem objeto do contrato existe e é passível de entrega imediata,

o que permite a conclusão de que a própria celebração do contrato transmitiu a

propriedade do vendedor ao comprador. Mas o anel é guardado no cofre da casa do

vendedor, onde permanecerá até a manhã do dia seguinte ao dia da celebração do

contrato e da conseqüente transmissão da propriedade mobiliária, oportunidade em

que o comprador passará para buscá-lo, conforme acordo expresso das partes. Se

durante a noite o cofre for furtado, considerada a ausência de culpa do vendedor, a

perda do bem será do comprador, porque a propriedade do anel lhe havia sido

transmitida no momento em que o contrato fora celebrado. Se se tratar de contrato

celebrado entre um consumidor e uma joalheria, por exemplo, a regra legal estrita

poderia dar lugar à utilização de normas criadas em benefício do comércio e do

consumidor, o que ensejaria a utilização do seguro da joalheria para a cobertura do

dano decorrente do furto do anel vendido ao consumidor e provavelmente

acarretaria a oportunidade ao consumidor de escolher outro anel, que lhe seria

entregue no lugar do anel furtado. Mas essa solução caracterizaria exceção e não a

aplicação da regra estrita prevista legalmente191.

As regras específicas para as hipóteses decorrentes do contrato de

compra e venda serão estudadas no item 5.4.

191 Tony Lancaster, cit.

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3.5 – Sistema brasileiro

Não há consenso se no direito brasileiro anterior ao Código Civil de

1916 a transmissão da propriedade mobiliária se dava pelo contrato

independentemente de qualquer ato externo ou exigia a tradição.

Luiz da Cunha Gonçalves afirma que, no Código Civil de 1916, o

legislador brasileiro abandonou o princípio tradicional do direito civil, previsto nas

Ordenações, e adotou o modelo alemão, ao estabelecer que a propriedade dos bens

não se transfere pelo contrato antes da tradição192. Sílvio de Salvo Venosa afirma

que, no direito vigente anteriormente ao Código Civil de 1916, “proclamava-se a

suficiência tão-só do contrato para a aquisição da propriedade, sem necessidade de

outra formalidade”193. Caio Mário da Silva Pereira, no mesmo sentido, afirma que no

direito brasileiro anterior ao Código Civil de 1916 considerava-se que “a propriedade

se transmitia exclusivamente pelo contrato, sem a necessidade de qualquer outra

exigência”194. Darcy Bessone, por sua vez, ao tratar da eficácia do contrato de

compra e venda no direito brasileiro anterior à vigência do Código Civil de 1916,

afirma que não houve consenso sobre a transmissão da propriedade pelo contrato

ou a necessidade do ato dispositivo consistente, no caso dos bens móveis, na

tradição195.

Consignado o dissenso a respeito do direito brasileiro pré-codificado,

192 Da compra e venda no direito comercial brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1950, p. 72. 193 Direitos reais, cit., p. 187. 194 Instituições. Direitos reais, cit., p. 118. 195 Da compra e venda, cit., p. 74-75. Também a respeito da transmissão da propriedade por meio do contrato de compra e venda ou da tradição no Brasil anteriormente à vigência do Código Civil de 1916, conferir o Capítulo 6 – O contrato de compra e venda de bem móvel no sistema de direito brasileiro, Item 6.1 – Eficácia.

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a manifestação da maioria dos juristas comprova que a tese da transmissão

contratual da propriedade mobiliária no Brasil jamais obteve real aprovação.

A respeito da transmissão da propriedade mediante o contrato e

independentemente de qualquer ato externo, escreveu Teixeira de Freitas, na

exposição de motivos de seu projeto de Consolidação das Leis Civis: “Estabelecido

o direito pessoal, de onde tem de resultar a transmissão da propriedade, e pois que

a fé dos contractos deve ser mantida, muitos espiritos não quizerão vêr mais nada; e

derão logo a propriedade como transmittida, e como adquirida, só pelo simples

poder do concurso das vontades em um momento dado. Tomou-se a propriedade

em seu elemento individual somente, não attendeu-se ao seu elemento social;

contou-se com a boa fé das convenções, como se má fé não fosse possível, ou não

pudesse prejudicar á terceiros. As cousas, que se convenciona transmittir, é

possível, que não sejam transmittidas; e a mesma cousa póde sêr vendida a duas

differentes pessoas. Se o contracto basta, independente de qualquer manifestação

exteriôr da transferência do domínio, o segundo compradôr póde em boa fé

transmittir também a cousa, que assim irá sucessivamente passando á outros. Ahi

temos um conflicto de direitos, ahi temos uma colisão, onde aparece de um lado o

interesse de um só, e do outro lado o interesse de muitos196.

Também a respeito da transmissão da propriedade mediante tão

somente a celebração do contrato, escreveu Manoel Ignacio Carvalho de Mendonça:

“Identificar contracto com domínio foi sempre a mais revoltante das aberrações

jurídicas. É pelos defeitos reaes e inilludiveis do systema francez que as legislações

de outros povos tem-se atido ao principio romano. Este é indubitavelmente mais

196 Augusto Teixeira de Freitas, Consolidação das Leis Civis. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. Vol. I, p. CXCII-III.

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accórde com uma concepção social da propriedade”197.

A partir do Código Civil de 1.916, a corrente predominante foi de que

o direito brasileiro adotou o sistema romano para a transmissão da propriedade

mobiliária198, mediante a exigência, para a sua efetivação, de um título aquisitivo e,

além deste, de um modo de aquisição.

A respeito da tradição no sistema romano, escreveu Teixeira de

Freitas, também na exposição de motivos de seu projeto de Consolidação das Leis

Civis: “Pela natureza das cousas, por uma simples operação lógica, por sentimento

espontaneo de justiça, pelo interesse da segurança das relações privadas ás que

liga-se a prosperidade em geral, como se-queira dizer, decide-se de prompto, que o

direito real deve-se manifestar por outros caracteres, por outros signaes, que não

sejam os do direito pessoal; e que esses signaes devem ser tão visíveis, tão

públicos, quanto fôr possivel. Não se-concebe, que a sociedade esteja obrigada a

respeitar um direito, que não tem conhecido. Eis a razão philosophica do grande

principio da tradição, que a sabedoria dos Romanos tem fixado, as legislações

posteriores reconhecido, e que também passou para o nosso Direito Civil199.

Segundo Laffayette Rodrigues Pereira, a natureza do domínio exige

que o seu deslocamento de uma pessoa a outra seja identificado por um sinal

197 Manoel Ignácio Carvalho de Mendonça. Doutrina e Prática das Obrigações. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves & Cia. Volume I, p. 196. 198 Código Civil de 1916, Art. 620. “O domínio das coisas não se transfere pelos contratos antes da tradição. Mas esta se subentende, quando o transmitente continua a possuir pelo constituto possessório (artigo 675)”. A respeito do sistema brasileiro, R. Limongi França afirma que não se pode dizer que adotou o sistema alemão, “porque sempre seguiu a tradição romana, muito antes do aparecimento do Código Alemão, cujo projeto é da última década do Século XIX” (Manual de direito civil, cit., p. 75-76). Ou seja, o doutrinador também afirma que o direito brasileiro pré-codificado já exigia o título aquisitivo e a modo de aquisição para a transmissão da propriedade mobiliária (Conferir as notas 192 a 195). 199 Augusto Teixeira de Freitas, Consolidação, cit., p. CLXXXIII.

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exterior que o comprove e o confirme perante a sociedade. Como direito absoluto,

no sentido de ser oponível erga omnes, é imperioso que se garanta à sociedade o

conhecimento da transmissão da propriedade, para a segurança dos interesses

sociais e dos interesses ligados à própria propriedade, visando a prevenir as fraudes

que a má-fé de alguns, protegida pela clandestinidade que se seguiria decorrente da

transmissão da propriedade sem sinal exterior,– poderia causar em prejuízo da boa-

fé da grande maioria200.

Adotado pelo direito brasileiro o sistema romano, pode-se afirmar

que o contrato, por si só, não transmite a propriedade da coisa, mas apenas cria a

obrigação de transferir201. O título – ao que interessa especificamente ao objetivo do

presente trabalho, o contrato de compra e venda – é simplesmente a causa da

aquisição e não tem eficácia translativa.

Ou seja, o contrato produz somente um direito pessoal: para o

alienante, gera a obrigação de entregar a coisa; para o adquirente, gera o direito de

exigir do alienante a tradição do bem objeto do contrato. Antes de cumprida a

obrigação da entrega pelo alienante não há transmissão do domínio, o que resulta

na conclusão de que o alienante detém e retém a propriedade do objeto alienado,

bem como na conclusão de que, até o momento da tradição, o adquirente é um

mero credor do alienante, com ação pessoal para forçá-lo a entregar a coisa ou a

restituir-lhe o preço no caso de ter sido pago. O cumprimento da obrigação do

alienante somente se consuma pela tradição, e a tradição, uma vez realizada,

desloca o domínio da coisa alienada da pessoa do alienante para a pessoa do

200 Lafayette Rodrigues Pereira. Direito das coisas, cit., p. 127. 201 José Osório de Azevedo Júnior. Compra e venda – troca ou permuta. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 19.

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adquirente.

No ensinamento de Manoel Ignacio Carvalho de Mendonça: “Os

contractos e as obrigações delles resultantes foram sempre, como são ainda,

apenas um justo titulo para a acquisição da propriedade por transferência de um

proprietario a outro; só produzem um direito puramente pessôal que, para o

alienante é a obrigação de entregar a cousa, e para o adquirente o de exigir a

tradição. Antes do alienante cumprir a obrigação que assume, nem-um domínio tem

o adquirente. O alienante continúa com a propriedade do objecto alienado, com sua

livre disposição”202.

A respeito do assunto, afirma Orlando Gomes que, embora o título

seja indispensável, por ser a fonte da aquisição, ou o negócio jurídico causal, não

basta para que esta se efetue, sendo imprescindível o modus, que, em suma, é o

fato jurídico lato senso a que a lei atribui o efeito de produzir a aquisição da

propriedade. O modo pressupõe um título conforme o direito e só existe se

reconhecido por lei203.

Entendemos que o sistema brasileiro exige para a transmissão da

propriedade mobiliária o título aquisitivo e o modo de aquisição. Para os fins do

presente trabalho, o contrato de compra e venda e a tradição.

3.6 – Paralelo entre direito estrangeiro e o sistema brasileiro

Considerados os sistemas romano, alemão, francês e inglês de

transmissão da propriedade mobiliária, afirma-se que o sistema brasileiro tem seu

202 Manoel Ignácio Carvalho de Mendonça. Doutrina, cit., p. 197. 203 Orlando Gomes. Direitos reais, cit., p. 159.

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fundamento no direito romano, especificamente na dupla exigência do direito

romano de um título aquisitivo e de um modo de aquisição para a transmissão da

propriedade mobiliária.

O sistema alemão, que, por um lado, apresenta semelhança com o

direito brasileiro em razão da duplicidade de momentos necessários à transmissão

da propriedade mobiliária, distancia-se do sistema brasileiro, por outro lado, em

razão da exigência de dois negócios jurídicos para a transmissão da propriedade,

enquanto o sistema brasileiro exige um título causal – o negócio jurídico – e um

modo.

A distinção entre o negócio jurídico da tradição no direito alemão e a

tradição como modo de aquisição no direito brasileiro tem especial relevância no

caso de tradição sem justo título. No sistema de direito alemão, em razão da

abstração da causa à qual se segue a tradição, esta, efetivada, produzirá seus

efeitos, ou seja, a propriedade terá sido transmitida, ainda que sem causa. Por outro

lado, no sistema de direito brasileiro, porque o modo está necessariamente ligado ao

negócio jurídico causal, que constitui o seu fundamento e subordina a sua validade,

como regra a tradição sem justo título não ensejará os seus efeitos, ou seja, o

adquirente terá a posse injusta do bem e estará sujeito à sua reivindicação pelo

proprietário.

Quanto aos sistemas francês e inglês, é inegável que, em princípio,

divergem de forma absoluta do sistema brasileiro, considerado especificamente o

momento em que se reputa transferida a propriedade, ou seja, o momento da

celebração do contrato, nos dois primeiros sistemas, e o momento da tradição do

bem objeto do contrato, no sistema nacional.

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As regras gerais dos sistemas francês e inglês permitem a afirmação

inicial e genérica de que a propriedade mobiliária se transmite mediante a mera

convenção e independentemente de qualquer ato externo, ou seja,

independentemente da tradição.

Por outro lado, as diversas regras específicas dos dois sistemas

permitem também a conclusão de que ambos, reconhecidas as regras gerais,

reconhecem também a insuficiência destas à solução adequada de todas as

situações concretas.

É sabido que a propriedade é um poder de direito, enquanto a posse

é um poder de fato sobre a coisa. Enquanto no juízo possessório se discute o jus

possessionis, que é o direito à posse nascido da própria posse, no juízo petitório se

discute o jus possidendi, que se caracteriza como o direito à posse nascido do direito

de propriedade.

O fundamento da discussão da posse há que levar em conta a sua

origem, especificamente se foi justa. Isso porque, tratando-se de posse injusta, não

poderá ser invocada contra o direito de propriedade, caracterizando violência contra

esse, ou será considerada meramente detenção, o que impedirá igualmente seja

invocada contra o referido direito de propriedade.

Consideradas tais circunstâncias, no sistema francês a regra do

artigo 2279 do Código Civil tem especial relevância.

A doutrina francesa fundamenta o seu conteúdo (“En fait de meuble,

la possession vaut titre”204) na constatação da insuficiência da proteção do

adquirente de bem móvel, em razão da inexistência de registro e, portanto, de

204 “Quanto aos bens móveis, a posse equivale ao título”. Acrescenta-se, equivale ao título que fundamenta a propriedade.

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controle da transmissão de bens dessa natureza.

Se, por um lado, não se reconhece que o referido dispositivo legal

(re)estabeleu a tradição como modo de transmissão da propriedade mobiliária, como

pretendeu Lafayette Rodrigues Pereira205, por outro lado é inegável que permitiu

uma perspectiva diversa a respeito da situação fática da posse como prova da

propriedade.

A conclusão é de que no sistema francês a regra geral de que a

convenção transmite a propriedade se aplica aos bens móveis. Comprovada a

convenção, esta se sobrepõe à posse para o fim de reconhecimento do titular da

propriedade. E, não comprovada a convenção, e somente nesse caso, a posse é

reconhecida como – equivalente ao – título para fins de reconhecimento da

titularidade da propriedade206.

Por sua vez, no sistema brasileiro, a comprovação da celebração da

convenção não ensejará o reconhecimento da titularidade da propriedade ao

adquirente, considerando-se que o negócio jurídico causal constitui apenas o título

aquisitivo que fundamentará a tradição, por meio da qual a propriedade mobiliária

será transmitida. Em conseqüência, diversamente do que ocorre no sistema francês,

o sistema brasileiro não reconhece ao comprador o direito de se valer da ação de

reivindicação do bem, já que esta é exclusiva do proprietário (e o comprador que não

recebeu o bem pela tradição não é proprietário do bem comprado).

Afastada a regra geral – a propriedade mobiliária no sistema francês

é transmitida pela convenção e a propriedade mobiliária no sistema brasileiro é

205 Conferir a nota 186 206 Conferir 5.3.

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transmitida pela tradição fundada na convenção – em casos que não comportam a

sua aplicação por razões específicas a serem identificadas concretamente, tem-se

que os dois sistemas apresentam semelhança quanto à importância da posse do

bem móvel para o reconhecimento da titularidade de sua propriedade.

Assim é que, no sistema francês, o adquirente pelo constituto

possessório não adquirirá a propriedade do bem móvel se o alienante, que mantém

a posse do bem, aliená-lo a terceiro de boa-fé e entregá-lo materialmente a esse

terceiro. “En fait de meubles, le constitut possessoire n’investit pas l’acheteur de la

possession des choses vendues, à l’égard d’un second acquéreur de bonne foi. Ce

dernier sera préféré, s’il a été mis em possession réelle”207.

Portanto, a solução francesa para a situação comprova que, nessa

hipótese, a convenção foi suplantada pela tradição.

No Brasil, inexiste regra legal com o mesmo conteúdo do artigo 2279

do Código Civil francês, o que se reputa benéfico, considerado o sistema de

transmissão da propriedade mobiliária adotado e a incontestável existência de

número ilimitado de situações em que as circunstâncias ensejam consideração

específica.

Sem prejuízo, a posse do bem móvel é, como regra, o primeiro

indício a ser considerado para a prova da propriedade do referido bem208. Ou seja,

207 C. Aubry e C. Rau. Cours. Tome Cinquième, cit., p. 49 (“Quanto aos bens móveis, o constituto possessório não investe o adquirente na posse das coisas vendidas, considerado um segundo adquirente de boa-fé. Ao último será dada preferência se obteve a posse material dos bens”). 208 “Execução – Penhora – Nomeação de bens – Ordem do artigo 655 do Código de Processo Civil –Pedras preciosas – Prova da propriedade – Desnecessidade – Posse – Admissibilidade. Desnecessária a comprovação da titularidade do bem móvel por quem é possuidor, tendo em vista a presunção 'juris tantum'” (Segundo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Agravo de Instrumento n.º 639.381-00/5 – 8ª Câmara – Relator: Juiz Ruy Coppola – J. 27.7.2000).

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em princípio o possuidor do bem móvel é tido como o seu proprietário209.

Dessa regra decorre a conclusão de que, para discussão a respeito

da propriedade de bens móveis, incumbe àquele que a alega a comprovação do

fundamento da posse exercida pelo atual possuidor, ou seja, incumbe-lhe (àquele

que pretende discutir a propriedade de um bem móvel que se encontra na posse de

outrem) a comprovação de que a posse atual é exercida mediante título que não

prevalece sobre o seu próprio título. Não comprovado o fundamento da alegação, a

posse – atual – resiste e comprova a propriedade. Nesse sentido: “Agravo de petição

– Embargos de terceiro – Ausência de prova da propriedade – Improvimento –

Tratando-se de bens móveis, cuja propriedade se transfere pela simples tradição,

presume-se proprietário aquele que detém a posse dos bens, salvo prova em

sentido contrário, mormente quando, além de não provar a propriedade, a agravante

não apresentou nenhum argumento ou justificativa para os bens que alega serem

seus estarem em outro endereço e na posse de outra pessoa” (Tribunal Regional do

Trabalho de 20ª Região – Apelação n.º 00136-2005-004-20-00-9 – (2474/05) –

Relator: Juiz Eliseu Pereira do Nascimento – J. 30.08.2005)210.

209 “Embargos de Terceiro. Penhora sobre bens encontrados na residência do devedor. Propriedade presumida ‘juris tantum’. Alegação do bem pertencer a terceiro residente no mesmo imóvel. Ausência de prova a elidir a presunção. Recurso improvido. Os bens encontrados na residência do devedor presumem-se, até prova em contrário, de sua propriedade, cujo terceiro que habitar na mesma residência deverá para liberar da constrição os bens comprovar ser o titular de sua propriedade” (1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo – Recurso n.º 1528 – J. 24.02.99); “Embargos de Terceiro – Penhora – Incidência sobre bens móveis – Alegação do embargante de que é proprietário do imóvel onde se encontram os bens constritos. Posse inequívoca e propriedade dos bens móveis não demonstradas. Embargos improcedentes. Sentença mantida” (1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo – Acórdão n.º 9834 – Apelação Cível n.º 0000416-0/44 – Origem: Santos – 6ª Câmara – Relator: Carlos Roberto Gonçalves – V.U). 210 No mesmo sentido: “Embargos de terceiro – Alegação de ser o possuidor do bem – Não comprovação – Em se tratando de bem móvel, uma máquina pá carregadeira, a posse se traduz pela tradição do mesmo, mormente quando o bem vem sendo tranqüilamente utilizado nas atividades da empresa executada. Não provando, o embargante, ser o possuidor do bem, não há como garantir-lhe a restituição. Agravo improvido” (Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região – Apelação n.º 00387-2005-113-08-00-8 – 1ª Turma – Relator: Juiz Marcus Augusto Losada Maia – J. 18.11.2005).

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Tem-se, portanto, que no sistema de direito brasileiro a posse do

bem móvel, embora não comprove por si a propriedade, exerce papel relevante na

prova desta e é comumente invocada como fundamento das decisões judiciais em

que se afasta uma alegação de propriedade de um bem móvel desacompanhada da

posse do referido bem.

Quanto ao sistema inglês, embora, como já referido, apresente regra

geral que diverge de forma absoluta da regra geral do sistema brasileiro, reconhece

às partes maior liberdade do que o sistema francês para a modificação dessa regra

geral, por meio dos termos contratuais e da própria intenção das partes, a ser aferida

a cada caso concreto.

É importante salientar que a Inglaterra é um país de common law,

que, portanto, como regra, tem como base de seu direito as decisões proferidas nos

casos concretos, que constituem os precedentes a serem aplicados como

Também: “Tributário – Apreensão e perdimento de veículo e reboque utilizados em furto de mercadorias acobertadas pelo regime especial de trânsito aduaneiro mantidos – Propriedade incomprovada – Ilegitimidade ativa – Apelação improvida – 1. Não havendo prova segura da transferência do veículo antes da apreensão, resulta daí, no mínimo, indícios de simulação de referida venda para afastar o perdimento do bem, a uma, porque o único documento trazido aos autos para comprovar a alegada propriedade – Certificado de Registro de Veículos – está em nome do proprietário anterior, a duas, porque não há recibo, nota fiscal ou qualquer registro da venda do veículo no Cartório de Títulos e Documentos, a três, porque o reconhecimento de firma constante da Autorização para Transferência do Veículo ocorreu um mês após a data da apreensão do veículo, a quatro, porque não restou comprovada a tradição do automóvel em questão, pois no momento da apreensão, este estava sendo utilizado por terceiro, que segundo a testemunha e demais autuados era o proprietário do automóvel em questão, a cinco, porque as testemunhas judiciais em nada modificaram esse quadro, a seis, porque as Escrituras Públicas de Declaração juntadas aos autos, além de lavradas quase um ano após a data dos fatos, constituem prova unilateral. 2. Tendo sido tal reboque apreendido pela Polícia Federal de posse de terceiro, o qual, inclusive, portava seu Certificado de Registro e Licenciamento, e estando o anverso do Certificado de Registro de Veículo (Autorização para Transferência) assinado em branco pelo autor, por óbvio que o mesmo não pertencia mais ao autor reclamante, mas sim ao seu condutor/possuidor, porque a transferência de bem móvel ocorre com a simples tradição, não necessitando de nenhum registro ou formalidade para perfectibilizar-se. 3. Ante a fragilidade da prova de propriedade dos bens apreendidos em questão, não há como restituí-los aos autores ou afastar o perdimento decretado sobre os mesmos, pois aquele que pede a tutela jurisdicional em relação ao litígio deve ser o titular da pretensão formulada ao Poder Judiciário (arts. 3º e 6º do CPC). Precedentes desta Corte. (...)” (Tribunal Regional Federal da 4ª Região – Apelação Cível n.º 1998.04.01.080913-5 – Origem: PR – 2ª Turma – Relator: Juiz Alcides Vettorazzi – DJU 18.12.2002 – p. 706).

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fundamento para as decisões futuras. E que, apesar dessa natureza histórica, a

densidade da matéria consistente na celebração dos contratos de compra e venda e

na determinação do momento da transmissão da propriedade mobiliária ensejou a

edição de norma específica, o Sale of Goods Act 1979211, que prevê uma série de

regras a serem aplicadas para a solução das lides decorrentes das questões

referidas.

Em relação ao sistema brasileiro, o sistema inglês é muito mais

aberto, já que permite que muitas variantes sejam consideradas para a aferição do

momento da transmissão da propriedade mobiliária, enquanto o sistema brasileiro

reconhece, como regra, exclusivamente a transmissão da propriedade mobiliária por

meio da tradição.

Assim como se dá no sistema francês e no próprio sistema

brasileiro, como já referido, a posse de um bem móvel também representa grande

diferencial a ser considerado no sistema inglês em caso de discussão a respeito do

momento da transmissão da propriedade mobiliária, embora não se verifique nesse

sistema nenhuma previsão legal semelhante à do artigo 2279 do Código Civil

francês212.

211 Lei de Venda de Bens Móveis de 1979. A primeira edição dessa lei é de 1893. 212 “En fait de meubles, la possession vaut titre” (“Quanto aos bens móveis, a posse equivale ao título”).

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Capítulo 4 – Contrato de compra e venda de bem móvel

4.1 – Definição de contrato

Ulpiano, jurisconsulto romano, definiu contrato como “duorum

pluriumve in idem placitum consensus”, ou seja, o mútuo consenso de duas ou mais

pessoas sobre o mesmo objeto. Para Aristóteles, contrato é “uma lei feita por

particulares, tendo em vista determinado negócio”; para Kelsen, “a criação de uma

norma jurídica particular”213.

O direito alemão reconhece como contrato o meio pelo qual “una

relación obligatoria puede constituirse (contrato obligatorio), extinguirse (contrato

liberatório) o modificarse (contrato de modificación)”214.

No direito francês, “convention est l’accord de deux ou pluisiers

personnes sur um objet d’intérêt juridique” e “la convention qui a pour objet la

formation d’une obligation, ou la translation d’un droit, se nomme plus specialement

contrat”215.

