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Recôncavo, um estudo social regional Fernando Pedrão 2007 Uma versão original deste ensaio foi escrita em 1986 e o texto foi reestruturado em 2006.

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Recôncavo, um estudo social regional∗

Fernando Pedrão

2007

∗ Uma versão original deste ensaio foi escrita em 1986 e o texto foi reestruturado em 2006.

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Sumário

Apresentação

Introdução 1. Fundamentos e possibilidades da análíse regional na Bahia 2. A dimensão histórica do Recôncavo 3. A reprodução social da economia 4. A relação entre capital e trabalho 5. A urbanização 6. A industrialização 7. O petróleo e a indústria petroleira 8. Os processos do ambiente 9. A organização social e técnica da produção 10. Organização da produção e perfil tecnológico 11. Pós escrito

Notas

Bibliografia

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Apresentação

O Recôncavo (da Baía de Todos os Santos) é um desafio à análise

social brasileira que jamais tomou, decisivamente, a questão de interpretar os modos de funcionamento dos espaços criados pelo modo sistema colonial escravista, nem tentou explicar os desdobramentos atuais do capital mercantil. É um problema de história no plano de uma região, de um modo de vida e de um sistema de relações internacionais. Por isso, analisar o Recôncavo é um modo indireto de refletir sobre esse aspecto regional da formação social da América Latina ex-escravista, tropical, objeto de avanços e recuos no caminho da formação de riqueza e de pobreza, hoje lugar de uma sociedade empobrecida, majoritariamente negra, transformada em objeto simbólico mas discriminado. O sistema escravista e a sociedade escravocrata são grandes referências obrigatórias na compreensão dessa experiência regional, assim como a combinação de internacionalidade com primitivismo. Trata-se aqui de esboçar uma análise histórica crítica - portanto social, econômica e politica – em que se visualizam continuidades e rupturas na formação social e em que se percebem as diferentes condições de controle do trabalho e dos recursos naturais, com suas derivações no fundamento de racismo e de exclusão .

Em sua forma atual, este ensaio é produto de sucessivas abordagens dos problema do Recôncavo baiano, no período de 1984 a esta data, coincidindo com a montagem e elaboração parcial de outros textos sobre o mesmo tema. Torna-se claro que a discussão dessa região também é um pretexto para questionar aspectos da análise regional, além de representar um desafio renovado para os esforços de interpretação da transição da sociedade escravocrata e pós escravista à industrial.i A análise regional aqui está marcada pelo modo como surgiu uma sociedade local. O Recôncavo foi a maior sociedade regional organizada do país até a metade do século XVII e que foi

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acionada por um complexo sistema social, econômico e politico internacional, onde se formou uma sociedade escravista com segmentos de trabalho contratado.

As transformações desta região registram os grandes movimentos da colônia, com um período de 1500 a 1640, correspondendo à implantação do sistema até sua estabilização com a Restauração portuguesa, outro período de 1640 a 1750, em que o sistema podutivo atingiu seu auge e começou sua decadência, um outro período de 1750 até a independência. Já no ambiente do país independente, distingue-se um período de 1823 até o fim do tráfico de escravos em 1850 e outro período até a República e quando aconteceu o primeiro impulso de industrialização. Cada um desses grandes períodos pode ser subdividido com beneficio para o esclarecimento do tema. Entre 1500 e 1640 houve um primeiro momento de instalação do sistema da produção canavieira – que se estendeu muito além do Recôncavo – que foi interrompido pelos grandes eventos que foram a inclusão de Portugal no Império Espanhol, de 1580 a 1640 e as invasões holandesas, que para a colônia baiana consistiram em uma invasão em 1624 e um grande ataque em 1638. ii

O final desse período ficou marcado pelo ataque combinado, dos vice-reinados da Bahia e do Rio de Janeiro aos portos africanos de emissão de escravos e ao conseqüente controle do tráfico por parte dos escravistas brasileiros. Entre 1640 e 1750 houve uma grande properidade e o começo do declínio. A decadência da produção açucareira avança com altos e baixos e por uma variedade de causas e a famosa abertura dos portos pode ser tomada como resposta a uma demanda dos interesses açucareiros, que entretanto não foi suficiente para reverter a tendência à perda de posição que seria atenuada mas não revertida pelos engenhos centrais. O declínio local do escravismo estava selado e a busca de alternativas já tomaria a forma daquela opção por tecnologia registrada pelo Príncipe Maximiliano de Habsburgo em sua visita em 1860.

O sistema açucareiro conteria mais trabalho contratado e o aparecimento da Companhia de Navegação Baiana, uma empresa inglesa, registra esse fato, junto com as primeiras atividades em

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metalurgia.1 Porisso, a análise da formação de classes é complexa desde sua origem e exige que se esclareçam dois pontos fundamentais, que são (a) a participação de trabalho contratado na produção escravista; e (b) os efeitos – diretos e indiretos – dos dois primeiros movimentos de industrialização na formação de um mercado de trabalho regional. iii As respostas desses quesitos ultrapassam as possibilidades deste ensaio, mas é preciso desde já admitir que se trata de problemas altamente complexos, cujo esclarecimento demanda uma análise histórica da formação das classes, que surgem como determinação local de um sistema internacional de relações econômicas e políticas.

Procura-se identificar eixos de análise histórica, que possam ser lidos através de sua espacialidade. Para isso, enfrenta-se um problema peculiar. A região é desigualmente visível ao olhar mediatizado por informações organizadas. Grande parte do que alí ocorre, encontra-se no âmbito da sociedade mal registrada, ou ignorada pela organização de dados estatísticos. Historicamente, registrou-se o que foi pertinente ao sistema de poder, tanto em seus aspectos do sistema mercantil escravista, como no relativo ao domínio político da região na formação de um sistema político estadual de base rural interessado em administrar a modernização.

Trata-se de tempo e de espaço e do espaço-tempo de processos de longa duração. O espaço social dessa região na história é criado por uma sucessão de processos, de duração desigual e sujeitos a descontinuidades, ao tempo em que guardando uma continuidade básica. Na origem, o Recôncavo é um grande espaço subordinado de um sistema internacional de produção, que deu lugar ao aparecimento de uma vida regional própria. Por isso, os personagens da sociedade localmente organizada, apesar de serem a maioria, surgem como contraponto do sistema de poder e a história ainda gira em torno de figuras ilustres, de pseudo nobres e de grandes proprietários, que na realidade foram substituidos por novos grandes proprietários sem nome – empresas ou representantes de interesses externos 1 Fernando Pedrão e Marcos Guedes Vaz Sampaio, A formação de um setor metalúrgico na Bahia oitocentista: a presença britânica, 2002.

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organizados – que formaram novo tapete de dominação das terras e dos recursos naturais da região. O Recôncavo tornou-se uma fonte de matérias primas para a construção civil e o local de alguns grandes empreendimentos de escala internacional com pequeno efeito emprego local. A nova produção açucareira voltada para exportação e a carcinocultura também planejada para vender ao mercado internacional estão entre os principais exemplos dessa nova tendência. iv

Como abordagem, este ensaio é uma tentativa de tratar a história recente como um problema de arqueologia, em que a desigualdade e a imprevisibilidade das informações levam a cruzar os elementos de raspagens e trincheiras de um solo cujo modo de reprodução muda ao longo do tempo, mesmo quando parece inerte. Veremos que em seus resultados essa arqueologia recupera formas de vida que não são vestígios, mas que são sobrevivências e são parte da atualidade, tornando-se o ponto de partida de uma genealogia, de uma observação progressiva, onde se visualizam opções e onde há um sentido de futuro, como quis Foucault. v

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Introdução

O Recôncavo foi a principal região da Bahia e das mais

importantes do Brasil durante uns duzentos e cinquenta anos. Recentemente, mercê de uma industrialização conduzida pela exploração do petróleo, ganhou nova visibilidade. Historicamente, a região baiana - capital colonial, província, estado - formou-se mediante movimentos de penetração que seguiram o vale do Rio Paraguaçu e o vale do Rio Itapicuru, que buscaram os espaços planos ao norte da Chapada Diamantina. O primeiro desses movimentos fez-se, constituindo, em primeiro lugar, a área produtora de cana de açúcar, a de fumo e mais acima, pecuária e finalmente, diamantes. O segundo resultou numa extensa área pastoril, subsidiária da primeira durante muito tempo. A primeira foi, de longe, a mais rica. A Bahia é, principalmente, o resultado do conjunto do ocorrido na bacia do Rio Paraguaçu e na bacia do Rio Itapicuru. Historicamente, a ocupação das demais bacias foi posterior ou menos importante para a formação do modelo socioprodutivo.

O Recôncavo é a região formada por um conjunto de rios dentre os quais, predomina a influência do Rio Paraguaçu, apesar de que a área do Baixo Paraguaçu ocupa uma pequena parte da região. Destaca-se, inclusive, a diferença de tamanho entre o rio Paraguaçu e os demais rios da região, apesar de ter ela uma elevada pluviometria. A descarga do Rio Paraguaçu é determinante das condições bióticas do Recônvavo Sul e a regulação de suas águas veio a alterar a vida aquática e a habitabilidade da região do estuário. Com a construção da barragem de Pedra do Cavalo, essa influência histórica ganhou novos contornos, pelo peso da barragem na determinação de alternativas para o futuro da região.vi Na grande baía rasa, onde há grandes áreas com pouca movimentação das águas, há uma delicada combinação das

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lagamares e dos manguezais com uma movimentação de águas regulada pela movimentação do mar e das descargas fluviais.

Apesar desses antecedentes, o Recôncavo continua pouco conhecido. Somente alguns de seus aspectos urbanos vieram constituir a imagem de um ambiente social carregado de tradição e pouco sensível a quaisquer formas de mudança. A imagem do marasmo veio se formando desde o início do século XIX, com um retraimento das transações com mercadorias exportáveis, que encontrou uma ruptura decisiva com o fim do comércio escravista. Configuram-se, desde então, duas imagens, a da região exportadora dos senhores do açúcar e a de uma região povoada por grupos remanescentes desse sistema decadente. O desenvolvimento de uma produção fumageira baseada em aperfeiçoamento do produto e em sua qualificação como mercdaoria de exportação, introduziu uma variável alternativa ao açúcar, criando um novo grupo de capitalistas – manufatureiros – apoiados em novas articulações no exterior. O sistema socioprodutivo do fumo modificou a região ainda em outro aspecto, que foi de colocar as mulheres como operárias e como chefes de família, explicitando a complexidade de relações familiares oriundas da própria condição da sociedade escravista.vii

A industrialização é um aspecto essencial na análise atual da região. Primeiro, a introdução dos engenhos centrais constituiu um mecanismo de desvalorização do trabalho no novo mercado de trabalho contratado, deixando em troca um espaço menor mas privilegiado, de trabalho qualificado.viii Antes mesmo da abolição da escravatura, introduzia-se uma forma de produção tecnologicamente mais avançada, que assegurava ao capital a opção de acumular sem incorrer nos custos, riscos e compromissos personalizados do ambiente escravista. Depois, no ambiente posterior à guerra com o Paraguai e em que o sistema escravista só se reabastecia precariamente com contrabando de escravos, o primeiro impulso de industrialização do Brasil foi um fenômeno claramente do conjunto Salvador – Recôncavo.

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A combinação da produção açucareira com a produção fumageira tornava-se o principal dado da economia da região, constituindo um conjunto capitalista que se diferenciava do anterior modelo primário exportador, porque comportava o processamento local e a comercialização do açúcar e uma industria de charutos diretamente ligada a exportações ao exterior. A combinação dessas atividades leva, inevitavelmente, a examinar a relação entre capacidade instalada e capacidade dos capitais industriais para se diversificarem. A interrupção desse processo de diversificação, causada pela Primeira Guerra Mundial, tornou-se o verdadeiro ponto de inflexão na formação de capital da região.

A partir daí, torna-se necessário reconsiderar o significado de diversidade do sistema produtivo da região. Sua diversidade, especialmente de seu componente rural e de seu ambiente de manguezais e estuário, continua segregado dos movimentos integradores da formação de capital. Primeiro é uma diversidade proporcionada pela biodiversidade e depois é uma pluralidade gerada pela complexidade da formação social.

Logicamente, é uma imagem superficial. e enganadora. Na realidade, a região é continuamente atingida por mudanças; e modificada, inclusive pela reprodução do capital na próprio ambiente de estagnação. Numa parte dela, encontra-se a maior parte do capital formado na Bahia durante os últimos quarenta anos. A outra é, essencialmente, um bolsão de estagnação econômica, de profunda desigualdade de renda e de pobreza aguda crônica. Discutir os problemas dessa região é contribuir para indicar alternativas de ação que modifiquem seu quadro atual e suas perspectivas, frente a projetos que modificam o tecido de relações inter-regionais na Bahia .

Além da responsabilidade envolvida na escolha do tema, cabem hipóteses de interpretação dos processos econômicos e sociais da Bahia em seu conjunto, relativas às alternativas e às restrições de transformação do sistema de produção, bem como às alterações na distribuição da renda, que apresentam como inseparáveis os

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encaminhamentos da questão do Recôncavo e da Bahia em seu conjunto.

Especificamente, a região do Recôncavo é a chave do sistema de infra-estrutura econômica da Bahia no relativo a transportes; e a bacia do rio Paraguaçu, que é o espaço articulado ao do Recôncavo, junto com as outras sub-regiões do Recôncavo, contém a maior quantidade de terras férteis pouco sujeitas a restrições hídricas e próximas a porto de todo o Nordeste. Distinguiremos três momentos do desenvolvimento – e dos retrocessos – do sistema de transportes, em que o primeiro consistiu em cobrir a região com transporte aquaviário e em liga-la ao interior com tropas de burro, o segundo foi o da integração com transportes a vapor – aquaviário e ferrovias – e o terceiro é o da implantação do transporte rodoviário, que gerou comunicações inter-regionais e localmente seletivas. Analisar hoje o Recôncavo, é ligar os processos históricos pretéritos, com sua descontinuidade e sua espacialidade, à identificação de novas alternativas de política econômica e social.

O Recôncavo, o fértil crescente em torno da Baía de Todos os Santos, foi, desde o primeiro momento do período colonial, o espaço regional criado sob a influência de Salvador, por sua vez fundada como centro de poder político e do capital mercantil. Essas duas funções foram transmitidas desde a Europa, mas encontraram modos próprios de se desenvolverem e criarem seu perfil próprio no ambiente da produção escravista internacionalizada. Desde então, essa tornou-se uma região interativa com Salvador, submetida à influência direta desta cidade, mas com modos próprios de urbanização e formação de capital.

No entanto, o Recôncavo é uma região fortemente heterogênea, marcada pela desembocadura de alguns rios importantes e pelo curso de outros, destacando-se o Paraguaçu, o Jaguaripe, o Subaé e o Jacuipe. Sua economia está marcada por sua geografia, contrastando as terras de tabuleiro com as de planície e com a grande extensão de manguezais na parte sul e com os solos pobres ao norte de Salvador.

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Neste trabalho entende-se que o Recôncavo está limitado ao norte pelo Rio Pojuca e ao sul pelo Rio Jaguaribe.

Ao longo do tempo, essa região foi objeto de sucessivos desmembramentos de seus municípios originais, inicialmente como parte de medidas de repressão política do Império, o que é um fato político pouco relevante na identificação de suas sub-regiões, mas revelador dos processos políticos locais e das alianças de poder que transmitiram os interesses, primeiro da metrópole portuguesa, depois do Império e finalmente da oligarquia recomposta na República.

Através dessa sucessão de modos de organização política, a importância da região na formação da economia baiana tem sido fundamental, da produção de açúcar à de petróleo. Os movimentos de urbanização, os impulsos de industrialização, bem como das mudanças no modo de articulação da Bahia na economia nacional e com o exterior, são aspectos essenciais dessa análise, que deve tratar com um panorama social progressivamente complexo, em que a formação de classes contrasta com a permanência de modos de organização pré-industriais e mesmo primitivos.

Este ensaio é uma primeira tentativa nessa direção. Reúne as reflexões conseqüentes de um primeiro período de estudos do Recôncavo, entre 1984 e 1986, orientados para formular propostas de maior envergadura, mas que permaneceram no âmbito da pesquisa acadêmica. No relativo à orientação no tratamento da relação entre o sistema produtivo, os recursos naturais e o trabalho, parte de um ensaio que publiquei em 1964, sobre os mecanismos regionais da desigualdade econômica inerentes à formação de capital na industrialização. A última revisão, de 1999, respondeu a alguns questionamentos que surgiram ao longo do tempo, principalmente sobre o papel dessa região na formação sócio-cultural e nas estruturas ideológicas das propostas de desenvolvimento do Estado da Bahia.