O direito inglês aceita a definição de obrigações contratuais como

aquelas “obligations, which are voluntarily undertaken and owed to a specific person

or persons”216.

213 Washington de Barros Monteiro. Curso: obrigações – 2ª Parte, cit., p. 4-5. 214 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones (por Ludwig Enneccerus), cit., p. 142. 215 C. Aubry e C. Rau. Cours. Tome Quatrième, p. 412 (“convenção é o acordo de duas ou mais pessoas sobre um objeto de interesse jurídico” e “a convenção que tem por objeto a formação de uma obrigação ou a transmissão de um direito se denomina mais especificamente contrato”). 216 Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Contract#Comparison_of_contract_and_tort_law. (“obrigações que são voluntariamente assumidas e devidas para uma pessoa ou pessoas específicas”).

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No Brasil, Clovis Bevilaqua define contrato como o acordo de

vontades que tem por fim criar, modificar ou extinguir direitos217.

De acordo com Orlando Gomes, contrato, na concepção tradicional,

é “todo acordo de vontades destinado a constituir uma relação jurídica de natureza

patrimonial e eficácia obrigacional”218.

Caio Mário da Silva Pereira define contrato como o “acordo de

vontades, na conformidade da lei, e com a finalidade de adquirir, resguardar,

transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos”219.

Maria Helena Diniz afirma que o contrato “repousa na idéia de um

pressuposto de fato querido pelos contraentes e reconhecido pela norma jurídica

como base do efeito jurídico perseguido”220.

Segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, contrato

é o “negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes, limitadas pelos

princípios da função social e da boa-fé objetiva, auto-disciplinam os efeitos

patrimoniais que pretendem atingir, segundo a autonomia das suas próprias

vontades”221.

217 Clovis Bevilaqua. Código, cit., p. 194 (observação 1 ao artigo 1.079). 218 Orlando Gomes. Contratos, cit., p. 12. O autor também refere duas concepções antagônicas de contrato em relação ao seu conteúdo. De acordo com a concepção subjetiva, o conteúdo do contrato são os direitos e as obrigações das partes. “O contrato é, por definição, fonte de relações jurídicas, sem ser exclusivamente, no entanto, o ato propulsor das relações obrigacionais”. De acordo com a concepção objetiva, o conteúdo do contrato são os preceitos. “As disposições contratuais têm substância normativa, visando a vincular a conduta das partes. Na totalidade, constituem verdadeiro regulamento traçado de comum acordo. Tal, em suma, sua estrutura. É o contrato, portanto, fonte de normas jurídicas, ao lado da lei e da sentença”. 219 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Contratos., cit., p. 7. 220 Maria Helena Diniz. Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 19ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2003. 3º volume, p. 23. 221 Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. Novo curso de direito civil – Contratos. São Paulo: Editora Saraiva, 2005. Volume IV. Tomo 1 (Teoria Geral), p. 11-12.

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Distintas nos vocábulos, as definições têm o mérito de, cada uma a

seu modo, definir um dos principais institutos do direito ao longo da história da

humanidade.

Para os fins do presente estudo da transmissão da propriedade

mobiliária a partir do título consistente no contrato de compra e venda, adota-se a

definição de contrato de Clovis Bevilaqua, de acordo de vontades que tem por fim

criar, modificar ou extinguir direitos.

4.2 – Requisitos de validade

No sistema de direito brasileiro, os requisitos ou condições de

validade de um contrato podem ser divididos em duas espécies.

A primeira espécie diz respeito aos requisitos de ordem geral, que

são aqueles comuns a todos os atos e negócios jurídicos e estão previstos do artigo

108 do Código Civil brasileiro, ou seja, agente capaz, objeto lícito, possível,

determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei.

É considerada capaz toda pessoa natural que apresenta condições

de exercer pessoalmente seus direitos e de responder também pessoalmente por

suas obrigações. O próprio Código Civil estabelece as hipóteses em que uma

pessoa não tem capacidade para a prática dos atos da vida civil, dividindo tais

hipóteses em duas categorias, de incapacidade absoluta e incapacidade relativa222.

222 Código Civil, Art. 3º “São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade”; Art. 4º “São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos”.

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Na celebração de contratos, os absolutamente incapazes deverão ser representados

e os relativamente incapazes deverão ser assistidos por quem de direito para que o

instrumento possa ser considerado válido.

Quanto às pessoas jurídicas, devem ser representadas pelas

pessoas indicadas em seus contratos ou estatutos sociais.

O segundo requisito de ordem geral diz respeito ao objeto do

contrato, que há de ser lícito e não ofender a moral e os bons costumes, bem como

há de ser possível física e juridicamente. A impossibilidade física é considerada a

que decorre das leis físicas ou naturais e deve ser absoluta, ou seja, atingir a todos,

indistintamente, reconhecendo-se que a impossibilidade que atinge apenas o

devedor não invalida o negócio jurídico. A impossibilidade jurídica decorre da

proibição legal do objeto, como a proibição de contrato tendo como objeto a herança

de pessoa viva (artigo 426 do Código Civil brasileiro).

Quanto à forma, como terceiro e último requisito de validade dos

contratos, como regra é livre, o que significa que os contratos se aperfeiçoam

mediante a manifestação do consentimento dos contratantes. Em casos específicos

se exige forma especial, como a escritura pública para os contratos referentes a

direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o salário mínimo (artigo

108 do Código Civil brasileiro).

A segunda espécie de requisito ou requisito de ordem especial,

próprio dos contratos, é o consentimento recíproco ou acordo de vontades

manifestado pelos contratantes. A manifestação de vontade deve ser livre e

espontânea, sob pena de o contrato ter a sua validade afetada pelos vícios do

consentimento, consistentes em erro (artigos 138 a 144 do Código Civil brasileiro),

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dolo (artigos 145 a 150 do Código Civil brasileiro), coação (artigos 151 a 155 do

Código Civil brasileiro), estado de perigo (artigo 156 do Código Civil brasileiro) e

lesão (artigo 157 do Código Civil brasileiro).

4.3 – Princípios orientadores

Os princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato, da

liberdade de contratar ou da autonomia da vontade, da obrigatoriedade e da

relatividade dos contratos são especialmente considerados no Brasil.

O princípio da boa-fé objetiva tem previsão expressa no artigo 422

do Código Civil brasileiro, que estabelece que “Os contratantes são obrigados a

guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de

probidade e boa-fé”. Afirma-se que se trata de exigência não apenas de boa

intenção, mas de manifestação de boa intenção mediante a conduta comprobatória

desta.

O princípio da função social do contrato tem por fundamento o

reconhecimento de que, em que pese a liberdade das partes para a celebração de

contratos (o princípio da liberdade de contratar ou da autonomia da vontade

representa a força vinculante das convenções e significa que ninguém pode ser

obrigado a contratar, mas, se o fizer, deve cumprir a obrigação assumida), o contrato

deve atender também aos interesses da sociedade223.

O princípio da obrigatoriedade dos contratos reconhece o vínculo

representado pelo contrato como fundamento jurídico à exigência de seu

223 Código Civil, Art. 421. “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

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cumprimento.

Por fim, de acordo com o princípio da relatividade dos contratos,

como regra apenas os próprios contratantes podem ser atingidos pelas obrigações a

partir dele assumidas.

4.4 – Definição de contrato de compra e venda

A definição do contrato de compra e venda independe da

especificação de seu objeto como imóvel ou móvel.

O direito alemão define a compra e venda como “contrato bilateral

por el qual una de las partes se obliga a la prestación de una cosa o de un derecho y

la outra a una contraprestación en dinero”224.

No direito francês, “la vente est un contrat par lequel l’une des

parties s’oblige à transferer à l’autre la propriété d’une chose, moyennant um prix

que celle-ci s’engage à lui payer”225.

Apesar de a Inglaterra ser um pais de common law, a definição de

contrato de compra e venda consta do Sale of Goods Act 1979: “A contract of sale

of goods is a contract by which the seller transfers or agrees to transfer the property

in goods to the buyer for a money consideration, called the price”226.

224 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones (por Ludwig Enneccerus), cit., p. 14. 225 C. Aubry e C. Rau. Cours. Tome Cinquième, cit., p. 01-02 (“a venda é um contrato pelo qual uma das partes se obriga a transferir à outra uma coisa, mediante um preço que a outra parte se compromete a pagar”). Os autores afirmam que essa definição está de acordo com o artigo 1582 do Código Civil francês, mas que a expressão “tranférer la propriété” deve ser substituída pelo verbo “livrer” (entregar), “afin de mieux faire ressortir le caractère que la nouvelle législation a imprimé au contrat de vente” (a fim de melhor refletir a natureza que a nova legislação deu ao contrato de venda” (cit., p. 01, nota 1). 226 Section 2.1 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7 (“Um contrato de venda de bens

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Clovis Bevilaqua define o contrato de compra e venda como “o

contrato pelo qual uma pessoa se obriga a transferir a outra o domínio de uma coisa

determinada, por certo preço em dinheiro ou em valor fiduciário correspondente”227.

Eduardo Espínola define o mesmo contrato como aquele “pelo qual

uma pessoa se obriga a transferir o domínio de uma coisa a outra pessoa, a qual,

por sua vez se obriga, como contra-prestação, a pagar-lhe certo preço em

dinheiro”228.

Caio Mário da Silva Pereira acrescenta que a coisa pode ser

corpórea ou incorpórea229.

Adota-se a definição legal do artigo 481 do Código Civil, que

estabelece que “Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a

transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”.

4.5 – Aperfeiçoamento do contrato de compra e venda de bem móvel

Os sistemas de direito alemão, francês e inglês reconhecem o

contrato de compra e venda como um contrato consensual, razão pela qual inexiste

dúvida de que se o reconhece perfeito quando as partes manifestam seu

consentimento quanto ao bem e ao preço230.

móveis é um contrato por meio do qual o vendedor transfere ou se compromete a transferir a propriedade do bem ao comprador mediante um valor em dinheiro, denominado preço”). 227 Clovis Bevilaqua. Código Civil, cit., p. 236 (observação 1 ao artigo 1.122). 228 Eduardo Espínola. Dos Contratos Nominados no Direito Civil Brasileiro. Campinas: Bookseller, 2002, p. 31. 229 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Contratos, cit., p. 172. 230 No direito alemão, “la compraventa queda concluída tan pronto como las partes se han puesto de acuerdo sobre el contenido del contrato” (Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de

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No sistema brasileiro, de acordo com o artigo 482 do Código Civil,

“(a) compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que

as partes acordarem no objeto e no preço”.

Os elementos essenciais do contrato de compra e venda são a

coisa, o preço e o consentimento.

Excetuados os contratos aleatórios, que podem ter como objeto

coisa futura e inclusive eventual231, a coisa, como regra, deve ter existência atual, já

que a sua inexistência enseja o reconhecimento da inviabilidade concreta da

efetivação da tradição visando à transmissão da propriedade232.

O preço deve ser sério e real. Não se exige que reflita o valor de

mercado, porque não se pode negar às partes a disponibilidade a respeito de seu

obligaciones (por Ludwig Enneccerus), cit., p. 20. No direito francês, o contrato de compra e venda é considerado aperfeiçoado “dès que les parties sont d’accord sur la chose et sur le prix” (“desde que as partes estejam de acordo quanto à coisa e quanto a preço”) (C. Aubry e C. Rau. Cours de droit civil français. 6eme ed. Paris: Éditions Techniques S.A., 1947. Tome Cinquième, p. 02). No direito inglês, o aperfeiçoamento do contrato de compra e venda de bens móveis envolve “a conveyance and a contract” (uma transmissão e um contrato”) (Andrew P. Bell. Modern law, cit., p. 236.). 231 Código Civil, Art. 458. “Se o contrato for aleatório, por dizer respeito a coisas ou fatos futuros, cujo risco de não virem a existir um dos contratantes assuma, terá o outro direito de receber integralmente o que lhe foi prometido, desde que de sua parte não tenha havido dolo ou culpa, ainda que nada do avençado venha a existir”; Art. 459. “Se for aleatório, por serem objeto dele coisas futuras, tomando o adquirente a si o risco de virem a existir em qualquer quantidade, terá também direito o alienante a todo o preço, desde que de sua parte não tiver concorrido culpa, ainda que a coisa venha a existir em quantidade inferior à esperada. Parágrafo único. Mas, se da coisa nada vier a existir, alienação não haverá, e o alienante restituirá o preço recebido”; Art. 460. “Se for aleatório o contrato, por se referir a coisas existentes, mas expostas a risco, assumido pelo adquirente, terá igualmente direito o alienante a todo o preço, posto que a coisa já não existisse, em parte, ou de todo, no dia do contrato”. Os sistemas alemão, francês e inglês também admitem a compra e venda de coisas futuras, nos mesmos termos do sistema brasileiro. A respeito da compra e venda aleatória nos referidos sistemas de direito estrangeiros, conferir, respectivamente: Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones (por Ludwig Enneccerus), cit., p. 16; Jean-Louis Bergel et AL. Traité – Les Biens, cit., p. 230); e H. W. Wilkinson. Personal property. Londres: Sweet & Maxwell, 1971, p. 75. 232 “Compra e venda – Bem inexistente no patrimônio do alienante – Transferência do domínio – Impossibilidade – Resolução do contrato em perdas e danos – Cabimento – Hipótese, porém, condicionada a prévio pedido da parte interessada – Recurso não provido” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Relator: Anotonio Marson – Apelação Cível n.º 191.581-1 – Origem: Campinas – 04.08.93).

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próprio patrimônio. Por outro lado, não pode ser inexistente, sob pena de

caracterizar negócio simulado233.

Embora o preço deva ser fixado em dinheiro, a previsão de que,

fixado em dinheiro, seja convertido em bens determinados não invalida o negócio

jurídico subordinado, como se depreende da decisão a seguir: “Se houve

estipulação, em contrato de compra e venda de imóvel rural, que o preço seria

transformado em cabeças de gado, não há falar em contrato vaca-papel, que retrata

um mútuo dissimulado em parceria pecuária. (...)” (Tribunal de Justiça do Estado do

Mato Grosso do Sul – Apelação Cível n.º 2003.007285-3/0000-00 – Origem: Rio

Negro – 1ª Turma Cível – Relator: Des. Hildebrando Coelho Neto – J. 02.12.2003).

O contrato de compra e venda é classificado como consensual – em

contraposição ao qualificativo formal – porque se constitui e se aperfeiçoa mediante

o simples acordo – consentimento – das partes a respeito do objeto e do preço. A

importância do consentimento é explicada por Orlando Gomes: “A compra e venda

se forma obviamente pelo consentimento das partes, mas ao enfatizar o consensus

como um dos elementos essenciais do contrato, quer-se acentuar a sua natureza

simplesmente consensual, para deixar claro que a entrega da coisa vendida não é

necessária à sua perfeição. Basta, com efeito, o simples consentimento, do qual

surge, para o vendedor, a obrigação de entregar a coisa e para o comprador a de

233 “Compra e venda – Imóvel – Escritura pública – Ato jurídico regular – Transação lícita – Inadmissibilidade – Venda simulada de bens de herança – Utilização de instrumento particular falso – Decretada a anulação da escritura – Recurso não provido” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 205.479-1 – Origem: São Bento do Sapucaí – Relator: Almeida Ribeiro – 10.03.94); “Embargos de terceiro – Sentença procedente – Penhora incidente em bem que integrou o patrimônio do autor antes da ação de execução. Veículo automotor. Certidão do Detran. Domínio comprovado. Venda simulada. Alegação inconsistente. Recurso desprovido” (Tribunal de Alçada Civil do Estado do Paraná – Apelação Cível n.º 0268399-6 – (224895) – Origem: Londrina – 5ª Câmara Cível – Relator: Juiz Edson Vidal Pinto – DJPR 10.12.2004). .

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pagar o preço”234.

A integração da vontade dos contratantes, por meio da proposta e

da aceitação, e que resulta no consentimento, constitui elemento essencial à

formação do contrato de compra e venda, o que permite a conclusão de que, não

identificada (a integração da vontade dos contratantes), não se considera

aperfeiçoado o referido contrato. Essa a decisão do Primeiro Tribunal de Alçada Civil

do Estado de São Paulo em caso concreto em que se discutiu o aperfeiçoamento do

contrato de compra e venda em leilão: “Compra e venda – Contrato não

aperfeiçoado – Ação declaratória da existência de venda e compra de móvel, em

leilão – Contrato que não chegou a existir, faltando a integração de vontades –

Lanço não aceito pelo leiloeiro, que recebeu os valores condicionalmente, por

estarem abaixo do preço estipulado pelo comitente – Mera proposta, dependente de

aceitação que não houve – Ação improcedente – Decisão mantida” (Apelação n.º

0570708-2 – Origem: Guarulhos – 1ª Câmara – Relator: Elliot Akel – J. 16/05/1994 –

V.U – JTA-EX 147/59).

Quanto ao seu aperfeiçoamento, em contraposição à classificação

como consensual, que constitui a regra, o contrato de compra e venda pode ser

classificado como formal ou solene nos casos em que a lei exige determinada

formalidade para o seu aperfeiçoamento, como ocorre, no sistema brasileiro, no

caso da exigência da escritura pública para os negócios jurídicos que visem à

constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre bens

imóveis de valor superior a trinta vezes o salário mínimo vigente (artigo 108 do

234 Orlando Gomes. Contratos, cit., p. 227.

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Código Civil de 2002)235. O sistema brasileiro também exige a escritura pública para

a transferência de determinados bens móveis, como as licenças ou os contratos que

tenham como objeto a exploração de distribuição e venda de jornais (artigo 5º do

Decreto-lei n.º 4.826/42). Nesses casos, exigida por lei a formalidade, o próprio

aperfeiçoamento do contrato de compra e venda fica condicionado ao seu

atendimento.

A noção do aperfeiçoamento do contrato de compra e venda de bem

móvel mediante, como regra, a mera manifestação da vontade das partes, a

caracterizar o seu consentimento quanto ao bem e ao preço, é imprescindível à

compreensão e à solução dos problemas práticos decorrentes do descumprimento

das obrigações contratuais pelos contratantes.

235 O artigo 134, inciso II, do Código Civil de 1916 estabelecia ser da substância do ato a escritura pública nos “contratos constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis de valor superior a Cr$ 50.000 (cinqüenta mil cruzeiros), excetuado o penhor agrícola”. A jurisprudência a respeito do Código Civil de 1916: “(...) A transferência do domínio de bem imóvel é negócio jurídico que para se aperfeiçoar requer forma prescrita em Lei, que, na hipótese, é a escritura pública (Código Civil/1916, art. 134). Portanto, só com a lavratura do documento público considera-se perfeito e acabado o negócio jurídico. (...)” (Tribunal Regional Federal da 1ª Região – Apelação Cível n.º 9501185346 – BA – 3ª Turma Supl. – Relator: Juiz Federal Convocado Wilson Alves de Souza – DJU 23.06.2005 – p. 77); “Dúvida – Transferência de bem imóvel – Requisitos – Na formalização de ato translativo de bem imóvel, segundo o art. 134, II, do Código Civil, é da substância da medida a escritura pública e, para a validade da alienação respectiva é indispensável a outorga uxória, conforme art. 235, I, do Código Civil, com os seus desdobramentos na legislação pertinente aos Registro Públicos” (Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais – Apelação Cível n.º 000.316.718-6/00 – 2ª C^Mara Cível – Relator: Des. Francisco Figueiredo – J. 17.06.2003); “Compromisso de compra e venda – Imóvel loteado – Aquisição de dois lotes – Passado instrumento particular de um só deles – Pleiteada a declaração de que também adquirido o lote não referido no compromisso – Utilização de prova testemunhal – Inadmissibilidade – Observância da forma legal dos contratos de aquisição de imóveis para que produzam efeitos reais – Inadmitidas as avenças verbais – Artigo 134, inciso II do Código Civil e artigo 26 da Lei n.º 6.766/79 – Recurso não provido” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Relator: Carlos Ortiz – Apelação Cível n.º 218.635-2 – Origem: São Caetano do Sul – 15.03.94).

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Capítulo 5 – Contrato de compra e venda de bem móvel nos sistemas de direito estrangeiros

5.1 – Sistema romano

A compra e venda, denominada emptio venditio, era o contrato do

jus gentium pelo qual o vendedor (venditor) prometia ao comprador (emptor) lhe

transferir definitivamente a posse de uma coisa mediante um pagamento em

dinheiro, o preço (pretium).

Há quem afirme que inicialmente existiu em Roma a compra e venda

à vista, celebrada por meio da mancipatio, que transferia ao comprador a

propriedade da res mancipi, com a entrega imediata do preço236. Por outro lado, há

quem negue que essa compra e venda à vista efetivada por meio da mancipatio

possa ser tida como compra e venda contratual, geradora de obrigações, já que se

tratava de um ato translatício da propriedade da coisa e do preço, razão pela qual

não pertencia à teoria dos contratos, mas sim à teoria dos modos de aquisição do

domínio237.

Além da teoria que afirma a compra e venda real como originária da

compra e venda consensual como foi posteriormente desenvolvida pelos próprios

romanos, diversas outras teorias foram elaboradas. Entendem alguns que o acordo

de vontades entre o vendedor e o comprador teria por fundamento exclusivamente o

princípio da lealdade, que era observado rigidamente na Roma antiga. Outros

236 A. Santos Justo. Direito Privado Romano, cit., p. 94; Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 239 e 355. Inicialmente o preço na mancipatio era pago mediante a entrega de uma barra de bronze, cujo peso era equivalente ao valor do bem negociado, mas após a cunhagem da moeda o preço passou a ser pago em dinheiro. 237 José Carlos Moreira Alves. Direito romano, cit., p. 156; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 287. A respeito da mancipatio como modo de transmissão da propriedade romana, conferir 1.2.1.

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afirmam que a compra e venda consensual teria resultado da venda comercial,

realizada no início apenas entre peregrinos e romanos, fundamentada na boa-fé e

sancionada pelo pretor peregrino. Ainda, outra teoria sustenta que a compra e venda

consensual decorreu de duas estipulações – stipulatio238 – por meio das quais o

vendedor se tornaria credor do preço e o comprador se tornaria credor do bem. Por

fim, sustenta-se que a compra e venda consensual teria sua origem na imitação da

venda de objetos móveis e imóveis de propriedade do Estado, mediante

adjudicação239.

Todas as teorias são passíveis de fundamentação e encontram

apoio nas fontes de direito romano, razão pela qual Zulueta afirma que o contrato de

compra e venda consensual moderno é o produto de uma longa evolução, iniciada

com a Lei das XII Tábuas240 e encerrada com Justiniano241, para a qual contribuíram

várias fontes e circunstâncias históricas, razão pela qual não se pode identificar um

critério único por meio do qual se teria processado a passagem da venda real – ou

do modo denominado mancipatio –, que transmitia a propriedade romana, para a

venda a crédito que passou a dar origem exclusivamente a obrigações242.

O contrato de compra e venda era classificado no direito romano

como nominado, do direito das gentes, de boa-fé, sinalagmático e consensual.

238 Existem diversas teorias a respeito da origem da stipulatio. Tratava-se de um contrato verbal que se formava mediante uma interrogação, feita em caráter solene pelo credor, e a resposta do futuro devedor (Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 257). 239 Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 355; José Carlos Moreira Alves. Direito romano, cit., p. 156-157; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 287-288. 240 451-449 a.C. (Gaetano Sciascia. Direito romano e direito civil brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 1947, p. 15). 241 527-565 d.C. (Gaetano Sciascia. Direito romano, cit., p. 19). 242 F. de Zulueta. The roman law of sale. APUD Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 288.

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Quanto aos elementos, já se distinguiam os três identificados

atualmente: a coisa, o preço e o consentimento.

Todas as coisas suscetíveis de entrar no patrimônio do comprador,

corpóreas e incorpóreas, desde que não estivessem fora do comércio, podiam ser

objeto da compra e venda. A não existência do objeto, o seu perecimento e a

impossibilidade de comércio tornavam o contrato nulo243.

O preço devia consistir em dinheiro244 e ser certo e verdadeiro.

Devia ser fixado por ocasião da venda ou suscetível de ser determinado

posteriormente, por critérios fixados, mas nunca podia ser deixado ao arbítrio das

partes245. Quanto a ser considerado verdadeiro, o preço insignificante ensejava o

tratamento da compra e venda como doação simulada.

O terceiro elemento do contrato de compra e venda era o

consentimento manifestado pelas partes, considerado o elemento mais importante

em razão da natureza consensual da compra e venda, ou seja, porque esta se

realizava independentemente de qualquer elemento material, como a entrega da

coisa ou o pagamento do preço.

243 O contrato de venda também já podia ter por objeto uma coisa futura ou esperada. O comprador ou vendedor poderia aceitar o risco de a coisa nunca vir a ter existência, devendo, nesse caso, ser admitida a emptio venditio, que se baseava na emptio spei. Por exemplo, o produto da pesca que seria realizada em determinado dia podia ser objeto de venda; nesse caso, o comprador correria o risco e seria obrigado ao pagamento do preço mesmo que nenhum peixe fosse apanhado naquele dia (Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 290). 244 O preço devia consistir em dinheiro para que o contrato de compra e venda pudesse ser diferenciado da troca, mas essa distinção só se estabeleceu depois das manifestações divergentes de sabinianos e proculeianos. Os sabinianos consideravam a permuta como uma emptio venditio, mas os proculeianos distinguiam os dois contratos. A doutrina dos proculeianos predominou (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 356-3575; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 290-291). 245 Se a fixação do preço houvesse sido confiada a terceiros, Justiniano considerava a compra e venda condicional, a qual somente se tornaria definitiva quando o terceiro fixasse o preço e, se isso não ocorresse, o contrato seria nulo. O jurisconsulto Proculus considerava válida a venda cujo preço fosse estabelecido por terceiro, desde que o nome desse terceiro constasse do contrato (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 356-357; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 290-291).

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Com o tempo, as partes passaram a condicionar os contratos de

compra e venda tendo como objeto bens considerados mais valiosos à redação de

um documento escrito. Nesses casos, a redação do documento se tornava elemento

essencial à própria formação do contrato, da qual dependia o seu

aperfeiçoamento246.

Porque a conclusão do contrato ensejava muitas dúvidas quanto ao

momento em que se realizava, introduziu-se o costume de assinalar esse momento

com um elemento material diferente da prestação. Essa a origem das arras, que

consistiam num objeto de pequeno valor ou numa parcela reduzida do próprio preço,

que as partes, a partir da entrega, passavam a poder invocar como prova do

contrato247.

Quanto às obrigações do vendedor decorrentes da celebração do

contrato de compra e venda, inicialmente lhe incumbia efetuar a transmissão da

posse do bem, e não a propriedade deste248.

Com o passar do tempo e a evolução da teoria contratual, o

246 Se se houvesse convencionado fazer por escrito a compra e venda, esta somente se aperfeiçoaria quando o documento fosse redigido. Nesses contratos de venda cum scriptura, o escrito, que outrora havia sido meio de prova, foi elevado à categoria de elemento necessário à própria formação do contrato. Enquanto não se o redigisse, era lícito às partes retirarem-se do contrato sem outras conseqüências, salvo se tivessem sido dadas as arras, hipótese em que se aplicavam as regras a estas referentes (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 358). 247 Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 358; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 292. 248 Afirma Ebert Chamoun: “Não se sabe, com certeza, qual a origem desse curioso sistema. Pode-se entretanto explicá-lo com o caráter de contrato iuris gentium da compra e venda, o qual, dada a existência de vários tipos de domínio, nem todos acessíveis aos peregrinos e, comuns a todas as coisas, seria prejudicado se se exigisse a transferência da propriedade; ou então com a regra das XII Táboas que condiciona a transferência da propriedade ao pagamento do preço, não podendo, então, o vendedor ser obrigado a transferir a propriedade da coisa enquanto não for pago” (Instituições, cit., p. 358-359).

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vendedor passou a ter a obrigação de proteger o comprador contra a evicção249 e

contra a presença de vícios ocultos no bem vendido250, e o uso acabou tornando

249 A evicção ocorria quando quem adquiria uma coisa ou um direito se via privado dessa coisa ou desse direito em juízo, total ou parcialmente, sem culpa sua, mas sim por vício do direito do alienante. No juízo que se instaurava pelo legítimo titular contra o adquirente sem culpa, este devia chamar à autoria o alienante, para que este lançasse mão dos seus meios de defesa. A evicção era reconhecida, por exemplo, quando o vendedor não era proprietário da coisa e o verdadeiro proprietário a reivindicava do comprador, ou ainda quando o credor hipotecário investisse contra o comprador armado de sua ação hipotecária a fim de fazer valer a sua garantia. Em ambas as hipóteses, que eram as principais, sendo vitorioso o terceiro, que seria o verdadeiro proprietário do bem, o comprador se via desapossado do bem, apesar de haver pago o preço. Se a transferência da coisa houvesse sido feita por mancipatio, o comprador evicto podia, mediante a actio auctoritatis, volver-se contra o vendedor e dele obter a restituição do dobro do preço que havia pago. No caso de res nec mancipi, o vendedor somente era obrigado ao ressarcimento se assumisse a garantia contra a evicção por uma estipulação acessória à compra e venda. Essas estipulações podiam ser: a satisdatio ou repromissio secundum mancipium, conforme essa obrigação fosse garantida por terceiros ou não; a stipulatio duplae, modelada na actio auctoritatis, por força da qual o vendedor de uma res nec mancipi de valor ou de uma res mancipi de que não houvesse sido feita a mancipação se obrigava a pagar o dobro do preço em caso de evicção; e a stipulatio rem habere licere, que funcionava para as res nec mancipi de menor valor e dava direito à restituição apenas do próprio preço. Em homenagem aos ideais de boa fé, considera-se que desde os primeiros séculos do Império Romano o comprador tinha direito a que o vendedor lhe prestasse a stipulatio duplae ou a stipulatio rem habere licere, podendo reclamá-las pela ação do contrato de compra e venda. Com o passar do tempo e a adoção reiterada das garantias, estas passaram a ser presumidas, permitindo ao comprador voltar-se contra o vendedor sempre que sofresse um prejuízo, o que poderia ocorrer mesmo antes da evicção, quando, sob a ameaça de sua ocorrência, pudesse ser caracterizado o dolo do vendedor. Nesse caso, o valor da indenização era arbitrado pelo juiz. No direito justinianeo, a stipulatio rem habere licere deixou de existir, restando apenas os dois remédios da stipulatio duplae e da ação do contrato. Mas a garantia contra a evicção passou a incorporar o próprio contrato de compra e venda como um elemento natural, permitida a sua exclusão apenas mediante a manifestação expressa das partes (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 360-361; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 295-297). 250 Vícios ocultos ou redibitórios eram considerados aqueles existentes no momento da celebração do contrato e que tornavam a coisa imprópria ao seu uso ou lhe diminuíam o valor. A garantia contra os vícios ocultos sofreu evolução semelhante à da garantia contra a evicção. A princípio era assegurada mediante a previsão expressa fora do contrato, mas o seu uso reiterado fez com que fosse integrada ao acordo independentemente de previsão (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 361-363; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 296-297). Ebert Chamoun afirma também que os edis introduziram em seus editos um princípio absolutamente diferente dos seguidos à época e que deu ensejo a uma nova evolução dos contratos. Os edis policiavam os mercados, onde era comum a prática de fraudes por peregrinos contra cidadãos romanos durante a venda de escravos. Para agravar a responsabilidade dos vendedores e evitar as constantes fraudes, os edis estabeleceram que o vendedor responderia pelos vícios ocultos mesmo quando os ignorasse no momento de conclusão do contrato. As ações a que tinha direito o comprador eram a actio redhibitioria, por meio da qual se restituía a coisa e seus acessórios (redhibitio), exigindo-se do vendedor a restituição do preço, ou a actio aestimatoria ou quanti minoris, por meio da qual o comprador obtinha a redução no preço correspondente à desvalorização causada pelo vício apresentado pelo bem adquirido. No direito justinianeo, o sistema de garantias dos vícios criados pelos edis foi generalizado a todas os contratos de compra e venda (Instituições, cit., p. 362).

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subentendidas essas garantias251.

Quanto ao comprador, tinha como obrigação principal o pagamento

do preço, e essa obrigação era mantida mesmo se, após a conclusão do contrato e

antes da entrego bem, este perecesse, desde que sem culpa do vendedor252.

Considerava-se que, se por um lado se garantia ao comprador o direito ao

recebimento dos acréscimos e incrementos incorporados ao bem vendido após a

celebração do contrato, mesmo que o bem ainda estivesse na posse do vendedor,

por outro lado se lhe exigia que assumisse os riscos do perecimento do objeto,

desde que não constatada a culpa do vendedor253. Essa regra era inaplicável se o

bem perecesse em poder do vendedor quando já estivesse pago o preço, bem como

251 Darcy Bessone afirma que essa complementação do contrato – referente às garantias – repercutiu na sua primitiva concepção, de que deveria restringir-se, exclusivamente, à obrigação de transferir a posse. E que o contrato de compra e venda passou a produzir, na prática, efeitos próximos dos peculiares aos modos de adquirir, inclusive porque contribuía para a aquisição do domínio por usucapião, que se operava em dois anos (Da compra e venda, cit., p. 74). 252 Vandick L. da Nóbrega afirma que vários romanistas puseram em dúvida que essa tenha sido efetivamente a doutrina predominante na época clássica: “Arno afirma que, no direito clássico, os riscos ficavam a cargo do vendedor até a entrega da coisa. No entanto, Rabel julga terem sido os bizantinos que estabeleceram o princípio geral segundo o qual o comprador seria responsável pelos riscos; é verdade, diz êle, que os jurisconsultos clássicos conheceram o periculum emptoris, mas num sentido muito limitado. Em trabalho posterior ao de Rabel, o romanista Emil Seckel (...) retoma a defesa da teoria tradicional, segundo a qual os riscos ficavam a cargo do comprador desde que a venda fosse considerada perfeita. A doutrina clássica do periculum emptoris só pode ser averiguada, diz Seckel, por meditação cuidadosa do que nos foi transmitido. Ela, na verdade, só pode ser compreendida quando três condições preliminares de compreensão se cumprem: primeiro, deve ser incluída a chamada pura compra de espécie; segundo, o periculum emptoris tem seu contrapeso no periculum custodiae do vendedor; terceiro, a doutrina do periculum emptoris não é uma norma arbitrária, mas um princípio sadio, que domina todos os direitos hodiernos” (Compêndio, cit., p. 293). Outras teorias procuraram explicar a aplicação do referido princípio. Uma delas se baseava na suposição de que a compra e venda se processara inicialmente mediante duas estipulações, decorrendo daí o caráter de independência das duas obrigações e a manutenção da obrigação do comprador em caso de perecimento do objeto sem culpa do vendedor. Outra teoria se amparava na consideração de que a regra havia sobrevivido da época em que a compra e venda se fazia à vista, pela mancipatio., para aqueles que a aceitam com natureza contratual. Uma terceira teoria pretendia fundamentar a regra na influência grega (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 364; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 294). 253 O vendedor deveria cuidar da coisa como um bonus paterfamilias, sendo a sua falta observada em abstrato. Como regra, não respondia na hipótese de perda por motivo de força maior, mas apenas no caso de constatação de sua culpa (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 363-364; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 292-293).

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quando o vendedor houvesse assumido expressamente a custódia do bem até a

tradição, caso em que a responsabilidade seria exclusivamente sua em decorrência

do próprio acordo celebrado.

Se o contrato de compra e venda fosse condicional, ou seja,

subordinado a um evento futuro e incerto, não seria reputado perfeito enquanto a

condição não fosse implementada. Se houvesse a perda total da coisa, sem culpa

de qualquer das partes, enquanto o contrato não fosse considerado perfeito, a

responsabilidade pelos riscos era imputada ao vendedor, ou seja, a este cabiam os

prejuízos decorrentes do perecimento do objeto. Mas se a perda fosse parcial ou se

se tratasse de deterioração, continuava o comprador obrigado ao pagamento do

preço.

Porque o contrato de compra e venda não tinha como resultado a

transferência da propriedade, o bem vendido podia ser próprio ou alheio254. “É

precisamente quest’indole dell’obbligazzione del venditore, che faceva ammettere la

validità della vendita della cosa altrui; perchè la circostanza che il venditore non era

punto proprietário, non essendo um ostacolo a che egli mettesse il compratore in

possesso, non poteva autorizzare costui a reclamare, finchè non fosse molestato dal

proprietário”255.

De acordo com Darcy Bessone, a circunstância de por meio do

contrato de venda se transferir a posse – e não a propriedade – tinha por

254 Mas do vendedor, embora não se lhe exigisse a propriedade, exigia-se a boa-fé, ou seja, ou ignorava que a coisa não era sua ou, juntamente com o comprador, sabia que não o era. 255 “É essa a natureza da obrigação do vendedor, que permitia reconhecer a validade da venda de coisa alheia; porque a circunstância de o vendedor não ser o proprietário, não sendo um obstáculo a que garantisse a posse do bem pelo comprador, também não autorizava o comprador a reclamar, desde que não fosse molestado na sua posse pelo verdadeiro proprietário” (G. Baudry-Lacantinerie; L. Barde. Trattato teórico-pratico di diritto civil: della vendita e della permuta. Milano: Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 1935, p. 4).

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fundamento o conceito romano de contractus, que impedia a sua utilização como

instrumento constitutivo ou transmissivo de direitos reais.256 Afirma também o

doutrinador que os romanos entendiam, por outro lado, que o conceito de contractus

não constituía óbice à criação de obrigações que se relacionassem apenas à posse,

estabelecendo-se situação segura no juízo possessório. Nesses termos, de acordo

com a concepção romana, o contrato podia produzir ao alienante a obrigação de

entregar a coisa – vacuam possessionem tradere. E com o tempo, em razão das

garantias que passaram a acompanhar a emptio e venditio,257 esta passou a – ser

considerada como passível de – transferir a própria propriedade258.

A explicação de Darcy Bessone tem por objetivo demonstrar a

ausência de fundamento dos doutrinadores brasileiros que, como regra, atribuem ao

direito romano a eficácia obrigacional da compra e venda no direito pátrio. E é

exatamente essa posição contestada por Darcy Bessone – que reconhece a eficácia

obrigacional do contrato de compra e venda como herança do direito romano – a

dominante no cenário brasileiro 259.

De acordo com Miguel Maria de Serpa Lopes, o ponto de maior

relevo no contrato de compra e venda no direito romano, com profundos reflexos no

direito moderno, consistiu no seu efeito meramente obrigatório, ou seja, na

circunstância de que dele não derivava a transferência do domínio, cujos meios de

256 A transmissão da propriedade somente se daria por um dos modos de transmissão da propriedade, ou seja, pela mancipatio, pela in iure cessio e pela traditio, estudados no Capítulo 2 – Sistemas de transmissão da propriedade, item 2.1 – Sistema romano. 257 Conferir as notas 249 e 250. 258 Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 52-55. 259 A posição dominante no direito brasileiro e a posição divergente de Darcy Bessone a respeito especificamente da eficácia da compra e venda no direito brasileiro serão abordadas no Capítulo 6 – O contrato de compra e venda de bem móvel no sistema de direito brasileiro, item 6.1 – Eficácia e conseqüências.

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transmissão eram a mancipatio e a traditio, e tudo quanto se discutia era acerca do

momento em que se deveria de reputar consumada a transferência. Afirma ainda o

doutrinador que em todo o movimento de evolução da história do contrato se

destaca a idéia romana e fundamental da separação entre os dois atos: o ato causal

e o ato da transferência; a obrigação de transferir e o ato da transferência. Portanto,

no direito romano, o contrato de compra e venda nada representava como elemento

da transferência da propriedade, pois só a traditio podia fazê-lo. Por outro lado, os

sistemas que não reconhecem ao contrato a força translativa da propriedade, como

o sistema brasileiro, reconhecem o contrato como causa jurídica dessa mesma

transferência, o que não se verificava no direito romano, pois a traditio era um ato

considerado em si mesmo e desvinculado de qualquer outro ato jurídico

precedente260.

Consideradas as lições dos dois doutrinadores, adotamos o

entendimento de que o direito romano legou ao direito brasileiro o contrato de

compra e venda de natureza obrigacional, mediante o reconhecimento de que o

modo de aquisição da propriedade mobiliária consistente na tradição é

imprescindível à garantia da segurança das relações jurídicas e da própria paz

social.

5.2 – Sistema alemão

No sistema de direito alemão, o contrato de compra e venda é

considerado “el contrato bilateral por el cual una de las partes se obliga a la

260 Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso de Direito Civil – Fontes das Obrigações: Contratos. 6ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2001. Volume III, p. 265-266.

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prestación de una cosa o de un derecho y la outra a una contraprestación en

dinero”261. Trata-se de “un negocio obligatorio y los efectos inmediatos de la misma

son de naturaleza puramente obligatoria”262.

O sistema de direito alemão não reconhece ao contrato de compra e

venda o efeito translativo. A transmissão da propriedade mobiliária exige a

conjugação de dois atos, na verdade dois negócios jurídicos, o primeiro consistente

no negócio jurídico que fundamenta o título, no presente item considerado o contrato

de compra e venda, e o segundo consistente no negócio jurídico da tradição ou

entrega, desvinculada do primeiro contrato e para a qual se exigem os mesmos

elementos daquele263.

Portanto, no sistema alemão, o contrato de compra e venda é

estranho ao negócio translativo e se situa na área obrigacional.

261 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones, cit., p. 14. 262 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones, cit., p. 14. A respeito da eficácia da compra e venda no sistema alemão, o autor afirma: “Esto vale también respecto a la compraventa llamada manual, real o natural, o sea, aquella que, sin convenio previo especial, se concluye por el canje immediato de precio y mercancia, y a veces incluso mediante aparato automático. Algunos vem en la compraventa manual una mera prestación recíproca sin prévia obligación, o sea un negocio real o, mas exactamente, dos tradiciones simultáneas, unidas por la causa. Pero este punto de vista no se ajusta ni a la voluntad de las partes ni a la necessidades del tráfico. Si en una compraventa manual se entrega moneda falsa, no será conforme a la intención de las partes, ni a la buena fé, el que la consecuencia sea meramente la de tenerse que restituir las prestaciones, sino que lo oportuno es que el vendedor tenga un crédito dirigido al pago del precio. De igual modo, corresponde al comprador una pretensión dirigida a la prestación de la cosa debida cuando por error se le ha dado una distinta de la que ambas partes querían. Aun en el caso de compraventa manual existe, pues, la intención de vincularse reciprocamentey y así se declara tacitamente por el cambio de la coisa y del precio. No es obstáculo el que en los casos normales la vinculación y el cumplimento seam simultâneos. La questión tiene importancia práctica respecto a la carga de la prueba. Si la compraventa manual tuviesse naturaleza meramente real la affirmación del comprador demandado de haberse concluído una compraventa manual representaria una negación del fundamento de la demanda y la prueba correspondería entonces al vendedor. En cambio, según nuestro punto de vista, el comprador tiene que probar el pago del precio. Pero si se trata de negócios que, de una manera absolutamente regular, sólo se concluyen en el tráfico com pago al contado (billetes de teatro, de ferrocarril, etc), el juez habrá deducir de esto que se pagó al contado salvo prueba em contrario”. 263 Conferir 3.2.

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As obrigações do vendedor consistem em “proprocionar al

comprador na propiedad de la cosa vendida”, além de “entregar la cosa vendida, o

sea procurar la posesión immediata corporal”264.

Quanto ao objeto do contrato, “se pueden vender no sólo las cosas y

derechos propios, sino también los ajenos. Em tal caso, si el vendedor no puede

procurar las cosas, viene obligado a indemnización”265.

Porque o contrato de compra e venda não transfere, por si, a

propriedade, o vendedor continua proprietário do bem vendido até o negócio jurídico

da tradição. Com a propriedade, o vendedor mantém sob a sua responsabilidade

também os riscos a que o bem está sujeito. “El vendedor soporta el riesgo. Así,

pues, si el objeto perece casualmente antes de la prestación, el comprador no tiene

que pagar el precio. Si la prestación si hace imposible solo em parte, el precio se ha

de pagar sólo proporcionalmente. El riesgo, prescindiendo del cas de mora

accipiendi, solo passa, por lo regular, al comprador com la entrega de la cosa”266.

Quanto ao comprador, suas obrigações principais são pagar o preço

e receber o bem vendido.

Há exceções à regra de que os riscos permanecem com o vendedor

até a data da tradição, como a hipótese de o vendedor, a pedido do comprador,

despachar o bem vendido para lugar diverso do lugar do cumprimento, o que faz

com que os riscos passem ao comprador imediatamente após a entrega do bem

pelo vendedor ao responsável pelo transporte.

264 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de Obligaciones, cit., p. 29. 265 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones, cit., p. 16. 266 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones, cit., p. 32.

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O sistema alemão impõe ao contrato de compra e venda as

garantias contra a evicção267.

As características do contrato de compra e venda alemão guardam

relação de semelhança com as características do contrato de compra e venda

brasileiro, especialmente quanto à sua eficácia obrigacional. Essa circunstância

afasta o interesse da comparação dos contratos, já que as conseqüências são

também semelhantes quanto aos objetivos do presente trabalho.

Para o estudo do negócio jurídico desvinculado do contrato de

compra e venda e apto à transmissão da propriedade mobiliária, consistente na

tradição, bem como para o estudo do sistema alemão de transmissão da

propriedade mobiliária, remete-se ao Capítulo 3 – Sistemas de aquisição da

propriedade mobiliária, item 3.2 – Sistema alemão.

5.3 – Sistema francês

“La vente n’est pas seulement un contrat qui se forme par le seul

échange des consentements, première application du príncipe du consensualisme;

c’est aussi um contrat que, automatiquement, par le simple échange des

consentements et sans aucune formalité, réalise le transfert de la propriété de la

chose vendue”.268

No sistema de direito francês prepondera o critério da unidade

267 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de Obligaciones, p. 52-74. 268 Jacques Ghestin et Bernard Desché. Traité – La vente, cit., p. 589 (“A venda não é apenas um contrato que se forma por meio da mera manifestação de consentimento, que é a primeira aplicação do princípio do consensualismo; é também um contrato que, automaticamente, pela simples manifestação de consentimento e sem nenhuma formalidade, concretiza a transferência da propriedade do bem vendido”).

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formal, isto é, o próprio contrato, ao mesmo tempo em que cria o vínculo

obrigacional, transfere o domínio da coisa vendida. O repúdio ao critério romanista

foi uma conseqüência da influência do direito natural, que pretendeu dar cunho

filosófico ao princípio da transferência da propriedade, valendo-se de uma ficção, ou

seja, a de ser o consentimento elemento bastante para tornar perfeita a obrigação,

dispensando-se a tradição269.

O credor torna-se proprietário sem que haja necessidade de praticar

qualquer ato ou realizar qualquer formalidade subseqüente, e sequer há

necessidade de adimplemento, qualquer que seja, já que a transmissão da

propriedade se situa no momento em que se aperfeiçoa a vontade das partes. É a

vontade das partes que opera por si mesma o deslocamento, a transmissão da

propriedade270.

“Il est donc inexact, de façon generale, de considérer ce transfert de

la propriété comme une obligation pesant sur le vendeur. Ce transfert se réalise em

effet sans nouvelle manifestation de volonté de la part de ce dernier. La vendeur a

immédiatement et par le seul effet de l’echange des consentements perdu la

propriété de droit vendu, propriété qui a été acquise par l’acheteur”271.

A obrigação de entrega do bem objeto do contrato pelo vendedor ao

comprador “no es traslativa ni de propiedad ni siquiera de posesión; el comprador se

ha convertido en propietario por la venta misma, y a contar de ese día, ha adquirido

269 Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso – Contratos, cit., p. 267. 270 Victor Hugo Tejerina Velázquez. A Tradição. São Paulo: PUC/SP (Dissertação de Mestrado – PUC/SP), 1996, p. 69. 271 Jacques Ghestin et Bernard Desché. Traité – La vente, cit., p. 589 (“É inexato, de modo geral, considerar a transferência da propriedade como uma obrigação do vendedor. A transferência se realiza de fato sem nova manifestação de vontade deste. O vendedor, imediatamente e por efeito exclusivo da manifestação de seu consentimento, perde a propriedade do bem vendido, propriedade que é adquirida também imediatamente pelo comprador”).

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el título de poseedor; el vendedor no podia ya tener el animus domini; no era ya más

que um poseedor precário, por cuenta de outro”272.

Dessa regra resulta que o comprador tem ação de reivindicação

contra o vendedor. Por outro lado, não a tem contra terceiro, em razão do disposto

no artigo 2279 do Código Civil francês (“En fait de meubles, la possession vaut

titre”). “Il en résulte, d’une part que, quand une chose mobilière corporelle a été

successivement vendue à deux personnes, celle d’entre elles qui en a été mise en

possession réelle est préférée, et en demeure propriétaire, encore que son titre soit

postérieur en date, pouvru cependant qu’elle ait été de bonne foi. Il en résulte,

d’autre part, qu’au cas de collision entre l’acquéreur d’une chose mobilière corporelle

et le créancier mis em possession de cette chose à titre de gage, ce dernier doit

l’emporter, s’il l’a reçue de bonne foi, encore que la mise en gage soit postérieure à

la vente”273.

Apesar da regra do artigo 2279 do Código Civil francês, “em dehors

des cas auxquels s’applique la máxime qu’em fait de meubles possession vaut titre,

on doit s’em tenir au príncipe que la propriété de meubles corporels est transmise à

l’acquéreur, même au regard des tiers, par le seul effet de la vente”274.

272 Louis Josserand. Derecho civil. Contrats. Buenos Aires: Bosch y Cia. Editores, 1950. Tomo II, Volume II, p. 60. 273 C. Aubry e C. Rau. Cours. Tome Cinquième, cit., p. 26 (“Disso resulta, por um lado, que, quando um bem móvel é vendido sucessivamente a duas pessoas, aquele que foi imitida na posse real do bem tem preferência, ainda que o seu título seja posterior em data, desde que se lhe reconheça a boa-fé. Resulta também, por outro lado, que em caso de controvérsia entre o adquirente de um bem móvel e o credor ao qual o bem foi entregue materialmente em garantia, este último deve levar a melhor, se recebeu o bem de boa-fé, ainda que a imissão seja posterior à data da venda”). 274 C. Aubry e C. Rau. Cours. Tome Cinquième, cit., p. 26 (“Fora os casos aos quais se aplica a máxima de que quanto aos bens móveis a posse equivale ao título, é preciso ter em mente o princípio de que a propriedade dos bens móveis é transmitida ao comprador, mesmo em relação a terceiros, tão só pelo efeito do contrato de compra e venda”).