Tal abordagem focaliza a importância do encadeamento no tempo de relações entre as modificações na composição do capital, os usos de recursos físicos e a ocupação e a distribuição da renda, vindo a

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constituir um estilo de análise baseado na observação de circuitos de produção e consumo. Isto significa dizer que se entende que as formas de consumo são próprias de cada forma de produção em seu estagio atual de desenvolvimento. Não somente a produção compreende consumo e o consumo induz produção, como o consumo possível em cada situação de desenvolvimento do sistema produtivo é organicamente compatível com as condições da produção.

A interpretação dos problemas do Recôncavo tem grande significado indireto, porque em certo sentido, a experiência dessa região é objeto obrigatório de análise para quem tem por diante a experiência regional brasileira. No contexto da leitura da economia baiana a questão do Recôncavo reveste-se de um significado ideológico, porque obriga a explicitar os objetivos das políticas estaduais. Por ter sido uma região invariante por uns duzentos e cinquenta anos, em seu território e em sua identidade cultural, o Recôncavo é um bom exemplo da atualidade das pressões que modificam espaços de influência, que portanto levam a substituir o velho conceito de região - principalmente territorial e subsidiariamente histórico - pelo de uma região principalmente histórica e subsidiariamente territorial.

Daí, surge um Recôncavo que é o lugar de uma nova incorporação e de nova destruição de capital, com rejeição de trabalhadores e destruição de cidades e zonas rurais. Esta visão do problema leva a procurar compreender os mecanismos que comandam os reordenamentos do sistema de produção e as relações de classe, assim como a entender as modificações experimentadas pela empresa e pelo poder político na região.

A análise regional tem, pois, a oportunidade de trabalhar um aspecto necessário da heterogeneidade do processo social e de como ele se transforma ao longo do tempo. A emergência de problemas de heterogeneidade do capital e de diferenciação social, leva a buscar outros aspectos da análise regional, que expliquem o confronto entre a unificação conduzida pela expansão do capital e a heterogeneização

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alimentada pela exclusão de trabalhadores e pelo envelhecimento tecnologico dos capitais aplicados na Bahia.

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1. Fundamentos e possibilidades da análise regional na Bahia

A análise regional sempre foi uma vocação do discurso econômico federalista, ou em todo caso, do discurso alternativo ao da centralização do poder econômico e politico no Brasil. O Brasil sempre esteve diante da disjuntiva de um discurso centralista destituído da pluralidade regional ou de um centralismo que engloba a diversidade regional. Pelo contrário, o regionalismo simplificador, que desconhece a tendência nacional torna-se ahistórico, porque tenta desconhecer as forças de unificação nacional, que superam o regionalismo idílico que tenta resolver a problemática das regiões como se ela não fosse parte do país.

A pluralidade de pontos de vista das diversas províncias alterna, desde o período da Regência, com a proposta de unificação do discurso nacional. A visão de modernização econômica posta em circulação no segundo período Vargas reacendeu esse problema, justamente, porque ao trabalhar na constituição de um paradigma econômico para a modernização política e social, criou um mecanismo concentrador dos investimentos, unificador da infra-estrutura econômica, que acentuou a tendência de diferenciação entre a região beneficiada pela concentração e centralização do capital e as demais regiões do país. Assim, criou as condições que instigaram à criação de mecanismos compensatórios da diferenciação. Ao ser fundado o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, que beneficiaria mais aos estados do Sudeste, instalava-se em 1952 o Banco do Nordeste do Brasil, para atender os estados mais atingidos pelo lado negativo do modelo. Desde logo, verificou-se que para promover a modernização da economia do Nordeste, o novo banco deveria desenvolver um estilo próprio de trabalho, utilizando a nova técnica de projetos de investimnto e deveria romper com o controle político do financiamento, que contribuía para perenizar as estruturas de poder no eixo comério internacional-produção rural. Com o tempo, viu-se que

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esse segundo objetivo era muito mais difícil de alcançar que o que se esperava.

A postura regional - alternativa ao modelo econômico centralizador - aparecia em 1956, na forma de uma reivindicação da Bahia ao governo federal, cujo fundamento era, precisamente, o conteúdo econômico da questão política. O desdobramento em termos de análise econômica viria logo a seguir, no conteúdo dos programas de pesquisa que sustentaram o plano de desenvolvimento da Bahia para 1960-1963, e na estruturação desse plano ix . Como se evidenciou, na continuação do trabalho na Bahia, bem como na construção de um ponto de vista regional - iniciado no âmbito da SUDENE em 1960 - tornava-se imperativo encontrar categorias próprias, representativas da problemática dessa região; e não de pretender encontrar categorias igualmente válidas para as regiões objeto da concentração de capital e para as regiões objeto da desconcentração.

Nesse sentido, reconhecer a consistência interna de algumas regiões, como o próprio Recôncavo e a região cacaueira no contexto da formação do Estado da Bahia era o modo de contrastar os espaços mais estavelmente organizados, portadores de cultura, com outros espaços fluidamente definidos, pouco consistentes ao longo do tempo. Passava-se a contrastar regiões antigas e regiões novas e regiões que envelhecem e regiões que se renovam. Surgia, assim, a compreensão de que a composição de regiões é qualitativamente descontínua, além de desigual. Há regiões extensas e regiões pequenas que não são subregiões de regiões extensas. A própria definição do Nordeste como região passaria a ser objeto de críticas; e ficariam claras as diferenças entre regiões administrativamente definidas e regiões historicamente formadas.

O planejamento estadual da década de 1950 na Bahia representou uma mudança decisiva na política econômica praticada pelo governo estadual, por introduzir a racionalidade da produção industrializada no tratamento dos recursos públicos, desde o orçamento estadual até o fomento de investimentos. Gerou uma produção intelectual que refletiu uma ideologia da mudança, baseada

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num interesse público legitimado por um acordo político hegemônico. Introduziu outra mudança importante, ao absorver o significado do espaço natural e do espaço construído na constituição do sistema de produção. Assim, situou uma unidade territorial de referência - a região baiana - um conceito que obrigava a reportar os projetos de modernização à formação histórica. De qualquer modo, identificava a Bahia como uma região composta da combinação de regiões geográficas do semi-árido e do sub-trópico úmido.

Com isso aceitava-se, tacitamente, que a expansão econômica estava subordinada a um poder federal, cujas prioridades estavam equacionadas por interesses diferentes dos regionais. O impulso centralizador conduzido pelo governo federal, desde o Estado Novo indicara linhas de tensão entre a expansão do capital, realizada no plano regional, e a articulação de interesses no plano federal. Assim, no momento em que a análise social econômica se sobrepunha à historiografia tradicional, eliminava os canais de questionamento pelos quais ela mesma poderia expor a complexidade da organização social e técnica da produção.

A identificação daquele período de planejamento, de 1955 a 1962, com a formulação de um projeto de industrialização e de modernização do Estado e com a renovação de empresas locais, implicava em explicitar uma contradição ideológica entre aquela proposta de planejamento, representativa do projeto nacionalista do segundo período período de Vargas, e as políticas estaduais orientadas para sustentar o sistema de produção tradicional. O esgotamento desse tipo de planejamento tornou inevitável que a industrialização se fizesse com outra composição de forças políticas, outra tecnologia, outra composição de empresas, portanto, projetando outras conseqüências na configuração do sistema de produção. A partir de 1965 abriram-se novas possibilidades de expansão do capital na Bahia, ligadas aos seguintes fatos principais:

• A concentração bancária, com a fusão ou liquidação de grande número de pequenos bancos, com a correspondente concentração do financiamento de capital de giro. Desde o início da década de 1960

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começou um movimento de compra de pequenos bancos regionais por bancos de maior porte, do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, onde estes últimos se caracterizaram como concorrentes do crédito ofertado na Bahia. A concentração bancária reduziu as opções de financiamento a poucos grandes bancos e a Bahia tornou-se uma região emissora de dinheiro para regiões demandantes no sudeste do país. Desde a década de 1980 a concentração bancária deu lugar a um movimento mais amplo e complexo de concentração dos bancos e de tecnificação, que resultaram em um grande queda da intensidade do emprego na operação dos bancos.

• A entrada de empresas de outras regiões e do exterior e o fomento a associações de empresas com capital estrangeiro, junto com o fomento industrial no Nordeste em geral e na Bahia em particular. Instalou-se na Bahia um processo de emigração de empresas, que se acentuou a partir da década de 1980. Dentre outras situações, esse processo prejudicou a região e a cidade de Feira de Santana, com graves efeitos indiretos negativos para o vizinho Recôncavo.

• A possibilidade de ganhos excepcionais mediante economias de aglomeração, mesmo por empresas médias que não participavam de grandes grupos. É sintomático que essa condição de elevadas taxas de lucros fosse identificada com a captação de economias de aglomeração, que foi um argumento que levou muitos economistas a considerarem ser possível uma ressurreição dos princípios marshallianos de política industrial, aparentemente sem atentarem que se trata de trabalhar agora em condições internacionais completamente diferentes daquelas do tempo do velho defensor do Império Britânico.

No entanto, esses movimentos resultaram em distanciamento entre as então novas indústrias e a reprodução do capital incorporado na agro-indústria tradicional do estado. Tanto a cana de açúcar do Recôncavo, como o algodão do Sertão, como o cacau do sul do estado, foram marginalizados no cálculo governamental da expansão da capacidade de produção na Bahia. Das indústrias tradicionais, foram selecionadas a fiação e tecelagem, a metal-mecânica - ver tabela n.1 - como ramos de atividade aptos para receber apoio financeiro federal.

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A política de expansão da capacidade instalada combinava a atração de indústrias novas com a busca de investimentos federais em infra-estrutura; e apoiava-se na modernização da máquina administrativa alcançada na década anterior, com a implantação de orçamentos por programa.

Esse novo estilo de crescimento regional implicou em privilegiar a indústria como setor condutor do crescimento, mas, por extensão, levou a valorizar mais aqueles investimentos na agricultura, que contribuíssem para ampliar as oportunidades de investimentos industriais, em vez de refletir mais de perto as condições operacionais desse setor. Assim, orientou-se a política de fomento agrícola instrumentalizada pelo Banco do Nordeste e pela SUDENE, que combinou o financiamento aos produtores que se incorporavam a formas industrializadas de produzir, contrastando com as políticas destinadas a elevar rendimentos físicos em culturas tradicionais. No final, em geral os alimentos ficaram com resultados médios inferiores e restritos às políticas de apoio a minifundistas.

Essa ênfase aos aspectos industriais da produção foi atribuida à influência da doutrina desenvolvimentista da CEPAL, sem dúvida influente na década de 1960. Mas essas políticas antecederam a influência daquele órgão das Nações Unidas. Podem ser datadas do começo da década de 1950, quando as idéias da CEPAL ainda não tinham se difundido no Brasilx , quando entretanto se afirmava uma ideologia nacionalista econômica no segundo período de Getúlio Vargas xi.

A política de industrialização concentradora prosseguiu, recebendo subsídios diretos e indiretos, bem como financiamento preferencial para projetos arriscados e tecnicamente incertos. Na Bahia, desde o início desse surto de industrialização, reconheceu-se uma diferença crescente inevitável entre a composição do capital das grandes e das pequenas empresas. As propostas de expansão da produção apoiaram-se em diversas escalas de polarização, sem ligação necessária entre os setores da produção. Certamente, há pontos indefinidos nessa política, no que ela ignora a retro-alimentação de

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efeitos qualitativamente diferentes a médio e a longo prazo, ou no que ignora os efeitos da criação de polos de crescimento nas relações de classe. Mas isso não surpreende, já que tal política jamais foi submetida a uma verificação dos efeitos a jusante da reprodução do capital concentrado nos polos, nem foi avaliada pelos resultados que induz, em termos de investimentos em outros setores.

Esses dois últimos pontos têm que ser reavaliados, quando se examinam os efeitos do crescimento da produção na formação de capital fora do conjunto polarizado, e quando se considera a capacidade de produção da economia de uma região para sustentar a taxa de crescimento de seu produto social por um período significativo.

Assim, os fatos do crescimento da economia da região passaram a ser vistos pelo governo apenas como fatos da expansão do conjunto polarizado, sem levar em conta o conjunto de seus efeitos diretos e indiretos, positivos e negativos no conjunto não polarizado, nem o das inter-relações entre os dois. No entanto, numa visão em retrospectiva da experiência da Bahia, encontra-se que as atividades que prosperaram fora da linha direta da polarização de capital em Camaçari não foram decorrência dessa polarização, senão que responderam a outros estímulos coincidentes.

Por isso, a análise econômica que sustentou as propostas de desenvolvimento regional na Bahia encontrou-se na disjuntiva de aprofundar no conhecimento deste fato e de suas implicações; ou de passar a uma crítica finalística da própria política econômica. No entanto, essa segunda alternativa ficou limitada a questões imediatas da gestão dos recursos do governo estadual; e adaptou-se às do governo federal. O questionamento das alternativas de crescimento tornou-se uma análise comparativa de setores da produção, em que sempre se privilegia a indústria, mas onde as definições industriais são apenas parte da modernização, jamais um elemento constitutivo de uma economia regional. Com isso, deixou-se de ver os nexos entre os setores, seja, descartou-se a análise da introjeção das cadeias de relações entre os setores nos diversos lugares.

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Nesse contexto, a análise e o planejamento industriais foram estratégicos. A análise industrial na década de 1970 esteve engajada em viabilizar uma política de polarização, com todas suas conseqüências. Os problemas operacionais do planejamento regional do manejo do semi-árido, das bacias hidrográficas, inclusive dos rios São Francisco e Paraguaçu, foram abandonados.

Os problemas de rentabilidade industrial apareceram mais recentemente, já ligados a problemas de gerenciamento das empresas modernas, principalmente exemplificados pelas empresas do polo petroquímico. Mas é uma questão mais ampla, que inclui a composição dos investimentos por setores, estrategias de investimento das empresas, que combinam agricultura, indústria e empreendimentos na prestação de serviços, que implicam na administração de interesses diversificados, cujos parâmetros não estão restritos aos dados de projeto algum tomado por separado. É uma questão própria da modernização da empresa como tal, que reúne decisões financeiras e tecnológicas na administração de empreendimentos específicos, onde há uma política fabril, junto de uma política de administração financeira de ativos e passivos financeiros, uma política de tecnologia e outra de recursos humanos.

A análise regional na Bahia realizou-se sob a pressão desses movimentos. Na década de 1950 consistiu em estudos de regiões específicas, bem como de prospecções, para sustentar análises de apoio ao planejamento. As delimitações de regiões corresponderam à divisão político-administrativa da Bahia. Privilegiaram-se colocações, que contribuíssem para informar numa linguagem mais moderna, sobre as possibilidades das regiões economicamente mais importantes; e permitissem orientar as políticas de desenvolvimento do Nordeste para desenvolver a Bahia.

A ocorrência de outros tipos de experiência com a modernização rural, atingindo a estruturação regional da Bahia, na década de 1980, modificou essa tendência. Em paralelo a intervenções públicas, em programas agrícolas especiais, tais como os programas de desenvolvimento rural integrado, surgiram novos núcleos de

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produção agrícola, com financiamento público especial, como no caso do café, e com apoio público indireto, como no caso do sul do Estado, além de certa revitalização da pecuária com capitais urbanos de Salvador. Esses fatos levaram a reconhecer novos padrões de espacialidade, em que as combinações cidade-campo se traduzem em alterações da espacialidade, principalmente através do sistema de transportes.

Também, as pressões decorrentes da urbanização, principalmente nas cidades de grande porte, atribuiu ao planejamento urbano a capacidade de demandar respostas de ordenamento espacial, até então restritas ao planejamento da região metropolitana de Salvador. Desde a década de 1970, ganharam importância diversas cidades, tais como Feira de Santana, Itabuna, Vitória da Conquista; e desde a década de 1980 surgiram Porto Seguro, Barreiras, alterando o perfil geral de urbanização no Estado ( ver tabela n. 1).

Assim, ampliou-se a diferença entre a análise das necessidades de políticas regionais e a de problemas locais. O confronto entre o tratamento dos problemas conseqüentes da polarização industrial revelou a necessidade de uma instância regional que articule as políticas para os meios rural e urbano. Este problema já tinha sido colocado no plano doutrinário da análise regional ( Lefeber, 1970; Pedrão, 1974), mas não foi registrado pelo planejamento industrial, que continuou formulando propostas sobre as linhas doutrinárias da teoria dos polos de crescimento, inclusive em versões rudemente simplificadas, tal como nos distritos industriais e em propostas de simples concentrações de indústrias num mesmo vetor tecnológico. As sucessivas propostas de planejamento industrial no Nordeste, desde 1964, continuaram limitadas ao aproveitamento de efeitos em cadeia de indústrias já existentes - que seriam atraídas à região mediante manipulação de custos indiretos - ou com a proposta de alterações de preços durante o uso de equipamentos ainda a serem implantados.