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Assim como a propriedade, os riscos a que o bem está sujeito são

transmitidos ao comprador tão somente pelo efeito do contrato.

“Le transfert de la propriété solo consensu crée également um grave

danger pour l’acheteur. Em effet devenu immédiatement propriétaire de la chose,

l’acheteur va dès la conclusion du contrat devoir supporter les risques de perte ou de

détérioration de la chose vendue. Et cela alors même que cette chose ne lui ayant

pás été livrée, il ne peut exercer sur elle aucune surveillance. Tout au plus pourra-t-il

invoquer lune faute du vendeur dans la surveillance de la chose. Mais il aura à

supporter les risques de force majeure. C’est l’applications de la règle res perit

domino”275.

A venda de coisa alheia é considerada anulável, sendo que apenas

o comprador tem legitimidade para a sua discussão, e desde que mediante a prova

de ignorância de que o vendedor não era o proprietário do bem. Isso porque se a

ignorância do comprador decorre de sua própria conduta negligente, deverá suportar

uma parte do prejuízo.

E a anulabilidade será sanada mediante a ratificação da venda pelo

verdadeiro proprietário, bem como pela circunstância de o vendedor se tornar

posteriormente sucessor particular ou universal do proprietário. Será também

sanada mediante a manifestação da ciência do adquirente a respeito da propriedade

do bem. O sistema francês impõe ao contrato de compra e venda as garantias

275 Jacques Ghestin et Bernard Desché. Traité – La vente, cit., p. 590 (“A transferência da propriedade solo consensu cria um grave risco para o comprador. Pelo efeito de se tornar imediatamente proprietário da coisa vendida, o comprador, desde a conclusão do contrato, passa a suportar os riscos da perda ou da deterioração da coisa vendida. E isso se dá mesmo quando a coisa ainda não tenha sido entregue e mesmo que o comprador não possa exercer nenhuma vigilância sobre a coisa. Quando muito, pode o comprador alegar um erro – e a culpa do vendedor – e em relação à vigilância exercida sobre a coisa. Mas o comprador sempre suportará os riscos de caso fortuito e de força maior. É a aplicação da regra res perit domino”).

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contra a evicção276.

5.4 – Sistema inglês

Assim como no sistema francês, no sistema inglês o contrato de

compra e venda de bem móvel tem eficácia real, ou seja, a transmissão da

propriedade mobiliária se dá mediante o consenso do vendedor e do comprador a

respeito da coisa e do preço, com a ressalva de que, no sistema inglês, a

transmissão da propriedade se verifica, como regra, desde que o bem móvel seja

passível de entrega imediata.

As previsões a respeito do contrato de compra e venda de bens

móveis constam do “Sale of Goods Act 1979”277.

De acordo com a referida norma, contrato de compra e venda,

denominado sale, é o contrato por meio do qual “the seller transfers or agrees to

transfer the property in goods to the buyer for a money consideration, called the

price”278.

276 C. Aubry e C. Rau. Cours. Tome Cinquième, cit., p. 67-93. 277 “Lei de Venda de Bens Móveis”. O texto completo da lei está disponível no endereço eletrônico http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7. O termo “goods” é usado no sentido de produtos ou mercadorias (Durval de Noronha Goyos Jr. Dicionário Jurídico. 5ª ed. São Paulo: Observador Legal Editora Ltda, 2003, p. 164; Michaelis Escolar, disponível em http://cf.uol.com.br/michaelis/dicionar.cfm?dicion_id=8&TextoBusca=goods), ou seja, bens móveis, em oposição ao termo “real estate”, que identifica o bem imóvel (Durval de Noronha Goyos Jr. Dicionário Jurídico, cit., p. 276; Michaelis Escolar, disponível em http://cf.uol.com.br/michaelis/dicionar.cfm?dicion_id=8&TextoBusca=goods). 278 “o vendedor transfere ou se compromete a transferir a propriedade do bem ao comprador mediante um valor em dinheiro, denominado preço” (Section 2.1 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).

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O sistema inglês diferencia a venda da promessa de venda,

mediante a especificação de que se “under a contract of sale the property in the

goods is transferred from the seller to the buyer the contract is called a sale”279,

enquanto que se “under a contract of sale the transfer of the property in the goods is

to take place at a future time or subject to some condition later to be fulfilled the

contract is called an agreement to sell”280, sendo que este o compromisso de venda

se torna uma venda quando “the time elapses or the conditions are fulfilled subject to

which the property in the goods is to be transferred”281.

O contrato é considerado consensual e pode ser celebrado “in

writing (either with or without seal), or by word of mouth, or partly in writing and partly

by word of mouth, or may be implied from the conduct of the parties”282.

A respeito da transferência da propriedade dos bens móveis objeto

do contrato, o sistema inglês distingue entre bens determinados e não determinados,

sendo os últimos identificados pelo gênero e quantidade, mas ainda não

individualizados. “Where there is a contract for the sale of unascertained goods no

property in the goods is transferred to the buyer unless and until the goods are

279 “mediante o contrato a propriedade do bem móvel é transferida do vendedor ao comprador, o contrato é denominado venda” (Section 2.4 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 280 “mediante o contrato a transferência da propriedade do bem móvel é postergada para um momento futuro ou condicionada a uma determinada condição a ser implementada, o contrato é denominado compromisso de venda” (Section 2.5 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 281 “com o transcurso do prazo ou o implemento das condições às quais ficou submetida a transferência da propriedade dos bens móveis objeto do contrato” (Section 2.6 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 282 “por escrito (com ou sem registro), verbalmente ou parcialmente por escrito e parcialmente de forma verbal, bem como também pode ser presumido tendo como base a conduta das partes (Section 4.1 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).

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ascertained”283. Mas se o bem objeto do contrato, apesar de ainda não

individualizado, puder ser identificado de forma a ser reconhecido como vinculado ao

contrato, as partes podem estabelecer que a propriedade desse bem – mesmo ainda

não individualizado e independentemente desse ato – é transferida pelo vendedor ao

comprador no momento do pagamento do preço284.

Tratando-se de bens especificados e individualizados, "the property

in them is transferred to the buyer at such time as the parties to the contract intend it

to be transferred”285. Para a finalidade de se aferir a intenção das partes a respeito

da transmissão da propriedade mobiliária, devem ser considerados “the terms of the

contract, the conduct of the parties and the circumstances of the case”286.

Considerada a dificuldade concreta de identificação da intenção das

partes, a lei inglesa prevê cinco regras para a sua aferição, as quais são aplicadas

aos casos de ausência de identificação da intenção das partes considerados os

elementos legais referidos (os termos do contrato, a conduta das partes e as

circunstâncias do caso).

A primeira regra estabelece que se se trata de “an unconditional

contract for the sale of specific goods in a deliverable state the property in the goods

passes to the buyer when the contract is made, and it is immaterial whether the time

283 “Se o contrato tem por objeto bens ainda não individualizados, a sua propriedade, como regra, não é transferida ao comprador até que o sejam” (Section 16 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 284 Adrian Jenkala, advogado inglês, em entrevista realizada no dia 31 de julho de 2005, em Durham, Inglaterra. 285 “a sua propriedade é transferida ao comprador quando as partes do contrato pretendem que o seja” (Section 17.1 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 286 “os termos do contrato, a conduta das partes e as circunstâncias do caso concreto” (Section17.2 do Sale of Goods Act, de 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).

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of payment or the time of delivery, or both, be postponed”287. Ou seja, assim que as

partes acordam a respeito do bem e do preço, e desde que o bem móvel negociado

seja passível de entrega imediata, a propriedade do bem e os riscos respectivos são

transferidos ao comprador288.

Como conseqüência da transmissão da propriedade, se a coisa se

perde antes da tradição, sem culpa do vendedor e sem que qualquer das partes

esteja em mora, a perda é do comprador, já que este se tornou proprietário do bem

anteriormente à tradição e independentemente desta. Nesse caso, incumbe ao

comprador o pagamento do preço, já que o contrato produziu seus efeitos

validamente289.

Por outro lado, entregue o bem pelo vendedor ao comprador, o

vendedor não tem mais o direito ao bem, mas exclusivamente ao valor acordado. Na

prática, isso significa que ao vendedor não se garante a pretensão de desfazimento

do negócio e consolidação da propriedade do bem em suas mãos, mas

exclusivamente a pretensão ao valor do bem, conforme acordado no contrato290.

A situação é diversa se o bem móvel objeto do contrato, apesar de

ter sido individualizado e especificado, ainda não existir no momento da celebração,

ou seja, se o bem móvel objeto do contrato não for passível de entrega imediata. O

exemplo é de peças de roupas, especificadas mediante a escolha em um catálogo,

287 “Tratando-se de um contrato incondicional de venda de bens móveis determinados e passíveis de entrega imediata, a propriedade dos bens é transferida ao comprador no momento da celebração do contrato, independentemente de o pagamento e a entrega serem postergados” (Section 18.1 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 288 Tony Lancaster, cit. 289 Tony Lancaster, cit. 290 Adrian Jenkala, Advogado inglês, em entrevista realizada no dia 31 de julho de 2005, em Durham, Inglaterra.

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por exemplo, mas ainda não confeccionadas pelo vendedor. Porque as peças de

roupa ainda não existem quando da celebração do contrato – e portanto não são

passíveis de entrega imediata –, a sua propriedade não é transmitida pelo vendedor

ao comprador naquele momento, apesar do consenso a respeito do objeto e do

preço. Nesse caso, a propriedade será transmitida assim que as peças de roupa

estiverem prontas291.

De acordo com a segunda regra, tratando-se de um “contract for the

sale of specific goods and the seller is bound to do something to the goods for the

purpose of putting them into a deliverable state, the property does not pass until the

thing is done and the buyer has notice that it has been done”292.

Nos termos da terceira regra, se se tratar de “contract for the sale of

specific goods in a deliverable state but the seller is bound to weigh, measure, test or

do some other act or thing with reference to the goods for the purpose of ascertaining

the price, the property does not pass until the act or thing is done and the buyer has

notice that it has been done”293.

A quarta regra estabelece que, “When goods are delivered to the

buyer on approval or on sale or return or other similar terms the property in the goods

passes to the buyer: (a) when he signifies his approval or acceptance to the seller or

291 Tony Lancaster, cit. 292 “contrato de venda de bens móveis determinados e individualizados, mas a respeito dos quais o vendedor precisa tomar alguma providência para que os bens sejam passíveis de entrega, a propriedade desses bens não é transmitida até que a providência seja tomada e o comprador seja informado pelo vendedor de que a providência foi tomada” Section 18.2 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 293 “contrato de venda de bens móveis individualizados, mas que devem ser pesados, medidos ou testados pelo vendedor a fim de que o preço seja fixado, a propriedade desses bens não é transmitida até que a providência seja tomada e o comprador seja informado pelo vendedor de que a providência foi tomada” (Section 18.3 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).

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does any other act adopting the transaction; (b) if he does not signify his approval or

acceptance to the seller but retains the goods without giving notice of rejection, then,

if a time has been fixed for the return of the goods on the expiration of that time, and

if no time has been fixed, on the expiration of a reasonable time”294.

A quinta regra, dividida em duas partes, prescreve, na primeira

parte, que, no caso de um “contract for the sale of unascertained or future goods by

description, and goods of that description and in a deliverable state are

unconditionally appropriated to the contract, either by the seller with the assent of the

buyer or by the buyer with the assent of the seller, the property in the goods then

passes to the buyer; and the assent may be express or implied, and may be given

either before or after the appropriation is made”, e, na segunda parte, que ”Where, in

pursuance of the contract, the seller delivers the goods to the buyer or to a carrier or

other bailee or custodier (whether named by the buyer or not) for the purpose of

transmission to the buyer, and does not reserve the right of disposal, he is to be

taken to have unconditionally appropriated the goods to the contract”295.

294 “Quando os bens são entregues ao comprador mediante consignação ou mediante outros termos semelhantes, a propriedade dos bens é transferida ao comprador: (a) quando ele sinaliza sua aprovação ou sua aceitação ao vendedor, ou tem qualquer conduta que demonstra que ele aceitou o negócio jurídico; (b) se ele não sinalize sua aprovação ou aceitação ao vendedor, mas retém os bens sem manifestar sua rejeição, considerado, nesse caso, o prazo fixado, se o foi, ou o decurso de tempo razoável, se não houve fixação de prazo” (Section 18.4 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 295 “No contrato que tem como objeto bens indeterminados ou bens futuros, que tenham sido contratados mediante descrição, e bens com a descrição exata do contrato e passíveis de entrega imediata fora vinculados ao contrato, ou pelo vendedor com o consentimento do comprador, ou pelo comprador com o consentimento do vendedor, a propriedade dos bens é transferida ao comprador, e o consentimento pode ser expresso ou implícito, e pode ser dado antes ou depois que a vinculação é feita”; “Quando, em cumprimento do contrato, o vendedor entrega os bens móveis ao comprador ou a um depositário ou detentor – que podem ter sido nomeados pelo comprador ou não – com o objetivo de transmissão dos bens ao comprador, e não se reserva o domínio dos bens, considera-se que os vinculou incondicionalmente ao contrato (Section 18.5 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).

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O sistema inglês admite a reserva de domínio nos contratos de

venda de bens especificados ou de bens que são posteriormente vinculados ao

contrato. Nesse caso, o vendedor pode, “by the terms of the contract or

appropriation, reserve the right of disposal of the goods until certain conditions are

fulfilled; and in such a case, notwithstanding the delivery of the goods to the buyer, or

to the carrier or other bailee or custodier for the purpose of transmission to the buyer,

the property in the goods does not pass to the buyer until the conditions imposed by

the seller are fulfilled”296.

Uma das situações mais comuns nas quais é necessária uma

decisão judicial a respeito da transferência da propriedade se dá quando uma das

partes se torna insolvente e é necessário estabelecer se os bens móveis objeto do

contrato podem ser considerados parte do ativo da parte insolvente para o fim de

quitação de seus débitos.

Dois casos são considerados paradigma para a solução da

transmissão da propriedade mobiliária dos bens objeto do contrato. Em Aldridge v.

Johnson297, o contrato de venda teve por objeto quinhentas toneladas de trigo, do

total de mil toneladas que se encontravam embarcadas em um navio. O comprador

inspecionou os grãos e deixou as embalagens para a sua colocação. Depois da

embalagem e antes da entrega efetiva dos grãos ao comprador, o vendedor tornou-

se insolvente. A decisão estabeleceu que a propriedade dos grãos havia sido

296 o vendedor pode, pelos termos do contrato”ou da vinculação, reservar-se o domínio dos bens até que determinadas condições sejam implementadas; nesse caso, ainda que os bens sejam entregues ao comprador, ao transportador ou outro depositário ou detentor com o objetivo de transmissão dos bens ao comprador, a propriedade dos bens não é transmitida ao comprador até que as condições impostas pelo comprador sejam implementadas” (Section 19.1 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 297 (1857) 7 E & B 885, disponível em http://www.singaporelaw.sg/content/9saleofgds.pdf.

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transmitida ao comprador assim que os grãos haviam sido embalados pelo

vendedor, já que esse havia sido o ato por meio do qual o vendedor havia vinculado

incondicionalmente os grãos ao contrato.

Em 1957, Carlos Federspiel & Co SA v Charles Twigg & Co Ltd298

constituiu um marco no regramento a respeito da transferência da propriedade dos

bens móveis em caso de insolvência. O contrato de venda dizia respeito a bicicletas

de crianças, que haviam sido embaladas e identificadas com o nome do comprador.

Em resposta à remessa das faturas contendo os detalhes da remessa e do

pagamento das taxas de embarque, o comprador enviou um cheque para fins de

pagamento. Quatro semanas depois, mas ainda antes de as bicicletas serem

encaminhadas ao porto para o efetivo embarque, o vendedor tornou-se insolvente e

a entrega não foi efetivada. O comprador ajuizou uma ação pleiteando a entrega das

bicicletas. A decisão estabeleceu que a mera separação dos bens não é suficiente à

transmissão da propriedade, porque o vendedor poderia mudar de opinião e usar

aqueles bens para o cumprimento de outro contrato. Estabeleceu ainda que o ato de

determinação dos bens, ou seja, o ato por meio do qual os bens passam de

indeterminados a determinados e se vinculam incondicionalmente ao contrato é o

último ato a ser praticado pelo vendedor, no caso a entrega dos bens para

embarque. E que, como as bicicletas não haviam sido entregues para embarque, a

sua propriedade não havia sido transferida ao comprador.

Em 1976, outro caso considerado paradigma foi decidido pela Corte

Inglesa de Apelação299. Em Aluminium Industrie Vaassen BV v. Romalpa Aluminium

298 1 Lloyd's Rep. 240, disponível em http://www1.doshisha.ac.jp/~tradelaw/international-trade/passage%20of%20property.htm. 299 English Court of Appeal.

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Ltd.300, a autora era uma empresa que havia vendido folhas metálicas de alumínio à

empresa requerida. A autora/vendedora havia elaborado um contrato de venda com

uma cláusula que estabelecia que a propriedade dos bens vendidos não seria

transmitida à requerida/compradora até que o preço fosse pago integralmente, e que

até a implementação do pagamento a requerida/compradora manteria os bens

manufaturados com as folhas de alumínio como proprietária fiduciária. O contrato

também estabelecia que a requerida/compradora estocaria os bens vendidos de

forma a poderem ser claramente identificados como propriedade da

autora/vendedora até a data do pagamento. A requerida/compradora se tornou

insolvente antes do pagamento do preço, mas havia vendido produtos

manufaturados a partir das folhas de alumínio. A Corte de Apelação decidiu que a

propriedade das folhas de alumínio não havia sido transmitida à

requerida/compradora e que esta havia revendido os bens como mera representante

da autora/vendedora, razão pela qual esta estava legitimada a receber o valor da

venda no varejo com preferência em relação aos demais credores da

requerida/compradora insolvente.

Nada impede que as partes estabeleçam uma cláusula contratual

por meio da qual se determine que a propriedade é transferida, quanto aos bens

indeterminados, mediante o pagamento parcial ou integral do preço.

A presunção res perit domino se aplica ao sistema inglês, razão pela

qual se justifica a importância da especificação do momento em que a propriedade

mobiliária é transferida do vendedor ao comprador.

300 (1976) 2 All ER 552, disponível em http://www.ebc-india.com/lawyer/articles/671.htm.

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A solução pode ser determinante para a fixação dos direitos

decorrentes de um contrato de venda de um veículo, por exemplo. É passível de

discussão se a regra atende às expectativas das partes. O vendedor pode não ter a

intenção de transferir a propriedade do veículo até que o pagamento tenha sido feito

pelo comprador. E o comprador pode não ter a intenção de adquirir a propriedade e,

conseqüentemente, responsabilizar-se pelos riscos, antes da entrega efetiva do

veículo, considerando-se que nesse caso ele próprio arcará com os prejuízos

decorrentes da perda ou deterioração do veículo se uma ou outra hipótese ocorrer

sem culpa do vendedor e antes da entrega efetiva.

Quanto aos riscos, como regra geral são transmitidos pelo vendedor

ao comprador juntamente com a propriedade. “Unless otherwise agreed, the goods

remain at the seller's risk until the property in them is transferred to the buyer, but

when the property in them is transferred to the buyer the goods are at the buyer's risk

whether delivery has been made or not”301. Mas se a entrega do bem vendido

houver sido atrasada “through the fault of either buyer or seller the goods are at the

risk of the party at fault as regards any loss which might not have occurred but for

such fault”302.

Em 1827, em Taling v. Baxter, o comprador adquiriu um monte de

feno, mas antes da entrega efetiva houve um incêndio, sem culpa de qualquer das

301 “A menos que acordado de outra forma pelos contratantes, os bens são mantidos sob o risco do vendedor até que a propriedade seja transmitida ao comprador, mas quando a propriedade é transmitida, os bens passam a estar sob o risco do comprador,s o são conjuntamente, ainda que os bens não tenham sido entregues materialmente ao comprador, independentemente de a entrega ter sido efetivada ou não” (Section 20.1 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 302 “por culpa do vendedor ou do comprador, os bens serão considerados sob o risco da parte culposa, com relação a quaisquer perdas que não teriam ocorrido senão pela ocorrência da culpa” (Section 20.2 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).

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partes, e o feno queimou completamente e se perdeu. A decisão estabeleceu que a

propriedade havia sido transmitida ao comprador no momento da celebração do

contrato, já que se tratava de bem determinado e passível de entrega imediata303.

Em 1922, em Underwood Ltd. V. Burgh Castle Brick and Cement

Syndicate, o objeto da venda era uma máquina de grande porte, que pesava trinta

toneladas e estava montada sobre uma estrutura de concreto. Antes de ser entregue

pelo vendedor à companhia de estrada de ferro que faria o transporte até o local em

que seria recebida pelo comprador, a máquina teve de ser desmontada e, ao ser

colocada no caminhão de transporte, foi danificada. O comprador se recusou a

recebê-la e o vendedor ajuizou uma ação para o fim de obrigá-lo a receber a

máquina e cobrar-lhe o preço acordado. A decisão estabeleceu que, como a

máquina tinha de ser desmontada para ser entregue à transportadora, a propriedade

não havia sido transmitida no momento do acidente304.

Em 1949, em Demby Hamilton & Co Ltd. v. Barden, o contrato teve

por objeto trinta toneladas de suco de maçã, que seriam entregues em

carregamentos semanais. O suco foi estocado em barris, prontos para a entrega.

Depois de algumas semanas o comprador se recusou a aceitar novos

carregamentos pelo tempo que o próprio comprador estabeleceria. Antes que o

comprador permitisse o recomeço das entregas, o suco estragou e teve de ser

jogado fora. A decisão foi de que, embora a propriedade ainda não houvesse

passado, os riscos eram do comprador, considerada a culpa deste ao não receber o

objeto do contrato no tempo combinado.

303 Andrew P. Bell. Modern Law of Personal Property in England and Ireland. Londres/Edimburgo: Butterworths, 1989, p. 316. 304 Disponível em http://www.justis.com/J-Net/J-WEB.DLL?DocumentBody?1154214136&ELR_1922_32_1_123.

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Se o comprador tem a intenção de revender os bens e o vendedor

aceita mantê-los sob a sua posse enquanto o negócio é finalizado, os riscos são

considerados para o comprador. Ou seja, os riscos do contrato deixam de estar com

o vendedor assim que este deixa de agir como vendedor (no exemplo o vendedor

deixou de agir como tal e passou a agir como depositário dos bens a serem

entregues pelo comprador primitivo, que estão sob a detenção do vendedor

primitivo) ao novo comprador.

A solução será diferente se o contrato tem por objeto bens

especificados a serem entregues em data posterior, e antes da entrega os bens se

perdem mediante a negligência do vendedor. Nesse caso, embora a propriedade e

os riscos tenham sido transmitidos para o comprador, o vendedor terá agido com

culpa enquanto ainda no papel de vendedor, o que faz com que se conclua que

assumiu os riscos.

Se o vendedor de um bem móvel não é o proprietário do bem objeto

do contrato, e se a venda não é celebrada mediante a autorização ou o

consentimento do proprietário, o comprador não adquire um título melhor do que o

título do vendedor, a menos que exista fundamento para que se reconheça o

impedimento ao proprietário do bem objeto do contrato para negar que o vendedor

tivesse sua autorização para a realização da venda.

Mas essa norma não impede a aplicação de outras normas que

garantam ao proprietário aparente o direito de dispor dos respectivos bens como

verdadeiro proprietário, bem como não impede a validade de qualquer contrato

celebrado sob regras reconhecidas pelo costume, sob regras específicas previstas

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em outras normas ou sob a autorização de tribunal competente para a apreciação

do caso.

O terceiro adquirente do bem por meio de um título anulável tem a

sua propriedade protegida, desde que a tenha adquirido de boa-fé. “When the seller

of goods has a voidable title to them, but his title has not been avoided at the time of

the sale, the buyer acquires a good title to the goods, provided he buys them in good

faith and without notice of the seller's defect of title”305.

305 Section 23 do Sale of Goods Act 1979 (“Se o vendedor do bem móvel tem um título anulável, mas esse título não foi anulado até a data da venda, o comprador adquire validamente a propriedade do bem objeto do contrato, desde que o faça de boa-fé e sem conhecimento do defeito do título”).

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Capítulo 6 – Contrato de compra e venda de bem móvel no sistema de direito

brasileiro

6.1 – Eficácia e conseqüências

Como referido no Capítulo 3 – Sistemas de aquisição da propriedade

mobiliária, item 3.5 – Sistema brasileiro, inexiste consenso a respeito da eficácia real

ou obrigacional do contrato de compra e venda no sistema de direito brasileiro

anterior ao Código Civil de 1916306.