A renovação da análise regional conflui com posturas mais abertamente críticas na análise social, que combinam a perspectiva histórica de análise com um quadro de referências factuais mais

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amplo. As linhas mestras do confronto no campo regional - registradas no início da década de 1970, apontavam, justamente, à polarização de encaminhamentos, entre os que se voltavam para a formalização e operacionalização da análise da situação atual; e os que olhavam, principalmente, para a gênese e transformação das regiões, isto é, para uma teoria regional da mudança.

O desenvolvimento dessa segunda posição tem que ser fundamentada no plano de análises regionais de países ou de continentes, a serem contrastadas e complementadas por análises de regiões específicas que tenham uma continuidade histórica significativa. A análise do Recôncavo pode ser uma opção importante nesse último sentido, já que oferece a oportunidade de trabalhar, simultaneamente, os elementos da formação e transformação da região, com elementos da formação e transformação do contexto nacional.

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2. A formação histórica da região

O Recôncavo é uma região de uns 11.000km2 - dos 541.000 do Estado da Bahia - em forma de fértil crescente, disposta ao redor da Baía de Todos os Santos, alimentada pelos rios Paraguaçu, Subaé, Jaguaripe e outros menores, com extensos manguezais na parte sul, uma grande proporção de terras baixas de grande fertilidade e uma sub-região de tabuleiros. Reúne quase todos os acessos ao interior do Estado da Bahia, assim como as opções de escoamento de produção. Historicamente, o Recôncavo formou-se como produto dos interesses do capital mercantil português transferido para Salvador, como meio de realizar uma produção de mercadorias aptas para troca internacional. A subsequente formação de um grande espaço agro-pastoril no interior - como as diversas regiões constitutivas do Sertão - foi induzida pela concentração de atividades internacionalizadas no Recôncavo, que se tornou o núcleo dinâmico de um território muitas vezes maior.

No essencial, o Recôncavo surgiu junto com a primeira destas mercadorias que aliava homogeneidade de qualidade, preço internacional e elevado valor por peso: o açúcar; e afirmou-se pela concentração da principal mercadoria do período colonial, que foram os escravos, usando largamente todas as possibilidades ao seu alcance de extração vegetal e animal. Mas o aspecto de extrativismo, ligado à extração de madeira e caça e pesca primitiva, continuou, desde o século XVI até o presente. Continuou a extração de madeira de lei, para exportação e para abastecer o mercado urbano baiano. Assim, o essencial do processo econômico no Recôncavo foi sempre o modo especial como se organizou o controle do trabalho, combinando o sistema escravista com componentes de trabalho livre.

A homogeneidade da organização regional do Recôncavo decorre de uma lógica consistente, de aproveitamento sistemático de terras especialmente adequadas para a produção daquela mercadoria mundial e de algumas poucas mercadorias complementares. Terra e

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água foram incorporados na medida de sua funcionalidade para essa atividade. Os recursos que não foram funcionais para ela ficaram à margem do sistema de produção, mesmo em áreas que foram dominadas pela monocultura. Essa concentração dos usos dos recursos, determinada pela estrutura de custos da produção escravista, em que a força de trabalho do escravo era completamente direcionada para essa atividade, teve o efeito contrário de restringir o espaço efetivamente integrado pela produção de mercadorias, deixando amplo espaço para a sobrevivência de um exército de reserva desse sistema de produção constituido dos marginalizados rurais. Estes, que compreenderam índios, negros libertos e diversos mestiços, constituíram um meio social que se reproduziu mediante a produção primitiva, no campo e nas cidades, e que veio a absorver todos aqueles que foram despejados pelo sistema escravista no processo da abolição da escravatura.

O panorama da população pobre, parcial ou totalmente, excluida, é fundamental em qualquer explicação do funcionamento dessa região, que ao longo do tempo mostrou movimentos de sístole e diástole no relativo à inclusão e exclusão de grupos sociais e no que toca ao território que ocupa. Frente ao quadro explícito da absorção de pessoas no ambiente da produção escravista, há um outro quadro, que permaneceu num segundo plano, de reprodução social de grupos não reconhecidos pelo sistema de produção, que entretanto funcionou - e funciona - como estabilizador da oferta de trabalhadores e de exército de reserva para a indústria e para a agricultura organizada.

A estruturação social dessa região é, ainda, um problema a ser explicado. Destacam-se alguns elementos básicos. O Recôncavo desenvolveu uma organização social própria, onde o poder foi exercido localmente por um grupo social identificado com a propriedade dos engenhos de açúcar e da terra, que se desdobrou em classe política, ocupando as câmaras municipais e participando, como parte do grupo hegemônico, na composição política do governo da então província. A sociedade colonial mercantil organizou-se com a presença de estamentos que correspondiam à organização da metrópole - clero e

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parte das forças militares - e mantendo mecanismos de equivalência com a ordem social da metrópole. A complexidade da organização social dos engenhos de açúcar e a urbanização, que se tornou significativa no século XIX, abriram espaço para o aparecimento de novos integrantes do sistema social da produção, que progressivamente encontraram modos de reprodução mais identificados com a diversificação da produção.

A transição da organização social no século XIX foi, adicionalmente, impulsionada pela difusão de uma pequena produção rural - concomitante à diversificação do grande capital, depois de 1850 - que deu lugar ao aparecimento das feiras livres, que funcionaram como mercados locais fora do controle direto do grande capital mercantil e dos engenhos. Paralelmente, certa rotatividade na propriedade dos engenhos, significou que um contingente social se deslocava, paulatinamente, do meio rural para formas urbanas de sustentação, mediante as remunerações do sistema político, do sistema judiciário, constituindo uma classe abastada urbana ancorada em Salvador.

O controle político traduziu-se em vantagens para a reprodução do controle agrário e ao mesmo tempo, em benefícios financeiros diretos, no mesmo esquema que, nacionalmente, seria mais tarde denominado de “Estado cartorial”. Uma análise mais cuidadosa do processo político da economia baiana mostra que as combinações de interesses nesses dois planos tornaram-se mais complexas, em que o controle político das prefeituras municipais tornou-se uma peça de um sistema de poder mais complexo, que envolve relações de contratos do governo estadual com empresas em torno de investimentos públicos em transportes, água e produção de energia.

O Recôncavo é a região organizada mais antiga do Brasil, a que primeiro se urbanizou, primeiro articulou os espaços rurais concretamente incorporados à agricultura com um conjunto de espaços periféricos, de cuja subordinação extrai parte de sua eficiência. Por contraste, foi também a primeira região que deixou claramente espaços relegados pelo sistema de produção organizado,

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que puderam ser ocupados para a realização de estratégias de sobrevivência, que tiveram um efeito significativo no relativo aos movimentos de população.

Essa região foi a principal base territorial do sistema escravista, que levou a uma significativa densidade demográfica desde o período colonial. Funcionou com elevada capitalização e concentração de patrimônio no meio rural, constituindo uma região “cara”, no sentido de reprodução custosa. Esse fato, aliado a que a forma escravista de produção implicava em grande imobilização de capital em escravos, fazia com que a produção escravista operasse com custos fixos elevados, quando comparada, por exemplo, com a produção agro-pastoril. A especificidade das terras aptas para açúcar determinava essa diferença. As informações oferecidas por Antonil são claras nesse sentido; e além disso se observa que no século XVIII um escravo masculino adulto custava o equivalente a 120 braças dessa terra apta para açucar.

Historicamente, o conjunto Salvador-Recôncavo surgiu como parte de um circuito econômico internacional. Foi parte essencial da organização internacional do capital mercantil-agrícola constituido no fim da Idade Média na península ibérica, como interesses principalmente judaicos, que se expandiu através do instrumento político português. Evoluiu segundo as possibilidades e as limitações do Império Português. A combinação de atividades do sistema escravista de produção criou, aqui, uma economia colonial aberta, isto é, baseada em intensas relações internacionais, conduzidas principalmente por meios privados, mas claramente respaldadas pelo sistema político de poder. Como mostrou Scharwz, o controle do poder judiciário foi uma peça fundamental na estruturação política do poder econômico. No final do Império, revelou-se fundamental, para garantir as conversões de capital formado na agro-indústria para a produção fabril e para aplicações imobiliárias, em Salvador e no Rio de Janeiro.

Em sua história, o Recôncavo passou por alguns períodos claramente marcados, que podem ser resumidos nos seguintes:

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• Implantação e consolidação iniciais do sistema agrícola escravista, correspondente à fase de altos índices de eficiência no uso do capital, até o século XVII. O apogeu da riqueza da produção açucareira escravista foi na segunda metade do século XVII e esmoreceu no século XVIII ( Schwartz, 1988). O sistema agrário escravista teve seu núcleo central na produção açucareira, mas compreendeu três segmentos interdependentes, que foram a produção canavieira e de açúcar, a produção da pecuária integrada com a produçao de açúcar - provendo animais de carga e transporte – e uma produção marginal complementar de alimentos. A produção de alimentos correu em grande parte por conta desse segmento artesanal e extrativista.

• Refluxo, desgaste, reajustes externos, concomitantes com a perda de posição de Portugal na Europa, com a perda de posição frente às regiões produtoras de ouro. O declínio do sistema escravista foi complexo e gradual, devendo-se em parte a sua incapacidade de adaptar produção escravista com renovação tecnológica.

• Reordenamento com a agro-industrialização até o aparecimento dos engenhos centrais e diversificação do sistema de produção, compreendendo a expansão da cultura do fumo e levando ao primeiro surto de industrialização, na segunda metade do século XIX, chegando até 1914.

• Decadência da região em seu conjunto no século XX, com a queda definitiva da produção tradicional de açúcar, o declínio do segmento fumageiro e o retrocesso da região a padrões tecnológicos anteriores aos da primeira industrialização. Perda de posição no sistema do poder na composição política do estado.

• Surgimento de uma nova economia de grande capital, em que predomina a presença da Petrobrás, concomitante com outros movimentos, tais como a modernização da produção açucareira e a carcinocultura. A presença da produção petroleira passou por sucessivos e diferentes momentos desde a implantação da

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refinaria em 1955 até a renovação da produção no inicio do século XXI.

• Formação de novos grupos de trabalhadores assalariados nos novos setores de capital moderno e aumento do número de funcionários públicos especialmente na esfera municipal.

• Aumento da importância dos pagamentos de aposentadoria e seguro social como meios de sustentação dos desempregados de baixa renda.

No plano estritamente econômico, cabe distinguir os aspectos constitutivos do funcionamento operacional das empresas integrantes do sistema regional de produção; e a estruturação do capital na região em seu conjunto, compreendendo seus sistemas de infra-estrutura, a estrutura fundiária, a estrutura institucional que instrumentaliza a presença direta do governo na região.

Estes argumentos permitem-nos perceber um aspecto essencial da formação de regiões no Brasil, do qual o Recôncavo é um exemplo. Trata-se da relação entre uma renda garantida pelo número e pela composição dos empregos necessários ao funcionamento dos municípios e de uma renda flutuante que é aquela derivada de atividades privadas circunstancialmente localizadas nesses municípios. A renda garantida está formada de salários pagos pelos governos municipais, pelas aposentadorias e pelas pensões. A renda flutuante é a dos negócios e a gerada por obras públicas de duração limitada. A renda garantida é o fundamento da formação do mercado local , cujo comportamento se completa com a periodicidade das obras públicas. Há uma relação orgânica entre a renda garantida e as possibiolidades imediatas de crescimento da renda flutuante, já que os novos investimentos são guiados por expectativas imediatas de mercado e a incerteza da renda flutuante faz com que as despesas básicas de consumo fiquem limitadas à renda garantida. Por isso, a formação da renda da região reflete o modo como ela é contemplada pela progressão dos investimentos do governo em geral, compreendendo o estadual e o federal.

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Diversas vezes, ao longo do tempo, o reordenamento da economia no Recôncavo se fez como resultado de tentativas de modernização. Mas a fase contemporânea da economia do Recôncavo inicia-se ao começar a década de 1950, com a entrada de investimentos diretos do setor público através da infra-estrutura, em petróleo, junto com os primeiros efeitos da expansão da produção de energia hidro-elétrica e com os efeitos diretos da construção da represa de Pedra do Cavalo. A seguir a região foi afetada negativamente pelas alterações do sistema de transportes que compreenderam o fim da estrada de ferro Nazaré e a desativação do porto de São Roque do Paraguaçu.

Esse movimento de modernização tem sido, seguidamente, apresentado através dos principais fatos que o demarcam. Mas deve ser interpretado à luz dos fatos que o determinaram. O reaparecimento do Recôncavo seguiu-se a duas decisões do governo federal, relativamente à implantação da refinaria Landulfo Alves e aos efeitos na Bahia do financiamento do Banco do Nordeste do Brasil. Com isso, passaram a conviver decisões tendentes a recuperar a rentabilidade de investimentos realizados no quadro da economia tradicional, em que o Recôncavo tinha uma parte significativa; e decisões tendentes a criar uma nova capacidade de produção, cuja expansão não afetaria a anterior. Em seu conjunto, a área de Salvador-Recôncavo foi beneficiada pela oferta de energia hidro-elétrica, que viabilizou a produção de cimento, facilitando a expansão da construção civil.

Esse aspecto merece ser analisado como representativo das alterações de rumo da formação de capital, indicativo deaspectos pouco discutidos da industrialização, qual seja, das composições multi-setoriais de investimento que assinalaram diferentes esquemas periféricos de industrialização, e que, adiante, foram decisivos na continuidade ou falta de continuidade desses processos. Nesse período observou-se que, na Bahia, (a) separou-se o funcionamento de um setor moderno na economia com sua expansão de capital e suas substituições, no conjunto de suas empresas e unidades de produção;

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(b) modificaram-se as relações entre as empresas que operam no segmento mais moderno e no tradicional da economia, com o desdobramento de que as empresas que mais cresceram estenderam suas atividades ao segmento moderno, ou são parte dele; © modificaram-se as relações das empresas com o Estado, com crescentes diferenças entre a participação e o peso relativo do governo federal e do estadual na gestão da formação de capital.

A relação entre o Estado e as empresas assumiu novas formas, com o engajamento do governo estadual numa proposta de modernização econômica, que difere daquela do governo federal, no que procura garantir as posições das atuais empresas da região na reprodução de capital, bem como procura criar novos espaços de mercado para empresas que perderam competitividade ao longo da industrialização. Observa-se, entretanto, que as mudanças no relacionamento entre empresas e Estado traduziram-se em maior concentração das decisões econômicas, tanto no âmbito das decisões sobre a industrialização como no relativo à gestão da infra-estrutura.

Esses fatos atingiram, decisivamente, o Recôncavo, fazendo com que nessa região os velhos capitais escravocratas encontrassem novos modos de organização, tanto na produção agro-industrial como em aplicações imobiliárias e em conversões para investimentos industriais. Esse movimento identificou-se, progressivamente, com a polarização de investimentos e com a consolidação de bolsões de atraso crônico. A canalização do crédito para os novos focos de investimento, indiretamente, contribuiu para isso, criando nova circularidade entre a desigualdade social da urbanização, a concentração espacial do capital e a consolidação de investimentos no eixo industrial.

Esses vêm sendo os principais elementos condutores de um novo padrão de organização social no conjunto Salvador-Recôncavo, com uma notável internacionalização do centro econômico industrial, em Salvador e em outros pontos da região, com um circuito de relações entre empresa, Estado e trabalho, em que o engajamento de trabalhadores, na produção formal e na informal, sua inclusão ou

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exclusão, sua participação num ou noutro segmento da produção, transcorrem num quadro cada vez mais diferenciado, que combina a reprodução - e eventual expansão - do componente modernizado frente à reprodução do componente não renovado, simplificadamente denominado de tradicional. Há um nexo essencial entre esses dois componentes, que se materializa no mercado de trabalho, no de terras e principalmente, no de capital.

Ao rever esses argumentos, cabe lembrar que no Recôncavo sempre predominaram atividades, internacionalmente organizadas em oligopólio - açúcar e o fumo - mas que localmente funcionaram em esquemas localmente muito diferentes. Enquanto a produção se fez na Bahia, basicamente, em grandes engenhos, possuidores de seus próprios canaviais, a produção de fumo foi feita, em grande parte, em pequenas propriedades, que foram, sucessivamente, articuladas pela exportação de fumo bruto e de charutos, com progressiva elevação de qualidade, através da exploração do mercado deste último produto.