Nas Ordenações Filipinas, o conceito da compra e venda era

expresso no Livro IV, título 2: "Fazendo-se compra e venda de alguma certa cousa

por certo preço, depois que o contracto he acordado e firmado pelas partes, não se

pode mais alguma dellas arrepender sem consentimento da outra. Porque, tanto que

o comprador e o vendedor são acordados na compra e venda de alguma certa

cousa por certo preço, logo esse contracto he perfeito e acabado, em tanto que

dando, ou offerecendo o comprador ao vendedor o dito preço, que seja seu, será

elle obrigado de lhe entregar a cousa vendida, se fôr seu poder; e se em seu poder

não fôr, pagar-lhe-ha todo o interesse, que lhe pertencer, assi por respeito do ganho,

como por respeito da perda"307.

Darcy Bessone afirma que o texto transcrito permitia a conclusão de

306 Afirmam a eficácia real do contrato de compra e venda no direito brasileiro pré-codificado: Luiz da Cunha Gonçalves. Da compra e venda, cit., p. 72; Sílvio de Salvo Venosa. Direitos reais, cit., p. 187; e Caio Mário da Silva Pereira. Instituições. Direitos reais, cit., p. 118 (conferir notas 192 a 195). Por sua vez, R. Limongi França afirma a eficácia brigacional do contrato de compra e venda inclusive na fase anterior ao Código Civil de 1916 (Manual de direito civil, cit., p. 75-76). 307 Darcy Bessone. Da Compra e venda, cit., p. 74, nota 77.

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que o contrato, por si, transmitia a propriedade, mas conclui que essa possibilidade

era afastada pelo parágrafo primeiro do referido dispositivo legal, que autorizava o

arrependimento, com a perda das arras dadas.

O doutrinador transcreve também o texto do título 7 das mesmas

Ordenações – "Se o que fôr senhor de alguma cousa, a vender duas vêzes a

desvairadas pessoas, o que primeiro houver a entrega della será della feito

verdadeiro senhor, se della pagou o preço, por que lhe foi vendida, ou se se houve e

o vendedor por pago della, por concorrendo assi na dita venda entrega da cousa e

paga do preço, o fazeram senhor della" – para concluir que a transmissão da

propriedade não se perfazia pela convenção, exigindo-se o modo para a sua

efetivação308.

Ainda antes da vigência do Código Civil de 1916, a Lei n.º 1.237, de

24 de setembro de 1.864, em seu artigo 8º, estabeleceu que "a transmissão

intervivos dos imóveis, por titulo oneroso ou gratuito, não opera seus efeitos a

respeito de terceiro, senão pela transcrição e desde a data dela"309, o que gerou

discussão a respeito do momento da transmissão da propriedade, que, de acordo

com o referido dispositivo legal, seria reputada transferida ao adquirente tão

somente pelo efeito da celebração do contrato.

Lafayette Rodrigues Pereira, comentando o referido dispositivo legal

e a possibilidade levantada, de transmissão da propriedade por meio da convenção

e independentemente do modo, afirmou: "O domínio é um direito absoluto, erga

omnes. Se não existe em relação a terceiro, também não pode existir entre as

308 Darcy Bessone. Da Compra e venda, cit., p. 74-75, nota 77. 309 Lafayette Rodrigues Pereira. Direito das coisas, cit., p. 138, nota 44; Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 75, nota 77.

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próprias partes contratantes. Um domínio que só é domínio entre os contratantes,

mas que não o é em relação a terceiro, também não pode existir entre as próprias

partes contratantes. Um domínio que só é domínio entre os contratantes, mas que

não o é em relação a terceiros, é uma monstruosidade, que repugna à razão"310.

Consideradas as posições contraditórias manifestadas pelos

estudiosos e a inexistência de decisões reiteradas que possam atestar o

entendimento jurisprudencial à época, Darcy Bessone afirma que não se pode extrair

do direito pré-codificado brasileiro um principio sólido quanto à eficácia real ou

obrigaciaonal do contrato de compra e venda311.

A partir da vigência do Código Civil de 1916, o entendimento

majoritário foi de que a eficácia do contrato de compra e venda no sistema de direito

brasileiro é meramente obrigacional312, embora tenham sido emitidas opiniões

divergentes.

Luiz da Cunha Gonçalves afirmou que a interpretação conjunta dos

artigos 1.126 e 1.127 do Código Civil de 1916313 permitia a conclusão de que o

contrato de compra e venda, considerado perfeito a partir do momento em que as

partes acordassem sobre o objeto e o preço a ser pago, ensejava, por si, a

310 Lafayette Rodrigues Pereira. Direito das coisas, cit., p. 138, nota 45. 311 Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 74-75 (notas omitidas). 312 A tese dominante se baseou na previsão do artigo 1.122, do Código Civil de 1916 (“Pelo contrato de compra e venda, um dos contraentes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”), sob o fundamento de que, se a lei estabeleceu que da compra e venda resulta a obrigação de transferir o domínio, a conclusão somente pode ser de que o vendedor não o transfere, mas apenas se obriga a transferi-lo. 313 Código Civil, Art. 1126. “A compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem no objetivo e no preço”; Art. 1127. “Até ao momento da tradição, os riscos da coisa correm por conta do vendedor, e os do preço por conta do comprador”.

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transmissão da propriedade e dos riscos ao comprador314.

Darcy Bessone também manifestou opinião divergente da maioria e

desenvolveu uma tese para afirmar a eficácia real do contrato de compra e venda no

sistema de direito brasileiro.

O texto do Código Civil de 1916 (Artigo 1122. “Pelo contrato de

compra e venda, um dos contraentes se obriga a transferir o domínio de certa coisa,

e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”) é equivalente ao do Código Civil

francês (Article 1582. “La vente est une convention par laquelle l’un s’oblige a livrer

une chose et l’outre la payer”315) quanto à obrigação do vendedor, de entrega do

bem objeto do contrato. Ou seja, nenhuma das disposições estabelece que o próprio

contrato transfere a propriedade do bem vendido. No entanto, a corrente vitoriosa na

França afirmou que não se podia extrair o sistema francês de um único dispositivo

legal com a desconsideração de vários outros, que fixavam o caráter real do

contrato316.

Com fundamento nessa visão do direito francês, Darcy Bessone

analisou diversos artigos do Código Civil de 1916, visando a comprovar a eficácia

real do contrato de compra e venda no direito brasileiro.

O primeiro objeto da análise foi o artigo 134, inciso II (“É, outrossim,

da substância do ato a escritura pública: I – (...); II – nos contratos constitutivos ou

translativos de direitos reais sobre imóveis de valor superior a Cr$ 50.000 (cinqüenta

314 Luiz da Cunha Gonçalves. Da compra e venda, cit., p. 72. 315 “A venda é uma convenção pela qual alguém se obriga a entregar uma coisa e outrem a pagá-la”. 316 “Article 1.583. La vente est parfaite entre les parties, et la propriété est acquise de droit à l’acheteur à l’egard du vendeur, dès qu’on est convenu de la chose et du prix, quoique la chose n’ait pas encore été livrée ni le prix payé” (Artigo 1.583. A venda se considera perfeita entre as partes, e a propriedade é adquirida pelo comprador em relação ao vendedor, desde que sejam convencionados a coisa e o preço, embora a coisa ainda não tenha sido entregue nem o preço pago).

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mil cruzeiros), excetuado o penhor agrícola317). Afirma o doutrinador: “Não é

possível maior clareza, quanto à existência, entre nós, de contratos constitutivos ou

translativos de direitos reais (...). O conceito moderno do contrato admite, ao

contrário do que supunham os romanos, que êle é hábil para constituir e transmitir

direitos reais, não se cingindo, assim, à produção de obrigações. Ninguém duvidaria

de que, entre os contratos constitutivos ou translativos de direitos reais, destaca-se,

como o principal dêles, precisamente a compra e venda, cuja forma, sempre que o

imóvel seja de valor superior a dez mil cruzeiros, é, por fôrça apenas do invocado

art. 134, a escritura pública. Então, não se pode, sem afronta a êsse inciso, negar à

compra e venda o caráter translativo ou constitutivo de direito real, o que equivale a

reconhecer-lhe eficácia real, isto é, a incluí-lo entre os contratos reais pelos

efeitos”318.

A seguir, Darcy Bessone compara o texto dos artigos 1.122 (“Pelo

contrato de compra e venda, um dos contraentes se obriga a transferir o domínio de

certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”) e 1.165 (“Considera-se

doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio

bens ou vantagens para o de outro, que os aceita”) para ressaltar no segundo

dispositivo legal a redação que não refere a obrigação de transferir a propriedade,

mas sim a própria transferência desta: “A diferença da expressão, nos arts. 1122 e

1165, definidores da compra e venda e da doação, teria sido intencional, visando a

conferir caráter obrigacional à primeira, e caráter real, à segunda? Dificilmente,

317 Embora o dispositivo legal se refira a bens imóveis, a explicação do doutrinador diz respeito não à qualidade do bem em si, mas sim à eficácia do contrato de compra e venda, genericamente considerado. 318 Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 76.

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poder-se-ia, em face de figuras tão afins, admitir tal diversidade de tratamento. Mais

facilmente, admitir-se-á, sobretudo em face do texto do art. 134, que faltou ao

legislador, apenas, uma visão penetrante do tema, deixando-se influir,

possivelmente, pela redação do art. 1582, do Code Civil francês. Este, não obstante,

foi, na própria França, cotejado com outros incisos legais, em um trabalho de

exegese sistemática e teleológica, que acabou afirmando a eficácia real da compra e

venda francesa319.

Na seqüência, o doutrinador estuda os artigos 533 (“Os atos sujeitos

à transcrição (artigos 531 e 532, nºs. II e III) não transferem o domínio, senão da

data em que lhe transcreverem (artigos 856 e 860, parágrafo único) e 620 (“O

domínio das coisas não se transfere pelos contratos antes da tradição”) para

fundamentar a sua tese. De acordo com a sua conclusão, os dois dispositivos legais

“afirmam, embora sob forma indireta, que a transferência do domínio deriva do

contrato. Com efeito, o primeiro, convertido em proposição afirmativa, teria o

seguinte texto: os atos sujeitos a transcrição, transferem o domínio, na data em que

se transcreverem; o segundo, submetido a idêntica operação, afirmaria que o

domínio das coisas, no momento da tradição, se transfere pelos contratos. A forma

negativa de expressão, adotada pelo legislador nos artigos 533 e 620, pode, à

primeira vista, desligar, do ato ou contrato, o efeito translativo, para lhe fixar a origem

na transcrição ou tradição. Mas a análise lógica precisará o verdadeiro sentido dos

dois preceitos320.

Darcy Bessone faz ainda uma análise do acordo de vontades,

319 Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 77-78. 320 Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 78.

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considerado a base da compra e venda brasileira, para o fim de comparar o referido

contrato aos contratos de compra e venda nos outros sistemas de direito. Afirma que

a tese de que a compra e venda brasileira produz apenas a obrigação de transferir o

domínio significa que o objeto do acordo de vontades é a criação dessa obrigação

de transferir o domínio e não a própria transferência deste. E que essa afirmação

poderia ser admitida no direito alemão, cujo sistema estabelece que o contrato de

compra e venda é estranho ao negócio translativo, já que este tem por base um

outro contrato, que é abstrato e, pelos efeitos, real. Ou no direito romano, porque, de

acordo com o doutrinador, os romanos se valiam de modos de adquirir de natureza

contratual, embora não o percebessem ou não o admitissem. “Mas, entre nós, não

se pode aceitar a aludida tese, por ser certo que não dispomos de um segundo

acôrdo de vontades, de um segundo contrato, integrativo do negócio de transmissão

dominical. No direito brasileiro, é a própria compra e venda que o integra. Então,

apresenta-se esta incontornável alternativa: ou o acôrdo de vontades sôbre a

transferência do domínio (não sôbre a obrigação de transferi-lo) está na compra e

venda, ou não está em parte alguma, não existe”321.

O doutrinado afirma que o sistema de direito brasileiro somente pode

ser entendido mediante a conclusão de que o acordo de vontades a respeito da

transmissão do domínio da propriedade está no próprio contrato de compra e venda.

A respeito da comparação entre o sistema brasileiro e os sistemas

francês e alemão, o doutrinar conclui: “o direito brasileiro aproxima-se do francês e

do italiano, que consideram a compra e venda como um acôrdo de vontades sôbre a

própria transferência do domínio, não sôbre a obrigação de transferi-lo.

321 Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 79.

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Aproximando-se, não se identifica com êles, entretanto, porque, aqui, a transcrição

no Registro Imobiliário, em relação aos bens imóveis, e a tradição, quanto aos bens

móveis, são, ao contrário do que ocorre na França e na Itália, atos integradores do

negócio translativo. Sob êsse aspecto, filia-se o nosso direito ao germânico. Mas,

também, não se identifica com êste, porque, como já foi repetidamente assinalado,

no direito alemão, o acôrdo de vontades sôbre a transferência do domínio, embora

seja essencial, não se estabelece na compra e venda, que é simplesmente

obrigacional e encerra autêntica promessa de alienar, mas sim em um segundo

contrato, real pelos efeitos translatícios que suscita. (...) Admitindo-se,

principalmente, em face do art. 134, do Código Civil, que, em nosso direito, o acôrdo

de vontades, constante da compra e venda, abrange os efeitos obrigacionais e reais

do negócio, far-se-á honra ao legislador pátrio, que teria, assim, se adiantado ao

alemão, na unificação dos dois acôrdos de vontades. (...) Mesmo em relação aos

bens móveis, não se poderia ver apenas na tradição o ato translativo. A tradição,

como forma de entrega da coisa, ocorre a vários títulos: pode fazer-se a título de

transmissão do domínio (art. 620, do Código Civil), ou de transmissão da posse (art.

520, II), como na locação, no mútuo, no comodato, no penhor, na anticrese, na

enfiteuse, no usufruto, no depósito, etc. Então, a simples entrega material nada

define, por si mesma. É ato de sentido equívoco, que só se torna unívoco, através

do título fundamental. Logo se vê que decisivo é o título, não a materialidade da

entrega, tanto que o parágrafo único, do art. 622, do Código Civil, preceitua que,

sendo, nulo o título, o domínio não se transfere pela tradição. (...) Então, o acôrdo

sôbre a transferência do domínio é essencial. No, caso brasileiro, êsse acôrdo se

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exprime na compra e venda, título originador da tradição e que lhe confere o exato

alcance”322.

A discussão proposta por Darcy Bessone não se prolongou e a tese

defendida pelo doutrinador não prosperou no direito brasileiro, merecendo poucas

referências nas obras dos demais doutrinadores.

Orlando Gomes refere a posição de Darcy Bessone, mas não a

reconhece como passível de acolhimento no direito brasileiro: “O Direito pátrio

seguiu a orientação romana ao atribuir à compra e venda efeitos meramente

obrigacionais. Esta a opinião predominante. Contudo, não é inteiramente pacífica,

porque a referência legal a contratos constitutivos de direitos reais dá a impressão

de que estes podem ser constituídos ou transmitidos por efeitos exclusivos de

obrigação, sustentando alguns escritores que a perda do domínio de uma coisa pela

alienação verifica-se em conseqüência do título transmissivo, embora os efeitos se

subordinem à transcrição deste no lugar do imóvel. Em reforço da tese de que, entre

nós, o contrato pode ter efeito real, invocam-se disposições concernentes à

doação323. Prevalece, no entanto, a opinião de que o Direito nacional não atribui ao

contrato de compra e venda efeitos reais, como se depreende, sem esforço, das

disposições concernentes ao registro da propriedade imóvel”324.

322 Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 79-81. 323 Em nota de rodapé, Orlando Gomes refere a explicação de Darcy Bessone quanto à identidade do momento da transmissão da propriedade nos contratos de compra e venda e de doação (conferir a nota 325). 324 Orlando Gomes. Contratos, cit., p. 225-226. Embora Orlando Gomes não especifique a quais dispositivos referentes concernentes ao registro da propriedade imóvel se refere, é possível presumir que se refere ao artigo 533 do Código Civil de 1916 (“Os atos sujeitos à transcrição (artigos 531 e 532, nºs. II e III) não transferem o domínio, senão da data em que lhe transcreverem (artigos 856 e 860, parágrafo único)”). Vale consignar, pela oportunidade, mas apenas a título de reiteração, que Darcy Bessone estendeu retroativamente a eficácia do registro da propriedade imóvel à data da celebração do contrato de compra e venda (conferir a nota 326). A tese de Darcy Bessone, como

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Silvio Rodrigues também cita Darcy Bessone: “A despeito da

excelência e fulgor da argumentação, não me convenci de sua razão. Ademais, o

ponto de vista majoritário que empresta apenas efeitos pessoais ao contrato de

compra e venda, a meu ver, revela-se mais convincente e melhor consulta o

regra, não foi aceita pela jurisprudência brasileira, como se constata das decisões sob a vigência do Código Civil de 1916: “Bem imóvel – Transferência de propriedade – Nos termos do art. 530, I, do atual Código Civil Brasileiro, ‘adquire-se a propriedade imóvel pela transcrição do título de transferência no registro do imóvel’. Essa regra não foi revogada, ao contrário, foi repetida no art. 1.245 e §§, da Lei nº 10.406, de 10.1.2002, que aprovou o novo Código Civil que vai entrar em vigor no dia 11 de janeiro próximo. Estando ali previsto que ‘enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel’” (Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região – Apelação n.º 5148/2002 – 2ª Turma – Relator: Juiz José Edílsimo Eliziário Bentes – J. 18.12.2002); “(...) Como se sabe, no direito brasileiro a aquisição de propriedade imóvel se dá mediante a transcrição do título de transferência no registro competente, conforme artigos 530, I; 531; 533 e 860 do CCB, estabelecendo o referido diploma legal regras de publicidade dos atos, exatamente para se conferir segurança às relações jurídicas atinentes a bens imóveis. (...)” (Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região – Apelação n.º 5254/02 – 2ª Turma – Relatora: Juíza Alice Monteiro de Barros – DJMG 02.10.2002 – p. 10); “(...) 1 – Tendo o autor provado a propriedade do bem imóvel e não ocorrendo qualquer das hipóteses elencadas no art. 530, do CCB, outra não poderia ter sido a solução encontrada. 2 – A documentação apresentada pelos apelantes, não atendeu aos requisitos legais para fazer prova da aquisição da propriedade e, a única escritura apresentada por um deles não foi levada a registro. 3 – Não se discute a existência de posse de boa-fé, pois, segundo informou o apelado, que morava em outro estado, a pessoa que tomava conta do terreno morreu, não sendo certo o período em que o imóvel permaneceu sem vigilância. 4 – Correta a determinação de indenização das benfeitorias edificadas sobre o imóvel do apelado, após a perfeita individualização do mesmo. 5 – Sentença mantida. Apelação conhecida e improvida” (Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo – Apelação Cível n.º 035980118992 – 1ª Câmara Cível – Relatora: Des. Arione Vasconcelos Ribeiro – J. 10.12.2003). Também a título de consignação, o Código Civil de 2002 alterou a redação a respeito da transcrição, nos termos do atual artigo 1.245: “Art. 1245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. § 1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel. § 2º Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel”. A jurisprudência a respeito do dispositivo atual, mediante rejeição da tese de Darcy Bessone: “(...) A aquisição da propriedade imobiliária ocorre mediante a transcrição do título de transferência no registro de imóveis, sendo titular do direito aquele cujo nome estiver transcrito o bem imóvel. - Constando na certidão de registro de imóveis que o INSS é o proprietário do imóvel objeto da presente lide, legitimado está para figurar no pólo passivo da demanda. – Caso ocorra a alienação do bem, obrigatório será o registro da escritura de compra e venda no competente registro de imóveis, por força da norma inserta no art. 530, I, do CC. – Recurso não provido. Sentença mantida” (Tribunal Regional Federal da 2ª Região – Apelação Cível n.º 2001.51.01.013149-0 – 6ª Turma Especial – Relator: Des. Fed. Benedito Goncalves – DJU 10.11.2005 – p. 203); “Embargos de terceiro – Prova da propriedade – Bem imóvel – A propriedade de bem imóvel é adquirida com a transcrição do título de transferência no cartório de registro de imóveis, conforme preceituado no art. 1245 do Código Civil. Assim, havendo prova do registro legalmente exigido, considera-se a Agravante como proprietária do bem penhorado” (Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região – Apelação n.º 01639-2003-016-05-00-1 – (30.985/04) – 4ª Turma – Relatora: Juíza Débora Machado – J. 30.11.2004); “Penhora de imóvel – Registro – Propriedade – Somente é dono de bem imóvel aquele que detém o respectivo registro da propriedade no cartório de registro de imóveis, nos termos do art. 1245 do Código Civil/2002. Agravo de petição conhecido e nele não provido, por unanimidade” (Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região – Apelação n.º 0922/2003-002-24-00-0 – Relator: Juiz Nicanor de Araújo Lima – J. 04.08.2004).

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interesse geral”325.

Manoel Inácio Carvalho de Mendonça afirma a eficácia obrigacional

do contrato de compra e venda no sistema brasileiro mediante a fundamentação do

sistema nacional no sistema de direito romano, que reconhecia que o contrato de

compra e venda não transferia a propriedade e tampouco fundava direitos reais, mas

apenas dava lugar a direitos de crédito326.

J. M. Carvalho Santos, ao comentar o artigo 1.122 do Código Civil

de 1916, leciona: “Pelo contrato de compra e venda, um dos contraentes se obriga a

transferir o domínio de certa coisa... Note-se bem: um dos contraentes, o vendedor,

não transfere; obriga-se, sim, a transferir o domínio de certa coisa. É que a compra e

venda, no sistema do nosso Código, não opera, de si só, a transferência do domínio.

(...) Os mestres não divergem: em nenhum caso, adquire o comprador o domínio

sobre a coisa, antes da tradição”327. E, ao comentar o artigo 620 do mesmo Código

Civil de 1916, o doutrinador reitera a eficácia obrigacional do contrato de compra e

venda: “Sem a tradição, na verdade, existe apenas o contrato e êste destinado a

325 Silvio Rodrigues. Direito civil: dos contratos e das declarações unilaterais de vontade. 29ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. Volume 3, p. 142, nota 188. Nesse sentido: “Recurso especial – Civil – Embargos de terceiro – Tradição de coisa semovente não caracterizada – Boa-fé do adquirente não demonstrada – 1. O contrato de compra e venda produz efeitos meramente obrigacionais, não conferindo poderes de proprietário àquele que não obteve a entrega do bem adquirido. In casu, não tendo havido a tradição, conforme relatado pelas instâncias ordinárias, e não tendo havido o pagamento do preço, não se concluiu a primeira compra e venda. 2. Boa-fé do segundo adquirente não demonstrada. 3. Recurso não conhecido” (Superior Tribunal de Justiça – RESP n.º 200401636417 – (704170 GO) – 4ª Turma – Relator: Ministro Jorge Scartezzini – DJU 07.11.2005 – p. 00305). 326 Manoel Inácio Carvalho de Mendonça. Contratos, cit., p. 314. Nesse sentido: “Recurso especial – Civil – Embargos de terceiro – Tradição de coisa semovente não caracterizada – Boa-fé do adquirente não demonstrada – 1. O contrato de compra e venda produz efeitos meramente obrigacionais, não conferindo poderes de proprietário àquele que não obteve a entrega do bem adquirido. In casu, não tendo havido a tradição, conforme relatado pelas instâncias ordinárias, e não tendo havido o pagamento do preço, não se concluiu a primeira compra e venda. 2. Boa-fé do segundo adquirente não demonstrada. 3. Recurso não conhecido” (STJ – RESP 200401636417 – (704170 GO) – 4ª T. – Rel. Min. Jorge Scartezzini – DJU 07.11.2005 – p. 00305). 327 J. M. Carvalho Santos. Código Civil. Volume XVI, cit., p. 10.

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criar direitos de obrigação só acarreta a de entregar, a de fazer a tradição, não

criando nenhum direito à coisa, nenhum direito ad rem. Não havendo nenhuma

discrepância na doutrina sôbre êsse ponto”328.

Washington de Barros Monteiro comunga do mesmo entendimento e

afirma que o contrato de compra e venda, por si só, não opera a transmissão da

propriedade. Corrobora que para que se efetive a transferência da propriedade são

necessárias a tradição (para os bens móveis) e o registro (para os imóveis), sendo

que antes desses fatos, o comprador só tem contra o vendedor um direito pessoal, já

que a tradição e o registro é que dão origem ao direito real329.

Caio Mário da Silva Pereira, após referir a definição legal do contrato

de compra e venda, afirma a sua posição de que a eficácia do referido contrato é

obrigacional: “Desta noção fazemos ressaltar, desde logo, o ponto essencial, que

marca a posição do nosso direito: o caráter meramente obrigatório do contrato.

Seguindo, como se vê, a tradição romana, e fiel à nossa determinação histórica, a

compra e venda não opera, segundo o nosso Código, a transmissão do domínio”330.