Essas atividades de exportação coincidiram com uma grande produção primitiva para consumo local e suprimento do mercado regional., que lhes foi essencial. O componente de produção extrativa participou desses dois níveis, contribuindo com alimentos para a maior parte da população trabalhadora e com matérias primas para a própria produção internacionalizada, em items como madeira e materiais de construção. Essa convivência entre o componente internacionalizado e o local manteve-se, como uma constante da estruturação regional do Recôncavo, que passou, sucessivamente, pela diversificação da agricultura, pela primeira industrialização e, finalmente, pela segunda industrialização.

Essa combinação de formas de produção sustentou o circuito do açúcar - escravismo, fumo, indústria têxtil - que, posteriormente, se reorganizou, ao modificar-se a composição da demanda internacional. O declínio da produção escravista, a ascensão do fumo, significaram um aumento relativo da importância do trabalho assalariado na reprodução social, bem como uma tendência à formação de relações de classe. Já no século XX, outras linhas de produção agrícola, como o

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dendê e os citros, propiciaram a estabilização de relações de assalariamento. Destarte, a identificação de rentabilidade dos estabelecimentos e a de taxa de lucro, ficaram mais fortemente marcadas que nas demais regiões do Estado da Bahia, verificando-se que o assalariamento e a subsistência obtida da produção primitiva coexistiram sempre, garantindo a reprodução social.

Assim, as inter-relações entre a formação da taxa de lucro e a articulação institucional da economia foram essenciais para o conjunto das empresas que realizaram a produção das mercadorias principais. A questão está em como esta utilização da base institucional pôde ser realizada, ou mantida ao longo das substituições entre sucessivas condições de organização da própria empresa. As questões pertinentes aos interesses da indústria na absorção do excedente econômico formado na região já se delineara no começo do século XX, com a implantação de um conjunto de indústrias de bens de consumo, apoiado no mercado constituido das compras internas daquele setor exportador e na reserva de mercado regional, criada pelas dificuldades de transporte inter-regional. Mas esse tampouco foi um esquema de economia local, já que a produção têxtil dependeu de algodão que veio transportado por ferrovia desde Jequié e desde Minas Gerais e que também dependeu da Companhia de Navegação Bahiana.

Mas esse surto de industrialização se estiolou, por uma série de razões que devem ser revistas, como medida inicial de qualquer análise histórica. Será preciso esclarecer melhor como estavam organizadas aquelas empresas e como elas se inseridas no mercado. Não está claro, se aquelas empresas industriais não aguentaram os custos do financiamento, se não foram capazes de desenvolver um segmento metal-mecânico que as sustentasse, ou se, simplesmente, optaram por outras aplicações de capital, especialmente no ramo imobiliário, que lhes permitiu rentabilidade equivalente ou superior, com menores riscos. Em todo caso, as informações disponíveis sobre transferências de capital, de empresas industriais para aplicações urbanas e em bancos, bem como de migração de capital para o Rio de

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Janeiro, indicam que o declínio daquele surto industrial coincide com uma re-mercantilização do capital, ao lado de transferências para os mercados do Rio de Janeiro e de São Paulo. De confirmarem-se essas indicações, a explicação mais provável é que os capitais formados no primeiro surto de industrialização na Bahia teriam sido atraídos pela expansão do mercado interno no Sudeste do País, assim como teriam aproveitado oportunidades locais de investirem no mercado imobiliário em Salvador. Os rumos seguidos pela aplicação desses capitais selou a sorte da economia baiana, que passou por um período de “anos obscuros” entre 1918 e 1955.

Essa hipótese não é contraditória com a observação de que o segundo impulso de industrialização, iniciado na primeira metade da década de 1950, foi parte de outra proposta do capital, que também demanda explicação. Cabe oferecer a explicação que primeiro se tratou da gestação de uma proposta de modernização tecnológica, iniciada na administração Landulfo Alves, como de uma modernização rural, e lançada, no início da administração Antonio Balbino, por Rômulo Almeida, como de modernização administrativa - a implantação de orçamento por programa, em 1955 - seguida pela proposta de um planejamento econômico para o desenvolvimento econômico e social. A montagem dessa administração para o desenvolvimento foi iniciada com a fundação do Banco do Nordeste do Brasil (1952) e seguida pela implantação da primeira etapa de Paulo Afonso, no mesmo ano, e da refinaria Landulfo Alves (1955). Mas ela era, mais uma projeção de um projeto nacional de modernização e desenvolvimento econômico - identificado com a segunda administração Vargas - que algo desenvolvido a partir de demandas dos capitais baianos.

De certo modo, a linguagem da modernização esteve presente quase todo o tempo, ficando registrada em empreendimentos tais como um projeto de modernização do setor cacaueiro, representado pela criação do Instituto de Cacau da Bahia em 1939, e no discurso da administração Otávio Mangabeira, com algumas obras de modernização do equipamento da cidade de Salvador. Mas, na década de 1950 instalava-se uma proposta de modernização econômica

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sistemática, que se traduziu na montagem de um sistema de planejamento estadual organizado numa perspectiva nacional do desenvolvimento econômico e social.

O sistema estadual de planejamento foi pioneiro no Brasil, não só por ter manejado uma articulação de planejamento macroeconômico com a elaboração de projetos, como porque gerou propostas de transformação da base produtiva do estado, combinando industrialização com modernização agrícola, que têm sido válidas até hoje. Um dos elementos constitutivos desse sistema foi a combinação de propostas de industrialização com um grande projeto de modernização da economia rural – o sistema FUNDAGRO – e com um sentido estratégico de obras de infra-estrutura.

O sistema econômico estadual funcionou com diferentes esquemas de financiamento, coincidindo sua implantação com a proliferação de sucursais de bancos de estados do sul, junto com o aparecimento de pequenos bancos locais. O financiamento preferencial outorgado pelo Banco do Nordeste terminou por consolidar a tradicional estrutura oligopolística baiana, concentrando recursos em atividades já organizadas nesses moldes, como se vê na tabela a seguir.

tabela n.1; projetos deferidos pelo Banco do Nordeste para a a Bahia até 1963

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numero de projetos gêneros industriais milhões de cruzeiros de 1963

8 transformação de minerais não metálicos 171,7

7 metalúrgica 131,7

2 artefatos de borracha e plástico 74,0

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7 química e farmacéutica 106,8

5 têxtil 550,0

1 vestuário, calçado 40,0

5 produtos alimentares 256,0

1 bebidas 52,0

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Fonte, Banco do Nordeste do Brasil S.A

Estas cifras mostram claramente como o chamado financiamento do desenvolvimento foi, de fato, uma ferramenta de salvaguarda da esrutura de capital formada com a recolocação dos capitais do escravismo e que correspondiam ao perfil tecnológico da primeira revolução industrial. A renovação correria por conta de um novo projeto de industrialização, que foi produzido pelo sistema estadual de planejamento, e que tomaria a forma de uma indústria polarizada, que deveria operar de modo combinado com a recuperação das velhas indústrias e com um projeto de modernização rural.xii

Destarte, a retomada da ideologia do desenvolvimento na década de 1950 correspondia a necessidades de reposição do capital social no estado - contrapor-se à decadência - bem como de readaptação ao modo de funcionamento da economia brasileira, levada então num movimento mais de modernização pelo segundo governo Vargas. Mas, a própria concepção de modernização confundia a recuperação da capacidade instalada das indústrias tradicionais com a incorporação de novas atividades. Isso se verificou, repetidamente, na política de financiamento do Banco do Nordeste e na da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE).

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Especificamente, revelou-se uma contradição da política de desenvolvimento, no relativo ao tratamento dado à indústria têxtil, então constituida de empresas com tecnologia superada, sem qualquer condição para concorrer no mercado nacional; e no relativo à metal-mecânica, incipiente, inadequada para responder às novas necessidades da indústria na região. O conflito de objetivos que se estabeleceu entre as tentativas de recuperar velhas empresas incapazes de concorrerem no mercado nacional e promover novas empresas tem sido uma constante da política industrial no Nordeste, onde as influências políticas sempre favoreceram um perfil de financiamento favorável aos interesses tradicionais de grandes proprietários.

Os fatos ocorridos nas décadas de 1960 e 1970 confirmaram essas tendências. No início desse período, o apoio às empresas fez-se, principalmente, pelo mecanismo de financiamento, numa relação bancária que pressupunha uma ligação explícita enre os custos de produção e os de financiamento. A continuidade da inflação, a elevação das taxas de juros, o mercado para financiamento de fomento estreitou-se, e o financiamento das empresas fez-se mais por seu acesso a relações preferenciais com bancos, por sua associação com bancos, ou por sua capacidade para comandar dinheiro através da alavancagem dada pelas dimensões de suas operações. Também, as vantagens dadas pelo Estado às empresas foram canalizadas por investimentos novos e por vantagens monopolísticas antes consquistadas, com um gradual aumento da importância do peso dos investimentos novos. Estes, por sua vez, dependeram da entrada de dinheiro novo; e em última análise, de associações entre empresas, de maior rapidez na conversão entre formas de capital.

Isso significa que a expansão do segmento moderno da economia regional correspondeu a esse fato, por si indicativo de uma modernização que se concentrou na organização das empresas, no modo como elas puderam reorganizar-se, para participar do mercado financeiro; e não necessariamente de ganhos de produtividade na produção, nem em formação de recursos humanos. Por último, os

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mecanismos utilizados pelas empresas para obter o apoio do governo federal implicaram em medidas complementares do governo estadual, ou em utilizar um apoio inicial a nível estadual para conduzir pleitos de vantagens no plano federal.

As estrategias seguidas pelas empresas dependeram de um jogo de posições relativas entre o poder federal e a formação local de poder, em que a realimentação do controle local dependeu dos vínculos estaduais e do federal’e em que a diferença de mobilidade entre esses níveis significou consideráveis diferenças de acesso a crédito e na competência para transformar o crédito em inovação tecnológica. Isso se fez plenamente evidente no caso das empresas agro-pecuárias, em que as diferenças de escala de produção nem sempre corresponde a diferenças de rentabilidade ou de renovação técnica. A diferença tornou-se ainda mais flagrante entre as indústrias tradicionais, que continuaram operando com os mesmos níveis de tecnologia, e empresas em que a injeção de dinheiro foi usada para modificar a trajetória de renovação tecnológica.

As estratégias não econômicas - políticas e de controle da formação da opinião pública - tiveram um importante papel nesse movimento, vendo-se que a participação em cargos públicos e o relacionamento entre a esfera pública e a privada tiveram um papel fundamental na diferenciação entre as perspectivas de rentabilidade das diversas empresas. A dinamização de alguns setores da economia através do crédito público, especialmente do transporte rodoviário, ensejou a rápida capitalização de novas empresas, as empreiteiras, que passaram a operar à escala do país em seu conjunto, e adiante, no exterior.

Através dessas práticas, evoluíram as relações entre Estado e empresa, com intensa substituição entre as empresas que conseguem canalizar o financiamento e os subsídios suficientes para garantir sua taxa de lucro através de movimentos conjunturais da economia e da política econômica. As vantagens do segmento modernizado do sistema de produção se ampliaram e ganharam novos pontos de apoio, mas não substituiram os atrativos das atividades tradicionais, como a

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pecuária. Nesse movimento entrou uma internacionalização do sistema produtivo, mediante maior participação de empresas estrangeiras e controle do financiamento por parte de bancos privados internacionais.

A proposta de industrialização teve um caráter nitidamente regional, porque se definiu em termos de uma localização das indústrias que se propunha criar como um eixo de concentração de atividades entre Salvador e Feira de Santana, com os centros industriais de Aratu e do Subaé, com o primeiro concentrado em indústrias metalúrgicas e metalmecânicas e com o segundo focalizado em indústrias de alimentos, ambos os dois articulados em torno do porto de Aratu e com a participação complementar do Distrito Industrial Urbano de Salvador (DINURB) e com um grande centro de abastecimento a ser localizado na enseada do Cabrito xiii.

Esse grande projeto de indusrialização teria um grande efeito indireto no Recôncavo, já que desencadearia efeitos progressivos na produção rural desta região, ao induzir uma regularização do mercado de alimentos. Alguns importantes investimentos iniciais foram realizados,xiv mas o programa industrial foi praticamente abortado em 1964, com o atraso e a redução de escala do projeto da siderúrgica, que seria a indústria motriz desse conjunto. Ao facassar a proposta de criar um verdadeiro pólo de crescimento, o Centro Industrial de Aratu (CIA) ficou reduzido a uma coleção de indústrias atraídas por vantagens fiscais, cujo único atrativo real era a demanda da Petrobrás. Mesmo assim, instalou-se uma diferenciação econômica e política entre o Recôncavo sul tradicional e o Recôncavo norte, sede da nova economia industrial, que se afirma como uma região alternativa ao velho conceito de Recôncavo. No plano cultural o Recôncavo se limita à região empobrecida.

Já na década de 1990, verifica-se que a principal alteração no componente modernizado da economia regional é um retorno à produção de cana de açúcar, ao lado de certa reorganização na produção de fumo selecionado. Há uma discreta produção de cítricos e na avicultura, sendo que na pecuária há uma presença, também

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tímida, de uma pecuária de corte selecionada. Torna-se pronunciada a distancia entre a esfera de atuação do grande capital e a esfera da economia local.

Em seu conjunto, são atividades insuficientes para dinamizar a região, que permanece basicamente estagnada, exceto pela retomada da indústria do petróleo e pela presença de atividades de extração de matérias primas. O papel do Recôncavo como área de atração de turistas ainda é insignificante e a região não dispõe de instalações e serviços para sustentar um incremento significativo do turismo a curto prazo.

A combinação petróleo-petroquímica termina por funcionar como plataforma de apoio para novos empreendimentos de grande capital internacional, aprofundando as diferenças entre o Recôncavo sul tradicional – Cachoeira, Santo Amaro, Maragogipe, São Felix – do Recôncavo norte – Camaçari, Lauro de Freitas, Simões Filho – com a novidade de que um município do Recôncavo sul, São Francisco do Conde, passa a ser beneficiado com quantiosos royalties de petróleo, contrasta com os demais municípios do sul e passa a simbolizar uma situação de recursos públicos usados de modo pouco produtivo. Desde então, a própria conceituação de Recôncavo fica comprometida, praticamente perdendo-se de vista que esta região compreende a área onde hoje se concentra a indústria do petróleo e da petroquímica.

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3. A reprodução social na economia regional

A questão síntese, que situa todas as demais no contexto do processo histórico do Recôncavo, é a reprodução social, com seus aspectos demográficos e suas ancoragens econômicas e políticas. Além de ser um número de pessoas, a população representa uma experiência incorporada, que é a formação sócio-cultural da região.xv A reprodução social é o modo como a sociedade – e já não só a população – se reproduz em número e em capacidade de produção e com referências culturais que se convertem em parâmetros da modernização. A reprodução carrega a memória histórica da sociedade, com seus saberes técnicos e sua ideologia. Essa reprodução tem um fundamento econômico que é a renda familiar dos trabalhadores, a qual, por sua vez, corresponde à intensidade da ocupação.

Nessa perspectiva pode-se ver melhor o significado da industrialização que acontece desde a década de 1950 através de impulsos descontínuos, que modificou o quadro demográfico. Algumas poucas cifras selecionadas mostram como o quadro da população reflete as condições e as perspectivas de vida.

A formação de um núcleo industrial desde então tornou-se o movimento condutor do crescimento do produto social na Bahia e determinante indireto do nível do emprego. O contraste entre a parte norte e a parte sul do Recôncavo aparece em diferenças notáveis de crescimento demográfico e em migrações locais. A população do Recôncavo sul não cresce e sofre de elevados coeficientes de desemprego, que já foram estimados em 50%. A fonte de renda mais importante – tal como em muitos outros municípios baianos – são as aposentadorias e pensões. Alguns dados do crescimento da população aparecem na tabela a seguir.

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Bahia, crescimento da população em municípios selecionados do Recôncavo ,

1940-1991

1940/50 1950/60 1960/70 1970/80

1980/91

Cachoeira 0,00 0,88 -0,40 0,08 0,11

Maragogipe 0,71 0,68 0,47 0,01 -0,55

Santo Amaro -2,26 1,82 -0,24 2,15

0,64

São Felix -0,03 0,04 -1,08 1,35 -2,02

Fonte, FIBGE, Censos Demográficos

Estimativas para 2006, indicam que a população do Recôncavo norte somava umas 453.000 pessoas comparadas com umas 149.000 no Recôncavo sul. Todas as referencias de estagnação estão concentradas na parte sul, conquanto os sinais de desigualdade de renda e de pobreza são comuns a todos, vendo-se, finalmente, que no norte há grandes empresas, pequenas empresas e muitos desempregados.

A explicação da reprodução social leva à da formação e da desigualdade da renda na região, como um fenômeno interligado com as migrações, bem como com as estratégias do capital em relação com os trabalhadores, bem como as estratégias dos moradores em relação com os recursos naturais. Como se trata de uma região emissora de migrantes, receptora de muito poucas pessoas de fora, a análise da reprodução social significa, em grande parte, a explicação da sobrevivência.

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O panorama econômico e social atual do Recôncavo está dominado por dois grupos de fatos principais, que descrevem os movimentos de expansão do capital de um lado, na indústria e na agricultura; e de outro lado, revelam as contradições entre a modernização, cada vez mais concentrada no eixo Salvador-Camaçari, e a estagnação enraizada na maior parte da região. De um lado está o conjunto constituido do complexo petroquímico de Camaçari e do centro industrial de Aratu, formando um eixo urbano-industrial que se estende desde a orla atlântica - na altura do km17 - até o porto de Aratu. De outro lado, ficou a região arcaizada, submetida ao desempenho e às modificações restritas à produção primária dominada pelas agro-indústrias tradicionais do açucar e do fumo, apenas interrompida pela produção de cítricos.

Ao avançar a década de 1980, o Recôncavo sofreu os efeitos das sucessivas políticas restritivas e recessivas do governo federal, junto com a conclusão da implantação de indústrias novas e com a falta de novos investimentos públicos. Assim como Salvador se ressentiu dos efeitos indiretos do esmorecimento da atividade exportadora tradicional - cacau, sisal etc - a região que a circunda sofreu os efeitos acumulados da gradual queda das perspectivas do emprego em Salvador. Ao longo da década de 1980 aumentou, notoriamente, a população de baixa renda, inclusive aquela em pobreza crítica, no grande Salvador. Paralelamente, agravou-se o quadro de desemprego urbano e rural nas cidades e povoados do Recôncavo.

Já no final da década de 1970, o funcionamento da economia do Recôncavo estava claramente marcado pelo perfil do sistema rodoviário, principalmente pela Br-324 e pela Br-101, junto com os efeitos progressivos do incremento do tráfego em seus principais centros sub-regionais: Feira de Santana, como centro externo mais próximo da região; e Santo Antonio de Jesus, como novo centro comercial articulador de sua parte sul central. Assim, o movimento de valorização e de desvalorização e terras passou a fazer-se como uma irradiação a partir das estradas, com o efeito contrário correspondente, de isolamento de todas aquelas localidades antes

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ligadas pelas vias aquáticas. Isso se vê, claramente, na forma de ocupação das margens da estrada de Santo Amaro a Cachoeira, que passou a atender o povoamento das áreas mais baixas desses dois municipios, chegando sua influência até a orla marinha.

A economia do Recôncavo ressentiu, especialmente, da falta de uma política integrada, portuária e de navegação, para a Baía de Todos os Santos. Apesar do incremento de operações em Aratu e no terminal de Madre de Deus, a falta de uma política capaz de aproveitar sistematicamente as vantagens portuárias e de tráfego nas enseadas, rios e lagamares, impede a retomada de atividades nos povoados e lugarejos, dificulta a mobilidade de pessoas e carga, impede o turismo local.

Assim, é fundamental reconhecer a fragmentação do Recôncavo numa pluralidade de zonas rurais e de zonas de influência urbana, que vem sendo continuamente reorganizada pela pressão da valorização da terra. A questão da propriedade fundiária e do acesso a água revela-se fundamental, nas estatísticas dos projetos oficiais, como do Projeto Integrado de Desenvolvimento Rural do Paraguaçu (PIDERP)xvi . Há um forte crescimento do número de minifúndios economicamente inviáveis, isto é, propriedades com menos de 5 ha , com um aumento proporcionalmente maior das propriedades de menos de 2 ha em todos os municípios do Baixo Paraguaçu. xvii Tal situação coincide com o aumento do número de propriedades com mais de 500 ha, principalmente em Santo Amaro e nas terras baixas de massapê, contrariando o mito de que essa terra argilosa seria economicamente pouco atrativa.

Recôncavo, estabelecimentos agro-pecuários , 1995 xviii

Estabelecimentos Área total

(ha)

Baixada litorânea 1.511 96.431

Subaé/Baixo Paraguaçu 5.719 83.377

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Tabuleiros litorâneos 12.369

81.949

Tabuleiros interioranos 11.831

250.946

Vale do Jequiriçá 10.364

154.941

Sertão/Catinga 1.119

55.601

Cafeeira 1.366

86.660

Total 44.279

815.805

------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Fonte, CAR, Perfil Regional Recôncavo Sul, Sal vador, 2000

No âmbito da produção capitalista organizada, os principais fatos são uma nova expansão da superfície plantada com bambú e com cana de açúcar, em grandes empreendimentos, substituindo área plantada com dendê. A permanência da produção primitiva, composta de pesca artesanal e extração vegetal e animal, é um fator decisivo na sustentação da população de baixa renda; e traça uma clara linha divisória entre a parte da economia da região, que opera articulada em mercado; e aquela outra que se mantém como um resultado de mecanismos que regulam, principalmente, as condições de sobrevivência dos mais pobres. É fundamental observar, que essa parte da sociedade do Recôncavo continua reproduzindo-se do mesmo modo, independentemente das transformações sociais e tecnológicas que acontecem em Salvador e em Feira de Santana.

A melhoria do transporte rodoviário aproximou as cidades do Recôncavo do mercado de Salvador, mas tornou-as mais vulneráveis às variações do emprego formal. Há inúmeras indicações, em estatísticas oficiais e depoimentos, de que as principais cidades do Recôncavo, assim como seus povoados, sofrem os efeitos da

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diminuição dos empregos formais no grande Salvador e no polo petroquímico de Camaçari.xix O aumento da pressão por emprego traduz-se no agravamento do sub-emprego rural; e as dificuldades de comunicação no campo dificultam que as pequenas propriedades absorvam mais trabalhadores. O resultado final tem sido a ampliação do espaço da informalidade na economia local e a perpetuação das baixas remunerações nos empregos ditos formais. Há claros sinais de que o comércio nas cidades do Recôncavo, mesmo nas mais prósperas como Santo Antonio pagam salários abaixo do salário mínimo.

À luz desses elementos, ao retomar uma visão em conjunto das transformações sociais determinadas pelo processo econômico, vê-se que o quadro geral da região é de agravamento de contradições entre as formas de produção e as formas de consumo, vendo-se que hoje a reprodução social no Recôncavo se faz mediante a incorporação de renda gerada em Salvador e na região metropolitana, mediante ganhos de seus moradores; mas não de renda gerada na própria região.

Sobressai que a estagnação prolongada é um ambiente social específico da economia, que gera seus próprios mecanismos de reprodução, que se identificam com as estratégias de formação da renda familiar, em que se combinam a busca de empregos regulares e a participação em atividades autônomas. As pessoas em idade de trabalhar, com poucas esperanças de emprego ou de garantia de ocupação, desenvolvem estratégias de formação de renda, em que o comércio e o governo são componentes fundamentais. A análise da reprodução social da economia passa, portanto, necessariamente, por uma explicação desses dois aspectos, compreendendo as vinculações entre emprego e organização do sistema político e entre ocupação e organização dos sistemas do comércio.

Distinguem-se a comercialização das mercadorias mundiais, ou que têm equivalência de preços, que são açúcar e fumo e a das mercadorias de uso regional e local, assim como as ligações entre as duas. Há uma clara diferenciação, entre os circuitos de trocas dos dois tipos de mercadorias, vendo-se ao mesmo tempo, que algumas mercadorias, como os cítricos podem funcionar, alternativamente nos

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dois âmbitos de comércio, segundo o nível de capitalização e a escala dos produtores, que lhes permite ser supridores de indústrias, vender a intermediários de porte, ou simplesmente vender a varejistas em mercados.. Em síntese a reprodução do sistema produtivo corresponde a uma reprodução das relações de classe, em que a posição dos grupos que dependem de trabalhar para sobreviver se torna mais frágil, porque a sustentação da taxa de salário depende de rendas mais incertas.

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4. A relação entre o capital e o trabalho

Preliminares

A relação entre capital e trabalho deve ser reconhecida aqui como m processo de apropriação de trabalho através do controle da força de trabalho, primeiro por meios compulsórios – a escravidão e seus desdobramentos - e depois por eliminação de alternativas de ocupação, com um recurso direto ao poder político. A substituição do sistema escravocrata por uma sociedade de trabalho contratado fez-se com o auxílio de novos mecanismos de controle social, que vão desde o controle ideológico do mercado de trabalho, onde há diferenças de oportunidade de renda por etnia e status até a definição de novos critérios seletivos para contratação de trabalhadores. Os sinais da sociedade escravista ficaram impregnados no mundo do trabalho, onde a fragilidade da posição dos trabalhadores favorece relações de poder que vão além das referencias de contrato de trabalho.

O movimento geral A relação geral entre capital e trabalho se materializa na região à

medida que os papeis dos representantes do capital e os dos trabalhadores se afirmam em relações contratuais concretas. A relação geral entre capital e trabalho é uma síntese de situações que têm seu próprio modo de mudar. É uma relação que passa por transformações que alternam aspectos positivos e negativos e em que a aparente liberdade de escolha dos trabalhadores tornou-se um mecanismo de controle passivo do capital sobre pessoas cuja falta de opções profissionais coloca na situação de terem que aceitar praticamente qualquer pagamento, já que sua desutilidade do tempo é menor que suas necessidades básicas de consumo. O tempo dos trabalhadores tem diferente significado socal, segundo eles participam da produção organizada pelo grande capital ou

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participam do mercado apenas através da comercialização do excedente físico que geram na pequena produção ou na esfera do extrativismo.

A formação de um mercado de trabalho local acontece em virtude

de uma procura de trabalhadores que se realiza na região e uma massa de salário que é obtida pela transferência de trabalhadores para outras regiões do estado. As transferências e os movimentos pendulares de trabalhadores têm o significado adicional de funcionarem como válvulas de escape dos trabalhadores da rigidez do problema de falta de oportunidades de emprego na região. Por isso, épreciso registrar que a desvalorização do tempo dos trabalhadores tornou-se o traço dominante do sistema produtivo na região, onde muitos trabalhadores têm tido que voltar às condições de vida da prquena produção baixa intensidade de capital, que seleciona produtos por terem baixo custo de produção antes que por diferenças de rentabilidade. Na formação do atual sistema de relações entre capital e trabalho no Recôncavo é preciso distingir os elementos de estabilidade e de mudança na região, segundo eles compreeendem aspectos da relação direta e da indireta entre capital e trabalho e segundo variaram e tendem a variar. Numa visão em retrospectiva histórica, destacam-se os seguintes aspectos das transformações do capital.

a. O sistema de relações econômicas, sociais e políticas que ficou, da sociedade pós-escravista, com a subsequente reorganização da produção agro-industrial e agro-pecuária, baseado em assalariamento com abundância de trabalhadores e de terras baratas, com pequeno componente de trabalho qualificado.

b. A permanência de uma ampla e complexa produção primitiva, com numerosa população que sobrevive de extração vegetal e animal, principalmente do mar e dos manguezais, com um componente de pequena produção rural , realizada para consumo familiar.

c. A introdução de um segmento de produção com mercado fora da região, gerador de uma demanda independente da renda formada em sua produção primária. Uma característica peculiar de uma região de

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comportamento reflexo como o Recôncavo é que a formação de sua renda depende de demanda de fora da região.

d. A integração do mercado de terras na região, como resultado da articulação rodoviária do país, destacando-se o favorecimento do Recôncavo em relação com as demais regiões do Estado da Bahia. Observa-se que em 1942 o Interventor Landulfo Almeida lançou em Santo Antonio de Jesus um plano rodoviário nacional. No padrão de urbanização que se instalou na região desde a década de 1980, há tendências que substituem o prestigio das cidades tradicionais das terras mais baixas pelas cidades dos tabuleiro – 100 a 150mts. de altitude – que são, exatamente., Santo Antonio e Cruz das Almas.

e. Uma modificação no estilo de participação do Estado na região, com ampliação de suas funções de fomento direto da produção, com maior participação do capital privado no planejamento dos setores em expansão. As funções do Estado na economia variaram nos planos federal e estadual, criando referências para a ação dos municípios, que sofre restrições financeiras cada vez maiores, rigidificadas pela Lei de responsabilidade Fiscal.

f. A criação de um grande número de postos de trabalho não qualificado em Salvador, na contratação precária da construção civil e na expansão do setor informal, com o aparecimento de novos mecanismos de inter-relação entre a criação de postos de trabalho no setor público estadual e no setor privado.

É um quadro de estruturação da economia em que se registra uma crescente diferenciação das condições de participação no mercado de trabalho e do lado do capital, com maiores diferenças entre as condições de assalariamento nos segmentos modernos da produção e com diferenças também maiores entre as condiç ões de organização da pequena empresa, incluindo todos aqueles empreendimentos em que não há uma divisão do trabalho significativa.

Desde o fim do século passado até o fim da segunda guerra mundial, não houve modificações significativas nas relações entre capital e trabalho, além daquelas indicadas pela reorganização da produção de açúcar e de fumo em bases assalariadas. Tanto essas agro-indústrias como a pecuária continuaram operando em condições de uma

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oferta quase ilimitada de trabalho, modificada apenas pelo fato de que um número crescente de pessoas engrossou as migrações inter-regionais. Mas a falta de crescimento do produto social e do número de empregos - que se repetiu em outras regiões do estado - fez com que o Recôncavo exibisse sempre uma oferta quase ilimitada de trabalhadores, o que permitiu que as empresas praticassem uma política de salários sumamente rígida, principalmente no meio rural.

A expansão da indústria a partir dos anos 50 significou uma mudança de base nas condições de criação de novos empregos, bem como a introdução de novos elementos no sistema de assalariamento, com a conseqüência final de atingir a renda real familiar daqueles que tinham acesso efetivo ao mercado de trabalho. Começaram a vigir requisitos de qualificação dos trabalhadores definidos pelos padrões de qualidade das industrias e já não mais pela qualidade do trabalho individual. Observa-se que o subemprego crônico agravado pela redução drástica da produção fumageira, fez com que a ocupação no Recôncavo fosse quase toda precária e incerta, diferente do padrão de assalariamento que se instalava no estado em seu conjunto.

A expansão do mercado formal de trabalho continuou sem maiores interrupções, ajudada pelas transferências de recursos federais para programas especiais de desenvolvimento, ligados à urbanização e aos mercados habitacionais das diversas cidades. Assim, entre 1967 e 1972 Salvador transformou-se num grande canteiro de obras, com efeitos de criação de emprego e no nível da ocupação na região metropolitana. Alémm disso, aumentou a entrada de trabalhadores de outros estados, assim como aumentou a massa de infra-estrutura urbana no eixo de Salvador a Camaçari, de modo irreversível.

Esses movimentos revelam um dos aspectos mais importantes do sistema escravista de produção, em que nele a reprodução do capital fez-se sem maior necessidade de uma qualificação progressiva dos trabalhadores, e mesmo com um mecanismo de formação de capital em que as necessidades de trabalho qualificado ficaram muito limitadas. Isso contrastou com a experiência do Sudeste e com os estados do sul, onde a entrada maciça de imigrantes acompanhou a expansão do mercado de trabalho. Aqui, em troca, o mercado para trabalhadores qualificados

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continuou a ser atendido principalmente por artesãos e pequenos produtores manufatureiros, sem maior acesso a participar da indústria têxtil nem em qualquer outra forma de mecanização. Assim, em Salvador e no Recôncavo, o treinamento de trabalhadores fez-se unicamente nos locais de trabalho e teve poucas oportunidades de melhorar, já havia opções para treinar.

Assim, os trabalhadores baianos não tiveram como acompanhar a renovação tecnológica, ficando tacitamente excluídos de qualquer experiência fabril diferente das iniciadas no último quarto do século XIX. A defasagem tecnológica correspondeu a uma brecha da qualificação e dos mecanismos de qualificação. A maior parte dos trabalhadores apenas teve acesso a treinamento para trabalhar em linhas de produção de bens de consumo e de serviços às famílias. Adicionalmente, a qualificação requerida pela reprodução do capital demandava poucos profissionais de carreiras técnicas, pelo que o sistema educativo continuou produzindo um elevado número de profissionais de nível superior , que ao se formarem não tinham esperança alguma de achar emprego na Bahia. Certamente, entre os novos postos de trabalho criados nas atividades de alta tecnologia, como no polo petroquímico e na agricultura irrigada, aumentou o númreo daqueles que foram preenchidos com profissionais de outras regiões, que jamais constituíram parte do mercado de trabalho para os profissionais locais.

Desse modo, com a expansão do capital em suas formas mais modernas, aprofundaram-se as diferenciações no mercado de trabalho, criando-se circuitos de contenção de trabalho não qualificado, onde a contratação de trabalhadores continuou fazendo-se tal como nas formas tradicionais de produção. xx A consequente segmentação do mercado de trabalho reflete, portanto, mudanças na composição do capital, que também correspondem à concentração do capital industrial e em alguns tipos de serviços que se tornam um argumento adicional para a compressão da renda dos trabalhadores, cujas possibilidades de aumento de salário é escassa ou nula.