328 J. M. Carvalho Santos. Código Civil. Volume VIII, cit., p. 277. Nesse sentido: “Ilegitimidade ‘ad causam’ – Compra e venda de coisa móvel – Mercadoria não entregue – Pretensão à satisfação do direito por meio de ação de imissão de posse – Inadmissibilidade – Legitimação para essa ação conferida, apenas, ao proprietário – Inexistência de transferência de domínio da coisa, pela ausência de tradição – Incidência do artigo 620 do Código Civil – Ilegitimidade ativa reconhecida – Extinção do processo mantida - Recurso improvido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Sumária n.º 0865431-9 – Origem: São José dos Campos – 8ª Câmara de Férias Julho – Relator: Maurício Ferreira Leite – J. 02/07/1999). 329 Washington de Barros Monteiro. Curso: obrigações – 2ª Parte, cit., p. 90. 330 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Contratos, cit., p. 172. O doutrinador também manifestou sua posição no seu “Anteprojeto de Código de Obrigações”, em cuja exposição de motivos afirmou que havia mantido as características tradicionais, “milenares”, do contrato de compra e venda. Continua: “Foi-lhe conservada a natureza de título causal da transferência do domínio, dentro do que constitui a linha fundamental do instituto entre nós. O princípio da escola francesa, segundo o qual a venda opera desde logo a mutação da propriedade não vinga. Por isso, o contrato habilita a transmissão, mediante a formalidade essencial do registro, ou tradição” (Anteprojeto de Código de Obrigações. Rio de Janeiro: sem editora indicada, 1964, p. 26).

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Maria Helena Diniz manifesta seu entendimento no mesmo sentido:

“O contrato de compra e venda dá aos contratantes tão-somente um direito pessoal,

gerando para o vendedor apenas uma obrigação de transferir o domínio;

conseqüentemente, produz efeitos meramente obrigacionais, não conferindo

poderes de proprietário àquele que não obteve a entrega do bem adquirido. Não

opera, portanto, de per si, a transferência da propriedade, que só se perfaz pela

tradição, se a coisa for móvel, ou pela transcrição do título aquisitivo no registro

competente, se for imóvel”331.

Reconhecida a eficácia obrigacional do contrato de compra e venda

no direito brasileiro, conforme entendimento que, se não se pode afirmar pacífico, é

absolutamente majoritário, identifica-se a grande dificuldade de transposição da

teoria para a prática nos casos em que o contrato de compra e venda e a

transmissão da propriedade são simultâneos.

Pontes de Miranda desenvolveu uma explicação sobre os dois atos

distintos – a celebração do contrato de compra e venda e a transmissão da

propriedade mobiliária – que, ocorridos simultaneamente, fundamentam a dúvida a

respeito da eficácia do contrato de compra e venda de bem móvel no Brasil: “A

compra e venda à vista, ou a compra e venda a prazo, pela qual o vendedor desde

331 Maria Helena Diniz. Tratado Teórico e Prático dos Contratos. 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1996, p. 333. Ainda no mesmo sentido se manifesta Sebastião de Souza: “No sistema adotado pelo nosso direito, o contrato de compra e venda não transfere o domínio da coisa. Dele surgem apenas obrigações pessoais” (Da compra e venda. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1956, p. 33). E também Carlos Alberto Bittar, que afirma que o regime brasileiro aproximou-se do alemão, ao estabelecer que o laço contratual implica apenas no nascimento de direitos pessoais entre as partes, impondo-lhe obrigações de dar, diversamente do que prevê a legislação codificação francesa, que estabelece que o próprio contrato de compra e venda cria o vínculo pelo qual se opera a transferência de domínio da coisa alienada. Afirma ainda que, em conseqüência da eficácia obrigacional do contrato de compra e venda, o comprador não dispõe de mecanismos de reação próprios de proprietário, como a ação de reivindicação, resolvendo-se normalmente em perdas e danos os litígios com o vendedor decorrentes da não entrega do bem vendido, salvo nos casos em que se faz possível o cumprimento do contrato (Contratos Civis. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1991, p. 16).

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logo transfere a propriedade ou a posse, é contrato consensual, como qualquer

outro. Apenas o vendedor se obrigou a prestar imediatamente, e a imediatidade dá a

ilusão da simultaneidade e, o que é mais delicado, da causação da transferência

pelo contrato de compra e venda. Mesmo se o comprador recebe o bem

(propriedade e posse) ao concluir o contrato, ou se já o havia recebido, o que passa

é que ele foi figurante de dois negócios jurídicos: o contrato de compra e venda e o

acordo de transmissão; ou de três: o contrato de compra e venda, o acordo de

transmissão da propriedade e o acordo de transmissão da posse”332.

Arnaldo Rizzardo também faz menção à duplicidade de atos, ao

afirmar que, mediante a celebração do contrato de compra e venda, o vendedor

somente se obriga a transferir a propriedade do bem mediante a contraprestação do

preço em dinheiro. Enfatiza que o aperfeiçoamento do contrato se dá

independentemente da tradição do bem móvel que consiste no seu objeto e que,

acaso não consumada a tradição, os direitos decorrentes do contrato serão

exclusivamente obrigacionais, já que a constituição do direito real depende

necessariamente daquele ato333.

Adotamos a posição majoritária de que no direito brasileiro o

contrato de compra e venda tem eficácia meramente obrigacional. A tese

desenvolvida por Darcy Bessone, reconhecido o seu inegável valor histórico e

acadêmico, desconsidera os distintos caminhos trilhados, por um lado, pelo direito

francês e pelo direito inglês e, por outro, pelo direito brasileiro.

O reconhecimento, pelo sistema brasileiro, da tradição simbólica e

332 Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1962. Tomo XXXIX, p. 55. 333 Arnaldo Rizzardo. Contratos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p. 293-294.

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da tradição ficta, ambas referidas pela doutrina francesa – a partir do princípio de

dessaisine-saisine334 – como o caminho por meio do qual a tradição deixou de ser

essencial à transmissão da propriedade mobiliária naquele sistema de direito, não

tem como conseqüência a desconsideração ou o afastamento da necessidade do

ato de exteriorização da transmissão da propriedade mobiliária. Trata-se

exclusivamente do reconhecimento de que, de forma excepcional e desde que

caracterizada uma das situações expressamente previstas335, dispensa-se a entrega

material do bem objeto do contrato de compra e venda e se reconhece a um

determinado ato jurídico ou a uma conduta das partes o mesmo efeito daquela

entrega material.

O contrato de compra e venda, por si e independentemente da

tradição, enseja exclusivamente direitos obrigacionais aos contratantes. Dessa

circunstância decorre a inegável conclusão de que, ainda que pago o preço, o

comprador – que não é proprietário do bem móvel porque não obteve a tradição –

não pode se valer dos interditos garantidos apenas ao proprietário para obter a

posse do bem.

Quanto aos riscos a que o bem está sujeito, consideram-se-nos

transmitidos ao comprador mediante a tradição do referido bem. Ou seja, até o

334 Conferir 3.3. 335 As hipóteses de tradição simbólica decorrem de atos reputados válidos para a transmissão da propriedade mobiliária, como a entrega das chaves simbolizando a entrega do veículo que se encontra em local diverso; as hipóteses de tradição ficta estão previstas no artigo 1267 do Código Civil (A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição. Parágrafo único. Subentende-se a tradição quando o transmitente continua a possuir pelo constituto possessório; quando cede ao adquirente o direito à restituição da coisa, que se encontra em poder de terceiro; ou quando o adquirente já está na posse da coisa, por ocasião do negócio jurídico”) e em diversos outros dispositivos legais, referidos no Capítulo 2 – Modos de aquisiçào da propriedade mobiliária, item 2.2 – Tradição.

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momento da tradição os riscos correm por conta do vendedor336.

Isso significa que, ocorrido o caso fortuito ou de força maior337, o

vendedor, como proprietário do bem, sofrerá a perda, mediante a aplicação da

máxima res perit domino.

Excepcionalmente, a perda decorrente do caso fortuito ou de força

maior será imputada ao comprador, desde que verificada durante o “ato de contar,

marcar ou assinalar coisas, que comumente se recebem, contando, pesando,

medindo ou assinalando, e que já tiverem sido postas à disposição do comprador,

correrão por conta deste” (artigo 492, parágrafo 1º, do Código Civil).

Por fim, os riscos a que se sujeita o bem objeto do contrato são

considerados à conta do comprador se este estiver em mora de recebê-lo, desde

que posto à sua disposição no tempo, lugar e pelo modo ajustados (artigo 492,

parágrafo 2º, do Código Civil). Ou seja, desde que o bem seja posto, da forma

estipulada no contrato, à disposição do comprador, será este responsável pelos

danos a partir de então decorrentes e que não tenham qualquer ligação com a

conduta do vendedor anterior à efetivação da entrega. Nesse sentido a decisão do

Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em acórdão em que se analisou a conduta do

comprador do bem que se perdeu após ter sido posto à disposição deste: “Direito

civil – Embargos à execução – Morte de animal objeto do contrato de compra e

venda – Prejuízo pela perda da coisa deve ser suportado pelo dono – Prescrição do

direito de ação referente ao vício redibitório – Recurso improvido – Unânime – Nas

obrigações de dar, a tradição é um dos requisitos indispensáveis para a efetiva

336 Código Civil, Art. 492. “Até o momento da tradição, os riscos da coisa correm por conta do vendedor, e os do preço por conta do comprador”. 337 Nos termos do artigo 393, parágrafo único do Código Civil, caso fortuito ou de força maior é o “fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”.

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realização do negócio, e esta se consubstancia na entrega do bem ao adquirente,

com a intenção de lhe transferir o domínio, em razão de título translativo de

propriedade. Comprovado que foi efetuada a entrega do cavalo, mesmo que o

comprador tenha decidido deixá-lo naquele local, deve suportar o prejuízo, pois

assumiu todos os direitos, ônus e obrigações, que competem ao titular da coisa

adquirida. O vício redibitório somente pode ser alegado em até seis meses após a

compra do bem, à luz do Código Civil de 1916, ou a partir da ciência da existência

do vício oculto, sob pena de prescrição do direito de ação” (Tribunal de Justiça do

Distrito Federal – Apelação Cível n.º 1998.04.1.004383-9 – 4ª Turma Cível – Relator:

Des. Lecir Manoel da Luz – DJU 26.02.2004 – p. 60).

Considerando que a propriedade mobiliária é transmitida pela

tradição, a celebração do contrato, por si, não enseja a modificação da sua

titularidade, o que permite a aplicação, ao contrato de compra e venda de bem

móvel, das regras gerais a respeito das obrigações de dar.

Se o bem móvel objeto do contrato de compra e venda se perder

antes da tradição, sem culpa338 do vendedor, será considerada extinta a obrigação

de dar (artigo 234 do Código Civil) e, conseqüentemente, será considerado resolvido

338 Para os fins de identificação da conduta culposa do devedor da obrigação de dar, assim como para as hipóteses de obrigação de fazer e de não fazer, utiliza-se a definição de culpa em sentido amplo, utilizada como regra no direito civil, o que compreende o dolo e a culpa em sentido estrito. O dolo se verifica na conduta voluntária do agente, voltada especificamente à prática de um determinado ato. Por sua vez, a culpa em sentido estrito é identificada nas hipóteses de imprudência, negligência e imperícia. A imprudência se caracteriza pela conduta positiva do agente – in committendo ou in faciendo – de enfrentamento desnecessário do perigo, ou seja, o indivíduo se conduz positivamente, deixando de tomar os cuidados objetivos básicos para evitar a ocorrência de um resultado danoso. A negligência se caracteriza pela conduta negativa do agente (in ommittendo), o qual se abstém quando deveria agir de forma a evitar um determinado resultado. Por fim, a imperícia decorre da falta de habilidade específica para a prática de uma atividade técnica ou científica. Em se tratando de relação contratual, o lesado pelo inadimplemento da obrigação tem o ônus exclusivo de comprovar o referido descumprimento, mas não tem o ônus de comprovar a culpa da parte inadimplente, que é presumida em decorrência do descumprimento da obrigação regularmente pactuada. À parte inadimplente incumbe o ônus da prova da inexistência de sua culpa.

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o contrato e extinta, como contraprestação, a obrigação do comprador de pagar o

preço. Se o preço já houver sido pago, o comprador terá o direito de reavê-lo na sua

integralidade339.

Se o bem móvel se perder antes da tradição, mas com culpa do

vendedor, e o comprador já houver pago o preço, poderá este optar entre desfazer o

negócio, exigindo a devolução do valor pago, ou exigir que o vendedor cumpra o

contrato, mediante a entrega de bem equivalente, se houver possibilidade. Se o

preço não houver sido pago, o comprador ficará exonerado de seu pagamento se

pretender o desfazimento do contrato. Pretendendo o cumprimento do contrato pelo

vendedor, em caso de possibilidade de entrega de bem equivalente, deverá

comprovar o cumprimento de sua obrigação, mediante a consignação do

pagamento, se o caso. Em todas as hipóteses, terá o direto de ser indenizado por

perdas e danos, desde que comprovados (artigo 234 do Código Civil).

Se o bem móvel se deteriorar antes da tradição, sem culpa do

vendedor, ao comprador será garantido optar pela resolução do contrato de compra

e venda, mediante a devolução do preço, ou aceitar o bem móvel deteriorado nas

condições em que se encontrar, nesse último caso mediante o abatimento em seu

preço do valor que se perdeu (artigo 235 do Código Civil).

Se o bem móvel se deteriorar antes da tradição, mas com culpa do

vendedor, o comprador poderá desfazer o negócio, já que não é obrigado a aceitar

bem diverso ou em condições diversas daquelas em que se encontrava quando da

339 A devolução da integralidade do preço poderá ser objeto de discussão em casos específicos. Por exemplo, se o vendedor teve gastos para a manutenção do bem, os quais, embora tenham sido efetuados para a manutenção de bem de sua propriedade, já que a propriedade somente seria transmitida com a tradição, tenham constado especificamente de contrato como passíveis de dedução quando do pagamento do preço, posteriormente à tradição que não chegou a ocorrer.

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celebração do contrato340. Poderá ainda optar entre exigir o equivalente, se houver

possibilidade, ou aceitar o bem no estado em que se encontra, mediante o

abatimento em seu preço do valor que se perdeu. Tratando-se de hipóteses de

deterioração com o reconhecimento da culpa do vendedor, o comprador terá o direto

de ser indenizado por perdas e danos, desde que comprovados (artigo 236 do

Código Civil).

Considerada a regra de que a propriedade do bem móvel no Brasil

não se transfere do vendedor ao comprador por meio do contrato de compra e

venda, mas sim por meio da tradição341, como modo de transmissão da propriedade,

sob o fundamento do título consubstanciado no referido contrato, tem-se que,

também como regra, a insolvência de uma das partes não enseja, por si, dificuldade

quanto à aferição de a qual delas pertence o bem objeto do contrato, já que o bem

será do vendedor se ainda não efetivada a tradição e será do credor se já efetivada

a tradição.

Mas poderão ser identificadas situações específicas em que a

solução dependerá da consideração de circunstâncias diversas.

De acordo com o artigo 159 do Código Civil, os contratos onerosos

celebrados pelo devedor insolvente são anuláveis, desde que a insolvência seja

notória ou desde que exista motivo para ser conhecida do outro contratante. Trata-

se de regra cuja aplicação depende da comprovação, no caso concreto, das

circunstâncias especificadas.

340 Código Civil, Art. 313. “O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa”. 341 Código Civil, Art. 1226. “Os direitos reais sobre coisas móveis, quando constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com a tradição”; Art. 1267. “A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição”.

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Em caso de insolvência do vendedor, se o bem móvel não houver

sido entregue ao comprador, a sua propriedade será do próprio vendedor insolvente.

Consigna-se que, não entregue o bem pelo vendedor ao comprador na data

estabelecida no contrato, a solução será a mesma independentemente de ter sido

ou não decretada a insolvência do vendedor ou de se tratar de situação notória ou

em que se presume a ciência dessa situação pelo eventual adquirente.

Se o comprador já houver pago o preço e o bem ainda estiver sob a

posse do vendedor, poderá o primeiro optar entre executar o contrato, mediante a

exigência da entrega do bem móvel objeto da compra e venda342, ou desfazê-lo,

mediante a cobrança do valor pago343. Se o bem não mais estiver sob a posse do

vendedor porque este o alienou a terceiro, o comprador poderá resolver o contrato,

mediante a exigência da devolução do valor pago344, ou poderá pretender a

342 A ação de execução poderá ser ajuizada desde que o contrato preencha os requisitos do artigo 585, inciso II, do Código de Processo Civil. Caso o contrato não preencha os requisitos legais (artigo 585, combinado com o artigo 586, ambos do Código de Processo Civil), o que se verifica na grande maioria dos casos de contratos celebrados por leigos em decorrência da ausência de assinatura de duas testemunhas, ao credor será garantida a ação de obrigação de dar, prevista no artigo 461-A do Código de Processo Civil. 343 “Cobrança – Compra de elevadores para entrega futura, com preço pago – Desavença, quando da época da entrega quanto à diferença de preço, a autorizar, por ambas as partes, denúncia do contrato – Obrigação da vendedora de devolver, de imediato, após notificação, o preço recebido – Ilicitude da retenção do dinheiro, pela ré – Procedência da ação confirmada – Recurso não provido. (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 22.765-4 – Origem: São Paulo – 3ª Câmara de Direito Privado – Relator: Alfredo Migliore – 18.02.97 – V. U.). 344 O direito do comprador de ser indenizado por perdas e danos somente poderá ser aferido no caso concreto, mediante a sua comprovação por aquele que os alega. Se o bem não foi utilizado pelo comprador, como na hipótese aventada no texto, já que o comprador não obteve a sua posse, o direito de ser indenizado por perdas e danos é mais remoto, exigida a prova de evento concreto a demonstrar a sua ocorrência, como, por exemplo, a celebração de contrato preliminar tendo como objeto o bem comprado e não recebido. A propósito, especificamente, dos valores passíveis de exigência de devolução pelo alienante ao adquirente: “(...) Se o recorrente, malgrado tenha adquirido terreno a ‘non domino’, nunca o ocupou, nem o utilizou de qualquer forma, o "quantum" da indenização em decorrência da ilicitude, deve corresponder à devolução do preço pago, com as correções devidas, não se havendo de cogitar de lucros cessantes” (Superior Tribunal de Justiça – RESP n.º 151306/PR (199700727521) – 1ª Turma – Relator: Ministro Demócrito Reinaldo – J. 15/12/1998).

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decretação da ineficácia345 ou da anulação346 da alienação do vendedor a terceiro,

mediante a comprovação da ciência do terceiro a respeito da situação de insolvência

do vendedor.

Por outro lado, também no caso de insolvência do vendedor, se o

comprador não houver pago o preço e o bem ainda não lhe houver sido entregue, (o

comprador) poderá optar entre desfazer o contrato (e não pagar o preço) ou exigir-

lhe o cumprimento. Pretendendo o cumprimento do contrato, poderá comprovar o

cumprimento de sua obrigação de pagamento mediante o depósito do preço em

juízo, com a citação de todos os interessados (artigo 160 do Código Civil), embora

esse procedimento não lhe garanta a entrega do bem objeto do contrato, que pode

eventualmente ser utilizado para o pagamento de outros credores que se encontrem

em situação mais privilegiada que a sua347.

345 “Ação pauliana - Transferência de imóvel de filho para pai - Contrato de arrendamento celebrado antes da transferência - Distrato prevendo pagamento da dívida, vencido no mesmo dia do registro da escritura pública de compra e venda do imóvel - Notificação, expedida no dia seguinte ao vencimento das obrigações previstas no distrato – Descumprimento das obrigações assumidas, no prazo concedido – Ajuizamento de ação de rescisão contratual cumulada com perdas e danos e reintegração de posse – Redução dos devedores ao estado de insolvência – Negócio entre familiares – Presunção de o pai conhecer o estado de insolvência do filho e da nora, os devedores – ‘Consilium fraudis’ evidente – Caracterização de defeito do ato jurídico – Aplicação do artigo 106 c. c. o artigo 147, II, ambos do Código Civil – Hipótese de declaração de ineficácia do ato, com relação ao credor, e, não, de anulação – (...) Ação julgada procedente – Recurso não provido, com recomendação” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 79.716-4 – Origem: Fernandópolis – 8ª Câmara de Direito Privado – Relatora: Zélia Maria Antunes Alves – 15.09.99 – V.U.). 346 “Ação pauliana – Sentença monocrática substanciosa, bem elaborada e com fundamentação adequada, inclusive com embasamento em entendimentos doutrinários e jurisprudenciais a respeito do ‘thema decidendum’ – Matéria discutida amplamente pelas partes, pelo que correta a conclusão de que as alienações dos imóveis apontados, nos autos, foram feitas sob o pálio de fraude contra credor, pois presentes os requisitos do ‘eventus dammi’ e do ‘consilium fraudis’ que conduzem à anulação daqueles atos jurídicos (artigo 106 e seguintes do Código Civil Brasileiro) – Recurso improvido” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 60.955-4 – Origem: Presidente Prudente – 3ª Câmara de Direito Privado – Relator: Antonio Manssur – 03.11.98 – V. U.). 347 Art. 957. Não havendo título legal à preferência, terão os credores igual direito sobre os bens do devedor comum. Art. 958. Os títulos legais de preferência são os privilégios e os direitos reais. Art. 959. Conservam seus respectivos direitos os credores, hipotecários ou privilegiados: I - sobre o preço do seguro da coisa gravada com hipoteca ou privilégio, ou sobre a indenização devida, havendo responsável pela perda ou danificação da coisa; II - sobre o valor da indenização, se a coisa obrigada a hipoteca ou privilégio for desapropriada. Art. 960. Nos casos a que se refere o artigo antecedente, o

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Considerada a hipótese de o bem já haver sido entregue pelo

vendedor ao comprador, tendo como fundamento o contrato de compra e venda, a

transmissão da propriedade mobiliária terá sido efetivada e, como regra, não será

atingida pela decretação da insolvência do vendedor. Considerada a hipótese de o

comprador já haver cumprido a sua obrigação de pagamento do preço, o contrato

terá sido extinto pelo cumprimento e a sua discussão restará prejudicada348.

Nesse caso, a anulação do contrato somente será possível mediante

a aplicação da regra do artigo 159 do Código Civil quanto à caracterização da má-fé

devedor do seguro, ou da indenização, exonera-se pagando sem oposição dos credores hipotecários ou privilegiados. Art. 961. O crédito real prefere ao pessoal de qualquer espécie; o crédito pessoal privilegiado, ao simples; e o privilégio especial, ao geral. Art. 962. Quando concorrerem aos mesmos bens, e por título igual, dois ou mais credores da mesma classe especialmente privilegiados, haverá entre eles rateio proporcional ao valor dos respectivos créditos, se o produto não bastar para o pagamento integral de todos. Art. 963. O privilégio especial só compreende os bens sujeitos, por expressa disposição de lei, ao pagamento do crédito que ele favorece; e o geral, todos os bens não sujeitos a crédito real nem a privilégio especial. Art. 964. Têm privilégio especial: I - sobre a coisa arrecadada e liquidada, o credor de custas e despesas judiciais feitas com a arrecadação e liquidação; II - sobre a coisa salvada, o credor por despesas de salvamento; III - sobre a coisa beneficiada, o credor por benfeitorias necessárias ou úteis; IV - sobre os prédios rústicos ou urbanos, fábricas, oficinas, ou quaisquer outras construções, o credor de materiais, dinheiro, ou serviços para a sua edificação, reconstrução, ou melhoramento;V - sobre os frutos agrícolas, o credor por sementes, instrumentos e serviços à cultura, ou à colheita;VI - sobre as alfaias e utensílios de uso doméstico, nos prédios rústicos ou urbanos, o credor de aluguéis, quanto às prestações do ano corrente e do anterior;VII - sobre os exemplares da obra existente na massa do editor, o autor dela, ou seus legítimos representantes, pelo crédito fundado contra aquele no contrato da edição;VIII - sobre o produto da colheita, para a qual houver concorrido com o seu trabalho, e precipuamente a quaisquer outros créditos, ainda que reais, o trabalhador agrícola, quanto à dívida dos seus salários. Art. 965. Goza de privilégio geral, na ordem seguinte, sobre os bens do devedor: I - o crédito por despesa de seu funeral, feito segundo a condição do morto e o costume do lugar; II - o crédito por custas judiciais, ou por despesas com a arrecadação e liquidação da massa; III - o crédito por despesas com o luto do cônjuge sobrevivo e dos filhos do devedor falecido, se foram moderadas; IV - o crédito por despesas com a doença de que faleceu o devedor, no semestre anterior à sua morte; V - o crédito pelos gastos necessários à mantença do devedor falecido e sua família, no trimestre anterior ao falecimento; VI - o crédito pelos impostos devidos à Fazenda Pública, no ano corrente e no anterior; VII - o crédito pelos salários dos empregados do serviço doméstico do devedor, nos seus derradeiros seis meses de vida; VIII - os demais créditos de privilégio geral. 348 “O contrato que já se finalizou, por ter sido integralmente cumprido pelas partes, caracteriza-se como ato jurídico perfeito, impassível, portanto, de ter suas cláusulas discutidas judicialmente. Deve ser decretada a carência de ação quando a pretensão aviada cingir-se à discussão de obrigações previstas em contrato findo, tendo em vista a impossibilidade jurídica deste, extinguindo-se o processo sem julgamento do mérito, com base no inciso VI do art. 267 do Código de Processo Civil” (Tribunal de Alçada de Minas Gerais – Apelação Cível n.º 0405605-3 – (83353) – Origem: Patos de Minas – 3ª Câmara Cível – Relatora: Juíza Teresa Cristina da Cunha Peixoto – J. 17.12.2003).

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do comprador em relação aos demais credores do vendedor349.