Há, por tanto, uma diferença entre a expansão do mercado de trabalho e a mobilidade dos trabalhadores. As possibilidades de ascensão de renda pessoal e familiar, de mobilidade entre formas de emprego,

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portanto, de redução da precariedade do emprego, identificaram-se com a transferência dos trabalhadores entre circuitos de emprego. Com isso, introduziram-se modificações nas formas como o mercado de trabalho é alimentado pelo Estado, inclusive, como a atividade da esfera estatal gera treinamento de trabalhadores.

No Recôncavo, essas mudanças têm sido particularmente desiguais, acompanhando as desigualdades nas expansões e nas contrações do segmento moderno da economia, tais como nos movimentos de entrada e de saída de novas empresas nos distritos industriais, especialmente nos maiores, ou seja, no Centro Industrial de Aratu e no Centro Industrial do Subaé. Entre 1965 e 1995 quase todas as empresas que entraram nesses distritos se retiraram, ficando apenas as maiores e as mais recentes, configurando um quadro de concentração do capital e de virtual desaparecimento do segmento de metal-mecânica. Assim, os movimentos incidentais de criação de novos postos de trabalho não têm continuidade garantida, não havendo uma propagação de efeitos indiretos entre setores. A localização de novas unidades fabris não indica qualquer tipo de continuidade com os projetos anteriores e o perfil industrial de Feira de Santina fica ainda na espera de uma definição mais sólida de uma economia regional.

Os efeitos acumulados sobre o emprego têm sido, portanto, descontínuos, restritos a movimentos específicos de formação de capital restritos no tempo, pelo que o multiplicador de emprego está regulado por oportunidades de contratação de trabalhadores, antes mesmo de especificações da contratação, tais como condições de educação e treinamento e proximidade dos locais de trabalho.

A informalidade

A falta de emprego e os processos de exclusão que atingem a maior parte do interior da Bahia revestem-se de maior gravidade nas regiões de maior densidade demográfica, de que o Recôncavo é exemplo. O significado social da falta de emprego é um mercado de trabalho de baixos salários e de grande incerteza de renda, em que os trabalhadores são compelidos a aceitar essa remuneração insuficiente ou a emigrar. Os novos postos de trabalho que são criados na agricultura, no comércio e

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nas manufaturas são todos de baixa remuneração e sem perspectivas de aumento de salários. Os investidores operam em condições de vantagens monopolísticas no mercado de trabalho.

Nessas condições, a informalidade é um componente essencial do sistema produtivo no Recôncavo, onde grande parte dos empreendimentos procura alcançar uma rentabilidade substancial mediante a prática de salários abaixo do mínimo e onde ramos de atividade regionalmente importantes, tais como a fabricação de fogos de artifício e a de licores, são realizadas em sua quase totalidade no mercado informal. Em outras atividades tradicionais, tais como a produção de alimentos e de vestuário na esfera da pequena produção, quase tudo é produzido na esfera da informalidade, desenvolvendo-se novos mecanismos de circulação dos trabalhadores entre a esfera da informalidade e a do mercado formalizado de trabalho.

A realidade do mercado de trabalho na região é de um universo de composição dos circuitos informais e dos formais de atividade, em que a mobilidade dos trabalhadores consiste em circularem entre essas duas esferas e de combinarem soluções de moradia com movimentos entre empregos na região em seu conjunto. A grande limitação do mercado de trabalho consiste na saturação do mercado informal, que indica uma limitação praticamente insuperável da renda familiar. A informalidade deixa de ser vista como uma situação alterna à do mercado formalizado de trabalo, tornando-se o principal modo de organização do trabalho e uma estratégia de renda assumida pela maior parte da sociedade .

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5. A urbanização Nesta análise as cidades contam como sujeitos territoriais de

processos de poder econômico e político e como centros de atividade que têm certa funcionalidade na composição do sistema socioprodutivo. Por isso, interessa explicar o processo social da urbanização e não o processo físico do urbanismo. Interessa ver os papéis das cidades como e enquanto integrantes de um sistema do capital internacionalizado e não como centros inseridos numa hierarquia de tamanho demográfico, menos ainda como expressões locais de atividade. Considera-se a urbanização como uma resposta de modos de vida de determinados sistemas produtivos, que dão lugar a formas de cidade compatíveis com economia e cultura (Munford, 1961) que, por isso, ganham e perdem funcionalidade. Por isso, a reprodução das cidades muda de significado ao longo do tempo, mesmo quando sua forma pareça invariável.

Com esse programa de estudo como referência, entende-se que o Recôncavo é a região mais urbanizada da Bahia, mas que sua rede de cidades reflete a irregularidade das transformações da região ao longo do tempo, com um envelhecimento e depreciação das cidades da metade sul e o crescimento e ascendência das cidades da metade norte. O contraste extremo entre Camaçari no norte e Cachoeira no sul. São dois aspectos a considerar: as variações da população urbana e as funções regionais desempenhadas pelas cidades. Na apreciação do significado social e econômico da urbanização distinguem-se a qualidade da vida urbana e a capacidade de produção representada pelas cidades. Ambos os aspectos mudam ao longo do tempo, dando lugar a processos de urbanização positiva, quando há melhoria na qualidade da vida respaldadas por modificações na capacidade de produção; e há urbanização negativa quando a qualidade da vida é prejudicada por um deterioramento ou por perdas na capacidade produtiva.

Num primeiro momento a urbanização mostrou as diferenças que se acumularam entre a metade norte e a metade sul da região e num segundo momento passou a revelar as desigualdades que se formaram em cada uma dessas duas partes, onde a metade norte, onde mais aumenta a população e onde se encontra Camaçari, que é o município onde se

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concentram as desigualdades. Esse processo se desenvolveu desde a constituição do Centro Industrial de Aratu e a subseqüente instalação do Complexo Petroquímico de Camnaçari, mas as alterações no quadro relativo de crescimento das cidades enuncia mudanças mais profundasno modo de formação das cidades, entre cidades habitadas por moradores permanentes e cidades que abrigam migrantes. No entanto, essas alterações na composição do sistema de cidades denotam processos muito mais complexos que as contradições entre urbanização e urbanismo, que se remetem à polaridade entre a consolidação de modos culturais urbanos e dissolução de pautas de relacionamento determinadas pela fragilidade da formação de renda. A cultura urbana ganha um significado restritivo, quando se distancia de tudo que é novo e se afirma como mera defesa de modos passados de vida.

No Recôncavo essas referências devem ser avaliadas considerando-se que há um processo de urbanização negativa, que resulta do declínio da velha economia monocultora e manufatureira, que é concomitante com uma urbanização desigual das áeas afetadas pelo novo modelo industrial e de turismo xxi , que afeta a parte norte da região. O que se entende como urbanização negativa é uma perda relativa de qualidade de vida, que compreende bem estar atual e perspectivas de renda futura. Os aspectos negativos da urbanização aparecem sob diferentes formas nas cidades envelhecidas do Recôncavo sul e nas novas cidades do Recôncavo norte, onde os atrativos de perspectivas de emprego continuam fazendo aumentar o número dos desempregados. Nesse sentido, encontra-se hoje urbanização negativa mesmo nos municípios mais ricos, que são Camaçari e São Francisco do Conde, respectivamente, onde há uma urbanização de empreendimentos de alto padrão superados em número pela favelização; e onde o aumento da despesa pública não altera a concentração de população economicamente excluída.

Reconcavo, taxa de urbanização de alguns municípios selecionados, 1999 ---------------------------------------------------------------------------------------------------

Cachoeira 51,05 Cruz das Almas 67,12

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Maragogipe 57,97 Santo Amaro 75,34 Santo Antonio de Jesus 83,94 São Felix 57,87 ----------------------------------------------------------------------------------------------

Fonte, CAR, 1999. Por isso, longe de ser um movimento que se alimenta do meio

rural e de cidades pequenas, a urbanização surge como um saldo de uma variedade de movimentos, onde a magnitude da população das cidades diz pouco quando é comparada com as tendências da formação dos sistemas de infra-estrutura urbana ou centros de prestação de serviços. A carência de serviços de utilidade pública e de serviços para consumo público em geral tem sido uma marca do Reconcavo. O único programa que se contrapõe à perda de capital social das cidades da região é o programa Bahia Azul, que passou a ser criticado por prejudicar os sistemas aquáticos.

Esta abordagem leva, primeiro, a ressaltar as diferenças entre cidades que ganham e que perdem funcionalidade perante a formação de capital em curso, tal como são, precisamente, as cidades do velho Recôncavo sul; e cidades que vivem as tensões de uma relação desigual com a nova formação de capital. As cidades do Recôncavo sul vivem uma prostração urbana, com uma desvalorização generalizadas dos seus ativos de patrimônio, enquanto as cidades da metade norte vivem novas condições de tensão.

Adiante, a análise da urbanização revela diferentes processos de conflito e ajuste entre grupos de trabalhadores – qualificados, semi-qualificados e trabalhadores braçais – que ocupam postos de trabalho relativamente estáveis e outros que são objeto das flutuações mais acentuadas da ocupação. No transcorrer do último quarto do século XX a incerteza do emprego modificou completamente o panorama da renda familiar dos trabalhadores no Recôncavo, onde a criação de novos postos de trabalho representa, majoritariamente, oportunidades de ocupação para trabalhadores que vêm de outras regiões e onde aumenta a participação relativa a aposentadorias e pensões na composição da renda da maioria e na determinação da demanda na região. Esse processo

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resulta em depreciação e mudança nos padrões de uso dos imóveis, onde a recuperação passa a depender de projetos públicos de restauração. O ambiente urbano onde a restauração predomina como objetivo e não apenas como conseqüência de renovação de usos é, por definição, um ambiente de decadência.

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6. A industrialização A industrialização é o movimento geral de expansão da

transformação mecanizada de bens materiais, que compreende, desde a mecanização da produção de mercadorias tradicionais até a produção de alta tecnologia na química orgânica e na inorgânica. Assim, a industrialização significa um aprofundamento da mecanização da indústria de transformação, tanto como a extensão de procedimentos industriais a outros setores tais como a agricultura e a mineração. Compreende os aspectos diretos da transformação dos produtos e os aspectos indiretos de modificações na organização da social da produção, que estão ligados aos fundamentos comerciais da produção.

Neste sentido amplo, a industrialização é o principal fundamento das transformações da economia do Reconcavo, desde a mecanização da produção de açúcar no século XIX até a formação do parque petroquímico e automotor e a nova modernização da produção açucareira. Compreende movimentos contínuos e descontínuos, progressivos e regressivos, que se realizam segundo as seqüências de investimentos incorporam os progressos da tecnologia e se adaptam às condições prevalecentes de comercialização.

A industrialização no Reconcavo desdobra-se em cinco fases desde o século XIX aos nossos dias. A primeira fase correspondeu à mecanização da produção de açúcar com os engenhos centrais e à aplicação de capitais oriundos do tráfico de escravos na indústria têxtil. Teve efeitos colaterais no início de um setor metalúrgico e na mecanização dos transportes, primeiro com a Companhia de Navegação Bahiana e depois com as ferrovias.

A segunda fase foi de formação de um parque industrial de bens de

consumo diversificado - sapatos, cristaleria, bebidas e outros – mas que não teve condições financeiras e técnicas para sobreviver à integração do mercado nacional liderada por São Paulo. Ressalta que essas indústrias sobreviveram ao fim da Segunda Guerra Mundial, que seu ocaso coincidiu

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com o de muitas pequenas indústrias no Nordeste, de Sergipe ao Maranhão, que foi um movimento que nada teve a ver com a crise de começo do século, atribuível à especulação financeira da política de Ruy Barbosa.

A terceira fase foi de criação de um parque industrial articulado

por um pólo de crescimento em Aratuxxii , com a capacidade de induzir um amplo leque de investimentos, desde a combinação com a produção petroleira até indústrias de bens de consumo. Foi a tentativa empreendida no contexto do Plano de Desenvolvimento Econômico e Social da Bahia, 1960-1963 (PLANDEB), com a capacidade de induzir um amplo leque de investimentos, desde a combinação com a produção petroleira até indústrias de bens de consumo. Foi uma tentativa de consolidar um estilo de planejamento estadual que foi interrompida pelo golpe de Estado em 1964, quando esse projeto foi substituído por uma política de atração indiscriminada de empresas. A internalização dos efeitos de polarização foi substituída por simples economias de aglomeração de conjuntos de empresas que não permaneceram nessa localização. Essa concentração de empresas desfez-se com a retração dos investimentos do setor petroleiro e com a saída de muitas empresas do pólo de Camaçari. Em seu lado positivo, desse movimento derivaram diversos outros investimentos, diversificando o setor e desenvolvendo ligações entre indústrias que não dependem de petróleo. Alugmas vantagens iniciais do pólo no mercado nacional se diluíram e o modelo tripartite inicial deu lugar a uma concentração e a um perfil globalizado do parque industrial, que hoje coincide com uma retomada dos investimentos da Petrobrás.

Na virada do século XXI surge uma quinta fase da industrialização, que se define como de maior concentração de capital com um perfil de desempenho tecnológico mais avançado. É parte de um movimento de concentração de capital que se torna especialmente claro na indústria polarizada, em que a petroquímica ficou em mãos de um único grupo empresarial e em que se consolidaram outros três grandes grupos na indústria química e em biotecnologia. A nova etapa da industrialização concentrada torna mais evidente a diferença entre o que pode ser

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considerado como projeto industrial do grande capital, instalado em Camaçari, agora complementando-se com uma nova onda de investimentos internacionais em turismo, e as condições do sistema produtivo do Recôncavo, em que todas as opções de investimento correspondem a patamares muito inferiores de tecnologia. Por isso, a industrialização é uma questão em aberto no Recôncavo, onde os possíveis desenvolvimentos da produção industrial não necessariamente são nem podem ser contínuos com o que foi realizado até agora.

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7. A organização social e técnica da produção Na trajetória da formação do sistema sócio-produtivo no Recôncavo

desde a dissolução da produção escravista há duas rupturas claras na acumulação de capital, em que a primeira foi conduzida pela recolocação dos capitais oriundos da própria produção escravista e a segunda se fez com recursos colocados ou induzidos pela produção petroleira. Ao longo desses dois movimentos houve efeitos significativos na formação de um mercado de trabalho, assim como houve movimentos de desorganização desse mercado de trabalho, que estão no fundamento da estagnação da economia da região.

Na primeira dessas duas etapas há uma peculiaridade de expansão da ocupação nas manufaturas quase artesanais e no emprego industrial, enquanto na segunda etapa a retração do emprego total vem acompanhada de uma substituição de participação na produção industrial por produção informal de mercadorias que chega até o mercado de produção para exportação, tal como são os casos da produção de fogos de artifício, de instrumentos musicais etc.. A originalidade desse processo decorreu de que a ocupação na esfera artesanal avançasse junto com o emprego industrial, correspondesse a uma contração generalizada da renda dos trabalhadores e em que surgisse novo perfil de empreendimentos, girando em torno do horizonte de comercialização da produção.

Cruzam-se diferentes circuitos de comercialização e o conjunto é acionado pelas redes de comercialização do grande capital, que hoje são as do açúcar e da nova produção primária. Cabe entender que a comercialização da produção tornou-se a chave da continuidade dessa combinação de estagnação e atividades novas.

Na nova economia do Recôncavo, que surge de atividades da Petrobrás, que já é parte de uma estratégia internacional da Petrobrás e não depende dos rumos do complexo de Camaçari, distinguem-se os negócios, tais como a carcinocultura e a produção fumageira, que operam

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com referencias internacionais, e a produção de mercadorias de baixo valor agregado, que funcionam com referencias de mercado local. A região surge como um espaço econômico não integrado no plano do capital e como um espaço de contenção de um exército de reserva de trabalhadores que se reproduz na esfera da produção local em que predomina a informalidade.

Um aspecto dominante no cenário da região é o retraimento do assalariamento em frentes de trabalho urbanas que aconteceu na esteira dos resultados economicos indiretos da Primeira Guerra Mundial. Esse fenômeno foi parte de uma tendência negativa muito mais ampla, que atingiu a economia baiana na Primeira República e que frustrou o primeiro movimento de industrialização do estado. É um movimento complexo que liga o fracasso da industrialização ao desempenho da agricultura, que deixou a economia baiana em dependência quase completa das receitas obtidas da exportação de cacau para sobreviver. Com o fluxo e refluxo das atividades da esfera da transformação industrial, a região do Recôncavo passou a colecionar combinações variadas de atividades capitalistas e pré capitalistas, com componentes de trabalho assalariado e de trabalho da esfera da reprodução para subsistência. Porisso, mesmo nos movimentos de decadência a região tornou-se, progressivamente, mais complexa.