E se o bem houver sido entregue e o comprador não houver pago o

preço, poderá cumprir a sua obrigação de pagamento mediante o depósito do preço

em juízo, com a citação de todos os interessados (artigo 160 do Código Civil),

embora esse procedimento também não lhe garanta a manutenção da propriedade

do bem, em razão dos procedimentos específicos da ação em que se processa a

insolvência, na qual poderá ser eventualmente apurada a má-fé do vendedor na

entrega do bem ao comprador350.

Em caso de insolvência do comprador, se o peço já houver sido

pago e o bem móvel já lhe houver sido entregue sob o fundamento do contrato de

compra e venda, o contrato terá sido cumprido e a transmissão da propriedade

mobiliária terá sido efetivada, o que torna prejudicada qualquer discussão a

respeito351.

349 Presumido o conhecimento do estado de insolvência do vendedor pelo comprador e a ineficácia da alienação: “Ação pauliana - Fraude contra credores - Contrato oneroso do devedor insolvente - Parentesco próximo - Presunção de fraude - Suficiência para justificar a ação revocatória - Artigo 107 do Código Civil - Prova em contrário a cargo do devedor não demonstrada - Ação procedente - Recurso desprovido” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 119.328-4/4 – Origem: Santo André – 7ª Câmara de Direito Privado – Relator: De Santi Ribeiro – 16.05.01 – V.U.). Em sentido contrário, mediante o reconhecimento de ausência de provas de que os adquirentes tinham conhecimento do estado de insolvência dos alienantes: “Ação pauliana – Fraude contra credores - Caracterização - Consilium fraudis - Inocorrência - Adquirentes que antes da compra se acautelaram com buscas de ações e protestos contra os clientes e ônus sobre o imóvel - Constituição do crédito só após a alienação do bem - Improvado motivo para ser reconhecida a insolvência pelo outro contraente - Sentença procedente - Recurso provido” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 60.977-4 – Origem: Barretos - 7ª Câmara de Direito Privado - Relator: Oswaldo Breviglieri - 04.11.98 - V. U.). 350 Código Civil, Art. 956. “A discussão entre os credores pode versar quer sobre a preferência entre eles disputada, quer sobre a nulidade, simulação, fraude, ou falsidade das dívidas e contratos”. 351 Conferir a nota 348. Sem prejuízo, em caso de notória disparidade entre o valor de mercado do bem adquirido pelo comprador (muito mais baixo) e o preço pretensamente pago por este (muito mais alto), os credores do comprador insolvente poderão discutir em juízo eventual dissimulação caracterizadora do negócio jurídico realizado, nos termos do artigo 167, caput, combinado com o seu parágrafo 1º, inciso II, do Código Civil.

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Ainda em caso de insolvência do comprador, mesmo que o preço

não tenha sido pago, se o bem móvel já lhe houver sido entregue a transmissão da

propriedade mobiliária terá sido efetivada, e o vendedor poderá optar entre executar

o contrato, mediante a cobrança do valor acordado352, ou desfazê-lo, sob o

fundamento do inadimplemento e mediante o requerimento de reintegração de

posse.

Também no caso de insolvência do comprador, se o bem ainda não

houver sido entregue e tampouco o preço houver sido pago, o vendedor poderá

sobrestar-lhe a entrega do bem móvel objeto do contrato até que o comprador lhe dê

caução de pagar o preço ajustado no prazo fixado (artigo 495 do Código Civil).

Porque o contrato é reconhecido no sistema brasileiro como título

causal da transmissão da propriedade mobiliária, para cuja efetivação se exige a

tradição, a conclusão é de que o terceiro adquirente do bem móvel alienado

validamente pelo primitivo vendedor não é atingido pelo descumprimento desse

contrato353.

Ou seja, celebrado validamente um contrato de compra e venda de

um bem móvel e entregue esse bem móvel pelo vendedor ao comprador, sob o

352 Em situação excepcional: “Medida cautelar – Seqüestro – Bens móveis – Cabimento, ante o risco de o requerente, vendedor, não obter a satisfação de seu crédito, diante dos sinais de insolvência do comprador e do receio de não recuperar os bens, após a solução da demanda rescisória do contrato, e do perigo de desaparecimento destes, em razão de venda a terceiros – Reconhecida a presença dos requisitos do artigo 822 do Código de Processo Civil – Extinção do processo afastada – Determinação do prosseguimento do feito com a análise do pedido liminar – Recurso provido para esse fim” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação n.º 0851058-1 – Origem: Tupã – 3ª Câmara – Relator: Itamar Gaino – Revisor: Roque Mesquita – J. 24/10/2000 – V.U.). 353 “Compra e venda – Bem móvel – Pretensão do vendedor à sua rescisão ao fundamento de que o pagamento foi efetuado com cheque sem provisão de fundos – Veículo em poder de terceiro de boa-fé – Possibilidade apenas da condenação dos compradores ao pagamento do valor do veículo – Existência de pedido alternativo nesse sentido – Procedência – Sentença mantida” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0000388126 – Origem: Araraquara – 2ª Câmara – Relator: Jacobina Rabello – J. 08/06/1988 – V.U).

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fundamento do contrato de compra e venda, a propriedade do referido bem móvel é

transmitida validamente ao comprador. Em conseqüência, se o comprador celebra

um contrato de compra e venda com um terceiro e lhe entrega o bem sob o

fundamento desse novo contrato de compra e venda, a propriedade do bem objeto

do contrato também é transmitida validamente, dessa vez ao terceiro, que, portanto,

passa a ser o proprietário do bem354.

Quaisquer problemas decorrentes do descumprimento do contrato

de compra e venda celebrado entre os primitivos vendedor e comprador não atingem

o terceiro, que, a partir da tradição efetivada sob o fundamento do segundo contrato

de compra e venda, passa a ser o novo proprietário do bem móvel. Nesse sentido:

“(...) Embargos de terceiro – Medida cautelar – Busca e apreensão – Veículo

apreendido fora vendido pelo autor ao réu - Transferência do domínio ocorreu com a

tradição - Não pagamento do preço pelo adquirente - Irrelevância - Réu também

vendeu o veículo a terceiro, ao embargante e, com a tradição, houve igualmente a

transferência do domínio - Inexistência de prova de que o embargante agiu de má-fé

- Embargos de terceiro procedentes - Recurso desprovido” (1º Tribunal de Alçada

Civil do Estado de São Paulo – Apelação n.º 0944228-4 – (57467) – Origem:

Americana – 5ª Câmara – Relator: Juiz Álvaro Torres Júnior – J. 15.12.2004).

Também: “(...). Contrato – Compra e venda de gado – Reconhecimento da boa-fé

dos segundos adquirentes, eis que demonstram o regular pagamento, de acordo

com o preço de mercado, não podendo ser prejudicados pela imprevidência dos

354 “Embargos de terceiro – Compra e venda – Bem móvel – Caminhão transacionado anteriormente em que parte do preço não foi paga – Negócio consumado – Circunstância que exclui o embargante, terceiro de boa-fé, daquela relação – Art. 620 do Código Civil e art. 1046 do Código de Processo Civil –Embargos procedentes – Sentença mantida” (Primeiro Tribunal de Alçada Civel de São Paulo – Apelação Cível n.º 0432593-5 – Origem: Ribeirão Preto –10ª Câmara – Relator: Jacobina Rabello – J. 03/09/1990 – V.U).

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autores que procederam a entrega imediata do gado àquele último, possibilitando o

aperfeiçoamento do contrato e a transferência do domínio dos bens, quando

poderiam retê-los, apenas os entregando após a efetivação do pagamento, nos

termos do art. 1130 do Código Civil – Exame da jurisprudência – Prejudicado o

pedido de perdas e danos – Ação improcedente – Apelo improvido” (Primeiro

Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação n.º 0825234-8 – Origem:

Jaboticabal – 3ª Câmara – Relator: Itamar Gaino – J. 14/08/2001)355.

Merece referência a situação verificada no caso de reconhecimento

de nulidade do primeiro contrato de compra e venda. Considerando-se que de um

ato jurídico eivado de nulidade não se concebe a decorrência de qualquer efeito356,

em tese não se reconheceria eficácia e sequer validade ao segundo contrato de

compra e venda tendo como objeto o bem alienado por meio do contrato nulo,

restando ao segundo comprador voltar-se contra o segundo vendedor visando a ser

indenizado pelo preço e eventuais perdas e danos. Mas a decisão a seguir

reconhece a prevalência da posse de boa-fé do terceiro adquirente do bem alienado

inicialmente por título – contrato de compra e venda – nulo, considerada a assinatura

355 Ainda no mesmo sentido: “Compra e venda – Bem móvel – Pagamento efetuado através de cheque sem suficiente provisão de fundos – Veículo em poder de terceiro, boa-fé deste presumida – Exegese do art. 521 do Código Civil – Recurso provido para revogar a liminar” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Agravo de Instrumento n.º 0000398346 – Origem: São Paulo – 1ª Câmara – Relator: Celso Bonilha – J. 03/10/1988 – V.U). Também: “Compra e venda – Bem móvel – Veículo alienado sucessivamente – Preço pago mediante cheque devolvido por insuficiência de fundos – Pretensão à restituição do bem – Desacolhimento, uma vez adquirido validamente do emitente da cambial –Art. 1046, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil – Embargos de terceiro procedentes – Recurso desprovido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0000404037 – Origem: Taubaté – 4ª Câmara – Relator: Octaviano Lobo – J. 22/02/1989 – V.U). 356 “Ato jurídico – Vício – Manifestação de vontade – Outorga de procuração por pessoa em estado de coma – Obtenção do documento com a posição das impressões digitais em livro próprio – Inexistência de ato em face da ausência do consentimento – Hipótese em que o negocio não é anulável, mas sim nulo, não gerando efeitos nem permitindo ratificação – Declaratória de nulidade procedente, provido o recurso adesivo, prejudicado o apelo de ré e improvido o do co-réu” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0700628-2 – Origem: Ourinhos – 4ª Câmara – Relator: Carlos Bittar – J. 11/12/1996 – V.U.).

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falsa aposta no certificado de propriedade, resguardado à vítima do falso o direito de

se voltar contra o autor do ato ilícito: “Compra e venda – Bem móvel – Proprietário

vítima de apropriação indébita – Alegação da falsidade de assinatura deste, lançada

no certificado de propriedade – Bem, no entanto, apreendido em mãos de terceiro de

boa-fé – Prevalência do direito deste, resguardando o direito da vitima, em ação

autônoma de voltar-se contra o autor do ato ilícito – Inaplicabilidade do art. 521 do

Código Civil – Reivindicatória improcedente – Recurso improvido” (Primeiro Tribunal

de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0528126-7 – Origem: São Paulo –

6ª Câmara – Relator: Carlos Roberto Gonçalves – J. 29/11/1994 – V.U.)357.

6.2 – Questões específicas decorrentes da eficácia obrigacional do contrato de

compra e venda de bem móvel no direito brasileiro

6.2.1 – Transmissibilidade da propriedade mobiliária pela tradição

independentemente do pagamento do preço

O principal problema com o qual se depara o vendedor de um bem

móvel é o não pagamento do preço pelo comprador.

A conjugação dos artigos 481 (“Pelo contrato de compra e venda,

um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a

pagar-lhe certo preço em dinheiro”), 482 (“A compra e venda, quando pura,

357 Em sentido inverso apenas quanto à nulidade do negócio jurídico em razão da assinatura falsa aposta no documento de venda, mas sem menção a terceiro: “Compra e venda – Bem móvel – Requisitos – Lançamento de assinatura falsa no documento de venda – Negócio absolutamente ineficaz ante a ausência de consentimento – Nulidade reconhecida – Declaratória integralmente procedente – Recurso provido para esse fim” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Civil n.º 0487759-8 – Origem: Atibaia – 4ª Câmara – Relator: Carlos Bittar – J. 10/11/1993 – V.U).

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considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem no objeto e no

preço”), 1226 (“Os direitos reais sobre coisas móveis, quando constituídos, ou

transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com a tradição”) e 1267 (“A

propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição”),

todos do Código Civil, permite o delineamento do aperfeiçoamento e da eficácia do

contrato de compra e venda, conforme já estudado no Capítulo 5 do presente

trabalho, bem como a identificação da tradição como o modo – e o momento – de

transmissão da propriedade mobiliária.

Embora o artigo 491 (“Não sendo a venda a crédito, o vendedor não

é obrigado a entregar a coisa antes de receber o preço”) garanta ao vendedor o

direito de manter o bem consigo até a entrega do preço, é sabido que no dia-a-dia

os negócios são celebrados mediante a consideração do interesse imediato das

partes e muitas vezes em desacordo com as regras legais pertinentes. Assim é que

se verifica a situação comum de entrega do bem móvel pelo vendedor ao

comprador, fundada a tradição no contrato de compra e venda regularmente

celebrado.

A celebração do contrato, nos termos do artigo 481 do Código Civil,

cria obrigações recíprocas às partes, ao vendedor a obrigação de entrega do bem

móvel ao comprador e ao comprador a obrigação de pagamento do preço ao

vendedor.

Regularmente celebrado o contrato, a entrega do bem móvel pelo

vendedor ao comprador caracteriza cumprimento da obrigação do primeiro e enseja

a transmissão da propriedade mobiliária ao segundo.

A partir da tradição, o comprador passa a ser o legítimo proprietário

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do bem móvel, independentemente do pagamento do preço. Nesse sentido: “Posse

– Reintegração – Coisa móvel – Liminar pretendida – Inexistência de esbulho –

Posse justa do réu, como dominus, derivada de contrato de compra e venda -

Recurso não provido. Estando o réu na posse de veículo, na qualidade de

proprietário, em decorrência de negócio de compra e venda, tem posse a justo título,

não podendo estar cometendo esbulho na posse do autor, que não a tem, pois

transferiu em negócio regular” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Agravo

de Instrumento n. 62.683-4 - Barueri - 9ª Câmara de Direito Privado - Relator: Ruiter

Oliva - 21.10.97 - V. U.)358.

O pagamento do preço, que consiste na obrigação do comprador

decorrente do mesmo contrato de compra e venda, não guarda relação com a

transmissão da propriedade mobiliária, que, repita-se, efetivou-se mediante a

entrega do bem pelo vendedor.

Porque a partir da tradição o vendedor não é mais o proprietário do

bem móvel vendido e entregue, não pode se valer dos meios postos à disposição do

proprietário para ser reintegrado na posse do referido bem. A propósito:

“Possessória – Reintegração de posse – Compra e venda de bem móvel a

prestação, sem reserva de domínio e pacto comissório – Comprador inadimplente –

Hipótese em que cabia à parte lesada requerer a rescisão do contrato, com perdas e

danos – Artigos 1056 e 1092, parágrafo único do Código Civil – Via escolhida

358 No mesmo sentido: ”(...) Transmissão de domínio de bem móvel opera-se pela tradição – A transferência de veículo junto ao Detran somente após o aforamento da ação de execução é irrelevante, porquanto o referido registro tem fins meramente administrativos, não refletindo a situação jurídica da propriedade de bem móvel, cuja transferência ocorre pela tradição do bem, nos termos do art. 620, do Código Civil de 1916, especialmente em decorrência de contrato. (...)” (Tribunal de Alçada do Estado do Paraná – Apelação Cível n.º 0277781-3 – (232903) – Origem: Cândido de Abreu – 14ª Câmara Cível – Relator: Juiz Fernando Wolff Bodziak – DJPR 01.04.2005).

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inadequada – Extinção do processo decretada – Recurso improvido” (Primeiro

Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0562058-2 – Origem:

São Paulo – 12ª Câmara – Relator: Matheus Fontes – J. 01/11/1995 – V.U.)359.

6.2.2 – Intransmissibilidade da propriedade mobiliária mediante o pagamento

do preço em caso de não efetivação da tradição

A dificuldade principal com a qual se defronta o comprador de um

bem móvel se consubstancia na recusa de entrega do referido bem pelo vendedor.

Como enfatizado anteriormente, porque a propriedade mobiliária é

transmitida pela tradição, o pagamento do preço pelo comprador não lhe enseja a

transmissão da propriedade do bem comprado e inclusive pago.

Ainda, porque o comprador não é o dono do bem, já que não o

recebeu, não pode se valer dos meios postos à disposição do proprietário para que

o bem lhe seja entregue. A propósito: “Compra e venda – Bem móvel – Medida

cautelar – Busca e apreensão – Ajuizamento objetivando a entrega da coisa pago o

preço, sob a alegação de que o vendedor estaria prestes a deixar a cidade –

Inadmissibilidade – Artigos 1056 do Código Civil e 287 do Código de Processo Civil

– Cabimento de ação de indenização ou ação para a entrega de bem – Carência

decretada – Recurso provido para esse fim. (...)” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil

359 Também a propósito: “Possessória – Reintegração de posse – Compra e venda de bem móvel (caminhão) – Preço não pago – Liminar não concedida – Impossibilidade de reaver os bens antes de rescindir ou anular o negócio havido – Inteligência do art. 521 do Código Civil – Carência reconhecida – De ofício, julga-se extinta a ação, prejudicado o exame do recurso” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Agravo de Instrumento n.º 1069641-6 – Origem: São José do Rio Preto –12ª Câmara – Relator: Beretta da Silveira – J. 05/03/2002). Ainda: “Possessória – Reintegração de posse – Bem móvel (veículo) objeto de compra e venda não cumprido integralmente – Descabimento enquanto não rescindido o contrato – Ausência de interesse processual – Carência decretada – Recurso desprovido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0399041-0 – Origem: Indaiatuba – 7ª Câmara – Donaldo Armelin – J. 30/08/1988 – Publicação: JTA 115/121).

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de São Paulo – Apelação Cível n.º 0420162-9 – Origem: Franca – 2ª Câmara –

Relator: Jacobina Rabello – J. 06/12/1989 – V. U.).

6.2.3 – Questões processuais

Após o estudo dos sistemas de transmissão da propriedade

mobiliária e do aperfeiçoamento e da eficácia do contrato de compra e venda, bem

como de algumas questões práticas a respeito da aplicação daquela teoria, o

presente item tem por objetivo específico a análise de problemas estritamente

processuais, que afirmamos decorrentes da desconsideração do direito material,

especificamente da desconsideração do contrato como título ou negócio jurídico

causal e da tradição como modo de aquisição da propriedade mobiliária.

Afirmamos que a desconsideração do direito material é o

fundamento da dificuldade de identificação, pelo profissional do direito, do

instrumento processual adequado à solução do problema concreto decorrente do

descumprimento do contrato de compra e venda de bem móvel.

Foram pesquisadas decisões dos tribunais do Estado de São Paulo

entre 1989 e 2005. Em razão das regras internas de distribuição de competência,

durante o período pesquisado o tema foi de competência do Primeiro Tribunal de

Alçada Civil do Estado de São Paulo360.

Os acórdãos escolhidos o foram por tratarem especificamente da

questão abordada no presente trabalho, de equívoco na identificação do momento

360 Atualmente, com a unificação dos tribunais em decorrência da Emenda Constitucional n.º 45, a competência é do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

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da transmissão da propriedade mobiliária como causa de escolha inadequada do

instrumento processual.

Nos autos da Apelação n.º 414.253/8, da Comarca de Mogi das

Cruzes, a Sétima Câmara do Primeiro Tribunal de Alçada Civil, relator Régis de

Oliveira, por votação unânime, aos 26 de setembro de 1989, negou provimento ao

recurso, nos seguintes termos: “Através da medida cautelar, objetivou o credor a

busca e apreensão de veículo adquirido mediante uso de cheque sem fundos. Ora,

tendo ocorrido a tradição, não haveria mais como evitar a aquisição do veiculo e

futura alienação, uma vez que ocorrera a tradição. O vendedor não tomou as

cautelas devidas, deixando de providenciar a exigência de cheque visado. (...)

Poderia haver alguma providência cautelar. Todavia, a pretensão do autor é de que

haja apreensão do veículo. Tal pedido não pode ser aceito. Falta ao autor interesse

processual”.

No caso concreto, pretendeu o requerente/apelante o deferimento de

medida cautelar de busca e apreensão contra terceiro, a quem fora alienado o

veículo que o próprio requerente/apelante vendera ao comprador inadimplente.

Celebrado o contrato de compra e venda de bem móvel, no caso o

veículo, e entregue o bem pelo vendedor ao comprador, como se verificou no caso,

a propriedade do referido veículo foi validamente – tendo como título o contrato de

compra e venda e como modo a tradição – transferida ao comprador. Estivesse o

veículo ainda na posse do comprador, seria possível ao vendedor o desfazimento do

contrato em razão do inadimplemento da obrigação de pagamento pelo comprador –

no caso concreto porque o cheque emitido não foi compensado por insuficiência de

fundos – com a reintegração do veículo na sua posse. No entanto, considerada a

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compra e venda válida e eficaz, a alienação do veículo pelo comprador a terceiro

não pode ser considerada, por si, maculada. Não se desconsidera que eventual

simulação entre o comprador e o terceiro adquirente poderia ser levada em conta em

benefício do vendedor, mas tal questão sequer foi levantada no caso concreto, em

que a única pretensão do requerente/apelante consistiu na apreensão do veículo

que, até prova em contrário, encontrava-se validamente na posse de um terceiro.

Reconhecida a tradição como modo de transmissão da propriedade

mobiliária, o vendedor lesado poderia ser ressarcido por meio de uma ação de

cobrança do preço não pago, ou por meio de uma ação de resolução contratual,

nesse caso a ser resolvida em perdas e danos, já que a apreensão do veículo

restaria inequivocamente prejudicada em razão estar na posse de quem não

participara do contrato de compra e venda celebrado.

Nos autos da Apelação n.º 417.880/7, da Comarca de Garça, a

mesma Sétima Câmara do Primeiro Tribunal de Alçada Civil, relator Francisco de

Assis Vasconcellos Pereira da Silva, por votação unânime, aos 14 de novembro de

1989, negou provimento ao recurso, nos seguintes termos: “Com a busca e

apreensão quer a apelante ingressar desde logo na posse, recuperando-a, de bens

móveis transferidos ao apelado em virtude de contrato de compra e venda, sob o

fundamento de falta de cumprimento do preço ajustado. Pretende, no fundo, o

mesmo efeito de medida liminar de reintegração de posse, contemplada no artigo

928 do Código de Processo Civil. Sucede, todavia, que a busca e apreensão não se

presta tão singelamente à tutela possessória de bens móveis, especialmente

quando, a exemplo dos autos, mostra-se visível a inexistência do perigo da mora e

da aparência ou verossimilhança do direito material invocado. Ao deferimento da

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cautela. em apreço, costuma-se ponderar que basta, além do perigo, a mera

probabilidade de a ação futura vir a declarar o direito em favor de quem a persegue,

conquanto outros entendam que o fumus boni iuris tem ligação com o próprio pedido

cautelar, não com o mérito do processo principal. Seja como for, na hipótese

concreta dos autos observa-se, imediatamente, não dispor a apelante do direito de

busca e apreensão como autentica tutela possessória que antecipa o resultado da

ação principal. Nota-se, ainda, que a própria ação possessória depende da prévia

resolução do contrato de compra e venda dos bens móveis. A r. sentença apelada

realça adequadamente que a petição inicial vem desacompanhada de prova

documental referente à propriedade dos móveis; assim também da posse, vale

acrescentar. Ademais, como a só falta de pagamento do preço de venda não é

capaz de outorgar de pronto o reingresso do vendedor na posse, especialmente por

via de busca e apreensão cautelar, segue-se que tampouco existe o periculum in

mora. Do raciocínio exposto conclui-se: a apelante lançou mão de provimento

jurisdicional inadequado, inútil até, à pretensão de natureza possessória sobre os

bens alienados ao apelado que, pela tradição, tornou-se titular do domínio. Em

conseqüência, é caso de indeferimento da petição inicial por ausência de interesse

processual, extinguindo-se o processo com fundamento nos artigos 295, III e 267,

ambos do Código de Processo Civil”.

No caso concreto, mesmo narrando ter vendido bens móveis ao

apelado e ter, sob o fundamento e em cumprimento do contrato, entregue os

referidos bens móveis ao apelado, a apelante se afirma proprietária dos referidos

bens.

Pretende a utilização da ação cautelar de busca e apreensão como

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medida satisfativa, a fim de, como proprietária desapossada dos bens móveis que se

encontram injustamente na posse do apelado, tê-los de volta, consolidando-se nas

suas mãos o domínio e a posse plenos e exclusivos dos referidos bens.

Reconhecido o contrato válido e eficaz celebrado pelas partes, bem

como reconhecida a transmissão da propriedade mobiliária pela tradição, para o

desfazimento do contrato seria necessário o ajuizamento de ação de resolução de

contrato, na qual, reconhecido o inadimplemento da compradora, seria decretado o

seu desfazimento (do contrato de compra e venda de bem móvel) e seria garantida à

vendedora, a seu requerimento, a reintegração de posse dos bens móveis objeto

daquele contrato desfeito.

Mais uma vez, a desconsideração da transmissão da propriedade

mobiliária pela tradição, independentemente do pagamento do preço, ensejou a

escolha de instrumento inadequado ao exercício do direito da vendedora.

Nos autos da Apelação n.º 777.381/3, da Comarca de Marília, a

Primeira Câmara do Primeiro Tribunal de Alçada Civil, relator Plínio Tadeu do

Amaral Malheiros, por votação unânime, aos 24 de agosto de 1998, negou

provimento ao recurso, nos seguintes termos: “Insurgiu-se a autora, ora apelante,

dizendo que a presente ação tem caráter satisfativo, conforme expressamente

constou do pedido inicial, razão pela qual não há que se falar em ajuizamento de

qualquer outra ação, no prazo de trinta dias. Asseverou que com a recuperação dos

bens, a demanda já atingiu seu objetivo e, assim, a sentença deveria ter apreciado o

seu mérito, concluindo pela procedência, tendo em vista a prova produzida. (...) O

apelo interposto pela autora desmerece provimento. A ação de busca e apreensão,

prevista no art. 839 e seguintes do Código de Processo Civil, é medida cautelar e,

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como tal, revestida das características de instrumentalidade, autonomia,

provisoriedade e revogabilidade. (...) Assim, competia à autora indicar em sua

petição inicial qual a ação principal a ser proposta (providência, aliás, que não foi

tomada), assim como ajuizá-la no prazo máximo de trinta dias do cumprimento da

medida liminar deferida. Não o tendo feito, a extinção da ação era de rigor. (...) Ainda

que assim não fosse, é de se observar que a ação cautelar não é via adequada para

a obtenção da solução de contrato celebrado entre as partes e não cumprido”.

Mais uma vez, no caso concreto, sob o fundamento de que o

apelado/comprador descumpriu sua obrigação de pagamento, a apelante/vendedora

se afirma proprietária dos bens móveis cuja propriedade foi validamente transferida

ao apelado pela tradição, tendo como causa o contrato – válido e eficaz – de compra

e venda.

A consideração do momento do aperfeiçoamento do contrato de

compra e venda – mediante a mera manifestação, pelas partes, de consentimento a

respeito do objeto e do preço – e a consideração da transmissão da propriedade

mobiliária pela tradição permitiriam a conclusão correta de que, tendo a propriedade

dos bens sido validamente transferida ao comprador, não se reconhecia à

vendedora a titularidade dessa propriedade. Conseqüentemente, a ação cautelar de

busca e apreensão com natureza satisfativa não se lhe apresentava como

instrumento adequado ao exercício de seu direito.

Como um dos elementos da condição da ação consistente no

interesse de agir, a adequação significa que o exercício da atividade jurisdicional

deve ficar condicionado, em cada caso concreto, à efetiva utilidade que o provimento

pretendido pelo autor terá para atingir a finalidade de atuação da vontade concreta

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da lei, bem como à justiça da submissão da parte contrária aos resultados e aos

rigores específicos de cada tipo de processo361.

Afirma-se que utilização do meio inadequado não decorre

necessariamente do desconhecimento dos instrumentos processuais, mas sim do

desconhecimento do direito material, mais especificamente do desconhecimento do

momento específico da transmissão da propriedade mobiliária do vendedor ao

comprador, a partir de quando o primeiro deverá, anteriormente à manifestação da

pretensão de reaver a posse dos bens, pleitear o desfazimento do contrato sob o

fundamento do inadimplemento do comprador quanto ao pagamento do preço.

Ou seja, no caso concreto, celebrado validamente o contrato e

transferida validamente a propriedade dos bens pela vendedora ao comprador,

incumbia à vendedora, que não recebeu o preço o ajuizamento de ação de

resolução do contrato, na qual, reconhecido o inadimplemento do comprador, seria

decretado o seu desfazimento (do contrato de compra e venda) e seria garantida à

vendedora a reintegração de posse dos bens móveis objeto daquele contrato.

Nos autos da Apelação n.º 830.223/8, da Comarca de Campinas, a

mesma Primeira Câmara do Primeiro Tribunal da Alçada Civil, relator Elliot Akel, por

votação unânime, aos 07 de junho de 1999, negou provimento ao recurso, nos

seguintes termos: “Foram julgadas improcedentes as ações, cautelar e principal, à

consideração de que, em se tratando de venda e compra de bem móvel,

aperfeiçoou-se o contrato na medida em que as partes manifestaram seu

consentimento a respeito da coisa e do preço, servindo ele de causa para a

transferência da propriedade, que se consumou com a tradição. (negritei) Não tendo,

361 Cândido Rangel Dinamarco. Execução Civil. 6ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 406.

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o adquirente Eduardo Minatel, cumprido a obrigação assumida no contrato, de pagar

o preço, mesmo assim o autor não tem título para exigir a reintegração na posse do

bem cuja propriedade e posse transferiu com a tradição, devendo o inadimplemento

da obrigação de Eduardo ser resolvido em perdas e danos, nos termos do artigo

1.056 do Código Civil’. Verifica-se que o autor, nominando a ação ajuizada de

‘principal declaratória de busca e apreensão’ (sic), ali narrou haver vendido a

Eduardo Minatel o veiculo indicado pelo preço de Cr$ 8.800.000,00 (oito milhões e

oitocentos mil cruzeiros), recebendo do comprador três cheques, no valor total de

Cr$ 5.000.000,00 (cinco milhões de cruzeiros), acrescentando que nos restantes Cr$

3.800.000,00 entraram por conta de acerto de negócios anteriores. Na seqüência,

afirmou haverem os cheques sido devolvidos pelo sacado com a informação de

divergência de assinaturas, dizendo que tentando receber os valores

correspondentes diretamente do comprador, foi informado de que o caminhão havia

sido transferido já para seu irmão Edvaldo Minatel. Argumentou: ‘em razão do

exposto, conclui-se que a avença não se completou, sendo certo que Edvaldo

Minatel adquiriu coisa alheia, a venda de coisa alheia é negócio inexistente’. (fl. 04).

Instado a aditar a Inicial, que não conteria pedido declaratório apesar da

denominação dada à ação, o autor apresentou a petição de fl. 12, pedindo ‘seja

aditada à inicial o pedido declaratório quanto ao direito do autor com referência à

devolução de seu veículo a nulidade da transação e dos cheques emitidos como

pagamento’ (in verbis). Da análise do teor da inicial e das razões recursais (em que

se faz referência a ‘contrato de compromisso de compra e venda’, nelas

encontrando-se ainda as afirmações de que ‘res significa a entrega da coisa pelo

vendedor ao comprador, o pretium significa o pagamento do preço pelo comprador e

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finalmente o consensum, ou seja, a concordância de ambas as partes em fazer a

transação’) chega-se à conclusão de que o autor desconhece ou procura ignorar

conceitos básicos atinentes à própria natureza do contrato de venda e compra. Certo

é que constituem elementos essenciais da venda e compra, segundo clássica

ensinança de nossos doutrinadores, res, pretium et consensum. Res, contudo, não

significa a entrega da coisa pelo vendedor ao comprador, mas sim a própria coisa

suscetível de apreciação econômica a cuja tradição obriga-se o vendedor através do

contrato. Pretium, por outro lado, não é o pagamento do preço pelo comprador, mas

sim a expressão pecuniária da coisa devida pelo comprador. Finalmente, consensum

traduz o acordo de vontades a respeito da coisa e de seu preço. Sendo contrato

consensual, a compra e venda torna-se perfeita e acabada com o acerto de seu

objeto, do preço e da modalidade de pagamento. Entrega da coisa e pagamento do

preço dizem respeito á execução do contrato de compra e venda. A exigência dessa

entrega e desse pagamento pressupõem a existência de contrato perfeito e

acabado. Certo que como todo negócio jurídico, o contrato de venda e compra pode

ser anulado, uma vez demonstrado vício do consentimento (erro, dolo ou coação) ou

vício social (simulação ou fraude). Mas não foi a defeito do negócio jurídico que se

referiu a Inicial, razão pela qual no curso da instrução nem mesmo se cuidou de

perquirir a respeito. De qualquer forma, se a pretensão do autor era a de obter a

resolução do contrato, seja pela atuação de eventual cláusula resolutória tácita

implícita nos contratos comutativos, seja pelo reconhecimento de defeito na

formação do contrato, impunha-se o direcionamento da ação contra quem dele

participou, no caso o comprador, Eduardo Minatel. Ao Invés disso, acabou por

direcionar, contra o réu Edvaldo Minatel, estranho àquela relação contratual, ação

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que, apesar de rotulada de declaratória, tem evidente natureza possessória, sem

titulo algum para tanto. Como se constata das referências do acórdão às alegações

do apelante, no caso concreto não apenas a eficácia do contrato de compra e venda

de bem móvel foi desconsiderada, mas os próprios elementos do contrato também o

foram. Pretendeu o vendedor/apelante o deferimento da medida cautelar contra

terceiro que – sendo terceiro – não participou do contrato de compra e venda. Na

ação principal, reiterou a alegação de que o terceiro adquiriu a non domino, razão

pela qual não se lhe poderia reconhecer a propriedade do bem objeto do contrato”.

Mais uma vez, a consideração do aperfeiçoamento do contrato de

compra e venda permitiria a conclusão correta de que, diversamente do alegado

pelo vendedor/apelante, res, pretium e consensus não constituem elementos do

cumprimento do contrato, mas sim do seu aperfeiçoamento. E a consideração da

transmissão da propriedade mobiliária pela tradição permitiria a conclusão correta de

que, também diversamente do alegado pelo vendedor/apelante, a entrega dos bens

móveis – tecnicamente, a tradição – ensejara a transmissão da propriedade desses

bens ao comprador, não se reconhecendo mais ao vendedor a titularidade dessa

propriedade.

Ou seja, no caso concreto, ainda uma vez, celebrado validamente o

contrato e transferida validamente a propriedade dos bens pelo vendedor ao

comprador, incumbia ao vendedor, que não recebeu o preço, o ajuizamento de ação

de resolução do contrato, na qual, reconhecido o inadimplemento do comprador,

seria decretado o seu desfazimento (do contrato de compra e venda) e seria

garantida ao vendedor a reintegração de posse dos bens móveis objeto daquele

contrato.

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Nos autos do Agravo de Instrumento n.º 1.139.734/7, da Comarca

de Sorocaba, a Quarta Câmara do Primeiro Tribunal da Alçada Civil, relator José

Marcos Marrone, por votação unânime, aos 22 de setembro de 2004, indeferiu, de

ofício, a petição inicial da ação cautelar e julgou prejudicado o agravo de

instrumento, nos seguintes termos: “1. A agravante, em 12.52004, por telefone,

vendeu à agravada ‘Elson José Xavier –ME’, pelo preço de R$ 3.884,00, as

seguintes mercadorias: ‘629,34 kgs de vergalhão CA50 10.0mm AM 0,85; 808,92

kgs de vergalhão CA50 12,5mm AM 0,70; 34 painéis de malha CA60 3,4mm 15x15

média’ (fl. 08). Tais mercadorias foram entregues no endereço indicado pela

agravada (fl. 09). Com base na respectiva nota fiscal (fl. 22), a agravante emitiu duas

duplicatas, a primeira das quais não foi paga no vencimento pela agravada (fl. 09).

Logo, a aludida venda encontrava-se aperfeiçoada, uma vez que houve acordo

sobre a coisa e sobre o preço, nos termos do art. 482 do atual Código Civil,

correspondente ao art. 1.126 do anterior Código Civil. Por outro lado, consoante

dispõe o art. 1.267, caput, do atual Código Civil, correspondente ao art. 620 do

anterior Código Civil, a propriedade dos bens móveis transmite-se pela tradição. (...)

Assim, para que se efetivasse a transferência de propriedade daquelas mercadorias,

bastava a tradição, que se deu pela entrega das mesmas. Considerando-se que a

tradição já se verificara (fl. 22), incumbia à agravante: ou cobrar da agravada, pelas

vias próprias, o débito existente; ou ajuizar ação de rescisão contratual, colimando o

retorno das partes ao estado em que se encontravam anteriormente. 2.2. Ademais, a

agravante ingressou com medida cautelar de busca e apreensão (fl. 08), objetivando

reaver as mercadorias que foram vendidas e entregues, sob essas alegações: de

que emitiu as duplicatas com vencimentos para 27.5.2004 e 11.6.2004, não tendo,

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no primeiro vencimento, o pagamento sido efetuado; de que diligenciou no local da

entrega das mercadorias, tendo obtido a informação de que a pessoa que assinou a

nota fiscal era desconhecida no local, onde existia uma serralheria, pertencente ao

agravado Lázaro Aparecido de Godoi; de que as mercadorias encontravam-se em

um depósito, para onde foram levadas pelo próprio Lázaro Aparecido de Godoi

(fl. 09). Ao ajuizar a referida cautelar, a agravante baseou-se nos arts. 839 e

seguintes do CPC (fl. 08). Todavia, conforme se infere da inicial (fls. 08/10), a

medida pretendida tem caráter eminentemente satisfativo, o que somente se admite

quando expressamente prevista na legislação. (...) Inadequada, portanto, revelou-se

a via processual eleita pela agravante, impondo-se o indeferimento da petição inicial,

com fulcro no art. 295, inciso III, do CPC, e a conseqüente extinção do processo, nos

termos do art. 267, incisos I e VI, do CPC, ante a ausência de interesse processual.

3. Nessas condições, de ofício (art. 267, § 3º, do CPC), indefere-se a petição inicial

da ação cautelar e julga-se extinto o respectivo processo sem a análise do mérito,

reputando-se como prejudicado o agravo de instrumento contraposto.

A última decisão traz em seu próprio bojo a explicação da razão pela

qual não se reconhece ao vendedor prejudicado pelo descumprimento da obrigação

de pagamento do preço pelo comprador a possibilidade de ajuizamento da ação

cautelar de busca e apreensão dos bens móveis objeto do contrato de compra e

venda descumprido. As referências do acórdão à tradição como modo de

transmissão da propriedade mobiliária, a exigir a conclusão de que o contrato

descumprido fora validamente celebrado e de que a tradição transmitira validamente

a propriedade ao comprador tornam desnecessária a repetição dos ensinamentos.

Os acórdãos analisados demonstram os grandes prejuízos causados

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às partes em decorrência da desconsideração de lições e preceitos de direito

material.

Considerados os prazos previstos362 para a distribuição das ações e

para a prática dos atos formais de publicação após a decisão proferida, o

indeferimento de uma petição inicial pode acarretar, e na maioria das vezes acarreta

a perda definitiva do direito material a ser discutido.

Por essa razão, reiteramos a necessidade da identificação do

contrato de compra e venda como título ou negócio jurídico causal, e da tradição

como modo de aquisição da propriedade mobiliária.

O desfazimento do negócio jurídico causal – contrato de compra e

venda – validamente celebrado é condição essencial à reintegração do bem vendido

na posse do vendedor prejudicado pelo descumprimento da obrigação de

pagamento do preço pelo comprador. O pedido de reintegração de posse somente

preencherá a condição da ação consistente no interesse de agir se o bem objeto do

contrato estiver na posse do comprador, ou seja, se o bem objeto do contrato não

houver sido alienado – validamente – pelo comprador a terceiro de boa-fé.

Constatada a transmissão da propriedade do bem objeto do contrato pelo comprador

ao terceiro de boa-fé, restará afastada a possibilidade de reintegração de posse ao

vendedor, que não tem relação de direito material com o terceiro. Ao vendedor

prejudicado restará exclusivamente a cobrança do preço não pago e de eventuais

perdas e danos.

Afirmamos que a escolha do instrumento processual adequado para

a garantia da efetividade do direito material passa necessariamente pelo estudo do

362 No Estado de São Paulo, os prazos em que os andamentos processuais devem ser efetuados constam das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça.

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próprio direito material, no caso concreto pelo estudo do contrato como título ou

negócio jurídico causal e da tradição como modo de aquisição da propriedade

mobiliária.

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CONCLUSÕES

Ao final do estudo, apresentamos a síntese das conclusões que

obtivemos:

1 – A propriedade vem sendo estudada ao longo dos séculos pelas

diversas áreas do conhecimento humano e a sua importância é universalmente

reconhecida como medida de riqueza e poder.

2 – O direito romano antigo não reconheceu a classificação dos bens

em imóveis e móveis, mas sim, pelo critério de utilidade e independentemente de

serem imóveis ou móveis, reconheceu a distinção entre res mancipi e res nec

mancipi. As primeiras eram os bens com valor para a organização agrícola da Roma

antiga; as últimas eram todos os demais bens.

3 – A propriedade romana era classificada em quiritária, pretoriana

ou bonitária, provincial e peregrina. A propriedade quiritária era a mais importante,

adquirida por modos solenes e originariamente apenas por cidadãos romanos. A

propriedade pretoriana ou bonitária era garantida por ato do pretor e considerada

como forma de abrandamento dos rigores da transmissão da propriedade quiritária.

A propriedade provincial referia-se às terras localizadas fora dos limites romanos

originais e a propriedade peregrina era garantida àquelas pessoas que não se

qualificavam como cidadãos romanos.

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4 – No sistema romano, a transmissão da propriedade das res

mancipi se dava por dois modos solenes, a mancipatio e a in iure cessio, e a

transmissão da propriedade das res nec manicpi se dava pela in iure cessio e pela

traditio.

5 – A mancipatio consistia num instituto de jus civile, que podia ser

utilizado exclusivamente pelos cidadãos romanos e dava ensejo à aquisição da

propriedade quiritária. A sua realização exigia a presença do alienante, do

adquirente, de cinco cidadãos romanos púberes que serviam como testemunhas e

do libripens, que carregava a balança em que era pesado o bronze que funcionava

como pagamento. O adquirente tomava em suas mãos a própria res ou algo que a

simbolizasse e pronunciava palavras solenes, após o que libripens tocava a balança

com o bronze e o entregava ao alienante como preço. Posteriormente o bronze foi

substituído pela moeda cunhada e a mancipatio se tornou um ato abstrato, passível

de utilização em qualquer caso que implicasse uma alienação.

6 – A in iure cessio consistia num instituto de jus civile que ensejava

a transmissão da propriedade quiritária tanto das res manicipi quanto da res nec

mancipi. Era realizada perante o magistrado, presentes o alienante e o adquirente. O

adquirente tomava em suas mãos a res, se fosse móvel, ou um símbolo, se fosse

imóvel, e o reivindicava. Mediante a negativa de contestação do alienante, o bem

era adjudicado ao adquirente. Foi pouco utilizada mesmo na época clássica, devido

à dificuldade concreta de comparecimento das partes perante o magistrado. A última

referência ao instituto consta do ano de 293.

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7 – A traditio era considerada um modo não formalista de aquisição

da propriedade. Por se tratar de um instituto do ius gentium e não do ius civile, podia

ser utilizado tanto pelos romanos como pelos não romanos. Consistia na entrega

material do bem com a finalidade de transferir o seu domínio, o que exigia a

conjugação da entrega material da coisa com a justa causa. Inicialmente se exigia a

efetiva apreensão do bem pelo adquirente, ainda que de forma simbólica, no caso

de bens imóveis. Com o tempo, passou-se a admitir a entrega ficta, mediante a

criação dos institutos da traditio longa manu, da traditio brevi manu e do constituto

possessório. A justa causa consistia no negócio jurídico anterior e válido, em virtude

do qual a transferência da posse do bem produzia a transferência de sua respectiva

propriedade. À época de Justiniano, a traditio se tornou o modo único de

transmissão da propriedade romana.

8 – No sistema romano, a compra e venda, denominada emptio et

venditio, era o contrato pelo qual o vendedor prometia ao comprador transferir-lhe

definitivamente a posse de uma coisa mediante o pagamento de certo preço. Há

quem sustente que a compra e venda, quando à vista, dava-se pela mancipatio,

enquanto outra corrente afirma a inexistência de ligação entre os institutos, já que a

mancipatio constituía modo de transmissão da propriedade, enquanto a emptio et

venditio se destinava à transmissão da posse. À parte as diversas teorias a respeito

de sua origem, a emptio et venditio era um contrato do direito das gentes, que,

portanto, podia ser celebrado por romanos e não romanos, que se aperfeiçoava

mediante o consentimento das partes a respeito do objeto e do preço. A efetiva

transmissão da posse e/ou da propriedade somente se dava por um dos modos de

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aquisição previstos, ou seja, pela mancipatio ou pela traditio.

9 – A partir do sistema romano, foram desenvolvidos outros sistemas

atualmente vigentes quanto à transmissão da propriedade mobiliária, cujo interesse

de estudo repousa na identificação da circunstância de a propriedade mobiliária ser

transferida por meio do próprio contrato de compra e venda ou exigir, além do título

representado pelo contrato, o modo de aquisição, ou seja, o ato de exteriorização da

transferência da propriedade, consistente na tradição.

10 – A tradição, como modo de transferência da propriedade

mobiliária do vendedor ao comprador, pode ser real, simbólica, consensual ou virtual

e ficta ou jurídica. A tradição real se realiza mediante a entrega efetiva do bem pelo

vendedor ao comprador. A tradição simbólica ocorre mediante a entrega, pelo

vendedor ao comprador, de um objeto que represente o bem cuja propriedade se

transfere, como as chaves de um carro. A tradição ficta se opera por força de uma

norma jurídica, independentemente de ato que a exteriorize. Dá-se nas hipóteses de

constituto possessório, de cessão de direito à restituição da coisa que se encontra

em poder de terceiro e de traditio brevi manu.

11 – O sistema alemão se baseia na prática de dois negócios

jurídicos independentes para a transmissão da propriedade mobiliária. O negócio

causal consistente no contrato de compra e venda não transfere, por si, a

propriedade do bem alienado, sendo necessária a tradição ou entrega, que, por sua

vez, consiste num contrato real. A tradição independentemente do negócio causal é

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considerada eficaz, embora se tenha aperfeiçoado sem causa jurídica.

12 – No sistema de direito alemão, o contrato de compra e venda

tem eficácia obrigacional.

13 – O sistema francês reconhece às convenções, por si mesmas, o

efeito translativo da propriedade mobiliária, independentemente de qualquer

formalidade extrínseca e de qualquer ato de execução, não apenas em relação às

partes contratantes, mas também em relação aos terceiros em relação aos quais a

convenção seria oponível. Por outro lado, o artigo 2279 do Código Civil francês

estabelece que, quanto aos bens móveis, a posse equivale ao título, o que enseja o

reconhecimento de que, concretamente, a tradição pode suplantar a eficácia real

das convenções.

14 – No sistema de direito francês, o contrato de compra e venda

tem eficácia real. Celebrado o contrato de compra e venda de um bem móvel, a

propriedade mobiliária é transmitida imediatamente do vendedor ao comprador,

independentemente da exteriorização da entrega do bem.

15 – No sistema inglês, a propriedade mobiliária é transmitida por

meio da manifestação do consentimento das partes, independentemente de

qualquer ato externo, desde que o bem cuja propriedade se transfere por meio da

convenção seja passível de entrega imediata.

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16 – No sistema de direito inglês, o contrato de compra e venda tem

eficácia real, com a consignação de que, para a transmissão imediata da

propriedade mobiliária do vendedor ao comprador, é imprescindível que o bem

móvel seja passível de entrega imediata.

17 – O sistema brasileiro exige, para a transmissão da propriedade

mobiliária, um título e um modo. O título constitui a causa da aquisição e não tem

eficácia translativa, para o que se exige o modo.

18 – No sistema de direito brasileiro, o contrato de compra e venda

tem eficácia obrigacional. Por meio do contrato, o vendedor de obriga a transferir a

propriedade do bem ao comprador, e este se obriga a pagar ao vendedor

determinado preço em dinheiro. O contrato de compra e venda constitui o título que

fundamenta a tradição, esta o modo pelo qual a propriedade mobiliária é

efetivamente transferida do vendedor ao comprador.

19 – No sistema de direito brasileiro, a posse não faz, por si, prova

da propriedade, mas se consubstancia no primeiro indício para a sua comprovação.

Constitui ônus daquele que alega a propriedade de um bem móvel que não se

encontra sob a sua posse a comprovação de que a posse atual é exercida mediante

título que não prevalece sobre o seu próprio título.

20 – Celebrado o contrato de compra e venda, a entrega do bem

móvel – que caracteriza o modo de transmissão da propriedade mobiliária

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consistente na tradição – pelo vendedor ao comprador transfere a este a

propriedade mobiliária, independentemente do pagamento do preço.

21 – O pagamento do preço pelo comprador não lhe enseja a

transmissão da propriedade mobiliária se, apesar do pagamento, o bem não lhe foi

entregue.

22 – O vendedor que entregou o bem móvel ao comprador como

decorrência do contrato de compra e venda, mas não recebeu o preço, e o

comprador que pagou o preço ao vendedor, mas não recebeu deste o bem móvel,

não são proprietários do bem móvel objeto do contrato – no primeiro caso porque

houve a tradição e no segundo caso porque não houve a tradição – e não podem

fazer uso dos instrumentos processuais postos à disposição exclusivamente do

proprietário para a (re)tomada da posse do bem.

23 – O contrato de compra e venda validamente celebrado e não

desfeito por resilição bilateral – distrato – somente pode ser desfeito por ação

ordinária de resolução de contrato, cabível a reintegração liminar do bem móvel na

posse do vendedor.

24 – A alienação onerosa do bem móvel pelo comprador a terceiro

de boa-fé impede a reintegração do referido bem na posse do vendedor,

considerada a inexistência de relação de direito material entre o vendedor e o

terceiro.

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25 – Inviabilizada a reintegração do bem móvel na posse do

vendedor, em razão de a propriedade do referido bem haver sido validamente

transmitida pelo comprador a terceiro de boa-fé, resta ao vendedor cobrar do

comprador o preço e indenização por eventuais perdas e danos.

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