Com estes antecedentes, pode-se afirmar que sempre houve muita simplificação na denominação das formas de organização da produção no Brasil em geral e especialmente nas regiões que alcançaram uma participação significativa na formação da economia brasileira em seu conjunto. Essa simplificação foi em boa parte determinada por preconceitos na compreensão dessas regiões, que entraram para o imaginário da sociedade local como espaços imunes a mudança, ou em todo caso, como espaços sociais que não produziram mudança. Isso como se a sociedade escravista e a sociedade pós escravista não estivessem sujeitas mudanças nas relações de trabalho entre a esfera de produção de valores de uso e a esfera de produção de valores de troca. Essa simplificação atingiu o Recôncavo, a Zona da Mata em Pernambuco e o Maranhão. No relativo ao Recôncavo, os prejuízos causados por essa simplificação foram maiores, porque a interação entre a organização

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social e o perfil tecnológico da produção compreenderam diferentes experiências com a industrialização, que deixaram a falsa impressão de que esta região é subdesenvolvida porque não se industrializou e não porque a estrutura fundiária – com o correspondente controle da água – não fosse um impedimento da modernização. A hipótese a que se chega a partir da leitura dos sucessos da economia baiana desde o fim do tráfico negreiro é exatamente o contrário. Esta foi uma das primeiras regiões do Brasil a mecanizarem a produção agrícola e a primeira a ter indústrias em setores da produção complementares mas diferentes de seu principal setor exportador.

Nossa hipótese é que a causa do marasmo deve ser procurada fora do setor produtivo, na comercialização da produção de mercadorias, com seus diferentes circuitos de financiamento e com sua tecnologia. A comercialização se organiza em circuitos de trocas que partem das demandas de mercdorias para atender o mercado organizado e são recebidas como indicações pelos produtores agrícolas, cujas margens de decisão sobre seus próprios planos de cultivo são muito pequenas.

Observe-se que esta região funcionou antes com um sistema de financiamento integrado com a comercialização e operando com uma procura internacional controlada pelo mesmo sistema exportador. Para continuar com esta anállise é preciso retornar a uma visão internacional do sistema de comercialização.

A interrupção do tráfico de escravos significou na realidade que os capitais organizados na economia baiana precisavam se adaptar ao novo mercantilismo controlado pela Inglaterra, que aparecia através de práticas de padronização de mercadorias que lhes facilitavam o controle do mercado do chá. A questão é que o mercado mundial veio operando com controles crescentes de qualidade, ligados à determinação dos preços. Aumenta a distância entre os produtores articulados nos sistemas internacionais de comercialização e os que coninuaram operando fora dessas redes. Não é por acaso que o poderio britânico assentou-se no controle do comércio e que havia interesses diferenciados para aqueles que produziam matérias primas para as indústrias inglesas e aqueles outros onde havia espaço para alguns investimentos ingleses, mas que não eram funcionais a sua economia. A anglofilia de figuras tais como

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Luiz Tarquínio e Delmiro Gouveia não obscurecia o fato de que a jovem indústria nordestina era uma concorrente com as indústrias inglesas. O espaço internacional aberto à economia baiana era o da Alemanha e não o da Inglaterra, cujo interesse estava focalizado no sul do Brasil.

Nas condições atuais, o que rege a região é a lógica da comercialização dos produtos internacionalizados e a economia local fica restrita por sua comercialização artesanal.

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7. .O petróleo e a industria petroleira Desde que foi encontrado em quantidades industrialmente

relevantes, o petróleo mudou os destinos da região do Recôncavo, modificou as condições do povoamento e definiu novas opções de formação de capital, de emprego, além de alterar o balanço de poder político. São três grandes etapas do desenvolvimento do setor petroleiro desde 1955, que correspondem a diferentes situações estratégicas desse setor no plano mundial e em sua correspondência no plano nacional. Com o petróleo o Recôncavo voltou a ser parte de um empreendimento de escala mundial e voltou a ter o mercado de trabalho atrelado a uma transformação do sistema produtivo externamente decidida. Distingue-se uma primeira etapa desde a implantação da Refinaria Landulfo Alves (RLAN) até o início do parque industrial derivado do petróleo em 1976. Essa primeira etapa compreendeu uma intensa atividade de pesquisa e lavra de petróleo, com importantes resultados próprios na reorganização da economia da região. Uma segunda etapa que corresponde à primeira fase do complexo industrial de Camaçari, que também determina o perfil de um parque metalmecânico, principalmente no Centro Industrial de Aratu (CIA). Essa segunda etapa coincidiu com o descobrimento dos grandes campos de petróleo do Rio de Janeiro e com uma conseqüente paralização da pesquisqa e lavra na Bahia. A segunda etapa, de 1985 a 1990, também corresopnde a uma reforma do Pólo Petroquímico, em que houve uma ampliação da capacidade de produção com concentração de capital e queda do emprego. Uma terceira etapa que caracteriza a retomada da exploração de petróleo e a realização de novos investimentos na região, onde a expansão da capacidade de refino de petróleo coincide com uma modificação das políticas de preços, tanto de gás cmo de energia elétrica, levando as empresas localizadas na região a substituírem suas vendas com preços subsidiados à indústria brasileira, por vendas no mercado internacional em condições competitivas.

Em seus aspectos técnicos propriamente ditos, o desenvolvimento do setor petroleiro passa por modificações profundas, devidas à tecnologia da produção submarina e à revolução mundial dos transportes que aconteceu desde o início dos anos 70, que modificou a logística do

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petróleo, com a entrada dos grandes navios petroleiros. Na estratégia de produção nacional da Petrobrás o Recôncavo passa a uma posição residual, que só se sustentaria pelo compromisso representado pela indústria petroquímica. No entanto, esse quadro estaria comprometido pelo envelhecimento tecnológico do parque industrial do complexo de Camaçari, que já era um fato consumado no início dos 80.

Os problemas tecnológicos são concomitantes com problemas de gestão, de que há muitos indícios de diferentes tipos, desde a administração de várias das empresas do conjunto como problemas de saúde dos trabalhadores. Têm surgido muitos indícios de administração desastrosa de muitas empresas do conjunto, sobrecarregadas com uma burocracia politicamente escolhida e impregadas com procedimentos discricionários, com graves sinais de incompetência e corrupção, tanto em fábricas como em serviços de apoio.

De modo colateral às práticas criticadas de gestão e às manobras de uso indevido de informações privilegiadas, somaram-se complexos problemas ambientais, desde perfuração incontrolada de poços artesianos, manejo inadequado de efluentes e contaminação de águas superficiais e subterrâneas. O comprometimento do acuífero na região de Camaçari é um fato inquestionável e pairam sérias dúvidas sobre as conseqüências a longo prazo desse processo. Observe-se que o emissário submarino para retirada de efluentes só foi habilitado por volta de 1990 e que se acumularam efeitos da contaminação do solo e do subsolo desde 1976, que dificilmente podem ser avaliados.

No relativo aos efeitos da indústria do petróleo na região cabe distinguir quatro tipos de efeitos, que são, respectivamente:

a. Variações de valor nos ativos e na mercantilização das terras. A exploração de petróleo entrou numa região onde as terras se desvalorizavam por falta de empreendimentos capazes de mobilizar tecnologias adequadas para gerar lucro nas condições prevalecentes de mercado.xxiii

b. Criação de um novo mercado de trabalho qualificado, superando as condições de qualificação artesanal do ambiente de trabalho tradicional (Costa Pinto, 1958). A noção de qualificação mudou, tornando-se parte de uma visão de especialização funcional às novas

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necessidades do capital. A versatilidade do trabalhador, que continua sendo necessária para a pequena produção agrícola e para os serviços urbanos em cidades do interior perdeu sentido na nova urbanização do grande capital.

c. Abertura de um novo espaço de mercado ligado ao tratamento dos impactos ambientais dos investimentos novos. O crescimento da produção tem estado acompanhado de novos impactos negativos no ambiente físico, que por sua vez atingem o ambiente social, tal como acontece com os problemas de poluição dos manguezais, de poluição aquática causada pela carcinocultura, com efeitos finais negativos nas atividades da produção artesanal de crustáceos.

d. Um novo desenho de relações entre as esferas do poder público. Tornaram-se imperativas novas formas de cooperação entre os poderes estadual e municipais.

A questão da Baía de Todos os Santos. A Baía de Todos os Santos

(BTS) é um fenômeno geográfico especial, por sua extensão, por suas características geológicas e pelo modo como sua reprodução está marcada pelos processos das bacias que a alimentam. O ambiente aquático de pouca profundidade, atravessado por movimentos hídricos de baixa velocidade, está sujeito a impactos que podem modifica-lo de modo irreversível. No entanto, há cinqüenta anos a BTS tem sido submetida a uma pressão ambiental constante, pela produção de petróleo e pelo transporte de combustíveis, onde acontecem acidentes de magnitude.

As características físicas da Baía fazem com que aqui haja problemas ambientais da reprodução natural do ambiente, que são continuamente ameaçados pela atividade petroleira, por filtrações, lavagem de navios e outras práticas que têm efeitos

Coloca-se uma nova questão relativa aos usos de recursos públicos conseqüentes da incapacidade dos municípios receptores de direitos de petróleo, para realizarem despesas compatíveis com as suas novas condições de participação no mercado. Há inúmeros indícios de uso inadequado de recursos por parte dos municípios beneficiados, que compromete as alternativas de desenvolvimento na região.

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Dadas as variações do ritmo de investimentos e as modificações nas relações de produção com o refino e com as seguintes etapas industriais, é preciso rever o significado da indústria do petróleo para a região. Para essa finalidade, é preciso considerar pelo menos três aspectos. Primeiro, os efeitos diretos e indiretos das despesas no setor petroleiro para a determinação do produto e da renda na região em seu conjunto, tmando em conta que a região de fato da indústria do petróleo tem variado, seguindo os resultados positivos da pesquisa do minério e entendendo que o segmento industrial propriamente dito representa uma capacidade instalada que opera com minério vindo de fora e que petróleo produzido aqui vai ser processado em outros lugares. Segundo, é preciso avaliar quais são as perspectivas de expansão do setor e qual pode ser seu papel na formação da renda e do emprego na Bahia em geral e no Recôncavo em particular. Nesse aspecto há uma variável exógena que é a disponibilidade de reservas para exploração.

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8. Os processos do ambiente Na análise de regiões é preciso ver o ambiente como um campo

de processos que se sobrepõem num mesmo espaço e que dão lugar a progressões na transformação do meio físico, as quais se exprimem em termos de habitabilidade atual e futura e em perspectivas de vida futura. Os processos do ambiente não são necessariamente visíveis, já que, tanto o desgaste dos sistemas como a acumulação da contaminação surgem de modo progressivo. Alguns de seus aspectos são facilmente visíveis, enquanto outros só se vêm quando essa acumulação de efeitos gera alterações bruscas, tal como acontece com a degradação de reservas de água. Para fins práticos, os processos do ambiente são postas em marcha por processos sociais organizados em função de objetivos econômicos que têm efeitos materiais. A questão ambiental numa região surge da relação entre essas opções físicas e as condições de vida.

Dadas as condições em que se formou o sistema produtivo na região do Recôncavo e em que se configuraram as novas grandes intervenções na região e em seus entornos, no setor petroleiro, na produção açucareira, na carcinocultura e na extração mineral, cabe considerar que se trata de um sistema econômico e social regional estruturado em dois patamares, complementares mas claramente separados, que são os do grande capital e da pequena produção, em que a expressão grande capital abrange empreendimentos de grande e de pequeno porte comandados por grandes interesses e em que a pequena produção compreende uma reprodução e ampliação de atividades informais. Essa condição da economia regional traduz-se no perfil do povoamento e na relação da sociedade com o meio físico. A análise social do ambiente refere-se ao meio físico antes que ao meio natural, por tomar em conta as transformações causadas pela vida social como parte integrante do ambiente. Sobre esse pano de fundo colocam-se as intervenções de obras públicas, em que a mais importante, mas não a única, é a represa de Pedra do Cavalo, que representa o conjunto das intervenções no Rio Paraguaçu, que aumentaram águas acima com as barragens de Apertado e Bandeira de Mello.

Desse modo, distinguiremos os efeitos da reprodução da vida social de baixa capitalização, que tem efeitos localizados e proporcionais ao

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número de pessoas; e os efeitos da explorações capitalistas, que são diretamente proporcionais à intensidade do capital aplicado e que tendem a ser inversamente proporcionais ao número de pessoas ocupadas. O modo de evolução da produção capitalista no Recôncavo teve sempre um componente predominante de monocultura, que significou um padrão de desmatamento e de usos de água e que, por conta de um estilo de economia tradicional.

Numa visão a futuro do problema, é preciso considerar como interagem os processos do ambiente do grande e do pequeno capital, a curto e a longo prazo, com suas propensões a prejudicar a reprodução do ambiente natural. Basicamente, as novas atividades são mais depredadoras que as anteriores, mas o principal é ver como elas se combinam ou como formam pressões sobre determinados componentes do ambiente. O setor petroleiro representa o maior risco da reprodução do ambiente e cria novas possibilidades de incidentes de difícil superação. A ele somam-se outros elementos, que incidem de modo contínuo e crescente e que estão ligados a problemas localizados de contaminação de solo e subsolo, tal como no caso da poluição de chumbo em Santo Amaro e que não foram tratados, ao lado de situações causadas por intervenções inadequadas, que em seu conjunto constituem elementos cumulativos de risco. Em síntese, como a incidência de eventos comprometedores da reprodução do ambiente físico e do ambiente social é incontrolável e responde a fatores parcialmente previsíveis mas geralmente inevitáveis, entende-se que uma leitura atual desse tema leva a ver a questão ambiental como um problema de incerteza.

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9. Organização da produção e perfil tecnológico A história do uso de tecnologia não pode ser separada das

condições sociais dos diversos usos de tecnologia. Encontram-se trajetórias de absorção, adaptação e uso de tecnologia no ambiente escravista, no pós escravista e no moderno subalterno, que correspondem a expressões específicas na grande e na pequena produção agrícola, na indústria e nas tecnologias ligadas à produção de valor de uso, isto é, vinculadas à esfera doméstica. Paralelamente, numa perspectiva histórica, também se vêm as mudanças técnicas que acontecem em setores de atividade específicos, tal como se podem ver na indústria naval, nas lavouras, na pecuária e no comércio. Logicamente, os movimentos da tecnologia estão ligados a estímulos de renda, que aparecem através de perspectivas de mercado. Assim como só se avança na divisão do trabalho quando há perspectivas de lucro que justifiquem esse controle adicional do trabalho, também só há estímulo para aperfeiçoamento tecnológico quando os resultados físicos da produção se traduzem em incrementos convincentes de renda. E as expectativas de renda têm diferentes significados segundo se dão as perspectivas de taxa de lucro vigentes em cada caso. Por isso, os movimentos da tecnologia devem esr avaliados segundo seu papel na reprodução do capital.

Na trajetória da formação do sistema produtivo do Recôncavo há diferentes trajetórias da tecnologia, em que os padrões tecnológicos locais foram sempre combinações de padrões compatíveis com o mercado, mesmo quando não foram líderes, com padrões tecnológicos e organizacionais que pertencem à esfera de produção de valores de uso. Como o emprego na produção de mercadorias foi quase sempre menor que a força de trabalho demandando ocupação – à exceção da produção fumageira – uma grande parte da força de trabalho continuou se reproduzindo em atividades - pesca, lavouras, fruticultura – que se realizam aos padrões técnicos mais baixos, que foram os da produção para subsistência dos ex escravos. A produção de azeite de dendê – representativa dessa economia do consumo doméstico – continuou fazendo-se pelo método chamado de rodão, que é uma variante da velha

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moenda, apenas melhor que o pilão, que continuou sendo usado.xxiv No entanto, longe de que essa persistência de técnicas anteriores à mecanização seja tomada como um comportamento irracional dos pequenos produtores, convém lembrar que eles usam técnicas compatíveis com a racionalidade do uso do trabalho nessa produção de bens de uso, que apenas participa do mercado modo complementar.

Assim, diferentemente de regiões em que há continuidade no mercado de trabalho, isto é, em que há mobilidade social, caracterizou-se no Recôncavo uma insuficiência do mercado de trabalho que favorece a segmentação tecnológica e a perpetuação de elevadas proporções de desemprego, com numerosos grupos mantidos à margem do sistema produtivo, sobrevivendo de aposentadorias e pensões. A aposentadoria rural veio cobrir uma lacuna fundamental de penúria rural, mas o fundamento do problema de uma relação negativa entre desemprego e carência familiar de renda descreve a incapacidade do sistema produtivo na região para absorver população inativa.

A entrada de novos empreendimentos da esfera de valor de troca até agora não foi suficiente para mudar esse quadro, ou trouxe novos modos de perpetuá-lo. Em todo o Recôncavo, inclusive naqueles municípios enriquecidos com royalties e mpostos de multinacionais, como São Francisco do Conde e Camaçari, há um contraste entre os requisitos técnicos dos novos postos de trabalho e a qualificação dos trabalhadores locais. Segundo as informações de Camaçari, de cada cem novas vagas menos de dez são preenchidas com trabalhadores locais. Esse quadro é ainda mais grave no Recôncavo sul, significando que a criação de novos postos de trabalho é preenchida mediante entrada de trabalhadores qualificados de outras regiões que tampouco dispendem sua renda nesta região.

A revisão da relação geral entre os movimentos da organização social da produção e os da tecnologia mostra que a região foi, repetidamente, prejudicada pela incapacidade do sistema produtivo de sustentar continuidade em sua capacidade de encontrar respostas tecnológicas suficientes para se manter em condições de concorrer no mercado. A recorrência desse problema sugere que a resposta aos problemas de falta de continuidade deve ser procurada nos movimentos

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do capital em seu conjunto, com seus horizones de opções entre investimentos, e não em problemas setoriais da agricultura ou da indústria. Trata-se da diferença entre as soluções dadas pelo grande e pelo pequeno capital para os problemas de financiamento e de tecnologia. Do lado do grande capital, tal como tem sido visto na nova produção açucareira, na avicultura, há uma intensificação da mecanização, resultando em alguns novos empregos qualificados, mas reduzindo o efeito emprego final dos investimentos. Do lado do pequeno capital há uma expansão de atividades produtivas informais, na produção de alimentos e bebidas, nas atividades ao lazer, na operação do turismo de renda pequena e média.

O distanciamento entre o grande e o pequeno capital muda de escala e de complexidade, principalmente em função da comercialização da produção, que representa uma diferença decisiva entre operações restritas a mercado local e operações que têm acesso a mercado internacional. Enquanto a produção açucareira, a de crustáceos e a avícola exportam, a produção artesanal de licores fica confinada ao mercado local e à demanda de turistas de média e de baixa renda. A contradição converge num padrão de acumulação de capital que reproduz o marasmo da região para a maioria de seus moradores e desenha um novo perfil de subalternidade para a economia da região como um todo.

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10. Pós escrito Os estudos regionais terminam por mostrar o que não pretenderam

revelar, ou por deixarem vir à tona os elementos contraditórios que subjazem nos processos técnicos da modernização. A vida social afirma uma presença que ultrapassa os termos da análise formal do espaço. A expressividade da análise regional tem sido obstreuida por um viés descritivo que, na verdade, desvia a atenção da organização social e dos interesses que são parte dela. Os novos fluxos de dinheiro que chegam ao Recôncavo definem duas grandes linhas de interesse, que estão representadas nas relações entre Estado e interesses privados e entre grande capital e interesses locais. A saída do marasmo veio através da chegada da Petrobrás e dos novos interesses em explorações de grande escala – cana de açúcar, carcinocultura etc – que representam uma formação de renda de baixo efeito emprego e um aprofundamento da separação entre a formação da taxa de lucro e a formação da taxa de salário.

Sobre o pano de fundo desses movimentos superficialmente simples, há uma crescente complexidade de um mercado de trabalho insuficiente para absorver a força de trabalho da região e, especialmente, para fechar a brecha entre os requisitos de qualificação dos trabalhadores e a formação de trabalho qualificado.

A leitura da experiência dos problemas de desenvolvimento da região do Recôncavo leva a rever algumas das teses hoje em voga sobre as transformações das economias que não conseguem superar os problemas de atraso e de desemprego crônico. A região pobre é pobre porque é empobrecida pela saída do capital que gera e porque não desenvolve novos mecanismos de fixação da formação de capital. Assim como a propriedade da água e da terra são de interesses situados fora da região e que não se identificam com os interesses da sociedade local, a formação de capital se separa da reprodução do sistema produtivo local. Se reconhecemos que esta região sempre foi parte de um sistema internacional de relações econômicas e políticas, torna-se inevitável admitir que a continuidade da pobreza é um resultado negativo dessa participação na economia mundial, que muda de forma mas não muda

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nesse mecanismo essencial que é o da incapacidade crônica de reter a formação de capital. Esta característica dos sistemas de produção primária pouco diversificada, que já tinha sido verificada na região cacaueira, aqui tem maior profundidade, porque se encontra numa região que, por duas vezes, alcançou o que parecia ser uma diversificação suficiente para superar esse vazamento crônico da formação de capital.

A crítica da descontinuidade da formação de capital remete-se a um aspecto fundamental do desenvolvimento do capitalismo na periferia da acumulação, que é o de perda de capacidade para absorver sua própria formação de capital. Esta deficiência não pode ser atribuída apenas às limitações da produção industrial, porque é um movimento negativo que envolve igualmente a produção primaria. A tese que se delineia das reflexões expostas neste ensaio é que o cerne desse mecanismo é o sistema de comercialização com seus desdobramentos nos setores da produção.

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SOUZA, Guaracy, FARIA, Wilmar (org.) Bahia de todos os pobres, Salvador, 1972.

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NOTAS i Alguns estudos importantes sobre esta região vieram à luz depois da primeira circulação deste ensaio em 1986. Infelizmente foram menos numerosos que o desejável. De todos modos, é preciso registrar a reedição de Miguel Calmon du Pin e Almeida, Ensaio sobre o fabrico do açúcar (Salvador, FIEB, 2002), Stuart Schwartz, Segredos internos, engenhos e escravos na sociedade colonial, (Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1988), B.J. Barickman, A Bahian counterpoint, Stanford, Stanford Press, 1998, além de Bahia de Todos os Santos, diagnóstico sócio-ambiental e subsídios para a gestão, Grupo Germe, Salvador, 1997. Dentre outros títulos de escopo mais amplo, de interesse para o estudo da região, destaca-se de Luiz Felipe Alencastro, O trato dos viventes, (Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1996). ii Há registro de vários ataques de corsários, que inclusive subiram o Rio Joanes, com o objetivo de roubar cargas de açúcar, mas que foram desconsiderados pela história oficial, talvez por serem considerados irrelevantes. iii Há uma questão em aberto relativa ao mercado de trabalho no ambiente do escravismo, onde a correspondencia entre o escravismo local e a organização da economia mundial foi, progressivamente, alterada, com componentes de trabalho livre vinculado aos mecanismos de controle da produção em geral. iv Trata-se de produção intensiva em capital e articulada com o mercado internacional, que não se compara com a produção açucareira modernizada que operou até a década de 1960. v Dentre as incursões sobre questões de método, fomos tentados a recorrer a contribuições de Michel Foucault, especialmente A arqueologia do saber, entendendo no entanto que se precisa aqui combinar a perspectiva arqueológica com a de uma sociologia histórica, em que os personagens ganham novas identidades segundo o modo como são obrigados a participar do mundo da produção escravista. Na Bahia esse processo foi fundamental na reconstituição de relações entre ex proprietários de escravos e ex escavos, que passava do meio rural para o meio urbano, com notáveis diferenças entre Salvador e as cidades de pequeno e médio porte. vi No inicio da década de 1970 foram realizados estudos sobre o sistema regional do Rio Paraguaçu, contratados com a empresa SCET. Tais estudos indicam a construção de um sistema de seis barragens, em que a última e mais próxima do estuário seria a barragem de Pedra do Cavalo. A construção desse sistema daria alento à economia da região de Feira de Santana. Inúmeros equívocos em que se incorreu durante quatro administrações sucessivas, e que culminaram com o fechamento da Superintendência de Desenvolvimento do Vale do Rio Paraguaçu em 1988, resultaram em que se construiu a última barragem em primeiro lugar e que somente no inicio da década de 2000 empreenderam-se os trabalhos para as primeiras barragens. vii A compreensão de família e de estruturas familiares de poder que se consolidou na Bahia, tal como em outras partes do país, provém da estruturação das famílias dos grupos dominantes, representativos do bloco de poder que se formou desde o período colonial. Ficaram em aberto explicações da complexidade das relações da esfera familiar no mundo dos escravizados e no dos pobres em geral, que estiveram expostos à violência do sistema e que tiveram que vender tempo de trabalho de homens e de mulheres nas diversas circunstancias da sobrevivência. Não se pode esquecer que o trabalho doméstico urbano desempenhado quase exclusivamente por mulheres é uma contradição clara com o princípio da autoridade familiar exercida pelos homens e que até hoje é uma fonte de conflito e um mecanismo pelo qual muitas mulheres escapam do ambiente autoritário das famílias de baixa renda rurais e urbanas. viii Datam daí as primeiras empresas metalúrgicas e de prestação de serviços mecânicos, consoantes com a criação da Companhia de Navegação Bahiana – inglesa – e com as fornalhas dos engenhos. O exemplo mais citado é a empresa Cameron Smith que veio operar atraída pela mecanização da produção tradicional. No conjujnto, o movimento foi muito mais amplo que isso, já que o setor metalúrgico recebeu importante estímulo com a instalação das estradas de ferro e que o parque

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industrial de indústrias leves continuou em operações mesmo depois da decadência da produção têxtil. ix Por iniciativa de Rômulo Almeida, foi reorganizado em 1955 o Instituto de Economia e Financças da Bahia (IEFB), que era uma entidade privada criada em por um grupo de economistas em 1937. O IEFB aliou-se aos programas de formação de quadros técnicos do Banco do Nordeste e constituiu o principal grupo de pesquisas econômicas e sociais da Bahia até 1963. Dentre outros trabalhos, elaborou as estimativas de produto e renda que sustentaram o planejamento econômico no início dos anos 60. O IEFB elaborou o primeiro Atlas Geoeconomico da Bahia e estudos sobre a economia do Recôncavo, que se perderam durante a década de 1970. Dentre esses estudos, a perda mais significativa para os novos estudos do Recôncavo foi uma pesquisa sobre a Economia dos Saveiros na Bahia, cujos originais foram perdidos durante os conflitos da década de 1970. x Pode-se considerar que algumas iniciativas do governo Epitacio Pessoa anteciparam políticas de desenvolvimento. As políticas do Estado Novo apontaram a uma modernização autoritária que pode ser qualificada como política de desenvolvimento. O primeiro plano rodoviário nacional foi lançado por Landulfo Almeida em Santo Antonio de Jesus em 1944. As iniciativas do governo Dutra, dentre outras a criação do Banco Nacional de Desenvolvimento foram políticas de desenvolvimento concebidas e preparadas durante o Estado Novo. xi Em artigo publicado na Revista de Desenvolvimento Econômico , julho de 2004, intitulado , A ideologia do desenvolvimento nacional e as perspectivas do capital internacionalizado procurei apresentar uma síntese dessa visão nacionalista do desenvolvimento econômico e social que teve um papel estratégico na formação da economia brasileira. xii Esse fooi, em suma, o projeto de desenvolvimento regional proposto pelo Plano de Desenvolvimento Econômico e Social para a Bahia, 1960-1963, conhecido como PLANDEB. xiii O projeto do centro de abastecimento foi desenvolvido pela Comissão de Planejamento Econômico da Bahia (CPE) em conjunto com uma missão de cooperação técnica liderada por Pedro Caminha, além da cooperação de outros técnicos das NNUU, como Casimir Bartkoviak, e pretendia instalar uma articulação multimodal de transportes, capaz de drenar a produção de alimentos do Recôncavo. xiv Os estudos para o projeto da siderúrgica estenderam-se de 1955 a 1960, chegando-se a um projeto executivo, com uma capacidade de produção prevista para 300.000 tons/ano. O projeto executado dez anos depois foi reduzido para 100.000 tons., com um menor leque de produtos finais. Outro projeto a ser comentado foi o de Matadouros e Frigoríficos (MAFRISA), que deveria iniciar a cadeia produtiva em Feira de Santana O projeto da Mafrisa foi inaugurado em 1961. xv O conceito de formação sócio-cultural, trabalhado por Darcy Ribeiro (1996) é de inestimável valia para ajudar a compreender o Recôncavo, que é uma região que tem um povoamento notavelmente estável, que lhe dá um perfil inconfundível no quadro geral da sociedade baiana. xvi O Projeto Integrado de Desenvolvimento da Bacia do Rio Paraguaçu operou durante sete anos durante a década de 1970, com um financiamento do Banco Mundial e foi objeto de avaliação em 1986. Foi um projeto de objetivos múltiplos, com o objetivo principal de elevar emprego e renda e seus resultados foram desiguais mas não foram insignificantes. É uma experiência que foi revista por sua coordenadora Ely Pimenta, cujas principais deficiências decorreram de não ter enfrentado os problemas resultantes do controle privado da água na região. xvii Pesquisas realizadas por este autor na década de 1980 mostraram que a concentração da propriedade fundiária no Recôncavo era relativamente maior que na maior parte das demais regiões do estado. Tais observações podem ter sido parcialmente contraditas pelo desenvolvimento da economia do oeste nas duas últimas décadas, mas aparentemente continuam válidas em comparações com outras regiões tradicionais. xviii Utilizou-se aqui essa regionalização apenas por uma referência oficializada por órgãos do governo da Bahia, entendendo entretanto que ela não corresponde à realidade histórica da região do Recôncavo onde, por definição não há sertão nem semi-árido. O Recôncavo estende-se da desembocadura do Rio Pojuca ao norte à desembocadura do Rio Jaguaribe ao sul, pouco importando as sucessivas e inexpessivas subdivisões de municípios. xix O agravamento do desempego começou na segunda metade da década de 80 e foi conseqüência das reformas do pólo petroquímico, onde o emprego caiu de uns 50.000 entre diretos e indiretos a uns 10.000 e dos efeitos negativos na indústria metalmecânica, onde houve resultados semelhantes aos do pólo.

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xx Falta uma análise do mundo do trabalho na economia capitalista nascente no Brasil, que se firmou utilizando os mecanismos de exploração do trabalho formados no ambiente pré capitalista e que, de fato, continua usando. Tanto as indústrias como a agricultura moderna têm sido beneficiadas por um mercado de trabalho que lhes permite pagar salários muito inferiores à média das regiões mais industrializadas do país e que não guardam proporção com os custos de reprodução da força de trabalho. Nestas economias periféricas internacionalmente integradas por uma sucessão de mercadorias mundiais encontram-se mecanismos de exploração que não são partes de uma única forma de produção, senão do modo como a combinação de formas de produção é conduzida pela associação dos capitais em ascensão com o Estado. xxi Usa-se aqui a expressão modelo de turismo para representar o conjunto das atividades de lazer em investimentos de alta rendacompreendendo investimentos do turismo internacional e elementos de lazer de grupos nacionais de alta renda que se comportam localmente de modo análogo ao turismo. Turismo seria uma atividade que se realiza com despesas de grupos de rendas altas e médias, que permanecem exógenos frente aos movimentos de formação local de renda; e que também continuam separados dos movimentos da formação do capital. O turismo só passa a interessar à economia regional quando dá lugar a compras no mercado local, isto é, quando faz parte da formação de capital. Com o controle da maior parte do turismo por redes de interesses internacionais, que combinam hotéis, empresas de viagem, excursões etc, verifica-se um distanciamento entre os movimentos de viajantes e a composição das compras realizadas pelos turistas, que acaba voltando para os países que originam o turismo. Ao focalizar na semelhança entre os condomínios de lazer de alta renda e o turismo pretende-se mostrar essa separação entre o consumo desse segmento social e a economia local. xxii A proposta de criação de um pólo de crescimento em Aratu baseava-se na combinação de uma siderúrgica a ser implantada com o processo HYLSA, combinada com indústrias metalúrgicas e com uma combinação multimodal de transportes, que também ensejaria a implantação de um centro de abastecimento em Cabrito. Complementarmente, combinava-se com um centro industrial em Feira de Santana – o CIS – e com um centro em Salvador, o DINURB. xxiii Aplica-se aqui claramente a teoria smithiana da renda da terra – respaldada por Marx – de que o preço da terra depende do que se pode produzir com ela e que as propriedades químicas do solo são apenas um dado inicial, que deve ser corrigido pela relação entre as variações no preço da terra e as variações nos preços dos produtos finais. xxiv Observações diretas deste autor em 1994 permitiram encontrar apenas uma unidade mecânica de produção de azeite de dendê no município de Cachoeira, que na verdade era apenas uma unidade artesanal que tinha incorporado um pequeno motor usado de automóvel e tinha uma produção pequena. A produção industrial de dendê nessa parte do Recôncavo ficou em mãos apenas de uma empresa, que controlava as compras da produção dos pequenos produtores.